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AJURIS
ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA
CURSO DE PREPARAÇÃO À MAGISTRATURA
O GARANTISMO PENAL ENTRE A PROIBIÇÃO DE
EXCESSO E A PROIBIÇÃO DE INSUFICIÊNCIA
MAIAJA FRANKEN DE FREITAS
Nível III
ORIENTADOR DR. INGO WOLFGANG SARLET
Porto Alegre, 30 de Outubro de 2006.
MAIAJA FRANKEN DE FREITAS
O GARANTISMO PENAL ENTRE A PROIBIÇÃO DE
EXCESSO E A PROIBIÇÃO DE INSUFICIÊNCIA
Monografia realizada em atendimento a
requisito para obtenção do grau em
cumprimento ao 3º. nível do Curso de
Preparação a Magistratura, sob a
orientação do Prof Dr. Ingo Wolfgang
Sarlet.
Porto Alegre
2006
Agradeço a Deus....
Agradeço a meus Pais, pelo apoio,amor e força....
Agradeço a minha amiga Manuela, pelo aporte que só uma amizade sincera é capaz de conceder....
Danke Schön Herr Sarlet, pelos ensinamentos, pela atenção, paciência e pelo tempo
despendido para a orientação do presente estudo!
SUMÁRIO
Introdução..... .......................................................................................................................071. Direito Penal e Garantismo Penal no Estado Democrático de Direito..............................10
1.1 O Estado Democrático de Direito e sua base principiológica.....................................111.1.1 Do Estado Ditatorial ao Estado de Direito – breve incursão histórica...............13 1.1.2. Limitação à atuação estatal nesse novo modelo de Estado...............................20
1.2. Os fundamentos do garantismo penal em Ferrajoli e a Teoria Jurídica da validade e da efetividade........................................................................................................................29 1.3. A ligação entre os assuntos trabalhados até o momento..........................................34
2. Considerações sobre o princípio da proporcionalidade....................................................36 2.1 Noções preliminares sobre a trajetória histórica do princípio...................................40 2.1.1 Evolução histórica do princípio no Direito Norte-Americano.........................42
2.1.2 Evolução histórica do princípio no Direito Germânico – do surgimento aos dias atuais..............................................................................................................................46 2.2. Distinção entre proporcionalidade e razoabilidade.................................................53 2.3 Princípio da proporcionalidade e sua dupla dimensão – proibição de excesso e proibição de insuficiência.....................................................................................................59
2.3.1 O que significa um “garantismo positivo”.......................................................612.3.2 Entre proibição de excesso e proibição de insuficiência..................................64
3. Proposta para aplicação do princípio da proporcionalidade enquanto proibição de insuficiência na casuística penal...........................................................................................72 3.1. Reincidência – notas introdutórias...........................................................................74 3.2. Posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais contrários ao reconhecimento da agravante da reincidência......................................................................................................77
3.2.1 Aspectos trabalhados pela doutrina..................................................................783.2.2 Posicionamentos jurisprudenciais acerca da inaplicabilidade da reincidência –
julgados da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.........................................................................................................................................85 3.3 Proposta de uma terceira via para a fundamentação e aplicação da agravante da reincidência...........................................................................................................................89 3.4. À guisa de finalização............................................................................................97
Conclusão............................................................................................................................102
Referências bibliográficas...................................................................................................105
RESUMO
O presente trabalho consiste no estudo da evolução do direito penal sob o impacto do
direito constitucional. Após um breve paralelo entre o direito penal vigente durante a
ditadura militar (no Brasil) e o período pós 1988 – ou seja, após o advento da Constituição
Federal de 1988. Nessa perspectiva, faz-se uma menção especial ao papel dos direitos
fundamentais nesse atual modelo de Estado, bem como ao garantismo penal, tal como foi
estruturado por Luigi Ferrajoli, com foco no que o autor denomina de “teoria jurídica da
validade e da efetividade” das normas. A seguir, trabalha-se com o princípio da
proporcionalidade, diferenciando-se proporcionalidade de razoabilidade e explorando o
princípio da proporcionalidade na sua dupla dimensão como proibição de excesso e como
proibição de insuficiência. Por fim, analisa-se uma possibilidade de aplicação do princípio
da proporcionalidade em sua dupla ótica (proibição de excesso e proibição de insuficiência)
na casuística penal, à luz do exemplo da reincidência, com o objetivo de oferecer uma
“terceira via” no que diz com a aplicação de tal agravante, superando os extremos de uma
negação de qualquer relativização e da inconstitucionalidade em tese do instituto.
PALAVRAS – CHAVE: Direito Constitucional – Direito Penal – Direitos Fundamentais –
Princípio da Proporcionalidade – Proibição de excesso – Proibição de insuficiência –
Garantismo Penal Positivo.
Zusammenfassung
Die vorliegende Arbeit enthält eine Studie zur Entwicklung des Strafrechts unter dem
Einfluss des Verfassungsrechts. Nach einem kurzen Vergleich zwischen dem während der
Militärdiktatur geltenden brasilianischen Strafrecht und dem nach 1988 geltenden – das
heißt nach der Entstehung der Bundesverfassung von 1988 – , werden speziell die Aufgabe
der Grundrechte in diesem aktuellen Staatsmodell benannt und auch der Grundsatz der
Rechtstaatlichkeit wie er durch Luigi Ferrajoli entworfen wurde. Brennpunkt ist das, was
der Autor “teoria jurídica da validade e da efetividade” (Rechtstheorie zu Geltung und
Wirksamkeit) der Normen nennt. Im Folgenden wird der Verhältnismäßigkeitsgrundsatz
untersucht. Es wird Verhältnismäßigkeit von Zweckmäßigkeit differenziert und der
Grundsatz der Verhältnismäßigkeit in seiner zweifachen Interpretierbarkeit erörtert,
nämlich als Untermaßverbot und als Übermaßverbot. Abschließend wird die mögliche
Anwendbarkeit des Verhältnismäßigkeitsgrundsatzes in seiner doppelten Sichtweise
(Verbot des Übermaßes und des Untermaßes) im Strafrecht untersucht. Als Fallbeispiel
dient hier die Rückfälligkeit. Ziel ist es, bezüglich dieses strafverschärfenden Umstandes
einen „dritten Weg“ anzubieten, zwischen einer entweder kompletter Verneinung einer
Relativierung oder andererseits der Verfassungswidrigkeit dieser Norm.
Schlüsselbegriffe: Verfassungsrecht – Strafrecht – Grundrechte –
Verhältnismäßigkeitsgrundsatz – Übermaßverbot – Untermaßverbot – Grundsatz: Keine
Strafe ohne Gesetz
INTRODUÇÃO
A motivação para o presente estudo reside em algumas das problemáticas que
envolvem o direito penal na atualidade: o aumento da criminalidade, o sentimento de
impunidade por parte da população, e, a aderência por parte de alguns juristas brasileiros à
teoria do garantismo penal de Luigi Ferrajoli, sob o aspecto de garantia dos direitos
fundamentais apenas para aqueles submetidos ao crivo do judiciário, em detrimento dos
direitos dos demais componentes da sociedade.
No que tange ao último fator, tem-se percebido na práxis forense que a aplicação do
garantismo penal tem visado apenas àquilo que se denominará de “proibição de excesso” da
atuação estatal perante o indivíduo, sujeito passivo em um processo penal, sem conceder a
devida proteção a outra face, ou seja, sem a atenção à “proibição de insuficiência” da
atuação estatal perante todos os cidadãos. Nesse sentido, merece relevo a aplicação do
garantismo penal tendo-se em mente o princípio da proporcionalidade sob o aspecto da
proibição de excesso e sob o aspecto da proibição de insuficiência.
Utilizar-se-á como marco teórico a teoria dos direitos fundamentais, os quais
impõem ao Estado um limite à sua atuação excessiva e, de outra parte, impõem à ação
estatal um dever de proteção para seus cidadãos. Decorrência disso é o modelo atual de
Estado, abordado com mais vagar no primeiro capítulo, esclarecendo-se que nesse modelo
de Estado os direitos fundamentais constituem-se não só como limites, mas também como
base de toda a sua atuação. Com fundamento nisso, procurar-se-á demonstrar que o autor de
um delito deve ter seus direitos fundamentais garantidos, entrementes, não se pode esquecer
que também cada pessoa integrante da sociedade tem esse mesmo direito que parte,
basicamente, do respeito (também) aos seus direitos fundamentais enquanto pessoa
humana.
Demonstrar-se-á que, após a Constituição Federal de 1988, toda a legislação
existente no Brasil deverá ser interpretada com base nos preceitos contidos na Carta
constitucional, até mesmo porque o País, a partir de sua promulgação, entrará numa nova
fase, de observância e respeito aos direitos fundamentais, diferentemente do que ocorria até
então, em especial durante o regime militar.
Para poder traçar algumas considerações sobre aquilo que se denominará de
“garantismo positivo”, faz-se uma breve incursão na Teoria do Garantismo Penal
estratificada por Luigi Ferrajoli. Não se pretende esgotar a matéria no que diz a essa
influência na doutrina brasileira, mas demonstrar algumas questões da casuística penal para
detectar alguns tópicos que serão foco de considerações pontuais sobre a agravante da
reincidência no terceiro capítulo.
Ressalte-se, ainda, a importância da demonstração feita no segundo capítulo no que
atine ao princípio da proporcionalidade, em seu duplo viés, a fim de demonstrar que é
possível uma (re) leitura da legislação nacional a partir da Constituição Federal de 1988,
tendo-se em mente a necessidade: de limitar a atuação estatal (proibição de excesso) e,
também, de lembrar dos deveres de proteção do Estado para com seus cidadãos (proibição
de insuficiência).
O desenvolvimento do trabalho será fulcrado, basicamente, em pesquisas
bibliográficas e pesquisas jurisprudências, com o fito de demonstrar alguns
posicionamentos a respeito da agravante da reincidência, a qual será utilizada como
exemplo para uma possível aplicação da parte teórica do trabalho.
Dessa feita, o estudo iniciará enunciando a importância dos direitos fundamentais
no Estado Democrático de Direito, fazendo-se um breve apanhado sobre o direito penal no
Brasil durante o regime militar, e após a Constituição de 1988, traçando-se um paralelo
acerca de como era operada a questão no que diz à garantia e proteção dos direitos
fundamentais. No segundo capítulo, são traçadas linhas gerais sobre o princípio da
proporcionalidade, sua evolução, distinção com a razoabilidade, e a proposta de
proporcionalidade como proibição de excesso e proibição de insuficiência. Em seguida,
faz-se uma análise (ainda que prematura) da visão que se tem no Brasil a respeito da
agravante da reincidência, ao final propondo-se uma terceira via para sua fundamentação e
conseqüente aplicação no caso concreto.
1. DIREITO PENAL E GARANTISMO NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O desenvolvimento do Direito apresenta correlações nos graus de
desenvolvimento das diversas sociedades humanas, pois se constitui em reflexo das
condições sociais e culturais de determinada época. O direito origina-se do agrupamento
social, tendo nele a sua natureza, uma vez que surge pela necessidade de normas de conduta
para reger certo grupo social. Do tipo de sociedade depende a sua ordem jurídica, que tem
como escopo satisfazer suas necessidades, assegurar sua continuidade, resolver possíveis
conflitos, atingir suas metas e garantir a harmonia social1.
Assim, reveste-se de suma importância para a análise de qualquer fato da
atualidade, o estudo das suas origens históricas. Em virtude disso, bem como pela natureza
do presente trabalho, pretende-se abordar, inicialmente, a base principiológica do Estado
Democrático de Direito, modelo de Estado vigente no Brasil, fazendo-se um breve
contraponto com seu regime de Estado antecessor; e, de outra banda, abordando-se ainda
1 Ao trabalhar sobre o Direito nas sociedades primitivas, leciona Wolkmer: “Toda a cultura tem um aspecto normativo, cabendo-lhe delimitar a existencialidade de padrões, regras e valores que institucionalizam modelos de conduta. Cada sociedade esforça-se para assegurar uma determinada ordem social, instrumentalizando normas de regulamentação essenciais capazes de atuar como sistema eficaz de controle social”. WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 17
que prematuramente, a Teoria do Garantismo Penal, sistematizada modernamente pelo
doutrinador italiano Luigi Ferrajoli.
1.1 O Estado Democrático de Direito e sua base principiológica
Após anos vivendo “abaixo de normas” oriundas de um regime militar, havia a
necessidade, no Brasil, de se resgatar o princípio da dignidade da pessoa humana como
marco a orientar as relações em sociedade e o universo legislativo do país.
Conforme será deduzido adiante, após os anos regidos sob a égide do regime
militar, se fazia mister para o país uma legislação que contemplasse a evolução e os anseios
da sociedade após a libertação de sobredito regime. Como mudança paradigmática, tem-se
como a base de todo o sistema jurídico atual a dignidade da pessoa humana, que irradiará
seus valores para os demais campos e princípios a serem observados, além de ter sido ela
contemplada como fundamento do atual modelo de Estado Brasileiro.
Desse modo, ter-se-á no Estado Democrático de Direito um sistema de limitações
ao exercício do poder estatal, o qual leciona Cademartori: de um lado, tem como base a lei
e o princípio da legalidade e; de outro lado, a necessidade de observância ao conteúdo das
normas, das leis, não bastando somente essa, mas que ela contenha os valores da sociedade
em vigor, que atualmente residem basicamente nos direitos fundamentais, tendo, repise-se,
como núcleo nefrálgico a dignidade da pessoa humana2.
2 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 170 et. seq.
A base principiológica desse sistema será, conseqüentemente, os direitos
humanos; alguns deles positivados na Constituição Federal de 1988, tornando-se dessa
forma direitos fundamentais, seja no rol do artigo 5o desse Diploma, seja em outros de seus
dispositivos, como, por exemplo, os direitos sociais constantes no artigo 6o também daquele
Diploma. Relativamente à importância dos direitos humanos nesse contexto, expõe Melgaré
que tais direitos exercem a função de uma mínima proteção para que o ser humano tenha
uma vida digna. Ainda nesse sentido, leciona o autor que,
Isso implica que toda e qualquer autoridade, todo e qualquer poder político têm a obrigatoriedade de os garantir e os adimplir. (...) Como uma proteção a um possível totalitarismo estatal. Todavia, não se esgotam aí os direitos humanos, eis que oponíveis e válidos também em relação aos demais integrantes do corpo social. Isso implica, primeiramente, limitar-se o poder do Estado para, a seguir, fortalecê-lo, a fim de garantir, concretamente, os direitos humanos.3
Ou seja, a base principiológica do Estado Democrático de Direito reside nos
direitos humanos, que originam os direitos fundamentais, constatada não só a importância
de garanti-los, mas também de torná-los efetivos, conforme demonstra a história recente da
humanidade4.
3 MELGARÉ, Plínio. Direitos humanos: uma perspectiva contemporânea – para além dos reducionismos tradicionais. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – Ajuris. Ano XXIX, no88, Tomo I – Dez. 2002. p. 331/3324 Miranda, ao escrever sobre a situação do Estado no século XX expõe como “exemplo” o Estado
Totalitário, evidenciando o que se pode ter como afronta e desrespeito aos direitos humanos diante da atuação estatal, de forma que na maioria das vezes a liberdade das pessoas, como enuncia o Autor, ficava condicionada ao “agir conforme as finalidades do Estado”: “(...) Tal como no Estado Absoluto, há neles uma concentração do poder político, mas muito mais do que isso: o Estado absoluto não intervinha na vida privada das pessoas, não pretendia absorver a sociedade civil (...) ao passo que o Estado totalitário assume todo o poder na sociedade e identifica a persecução humana com a persecução dos seus fins.” MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: preliminares, o Estado e os sistemas constitucionais. 6 ed. rev. e atual. Tomo I. Coimbra Editora: 1997. p. 92.
Reconhecidos os direitos fundamentais como escol do modelo de Estado ora
abordado5, e, mais precisamente, a dignidade da pessoa humana como base axiológica de
todo o esquema legislativo e do sistema jurídico, vale ressaltar que para sua efetiva garantia
e proteção, existe a Constituição dos Estados, que segundo Miranda6, num regime de
democracia social exerce: a função legitimadora ao poder estatal, organizativa do Estado,
jurídica (dado o intenso conteúdo valorativo que ela contém, inclusive ao positivar alguns
dos direitos humanos), política e transformadora7.
1.1.1 Do Estado Ditatorial ao Estado de Direito – breve incursão histórica
Após o golpe de 1964, as estruturas do Estado passam por um processo de
endurecimento e exclusão do direito de participação e também dos direitos e garantias
fundamentais, tais como a liberdade de pensamento e, na linha processual, do princípio do
contraditório e da ampla defesa. É fato notório8 que dentre as pessoas perseguidas, tidas
como “criminosas”, enquadravam-se jornalistas, médicos, advogados, intelectuais que se
preocupavam com a violência que ocorria de forma gritante e procuravam, de alguma
forma, lutar para mudar o quadro político e social da dura realidade que assolava nosso
País9.
5 Sarmento, em linhas iniciais dissertando sobre os direitos fundamentais e o interesse público ressalta a importância daqueles, expondo que eles orientam o “estatuto axiológico do Estado Democrático de Direito.” SARMENTO, Daniel.Colisão entre direitos fundamentais e interesses públicos, in SARLET, Ingo Wolfgang. Jurisdição e Direitos Fundamentais, Ajuris, V I, Tomo II. Porto Alegre: Revista dos Tribunais e Ajuris, 2006. p. 31.
6 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 329/3337 Acredita-se que é possível afirmar que a Constituição Federal Brasileira de 1988 enquadra-se nessa
classificação e, mais especificamente no item transformadora, diante do grande conteúdo de normas programáticas insertas em seu texto, as quais enunciam “programas” a serem perquiridos pelo Estado brasileiro.
8 Tendo em vista o “aniversário” dos 40 anos do golpe, em abril de 2004, fato noticiado – e veemente criticado em todos os meios de comunicação.
9 Nesse sentido: FRANCIS, Paulo. Trinta anos esta noite: 1964, o que vi e vivi. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre a violência criminal, controle
Em que pese a remissão da doutrina acerca do período pós-segunda guerra
mundial (entre 1945/1961), no qual o Brasil teria vivido uma “nova fase democrático-
liberal” tendo uma nova Constituição, a de 194610, não se pode olvidar que o Brasil, entre
os anos de 1939 até 1945 vivia épocas de revolta social, o que levou ao “esquecimento” dos
direitos humanos em um período pré-1964, por assim dizer. Discorrendo sobre o período
ditatorial que existiu anteriormente ao de 1964, leciona Cancelli:
O período pós-30 apareceu na história do Brasil delineado por uma nova realidade: a presença de multidões de trabalhadores nas grandes cidades, a redefinição do espaço urbano e o projeto político de um Estado que se auto-impunha a tarefa de promover a inovação moral e política de toda a sociedade através de novas estratégias de dominação que negavam, em sua essência, os princípios políticos do liberalismo clássico, e que passaram a empregar novas formas de controle social, agora dirigidas de maneira cada vez mais centralizada à sociedade como um todo.
A polícia, em grande parte responsável pelo controle exercido por um Estado cada vez mais cerceador da ação, do discurso e da política, impôs novos castigos, encarou o crime de formas diferentes do que fora até então e exerceu variadas formas de vigilância social.
Na verdade, a vigilância constante sob a qual fora colocada toda a sociedade e a importância cada vez maior que adquiriu o aparato policial evidenciam a disponibilidade da polícia em responder a um projeto político que não se absteve de aprisionar ou liquidar certas categorias da população. 11
Dito isso, percebe-se que o quadro político do Brasil por um período
relativamente extenso12 esqueceu-se dos direitos e garantias fundamentais, imiscuindo-se o
Estado na vida privada dos cidadãos e praticando afrontas a diversos dispositivos
internacionais que versam sobre a proteção dos direitos humanos. Assim, apesar de fazer
social e cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003, p. 39/42. De outro lado, com um sentido mais técnico-científico, despido de opiniões pessoais: D´ARAÚJO, Maria Celina (org.). Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
10 Dado reproduzido por Miranda, ao estudar o Sistema Constitucional Brasileiro, op. cit., 1997, p. 228.11 Op. cit. p.25/2612 A obra de Cancelli, citada acima, enuncia o quadro vivido na era Vargas – greves e brigas por melhores
salários, “anarquistas” nas ruas lutando por direitos seus –, de onde se conclui que o esquecimento dos direitos fundamentais, assim tratados positivamente desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do cidadão, de 1789, iniciou no Brasil muito antes do golpe de 1964.
parte da Convenção de Direitos Humanos desde 1945, o Brasil, repise-se pareceu esquecer-
se disto durante os longos 25 anos de “obscuridade do regime ditatorial”13 vividos aqui.
Acredita-se que o período crítico desse esquecimento ocorreu entre 1964 até a promulgação
da Constituição Federal de 198814.
Um dos motivos desse estado de medo e terror vivido por todos a partir de 1964 se
deve à implantação dos atos institucionais15 (por óbvio, o estado de medo das pessoas
não era ocasionado apenas [se é que se pode utilizar tal expressão] pelos atos
institucionais, mas pela concatenação de toda uma estrutura “jurídica” montada pelo
governo). No dizer de Herkenhoff, o regime dos atos institucionais, além do desprezo
aos direitos humanos, desconhecia totalmente o sentido da cidadania16. Isso porque
ameaçada a “segurança do Estado”, justificava-se o sacrifício do bem estar, que se
traduzia no sacrifício da liberdade, das garantias e dos direitos da pessoa humana17.
Em que pese a diferença entre um regime ditatorial de estado, tal como o
concebido no Brasil entre 1964 até a promulgação da Carta Constitucional de 1988, e um
regime totalitário, por ser de relevância para o tema o estudo do impacto na vida das
pessoas que os regimes onde há “um direito formal, mas não há um direito substancial,
13 Expressão utilizada por Melgaré, op. cit., 2002,p.35114 Sabe-se que o regime militar ditatorial no Brasil começou a ruir antes mesmo da promulgação da
Constituição Federal de 1988. Contudo, o marco dessa promulgação é utilizado da forma acima no decorrer do texto a fim de evitar a tautológica explicação acerca dos movimentos pré 1988, os quais culminaram na promulgação da Carta Constitucional vigente.
15 Atos institucionais são “Normas de natureza constitucional expedidas entre 1964 e 1969 pelos governos militares que se sucederam após a deposição de João Goulart em 31 de março de 1964. Ao todo foram promulgados 17 atos institucionais, que, regulamentados por 104 atos complementares, conferiram um alto grau de centralização à administração e à política do país”. A presente, bem como demais informações acerca dos Atos Institucionais podem ser acessadas na Home Page do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro–CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas. Pelo site: http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/5744_1.asp16 HERKENHOFF, João Baptista. Como funciona a cidadania. 2 ed. Manaus:Editora Valter, 2002. (Série
como funciona, 5), p. 101.17 Pastana expõe em que era fulcrada a pretensão do governo militar “O desejo do governo militar não era
punir, mas aniquilar aqueles que ameaçavam o poder.” Op. cit. p. 40.
material18” se traz à colação um trecho da obra Origens do Totalitarismo, na qual Arendt
expõe o impacto que um regime totalitário causa na vida das pessoas:
(...) Enquanto o isolamento se refere apenas ao terreno político da vida, a solidão se refere à vida humana como um todo. O governo totalitário, como todas as tiranias, certamente não poderia existir sem destruir a esfera da vida pública, isto é, sem destruir, através do isolamento dos homens, as suas capacidades políticas. Mas o domínio totalitário como forma de governo é novo no sentido de que não se contenta com esse isolamento, e destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter.19
Dessa feita, percebe-se que é inviável uma forma de Estado que não leve em
consideração direitos humanos como um todo, tal como ocorre em regimes ditatoriais ou
em regimes totalitários. Assim, conclui-se ser ilegítimo que um Estado, em nome de uma
pretensa ordem social (argumento atrás do qual se encontra o verdadeiro sentido da
intenção, qual seja, resguardar o sistema político-governamental implantado, no caso do
Brasil o regime militar ditatorial) torture, prenda sem justificativa alguma – em afronta aos
princípios da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal, da ampla defesa e da
liberdade de pensamento, apenas para citar alguns, ausências características de regimes de
exceção, tais como os ditatoriais e os totalitários. Ainda sobre esse assunto, cabe referir que
as várias barbáries cometidas ao longo da história recente da humanidade foram praticadas
com fulcro na “legalidade”.
18 Faz-se tal distinção com fulcro de demonstrar que no direito dito formal a forma legislativa é observada, vale dizer, a norma é expedida pelo organismo competente, mas onde o direito denominado de substancial é desprovido de qualquer conteúdo axiológico, atinente aos direitos e garantias de toda a pessoa. Distinção feita com base nos ensinamentos de MELGARÉ, Plínio. Um olhar sobre os direitos fundamentais e o estado de direito – breves reflexões ao abrigo de uma perspectiva material. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.) Jurisdição e Direitos Fundamentais. Ajuris, V. I, Tomo II. Revista dos Tribunais – Ajuris, 2006, p. 193/207.
19 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo:Companhia das Letras, 1989, p. 527.
No Brasil, assim como ocorreu na Alemanha Nazista20, havia a “escusa” da prática
de certos atos porque os mesmos encontravam “respaldo legal”. Veja-se que esta legalidade
era meramente formal, uma vez que despida de qualquer conteúdo ético-valorativo, o que
permitia as prisões tais como eram efetuadas, as torturas para obter informações
pretendidas, e assim por diante, tudo em “nome da lei e da proteção do Estado”.21
A título ilustrativo, traz-se à baila o procedimento das prisões, descrito na obra
Brasil Nunca Mais, onde todo o procedimento era efetuado com a “devida remissão
legislativa”:
O labirinto do sistema repressivo montado pelo Regime Militar brasileiro tinha como ponta-do-novelo-de-lã o modo pelo qual eram presos os suspeitos de atividades políticas contrárias ao governo. Num completo desrespeito a todas as garantias individuais dos cidadãos, previstas na Constituição que os generais alegavam respeitar, ocorreu uma prática sistemática de detenções na forma de seqüestro, sem qualquer mandado judicial, nem observância de qualquer lei22.
Conclui-se que a “regra vigente” era ditada por uma minoria que, através da força
e da tortura, impunha seu modelo de “Estado Ideal” sendo que, aqueles que o
desrespeitassem sofreriam literalmente na pele as conseqüências de seus atos.
20 Leciona Miranda que na Alemanha Nazista, Hitler ascendeu ao poder e converteu todo o texto da Constituição de Weimar a seu favor: “Num fenómeno de personalização, ao arrepio de toda a história de institucionalização do poder político, o nacional-socialismo dissolveu mesmo o Estado no partido e no Führer. Aproveitando a delegação de poderes que recebeu do Reichstag em 1933, Hitler fundiu no cargo de Führer as funções que pelo texto de Weimar pertenciam ao Presidente e ao Chanceler, transformou a Alemanha num Estado unitário e assumiu o supremo poder de direcção e todos os poderes – Legislativos, Executivos e até Judiciais – como intérprete do espírito do Povo Alemão e seu guia”. Op. cit, 2005, p. 132. Nota-se, pela citação supra, que em determinados momentos históricos, aqueles que assumiam o poder aproveitavam-se dele para “distorcer” as leis a seu favor, tornando-as conforme suas necessidades e justificando seus atos, por conseguinte, nas leis que eles mesmos interpretavam ou criavam.
21 Sobre o tema, ensina Morais que em vários períodos da história ‘moderna’ da América Latina, as “Constituições” serviram não para expressar a vontade da maioria e sim para “dar véu de legalidade e legitimidade a um poder arbitrário.” MORAIS, José Luiz Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. (Estado e Constituição;1), p. 66.
22 ARNS, Dom Paulo Evaristo (org.) Brasil Nunca Mais. Rio de Janeiro: Vozes, 1996, p. 77
Nessa fase, os princípios-garantia, hoje inerentes a qualquer processo
(administrativo, civil ou penal), tais como: a necessária observância do devido processo
legal, do contraditório e da ampla, foi olvidada. Frente a isso, imagine-se como era possível
o respeito ao princípio da dignidade humana, diante do quadro de supressão dos direitos das
pessoas? Crê-se que, nesta época, tal princípio fora um tanto quanto esquecido (para não
dizer mutilado)...O “respeito” às idéias advindas do Poder era mais (senão vital) importante
do que o próprio respeito à pessoa humana. Sarlet, ao comentar essa realidade, discorre
acerca da importância conferida aos direitos fundamentais pelo Constituinte de 1988:
Outro aspecto de fundamental importância no que concerne aos direitos fundamentais em nossa Carta Magna diz respeito ao fato de ela ter sido precedida de um período marcado por forte dose de autoritarismo que caracterizou – em maior ou menor escala – a ditadura militar que vigorou no nosso país por 21 anos. A relevância atribuída aos direitos fundamentais, o reforço de seu regime jurídico e até mesmo a configuração de seu conteúdo são frutos da reação do Constituinte, e das forças sociais e políticas nele representadas, ao regime de restrição e até mesmo de aniquilação das liberdades fundamentais.23
Diante do quadro antes exposto, e como toda a exploração tem um limite (ainda
que em determinados casos o real interesse desse seja, não uma crença na justiça, mas um
interesse político), por volta de 1980 inicia no “Poder” uma certa oposição, que, pouco
depois, ensejaria a queda definitiva do então regime ditatorial existente em nosso país. Na
dicção de Streck:
Muito embora o regime militar tenha vigorado durante longos vinte e cinco anos, nunca deixou de ser contestado. Passando por um período de endurecimento, ocorrido com a edição do AI 5 em 1968, quando o regime enfrentava desde a contestação pacífica da oposição representada pelo MDB – Movimento Democrático Brasileiro, até a oposição armada representada por grupos de guerrilheiros, o regime começa um leve movimento de distensão a partir do Governo Geisel, embora nesse mesmo período (1974-1978) tenha havido o fechamento do parlamento, cassação de mandatos, o cancelamento das eleições
23 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 72.
para governadores, criação dos senadores biônicos, até culminar com a extinção do AI 5 e a formação de vários partidos políticos.
Desde a década de 70, enfim, movimentos da sociedade civil reivindicavam a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte (...) Os primeiros anos da década de 80, já com o funcionamento dos novos partidos políticos, foram marcados pelo movimento que visava à realização de eleições diretas para Presidente da República. 24
Como bem exposto por Streck, o País, em face do intenso desrespeito a todas as
pessoas que discordassem das idéias daqueles que detinham o poder, bem como da própria
insegurança das pessoas frente ao Estado, entra para uma nova era no sistema de direitos e
garantias, assim como quanto ao modelo de Estado a ser adotado a partir da Constituição
Federal de 1988.
Assim, ter-se-á nesse novo modelo de Estado um limitador à atividade estatal,
residente nos princípios e garantias fundamentais. No decorrer desse trabalho, ver-se-á que
o papel dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito é essencialmente o de
limitar a atuação estatal quanto ao respeito à sua observância. Diversamente do que
ocorrera em diferentes regimes de Estado anteriores, nessa nova etapa constitucional a
observância dos direitos fundamentais e dos direitos humanos faz-se imperiosa, servindo
eles não só de limitadores ao poder de legislar do Estado como também de limitadores a
qualquer intervenção do Estado na vida de seus cidadãos, desempenhando, inclusive,
limites nas relações privadas.
Na realidade, o papel dos direitos fundamentais é fundamentalmente o de servir
como uma base axiológica, valorativa, ética, tanto no sistema jurídico brasileiro como
também para orientação na vida de todas as pessoas da sociedade.25
24 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p.356.25 Sobre essa influência também nas relações privadas, ver importante contribuição de CANARIS, Claus-
Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 223/243.
1.1.2 Limitação à atuação estatal nesse novo modelo de Estado
Após o processo constituinte que originou a Constituição Federal de 1988, 26 o
Brasil passa a viver um panorama diverso do que vivera nos últimos 25 anos, tendo o
Estado Democrático de Direito vigente no país como um de seus fundamentos a dignidade
da pessoa humana (artigo 1o, inciso III, da Constituição Federal).
Diante da suma importância, cabe aqui trazer a colação o ensinamento de Sarlet ao
tratar dos direitos fundamentais na Constituição de 1988, em notas introdutórias:
Traçando-se um paralelo entre a Constituição de 1988 e o direito constitucional positivo anterior, constata-se, já numa primeira leitura, a existência de algumas inovações de significativa importância na seara dos direitos fundamentais. De certo modo, é possível afirmar-se que, pela primeira vez na história do constitucionalismo pátrio, a matéria foi tratada com a merecida relevância. Além disso, inédita a outorga aos direitos fundamentais, pelo direito constitucional positivo vigente, do status jurídico que lhes é devido e que não obteve o merecido reconhecimento ao longo da evolução constitucional.27
Por seu turno, Bonavides ao discorrer sobre a Teoria dos Direitos Fundamentais
afirma que há uma ligação direta e essencial entre os direitos fundamentais e a dignidade da
26 Não será abordado o processo constituinte propriamente dito, em virtude de não ser ele objeto do presente trabalho. Contudo, sobre o assunto vide: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 267/301 e 600/617. SARLET, op. cit, p. 69/76. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 45/68 e 88/91. Sobre Controle de Constitucionalidade: STRECK, Lenio Luiz. op. cit, p.361/656.
27 Op. cit, 2003, p.69
pessoa humana, enquanto valores históricos e filosóficos28. Afinal, como conceber
qualquer outro direito sem interligá-lo aos valores, não só da liberdade, mas,
essencialmente, com a dignidade da pessoa humana?! Valores estes, aliás, erigidos à
categoria de “universais” desde 178929, com a Declaração dos Direitos do Homem.
A Carta Constitucional de 1988 não só propiciou vários direitos, como também
impôs sua garantia. Dessa forma, os limites à atividade estatal passam da vontade daqueles
que detinham o poder30 para os direitos e garantias fundamentais, sendo alguns deles
elencados explicitamente na Constituição Federal de 1988 e outros existentes
implicitamente no referido Diploma.
A título de exemplo, desmembrando o artigo 5o do mencionado Diploma Legal,
tendo como base os ensinamentos de Silva, pode-se citar: o direito à integridade física e
moral, garantido através do disposto no inciso III (e tão desrespeitado em épocas de
regimes de exceção, que tinha como modo de obter informações a prática de torturas); o
direito à privacidade, assegurado pelo direito à indenização por dano material ou moral
decorrente de sua violação; o direito ao recesso do lar, expresso no início do inciso XI (“a
casa é asilo inviolável do indivíduo”), estando garantido consoante disposto no restante do
mesmo dispositivo; direito de liberdade, à incolumidade física e moral, de defesa, liberdade
política e de opinião, protegidos pelas garantias constantes nos incisos XXXVII a LXVII,
28 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 516.29 A título de observação: SARLET traz como marco aos estudiosos dos direitos fundamentais enquanto
direitos positivados a Magna Charta Libertatum, pacto firmado em 1215 pelo Rei João Sem-Terra e bispos e barões ingleses, expõe o Autor: “Este documento, inobstante tenha apenas servido para garantir aos nobres ingleses alguns privilégios feudais, alijando, em princípio, a população do acesso aos “direitos” consagrados no pacto, serviu como ponto de referência para alguns direitos e liberdades civis clássicos, tais como o hábeas corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade”. Op. cit. 2003, p.45. Ainda, ao tratar sobre a Declaração Francesa de 1789 e a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 1776 – sobre as divergências acerca da “paternidade” dos direitos fundamentais – leciona “A contribuição francesa, no entanto, foi decisiva para o processo de constitucionalização e reconhecimento dos direitos e liberdades fundamentais nas constituições do século XIX. Cabe citar aqui a lição de Martin Kriele, que, de forma sintética e marcante, traduz a relevância de ambas as declarações para a consagração dos direitos fundamentais, afirmando que, enquanto os americanos tinham apenas direitos fundamentais, a França legou ao mundo os direitos humanos70.” KRIELE apud SARLET, op. cit., 2003, p.49
30 A nosso ver, a minoria, que editava leis para garantir sua estabilidade no poder, cuja legislação era desprovida de conteúdo valorativo, o que possibilitou várias condutas atentatórias à pessoa humana.
os quais, de igual feita eram extremamente desrespeitados durante o regime militar no
Brasil, ou melhor, desrespeitados caso o indivíduo fosse contrário aos pensamentos do
governo vigente. 31
Ainda sobre as garantias positivadas pela Carta Constitucional de 1988, Miranda ao
analisá-la ressalta outros importantes direitos como a previsão de prazos, nos termos da lei,
para a prestação de informações pelos entes públicos, a qualificação do racismo e da tortura
como crimes inafiançáveis, o advento dos remédios constitucionais do mandado de
injunção e do hábeas data, bem como o fato das normas definidoras de direitos e garantias
terem aplicabilidade imediata, cônsono §1o, do artigo 5o, da Constituição Federal.32
A partir disso e do contexto exposto alhures, é compreensível porque o
Constituinte de 1988 entendeu por bem positivar vários princípios, garantias e direitos de
toda a pessoa.
Expostos esses vértices, o que se vivencia atualmente é um quadro social diverso
do que ocorria até a queda do regime militar: hoje todo o direito tido como fundamental,
categorizado como direito humano, deve ser respeitado. Não se trata aqui de uma questão
de ideologia, política, visão de mundo, valor moral e ético de cada atuante do direito, seja
ele juiz, promotor, advogado, defensor público, enfim, de todo o profissional, direta ou
indiretamente ligado com este ramo da ciência jurídica e social.
Os direitos humanos devem ser respeitados não só por trazerem ínsitos em si uma
carga valorativa de suma importância como também pelo próprio modelo de Estado
brasileiro, onde uma afronta a direito fundamental, ou mesmo a um direito humano
encontra no próprio texto constitucional medidas capazes de coibir tal ato, como por
exemplo, o mandado de segurança, a ação civil pública, o hábeas corpus, ação direta de
31 SILVA, op. cit. p. 417/419. 32 MIRANDA, op. cit, 1997, p. 231.
inconstitucionalidade e de constitucionalidade, além da possibilidade de argüição de
descumprimento de preceito fundamental, apenas para citar alguns.
Faz-se aqui uma pergunta: é possível imaginar uma vida em sociedade sem o
respeito ao princípio básico da dignidade da pessoa humana? Obviamente, tal convívio
seria inviável, dada a amplitude e conteúdo ético-valorativo da dignidade da pessoa
humana, aliado, também, aos modelos anteriores de Estado, como os citados acima
(ditatorial e totalitário) onde tal desrespeito ocorria, sendo que hoje seria inimaginável um
modelo de Estado que não contemplasse tal valor.
Veja-se um exemplo: uma pessoa que não tem sua liberdade de locomoção, não
terá uma vida normal. Uma outra que vive sob o medo e as ordens dos “traficantes que
controlam o morro ‘X’”, com certeza não tem sua dignidade enquanto pessoa humana
respeitada. Outra, que ao final de um dia chega em casa e depara-se com a mesma
totalmente furtada, sabendo que levará anos para conseguir tudo aquilo que acumulou ao
longo dos anos de trabalho também não tem sua dignidade respeitada. E o que dizer, então,
das famílias que vivem na incerteza quanto à vida de um parente de quem, seqüestrado há
tanto tempo, não se têm notícias, bem como daqueles que sofrem todo o tipo de abuso
infantil33. Todos esses são casos, digamos que noticiáveis, os quais, mudando uma coisa ou 33 Nilson Naves, em conferência de abertura no “I Seminário Nacional sobre o Tráfico e Exploração Sexual
de Crianças e Adolescentes”, publicada na Revista CEJ – Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no23, ano VII, ao abordar o tema expõe: “Bem perto de nós, atos desumanos chocaram a população do Distrito Federal. Padrasto foi o autor de investida contra adolescente de doze anos; felizmente, não chegou a ser consumado o atentado. O mesmo desfecho não teve o caso de menina de apenas sete anos que foi estuprada e estrangulada por homem de 26 anos. A dureza de coração e os requintes de violência frustraram naquela adolescente a lembrança de uma vida feliz; na menina puseram fim à vida e ao sonho de crescer. É provável que se esgotem os adjetivos que denotam a repulsa a tais condutas, mas a perversidade parece ser inesgotável: pesquisa realizada pelo Laboratório de Estudos da Criança da Universidade de São Paulo revela que cem crianças morrem por dia no Brasil vítimas de maus tratos – negligência, violência física, abuso social e psicológico. Expõe, ao fim, o posicionamento pessoal acerca “do que fazer”: Os crimes de natureza sexual aqui cometidos contra crianças e adolescentes estão a reclamar políticas públicas e a atuação imprescindível da sociedade civil organizada – o dever é antes de tudo da sociedade e do Estado – para medidas urgentes a fim de prevenir, coibir e, quando for necessário, punir severamente a exploração sexual de menores de dezoito anos. (...) Que a lei, a nossa determinação e desejo de viver numa sociedade saudável ajudem-nos a restituir a nossas crianças e adolescentes, em seu tempo, o sonho da infância e a beleza da adolescência”. NAVES, Nilson. Tráfico e exploração sexual de crianças e adolescentes. Revista CEJ. Ano VII – Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários. Brasília: Dezembro/2003. p. 06/07.
outra, acontecem corriqueiramente, ficando seus expectadores inertes diante do mundo
visto pela tela do aparelho televisor... Mas, e onde está o direito à dignidade da pessoa
humana?
Cabe, por oportuno, trazer à colação o ensinamento de Bonfim sobre a
moderna situação do direito penal no Brasil:
E o crime hoje não é somente aquele ocasional, mas muitos detêm produção seriada. (...) A banalização da vida continua tabelando sempre por baixo o seu preço (preço da vida – vide as tabelas dos pistoleiros comuns), e hoje em São Paulo, vale pouco ou menos que os crimes de pistolagens corriqueiros do norte/nordeste brasileiro. Com a banalização da vida (atrás do que seguiu-se a banalização de todos os valores subseqüentes: liberdade, honra, etc.) o crime hoje prototípico não é mais ocasional, único, ou se é, este menos assusta ou atemoriza de per si (somente a vítima visada, una), mas a criminalidade da reincidência ou da multiplicidade das vítimas, ou os crimes de vítimas abstratas (“colarinhos brancos”) também matam, e matam muito mais (o estelionatário progrediu, agora enganbela, engana aos milhões). O crime a golpe de “peixeira”, subsiste, merece efetiva reprimenda, é dor, sangue, choro e morte em lares brasileiros, mas ainda é ingênuo frente a macro criminalidade. Esta (a criminalidade organizada, o “colarinho branco” etc.), é infarto, derrame, também choro e morte “à prestação” (as vítimas vão morrendo aos poucos!). O primeiro simboliza-se nas tocais do nordeste (à garrucha), ou nos bares regados à aguardente - em qualquer canto ou esquina do Brasil –, mas são sempre setorizados, colhendo vítimas específicas, desafortunados ofendidos. O segundo ascende sobre todo o panorama nacional, deitando danos de norte a sul e perpetuando efeitos sobre o tempo, desagregando lares, destruindo famílias, retirando a felicidade de um povo, a alegria de uma gente. 34(sic)
Entretanto, repise-se que diversamente da opressão vivida até a promulgação da
Constituição Brasileira de 1988, atualmente temos vigente no Brasil um sistema de direitos
e garantias fundamentais, que deve ser observado, sob pena, principalmente, de ocorrer em
inconstitucionalidade.
Desse modo, tantas garantias advieram com a Constituinte de 1988, entretanto, o
que vivenciamos atualmente é uma certa banalização da vida, na qual o princípio da
dignidade humana, respeitado por todos aqueles que trabalham com o direito, é tripudiado
34 BONFIM, Edílson Mougenot. Direito Penal da Sociedade. São Paulo: Editora Oliveira Mendes, 1998, p.122/123.
pelos autores de delitos (diga-se, não só delitos contra a pessoa diretamente – como
homicídio, latrocínio, furto – como também aqueles denominados de “crimes do colarinho
branco”, como a lavagem de dinheiro, a sonegação fiscal, etc, que não deixam de ser contra
a pessoa, porém, de forma indireta).
Nesse contexto, é certo que não se pode generalizar quando o tema é direito penal,
contudo, esse ramo do direito merece atenção acurada, principalmente no que diz à
observância dos direitos e garantias fundamentais daquele que está em juízo, provável autor
de um delito. E, além disso, é preciso contextualizar esse ramo do direito no sistema
constitucional pós 1988, a fim de que se perceba que a própria Constituição Federal dispõe
de mecanismos para a correta utilização do direito, tendo-se em mente princípios como o da
proporcionalidade, que será estudado em capítulo próprio.
O que se pretende demonstrar no decorrer do trabalho é que o direito e o processo
penal, em sua totalidade, estão protegidos na Constituição de 1988, sendo que nesse iter, o
processo do magistrado se mostra translúcido, uma vez que ao mesmo tempo em que deve
se manter “imparcial” deve também zelar para que os direitos fundamentais enunciados na
Constituição Federal de 1988 sejam respeitados, observados, a fim de que sejam efetivos na
prática, tanto sob a ótica material quanto à ótica formal dos direitos fundamentais, ambas a
serem tratadas em momento próprio.
Ainda sobre o processo penal é relevante frisar que ele se constitui em garantia,
sob dois prismas: para a pessoa processada, a garantia de que não será presa, nem lhe será
imposto nenhum tipo de pena sem o devido processo pena, e para cada pessoa humana
enquanto integrante de uma sociedade, de que os possíveis autores de delitos não quedaram
impunes. Ademais, é preciso um efetivo processo para alcançar uma sentença
condenatória35.
35 Nesse sentido, remete-se a LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 2 ed. rev, ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. p. 09 et seq.
A questão acerca da teoria do garantismo penal, sistematizada por Ferrajoli, é uma
continuação da pergunta feita inicialmente, quando da exemplificação de casos nos quais as
pessoas não têm o direito mais básico do ser humano respeitado, qual seja, a sua dignidade
e, em conseqüência da aplicação da teoria garantista apenas na perspectiva negativa, ou
seja, fulcrada somente no princípio da proporcionalidade enquanto proibição de excesso ao
Estado perante o indivíduo.
Nesse diapasão, o que se pretende defender no presente trabalho, e que vai desde
logo anunciado, é a aplicação do direito com base no princípio da proporcionalidade como
proibição de excesso, dado o exposto acima, na incursão histórica do país desde o golpe de
1964 até meados de 1987, e também como proibição de insuficiência, tendo-se sempre
como norte os ditames expressos na Constituição Federal de 1988.
Outrossim, não se olvide que os direitos fundamentais possuem um duplo papel
no atual Estado Democrático de Direito consistente na imposição de limites aos poderes do
estado, em especial como limites ao Poder Legislativo, bem como nos chamados
“imperativos de tutela” ou deveres de tutela devidos pelo Estado para com os seus
cidadãos. Sobre essa dupla função dos direitos fundamentais, assevera Merlin Clève que os
direitos fundamentais constituem-se em valores a serem necessariamente observados pelo
Estado nas suas três vertentes de poder e, de outro lado, se constituem em imperativos de
tutela para o estado perante seus cidadãos.36
Dessa forma, não se pode esquecer que a segurança37, assim como a igualdade e a
liberdade, são valores tutelados desde 1789, erigidos à categoria de direitos do homem.
Assim, passados quase três séculos do referido marco, o que se vê atualmente é um número
36 MERLIN CLÈVE, Clèmerson. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 14 nº. 54, janeiro-março, 2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 28/39.
37 Nesse sentido, remete-se a STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o iderário liberal-individualista-clássico. In: Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, no 53 ed. Porto Alegre: Metrópole, 2004. p. 223/251.
cada vez maior de insegurança entre grande parte da população brasileira. E, nesse
entremeio, o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por sofrer uma dose de
mitigação, pois, em detrimento de muitos, se conserva a liberdade de poucos.
Ressalte-se que, diferentemente da época da ditadura, os autores de delitos de hoje
não são pessoas que lutam por uma sociedade mais justa, por direitos sociais, igualitários,
justos. São, ao contrário, frutos do tráfico de drogas, da marginalidade surgida neste meio;
além de políticos corruptos que desviam verbas públicas, sem qualquer escrúpulo;
empresários detentores dos chamados “colarinhos brancos” que, ao contrário do que muitos
pensam, causam, ainda que indiretamente, uma grande violência a toda a sociedade.38
Pelo próprio objeto desse estudo, não é cabível entrar no mérito desta ou daquela
espécie de delito. O que é necessário é reforçar que se vive atualmente em um Estado
Democrático de Direito, que em especial no Brasil, tem pela primeira vez direitos humanos
constitucionalmente protegidos39. Nesse sentir, vale trazer à baila a lição de Prittwitz,
exposta em palestra proferida pelo autor no 9o. Seminário Internacional do IBCCRIM,
sobre a realidade do Estado de Direito enquanto modelo de salvaguarda dos direitos
fundamentais:
Olhando-se os últimos dois séculos, constatamos uma história quase incrível de sucesso do Estado de Direito. Isto vale mesmo considerando-se muitos retrocessos (que justamente sendo alemão sempre se tem de ter presente), vale independentemente do fato das diferentes velocidades de desenvolvimento do Estado de Direito nas diversas partes do mundo e dos países deste mundo (o que
38 Cabe esclarecer que o objetivo do presente estudo não é uma abordagem em torno das “causas da criminalidade” no Estado Brasileiro, mesmo por que até hoje não há um consenso acerca das mesmas. Sabe-se, por outro lado, que a sociedade de consumo aliada a baixa renda da maior parte da população do País têm um contributo expressivo para os índices de criminalidade. Entrementes, não se pode esquecer que várias formas de criminalidade (sonegação de impostos, fraudes à licitações, crimes contra os consumidores) não são, ao menos em sua maioria, causadas pelos fatores antes delineados, o que reforça a afirmativa inicial sobre o fato de inexistir uma “resposta” ao porquê da criminalidade.
39 Relativamente à terminologia adota-se a prática simplificada deduzida por Morais para a diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais, sendo que esses passam a tal qualidade no momento em que são positivados nos textos legais de cada Estado. MORAIS, op. cit., p. 62.
talvez um alemão precise relembrar quando está numa conferência no Brasil), e vale principalmente para os pequenos tropeços atuais do Estado de Direito: uma administração dos EUA que defende cada vez mais abertamente a convicção de proteger direito e liberdade por meio de violações do direito e da liberdade. Uma economia mundialmente fraca que aumenta a pressão dos problemas. E finalmente vale ainda mais para um mundo da mídia que ainda não percebeu que a criminalidade não só vende bem, mas que informar sobre atos criminosos clama, até mesmo interesse próprio, por uma responsabilidade especial.40
Assim, procurar-se-á analisar a dignidade da pessoa humana sob o aspecto não só
do autor de um delito, como também de cada indivíduo integrante da sociedade, objeto da
prática dos delitos, tendo-se como norte o princípio da proporcionalidade em seu duplo
aspecto: como proibição de excesso e como proibição de insuficiência. Não se olvidando
jamais que “O direito equaciona a vida social, atribuindo aos seres humanos, que a
constituem, uma reciprocidade de poderes, ou faculdades, e de deveres, ou obrigações.”41
Pois, o direito penal, tutela bens jurídicos que foram erigidos a tal categoria – de bens que
mereçam a tutela estatal, advinda da própria essência desse ramo do direito – devido aos
valores que representam para a sociedade, bem como pela ligação que possuem (direta ou
indiretamente) com os diretos fundamentais.
1.2. Os fundamentos do garantismo penal em Ferrajoli e a teoria jurídica da validade
e da efetividade das normas
Feitas as necessárias digressões acerca do modelo vigente de Estado no Brasil e o
modelo que vigorava anteriormente (regime militar ditatorial), bem como após algumas
40 PRITTWITZ, Cornelius. O Direito Penal entre Direito Penal do Risco e Direito Penal do Inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 12, no47. São Paulo: Revista dos Tribunais, março – abril, 2004, p. 45.41 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. V. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 49.
incursões em outros modelos de Estado (de igual forma opressores, como foi o exemplo
citado acima do Estado totalitário) faz-se possível a abordagem de alguns trechos da obra
de Ferrajoli “Direito e Razão: teoria do garantismo penal”, na qual o fundamento basilar
reside na garantia dos direitos humanos de cada cidadão frente aos poderes do Estado.
Com base nessa ‘motivação’, o autor italiano deduzirá os demais elementos componentes
da teoria por ele estratificada com o fito de viabilizar a concretização do fundamento de
todo o garantismo jurídico.
Ferrajoli, ao abordar a epistemologia garantista, expõe que a unidade do sistema
depende do fato de que os diversos princípios garantistas se configuram, antes de tudo,
como um esquema epistemológico de identificação do desvio penal, direcionado a
assegurar o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo, logo, de limitação do
poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade (do Poder Estatal, detentor do
“direito de punir”). Isso por que a teoria garantista será sedimentada em cima de tais
elementos epistemológicos, sendo: a) um relativo à definição legislativa, b) outro, à
comparação jurisdicional do desvio punível. “E, correspondem a conjuntos de garantias, as
penais e as processuais, do sistema que fundamentam.”42
Tendo em vista o tema proposto para esse item, se mostra interessante tecer
algumas considerações acerca dos ditames – axiomas43 – sobre os quais o Autor estrutura
42 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 29/30.
43 Para elucidar, citam-se os pré-conceitos estabelecidos por Ferrajoli, a alguns elementos do direito penal, diante do sistema garantista “axiomatizado” exposto pelo autor: “por “pena” se deve entender qualquer medida aflitiva imposta juridicamente por meio do processo penal; por “delito”, qualquer fenômeno legalmente previsto como pressuposto de uma pena; por “lei”, qualquer norma emanada do legislador; por “necessidade”, a função de tutela de bens fundamentais que justifica as proibições e as penas; por “ofensa”, a lesão de um ou de vários de tais bens; por “ação”, um comportamento humano exterior, material ou empiricamente manifestável, tanto comissivo quanto omissivo; por “culpabilidade”, o nexo de imputação de um delito a seu autor, consistente na consciência e vontade deste para com aquele; por “juízo”, o procedimento mediante o qual se verifica ou refuta a hipótese da comissão de um delito; por “acusação”, a formulação de tal hipótese por parte de um órgão separado dos julgadores; por “prova”, a verificação do fato tomado como hipótese pela acusação e qualificado como delito pela lei; por “defesa”, o exercício do direito de contraditar e refutar a acusação.” Idem ibidem,p.88. Diz-se, no início, “pré-conceitos”, em virtude de que os mesmos são analisados de forma pormenorizada quando o autor os aborda no parágrafo 7.
toda a obra supra mencionada. São eles, seguindo o formato escolástico trazido por
Ferrajoli, transcritos em latim, a) Nulla poena sine crimine; b) Nullum crimen sine lege;
c)Nulla lex (poenalis) sine necessitate; d) Nulla necessitas sine injuria; e) Nulla injuria
sine actione; f) NullaNulla actio sine culpa; g) Nulla culpa sine judicio; h) Nullum
judicium sine acusatione; i) Nulla accusatio sine probatione e j) Nulla probatio sine
defensione44.
Para cada mandamento, o Autor atribui a denominação de um princípio, a saber:
(...) 1)princípio da retributividade ou da conseqüêncialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato ou no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre o juiz e acusação;9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade.Estes dez princípios, ordenados e aqui conectados sistematicamente, definem – com certa força de expressão lingüística – o modelo garantista de direito ou de responsabilidade penal, isto é, as regras do jogo fundamental do direito penal. 45
Evidentemente, todos os axiomas ora traduzidos em princípios são importantes ao direito e processo penal, ressaltando-se, alguns, como o da legalidade, do contraditório e ampla defesa, sendo que a partir de sua concatenação se procura obter a efetiva garantia dos direitos de cada pessoa humana quando demandada em juízo.
44 Idem ibidem p. 75/7645 Idem ibidem p. 75
Cabe referir, que a teoria a ser estudada nesse tópico não é nova, tendo seu
nascimento na época do Iluminismo, onde as preocupações primordiais eram ideais como a
“liberdade e a igualdade”. Demonstração disso é a sustentação da dissociação total entre
Estado e Igreja46, a fim de extirpar do direito penal a noção de o delito praticado
corresponderia a um “pecado” (algo contrário à moral), ocasionando, por isso, uma sanção
“divina”, bem como da reformulação do conceito de “direito penal do autor” para “direito
penal do fato”, a fim de valorar a conduta praticada e não o seu autor, assuntos que serão
abordados com mais vagar no decorrer desse estudo. Após deduzir os elementos
epistemológicos47 nos quais se fundam a doutrina estratificada, dentre as acepções que
confere ao termo “garantismo”, Ferrajoli trabalha com o garantismo enquanto teoria
jurídica da validade e da efetividade48, a qual consiste em:
(...) uma teoria jurídica da “validade” e da “efetividade” como categorias distintas não só entre si, mas também pela “existência” ou “vigor” das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantém separados o “ser” e o “dever ser” no direito; e, aliás, põe como questão teórica central, a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentemente garantistas) e práticas operacionais (tendentemente antigarantistas), interpretando-a com a antinomia – dentro de
46 Tal dissociação vem consubstanciada como “princípio da secularização”, do qual derivará a idéia de dissociação entre a Igreja e o Estado, e, por conseqüência o próprio conceito do direito penal, a fim de que esse deixe de ser um “direito penal do autor” para ser um “direito penal do fato”, e trazer consigo uma série de conseqüências, dentre as quais a problemática questão da reincidência como inconstitucional, tema que será abordado nesse trabalho, no terceiro capítulo. Traz-se tais menções a baila a fim de elucidar alguns conceitos que parecem vagos mas que, na prática, ocasionarão uma mudança na forma de pensar e aplicar o direito penal.
47 Segundo o doutrinador, dentre os elementos do sistema epistemológico de entendimento do desvio punível encontram-se: o convencionalismo penal e a legalidade estrita, de um lado, e de outro, o cognitivismo processual e a estrita jurisdicionariedade. Para um estudo mais acurado remete-se à obra citada de Ferrajoli, p. 30 et seq.
48 O modelo normativo de direito é uma das conotações que Ferrajoli concebe a acepção “garantismo”. Segundo o autor italiano, o modelo normativo de direito consiste em: “Segundo um primeiro significado,“garantismo” designa um modelo normativo de direito: precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de “estrita legalidade” SG, próprio do Estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos do cidadão. É, conseqüentemente, “garantista” todo sistema penal que se conforma normativamente com tal modelo e que o satisfaz efetivamente.” Op. cit. p. 684.
certos limites fisiológica e fora destes patológica – que subsiste entre validade ( e não efetividade) dos primeiros e efetividade (invalidade) das segundas.49
Falar em garantismo como uma teoria de validade e efetividade, implica dizer que
o direito a ser aplicável deve não só ser normativo, como também realista. Isso porque há
direito válido e direito efetivo,ambos vigentes. De nada adianta ser a norma penal válida e
vigente, se não for efetiva. Da mesma feita, descaberia a aplicação de uma norma penal
vigente (formalmente existente), mas que não é válida, como ocorre, por exemplo, com
algumas normas que vigem, mas que à luz da Constituição Federal Brasileira de 1988 não
são válidas50.
Leciona Ferrajoli que a teoria garantista do direito penal é ao mesmo tempo
normativa e realista visto que:
(...) referida ao funcionamento efetivo do ordenamento, o qual se exprime nos seus níveis mais baixos, autoriza a revelar-lhe os lineamentos de validade e sobretudo de invalidade; referida aos modelos normativos, os quais se exprimem nos seus níveis mais altos, é idônea a revelar-lhes o grau de efetividade e, sobretudo, de não efetividade.51
E, sob ambas as óticas, o garantismo opera como doutrina jurídica de legitimação,
bem como de perda da legitimação interna, pois requer dos juízes e juristas uma constante
tensão crítica acerca das leis vigentes. Tal visão crítica é interna, científica e jurídica
49 idem ibidem, p. 68450 Cita-se como exemplo a norma do artigo 594 do Código de Processo Penal Brasileiro, segundo o qual o
réu não poderá apelar sem antes se recolher a prisão – norma evidentemente contrária ao princípio constitucional da presunção de inocência, inserto no artigo 5o, inciso LVII, que é vigente, mas, diante do Ordenamento Constitucional pode ser considerada sem validade e, por conseqüência, despida de eficácia.
51 idem ibidem, p. 684
quando assume como universo da retórica jurídica o inteiro teor do direito positivo vigente,
não abstendo as antinomias, evidenciando-as e, dessa feita, retirando a legitimidade da ótica
normativa do direito válido, “os contornos antiliberais e os momentos de arbítrio do direito
efetivo”52.
Desse modo, pretende a perspectiva garantista a dúvida permanente acerca da
validade das leis e de sua aplicação, assim como a consciência acerca do “caráter em larga
medida ideal de suas mesmas fontes de legitimação jurídica.”53
1.3. A ligação entre os assuntos trabalhados até o momento
Para finalizar, associando o exposto no primeiro tópico, ou seja, o direito penal no
Estado Democrático de Direito com o constante desse penúltimo item, percebe-se uma
ligação intrínseca entre ambos os assuntos: na medida em que o Estado deixa de ser
opressor dos cidadãos, deixa de ser totalitário ou de ser ditatorial, passando a ter não só
limites formais, mas também limites valorativos/materiais (consistentes nos direitos
humanos, bem como nos princípios fundamentais e nos próprios direitos fundamentais), e
tendo a conseqüente função de garanti-los na prática, a teoria do garantismo penal encontra
em solo brasileiro intensa receptividade, seja devido ao período opressor do qual o país saiu
em meados de 1987, seja pela idéia de modelo de validade e efetividade das normas.
52 idem ibidem, p. 68553 idem ibidem, p. 685
Promulgada a Constituição Brasileira em 1988, continuaram em vigor diversos
diplomas anteriores a ela, e alguns deles despidos de “validade, de efetividade” uma vez
que contrários aos preceitos fundamentais contidos na referida Carta Constitucional, na
esteira do lecionado por Ferrajoli na obra “Direito e Razão: teoria do garantismo penal”.
Ademais, a acepção de garantismo como teoria de “validade e efetividade” das
normas tem especial relevância nesse trabalho, e por isso foi escolhida entre as outras duas
acepções denominadas pelo autor italiano, uma vez que, para aqueles que pugnam pela
inconstitucionalidade da agravante da reincidência, tal será possível mediante a utilização
desta acepção para sustentar dito posicionamento.
Inobstante tal fato, é necessário quedar claro que a Constituição Federal de 1988
exerce uma função “norteadora” para o novo poder legislativo no sentido de não permitir a
elaboração de normas que afrontem os valores nela contidos, bem como uma função
“iluminadora” a ser perquirida na aplicação das normas infraconstitucionais, e em especial,
na aplicação daquelas normas anteriores a ela, vigentes, mas que, repita-se, podem estar
defasadas no que diz ao quesito “validade” da norma. Por outro lado, deve-se atentar para
os direitos fundamentais, na medida em que eles desempenham não só uma função
limitadora ao poder estatal, como também impõem ao poder estatal um dever de tutela
perante os cidadãos.
Essa segunda tarefa será levada a cabo pelos aplicadores do direito, cientes do
modelo de Estado vigente no país, sempre se tendo em mente princípios constitucionais
implícitos como o da razoabilidade e, em especial, o da proporcionalidade, em sua dupla
ótica: como proibição de excesso e como proibição de insuficiência – assunto esse que será
abordado no capítulo a seguir.
Assim, dado o duplo papel dos direitos fundamentais no modelo de Estado vigente,
resta estudar agora se o garantismo penal “negativo” (de feição liberal-iluminista) é um
modo satisfatório de interpretação do ordenamento jurídico ou se não seria o caso de “rever
os conceitos” a fim de trazer a lume a discussão de um garantismo “positivo” consistente
no princípio da proporcionalidade em sua dupla via.
Portanto, a seguir será abordado com mais vagar o princípio da proporcionalidade
tal como tratado pela doutrina brasileira, e também nessa “nova” concepção que lhe atribui
um duplo viés, a fim de demonstrar que ele possui um valor muito maior do que aquele
imaginado por algumas pessoas de que consistiria apenas em decidir – no caso do judiciário
– de acordo com o “bom senso” de seu aplicador, tendo a proporcionalidade como
proibição de excesso e proibição de insuficiência (duplo viés do sobredito princípio) nortes
a serem seguidos na sua aplicabilidade, a fim de evitar possíveis arbitrariedades, bem como
para demonstrar que na vigente realidade constitucional brasileira é plenamente possível a
aplicação da proporcionalidade em seu duplo aspecto também no momento de aplicar a
teoria do garantismo penal quando de sua incidência aos casos concretos.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE
Vistos os papéis dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito –
funcionando não só como limites à atuação estatal (no âmbito dos três Poderes do Estado)
como também na forma de imperativos de tutela, a serem desempenhados pelo Estado –
cabe referir e demonstrar que o princípio da proporcionalidade, enquanto instrumento da
moderna hermenêutica constitucional tem uma importante função na concretização dos
escopos daqueles direitos.
Importa frisar, outrossim, que não há, na doutrina brasileira, uma uniformidade
acerca do “princípio da proporcionalidade”, sendo que por alguns ele é abordado como
sinônimo de razoabilidade, enquanto para outros há uma nítida diferença54 entre ambos.
Na senda do princípio da proporcionalidade enquanto princípio autônomo (diverso,
portanto, do princípio da razoabilidade) abordar-se-á seu âmbito a partir de seu duplo viés:
como proibição de excesso (aqui consubstanciando um dos papéis dos direitos
fundamentais, qual seja, limite à atuação estatal) e também como proibição de insuficiência
(esse concatenando os direitos fundamentais como imperativos de tutela ou deveres de
proteção impostos ao Estado para com seus cidadãos).
Para fins de esclarecimentos, cabe inicialmente, ressaltar a dupla dimensão dos
direitos fundamentais: dimensão objetiva e dimensão subjetiva. É preciso quedar claro,
contudo, que não se pretende esgotar o assunto em torno das dimensões dos direitos
fundamentais, nem mesmo aprofundá-lo, justificando-se a abordagem feita para demonstrar
a intrínseca ligação entre o princípio da proporcionalidade em sua dupla ótica e os direitos
fundamentais em ambas as dimensões, a fim de clarificar o cabimento da aplicação do
princípio em comento quando for necessária uma intervenção em um direito fundamental.55
54 Esclarece-se desde já, que filiamo-nos a essa segunda corrente, para a qual proporcionalidade não é o mesmo que razoabilidade, em que pese o posicionamento de importantes juristas em sentido contrário bem como o uso indistinto dos dois termos pelo Supremo Tribunal Federal. Ainda, é preciso ressaltar que tal diferenciação não é meramente cosmética e sim de fundo, de conteúdo material.
55 Para um tratamento mais aprofundado vide: SARLET, op. cit. 2003, p. 146 et seq.; CALIL DE FREITAS, Luiz Fernando. Direitos Fundamentais: limites e restrições. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 33 et seq. GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Curso de Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ed; Coimbra: Almedina, 2003. p. 1159 et seq.
Nesse mister, ensina Sarlet que os direitos fundamentais não têm como função
apenas serem direitos subjetivos de defesa da pessoa contra atos do poder público, mas
também “constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição,
com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos
legislativos, judiciários e executivos.” 56
De outra banda, trabalhando sobre tais dimensões, Merlin Cléve aborda os direitos
fundamentais enquanto valores a serem necessariamente observados pelo Estado, nas suas
três vertentes de Poder, e também enquanto imperativos de tutela para o Estado perante os
seus cidadãos.57
Escrevendo sobre os direitos fundamentais e o princípio da proporcionalidade em
sua dupla ótica, a qual será abordada oportunamente, é importante ressaltar a lição de
Feldens, segundo o qual:
Trata-se, em realidade, de encarar os direitos fundamentais a partir de uma perspectiva constitucionalmente orientada de dupla face. Ao tempo em que a Constituição contém os princípios fundamentais de defesa do indivíduo frente ao Estado, de forma a coibir o arbítrio, por outro lado, preocupada com a defesa ativa do indivíduo e da sociedade em geral, e tendo em conta que os direitos individuais – como, de resto, os de natureza social –, para que se façam efetivados, não bastem com a mera inação estatal, senão que devem ser protegidos também em face de ataques de terceiros (particulares), a Constituição pressupõe – e impõe – uma ação estatal na defesa desses valores fundamentais.58
Dessa forma, explica-se a necessidade da explanação ora referida, ainda que breve,
a fim de que se possa perceber a ligação entre o princípio da proporcionalidade como
56 Op. cit. 2003, p. 147.57 Op. cit. p. 29 et. seq.58 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas
penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 152/153 – grifos no original.
proibição de excesso e como proibição de insuficiência e os direitos fundamentais, na
medida em que decorrente da dimensão objetiva desses, os quais impõem deveres de
proteção e uma dupla vinculação aos poderes públicos, as quais no dizer de Calil de Freitas
consistem em:
(...) no sentido negativo, a vinculação se dá em termos de vedar toda e qualquer atuação dos poderes constituídos que importe afronta aos direitos fundamentais, sob pena de inconstitucionalidade por ação; no sentido positivo, a vinculação obriga os poderes constituídos a realizarem tarefas de concretização e efetivação dos direitos fundamentais, sob pena de inconstitucionalidade por omissão.59
Ainda que a abordagem ora feita seja prematura, percebe-se, por exemplo, na
citação de Calil de Freitas as duas facetas do princípio da proporcionalidade, a proibição de
excesso, no sentido negativo que os deveres de proteção (internos à dimensão objetiva dos
direitos fundamentais) impõem ao Estado e, a proibição de insuficiência, no sentido
positivo que os deveres de proteção impõe ao poderes públicos.
Por fim, cabe trazer a tona o posicionamento de Alexy, que trabalha com a
proporcionalidade, entre sua teoria distintiva sobre princípios e regras, não como princípio
e sim como “regra”60, mas no qual se verifica, de início, a ligação acima trabalhada sobre a
proporcionalidade e os direitos fundamentais, a saber:
Ya se ha insinuado entre la teoría de los principios y la máxima de la proporcionalidad existe una conexión. Esta conexión no puede ser más estrecha: el carácter de principio implica la máxima de la proporcionalidad, y ésta implica aquélla. Que el carácter de principio implica la máxima de la proporcionalidad
59 Op. cit. p. 45.60 Segundo informação trazida por Afonso da Silva, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. In: Revista
dos Tribunais. Ano 91, V. 798. Abril de 2002. São Paulo: RT, 2002. p. 26
significa que la máxima de la proporcionalidad, con sus tres máximas parciales de la adecuación (...) se infiere lógicamente del carácter de principio, es decir, es deducible de él. 61
Nesse sentido, inobstante o posicionamento respeitável supra, bem como outras
divergências existentes na doutrina, como por exemplo, em Ávila que classifica a
proporcionalidade como postulado, esclarece-se que a proporcionalidade será aqui
trabalhada como princípio, com escol no ensinamento de Afonso da Silva que expõe:
“Quando se fala em princípio da proporcionalidade, o termo “princípio” pretende conferir a
importância devida ao conceito, isto é, à exigência de proporcionalidade.(...)”,
prosseguindo, o autor informa que dada a plurivocidade do termo “princípio”, não haveria
como esperar que ele fosse utilizado, somente, como contraposto à regra jurídica.62
Expostos esses vértices sobre o princípio da proporcionalidade lato senso e os direitos
fundamentais, bem como o porque da adoção do termo “princípio” para abordar a
proporcionalidade, faz-se possível o desenvolvimento do presente capítulo.
2.1 Noções preliminares sobre a trajetória histórica do princípio
O princípio da proporcionalidade surge inicialmente na seara do Direito
Administrativo, funcionando como um limite à atuação do poder de polícia do estado,
lastrado no ideal de garantir a liberdade individual em face dos interesses da administração,
justamente em virtude da realidade do poder (absoluto) do monarca frente aos seus súditos,
61 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 111/112.
62 Op. cit. p. 26
em meados dos séculos XVII e XVIII, conforme lição de Barros63. Entretanto, expõe a
mencionada autora que a idéia inicial baseava-se no surgimento da doutrina acerca do
direito natural que em sua essência no que tange às “liberdades” visava aquelas (liberdade
para contratar e praticar atos de comércio na vida privada, com a mínima intervenção
possível pelo Estado) atinentes à classe burguesa, em franca ascensão.
Nesse iter, leciona Gomes Canotilho que o princípio em tela, no seu nascedouro
dizia respeito à problemática da limitação do poder executivo, “sendo considerado como
medida para as restrições administrativas da liberdade individual”.64 Denota, ainda, o autor
que essa noção de medida ao poder executivo seria posteriormente transposta ao direito
administrativo como “princípio geral do direito de polícia.”65
Segundo Cavalcanti, o princípio da proporcionalidade migra do direito
administrativo para o direito penal por meio de Beccaria66, o qual em 1764 publica a obra
“Dos Delitos e das Penas” já mencionando uma idéia de proporção entre um delito
cometido e a pena a ele imposta:
Dada a necessidade da união entre os homens, e dados os ajustes que, necessariamente, resultam da oposição mesma dos interesses privados, encontra-se uma escala de desordens, das quais o primeiro grau consiste naquelas que destroem imediatamente a sociedade, e o último, na mínima injustiça possível que se faça aos particulares, seus membros. Entre esses ambos extremos estão compreendidas todas as ações que se opõem ao bem público, que se denominam crimes, e todas vão, por graus insensíveis, decrescendo da mais elevada à mais ínfima delas. (...) Bastará, porém, ao sábio legislador indicar os pontos principais, sem perturbar a ordem, não decretando para os crimes de primeiro grau as penas do último.67
63 BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003 p. 37 e seguintes.
64 Op. cit. p. 266.65 Idem ibidem, p. 267.66 CAVALCANTI, Eduardo Medeiros. Crime e Sociedade Complexa: Uma abordagem interdisciplinar
sobre o processo de criminalização. São Paulo: LZN, 2005. p. 317.67 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Antonio Carlos Campana. São Paulo: José Bushatsky
Editor, 1972. p. 227/228.
Ou seja, Beccaria já enunciava em 1764 (inclusive) alguns dos elementos da
proporcionalidade (atual), a necessidade, uma vez que os homens vivem em sociedade, têm
interesses privados diversos, que merecem proteção; a adequação, quando menciona que ao
legislador caberá escolher a pena de acordo com cada espécie de delito, não aplicando a
pena mais grave a um delito de menor gravidade, inserindo-se aí também a noção de
proporcionalidade em sentido estrito – da mensuração entre o fim preterido e o meio
utilizado para alcançar tal escopo –.
Feitas essas remições sobre a estrutura básica na qual se origina o princípio da
proporcionalidade, passa-se ao estudo de dois sistemas jurídicos nos quais o princípio teve
maior expressividade no que diz ao seu desenvolvimento (sistema norte-americano e
sistema germânico), em formas diversas e que posteriormente é incorporado ao direito
constitucional, assumindo, num e noutro, feições um pouco diferentes, o que implicará
também na diferenciação posterior entre proporcionalidade e razoabilidade – ao menos
entre proporcionalidade lato senso e razoabilidade.
2.1.1 Evolução histórica do princípio no Direito Norte-Americano68
Inicialmente impende registrar que não se pretende esgotar o assunto sobre a
matéria diante do objeto principal do presente estudo aliado à quantidade expressiva de 68 Importante ressaltar a lição exposta por Steinmetz, no sentido de que o que surge no direito norte-
americano é o princípio da razoabilidade, o qual é fundamentado na cláusula do due process of law em sentido substantivo. Entretanto, nesse tópico aborda-se o advento do princípio da “proporcionalidade” no direito norte-americano, a fim de, desde já, enunciar, que existem diferenças maiores entre ele e a razoabilidade do que somente no que atine ao surgimento de um e de outro. STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 185.
obras que versam sobre a mesma, tendo como escopo aqui referir algumas noções
importantes a fim de demonstrar repise-se, a diferença substancial existente entre
proporcionalidade e razoabilidade, bem como procurar demonstrar que o uso de ambos
indistintamente pela doutrina pode se dever à sua base, mencionada no início do presente
tópico.
O princípio da razoabilidade (considerado por alguns doutrinadores como sinônimo
de proporcionalidade, item abordado adiante), conforme informação de Barroso, tem
origem e desenvolvimento no direito norte-americano, a partir da cláusula do due process
of law.69 Ensina o autor que tal cláusula teve seu germe no direito processual penal,
passando ao depois aos ramos do direito processual civil e ao direito administrativo.
Ainda, leciona o autor que a cláusula em questão possuiu duas feições (que não se
excluem), sendo a primeira de caráter meramente processual, feição na qual, no início eram
vedados quaisquer exames de ordem subjetiva acerca de possíveis arbitrariedades ou
injustiças provenientes do Poder Legislativo, e, a segunda, de caráter substancial, por meio
da qual passa a ser possível o controle do arbítrio do legislativo e da discricionariedade do
governo, sendo que foi através dessa última que se processou o controle da razoabilidade e
da racionalidade dos atos do poder público em geral e também das normas jurídicas.70
Nesse caminho, comenta Barroso que a cláusula do due process of law em sua
feição substantiva inclina para a aferição da compatibilidade entre o meio empregado pelo
legislador e os fins perquiridos, assim como a verificação da legitimidade dos fins, sendo
69 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5 ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 218 e ss. No direito pátrio tal denominação recebeu a tradução de “devido processo legal”.
70 BARROSO, Luís Roberto. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional. In; Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política nº 23. São Paulo: RT, 1998. p. 65/78.
que uma limitação a algum direito individual somente será admitida se estiverem presentes
tais condições.7172
Traçadas tais linhas, vê-se que o princípio da razoabilidade origina-se da
necessária análise da legitimidade de alguns atos do Poder Público consistentes na
limitação de direitos individuais e também em virtude de uma fase antecedente em que não
era possível verificar acerca da “justiça” da lei ou de possível arbitrariedade advinda desse
poder.
Aliás, importante ressaltar algumas informações trazidas por Pontes, que elucida
determinados pontos do sistema jurídico norte-americano, expondo que a Constituição
Norte-Americana, diversamente da Brasileira, não traz enunciados os direitos individuais,
sendo que nesse contexto a cláusula do substantive due process se consubstancia na
necessidade de lei isonômica, ou seja, da necessidade de que a lei não estabeleça
diferenciações arbitrárias73.
Diante disso, o critério cunhado da razoabilidade exerce um papel de aferição da
constitucionalidade de uma norma jurídica, operando-se através da verificação entre os
meios que o legislador dispõe a fim de alcançar determinado objetivo, desde que entre
ambos exista uma relação de razoabilidade e de racionalidade. Esclarece o autor que:
É de todos conhecido o laconismo da Constituição americana, característica essa que resta maximizada quando se compara aquela Constituição com a brasileira. A ordem constitucional americana constitui, a rigor, uma solene declaração genérica de direitos, o que exigiu da jurisprudência a criação de uma fórmula para
71 BARROSO, op. cit. 1998. p. 66/67.72 BARROSO, Luís Roberto. O começo da história: a nova interpretação constitucional. In: AFONSO DA
SILVA, Luís Virgílio (org.) Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. Em especial p. 302/303, onde Barroso mantém-se pelo uso fungível entre proporcionalidade e razoabilidade.
73 PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2000. p. 82/83.
controlar o processo de individualização daqueles direitos (o test of reasonebleness por meio do devido processo legal).74
De outra banda, mas também dissertando sobre o princípio da proporcionalidade,
expõe Gomes Canotilho que na forma da regra da razoabilidade há muito o princípio em
tela exerce influência nos países da Common Law: “Através da regra da razoabilidade, o
juiz tentava (e tenta) avaliar caso a caso as dimensões do comportamento razoável tendo em
conta a situação de facto e a regra do precedente.”75
Por derradeiro, cabe ressaltar que Gomes Canotilho classifica a forma acima do
princípio da proporcionalidade como proporcionalidade em sentido lato, também conhecido
como princípio da proibição de excesso uma vez que oferta ao legislador limites à sua
atuação.76
A partir disso percebe-se que no sistema norte-americano não há uma dissociação
entre razoabilidade e proporcionalidade, ficando em voga a necessidade de, a partir de um
entendimento dito “razoável”, e de uma ponderação entre o meio empregado e o fim
visado, ser verificada a constitucionalidade da lei, assim como averiguar a legitimidade da
intervenção estatal na vida privada dos cidadãos, com base inicialmente na parte
substantiva do due process of law em virtude de que naquele sistema não há um “elenco”
de direitos e garantias fundamentais (tal como há, por exemplo, no Brasil), sendo necessária
a averiguação a partir dos precedentes e da produção jurisprudencial em cima da
Constituição e da feição substantiva da cláusula em comento.
Outra conclusão passível de ser extraída é a de que essa noção de proporcionalidade
enquanto razoabilidade é de cunho liberal-individualista, tendo em mente não só o contexto
74 Idem ibidem. p 8275 Op. cit., p. 267.76 Op. cit. p. 267
em que se forma (na medida em que no seu surgimento a preocupação dos jusfilósofos
eram os direitos humanos, em especial os direitos de liberdade da burguesia, classe
econômica em ascensão77) como também pelo fato de visar em especial a liberdade dos
cidadãos, direito exercido de forma negativa ao passo que não dependiam da intervenção do
Estado.
2.1.2 Evolução histórica do princípio no Direito Germânico – do surgimento aos dias
atuais78.
No Direito Alemão, o princípio da proporcionalidade tem sua origem como limite
aos poderes de polícia do Estado, desembocando posteriormente, de uma vinculação do
legislador à Lei Fundamental e alcançando reconhecimento pelo direito positivo somente
com sua vigência pós 1949, conforme lição de Scholler.79
Steinmetz expõe que o princípio da proporcionalidade surge no âmbito do “direito
de polícia” (no direito administrativo) , técnica para limitar e controlar tal direito, mas que
somente com o pós-guerra é que adquire maior desenvolvimento pela doutrina e
77 Referência trazida por BARROS, op. cit. p. 38.78 Para uma leitura pormenorizada sobre o princípio da proporcionalidade no Direito Alemão e a
correspondente influência no Direito Brasileiro remete-se a PONTES, op. cit. p. 43 et. seq.79 SCHOLLER, Heirich. O princípio da proporcionalidade no direito constitucional e administrativo da
Alemanha. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet. Texto traduzido a partir da palestra proferida pelo Autor em 20.11.98 no Curso de Aperfeiçoamento em Direito Público Comparado. Co-produção: ESM/AJURIS, ESMP, ESMAFE, Escola Superior de Direito Municipal e Fundação Pedro Jorge de Mello da PGR.
jurisprudência alemãs, uma vez que encontrará sua base na Lei Fundamental
(Grundsgezetz).80
Seguindo Scholler vê-se que a vinculação jurídica do legislador somente tornou-se
efetiva a partir das experiências sanguinolentas vividas durante os regimes totalitários e
durante a segunda guerra mundial, momento no qual “os juristas se deram conta que
existem leis injustas.” 81 Nessa seara, refere-se que durante os períodos mencionados havia
uma vinculação do legislador relativa à forma e aos procedimentos necessários sem,
contudo, que materialmente tal vinculação existisse, ensinando Scholler que “a legislação
formalmente perfeita e editada conforme as regras procedimentais previstas no
ordenamento jurídico, poderia estar em tamanha contradição com a idéia de justiça que
perderia totalmente a sua vinculatividade.”82
Veja-se que nesse iter o princípio da proporcionalidade enuncia uma preocupação
em certa medida diversa do que a citada no ponto anterior, uma vez que a realidade social
aqui é outra (pós-regimes ditatoriais e segunda grande guerra) e a preocupação volta-se aos
direitos humanos de toda a humanidade 83, bem como com a necessidade de uma vinculação
substancial do legislador no momento de sua atuação, baseada nos direitos fundamentais
constitucionalmente assegurados. Bonavides refere que somente depois da segunda guerra
mundial e mais precisamente da Lei Fundamental da Alemanha é que o princípio da
proporcionalidade atinge uma larga aplicação de caráter constitucional.84
80 Op. cit. p. 146/147. 81 Op. cit. p. 02.82 Op. cit., p. 02.83 Ainda que a expressão denote tautologia é utilizada dessa forma para demonstrar que a preocupação passa
a ser o direito de todos e não de uma ou outra parcela do grupo social, tal como ocorria na época da Revolução Francesa, onde a preocupação era sim com as liberdades e com a igualdade, essa, contudo, apenas formal uma vez que materialmente existiam tamanhas desigualdades e as posições daqueles que litigavam, conforme o seu contexto – classe – social eram da mesma forma diversas.
84 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 408.
Cabe, aliás, trazer à baila trecho da obra de Pacheco Barros e Zucheto Barros acerca
do nascedouro do princípio da proporcionalidade enquanto limite à atuação do Estado na
seara do direito administrativo:
(...) Em suma, inicialmente, o princípio da proporcionalidade tratava apenas da limitação do poder executivo, considerado como uma medida para as restrições administrativas da liberdade individual, sendo este introduzido, no século XIX, como direito de polícia, no campo do Direito Administrativo e, posteriormente, foi considerado como princípio constitucional.85
Outrossim, importa referir, o exposto por Gomes Canotilho, segundo o qual o
princípio em tela encontra-se atualmente erigido à categoria de princípio constitucional,
consubstanciado no princípio da proibição de excesso através dos quais a doutrina e a
jurisprudência auferem um controle dos atos do poder público.86
Bonavides leciona que somente no ano de 1972 é que o Tribunal Federal
Constitucional da Alemanha clarificou seu entendimento acerca da essência do princípio da
proporcionalidade, a saber:
O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e necessário para alcançar o objetivo procurado. O meio é adequado quando com seu auxílio se pode alcançar o resultado desejado; é necessário, quando o legislador não poderia ter escolhido um outro meio, igualmente eficaz, mas que não limitasse ou limitasse da maneira menos sensível o direito fundamental.87
85 PACHECO BARROS, Wellington. ZUCHETTO BARROS, Wellington Gabriel. A proporcionalidade como princípio de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 31
86 Op. cit. p. 268.87 Decisão proferida em 16 de março de 1972 sobre armazenagem de petróleo: BVerfGE 30, p. 292, apud
Bonavides, 2004, p. 409/410.
A partir da transcrição supra, é possível detectar os “sub-princípios” ou elementos
parciais, no dizer de Bonavides, do princípio da proporcionalidade no direito germânico,
quais sejam: pertinência ou aptidão (Geeignetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e a
proporcionalidade em sentido estrito.88
Também sobre esses três elementos e comentando o posicionamento firmado pelo
Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, assevera Pontes sustentando que a
proporcionalidade enquanto “norma geral” engloba os deveres de adequação (denominado
por Bonavides de aptidão), necessidade e conformidade (proporcionalidade em sentido
estrito – engeren Sinne), prosseguindo o autor no sentido de elucidar que tais deveres
(elementos ou subprincípios) não rompem com a unidade epistemológica do princípio da
proporcionalidade, o qual consiste no controle da natureza bem como do grau das
limitações impostas pelo Estado às liberdades individuais assim como da “medida de
concretização das pretensões individuais”89.
No tocante ao elemento da “pertinência ou aptidão” (também denominado de
adequação) verifica-se a conformidade, a adequação ou a validade do meio utilizado para
alcançar o fim almejado. Segundo Bonavides, tal elemento confunde-se com o princípio da
vedação de arbítrio (Übermassverbot). Pela aferição desse subprincípio é preciso que se
indague acerca de qual o meio certo para concretizar um objetivo baseando-se no interesse
público. 90 Outrossim, importa referir que a proibição de excesso (Übermassverbot)
enquanto faceta da proporcionalidade encontra-se em todas as “etapas” de verificação do
princípio.
Sobre esse mister, leciona Afonso da Silva que como meio adequado deve-se
entender aquele com o qual a realização de um objetivo possa ser fomentada, promovida, 88 Op. cit. 2004, p. 396/398.89 Op. cit. p. 62.90 Op. cit. 2004, p. 396/397.
ainda que o objetivo não seja inteiramente realizado. Prossegue o Autor informando que o
teste da “adequação da medida” limita-se “ao exame da sua aptidão para fomentar os
objetivos visados.”91
Relativamente ao elemento “necessidade” (Erforderlichkeit), a medida a ser tomada
pelo poder público não pode exceder os limites imprescindíveis à conservação do fim
legítimo visado. ou seja, uma medida interventiva para ser admissível deve ser necessária.
Segundo Pontes, pela necessidade há o questionamento do meio empregado para a
limitação visada, sendo que ele deve ser o menos danoso para o interesse jurídico que teve
seu exercício limitado92, ou seja, é preciso que se adote o meio mais suave (das mildeste
Mittel) entre aqueles igualmente capazes de alcançar o resultado perquirido. Outrossim,
Bonavides expõe que pela “natureza” desse subprincípio ele também pode ser denominado
de “princípio da escolha do meio mais suave” (das Prinzip der Wahl de mildesten
Mittels).93
Sobre esses dois elementos leciona Guerra Filho:
Os subprincípios da adequação e da exigibilidade ou indispensabilidade (Erforderlichkeit), por seu turno, determinam que, dentro do faticamente possível, o meio escolhido se preste para atingir o fim estabelecido, mostrando-se, assim, “adequado”. Além disso, esse meio deve se mostrar “exigível”, o que significa não haver outro igualmente eficaz, e menos danoso a direitos fundamentais.94
91 Op. cit. p. 36/37.92 Pontes, op. cit. p. 6893 Op. cit. 2004, p. 397.94 GUERRA FILHO, Willis Santiago.Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 4 ed. rev e ampl.
São Paulo: RCS Editora, 2005. p. 96/97. (grifos no original)
Diante do ensinamento supra, percebe-se que os elementos (ou subprincípios) do
princípio da proporcionalidade se interagem e se explicam mutuamente em virtude de que
não basta que o meio para atingir determinado fim seja adequado, ou, no dizer de
Bonavides, “pertinente”, invocando-se também que esse mesmo meio seja necessário para
o alcance do fim / objetivo visado pelo poder público. Ainda nessa senda, expõe Afonso da
Silva que o “exame da necessidade” consiste essencialmente em uma comparação, ao passo
que, no dizer do autor, o exame da adequação é um “exame absoluto”.95
Por fim, pelo terceiro elemento denominado de “proporcionalidade estrito senso”
(Verhältnismässigkeit im engeren Sinne) há a ligação com a concretização do próprio
princípio da proporcionalidade: ou seja, na utilização desse terceiro elemento há uma
obrigação, no sentido de utilizar os meios adequados para obter o fim perquirido e também
uma interdição, relativa ao uso de meios desproporcionais para tal desiderato.96
Gomes Canotilho, ao trabalhar sobre o sentido estrito do princípio da
proporcionalidade leciona que:
Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação da medida coactiva do poder público para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à <<carga coativa>> da mesma. Está aqui em causa o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, entendido como princípio da “justa medida”. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objectivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de <<medida>> ou de <<desmedida>> para se alcançar um fim (...).97
95 Op. cit. p. 38. Leciona Afonso da Silva a respeito do sub-elemento necessidade, “Um ato estatal que
limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida o direito fundamental atingido.” Op. cit. p. 38.
96 Idéia esposada por BONAVIDES, op. cit, 200 4. p. 398.97 Op. cit. p. 270
Essa é também a idéia perfilhada por Guerra Filho, elucidando que na aferição da
proporcionalidade em sentido estrito será estabelecida uma correspondência entre o fim
perseguido por determinada disposição normativa e o meio empregado para alcançá-lo, a
qual deve ser a melhor possível, o que significa que não deve tal concatenação ferir o
“núcleo essencial” de um direito fundamental com o inadmissível desrespeito à dignidade
humana e que, mesmo que exista alguma desvantagem para o interesse de pessoas,
coletivas ou individualmente, em decorrência da hipotética disposição normativa, será
preciso que a vantagem da medida para outra ordem supere as desvantagens da mesma.98
Para clarificar, cabe trazer à baila o ensinamento de Pontes acerca do princípio da
proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit im engeren Sinne):
A relação entre o meio adotado e o fim com ele perseguido revela-se proporcional quando a vantagem representada pelo alcance desse fim supera o prejuízo decorrente da limitação concretamente imposta a outros interesses igualmente protegidos prima facie. (...) A proporcionalidade em sentido estrito representa a idéia nuclear do princípio da proporcionalidade em sentido amplo, porquanto consubstancia a concreta apreciação dos interesses em jogo, isto é, revela a necessidade de formulação de um juízo de sopesamento (Abwägung) entre o meio adotado pela autoridade (e o interesse público que o justifica) e a limitação sofrida pelo indivíduo em parcela da sua esfera juridicamente protegida.99
Na senda da proporcionalidade estrito senso, Pereira leciona que nesse terceiro
elemento da proporcionalidade há uma ponderação, ou seja, para a verificação da
constitucionalidade da medida restritiva de direitos fundamentais deve existir, pelo menos,
um nexo de correspondência entre a gravidade da restrição ao direito fundamental e a
relevância da implementação do princípio constitucional que a fundamenta.100
98 Op. cit. p. 95/96. 99 Op. cit. p. 70100 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais: uma
contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio
Por fim, impende ressaltar que tanto a proibição de excesso quanto a proibição de
insuficiência encontram-se nos três elementos, ou nas “três fases” (adequação, necessidade
e proporcionalidade estrito senso) a serem perquiridas quando da aferição do principio da
proporcionalidade em sentido amplo.
2.2 Distinção entre proporcionalidade e razoabilidade
Como visto anteriormente, quando abordado a evolução do princípio ao longo da
história, há na doutrina uma divisão entre autores que entendem serem tais princípios
sinônimos, enquanto que outros entendem existir uma diferença entre ambos, não sendo tal
distinção meramente cosmética.
Entre a primeira parcela da doutrina, situa-se, por exemplo, Barroso, que trabalha
como distinção entre ambos apenas o fato de um ter se originado no direito norte-americano
(razoabilidade) e o outro ter origem no direito germânico (proporcionalidade), sendo que
ambos se constituiriam na verificação da constitucionalidade da norma (por exemplo)
mediante a aferição da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins
visados, bem como a legitimidade dos fins do ato em discussão. De acordo com Barroso:
Enxergar o direito pelos olhos da Constituição, significa, por exemplo, ver o direito à luz do Princípio da Proporcionalidade, ou Razoabilidade, que é um dos mais importantes (se não for o mais) princípios albergados na Constituição, o
de Janeiro: Renovar, 2006. p. 350.
qual consiste num parâmetro de valoração dos atos do Poder Público, para aferir se eles são informados pelos valores ditados pela Constituição.101
Ainda, o autor trabalha ambos os princípios como sinônimos, lecionando que a
razoabilidade consiste na adequação de sentidos entre os motivos (circunstâncias de fato),
os fins e os meios [aí se encaixando a proporcionalidade] e os valores fundamentais do
Estado, como a paz, a ordem, a segurança, a solidariedade e a justiça.102 Na mesma esteira
de Barroso, encontra-se Barros, que relaciona necessidade, adequação e proporcionalidade
em sentido estrito como sub-princípios da proporcionalidade ou razoabilidade, não fazendo,
portanto, distinção entre ambos.103
Verifica-se a aplicação indistinta, ainda, das decisões do Supremo Tribunal Federal
deste País, o qual se refere aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, tratando
esse como variável daquele, 104 ou ainda, conforme exposto por Afonso da Silva, figurando
o princípio como um “lugar comum” (topói) utilizado pelo Pretório Excelso ou ainda, como
uma simples forma de compatibilidade entre meios e fins.105
101 BARROSO, Luís Roberto, Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 204102 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: Saraiva, 2003. p. 226.103 BARROS, op. cit. p. 66.104 (...) Esse tratamento normativo desigual, que castiga o réu com perda injusta e irreparável da liberdade
física, agride o princípio da proporcionalidade, como variável da razoabilidade. Creio inconcebível que o sistema jurídico tolere essa incoerência de regulamentação desproporcional de conseqüências sancionatórias para valores jurídicos absolutamente díspares, atribuindo prudente proteção a bem jurídico que, diria, não é o mais valioso da vida, o patrimônio, e, na esfera penal, negando-a à liberdade do cidadão! Isso, para mim, ofende frontalmente, além de cláusula constitucional específica (art. 5º, LVII), o princípio da proporcionalidade, que veda toda sanção injustificável quando comparada com conseqüência prevista para hipótese mais grave em abstrato. (...) Seria esse [lançamento do nome do réu no rol dos culpados antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória], outro tipo gritante de desproporcionalidade: sustentar a impossibilidade de manter o nome do réu no rol dos culpados, mas permitir que ele permaneça preso até que sobrevenha julgamento definitivo, o qual bem pode declará-lo inocente! Nada haveria de razoável nessa desequilibrada ponderação normativa que de igual modo subverteria a escala de valores emergentes da Constituição." (...). Supremo Tribunal Federal, Rel. Ministro Cezar Peluzzo. HC 88642 MC/ SP .j. 04/05/2006
105 Op. cit. p. 31/34.
Contudo, acredita-se ser necessária a diferenciação entre os dois princípios, diante
dos elementos componentes de cada um, bem como pela diferenciação quanto a cada um
dos respectivos objetos.
Nesse sentir, advogando pela distinção entre ambos os princípios, cita-se a lição de
Bandeira de Mello, para o qual a razoabilidade caracteriza-se, essencialmente, pela adoção
de critérios “racionais” diante do caso posto em análise. Vale dizer, destina-se esse
princípio à observância de critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em consonância
com o “senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a
outorga da competência exercida.”106
Relativamente ao princípio da proporcionalidade, ensina o autor citado que este se
destina à verificação acerca da situação posta em análise auferindo-se se a extensão da
medida e sua intensidade são proporcionais a finalidade colimada.107
Ou seja, pelo ensinamento supra, percebe-se que a razoabilidade está mais para um
juízo subjetivo, ao passo que a proporcionalidade serve para perquirir se a medida tomada
pelo Poder Público é adequada, diante das outras medidas igualmente existentes para a
obtenção do fim almejado, de modo que cause a menor interferência possível na vida do
cidadão. Em que pese também ser subjetiva, a proporcionalidade não demanda um juízo em
torno do “senso normal de pessoa equilibrada”, oferecendo ao intérprete opções, dentre as
quais deverão ser escolhidas aquelas que se destinem à consecução do escopo visado, mas
que para isso interfiram da menor maneira possível (de modo ostensivo) na esfera de
direitos fundamentais do cidadão.
106 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 17 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 99.
107 Idem ibidem, p. 101.
Já Ávila, que distingue princípios, regras e postulados, trabalhando a razoabilidade e
a proporcionalidade como postulados normativos108, leciona que,
O postulado da razoabilidade aplica-se, primeiro, como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto [razoabilidade como eqüidade], quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Segundo, como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência [razoabilidade como congruência], seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir. Terceiro, como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas [razoabilidade como equivalência].109
No tocante à proporcionalidade, expõe o autor que uma das distinções básicas entre
ela e a razoabilidade reside na existência, na primeira, de um nexo de causalidade entre um
meio e um fim concretamente verificável. Elucida Ávila que a exigência da concretização
de vários fins, todos constitucionalmente protegidos, implica na adoção de medidas que
sejam adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito.110
Cabe referir que sobredito doutrinador, trabalha ainda com a existência de um
terceiro postulado, qual seja, a proibição de excesso, abarcada nesse estudo em conjunto
com a proporcionalidade (lato senso), sendo uma de suas facetas, juntamente com a
108 Para o autor, razoabilidade e proporcionalidade seriam postulados uma vez que “(...) os postulados normativos situam-se num plano distinto daqueles das normas cuja aplicação estruturam. A violação deles consiste na não-interpretação de acordo com sua estruturação. São, por isso, metanormas (...). Isso porque esses sobreprincípios situam-se no próprio nível das normas que são objeto de outras. Além disso, os sobreprincípios funcionam como fundamento, formal e material, para a instituição e atribuição de sentido às normas hierarquicamente inferiores, ao passo que os postulados normativos [para o autor, razoabilidade e proporcionalidade] funcionam como estrutura para a aplicação de outras normas.” ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 120 et. seq. Em que pese a respeitável doutrina exposta por Ávila acerca da configuração da proporcionalidade (objeto precípuo deste trabalho) enquanto postulado normativo, a mesma não será adotada no transcorrer desse estudo, em virtude da exigüidade do tempo para desenvolvê-lo, aliada à concentração do tema proposto.
109 Idem ibidem. p. 169.110 Idem ibidem. p. 169.
proibição de proteção insuficiente, que será analisada a seguir. O autor trabalha a proibição
de excesso na condição autônoma por entender que seu estudo não demanda,
necessariamente, a existência de um nexo de causalidade (tal como é necessário ao estudo
da proporcionalidade) entre o meio e o fim, destinando-se mais à verificar se um direito
fundamental está sendo excessivamente restrito.111
Nesse passo, ressalte-se respeitar a opinião do autor, mas expõe-se que a proibição
de excesso será aqui tratada enquanto uma das faces da proporcionalidade pois o estudo
dessa é feito justamente em cima dos direitos fundamentais, enquanto função de proibição
de intervenção indevida pelo Estado na esfera do cidadão, ao lado dos direitos de defesa,
denominados por Canaris de “mandamentos de tutela.”112
Pacheco Barros e Zuchetto Barros, em obra recentemente lançada também são
favoráveis pela distinção entre os dois princípios, a saber,
Proporcionalidade e razoabilidade não são conceitos fungíveis. Cada um, além de uma fundamentação própria, possui elementos caracterizadores que marcam uma diferença operacional: a razoabilidade trata da legitimidade de escolha dos fins em nome dos quais agirá o Estado, enquanto a proporcionalidade averigua se os meios são necessários, adequados e proporcionais aos fins já escolhidos.113
Ou seja, para esses autores, a análise da razoabilidade seria uma fase anterior à
aplicação da proporcionalidade. Enquanto àquela verificaria a legitimidade da escolha feita
pelo Estado, esta detectaria se tal escolha é adequada ao fim colimado, é necessária para tal
111 Idem ibidem. p. 133/137.112 CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito
privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 234/243.
113 PACHECO BARROS e ZUCHETTO BARROS, op. cit. p. 49.
e se é proporcional em sentido estrito (se entre os meios existentes para a obtenção do fim,
foi eleito o menos gravoso aos direitos fundamentais de cada cidadão, e se tal meio
escolhido seria necessário à consecução do escopo perquirido).
Diante da importância dogmática e esclarecedora em torno da distinção ora
abordada, cabe trazer à baila o ensinamento de Afonso da Silva, segundo o qual a
proporcionalidade e a razoabilidade possuem não só “nascedouros” distintos, mas também
formas de aferição não fungíveis, informando o autor que a verificação da irrazoabilidade
de determinado ato é feita somente para afastar aqueles irrazoáveis em demasia.114 Já com
relação à proporcionalidade, leciona o autor:
A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais surgiu por desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão e não é uma simples pauta que, vagamente, sugere que os atos estatais devem ser razoáveis, nem uma simples análise da relação meio-fim. (...) A regra da proporcionalidade, portanto, não só não tem a mesma origem que o chamado princípio da razoabilidade, como freqüentemente se afirma, mas também deste se diferencia em sua estrutura e em sua forma de aplicação (...).115
Ademais, relembre-se que para a verificação da proporcionalidade (lato senso)
segue-se à análise de seus três sub-elementos, os quais, segundo Afonso da Silva, se
relacionam de forma subsidiária.116 Já no dizer de Steinmetz, os princípios parciais da
adequação, necessidade e proporcionalidade estrito senso funcionam como indicadores de
114 Op. cit. p. 29.115 Idem ibidem p. 30/31.116 Idem ibidem p. 34. O autor menciona sua preocupação para o fato de que, muitas vezes a subsidiariedade
entre os sub-elementos da proporcionalidade não é trabalhada com a devida consideração, expondo o ele que é no caráter de subsidiariedade entre ambos que reside a razão de ser na sub-divisão em tais sub-princípios ou sub-elementos da proporcionalidade. p. 34.
controle, aí residindo o fator que concede maior importância à proporcionalidade sobre a
razoabilidade quando diante de colisão de direitos fundamentais.117
Oportuno mencionar, por fim, a idéia sustentada por alguns doutrinadores sobre a
possibilidade de trabalhar conjuntamente proporcionalidade estrito senso e razoabilidade-
equivalência118, na medida em que essa consiste na existência de equivalência entre a
medita adotada e o critério que a dimensiona119, enquanto àquela consiste na aferição entre
um meio escolhido para atingir determinado fim: sua adequação e a conseqüente
necessidade para tal.120
Nesse diapasão, já é possível perceber por quê se afirmou no início que tal distinção
não era meramente ilustrativa, ainda mais quando se trata da aplicação do princípio da
proporcionalidade na seara do direito penal. Isso porque, dado o abandono do antigo
modelo de “direito penal do autor”, se adotado fosse o princípio da razoabilidade
(razoabilidade – equidade ou razoabilidade – congruência, tal como lecionado por Ávila)
somente como análise feita no caso concreto frente ao senso comum, seria muito difícil até
mesmo sustentar a legitimidade das decisões condenatórias – decisões que entendem pela
procedência da pretensão punitiva do Estado em determinado caso fático – na medida em
que a razoabilidade é calcada num juízo de “senso comum”, critério subjetivo, afastado
desse ramo do direito, também, por força da distinção, há muito existente, entre direito e
moral, denominada por alguns de princípio da secularização.
117 Op. cit. p. 188.118 Trabalhada dessa forma por ÁVILA, o qual refere outras ‘espécies’ de razoabilidade Op. cit. p. 145.119 Idem ibidem, p. 145.120 Aliás, tal proposição é trabalhada por CALIL DE FREITAS, que assim leciona “Trata-se de uma possível
identidade entre o exame estrito da proporcionalidade e o exame da razoabilidade, na medida em que se entenda que na análise da proporcionalidade em sentido estrito se inclui a ponderação relativamente aos interesses em oposição, dentre eles os interesses pessoais dos sujeitos dos direitos fundamentais desvantajosamente afetados.” Op. cit. p. 212. No mesmo sentido, a orientação de Ávila, op. cit. p. 147.
2.3 O Princípio da proporcionalidade e sua dupla dimensão - proibição de excesso e
proibição de insuficiência
Superadas algumas questões em torno do princípio da proporcionalidade,
especialmente no que diz com seu aspecto histórico e sua distinção com o princípio da
razoabilidade, faz-se possível adentrar no campo de análise do princípio não somente na
feição da proibição de excesso por parte do Poder Público, como também como proibição
de insuficiência, atinente essa aos deveres de proteção / imperativos de tutela impostos
através dos direitos fundamentais a todos os Poderes do Estado.
Nessa senda, vale rememorar a mudança paradigmática pela qual passou o Brasil
nos últimos vinte anos: de um Estado ditatorial (formalmente legalista) para um Estado
Democrático de Direito (substancialmente legalista) o qual tem como norte os direitos
fundamentais constantes na Carta Constitucional de 1988, que exercem uma dupla função
nesse novo modelo de Estado: de um lado impondo limites à atuação estatal e, de outro
impondo deveres de tutela para o Estado em relação aos seus cidadãos. Sobre esse tema
ensina Streck:
(...) já não se pode falar, nesta altura, de um Estado com tarefas de guardião de “liberdades negativas”, pela simples razão – e nisto consistiu a superação da crise provocada pelo liberalismo – de que o Estado passou a ter a função de proteger a sociedade nesse duplo viés: não mais apenas a clássica função de proteção contra o arbítrio, mas, também a obrigatoriedade de concretizar os direitos prestacionais e, ao lado destes, a obrigação de proteger os indivíduos contra agressões provenientes de comportamentos delitivos, razão pela qual a segurança passa a fazer parte dos direitos fundamentais (art. 5o, caput, da Constituição do Brasil).121
121 STRECK, op. cit. 2004, p. 245.
Tal situação implica numa revisão da forma de interpretar as normas e também na
forma de perceber e compreender a atuação estatal. Assim, a aplicação do princípio da
proporcionalidade fulcrada no duplo viés, título desse tópico, está umbilicalmente ligada a
dupla função dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito.
Ainda a título preambular, cabe trazer à colação o ensinamento de Sarlet a respeito
das duas facetas a serem trabalhadas abaixo:
De modo especial, argumenta-se que existe uma substancial congruência (pelo menos no tocante aos resultados) entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiência, notadamente pelo fato de que esta se encontra abrangida pela proibição de excesso, no sentido de que aquilo que corresponde ao máximo exigível em termos de aplicação do critério da necessidade no plano da proibição de excesso equivale ao mínimo exigível reclamado pela proibição de insuficiência.122
Assim, o que se passa a propor é uma aplicação do direito que respeite a todas as
funções dos direitos fundamentais, constituindo-se a proibição de excesso e a proibição de
insuficiência nos instrumentais pelos quais a aplicação do princípio da proporcionalidade se
fará possível.
2.3.1 O que significa um “garantismo positivo”?
Diante da mudança de paradigma supra exposta, e desenvolvida ao longo do
primeiro capítulo, impende sublinhar que falar em aplicação de um “garantismo penal
122 SARLET, Ingo. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 47, ano 12. São Paulo: Revista dos Tribunais, março-abril de 2004. p. 103
positivo123”, mediante a utilização do princípio da proporcionalidade em sua dupla face, não
significa retomar o maléfico “direito penal do autor”, mas sim efetivar através do sobredito
princípio e pela via da atividade judicial penal os direitos e garantias fundamentais do
restante dos indivíduos que fazem parte da sociedade124: garantem-se os direitos daquele
contra o qual o Estado exerce sua pretensão punitiva (por exemplo) e, ao mesmo tempo são
garantidos os direitos fundamentais também dos demais membros da sociedade.
Outrossim, pretende-se demonstrar que o limite para atuação, no caso do Estado-
Juiz na aplicação do princípio da proporcionalidade como proibição de insuficiência reside
na Constituição Federal e, mais especificamente, nos direitos fundamentais que dão azo à
aplicação do princípio da proporcionalidade visto sob esse prisma. Destarte, não se sustenta
o afastamento de tal aplicação sob o fundamento de que ela implicaria em uma “decisão
arbitrária” pautada na discricionariedade de cada magistrado.
Ademais, cabe colacionar o ensinamento de Giacomolli, em obra recente, na qual o
autor informa que há casos em que o tipo penal (que diz com o princípio da reserva legal)
se concretiza na prática, mas, a conseqüência disso não ocorre de maneira a ensejar uma
aplicação conforme o Código Penal (por exemplo), entrando aí o papel do intérprete, não
como juiz-legislador, mas como um instrumento pelo qual serão concretizadas as normas
penais, se for o caso, e também as normas que atinem aos direitos fundamentais. Assim:
123 Para utilizar as lições de SARLET, op. cit. 2004, p.79; e também de STRECK, no parecer proferido nos autos do Agravo em Execução n. 70008.229.775, 5a. Câmara Criminal do TJRS, bem como nos artigos: A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassberbot à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, Ano XXXII, no 97, V. 32 – março/2005. Porto Alegre: AJURIS, 2005, p. 171/202 e também op. cit. 2004, p. 223/251.
124 DIMOULIS, Dimitri. Elementos e problemas da dogmática dos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo. Jurisdição e Direitos Fundamentais: Anuário 2004-2005.Porto Alegre: Livraria do Advogado; AJURIS-ESM, 2006. p. 87
Há que se ter em conta, ademais da reprovabilidade já indicada pelo legislador a sanção típica, que no mesmo tipo penal podem adequar-se situações em que a lesão ao mesmo bem jurídico tenha distintas dimensões, pois as normas criminais contém disposições genéricas e abstratas, dirigidas a todos os infratores de uma determinada conduta proibida. Portanto, a concreção do fato típico também pode converter-se em uma conseqüência de pouca extensão – atenuantes, eximentes incompletas, por exemplo. (...) Ocorre que, no momento em que a conduta se concretiza, a ofensa a um bem jurídico, abstratamente considerada, pode não se concretizar, devido a sua escassa ou ínfima dignidade – inclusive menos grave que uma infração administrativa – carecendo de necessidade de tutela penal. Ainda, em determinados casos, a lesão ao bem jurídico não sendo grave – mediana –, não necessita de uma tutela penal com a mesma eficácia da aplicada à criminalidade de maior gravidade – proporcionalidade.125
A aplicação da tese da proporcionalidade, dessa feita, justifica-se porque tem como
base e como limites o conteúdo axiológico dos direitos fundamentais, estando, assim, em
consonância também com o princípio da legalidade.126
Assim, o garantismo positivo consiste na interpretação da norma penal em face da
Carta Constitucional Brasileira não só quando há criminalização de determinadas condutas,
mas também quando há descriminalização em virtude da dupla operabilidade dos direitos
fundamentais no Estado Democrático de Direito. Além disso, como assinala Streck, o
legislador também está vinculado à proibição de proteção deficiente (insuficiente).127
Entendido o garantismo como forma interpretativa de filtragem da legislação
infraconstitucional a partir dos valores e conceitos atinentes aos direitos fundamentais
incorporados pela Constituição Federal de 1988, ao lado do fato de termos no País valores
constitucionais como a dignidade da pessoa humana (um dos fundamentos da República
125 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal na perspectiva das garantias constitucionais: Alemanha, Espanha, Itália, Portugal e Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 91 et. seq. A partir do trecho supra transcrito, percebe-se a aplicação do princípio da proporcionalidade enquanto proibição de excesso. Veja-se que a obra consultada trata em especial de mecanismos de consenso (alternativas) no processo penal, de modo a destinar as punições mais graves, como uma pena privativa de liberdade, a casos mais graves, ao que o autor remete-se à utilização da proporcionalidade, conforme visto no trecho acima transcrito.
126 Cabe ressaltar que não se pretende, em nenhuma hipótese, um posicionamento favorável à figura de “juízes legisladores”, e sim de demonstrar que o princípio da proporcionalidade sob seu duplo viés consiste em importante instrumento hermenêutico a proporcionar a efetivação, no caso concreto e quando demandado, dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
127 STRECK, op. cit, 2005. p. 177 e 191.
Federativa do Brasil) além do extenso rol de direitos fundamentais costurados no decorrer
da mencionada Carta, é possível concluir que se os direitos fundamentais possuem não só a
função de impor limites à atuação estatal, de outra banda possuem também a função de
imperativos de tutela, a serem seguidos pelo Estado aos cidadãos, de forma que a aplicação
do garantismo positivo pode vir a significar a concretização (ainda que sensível) de ambas
as funções dos direitos fundamentais.
2.3.2 Entre proibição de excesso e proibição de insuficiência.
Como visto anteriormente, o princípio da proporcionalidade enquanto proibição de
excesso surge num contexto histórico no qual era imperioso um mecanismo de “frenagem”
ao arbítrio estatal, diante de leis formalmente perfeitas, mas desprovidas de qualquer
conteúdo axiológico, quiçá ligado aos direitos fundamentais, tais como concebidos
hodiernamente.
Assim, no modelo liberal-iluminista era mister a proteção das liberdades dos
indivíduos frente ao Estado, esse, aliás, com uma atuação mínima na vida de seus cidadãos.
Essa perspectiva liberal-iluminista do princípio enquanto proibição de excesso vigora até
hoje, contudo, num quadro político social diverso daquele existente quando de seu
surgimento.
Contemporaneamente, a proteção não é somente relativa a bens individuais como
também a bens transindividuais, difusos e coletivos. E isso ocorre pelo avanço da sociedade
acompanhado de uma “especialização” no âmbito do direito penal, uma vez que
diferentemente do que ocorre nos delitos chamados de“clássicos” (v.g. furto, roubo,
estelionato) nessa nova classe de delitos os reflexos dos mesmos ocorrem perante uma
comunidade, uma sociedade, uma nação.
Ressalte-se ainda que a Carta Constitucional de 1988 também tratou de vários
desses bens como direitos fundamentais (p. ex. meio ambiente e defesa do consumidor) o
que vale dizer que para a sua proteção é necessária uma hermenêutica calcada nos pilares
da proporcionalidade aqui expostos como proibição de excesso e proibição de insuficiência.
Apenas a título ilustrativo, na linha argumentativa de uma nova concepção social,
repisa-se que a Constituição Federal tem como valor a solidariedade social e como um dos
objetivos fundamentais da República a erradicação da fome e da miséria no País, o que
demonstra a intensa preocupação do legislador constituinte com toda a coletividade e o que
vem a corroborar a insustentabilidade do (antigo) paradigma liberal-iluminista que deu azo
à proporcionalidade (apenas) como proibição de excesso por parte dos poderes do Estado,
onde tínhamos como valores o individualismo e a mínima intervenção estatal na vida dos
indivíduos.
Nessa esteira, leciona Streck acerca de uma controvérsia no âmbito do direito penal
entre os penalistas liberais que advogam uma função limitadora do conceito de bem
jurídico e os penalistas de índole comunitarista-garantista que se posicionam pela
funcionalidade de tal conceito, atrelada a uma concepção organizativa, interventiva e atenta
à realidade social.128 Leciona, ainda, Streck que:
(...) não há liberdade absoluta de conformação legislativa nem mesmo em matéria penal, ainda que a lei venha a descriminalizar condutas consideradas ofensivas a bens fundamentais. Nesse sentido, se de um lado há a proibição de excesso (Übermassverbot), de outro há a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Ou seja, o direito penal não pode ser tratado como se existisse apenas uma espécie de garantismo negativo, a partir da garantia de
128 Op. cit. 2005, p. 174/175.
proibição de excesso. (...) a partir do papel assumido pelo Estado e pelo Direito no Estado Democrático de Direito, o direito penal deve ser (sempre) examinado também a partir de um garantismo positivo, isto é, devemos nos indagar acerca do dever de proteção de determinados bens fundamentais através do direito penal. Isto significa dizer que, quando o legislador não realiza essa proteção via direito penal, é cabível a utilização da cláusula “proibição de proteção deficiente” (Untermassverbot). 129
Dessa feita, não se trata (de forma alguma) de rechaçar o garantismo – em todas as
esferas do direito – da dogmática jurídica, mas sim de alinhar aquela doutrina à dupla
função axiológica dos direitos fundamentais, de um lado, como limites de atuação estatal e
de outro, como imperativos de tutela pelo Estado. E é nesse iter, pois, que se enquadra o
princípio da proporcionalidade em sua dupla ótica: como proibição de conduta excessiva
pela atividade estatal (por todos os Poderes do Estado) e, de outra banda, como proibição
de prestação insuficiente do dever de proteção pelo Estado dos direitos fundamentais de
cada pessoa humana.
Nesse sentido, Bonavides esclarece que o fito de tal princípio é instituir a relação entre os fins e os meios, confrontando o fim e o fundamento de uma intervenção com seus efeitos, na busca de um controle do excesso130. Dessa feita, o princípio da proporcionalidade como proibição de excesso encontra a guarida perfeita não só na Carta Constitucional de 1988, como também na sociedade brasileira, dado o regime que vigorou anteriormente àquela.131
Logo, a Constituição Federal de 1988, aliada à consciência do necessário respeito
aos direitos humanos e fundamentais, garantem sua necessária proteção.Nesse sentido, dada
a importância desses direitos, cabe trazer à tona a lição de Grinover, Fernandes e Gomes
Filho acerca do que acarreta, no processo penal, a inobservância aos direitos e garantias
fundamentais, positivados na Carta Magna de 1988:
129 Idem ibidem. p. 176/177.130 BONAVIDES, 1997. p. 357131 Por oportuno, transcreve-se o ensinamento de Giacomolli sobre a “base” do princípio da
proporcionalidade, o qual, “(...) se infere da Constituição Federal da República Federativa do Brasil em um Estado Democrático de Direito (artigo 1º da Constituição Federal) e do estabelecimento de um elenco de direitos e garantias pela Carta Magna (artigo 5º. da Constituição Federal)”. Op. cit. p. 87.
Os preceitos constitucionais com relevância processual têm a natureza de normas de garantia, ou seja, de normas colocadas pela Constituição como garantia das partes e do próprio processo. (...)Contraditório, ampla defesa, juiz natural, motivação, publicidade etc. constituem, é certo, direitos subjetivos das partes, mas são, antes de mais nada, características de um processo justo e legal, conduzido em observância ao devido processo não só em benefício das partes, mas como garantia do correto exercício da função jurisdicional. Isso representa um direito de todo o corpo social, interessa ao próprio processo para além das expectativas das partes, e é condição inafastável para uma resposta jurisdicional imparcial, legal e justa. Nessa dimensão garantidora das normas constitucionais-processuais, não sobra espaço para a mera irregularidade sem sanção ou nulidade relativa. A atipicidade constitucional, no quadro das garantias, importa sempre uma violação a preceitos maiores, relativos à observância dos direitos fundamentais e a normas de ordem pública.132
Ou seja, o princípio da proporcionalidade como proibição de excesso, foi
recepcionado não só pela Constituição Federal de 1988, através das garantias
constitucionais de cada cidadão, dentre elas, a garantia ao devido processo legal e à ampla
defesa, mas também pela doutrina e jurisprudência, ao passo que se veda o “excesso”, e que
se interpretam as garantias constitucionais como normas de ordem pública, cuja
inobservância acarretará nulidade absoluta, sem falar na ocorrência (também) de
inconstitucionalidade, a qual na lição de Sanguiné:
Por último, o princípio constitucional da proporcionalidade funciona como pressuposto, critério ponderativo e limite da prisão provisória. (...) Uma nota essencial do subprincípio da idoneidade, que compõe o princípio constitucional da proporcionalidade, se refere ao controle do desvio do poder. Isso implica examinar a verdadeira intenção do Juiz, do Promotor ou do Policial, que adota a medida no caso concreto, de maneira que não podem perseguir ditos órgãos uma finalidade distinta da prevista em lei, amparando-se precisamente nesta “norma de cobertura” para defraudar o direito fundamental. Portanto, desde a perspectiva do princípio da proporcionalidade não há espaço lógico para o “fundamento apócrifo” do clamor público, nem mesmo quando retoricamente o discurso jurídico procura inseri-lo no indeterminado conceito da ordem pública. Quando esta medida está dirigida à consecução de fins não previstos pela norma
132 GRINOVER, Ada. FERNANDES, Antonio Scarance. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 7 ed. rev e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 24
habilitadora da ingerência, há de ser considerada inconstitucional, por vulneração do princípio de proibição de excesso.133
De outra banda, não se pode esquecer que a sociedade como um todo tem o direito à
liberdade, à segurança, à vida, à dignidade. Nesse passo, retoma-se o disposto no artigo 2o,
da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789, “O fim de toda a associação
política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são
a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Interessa aqui, no que
toca à conservação da segurança, bem como à proteção dos direitos fundamentais, em
virtude dos papéis que eles desempenham no atual modelo de Estado, expostos no primeiro
capítulo do presente trabalho.
Nesse sentido, é precisa a observação de Sarlet quanto à outra face do princípio da
proporcionalidade, relacionada à proibição de insuficiência:
(...) Por outro lado o Estado – também na esfera penal – poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É nesse sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot). 134
133 SANGUINÉ, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva. In: SCHECAIRA, Sérgio Salomão (org.) Estudos Criminais em Homenagem a Evandro Lins e Silva (Criminalista do Século). São Paulo: Método, 2001. p. 295
134 Op. cit, 2004, p. 98 – sem grifos no original.
Hodiernamente, há no direito penal, uma maximização das garantias dos autores de
delitos, ainda que a Constituição Federal seja um exemplo de garantias e direitos
individuais, ainda que a inobservância destes ocasione a nulidade de todo o processo penal,
ou seja, a garantia já existe, Constitucionalmente. Diante disso, entende-se pela necessidade
da transição do paradigma liberal-individualista para as noções de comunitarismo-social
que permeia a atual Carta Magna Brasileira.
O argumento repisado de que não se pode vedar a liberdade de um homem em
detrimento dos interesses da maioria, veemente utilizado por alguns setores que
permanecem no paradigma “antigo”135 deve ser visto no contexto global da sociedade em
que este mesmo indivíduo se enquadra, sob pena até mesmo de afronta ao princípio da
igualdade, no momento em que, o autor de um delito não pode ser privado de sua liberdade,
mas o que se vê é que a sociedade tem se privado de sua própria liberdade em virtude da
insegurança causada pelo fato de que os autores dos vários delitos estão soltos nas ruas,
muitas vezes pelo argumento de que “não se pode privar o homem de sua liberdade, em
virtude dos interesses da maioria”. O problema é que o “interesse da maioria” nada mais é
do que a pretensão de cada indivíduo de ter sua dignidade humana garantida e seus direitos
fundamentais assegurados.
Nesse estado de coisas, cabe a indagação acerca do porquê do rompimento com o
princípio constitucional da igualdade, aplicando o garantismo penal de Luigi Ferrajoli
somente para uns, em detrimento de uma grande maioria? Ou seja, da aplicação do
garantismo penal somente em sua face negativa? Advoga-se aqui o garantismo penal, tal
como proposto por Ferrajoli, com aplicação de maneira uniforme, para todos, garantindo os
direitos fundamentais de todos, e não só daqueles contra quem o Estado exerce uma
135 A expressão “antigo” é utilizada justamente para demonstrar que o pensamento liberal-individualista não mais se sustenta a partir de do regime jurídico vigente no país, bem como a partir de uma hermenêutica voltada à teoria constitucional e dos direitos fundamentais, seguindo as lições de STRECK, nos artigos já citados, datados de 2004 e 2005.
pretensão punitiva, de forma a constituir um garantismo “positivo”, nas linhas do exposto
por Sarlet136. Discorrendo, aliás, sobre o tema, leciona Streck:
(...) se de um lado o Estado-legislador deve proteger o cidadão contra os excessos/arbítrios do direito penal e do processo penal (garantismo no sentido negativo, que pode ser representado pela aplicação do princípio da proporcionalidade enquanto proibição de excesso – Übermassverbot), esse mesmo Estado não deve pecar por eventual proteção deficiente (garantismo no sentido positivo, representado pelo princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente – Untermassverbo) (...)137
Assim, ao passo que cabe ao Estado a necessária proteção diante de possíveis
exageros do seu setor legislativo – entendido aí o garantismo negativo, proibição de que o
Estado ultrapasse os limites fundamentais (direitos humanos fundamentais) –, deve este
mesmo Estado garantir a proteção aos demais integrantes da sociedade, não mais com
relação ao legislador, mas aplicado na esfera judicial.
Sarlet, ao analisar alguns tópicos da casuística jurídico-penal, aborda a questão da
inconstitucionalidade do instituto da reincidência, abordada no capítulo 3 deste trabalho. Na
esfera da proibição de insuficiência, explica o doutrinador que a simples declaração de
inconstitucionalidade do instituto, sem uma correspondente alternativa, poderia “contribuir
no mínimo para estimular uma reiteração na prática delitiva, ainda que esta linha
argumentativa certamente esteja a reclamar maior desenvolvimento”138.
Comentando a decisão citada em seu artigo139, manifesta o autor sua inconformidade
com a aplicação feita, em virtude da mesma ir de encontro ao princípio da
136 Op. cit. março-abril, 2004, p. 97/122.137 Trecho do parecer proferido, 2004, p. 8 – grifos no original.138 Op. cit. março-abril 2004, p. 113/114139 Informa o doutrinador que o teor da apelação não foi publicado (março-abril, 2004, p. 115, nota 123).
proporcionalidade140. E conclui sua exposição advogando no sentido de que o princípio da
proporcionalidade deve ser compreendido na sua dupla acepção, em virtude de que ambas
guardam ligação direta com as noções de equilíbrio e necessidade. 141
Expostas tais considerações sobre questões que envolvem a aplicação do direito
penal com feição liberal-iluminista, bem como deduzidos os motivos pelos quais é
necessária uma nova fórmula de se interpretar o direito (utilizando-se de “lentes
constitucionais”) a fim de que não sejam esquecidos os papéis dos direitos fundamentais no
Estado Democrático de Direito, é possível adentrar na análise de alguns casos práticos
sobre o tema da aplicação do “garantismo negativo,” bem como com o intento de
demonstrar ser possível a aplicação de uma teoria interpretativa calcada no garantismo
positivo tal como acima exposto, sem cair em reducionismos ou possíveis arbitrariedades,
como temem alguns expoentes da doutrina. Afinal, como reiteradamente enunciado no
decorrer do presente trabalho a realidade política-social e jurídica no Estado Brasileiro hoje
é diversa daquela realidade constante quando (até mesmo) do surgimento do princípio da
proporcionalidade, impondo-se uma readaptação na forma hermenêutica de interpretação
das normas infraconstitucionais
140 Op. cit. março-abril, 2004, p. 116141 Idem ibidem, p. 122.
3. PROPOSTA PARA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO
DA PROPORCIONALIDADE ENQUANTO PROIBIÇÃO DE
INSUFICIÊNCIA NA CASUÍSTICA PENAL
Conforme visto nos capítulos anteriores, o atual modelo de Estado impõe ao
intérprete do Direito a necessidade de proteção eficiente dos direitos fundamentais, uma
vez que eles são o norte e o fim do ordenamento jurídico. Atualmente, não importa somente
ser a lei formalmente válida, ela deve ser, também, materialmente válida, cujo controle
pode ser auferido através da interpretação conforme a Constituição, da declaração de
inconstitucionalidade em sede de controle difuso, do ajuizamento da ação declaratória de
inconstitucionalidade pelos seus legitimados, entre outras formas previstas no texto
Constitucional142.
Em virtude da expressividade, traz-se à leitura trecho de trabalho escrito por Streck
e Feldens acerca da ligação imprescindível entre o direito penal e o direito constitucional:
A compatibilização do Direito Penal no ambiente constitucional em absoluto afasta-o das sólidas bases dogmáticas que o sustentam (notadamente, sua utilização como extrema ratio). Como afirma BRICOLA, tendo em vista a relevância da liberdade pessoal – valor sempre assentado com proeminência nas Constituições democráticas – pode-se hoje dizer, com maior consciência constitucional, que a sanção penal pode ser adotada somente na presença da violação de um bem que, ainda que não ostentando igual estatura ao bem sacrificado (liberdade pessoal) pelo menos esteja dotado de previsão constitucional.
142 O tema preciso sobre as formas de controle de constitucionalidade das leis (lato senso), por não ser o foco precípuo do presente trabalho não será abordado de forma ampla. Para uma leitura mais acurada sobre o tema, remete-se a STRECK, op. cit. 2002. p. 361 et seq.
Impende-nos, pois, imergir integralmente o Direito Penal no ambiente constitucional, reconhecendo-lhe simetricamente, a partir desse lócus político-normativo – ou seja, em face das implicações inerentes ao modelo de Estado Social e Democrático de Direito e dos valores constitucionalmente positivados, muito especialmente a partir da dignidade humana –, fontes e limites à sua operacionalização (...) (...) não há duvida de que as baterias do Direito Penal do Estado Democrático de Direito devem ser igualmente direcionadas para o combate dos crimes que impedem a realização dos objetivos constitucionais do Estado e daqueles que atentam contra os direitos fundamentais, bem assim os delitos que afrontam bens jurídicos inerentes ao exercício da autoridade do Estado e a dignidade da pessoa, isso sem falar nos bens jurídicos de índole transindividual.143
Como bem expuseram os autores, na realidade, os direitos fundamentais tanto em
sua perspectiva subjetiva quanto em sua perspectiva objetiva constituem-se em “limites” a
todas as esferas do poder estatal, e não somente ao intérprete do direito. Dessa feita, quando
o limite vem a ser ultrapassado por uma das esferas de Poder, ao intérprete do direito
(mediante a provocação do Poder Judiciário) cabe adequar a atuação estatal, de modo que,
por exemplo, se uma lei fere um direito fundamental, será possível, se a ação for intentada
individualmente, declarar a inconstitucionalidade da lei, em controle difuso (pelo
respectivo órgão do Poder Judiciário) para fins de suspender a aplicação naquilo que é
contrário ao direito fundamental.
Dessa feita, tendo como norte a proteção dos direitos fundamentais, com base numa
proibição de excesso por parte do Estado para com o indivíduo, e também com base numa
proibição de insuficiência, por parte desse mesmo Estado com o fito de proteger os direitos
fundamentais de cada pessoa humana, passa-se a traçar algumas considerações sobre a
reincidência, seu fundamento, os posicionamentos jurisprudenciais e a possibilidade de uma
terceira via, essa com escol no princípio da proporcionalidade em seu duplo viés.
143 STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 35/36 e p. 42 –, todas com grifos no original.
3.1 Reincidência – notas introdutórias
A reincidência está prevista no artigo 61, inciso I do Código Penal como
“circunstância agravante”, ou seja, presente no processo, será valorada na segunda fase da
aplicação da pena. Dispõe o artigo 63 do referido Diploma Legal que a reincidência é
constatada quando o agente comete um novo delito, depois do trânsito em julgado da
sentença, que no País ou no estrangeiro o tenha condenado por delito anterior.
A par disso, percebe-se que o primeiro requisito para aferir a agravante em comento
é o cometimento de um novo delito, após o trânsito em julgado de uma sentença penal
condenatória em desfavor da pessoa autora do fato delituoso por crime praticado antes
daquele que está em julgamento. Esta é, aliás, a lição de Nucci ao conceituar o instituto
“[reincidência] é o cometimento de uma infração penal após já ter sido o agente condenado
definitivamente, no Brasil ou no exterior, por crime anterior.” 144
Dessa feita, percebe-se que o critério inicial para a verificação da reincidência é uma
sentença penal condenatória, com trânsito em julgado, por crime praticado anteriormente
àquele em análise pelo Judiciário, ou seja, trata-se de critério objetivo.
Em seguida, a Lei Material Penal aborda um segundo critério, de feição temporal,
denominado no meio jurídico como “qüinqüênio depurador”, ou seja, segundo a regra do
artigo 63 da mencionada Lei,
Para efeito de reincidência:I) não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos,
144 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 5 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 350.
computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação; (...)
Pela leitura do inciso supra transcrito, vê-se que há um prazo dentro do qual se pode
considerar a reincidência como agravante, qual seja, cinco anos contados da extinção ou
cumprimento da pena. Nessa seara, Nucci sustenta que não se trata de decair a reincidência,
e sim a própria pena, diante do fato que aquele que comete apenas um delito na vida,
passado o qüinqüênio, não poderá mais ser considerado reincidente.145
Sob esse ponto de vista legislativo, percebe-se que o instituto da reincidência,
diferentemente da circunstância judicial antecedentes, prevista no artigo 59 do Código
Penal não deixa uma “pecha eterna na vida da pessoa que sofreu um processo penal”, uma
vez que aquela tem expressamente previsto um lapso temporal dentro do qual poderá ser
valorada, ao contrário dos antecedentes, que não têm “prazo de duração”, sendo auferidos
no caso concreto conforme a discricionariedade do julgador.146
145 Idem ibidem p. 352.146 Sobre as espécies de processos capazes de serem considerados como “antecedentes”, o Superior Tribunal
de Justiça tem entendido que somente são capazes de gerá-los aqueles anteriores ao delito analisado, já com sentença condenatória, mas que não sejam capazes de gerar a reincidência, uma vez que, se valorados em ambos os institutos, resultariam na valoração da mesma circunstância, duas vezes, para a condenação, o que é vedado. Exemplificativamente: RECURSO ESPECIAL. PENAL. DOSIMETRIA DA PENA. SENTENÇA CONDENATÓRIA COM TRÂNSITO EM JULGADO. DECURSO QÜINQÜENAL. REINCIDÊNCIA. APLICAÇÃO DO ART. 64, INCISO I, DO CP. UTILIZAÇÃO COMO ANTECEDENTES. POSSIBILIDADE. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA. 1. Não há falar, na espécie, em violação ao art. 59, do Código Penal, porquanto o Juízo da condenação, ao elevar a pena-base acima do mínimo legal, amparou-se na reprovabilidade da conduta do Réu e no seu antecedente desfavorável, decorrente de sentença condenatória transitada em julgado que, em virtude do período depurador de cinco anos estabelecido pelo art. 64, inciso I, restou incapaz de constituir reincidência. Precedentes do STF. 2. Divergência jurisprudencial não demonstrada, diante da ausência de similitude fática entre o aresto vergastado, que fundamenta os maus antecedentes em condenação transitada em julgado há mais de cinco anos - o que, por si só, já afasta qualquer possibilidade de violação ao princípio da inocência -, e o acórdão paradigma, que considera não ser possível a agravação da pena-base em face, apenas, da existência de inquérito policial. 3. Recurso não conhecido. (REsp 588989/SP; 2003/0156993-1. Rela. Ministra Laurita Vaz. 5a Turma do STJ. j. 16/09/2004. Data da publicação: DJ 18.10.2004 p. 325 – sem grifos no original)
Inobstante tratar-se o tópico sobre a reincidência, é oportuno trazer à baila o
ensinamento de Lopes Júnior a respeito dos antecedentes criminais como fatores de análise
(para aumentar a pena acima de seu mínimo legal) da primeira fase de aplicação da pena,
uma vez que os antecedentes gerariam um caráter de estigmatização do indivíduo, fazendo
o autor analogia à teoria do “etiquetamento”,147 que seria um dos efeitos do processo penal.
Na dicção do doutrinador,
a pessoa submetida ao processo penal perde sua identidade, sua posição e respeitabilidade social, passando a ser considerada desde logo como delinqüente, ainda antes mesmo da sentença e com o simples indiciamento. Em síntese, recebe uma nova identidade, degradada, que altera radicalmente sua situação social.148
Na mesma esteira, Bueno de Carvalho e Carvalho sustentam a desconstrução do
instituto dos antecedentes diante do princípio da secularização, uma vez que se
consubstancia, aliada à circunstância da conduta social do agente (ambas previstas no artigo
59 do Código Penal) reforçar-se-ía ainda mais a culpabilidade do autor, em detrimento da
culpabilidade do fato.149
Retomando a questão em torno da reincidência, é importante ressaltar que a doutrina
e a jurisprudência divergem acerca de sua aplicabilidade, não só pela presença do vocábulo
“sempre” no caput do artigo 61 do Código Penal, bem como pela discussão em torno da
(in) constitucionalidade do instituto frente à Carta Constitucional de 1988, temas que serão
abordados, ainda que de forma incipiente, logo a seguir, sendo importante, dessa forma,
147 A denominada labelling approach, sobre a qual se remete a BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Renavan – Instituto Carioca de Criminologia, 2002. (Pensamento Criminológico).
148 LOPES JÚNIOR, op. cit. 2003. p. 56.149 BUENO DE CARVALHO, Amilton. CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2 ed, ampl. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. p.53. Anota-se que os doutrinadores em comento também são contrários ao reconhecimento da reincidência, conforme se verá a seguir.
uma noção acerca do que significa (não como fundamento, símbolo, mas tão somente como
expressão) a agravante da reincidência.
Por fim, cabe ressaltar que o posicionamento do Egrégio Superior Tribunal de
Justiça inclina-se no sentido de aplicar a agravante da reincidência, sob pena de
descumprimento de lei federal cogente, haja vista o disposto no artigo 61, caput, do Código
Penal Brasileiro.150
3.2 Posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais contrários ao reconhecimento da
agravante da reincidência.
Cônsono exposto anteriormente, não há na doutrina nem na jurisprudência um
consenso sobre a aplicabilidade ou não da agravante da reincidência. Nesse tópico,
pretende-se abordar o posicionamento de alguns autores sobre a matéria, bem como trazer à
colação alguns excertos jurisprudenciais do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, em especial, de sua Quinta Câmara Criminal, pioneira jurisprudencial na classificação
da reincidência como inconstitucional, apoiando a sua inaplicabilidade.
3.2.1 Aspectos trabalhados pela doutrina
Inicialmente, cabe fazer uma referência acerca da “punibilidade” pela prática de um
delito, verificada mediante um processo penal onde foram respeitados os princípios
150 Exemplificativamente, os precedentes: REsp 810380/RS. 2006/0003550-1. Rel. Ministra LAURITA VAZ. 5a Turma do STJ. j. 17/08/2006; HC 17.871/RJ, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ de 04/02/2002.
constitucionais, em especial o contraditório e a ampla defesa, punibilidade essa, segundo
Boschi, no sentido de um direito penal do fato (e não do autor – até porque a defesa de um
direito penal do autor vai de encontro aos próprios fins a serem almejados pelo garantismo),
Sem nenhuma pretensão de, com as respostas, dar o problema por resolvido, queremos registrar nossa adesão à corrente que propõe a punibilidade pelo que o agente fez, e não pelo que ele é ou pensa, para não termos que renegar a evolução do direito penal e retornarmos ao tempo em que os indivíduos eram executados porque ousavam divergir.151
Relativamente ao denominado “direito penal do autor”, Zaffaroni e Pierangeli traçam
considerações, as quais, por serem esclarecedoras, merecem vir à tona, a fim de verificar
a diferença entre aquela espécie de direito penal e o atual “direito penal do fato”:
(...) em sua manifestação extrema, é uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma “forma de ser” do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva. O ato teria valor de sintoma de uma personalidade: o proibido e reprovável ou perigoso, seria a personalidade, e não o ato. Dentro desta concepção não se condena tanto o furto, como o “ser ladrão”, não se condena tanto o homicídio como ser homicida, o estupro, como o ser delinqüente sexual, etc.152
Tal noção acerca das acepções “direito penal do autor” e “direito penal do fato” é
importante a fim de que se possa expor e compreender o porquê das críticas tecidas por
parte da doutrina e da jurisprudência sobre a reincidência, bem como os motivos pelos
quais é invocada a inconstitucionalidade do instituto.
151 BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 3 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p.212.
152 ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito pena brasileiro: parte geral. 4 ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 118
Para Zaffaroni e Pierangeli, o instituto da reincidência, tal como exposto pela
doutrina, não se coaduna com um modelo de Estado Democrático de Direito, em virtude do
fundamento do instituto. Tais autores, traçam vários posicionamentos doutrinários que
procuram (procuraram) explicar o por quê do agravamento da pena pela presença da
reincidência, concluindo, na análise de cada um deles, pela inconstitucionalidade da
agravante em comento em virtude da proibição do bis in idem. Dada a importância, traz-se
à colação a síntese de cada uma das “respostas” trabalhadas pelos autores:
a) A mais difundida (...) é que a reincidência demonstra uma maior periculosidade da pessoa. (...) Todavia, a periculosidade, no caso de se poder valorá-la, constitui um juízo fático, e por conseguinte, jamais poderia ser presumido jure et de jure, porque se assim fosse, estabeleceria a presença de um fato quando o fato não existe, e isso na ciência jurídica, não se denomina “presunção” e sim “ficção”.153
Acredita-se ser pertinente a observação dos autores quanto a possível fundamento
acerca da reincidência, uma vez que tal vai de encontro aos elementos basilares do Estado
Democrático de Direito, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana. Diz-se isso
porque, quando uma pessoa é submetida ao processo penal, até advir uma sentença penal
condenatória é ela considerada inocente, por força do princípio constitucional da presunção
de inocência, não sendo admitido, por certo, que a possível prática de um delito por ela,
após a existência de uma sentença penal condenatória transitada em julgado anterior ao fato
em julgamento, por si só, tenha o condão de considerar tal pessoa como “perigosa”154.
Não bastasse isso, pelo princípio da secularização, na seara do direito penal,
dissocia-se a conduta “moral” da conduta “penal”, vale dizer, a pessoa submetida ao
processo penal é julgada por um fato, em tese, cometido por ela e não pelo seu
153 ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. V.1. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 716/719.
154 O próprio vocábulo “perigosa” não encontra guarida no direito penal contemporâneo, justamente por remeter ao já abandonado “direito penal do autor”.
comportamento social, razão pela qual, inclusive, diversos magistrados deixam de
considerar, por exemplo, na primeira fase da aplicação da pena questões atinentes à
“personalidade do agente”.155 A respeito do princípio da secularização cabe referir o
ensinamento de Bueno de Carvalho e Carvalho, segundo os quais:
Advogamos que o princípio está incorporado em nossa realidade constitucional, não sendo dedutível dos demais valores e princípios, mas sendo ‘o’ princípio do qual aqueles são dedutíveis. Nesse sentido, a categoria corresponde a um dos núcleos substanciais do ordenamento jurídico, juntamente com os preceitos preambulares da Constituição (o pluralismo, a fraternidade, o pacifismo e a igualdade) e os ‘fundamentos’ estabelecidos no artigo 1o. (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, pluralismo político). Tais princípios ou valores constitucionais, sedimentam os pilares axiológicos sob os quais está fundada a República, conformando a estrutura jurídica basilar do Estado, diluindo e contaminando sua carga valorativa às demais esferas normativas. 156
Retomando o raciocínio de Zaffaroni e Pierangeli, há uma segunda “resposta” para
explicar o porquê da reincidência, a saber, “b) (...) dentro da teoria psicológica da
culpabilidade, sustentou-se que a reincidência demonstrava uma decisão da vontade do
autor mais forte ou dotada de maior permanência.”157 Os autores ora mencionados
rechaçam tal assertiva na medida em que pode ocorrer, por exemplo, que o delito posterior
seja de espécie diversa do delito anterior, o que não desaguaria em uma “vontade mais
forte, ou de maior permanência”, também colocam como motivo a possibilidade da
condenação anterior reforçar tal idéia.
155 Exemplificativamente: Ação Penal no 2.06.0010420-7, 1a Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre/RS, publicada em 27/06/2006, Juíza Prolatora: Katia Elenise Oliveira da Silva; Ação Penal no
2.05.0767837-1 , 1 a Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre/RS, publ icada em 10/07/2006, Juiz Prolator: Márcio André Kepler Fraga e Ação Penal n o . 2.06.0049586-9, 1a Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre/RS, publicada em 19/09/2006, Juiz Prolator: Laércio Luiz Sulczinski.
156 Op. cit. p. 15/16157 Op. cit. p. 717.
Finalizando a exposição do tema, expõem Zaffaroni e Pierangeli outras duas
assertivas, ambas fulcradas na culpabilidade do agente:
c) (...) dentro da teoria normativa da culpabilidade, entende que se a anterior condenação não foi suficiente para reforçar os mecanismos de contramotivação do autor, faz-se necessário reforçar a condenação pelo segundo delito. Esta teoria esquece que a mera notificação de uma condenação, sem qualquer cumprimento da pena, não pode contramotivar a ninguém, ressalvada a hipótese de se lhe atribuir efeitos mágicos. (...)d) Dentro dessa mesma corrente da culpabilidade normativa, pode-se falar uma ampla gama de matizes de culpabilidade de autor, isto é, de reprovações da personalidade, do caráter, da “condução de vida”, ou seja, todas consideradas como violações do princípio da legalidade, e do direito penal de ato (...).158
Quanto à última resposta trabalhada por esses autores, crê-se ser a mesma
inadequada, na linha do que exposto por aqueles, uma vez que o direito penal vigente pune
aquele que pratica um delito não pela pessoa que ela é (traços de personalidade que possui,
por exemplo e sua conduta social) mas sim pelo fato que praticou. Nesse sentido, verifica-
se a integração do que poderíamos chamar de binômio: princípio da secularização (que
determina a dissociação entre o direito e a moral) e direito penal do fato.
Ainda no que diz à crítica do instituto em virtude do mesmo desaguar no
abandonado “direito penal do autor”, cabe colacionar o lecionado por Streck, ao criticar o
instituto da reincidência:
No nosso Código Penal, a reincidência, além de agravar a pena do (novo) delito, constitui-se em fator obstaculizante de uma série de benefícios legais, tais como a suspensão condicional da pena, o alongamento do prazo para o deferimento da liberdade condicional, a concessão do privilégio do furto de pequeno valor, só para citar alguns. Esse duplo gravame da reincidência é antigarantista, sendo, à
158 Idem ibidem. p. 719.
evidência, incompatível com o Estado Democrático de Direito, mormente pelo seu componente estigmatizante.159 (sic)
Para além da preocupação com o fator “estigmatização”, denota o autor a preocupação
com os “efeitos” gerados pela reincidência, como, por exemplo, impedir a substituição
da pena privativa de liberdade imposta por uma pena restritiva de direitos, apenas para
citar um exemplo.
Além disso, vê-se a preocupação existente quando abordado o aspecto de
consideração dos antecedentes, qual seja, com o caráter de “estigmatização”, de
etiquetamento da pessoa submetida ao crivo do Poder Judiciário na esfera criminal – como
reincidente, conhecido “delinqüente” contumaz na prática de delitos, para citar algumas das
etiquetas atribuídas.
Ou seja, a observação feita inicialmente sobre a distinção: direito penal do fato
versus direito penal do autor encontra aqui seu fundamento, na medida em que as críticas
apresentadas até o momento residem nos fundamentos concebidos para explicar a
reincidência, uma vez que todos levam em consideração aspectos subjetivos, e não
objetivos, o que na linha de um garantismo tal como sugerido por Ferrajoli, não seria
cabível numa estrutura onde vige o modelo de Estado Democrático de Direito.
De outro lado, Carvalho, ao dissertar sobre a reincidência, tece a ela uma crítica
funcional, à qual também circunda a “taxação” daquele que está no pólo passivo de uma
demanda processual penal, a saber,
159 STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. 4 ed. rev. e modificada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 71.
O rótulo da reincidência estabeleceria papéis e estigmas – perverso, inadaptado, perigoso, hediondo – gerando expectativas do público que consume o sistema penal. Tal expectativa atua nitidamente como influência, potencializando o comportamento futuro como ‘reincidente’. Criar-se-iam novos status nas relações em sociedade, e o ‘crime’ é também um status (negativo), que tendem a negar a finalidade oficial da pena – ressocialização.160
Nessa esteira, Streck expõe o entendimento de Zaffaroni, relembrando que, se o
direito penal perquire punir o autor de um delito pelo que fez e não por quem é, o instituto
da reincidência traduzir-se-ia numa incongruência para um direito penal no contexto de
vigência de um Estado democrático de direto; ainda afirma que tal valoração iria de
encontro ao princípio denominado “intangibilidade da consciência moral da pessoa.”161 Tal
entendimento também tem a colaboração de Bueno de Carvalho e Carvalho, os quais
ensinam que a natureza da reincidência, e a argumentação no sentido de maior penalização,
são frutos criminológicos “de autor” e em teorias dogmáticas baseadas “nas noções de
periculosidade social e/ou patologia individual.”162
Oportuno, ainda, expor o posicionamento de Nassif, que num primeiro momento
entendia pela aplicabilidade da reincidência com fundamento numa “especial carga de
culpabilidade”, mas que, refletindo sobre a matéria, com base em ensinamentos
psicológicos (aspectos psicológicos da reincidência), bem como na estrutura do Estado de
Direito, passou a entender pela inaplicabilidade do instituto, dada sua
inconstitucionalidade,e, por conseguinte, seguindo a linha trabalhada pelos doutrinadores
acima. Conclui o Autor sublinhando que “A pena é um mal necessário. A reincidência não.
Sem função teleológica, sem aplicação agravante. Nada a justifica.”163
160 CARVALHO, Sala de. Reincidência e antecedentes criminais: abordagem crítica desde o marco garantista. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre: Nota Dez/ ITEC, 2001.p.02
161 STRECK, op. cit. 2001, p. 71162 Op. cit. p.64.163 NASSIF, Aramis. Reincidência: Necessidade de um Novo Paradigma. In: Direito Penal e Processual
Penal: uma abordagem Crítica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. p. 195/213.
Conforme o exposto, é possível concluir que a principal aversão ao instituto da
reincidência reside nos efeitos que seu reconhecimento causará na vida social do indivíduo
“etiquedado” como reincidente. Além disso, haveria o cunho de inconstitucionalidade,
diante dos argumentos de que se trataria de bis in idem, assunto suscitado por Streck164,
bem como por Carvalho, o qual atenta para o fato de que toda a agravação da pena, assim
como a negativa de direitos em virtude da reincidência, constitui afronta ao princípio do
non bis in idem, resultando de tal aplicação uma incongruência entre o instituto
(reincidência) e a intangibilidade da coisa julgada, prevista no artigo 5o, inciso XXXVI, da
Constituição Federal de 1988165.
Para finalizar, menciona-se que Zaffaroni e Pierangeli são categóricos ao afirmar
que “em toda a agravação de pena pela reincidência existe uma violação do princípio non
bis in idem.”166. E mais, acerca da inconstitucionalidade deste instituto, lecionam: “(...) a
agravação pela reincidência não é compatível com os princípios de um direito penal de
garantias, e a sua constitucionalidade é sumamente discutível”. 167
Expostas essas observações preambulares a respeito da crítica em torno da
reincidência, é possível passar à abordagem de alguns posicionamentos da jurisprudência
gaúcha nessa matéria.
3.2.2 Posicionamentos jurisprudenciais acerca da inaplicabilidade da reincidência –
julgados da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
164 STRECK, op. cit. 2001, p. 72165 Op. cit. p. 09166 Op. cit. 2002, p. 840167 Op. cit. 2002, p. 841.
Pioneiros na inaplicabilidade da agravante da reincidência, os Desembargadores da
Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul compartilham da
preocupação da doutrina exposta acima acerca da estigmatização da pessoa que está
figurando como acusada no processo penal pela prática, em tese, de um delito.
O Desembargador da Quinta Turma do Tribunal em comento, Amilton Bueno de
Carvalho, constrói seu entendimento168 pela inaplicabilidade da reincidência por entender
que ela constitui bis in idem, e como tal o condenado pela prática de um delito responderia
pelo que ele é, e não pelo ato que praticou, o que implicaria retorno ao já démodé direito
penal do autor. Entende o eminente Desembargador que a reincidência, ao lado dos
antecedentes criminais “fazem vigorar o não-democrático direito penal do autor e implicam
em indisfarçável bis in idem.”169
Nesse passo, cabe relembrar algumas lições trazidas por Ferrajoli, como, por
exemplo, a necessária distinção pregada pela teoria garantista estruturada pelo doutrinador
italiano entre o direito e a moral, bem como ao princípio da estrita jurisdicionariedade,
segundo o qual o julgador deve aplicar o direito ao caso concreto, não punindo o autor pelo
que é, mas punindo-o pelo que efetivamente fez – atitude, previamente tipificada pela
legislação penal como delito, o qual feriu determinado bem jurídico tutelado pelo Estado.
A Desembargadora Genacéia da Silva Alberto trabalha, expondo que a reincidência
quando importa maior culpabilidade, influindo, dessa forma, na fixação da pena-base, não
pode ser, novamente, utilizada para caracterizar a agravação da pena em sua segunda fase
(a teor, aliás, do constante no verbete no. 241, da súmula do Superior Tribunal de Justiça),
afastando, dessa feita, a incidência da agravante em comento.170 A título ilustrativo, traz-se 168 Exemplificativamente, os precedentes, todos de relatoria do Des. Amilton Bueno de Carvalho, da 5a
Câmara Criminal do TJRS: Ap. Crim. 70010771392, julgado em 06/04/2005; Ap. Crim. 70010811503, julgado em 30/03/2005; Ap. Crim. 70015045347, julgado em 19/07/2006 e Ap. Crim. 70015707581, julgado em 26/07/2006.
169 Trecho extraído do corpo do voto proferido na Ap. Crim. no 70011717642, 5a Câmara Criminal do TJRS, rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho. j. 22/06/2005.
170 Afora o precedente cuja ementa já restou transcrita acima, exemplifica-se o posicionamento da Desembargadora nos seguintes processos em que foi relatora na 5a Câmara Criminal do TJRS: Ap. Crim.
a ementa de um dos processos consultados para estudar o posicionamento da
Desembargadora:
FURTO. Se a prova colhida não deixa dúvida acerca da materialidade e autoria do delito, cumpre manter a condenação do réu. REINCIDÊNCIA. Importa culpabilidade intensificada e por isso reflete na fixação da pena-base, não podendo ser valorada novamente como agravante, por aplicação da Súmula 241 do STJ. EMPREGO DE CHAVE FALSA. Se a prova deixa dúvida, não se aplica a qualificadora. Desclassificação do delito para furto simples. Pena de reclusão redimensionada. APELO PARCIALMENTE PROVIDO.171
Já o Desembargador Aramis Nassif trabalha a questão do ponto de vista teleológico,
expondo que em se tratando da reincidência, é preciso que se reflita sobre os fins da pena,
relacionando-os com o indivíduo, aquele atingido pela sanção penal. Nesse íter, expõe o
Desembargador e Doutrinador que a pena tem como finalidade teórica a recuperação do
agente, tendo um significado maior do que somente evitar a reincidência.Contudo, adverte
que a sanção não pode cumprir sua função, impondo-se aí o questionamento acerca do por
quê do acréscimo pela reincidência na segunda fase de aplicação da pena. Concluindo pelo
fato de que, se não há a função teleológica, vale dizer, se a pena não “ressocializa” e não
contribui para a reinserção do indivíduo na sociedade, não há fundamento para aceitar a
aplicação da reincidência. Ademais, acrescenta Nassif que aliada à ausência de função
teleológica na aplicação da reincidência, há também sua inconstitucionalidade por bis in
idem.172
70011746476, julgado em 31/08/2005; Ap. Crim. 70014717185, julgada em 28/06/2006 e Ap. Crim. 70008503922, julgado em 16/03/2005.
171 Ap. Crim. 70011117728, julgada em 27/04/2005.172 Precedentes consultados a título de estudo para a transcrição da conclusão em comento, além do já
colacionado acima, todos da 5a Câmara Criminal, nos quais foi relator o Desembargador Aramis Nassif: Ap. Crim. 70007004245, julgada em 15/10/2003; Ap. Crim. 70006861157, julgada em 26/11/2003; Ap. Crim. 70007242688, julgada em 26/11/2003; Ap. Crim. 70008100984, julgada em 14/04/2004; Ap. Crim 70008302739, julgada em 19/05/2004; Ap. Crim. 70008551400, julgada em 03/08/2004; Ap. Crim. 70006118749, julgada em11/08/2004; Ap. Crim 70008417404, julgada em: 11/08/2004; Ap. Crim. 70013038930, julgada em 04/01/2006.
Pela expressividade do raciocínio, traz-se a comento o trecho de um dos acórdãos de
relatoria do Desembargador Aramis para demonstrar seu posicionamento em desfavor da
reincidência:
1. ROUBO. BEM JURÍDICO, PATRIMÔNIO; POSSE CIVIL. TUTELA APENAS A POSSE. REGRAS DE CONSUMAÇÃO EQUIVOCADAS COM A APLICAÇÃO DE DIREITO CIVIL NO DIREITO PENAL; 2. ROUBO E PORTE DE ARMA. SUBSUNÇÃO. 3. APENAMENTO. REAÇÃO PUNITIVA, INSUFICIENTE PARA EXASPERAR. 4. MAJORANTES: NÃO BASTA A QUANTIDADE. QUALIDADE CONSIDERADA. 5. REFORMATIO IN MELLIUS. POSSIBILIDADE. REINCIDÊNCIA. INAPLICABILIDADE PARA EXASPERAR A PENA. 6. REGIME CARCERÁRIO. REINCIODENTE. REGIME MAIS GRAVOSO.(...)3. A pena não deve estar imbuída apenas de carga retributiva, sob perigo de desrespeito aos ditames do Direito Penal Democrático. É inadmissível que, sob influência dos vetores da “reação punitiva”, os operadores do direito venham agravar ainda mais as conseqüências estigmatizantes inerentes à condenação penal. 4. Não basta a quantidade de majorantes – na hipótese a pluralização foi mínimo – mas sim e também a qualidade das mesmas, onde se possa aferir, para minimizar ou maximizar as conseqüências da exasperação. (...) Se a sanção não pode cumprir sua função, qual a razão do acréscimo pela reincidência? A pena é um mal-necessário. A reincidência não. Sem função teleológica, sem aplicação a agravante. Nada a justifica. Trata-se, pois de desconsiderar a tipificação, ou prévia previsão legal do artigo 61, I, do CP, para o efeito de rejeitar sua aplicação, vez a necessidade de adequação à moderna situação do direito penal. 6. A reincidência, ainda que vedada a exasperação da pena por seu reconhecimento, mormente quando se tratar de reincidente específico, leva, para cumprimento da pena, ao regime carcerário imediatamente mais gravoso ao que seria fixado se inexistisse o gravame. Recurso parcialmente provido, por maioria.173
Com base na jurisprudência supra, percebe-se que a preocupação é não só com o
possível “etiquetamento” do indivíduo, mas também, como ressaltado por Nassif, com a
função final da pena (teoricamente), qual seja, a de ressocializar as pessoas que cometem
delitos. Para além disso, há também uma preocupação com os efeitos que o reconhecimento
da reincidência impõem a pessoa condenada pela prática de um delito, como, por exemplo,
a vedação de substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito
(art.44, II e § 2º do Código Penal), o fato de impossibilitar a concessão de sursis, dilatar o
173 Ap. Crim. 70013370515, 5a. Câmara Criminal do TJRS, julgada em 25/01/2006.
prazo de cumprimento de pena para a obtenção do livramento condicional (art. 83, II do
Código Penal), dilatar o prazo de prescrição executória (art. 110 do Código Material Penal),
apenas para citar alguns.
Verifica-se, dessa feita, que entre os argumentos utilizados pelos desembargadores
supra expostos, se encontram o fato de constituir a reincidência um bis in idem, na medida
em que a pessoa já teria respondido penalmente pelo delito anteriormente praticado. Em
segundo lugar, o argumento de que, por se constituir parte integrante da culpabilidade, não
poderia ser novamente aplicada, uma vez que já teria sido configuradora de uma das
circunstâncias do artigo 59 do Código Penal. E, por fim, o argumento no sentido de que se a
pena (que seria um “mal necessário”) não atinge sua finalidade precípua, não haveria por
que considerar a agravante da reincidência, dados os efeitos que ela traz consigo.
3.3 Proposta de uma terceira via para a fundamentação e a aplicação da agravante da
reincidência
A terceira via que será aqui proposta tem fundamento no fato de que o direito como
um todo tem sua razão de ser na organização da vida em sociedade, seguindo o magistério
de Ráo174. Desde os primórdios, quando o homem começou a viver em sociedade, a dar-se
conta de noções básicas, como respeito ao próximo e à propriedade desse próximo,
convivência entre “tribos”, as condições de vida, enfim, surgiu a necessidade de organizar
todas essas relações de maneira, se possível, uniforme.
Frise-se, nesse contexto histórico, que, com a evolução da sociedade, os
“despertares” do homem para assuntos que até então não eram sequer cogitados como
necessários de proteção legislativa passaram a ser crescentes. Não se esquecendo de que,
“A nossa vida se desenvolve em um mundo de normas. Acreditamos ser livres, mas na 174 Op. cit., p. 49
realidade, estamos envoltos em uma rede muito espessa de regras de conduta que, desde o
nascimento até a morte, dirigem nesta ou naquela direção as nossas ações”, utilizando os
ensinamentos de Bobbio175. Sobre a influência dos valores culturais incorporados pela Carta
Magna, bem como a conseqüência dessa incorporação, lecionam Streck e Feldens:
“(...) é preciso destacar que os valores culturais positivados constitucionalmente formam um conjunto moral e racional poliárquico, em que os direitos básicos de liberdade e a satisfação das necessidades fundamentais não podem compor um quadro de rivalização, como o que ora se constata no âmbito da teoria do bem jurídico de viés liberal e, conseqüentemente, de formulação e incidência da lei penal. É possível afirmar, com razoável firmeza, que há nos processos de criminalização e descriminalização, uma necessidade de harmonização desses valores constitucionalizados, sem perder de vista a importância particularizada de cada um deles para a concretização de um pacto social que não privilegia de forma absoluta a autodeterminação dos indivíduos. Existe este espaço de autodeterminação, mas ele não pode ser considerado desde um enfoque libertarista ou liberalista, nos quais se considera que os indivíduos prescindem de um contexto social para desenvolver e exercer suas capacidades. A autodeterminação, noutro sentido, deve ser conceitualizada desde a consideração de que esta capacidade somente pode ser exercida em um tipo particular de sociedade, com um certo entorno social.” 176
A grande maioria da população tem o discernimento sobre o certo e o errado, ainda
que o certo para um possa constituir-se no errado para o outro. Não é sem motivo que a
Declaração Universal dos Direitos do Homem se 1948, dispõe, em seu artigo 1o. dispõe que
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de
razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”
Para maior precisão do que se está a afirmar, recorre-se à lição de Miranda,
175 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 2 ed. rev. Bauru: EDIPRO, 2003. p. 23/24
176 Op. cit. p. 46
Dotados de razão e de consciência – eis o denominador comum a todos os homens em que consiste essa igualdade. Dotados de razão e consciência – eis o que, para além das diferenciações econômicas, culturais e sociais, justifica o reconhecimento, a garantia e a promoção dos direitos fundamentais. Dotados de razão e de consciência – eis por que os direitos fundamentais, ou os que estão no seu cerne, não podem desprender-se da consciência jurídico dos homens e dos povos. 177
Da relação entre homem e sociedade e da percepção acerca da necessidade de tutela
de “novos”178 bens jurídicos tome-se como exemplo o ramo do direito ambiental: o homem
passa a perceber o excessivo crescimento populacional, e vê-se diante de uma total falta de
infra-estrutura, momento em que se começa a pensar nos problemas que o ser humano está
causando ao meio ambiente. Silva, ao analisar a evolução da legislação ambiental, expõe:
“(...) Só recentemente se tomou consciência da gravidade da degenerescência do meio
ambiente natural, cuja proteção passou a reclamar uma política deliberada, mediante
normas diretamente destinadas a prevenir, controlar e recompor sua qualidade”.179 Como se
percebe, as normas vão se originando pelas necessidades fáticas da sociedade, sempre
fulcradas em valores desta mesma sociedade. Acredita-se que quando as pessoas criticam a
proteção conferida ao direito ambiental via tutela penal, por exemplo, talvez não tenham se
dado por conta da importância do meio ambiente à vida dos seres humanos.
Tal argumentação foi exposta justamente para que se verifique que, na convivência
das pessoas, e num modelo de Estado de Direito, tal como o vigente no Brasil, a regra que
norteia o pensamento jurídico não pode ater-se tão somente ao “individual”, devendo-se ter
em conta, também, a importância dos bens de caráter transindividual.
177MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 3 ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. p. 183 – grifos no original.178 A palavra foi escrita entre aspas a fim de que se atente que vários desses bens, como por exemplo, o meio
ambiente, existem há muito tempo, mas que somente há poucos anos a humanidade despertou para a necessidade das respectivas tutelas.
179 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 4 ed. rev e atual, 2a. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 36
Nesse contexto, a possibilidade da aplicação da reincidência tendo ela como
fundamento o princípio constitucional da igualdade subsume-se a efetivar aquilo que no
capítulo anterior foi chamado de “garantismo positivo”, justamente pelo quadro jurídico
atual, bem como pela necessidade de intervenção estatal a fim de procurar proteger os
direitos fundamentais de toda a pessoa humana (seja de forma individual, seja de forma
transindividual).
Assim, diante da necessidade de um novo paradigma de pensamento, proposto por
Streck como “superação do iderário liberal individualista-clássico”180, propõe-se a aplicação
da reincidência sob o fundamento de respeito ao princípio da igualdade, tendo como
critérios objetivos uma condenação por delito anterior com trânsito em julgado, e o lapso
temporal de 05 (cinco) anos dentro do qual a reincidência pode ser valorada como tal.
Abordando o pensamento sobre o princípio da igualdade, leciona Piazzeta que:
Constata-se, então, que a igualdade entendida como equalização dos diferentes, nas palavras de Bobbio, é um ideal permanente e perene dos seres humanos vivendo em sociedade e jamais, como no século XX, foram postas em discussão as três fontes principais de desigualdade – a raça, o sexo e a classe social.181
No caso em estudo, discute-se a desigualdade existente entre duas pessoas que
estejam sendo processadas, por exemplo, pela prática de um crime, sendo que uma delas é
primária (não reincidente) e a outra possui várias condenações anteriores, todas com
trânsito em julgado e as respectivas penas em andamento. Sob o ponto de vista de Piazzeta,
citando Bobbio, equalizando as diferenças entre essas duas pessoas, percebe-se que para
180 STRECK, Op. cit, 2004.181 PIAZZETA, Naele Ochoa. O princípio da igualdade no Direito Penal brasileiro: uma abordagem de gênero. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 75
conceder a ambas um tratamento isonômico, cada uma recebendo a pena de forma
individualizada, perceber-se-á que a primeira deve ser tratada de forma desigual da segunda
justamente por estar numa posição de desigualdade com àquela.
Isto é, aquele que é reincidente, terá sua pena agravada não porque é “mau” ou
porque tem “personalidade tendente ao crime”, expressões antigamente utilizadas para
justificar a reincidência, mas pelo fato de que tem contra si um processo anterior com
sentença condenatória transitada em julgado, a qual ainda não passou pelo qüinqüênio
depurador.
Ao passo que aquele que não havia cometido delitos anteriormente, ou se por força
de um processo penal restou absolvido, não terá a pena agravada pela reincidência, não
porque ele é “bom”, ou se possui processo transitado em julgado já vencido o qüinqüênio
depurador, porque teria “se regenerado”, mas simplesmente porque os critérios
objetivamente previstos na lei não existem no caso concreto.
Repise-se também que existe um “marco” para o período de reincidência, conforme
o positivado no artigo 64 do Código Penal. Zaffaroni e Pierangeli trazem um referencial
“histórico”, expondo que mencionado dispositivo “elimina o ‘estado de reincidência’
perpétuo, como estatuía o Código de 1940, que mantinha um efeito estigmatizador por toda
a vida da pessoa condenada”, tendo sido introduzido pela reforma ocorrida em 1977,
através da lei 6416/77.182 Ademais, não se pode esquecer dos “requisitos”, por assim dizer,
da reincidência, a saber, a existência de uma sentença penal condenatória anterior ao fato
que está sob juízo, já com trânsito em julgado – não se olvidando, também, o requisito
temporal no que diz aos cinco anos estabelecidos pelo artigo 64 do Código Penal, conforme
supra exposto.
182 Op. cit., 2002, p. 843
Na aplicação do instituto da reincidência leva-se em consideração não a estrutura
pessoal do réu, mas sim o dado objetivo de ter ele cometido um delito anteriormente, pelo
qual foi julgado e condenado por sentença definitiva.
Vale dizer, analisa-se tal condenação conforme o prescrito no Código Penal, a fim
de diferenciá-lo de um outro indivíduo que também está sofrendo um processo penal, cujo
fato pelo qual está em julgamento consiste em fato isolado em sua vida cotidiana. Dessa
feita, aplica-se o princípio da igualdade para tratar de forma diversa pessoas que têm
condutas diversas – uma vez que a reincidência reconhecida influenciará não só na segunda
fase da aplicação da pena, como também em institutos como a progressão de regime e na
impossibilidade de se substituir a pena privativa de liberdade imposta por penas restritivas
de direitos.
Essa é, aliás, a lição de Sarlet ao discorrer sobre a reincidência no quadro jurídico
vigente:
(...) a despeito das fortes e abalizadas razões apresentadas em prol até mesmo da irracionalidade do instituto da reincidência e da sua incompatibilidade com as teses garantistas, não há como reconhecer, por outro lado, que, se o garantismo parte necessariamente do princípio da secularização (inclusive da pena e dos critérios de sua aplicação) e se de fato existem dados estatísticos a demonstrarem que a aplicação do instituto da reincidência como agravante da pena não resultou em índices de criminalidade mais favoráveis, a eleição pelo legislador de um critério objetivo (no caso, a existência de condenação anterior transitada em julgado) e o reconhecido caráter punitivo e preventivo da pena (que, também de acordo com uma leitura garantista e pelo menos num certo sentido, não poderia ter o intento de ressocializar a pessoa humana) acabam até mesmo assumindo em princípio talvez não tão incompatível com as próprias premissas do garantismo, desde que, é claro, devidamente reinterpretado.183
183 Op. cit., 2004, p. 112.
Acredita-se que no momento em que o autor sustenta a reinterpretação do instituto,
tal é baseada, fundamentalmente, nos critérios objetivos por ele apontados, como a
necessidade da existência de uma sentença condenatória, com trânsito em julgado, anterior
ao fato julgado.
Por certo, se levarmos em conta o princípio constitucional da igualdade, de um lado,
e o princípio constitucional da individualização da pena, de outro, perceberemos que a
valoração da reincidência no caso concreto, e diante de situações fáticas que demandem,
repisa-se, a necessidade de uma “desigualdade” para o fim de alcançar a igualdade material,
se constituiria na própria concretização do princípio da individualização da pena, na
medida em que pessoas em situações objetivamente desiguais (reincidente/não reincidente)
teriam um tratamento desigual, para que a pena de uma ou de outra fosse fixada de acordo
com as circunstâncias nas quais cada uma se encontra.
Exemplificativamente, uma pessoa que não é reincidente, num crime sem violência
ou grave ameaça à pessoa, poderá, dependendo o montante da pena a ela imposta, ter a
pena privativa de liberdade substituída pela pena restritiva de direito. Contudo, veja-se, que
tal não ocorre (ou deixa de ocorrer) por ser ela “perigosa ou não” e sim pelo dado objetivo
de não ser ela reincidente – trata-se, reitera-se, de um critério para alcançar a igualdade,
utilizando-se do preceito de que se deve tratar os desiguais de forma desigual, para alcançar
a igualdade no plano fático, material.
Sarlet aponta como outro fator objetivo, e por linha indireta, afasta a alegação de bis
in idem, a circunstância de que “a agravante incide justamente pelo fato da prática de um
novo delito e somente por essa razão”.184 E prossegue o doutrinador explicando sua
posição:
184 Op. cit. 2004, p. 112.
De qualquer modo, não parece necessariamente ilegítimo que um Estado Democrático de Direito, por assumir a condição de garante de bens fundamentais (e bastaria aqui mencionar a dignidade, a vida e a igualdade) de toda e qualquer pessoa humana, possa exigir do cidadão que não viole os direitos fundamentais de seus semelhantes e que, nesta perspectiva, mantenha uma atitude socialmente adequada, respeitando-se, por óbvio, os elementos nucleares de sua própria personalidade.185
Sobre esse assunto, remete-se ao que dito alhures, quando da abordagem do
princípio da proporcionalidade (também) como proibição de insuficiência.
Relativamente ao princípio da igualdade como condição para igualar pessoas que
estão no pólo passivo de uma ação penal, acredita-se que sua concretização pode ser
alcançada através da análise da reincidência, ou não, ou seja, duas pessoas que estejam em
tal situação, sendo uma reincidente e a outra não, a alternativa para tratá-las de forma
materialmente igual, seria desigualá-las na aplicação da pena, não por critérios subjetivos,
como por exemplo, a personalidade do agente ou a conduta social, mas sim pela
reincidência, que baseada em critérios objetivos (coisa julgada de conteúdo condenatório,
penal, anterior ao fato em julgamento e observância do prazo constante no artigo 64, do
Código Penal). A propósito do tema, a lição de Verucci sobre tal situação de igualdade:
“Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam
para que possam ser iguais com direito às suas diferenças específicas é o meio natural para
se alcançar a igualdade.”186
Sobre liberdade e igualdade, aliás, leciona Bobbio: “Liberdade indica um estado;
igualdade uma relação. O homem como pessoa – ou para ser considerado como pessoa –
deve ser, enquanto indivíduo na sua singularidade, livre; enquanto ser social deve estar com
os demais indivíduos numa relação de igualdade.” 187
185 Idem ibidem. p 112/113186 VERUCCI, Florisa. O Direito da Mulher em Mutação – os desafios da Igualdade.Belo Horizonte: Del
Rey, 1999, apud Piazzeta, op. cit, 89.187 BOBBIO, Norberto. Liberdade e igualdade. Trad. PISETTA, Almiro; ESTEVES, Lenira M.R. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1996. p. 07
Transpondo-se a lição do autor até o que foi exposto, percebe-se que, dada a
vigência de um Estado de Direito, dada a nova visão que deve nortear o direito penal, em
atenção aos direitos fundamentais, sua dupla perspectiva, que impõem ao Estado uma
abstenção de se exceder no trato com os indivíduos, e de outro, que impõe um dever de
proteção para com os indivíduos, além da “nova” noção de que a proteção deve se estender
não só no campo individual, mas como também no campo transindividual, a noção de
igualdade deve ser trabalhada de forma a auferir através de dados objetivos se há
necessidade, ou não, da intervenção estatal para deixar as pessoas em condições de
igualdade material – ou seja, de igualdade não só perante a lei, mas de igualdade também
na realidade fática do caso concreto.
3.4 À guisa de finalização
Percebe-se que o atual modelo de Estado pressupõe o respeito ao conteúdo material
dos direitos fundamentais, o qual, quando infringindo, demanda uma resposta proporcional
(no sentido trabalhado no capítulo 2).
Cabe referir que o reconhecimento da reincidência enquanto agravante não afronta
as facetas do princípio da proporcionalidade, não sendo desmedido, nem inadequado, nem
ferindo a proporcionalidade estrito senso quando verificado no caso concreto a partir dos
vértices expostos quando da abordagem daquele princípio. Outrossim, é oportuno
mencionar que o reconhecimento da agravante da reincidência tal como proposta nesta
“terceira via” visa a atender a proibição de excesso por parte do Estado e também a
proibição de insuficiência desse mesmo Estado para com os seus cidadãos, qualificando-se,
nesse sentido em proporcional a sua aplicação.
Não se trata, outrossim, de retornar ao retrógrado “direito penal do autor”, na
medida em que aplicação da agravante em comento seria aferida a partir do caso em
análise, uma vez que dessa feita poder-se-ia deixar de aplicar a interpretação feita por
alguns setores da jurisprudência de que ela deve ser aplicada porque o artigo 61 do Código
Penal Brasileiro dispõe que “sempre”188 agravam a pena, ou seja, por se tratar de norma
cogente, para então passar a aceitá-la (e por conseqüência, aplicá-la) como uma
concretização do princípio constitucional da igualdade, inscrito no caput do artigo 5o da
Constituição da República Federativa do Brasil.
Sabe-se que a questão não está pacificada e pretender um “consenso” acerca do
tema seria uma utopia, tendo em vista que tanto os posicionamentos, em especial
jurisprudenciais, favoráveis a aplicação da agravante quanto contrários a tal aplicação são
deveras respeitados, possuindo ambos uma razão para tanto.
O ramo do direito penal (tanto material quanto processual) constitui-se em terreno
fértil para discussões e trabalhos justamente por comportar opiniões das mais diversas,
dentre as quais, repita-se, muitas essencialmente bem fundamentadas e sustentadas,
contudo, não se pode esquecer que a situação atual demanda uma proteção não só aos bens
individuais (vida, liberdade, igualdade, patrimônio, segurança) como também aos bens
transindividuais (meio ambiente, defesa do consumidor, proteção da ordem econômica),
uma vez que todos eles compõem a sociedade brasileira189.
Nesse sentir, vale repisar o dito inicialmente a respeito das duas facetas dos direitos
fundamentais, em especial no que diz á perspectiva objetiva desses direitos a qual, na lição
de Sarlet:188 Tese sustentada por SARLET, op. cit. 2004, p. 110/116.189 Inobstante o tema sobre um conceito do que venha a ser bem jurídico, oportuno informar o
posicionamento de Roxin, sobre esse iter: “O conceito de bem jurídico que aqui se defende é também um conceito de bem jurídico crítico com a legislação, na medida em que pretende mostrar ao legislador as fronteiras de uma punição legítima. Ele se diferencia do assim denominado conceito metódico de bem jurídico, segundo o qual como bem jurídico se deve entender unicamente o fim das normas, a ratio legis.” ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org. e Trad. CALLEGARI, André Luís; GIACOMOLLI, Nereu José. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 08 et. seq.
Como uma das implicações diretamente associada à dimensão axiológica da função objetiva dos direitos fundamentais, uma vez que decorrente da idéia de que estes incorporam e expressam valores objetivos fundamentais da comunidade, está a constatação de que os direitos fundamentais (mesmo os clássicos direitos de liberdade) devem ter sua eficácia valorada não só sob um ângulo individualista, isto é, com base no ponto de vista da pessoa individual e sua posição perante o Estado, mas também sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade na sua totalidade, já que se cuidam de valores e fins que esta deve respeitar e concretizar.190
Na esteira do exposto por Sarlet, percebe-se que direito penal e direito
constitucional devem estar umbilicalmente ligados, a fim de permitir uma proteção
adequada e eficaz aos bens jurídicos tutelados via direito penal, para que se cuide não só da
proibição da atuação excessiva do Estado nessa seara, como também para que este mesmo
Estado não se olvide que lhe é vedada a prestação insuficiente de proteção, esta baseada nos
deveres de proteção impostos pelos direitos fundamentais ao ente político Estado.
Ainda sobre os direitos fundamentais e seu respectivo “papel” nesse novo modelo
de Estado, oportuna é a lição de Queiroz a fim de rememorar o exposto no decorrer do
presente estudo:
A constituição é desde então percebida não apenas como “ordem-quadro” para a ação (Rahmenordnugng), que o legislador se vê obrigado a respeitar, mas, ainda, como base e fundamento de toda a ordem jurídica. Um “sistema de valores” constituído não apenas com base nos “direitos fundamentais”, mas ainda noutros princípios constitucionais, como o princípio do “Estado de Direito” ou o princípio do “Estado Social”. Esse elemento “sociabilidade” aponta para uma intervenção estadual não apenas como “limite”, mas ainda como “fim” ou “tarefa público-estadual”, ordenando concretos “deveres de proteção” (Schtzpflichte) a cargo do Estado. 191
190 Op. cit, 2004, p. 86191 QUEIROZ, Cristina. Direitos Fundamentais Sociais. In: AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio.
Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 169.
Por outro lado, sobre a necessária superação do paradigma liberal –clássico no
Direito Penal, com o fito de possibilitar a proteção não só de bens individuais, como
também de bens transindividuais, dentre eles, vários configurados na Carta Constitucional
de 1988 como direitos fundamentais, lecionam Streck e Feldens:
(...) se o princípio da intervenção mínima contrapõe-se à denominada huida al Derecho Penal, tampouco a huida del Derecho Penal revela-se como solução, não se mostrando aceitável a afirmação de que o Direito penal não pode ou não deve intervir onde não exista um bem jurídico individual e clássico.” (p. 31 – grifos no original)(...) A questão a ser analisada, portanto, é se devemos continuar a operar, no limiar do século XXI, com estruturas valorativas típicas do início do século XVIII ou se devemos, a partir da identificação de novas necessidades (individuais e sociais), estender a proteção a outras categorias hoje constitucionalmente reconhecidas, depositando na Constituição um papel decisivo nesse sentido.192
Nesse novo contexto, a utilização do direito penal fica subordinada à materialidade
da Constituição. Ainda, impende observar que, em virtude da edição e promulgação de leis
penais em branco,193 bem como de dispositivos existentes, por exemplo, no Código Penal e
no Processual Penal – alguns dos quais estão ultrapassados perante a Constituição Federal
de 1988 e a realidade social do país atualmente – não basta ao julgador a observância única
à lei.
192 Op. cit. p. 31 – grifos no original e p. 33/34, grifos no original.193 Por exemplo o artigo 595 Código de Processo Penal, que está sendo interpretado pelos tribunais de forma
diversa: tendo o réu apelado, ainda que em fuga, esta não será causa de deserção. Outrossim, Feldens atenta para a necessidade de uma fundamentação para a prisão, esteada em uma das hipóteses do artigo 312 do mesmo Diploma Lega, tendo em vista o princípio constitucional denominado por ele de “não culpabilidade”. Op. cit. p. 193.
Por derradeiro, transcreve-se a lição de Castanho de Carvalho, que expõe
exemplificativamente no que uma “aplicação ao contrário” da proibição de insuficiência
poderia ocasionar:
Existe corrente doutrinária que sustenta a inconstitucionalidade da pena de prisão preventiva com fundamento na ordem pública. A vingar a tese, poder-se-ia estar protegendo deficientemente direitos fundamentais concretamente postos em risco. Seria às avessas porque, embora a lei preveja a proteção adequada, a interpretação doutrinária que conclua pela inconstitucionalidade é que pode levar a uma proteção deficiente. 194
Dessa feita, percebe-se a necessidade do recurso a métodos interpretativos e o
socorro aos princípios constitucionais, sem, porém, deixar cada ser humano integrante da
sociedade desprovido da necessária proteção aos direitos humanos, a fim de que se observe
o direito penal à luz da materialidade da Carta Constitucional, bem como para que sejam
observadas as próprias finalidades dos direitos fundamentais no atual modelo de Estado, tal
como já trabalhadas, sem olvidar nem da proibição de atuação excessiva pelo Estado para
com seu cidadão, nem da proibição da prestação de uma proteção insuficiente para cada
membro da sociedade – para cada pessoa humana.
194 CASTANHO DE CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti. Processo Penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. 4 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p. 37.
CONCLUSÃO
A partir do estudo desenvolvido, a primeira, e essencial conclusão tirada, diante da
convivência em sociedade, com o conseqüente Estado Democrático de Direito vigente, e a
necessária proteção dos direitos fundamentais a todos, é a de que deve existir um
parâmetro de proporcionalidade na aplicação do direito e, ainda mais, quando se fala na
seara criminal, não que esta seja a mais importante, por assim dizer, mas pode ser
considerada uma das áreas mais “delicadas” do direito, diante do cometimento, via gratia,
de crimes como o homicídio, o latrocínio, a pedofilia, as lesões corporais de natureza grave,
para citar alguns.
Nesse sentido, viu-se que após a promulgação da Constituição Federal de 1988, há
de se respeitar e observar os direitos fundamentais. Princípios como o do devido processo
legal, contraditório, ampla defesa e, dignidade da pessoa humana – não que somente estes
princípios vigoram no processo penal, mas podem, entre os demais, ser classificados como
de suma importância –, em não sendo observados, gerarão a nulidade de todos os atos, ou
seja, a observância dos direitos fundamentais e as respectivas garantias individuais
constitucionais são essenciais ao processo penal, mostrando os direitos fundamentais aí sua
face enquanto proibição de excesso da atividade estatal perante o indivíduo.
Contudo, viu-se que ao lado dessa função dos direitos fundamentais, tais impõem
também ao Estado um dever (mínimo, se é que se pode dizer) de proteção dos direitos
fundamentais dos demais cidadãos. Nesse pesar, percebe-se a importância do princípio da
proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de insuficiência como
parâmetro interpretativo, a fim de atingir ambos os deveres que os direitos fundamentais
impõem ao Estado.
De outra feita, é importante referir que com a abordagem em torno da reincidência
feita no terceiro capítulo, não se pretendeu, simplesmente, sustentar que ela não é
inconstitucional, mas o que se procurou demonstrar, essencialmente, é que diante das
funções impostas ao Estado pelos direitos fundamentais, não é possível aplicar o direito em
geral como se o único intento imposto ao Estado fosse a vedação de excesso para com seus
cidadãos.
Ao trabalhar a reincidência como parâmetro para tratar igualmente pessoas que se
encontram em situações diferentes, quis-se demonstrar que, por vezes, sua aplicação será
necessária, e que tal aplicação pode ser muito bem feita com fulcro em parâmetros
objetivos, sem ter que recorrer a qualquer caráter subjetivo do agente, numa tentativa (a
mais) de demonstrar que não se trata de retorno ao já abandonado direito penal do autor.
A reincidência, aplicada da feita que proposta nesse trabalho, teria o condão, apenas,
de “suprir” uma forma capaz de operar a igualdade entre desiguais na prática, tal como
enfaticamente trabalhado no terceiro capítulo, assim também como uma “saída” capaz de
gerir a questão atinente aos direitos fundamentais enquanto imperativos de conduta não
excessiva do Estado perante os cidadãos e também enquanto deveres de proteção impostos
à autoridade estatal para com seus cidadãos.
Como dito por Nassif, no texto em que escreve sobre a reincidência, é angustiante
falar em direito penal, e mais quando há bens constitucionalmente protegidos (dignidade da
pessoa humana e liberdade, por exemplo). Mas, acredita-se que tal “angústia” seria passível
de amenização na análise do caso concreto e mediante o recurso ao controle de
constitucionalidade difuso, no contexto de uma interpretação conforme a Constituição
(especialmente, conforme o princípio da proporcionalidade) com atenção no que diz ao
termo “sempre” constante no caput do artigo 61 do Código Penal, conforme lição de
Sarlet195.
Afinal, assim como a ponderação de bens constitucionalmente tutelados é uma
constante, isso deve ser feito não só com a atenção voltada àquele que sofre o processo
penal, mas também àquele que sofre a violência proveniente da criminalidade. Ademais, tal
ponderação não pode, acredita-se, ter como simbologia uma balança na qual, de um lado,
estaria a doutrina “liberal-iluminista” e no outro não estaria nada, em uma legítima afronta
à própria natureza dos direitos fundamentais.
Cabe, pois, às pessoas envolvidas com o direito procurar alternativas à aplicação da
lei, tendo sempre em mente que o papel que os direitos fundamentais representam nesse
modelo de estado denominado de Democrático de Direito.
195 Op. cit. 2004, p. 110/116
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