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O massacre de Nanquim
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IUPERJ Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
VEBERSON PEREIRA DA SILVA
O IMPÉRIO DO CRISÂNTEMO:
O massacre de Nanquim e a construção do Japão no contexto imperialista
Rio de Janeiro
- 2014 –
1
Veberson Pereira da Silva
O IMPÉRIO DO CRISÂNTEMO:
O massacre de Nanquim e a construção do Japão no contexto imperialista
Dissertação apresentada ao Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro, como meio de obtenção
do título de mestre em Sociologia
Orientador: prof. Dr. Fernando Vieira
Rio de Janeiro
- 2014 –
2
Dedico este trabalho a todos aqueles que me
apoiaram e que, de alguma maneira contribuíram
para que ele pudesse ser realizado. Dedico
especialmente à minha família e, como não poderia
deixar de ser, a todos os chineses mortos em
Nanquim.
3
“Aprender história é fácil, difícil é aprender as lições da história.”
- Mansour Chalita –
4
Resumo
A expansão imperialista japonesa é algo extremamente interessante de ser estudado,
sobretudo no que tange à construção da nação japonesa moderna, na medida em que ilustra
um dos períodos mais violentos na história da Ásia moderna. Após a restauração Meiji
(1868), o mundo assiste a uma gigantesca modernização e militarização do Japão, visando o
sudeste asiático. Os países ocidentais, nesse contexto, também entrariam em choque com os
japoneses a fim de rivalizar influência na Ásia. Adentrando no séc. XX, nota-se que a China,
principalmente, sofreria as mais pesadas consequências do imperialismo japonês, padecendo,
na década de 1930, os mais terríveis episódios do teatro de guerra entre os dois países. Já no
fim da década, o Japão empreenderia contra a China uma das mais brutais campanhas
militares de todo o período de conflito, que deixaria marcas no território e na população
chinesa por longas décadas.
Palavras chave: Imperialismo, Nação, Japão, massacre, Nanquim.
ABSTRACT
The Japanese imperialist expansion is extremely interesting to be studied, especially
regarding the construction of the modern Japanese nation, in that it illustrates one of the most
violent periods in modern Asian history. After the Meiji Restoration (1868), the world is
witnessing a huge modernization and militarization of Japan, targeting Southeast Asia.
Western countries, moreover, had also come into conflict with the Japanese to rival influence
in Asia. Entering the 20 century, we note that China, especially, suffer the most serious
consequences of Japanese imperialism, suffering, in the 1930s, the terrible episodes of the war
theater between the two countries. By the end of the decade, Japan launch against China one
of the most brutal military campaigns throughout the period of conflict that would leave
marks on the territory and the Chinese people for many decades.
Keywords: Imperialism, Nation, Japan, massacre, Nanking.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................6
CAPÍTULO 1.
NAÇÃO, IMPERIALISMO E VIOLÊNCIA.......................................................................11
CAPÍTULO 2.
A RESTAURAÇÃO MEIJI E A CONSTRUÇÃO DO JAPÃO IMPERIALISTA..........52
CAPÍTULO 3.
O “ESTUPRO” DE NANQUIM............................................................................................88
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................120
REFERÊNCIAS....................................................................................................................125
ANEXOS................................................................................................................................129
6
INTRODUÇÃO
A Segunda Guerra Mundial foi, sem dúvida, um dos acontecimentos que mais
marcaram a história humana em todos os tempos. Os confrontos da guerra, longe de terem se
desenrolado somente na Europa, provocaram focos de enfrentamentos por todo o mundo. Na
Ásia não foi diferente. O crescente desejo japonês de expansão territorial e de unificação do
continente sob sua bandeira contribuiu para que esse país, observando a crescente intromissão
dos países ocidentais no sudeste asiático, ingressasse na empreitada das conquistas, tendo
como uma de suas principais vítimas a China.
O avanço japonês sobre esse país especialmente, foi totalmente avassalador,
provocando extrema destruição e humilhação sobre o povo chinês. O sentimento japonês em
relação à China nas primeiras décadas do séc. XX era de que este país era totalmente inferior,
desprezava-se o seu povo devido à sua falta de patriotismo e incapacidade da impedir que seu
país se tornasse uma zona de influência ocidental.
A relação do Japão com as potências europeias sempre se constituiu bastante delicada
em decorrência desse país acreditar que os “bárbaros” tentavam, a todo momento, tirar
enormes vantagens dele, como também do restante da Ásia. Essa grande desconfiança levaria
o Japão a adotar uma espécie de postura paternalista1 em relação aos demais países asiáticos.
Uma postura, todavia, que não significava agir de maneira pacífica e benevolente. As ações
do Exército Imperial na Ásia, destacando-se na China, principalmente na década de 1930,
foram extremamente duras e provocaram muitas mortes e destruição. Os estrangeiros também
se veriam diretamente afetados com as ações do Japão no Leste asiático, o que, mais tarde,
provocaria guerra aberta entra as nações.
Em 12 de Dezembro de 1937, o Exército Imperial rompe as defesas chinesas em
Nanquim e consegue entrar na cidade, perpetrando atos desumanos contra a população,
tornando o episódio conhecido como o “estupro” de Nanquim. A caminhada dos combatentes
japoneses até a chegada à cidade foi marcada por um rastro de destruição e humilhação. O
número de pessoas assassinadas é, ainda hoje, impossível de se precisar, variando, das
estimativas mais brandas às mais severas, de 100 mil a 300 mil mortos.
1 O governo japonês considerava que a sua liderança na Ásia seria fundamental para que a área não caísse
definitivamente sob o domínio dos ocidentais. Idealizariam, então, a chamada “esfera de coprosperidade”, que apesar do nome, possuía intenções que na prática se mostraram muito mais individualistas do que comunitárias
de fato.
7
O imperialismo japonês distinguiu-se em muito do tradicional imperialismo ocidental
por sua mentalidade peculiar. Os japoneses adotavam uma série de prerrogativas muito mais
simbólicas do que econômicas propriamente ditas. Entretanto, na medida em que o governo
nipônico observou a imensa lucratividade do modelo de ganho econômico imperialista, os
países que compunham a esfera de interesse do Japão na Ásia passaram a sofrer cada vez
mais, devido às ambições dos seus vizinhos insulares.
A progressão histórica do Japão, desde a restauração Meiji, é de fundamental
importância para o entendimento dos acontecimentos em Nanquim. A construção social do
nacionalismo para a população japonesa e o forte pragmatismo político instaurado no Japão
após a era Meiji foram determinantes para o desenrolar dos acontecimentos e da construção
da mentalidade imperialista no país. A gradativa aversão aos valores estrangeiros que
lentamente se observa no Japão contribuiu diretamente para que se formasse uma hostilidade
dos japoneses em relação aos ocidentais, que aumentaria significativamente no início do séc.
XX.
O relacionamento dos nipônicos com os chineses, principalmente, também vai se
tornando cada vez mais tenso, devido a uma série de choques de interesses entre os dois
países, além de o próprio território chinês representar grandes possibilidades de ganho aos
japoneses. Esse crescente conflito de interesses, unido à fixação das novas ideologias
nacionalistas nos cidadãos japoneses, estabeleceram, com o passar dos anos, um forte
sentimento anti-chineses no Japão. Os chineses, não obstante, eram totalmente desprezados
pelos japoneses e vistos verdadeiramente como uma sub-raça.
Após a Primeira Grande Guerra, a relação dos japoneses com os ocidentais, que já era
bastante tênue, torna-se insustentável, principalmente em relação à Rússia e os Estados
Unidos. Ao longo das décadas de 1920 e 1930 os japoneses experimentam transformações
políticas extremamente impactantes, que transformariam fundamentalmente a sociedade
japonesa, no que diz respeito ao militarismo. Nesse contexto se desenvolve o imperialismo
japonês.
Nesse sentido, nota-se que o estudo do conjunto de ideias que davam suporte às ações
do alto comando, bem como do Exército Imperial, é de fundamental importância. Ele permite
compreender qual era a razão e quais eram as premissas utilizadas pelos japoneses para
justificar seus atos. Nesse sentido, é possível se ter uma dimensão da importância atribuída à
motivação psicológica das tropas em relação aos objetivos propostos.
8
O âmbito simbólico que sustenta a manutenção de um regime ou de uma batalha
exerce destacado papel em relação aos acontecimentos que se desenvolvem. A compreensão
do fato de que ações cometidas em favor da nação são vistas como heroicas, por exemplo,
leva necessariamente ao entendimento do papel da construção do Estado nacional no
imaginário da população.
Nota-se que apesar de comumente as pessoas não escolherem a nação a qual irão
pertencer, o senso de familiaridade a ela é construído de maneira tão forte, que o serviço a seu
favor se torna de grande valia para quaisquer cidadãos. Esse sentimento individual em relação
a uma comunidade que foi construída está intimamente ligado à força que esta exercerá sobre
os seus membros e, também, até que ponto esses cidadãos estarão dispostos a doar-se em
favor dela.
É interessante destacar que essa coesão grupal pode, em variados casos, levar a
população a cometer atos que seriam impensáveis tendo como premissas a autoafirmação da
nação. E isso pressupõe que todo o povo, ou a esmagadora maioria retenha profundamente os
valores políticos e sociais desenvolvidos para a afirmação do grupo enquanto nação.
Nesse sentido, muito além dos aspectos econômicos ou materiais, é necessário que se
levem em consideração os aspectos políticos e simbólicos que fazem parte da formação de
uma nação, tendo em vista que ela não é simplesmente uma entidade sem forma ou impessoal,
ela é antes de tudo a própria população em si. Realmente existe um grande problema em
tentar explicar a formação de um grupo, e também sua autoafirmação em relação aos outros
grupos, tendo como base simplesmente os argumentos e análises sob o prisma econômico ou
material, sem levar em conta os aspectos figuracionais envolvidos no processo.
É necessário, então que se leve em consideração todo o conjunto de prerrogativas que
sustentam a formação da nação e, para tanto, é imprescindível o entendimento, entre outras
coisas, das crenças e mitologias que fazem parte do imaginário da população, além da força
que elas exercem sobre esta.
O entendimento dessa construção de senso nacionalista no Japão deve começar
necessariamente pela adoção, no período Meiji, de uma religião oficial, o xintoísmo. Essa é a
única religião que pode ser considerada genuinamente japonesa, com origens que se
confundem com a do próprio povo, há pelo menos dois milênios, e que predomina na mística
do arquipélago japonês. Essa filosofia religiosa aponta para uma origem divina da casa real
japonesa.
9
Consequentemente a população absorve, mesmo que em níveis diferentes, essa
ascendência mítica para si, tornando-se herdeira, por direito, dos deuses. Isso justifica a
intensa preocupação dos japoneses com relação aos costumes tradicionais e o papel social de
cada cidadão que faz parte da nação japonesa e, ainda, a fortíssima ligação dos nipônicos com
os elementos naturais.
Observando-se tudo o que foi exposto até agora, torna-se bastante relevante suscitar o
debate acerca do modelo imperialista do Japão, apontando a construção da nação japonesa
moderna como um fator fundamental na consolidação da política imperial-expansionista
empreendida pelos nipônicos. Sendo assim, buscamos compreender quais as premissas
utilizadas e por quais motivos os cidadãos legitimaram as ações do governo de Hiroíto e
participaram ativamente, de forma coercitiva ou não, da empresa imperialista do país, e em
especial o episódio do massacre de Nanquim.
Nota-se que as ações do governo japonês, rivalizando até mesmo os países ocidentais
com presença ativa na região do sudeste asiático, só podem ser compreendidas tendo como
pano de fundo a própria noção de “nação forte” construída no país. Sendo assim, a pesquisa a
respeito do tema é de grande valia, no sentido de oferecer meios para se compreender de que
maneiras os conceitos de nação e identidade foram apreendidos pela população japonesa.
Essas representações sociais construídas sobre bases políticas tão intensas
representaram a mola mestra da expansão japonesa. E isso se verifica observando-se até que
ponto essa mentalidade foi determinante para as ações dos soldados e do alto comando do
Exército em Nanquim em 1937. O imperialismo japonês, em si, distingue-se em diversos
aspectos do tradicional modelo europeu. Entretanto, é comumente defendida a tese de que
todo esse processo se iniciou a partir do contato brusco entre as duas culturas, lê-se ocidente-
oriente.
Ademais, o estudo acerca da inter-relação de nacionalismo, religião e educação formal
constitui a espinha dorsal para a compreensão dos mecanismos práticos envolvidos na
empreitada imperialista japonesa. Mesmo sendo possível observarem-se nuances
ocidentalizantes, por assim dizer, na política japonesa do início do séc. XX, em última análise
a compreensão do processo de consolidação do império japonês – constituído simbolicamente
– perpassa necessariamente pelo exame dessas características peculiares ao caso nipônico.
Em termos concretos, a dissertação será composta de um capítulo inicial discutindo a
construção histórica dos termos nação e identidade. Para tanto, busca-se realizar um debate
entre alguns autores que trabalhem os temas, com ênfase, como já apontado, nos trabalhos de
10
Benedict Anderson, Norbert Elias e Anthony Smith, cujas definições são adotadas como
sendo as que mais se aproximam das perspectivas e premissas apontadas na pesquisa.
No segundo capítulo buscamos a gênese histórica do estabelecimento da nação
japonesa moderna, ou seja, a Restauração Meiji. Os mecanismos envolvidos nesse processo
são analisados em vias de proporcionar um entendimento das táticas e medidas adotadas pelo
governo japonês para afirmar a nação frente aos demais países e, além disso, promover uma
autoafirmação dos valores nacionais pela própria população.
Além disso, esse é um capítulo que visa analisar a forma através da qual a população
japonesa é doutrinada e absorve, ou não, os valores da empreitada imperialista do país.
Procuramos evidenciar, através da cultura popular, se de fato esse era um projeto legitimado
pela população japonesa, ou simplesmente representava os anseios do alto escalão
governamental. Em outras palavras, o que se pretende é descobrir se havia sido constituída
efetivamente uma identidade nacional imperialista no Japão já na década de 1930.
O terceiro e último capítulo, intitulado “O massacre de Nanquim”, procura discutir as
ações do exército japonês em Nanquim à luz de toda essa atmosfera social do Japão,
cristalizada ao longo das últimas décadas do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
A perspectiva no Japão de que a devoção ao imperador – e consequentemente à nação – vem
antes de qualquer anseio individual é fundamental para que se compreendam as ações dos
combatentes japoneses em Nanquim. Só que, além disso, essa parte do trabalho tenta analisar
se o episódio do estupro de Nanquim corresponde a uma consequência natural da política
imperialista empreendida pelo Japão, ou se há outras perspectivas que supram a análise desse
acontecimento. Contamos, ainda, com alguns dos documentos utilizados no trabalho
disponibilizados nos anexos, a fim de embasar ainda mais os argumentos utilizados.
O trabalho, portanto, se ocupa em estudar efetivamente a construção do império
japonês, buscando como marco inicial a restauração Meiji, de 1868, e indo até o massacre da
cidade chinesa de Nanquim pelo Exército Imperial, em 1937. Isso não significa, de maneira
nenhuma, que a pesquisa se detém simplesmente numa reconstituição histórica dos eventos
compreendidos nesse período, mas que se propõe a analisar, como já dito, os mecanismos
sociológicos por trás dos eventos.
11
CAPÍTULO 1. NAÇÃO, IMPERIALISMO E VIOLÊNCIA
A discussão a respeito da construção teórica de um conceito é de fundamental
importância para o entendimento dos eventos concretos que de alguma forma se vinculam a
essa ideia. Nessa discussão, é interessante que se observem as análises de diferentes autores, a
fim de promover uma maior abrangência de argumentação, contribuindo, assim, para uma
elucidação do assunto proposto.
A delimitação e especificação dos temas abordados contribuem grandemente para que
a pesquisa não se torne prolixa e enfadonha. Sendo assim, o debate teórico de alguns
parâmetros ganha corpo no sentido de estabelecer quais são as balizas conceituais adotadas
pela pesquisa, colaborando para uma análise mais direcionada que evite rodeios
desnecessários.
Sem o estabelecimento de referências teóricas, qualquer trabalho se torna carente de
uma argumentação que, de fato, dê um embasamento às questões propostas, já que a análise
crítica de eventos concretos não deve ser feita pelo evento por si só, mas perpassa uma série
de conceitos e argumentos pré-estabelecidos que ajudem a problematizá-los.
Nesse sentido, quanto mais bem especificadas forem as referências teóricas às quais o
trabalho recorre, tanto mais se poderão analisar de forma apropriada os temas sugeridos,
evitando, assim, que o desenvolvimento da pesquisa se perca em meio a conceituações que
desviem o foco daquele que foi previamente estabelecido.
Como suporte teórico para a presente pesquisa, é necessário que se observe o debate
envolvendo os conceitos de nação, imperialismo e violência, conceitos esses que permearão
toda a investigação. Para tanto, é imprescindível a observação das contribuições de alguns
autores que tomaremos como baliza para o trabalho.
A concepção de nação, fortalecida no ocidente sobretudo a partir do século XIX,
indica que havia, de fato, um esforço direcionado – pelos governos, lideranças – para se
construir no imaginário popular uma entidade abstrata que proporcionasse um senso de
familiaridade entre os membros a ela relacionados.
Isso não significa dizer que anteriormente ao período indicado não houvesse laços
comuns entre as pessoas de uma dita comunidade. O que se passa a observar no oitocentos2,
contudo, é a construção de uma comunidade mais abrangente que englobe mais do que as
pessoas de um dado espaço territorial específico. Ou seja, o laço afetivo, por assim dizer, da 2 Esse termo, muito utilizado no meio historiográfico, indica o período que compreende o século XIX.
12
pessoa com relação à sua vizinhança continua a se estabelecer, mas aparece, também, um
outro tipo de ligação e familiarização do indivíduo com um grupo que abarca não só os seus
vizinhos mais próximos, mas também uma série de anônimos que, mesmo que a princípio não
tenham aparentemente nada em comum, constituem-se membros da mesma nação.
Os laços estabelecidos entre indivíduos próximos uns dos outros, seja num bairro ou
numa pequena aldeia, costumeiramente desenvolvem-se de acordo com o aprofundamento das
relações sociais entre eles. Relações de amizade, antipatia, agressividade, amor, carinho,
identificação, etc., acontecem na medida em que há, de fato, algum tipo de contato entre as
pessoas (ninguém poderia naturalmente odiar alguém de quem não se conhece nem a
existência3).
O estabelecimento dessa teia de relacionamentos não pressupõe, necessariamente, que
todos os envolvidos tenham os mesmos objetivos em relação aos seus vizinhos para que se
forme, de fato, uma comunidade, ao contrário do que uma primeira análise superficial possa
sugerir. Na verdade, como afirma Weber:
Todas as partes mutuamente orientadas numa dada relação social não manifestam necessariamente o mesmo sentido objetivo, ou seja, não precisa
haver qualquer tipo de “reciprocidade”, “caridade”, “amor”, “lealdade”,
“confiança contratual”, “nacionalismo”, pois uma parte pode manifestar uma
atitude diferente da de outra. Para as partes envolvidas, sua conduta demonstra meramente várias formas e significados, e a relação social é, para
cada parte, simplesmente “assimétrica” (WEBER, 2008, p. 46).
Essas são situações nas quais, devido ao contato direto entre os indivíduos, formam-se
laços efetivos de relacionamento, sejam eles amistosos ou hostis, mesmo sem que as pessoas
ajam conscientemente nesse sentido. É o próprio conjunto das ações sociais que forma essa
comunidade e estabelece a maneira através da qual os sujeitos envolvidos nela enxergarão uns
aos outros.
A formação de coesão em pequenos grupos se estabelece no passo do
desenvolvimento social de proximidade entre os membros envolvidos. Existe grande
pessoalidade nos laços dessas comunidades. Nas palavras de Elias (2000, p. 40), “a
autoimagem e a autoestima de um indivíduo estão ligados ao que os outros membros do grupo
pensam dele.”
Sendo assim, as relações sociais, estabelecidas de acordo com as ações dos indivíduos,
exercem papéis cruciais na constituição da coesão grupal. Ou seja, cada um dos indivíduos é
igualmente responsável pela manutenção e sobrevivência da comunidade, na medida em que
3 No caso das relações entre nações, entretanto, isto pode facilmente acontecer. Abordaremos esse ponto mais
adiante.
13
existe codependência entre eles. O capital simbólico desenvolvido pelo conjunto das ações
sociais age como o parâmetro para o estabelecimento das posições ocupadas por cada um dos
indivíduos na comunidade.
Acompanhando essa linha de raciocínio, nota-se que as ações imediatas dos membros
do grupo desempenham papéis de extrema importância e que exercem influência direta nas
representações sociais e no relacionamento entre eles. Esse conjunto de relações se torna mais
complexo à medida que a própria comunidade se complexifica. Entretanto, a manutenção da
harmonia interna e do senso de pertencimento de cada um dos membros em relação ao grupo,
pelo menos em última análise, se faz por intermédio da interação direta entre os indivíduos.
A legitimação das posições ocupadas por cada um dos integrantes nessas pequenas
comunidades não acontece por meio de mecanismos inteiramente abstratos e impessoais de
estratificação social. Ela se viabiliza, antes, através da interação direta e pessoal dos membros
do grupo. De fato, como destacado anteriormente, a posição social e a autoimagem de cada
um dos integrantes da comunidade depende diretamente da troca de experiências com os
outros indivíduos que, por sua vez, também se veem submetidos ao juízo de valores deste.
Numa localidade na qual, por exemplo, os valores religiosos exercem papel
preponderante, a constituição dessa comunidade far-se-á a partir das crenças pré-estabelecidas
pelo discurso religioso. Da mesma forma, a hierarquização social será construída tendo como
base os próprios papéis desempenhados pelos indivíduos no grupo religioso ao qual
pertencem. Nota-se, dessa forma, que a intimidade entre os membros dessas comunidades se
faz importantíssima no que tange ao desenvolvimento de uma espécie de carisma grupal.
Por outro lado, no caso das teorias nacionalistas, isso não necessariamente se verifica,
já que os Estados nacionais, em geral, englobam num mesmo território uma multidão de
anônimos, uns em relação aos outros. Mas esse anonimato não impede que se desenvolva
entre eles uma identidade comum de pertencimento a um macrogrupo. E essa identificação se
constrói de uma forma tão consistente e bem amarrada que chega ao ponto de levar essas
pessoas que aparentemente não possuem nada em comum (não possuem laços de parentesco
ou de amizade e na maioria das vezes nem sequer se conhecem) a lutarem lado a lado numa
guerra até a morte, se necessário.
Mas, que mecanismos são esses que se desenvolvem e se consolidam a ponto de criar
uma comunidade de proporções tão amplas e que ao mesmo tempo estabelece um senso de
pertencimento e reconhecimento tão forte entre os seus membros?
14
Antes de responder à pergunta, é necessário que se deixe claro nesse ponto o que é
exatamente esse objeto, a nação. Primeiramente, ela não é simplesmente o Estado constituído
politicamente, pois esse conceito implica diretamente a instituição formal e toda a burocracia
relacionada a ela. A observação pura e simples das questões institucionais estatais leva a uma
análise fria que desconsidera o fator humano envolvido, como se a nação não constituísse, na
verdade, uma comunidade.
Considerar como nação simplesmente o Estado, seria o mesmo que caracterizar os
movimentos oriundos da relação entre as nações como eventos impessoais e autômatos, como
se não houvesse, de fato, incontáveis interações entre os seres humanos envolvidos no
processo, sobretudo no que diz respeito aos enfrentamentos bélicos. Quanto a essa
perspectiva, Victor D. Hanson argumenta que:
Falar sobre a guerra de qualquer outro modo cria uma espécie de
imoralidade, [sugere] a ideia de que, ao serem atingidos, os soldados simplesmente adormecem, ao invés de serem destroçados; de que no calor da
batalha os generais dão ordens a batalhões impessoais e robóticos, em vez de
garotos de 19 anos gritando em meio a nuvens de gás e cortinas de balas de
chumbo; ou de que cadáveres pútridos pouco tem a ver com abordagens mais amplas da ciência e da cultura (HANSON, 2004, p. 22).
A observação desse ponto não significa dizer, todavia, que a instituição estatal não
possua atuação direta na constituição de uma nação, nem tampouco que ela possa ser definida
de forma tão simplória quanto uma criação abstrata, impessoal e burocrática. Implica afirmar,
na verdade, que a simples ocorrência da posse material de alguns elementos não denota, por si
só, a constituição de uma nação.
Muito além de aspectos puramente materiais, é necessário que se leve em
consideração os aspectos culturais e políticos da formação de uma nação, já que ela não é
simplesmente uma entidade amorfa e desprovida de pessoalidade, ela é antes de tudo a própria
população em si. Na análise de Norbert Elias, há um grande problema em tentar explicar a
formação de um grupo, e também sua autoafirmação em relação aos outros grupos, tendo
como base simplesmente os argumentos e análises sob o prisma econômico ou, ainda,
qualquer teoria que explique os diferenciais de poder “tão somente em termos da posse
monopolista de objetos não humanos, tais como armas ou meios de produção, e que
desconsidere os aspectos figuracionais dos diferenciais de poder que se devem puramente a
diferenças no grau de organização dos seres humanos implicados” (ELIAS, op. cit., p. 21).
Em segundo lugar, enxergar a nação como uma instituição burocrática se torna,
também, um equívoco, na medida em que esse também é um aspecto impessoal e geral que
não necessariamente representa as idiossincrasias de cada nação. A ação burocrática
15
institucional não representa em nenhuma instância a cultura, língua ou história nacional de um
povo, já que o proceder dessa ação institucional não se vincula diretamente a esta ou aquela
peculiaridade cultural, antes possui um modus operandi próprio que é basicamente o mesmo
onde quer que se verifique. Os setores burocráticos russo, japonês e alemão, por exemplo,
possuem muito mais semelhanças do que diferenciações. Isso porque a uniformidade e a
rigidez dos procedimentos são inerentes à própria organização burocrática.
Numa terceira via, a nação também não é simplesmente uma comunidade étnica, na
medida em que esta não necessariamente apresenta todos os fatores organizacionais e o
aparelhamento político inerentes à nação. Não obstante, as comunidades étnicas geralmente
carecem de uma cultura pública e de uma dimensão territorial, tendo em vista que essas não
são determinantes para aquelas (SMITH, 2010, p. 12-13).
Desta forma, mesmo em se considerando ocasiões nas quais essas duas definições
(nação e comunidade étnica) se sobrepõem – na categoria de identidade cultural coletiva, por
exemplo – não é possível incluí-las exatamente na mesma categoria analítica. A comunidade
étnica, a despeito da sua legitimidade para os que a integram, não possui necessariamente a
organização política que proporcionaria a sua aparição no cenário internacional em meio às
demais nações. Essa é uma característica que está relacionada a questões extrínsecas ao grupo,
já que diz respeito à afirmação externa da nação.
Intrinsecamente, pode-se dizer que falta à comunidade étnica, na maioria das vezes, o
esforço de internalização de uma cultura pública que viabilize a absorção de uma ideia mais
abrangente de comunidade organizada. Além do mais, a soberania política também não é um
fator preponderante para esse tipo de grupo social. Essas lacunas ficam mais evidentes quando
se observa que na prática as comunidades étnicas podem até mesmo se desenvolver no
interior de nações, como grupos minoritários, mas que, em última análise, esses indivíduos
integram-se ao grupo maior, que é a própria nação.
Qualquer uma das visões em separado – Estado, burocracia e comunidade étnica –
seria demasiado simplória para definir a nação. O conceito utilizado aqui abrange uma
conexão entre ambas as definições que, juntas, oferecem de uma forma mais apropriada, a
caracterização do que está sendo entendido como o objeto. Essa identificação aponta para a
nação não ingenuamente como uma entidade abstrata, mas vê a necessidade da sua
materialização de fato.
Sendo assim, pode-se considerar que uma definição aceitável seria a de uma
comunidade de concidadãos que, além de todo o constructo intelectual e social que
16
corroboram a sua existência e permanência, possui todo o aparato político, legal e material
necessário à sua sustentação. Essa definição teórica é importante para estabelecer os
parâmetros conceituais adotados.
Um dos aspectos mais interessantes da nação é justamente o que diz respeito à própria
construção social dessa comunidade na mentalidade dos seus membros, e que gera uma
identificação fortíssima e irrevogável a ela. Antes de qualquer coisa, é estritamente necessário
que se observe que a nação se constitui como uma “comunidade política imaginada”
(ANDERSON, 2008, p. 32), e como tal, está munida de mecanismos que engendram a sua
formação e consolidação.
É interessante notar a argumentação de Breuilly de que “a política nacionalista é
sempre política de massa. Em variados casos, o nacionalismo envolve a organização de um
apoio populacional aos propósitos políticos, ou a manutenção de grandes grupos que gravitam
em torno de uma arena política exclusiva” (BREUILLY, 1993, p. 19). Portanto, essa
comunidade se constrói tanto vertical quanto horizontalmente.
Ademais, cabe ressaltar que essa comunidade política é não só imaginada, como
também ao mesmo tempo soberana, porém limitada, e esse é um aspecto bastante relevante na
análise das nações. Ela é soberana porque é pensada como superior ao indivíduo e limitada
porque mesmo a maior de todas elas possui, evidentemente, fronteiras finitas e além delas
existem outras nações.
Quanto à questão do caráter soberano da nação, que se constrói nas mentalidades, cabe
destacar uma análise que considera que “o nacionalismo é a maior vergonha política do século
XX” (BEINER, 1991, p. 27)4. E isso se dá justamente pela sua enorme força de consolidação,
pois em comparação a outras forças políticas no mesmo período, como por exemplo o
socialismo, internacionalista por essência, o nacionalismo logrou muito mais êxito na sua
consolidação.
Muito além da teoria, observa-se na prática o colapso do solidarismo proletário – tão
bem elaborado e apregoado pela Segunda Internacional – frente à eclosão da Primeira Guerra
Mundial (BROWN, 2011, p. 45-et. seq.). De fato, as bases mundializantes e apátridas da
teoria socialista pareceram não conseguir rivalizar com a estrutura compacta e de valorização
das raízes comuns de uma referida população, defendida pelo nacionalismo. Evidentemente,
não intencionamos sugerir que as teorias socialistas sejam frágeis no seu discurso, nem
tampouco pretendemos empreender uma longa argumentação a esse respeito, para não fugir
4 Tradução livre.
17
ao objetivo central do trabalho. O que se pretende, na realidade, é promover a observação de
que, em comparação, na prática, as duas teorias políticas trilharam caminhos bem diferentes.
O discurso de que o nacionalismo constituiu uma grande vergonha política está
diretamente relacionado à ideia de que a própria concepção de soberania nacional, levada ao
extremo, produziu em grande medida os fascismos e, dentre eles, sobretudo o nazismo
alemão. Essa visão, porém, sugere que, em última análise, os nacionalismos deram origem aos
regimes fascistas, e não pressupõe o contrário. Aceitar essa linha de raciocínio seria o mesmo
que acreditar que toda nação estabelecida solidamente sobre um discurso de valorização dos
seus símbolos, língua e cultura, tem uma tendência natural a se tornar um Estado fascista. Se
assim o fosse, os Estados Unidos da América deveria ser constituir o maior governo fascista
do mundo.
As teorias fascistas, que englobam muito mais do que simplesmente a ideia
nacionalista, na verdade, ao contrário do que a argumentação supracitada sugere, apoiam-se e
apropriam-se da ideia de nação para corroborar e fortalecer politicamente o poder do Estado,
entendido, então, como mais importante do que qualquer cidadão individualmente. A respeito
dessas questões, Beiner afirma que:
Há uma resposta simples e universalista que afirma que o nacionalismo
nunca foi algo exatamente correto, que qualquer ideologia cultural de
autopreservação é simplesmente e intrinsecamente reacionária, e que isso é tudo o que há pra se dizer a respeito do assunto. Mas essa resposta é tão
simples que não pode ser uma resposta de fato. Na verdade, [esse argumento,
por outro lado] parece um pouco mais esclarecedor como julgamento político, do que considerar que se toda a raça humana tivesse sido controlada
na sua conduta através da história por um profundo entendimento e aceitação
do Sermão do Monte, por exemplo, a maioria dos horrores de sua história, da
forma como aconteceram, teria sido evitada (BEINER, op. cit. p. 42)5.
O fato da nação, como comunidade imaginada, ser concebida como soberana não
implica uma relação de causalidade direta com o surgimento dos regimes fascistas. Essa
relação, como se observa no trecho acima, não se estabelece de forma tão simplória e
mecânica quanto se pode depreender de uma análise superficial do assunto. A questão da
soberania nacional evidentemente está presente no discurso nacionalista, mas não há
evidências, de fato, que levem a crer que a consolidação da ideia de nação, por si só, conduza
à criação de uma doutrina fascista.
O que os exemplos históricos sugerem é que, na verdade, essa relação é um pouco
mais complexa. No caso, por exemplo, do próprio nazismo alemão, é o Partido Nazista que se
apropria da ideia de nação germânica para desenvolver toda a sua argumentação racista e
5 Tradução livre.
18
nacionalista. O que se deve observar é que não é o processo de consolidação e formação da
nação alemã moderna, com as guerras de 1870-1871, que cria o discurso fascista na
Alemanha. Da mesma forma, não se pode acreditar, por outro lado, que tenham sido os
nazistas que criaram a ideia de nação alemã. Eles, na verdade, engenhosamente se
apropriaram do constructo nacionalista, a fim de consolidar suas ideias políticas.
De fato, a ideia de nação se mostra importantíssima não só para os governos fascistas,
mas também a qualquer país no cenário internacional. E isso porque ela pressupõe uma
profunda “imersão na cultura da nação” (SMITH, op. cit., p. 7), seja através do resgate de sua
língua vernácula, de sua história, ou mesmo de músicas e danças folclóricas que promovam a
valorização da unidade de todos os que se pretendem incluir nessa comunidade.
A compreensão do fato de que ações cometidas em favor da nação e
consequentemente do governo que a representa, devam ser vistas como heroicas, leva
necessariamente ao entendimento do papel da construção do Estado nacional no imaginário da
população, já que, como afirma Weber, “a autoridade adquirirá ‘validade’ apenas se a
orientação aos axiomas incluir ao menos o reconhecimento de que tudo a que obrigam o
indivíduo, ou a ação correspondente, constitui um modelo digno de imitação” (WEBER, op.
cit., p. 54).
Na argumentação de Benedict Anderson (op. cit., p. 202), “morrer pela pátria, a qual
não se escolhe, assume uma grandeza moral que não pode se comparar a morrer pelo Partido
Trabalhista, pela Associação Médica, ou talvez até pela Anistia Internacional, pois essas são
entidades nas quais se pode ingressar ou sair à vontade.” Nota-se, nesse argumento, que
apesar de geralmente as pessoas não escolherem sua nação, o senso de pertencimento a ela é
construído de maneira tão forte, que o serviço a seu favor se torna de grande valia para
quaisquer cidadãos.
As pessoas se reconhecem, devido aos mecanismos de construção ideológica, como
um grupo coeso6 que possui inúmeros elementos em comum. Esse sentimento individual em
relação a uma comunidade que foi construída está intimamente ligado à força que esta
exercerá sobre os seus membros e, também, até que ponto esses cidadãos estarão dispostos a
doar-se em favor dela.
6 O conceito de coesão, destacado aqui, refere-se ao argumento de que a nação é, de fato, uma comunidade
política imaginada. A harmonia das relações entre as pessoas de uma mesma sociedade está diretamente ligada à
imagem que o grupo tem de si mesmo e que cada indivíduo tem em relação ao grupo, e também, necessariamente, o que os outros membros do grupo pensam dele. Essa coesão pode ser mais forte ou mais tênue
de acordo com os mecanismos utilizados, propositalmente ou não, para a construção ideológica do grupo.
19
Toda essa engenharia no campo das mentalidades envolve a construção de discursos
que corroborem a formação da nação – entendida como Estado-nação – e que visem promover
a sua aceitação por parte daqueles que a integram. Isso implica dizer que a nação existe em
primeiro lugar no discurso, antes mesmo de se verificar na prática. E esse discurso é
fundamental, já que os movimentos nacionalistas geralmente não começam como passeatas de
protesto ou declarações abertas de resistência armada. A sua primeira fase se observa no
desenvolvimento de grupos de intelectuais que veem no desenvolvimento educacional a
melhor forma de fomentar as ideias e doutrinas nacionais (SMITH, op. cit, p. 7). Ademais,
Anderson (1989, p. 16) afirma que:
sem considerar a desigualdade e exploração que atualmente prevalecem em todas elas, a nação é sempre concebida como um companheirismo profundo
e horizontal. Em última análise, essa fraternidade é que torna possível, no
correr dos últimos dois séculos, que tantos milhões de pessoas, não só matem, mas morram voluntariamente por imaginações tão limitadas.
É interessante destacar que essa coesão grupal pode, em variados casos, levar a
população a cometer toda sorte de atrocidades tendo como premissas a autoafirmação da
nação. Esta, por sua vez, necessita invariavelmente que todo o povo, ou a esmagadora maioria
– levando em consideração que nenhum grupo pode ser completamente homogêneo – retenha
profundamente os valores desenvolvidos para a afirmação do grupo enquanto nação.
O caráter de consolidação desse discurso nacionalista nas mentalidades é, justamente,
o que a torna uma comunidade imaginada, o que não significa, contudo, nem de longe dizer
que ela não seja real e que exista única e exclusivamente no imaginário da população
envolvida. Essa característica está relacionada, na verdade, à gênese da ideia de nação, que se
dá, após ser concebida mentalmente, por meio do discurso, e um discurso na maioria das
vezes bastante inflamado.
Olhando por esse prisma, pode-se compreender melhor esse aspecto aparentemente
abstrato das nações. Muito além das ideias o nacionalismo sugere atitudes, ele “elucida os
sentimentos populares evocados pela ideia da nação; nesse discurso ideológico a nação é uma
comunidade sentida e vivida; é uma categoria de comportamento tanto quanto de imaginação;
e é uma coisa que requer dos seus membros alguns tipos de ação” (SMITH, op. cit., p. 11).7
Certamente, esse caráter abstrato é, em muitos aspectos, simplesmente ilusório. Apesar
de surgir no discurso, e por meio dele8, o Estado-nação não está circunscrito a isso. Ele é
7 Tradução livre. 8 O presente trabalho não se ocupa em discutir as implicações do poder do discurso, exaustivamente trabalhadas
por Foucault, principalmente em A ordem discurso e As palavras e as coisas. Limitamo-nos a considerar o
20
amplamente verificável na prática, seja por meio das suas instituições, seja através das suas
ações políticas, que indicam que de fato ele existe no cenário internacional. E essa existência,
como já apontado, indica algo que vai muito além de uma instituição impessoal, mas constitui
um existir acima de tudo político.
Essa argumentação não deve sugerir, todavia, que a nação seja simplesmente um
subproduto do discurso nacionalista. A relação entre esses conceitos deve ser observada como
sendo de complementaridade, já que um não vem sem o outro. Contudo, há uma via de análise
que sugere outra visão acerca da relação entre nações e nacionalismos. Isso fica claro nesse
trecho de Smith (ibid., p. 11):
Se o conceito de nação é anterior à ideologia do nacionalismo, então não se pode caracterizá-lo simplesmente como uma categoria da prática
nacionalista. Se, além disso, podem-se contemplar umas poucas nações pré-
modernas antes do advento das ideologias nacionalistas no final do século XVIII, então é necessária uma concepção da nação que seja independente da
ideologia do nacionalismo, mas que seja, entretanto, consonante a ela.9
Essa é uma das grandes questões que permeiam o estudo das nações e dos
nacionalismos. O entendimento da complementaridade entre ambas as definições traz à tona a
própria questão referente ao papel exercido pelo discurso nacionalista na construção da nação.
Se esta é realmente anterior àquele, então não se poderia dizer que a nação surge, em primeiro
lugar, no discurso. Essa é, de fato, uma questão bastante complexa e merece muita atenção.
A nação, nesses termos, aparece como sendo representativa simplesmente do grupo
populacional com características e costumes comuns. O argumento de que se podem verificar
nações antes do esforço nacionalista pela sua construção suscita um debate importante para o
entendimento do tema. As nações, e consequentemente os Estados nacionais, demandam uma
série de características para que de fato possam ser identificadas e consideradas como tal.
Sendo assim, como sugerido anteriormente, é a conjunção de vários fatores que estabelecem
uma nação, e não cada uma das características isoladamente.
Anteriormente ao século XIX não se pode falar em nações amplamente constituídas.
Esse termo seria no mínimo equivocado para se analisar a conjuntura internacional. O que se
verifica nesse período, na verdade, é a existência de reinos dinásticos, impérios e
comunidades étnicas que não podem servir como exemplos de nações, já que como argumenta
Anderson, “O governo do rei organiza tudo em torno de um centro elevado. Sua legitimidade
discurso como um fator de apresentação e convencimento de uma ideia e que possui uma série de implicações políticas. Para mais, ver Foucault (2000) e Foucault (1996). 9 Tradução livre.
21
deriva da divindade, e não das populações, que, afinal de contas, são súditos, não cidadãos”
(Anderson, op. cit., p. 28).
Esses são exemplos de comunidades que de fato desenvolvem relacionamentos entre
si, evidentemente de forma assimétrica, mas que não possuem todos os elementos necessários
para a constituição de uma nação. Utiliza-se, também para esses casos, a nomenclatura de
“nações pré-modernas” (SMITH, id.), embora esse termo possa gerar certa confusão e a ilusão
de que se pode realmente verificar a existência de nações amplamente estabelecidas já no
século XVIII.
Ilusão, porque mesmo os Estados dinásticos relativamente organizados que se
verificam no setecentos – ou mesmo, se preferir, um resgate à protogênese de alguns Estados
europeus ainda nos séculos XI e XII, como Portugal e Espanha – carecem do fator coesivo
que gera a identificação nacional, que é muito mais ampla do que os laços locais, ou mesmo
do que o simples reconhecimento de que existe um poder central. Mesmo nesses jovens
países, o que se observa é a assimilação, por parte da população, de uma identidade
majoritariamente local em detrimento de uma que se constitua nacional. Ademais:
Para muitos teóricos, nacionalismo é tanto historicamente quanto
sociologicamente anterior à nação. Se o nacionalismo é, então, produto da modernidade, então as nações não podem ser datadas anteriormente à virada
do século XVIII para o XIX; além disso, são os nacionalistas que trazem à
tona a nação, através da mobilização dos seus membros e endossando-os
com a coesão nacional (SMITH, 2009, p. 43)10
.
Ou seja, a constituição do Estado-nação se dá por meios muito mais complexos e que
vão muito além do reconhecimento de um poder político constituído. O fato de haver um
governo central regendo e normatizando as ações no interior de um dado espaço territorial
específico, não significa necessariamente que essa autoridade seja representativa de uma
nação.
O nacionalismo, portanto, é anterior à nação. Isso, contudo, não significa que esse
discurso tenha surgido espontaneamente. As ideias nacionalistas aparecem quando se verifica
o Estado organizado, já que “a questão do nacionalismo não surge quando não há Estado”
(GELLNER, op. cit., p. 5). Então, se o nacionalismo é anterior à nação, o Estado é anterior ao
nacionalismo. Daí a razão de não se poder falar em nação antes do final do século XVIII, haja
vista que o discurso da nação, o nacionalismo, só se desenvolve efetivamente a partir desse
período.
10 Tradução livre.
22
Mas, para se compreender a nação como um objeto recente na história, constituído
sobretudo a partir do advento da modernidade, é preciso que se faça uma distinção entre as
formas de sociedade pré-industrial e pós-industrial. Anthony Smith afirma que para
compreender a ocorrência de “ambos, a recente prevalência da nação e sua ausência no
período pré-moderno, é necessário correlacionar grandes diferenças entre a civilização
industrial moderna e seus predecessores agrários” (SMITH, 1993, p. 9).
A coerência desse argumento se percebe no desenvolvimento histórico do próprio
conceito de Estado-nação. Antes do período que Gellner (op. cit., p. 5 et. seq.) chama de
estágio agrário, a figura do Estado não era sequer uma opção, portanto, não existia. No estágio
agrário, o autor mostra que o Estado passou a ser uma possibilidade. Entretanto, na fase pós-
agrária, industrial, não havia opção, o Estado tinha que existir. Se de fato não há nação antes
do Estado, então a nação também só surge a partir do período industrial, fundamentalmente o
final do século XVIII e início do XIX.
A legitimação da nação, além dos aspectos políticos e institucionais, se dá através do
reconhecimento, por parte da população, da cultura e ancestralidade comuns a todos. Essa
familiaridade se relaciona diretamente à capacidade do referido governo de gerar e gerir os
meios necessários a essa familiarização. Nessa linha de raciocínio, Hobsbawm afirma que:
na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições “inventadas” caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade
bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações a situações novas
que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória
(HOBSBAWM, 1984, p. 10).
Sendo assim, nota-se que os mecanismos utilizados pelas lideranças a fim de que a
população atribua legitimidade em relação à nação que se pretende construir, podem até
mesmo constituir tradições inventadas efetivamente com esse fim. Mas essas tradições devem
impreterivelmente possuir algum significado para os indivíduos, pois o que está em jogo são
as próprias heranças históricas e sociais as quais se pretende resgatar, inventar ou
supervalorizar.
Cabe salientar, ainda, que o termo invenção deve ser visto com muita cautela, já que
não indica, em última análise, a criação infundada de um ou mais objetos folclóricos. A
invenção se dá sobre as bases culturais preexistentes, e sua força provém não do objeto em si,
mas do que se pretender estabelecer através dele. As tradições aparecem como sendo
invariáveis e corroborantes da instituição – nesse caso, a nação – que se busca afirmar.
23
As tradições assumem um caráter de ampla importância nesse sistema, haja vista que
são elas que fornecem o caráter de legitimidade às próprias lideranças, e isso se verifica no
sentido prático de que quanto mais bem estabelecidas e rígidas forem as tradições, tanto mais
poder possuem os grupos no governantes. De fato, pode-se notar na argumentação de Weber,
que:
A legitimidade da autoridade mais antiga e mais universalmente mantida baseia-se no caráter sagrado da tradição. O temor de penalidades mágicas
fortalece as inibições psicológicas a respeito das mudanças nos modos
costumeiros de conduta. Ao mesmo tempo, um sistema de autoridade continua válido por causa dos muitos interesses empenhados que se
levantam com respeito à sua perpetuação (WEBER, op. cit., p. 63-64).
As relações de poder baseadas na tradição constituem um elemento de extrema
importância na compreensão da formação dos Estados nacionais. Na verdade, o poder
atribuído ao governo como representante máximo dos anseios nacionais é o que, em linhas
gerais, constitui a própria legitimidade do Estado-nação enquanto instituição.
O que se entende por tradição (e nesse contexto também as tradições inventadas) se
refere a categorias inflexíveis de ação social, bem como de rituais, que seriam, por seu turno,
vistos como as mais altas expressões da cultura da nação. O próprio Hobsbawm faz uma
alusão que deixa bem claro o sentido de tradição:
A “tradição”, neste sentido deve ser nitidamente diferenciada do “costume”, vigente nas sociedades ditas “tradicionais”. O objetivo e a característica das
“tradições”, inclusive das inventadas, é a invariabilidade [...] O costume não
pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim, nem mesmo
nas sociedades tradicionais [...] O “costume” é o que fazem os juízes; “tradição” (no caso, tradição inventada) é a peruca, a toga e outros
acessórios e rituais formais que cercam a substância, que é a ação do
magistrado. A decadência do “costume” inevitavelmente modifica a “tradição”, a qual ele geralmente está associado. (HOBSBAWM, op. cit., p.
10)
Pode-se dizer, a partir dessa perspectiva, que as tradições inventadas não necessitam
possuir um caráter de aplicabilidade prática, essa característica é delegada ao que o autor
chama de costume. Esse, por sua vez, pode ser entendido, numa primeira análise, como a
tradição sendo colocada em prática. Já a tradição possui um caráter figuracional que
representa os anseios daqueles que pretendem viabilizar e estabelecer uma relação de poder.
Nesses termos, no processo de construção simbólica da nação, as tradições assumem a
função de criar e consolidar o poder do Estado-nação, e consequentemente do governo por
trás dele. E isso pela atitude peculiar da população em relação à nação, estabelecida pelos
aspectos da tradição nacional. Esse tipo de relação se explica, nas palavras de Weber, por ser
“[...] simplesmente uma reação amortecida – quase automática – a estímulos rotineiros que
24
tem conduzido a ação, repetidamente, ao longo de um curso rotineiro. A maior parte de todos
os deveres cotidianos desempenhados habitualmente pelas pessoas todos os dias é deste tipo”
(WEBER, op. cit., p. 42).
Esse é o tipo de relação que produz a confiança no caráter representativo da nação. Os
símbolos da tradição adquirem a função de atribuir naturalidade à filiação ao Estado-nação, já
que são eles que produzem a identificação entre os membros da nação. Todo esse esforço
construtivo ganha corpo quando aliado à instituição estatal.
Toda essa argumentação faz necessário, a essa altura, um rápido resgate da distinção,
feita anteriormente, entre duas coisas que se confundem quando se fala em Estado-nação, o
Estado e a Nação. Sendo assim, dizer que os mecanismos relacionados à tradição provocam
devoção, por assim dizer, e uma sensação de naturalidade em relação ao Estado nacional, não
significa que o mesmo necessariamente se verifique sempre em relação ao governo estatal.
A repetição das condutas tradicionais e dos costumes possui valor, porque é
considerada perpetuadora da própria nação, e não porque representa o governo em si. A
história contemporânea está repleta de exemplos de críticas e ações contra os governos
nacionais, entretanto, não há razões que levem a crer que possa surgir um movimento anti-
nação. A história do século XX mostra que mesmo quando há luta no interior de um Estado
nacional, observa-se que ela se pauta pelo anseio do reconhecimento e/ou diferenciação e
divisão de duas ou mais nações que dividem o mesmo território. Essas lutas, em última
análise não possuem um caráter de extinção da ideia de nação.
Isso se deve, evidentemente, à engenharia simbólica empregada na construção das
nações. E se todo esse complexo de relações e atitudes acontecem devido ao esforço exercido
no sentido da absorção da ideia de nação, então, ela realmente só pôde ser concebida depois
do surgimento e consolidação do próprio nacionalismo.
Mas há várias formas práticas de se verificar a consolidação das nações. Em relação
aos grupos cuja coesão social foi fortemente estabelecida culturalmente, Anderson (op. cit., p.
19-20) afirma que “se é amplamente reconhecido que os Estados-nação são ‘novos’ e
‘históricos’ as nações a que eles dão expressão política assomam de um passado imemorial e,
ainda mais importante, deslizam para um futuro ilimitado. A mágica do nacionalismo consiste
em transformar o acaso em destino.”
Sendo assim, nota-se claramente a argumentação do autor de que, de fato, os Estados-
nação constituem uma forma política relativamente nova e historicamente datada. O que não
indica, todavia, que o contingente populacional que o compõe tenha, também, sido criado no
25
escopo de organização da nação. Na verdade, se a organização política e territorial é, de fato,
recente, na maioria das vezes o povo o qual se pretende fazer representar possui raízes
histórico-culturais bastante antigas. Nas palavras de Anthony Smith:
Num senso puramente conceitual, as nações devem ter precedência, assim
como o nacionalismo, com a busca pela autonomia, unidade e identidade da
comunidade cultural histórica e territorializada, pressupõe a ideia de nação. Mais importante, a maioria das nações da Europa Oriental e da Ásia foram
criadas em torno de etnias preexistentes [...] Os símbolos, memórias,
tradições e mitos dessas etnias dominantes proveram esses novos Estados nacionais da sua cultura pública, seus códigos simbólicos e repertórios, e
muitos dos seus costumes e leis (op. cit., p. 44)11
.
É importante notar que o conceito que vem sendo trabalho, como dito, engloba não só
as questões institucionais ou étnicas, mas ambas. E isso implica um amplo espectro de
atuação dessa entidade/comunidade, pois ao mesmo tempo em que se afirma socialmente
através das ideias, existindo em primeiro lugar na mentalidade dos seus membros, ela também
conta com os meios práticos que concretizam e, de certa forma, legitimam essa existência.
Pensar a nação, como citado, implica, antes de qualquer coisa, elaborar um discurso
que a apresente à coletividade, a fim de mostrar como esse Estado-nação que se pretende
afirmar é importante para todos os que fazem parte dele. Isso demanda o desenvolvimento de
teorias da nação, bem como o protagonismo de um grupo na consolidação dessa dita
comunidade/instituição. A forma através da qual ela é sentida e percebida pelos cidadãos está
intimamente ligada a esse discurso em prol da nação – discurso nacionalista – que surge e se
intensifica justamente com o intuito de estabelecer laços entre essa entidade aparentemente
abstrata e todos aqueles os quais pretensamente se deseja incluir nela.
O discurso nacionalista se desenvolve par e passo com os símbolos e outros elementos
que permeiam a busca pela originalidade da nação, tendo em vista que o nacionalismo, como
movimento sociopolítico atribui ênfase às suas construções e representações culturais. Sendo
assim, o senso nacionalista serve para conectar os setores mais ativos e organizados da
sociedade àqueles que carecem dessa coesão nacional.
E isso se torna de extrema importância na medida em que existe o anseio, por parte do
grupo considerado na vanguarda do movimento nacionalista, de provocar a participação e
integração no processo, da ampla camada populacional que aparentemente nada teria a ver
com esse dito grupo. Mas, dizer que existe uma aparente lacuna de reconhecimento entre a
população e a nação é uma afirmação bastante delicada, já que a nação não existe, senão por
meio do próprio povo.
11 Tradução livre.
26
É necessário que se compreenda que, em se tratando da gênese de uma mentalidade
que conecte uma série de pessoas a ponto de torná-las igualmente integrantes de uma nação,
não se pode considerar que todos possuam igualmente o mesmo senso nacional, por assim
dizer. Durante o século XIX, que, como já citado, pode ser considerado o período de
recrudescimento das doutrinas nacionalistas, nota-se, de fato, um esforço bastante
significativo dos governos, principalmente europeus, mas também se pode citar o governo
japonês a partir de 1868, de incluir toda a camada populacional do país na ideia de nação e,
por conseguinte, no Estado nacional.
No caso japonês, por exemplo, a restauração Meiji possui um papel fundamental de
protagonismo no processo de construção e consolidação da nação japonesa. Vale lembrar que
no período anterior a esse processo, não havia a ideia de nação consolidada entre a população
japonesa, o que se começou a notar a partir da década de 1870. Surge o Estado japonês
moderno e daí surge a ideia do nacionalismo nipônico. Nesse caso, o alto escalão do governo
agiu diretamente como o grupo diretor do processo, resgatando ou criando símbolos e valores
que possuíssem significação popular, a fim de consolidar nas mentalidades a nação japonesa
moderna.
Através desse cenário, se observa que pelo menos durante o processo de formação e
afirmação do Estado nacional não se pode verificar a coesão nacional que se espera, já que
apesar de todos estarem no mesmo território do Estado, não existe ainda a absorção dos
valores que proporcionam a unidade da população. Ou seja, não há nação antes do discurso
nacionalista. Pode haver o Estado, ou até mesmo uma comunidade étnica bem definida,
entretanto, a nação só ocorre quando há, de fato, o esforço no sentido da sua construção.
A nação dos nacionalistas aparece como uma iniciativa de conscientização da unidade
cultural e da peculiaridade da história nacional. Através disso, os nacionalistas promovem
uma devoção ao cultivo da individualidade nacional, tudo isso através da educação e das
instituições. Smith afirma que:
A cultura nacional demanda uma expressão pública e acaba gerando um simbolismo político. O retorno a uma história autêntica e a uma cultura
vernácula adquire uma forma pública e se torna politizada. A nação cultural
tende a tornar-se a nação política, com uma cultura pública nos moldes e
medidas da sociedade e da política. A nação é, portanto, caracterizada pela ‘cultura política’, com um papel político distinto, suas instituições e seus
símbolos distintos – bandeiras hinos, festivais, cerimônias e coisas do tipo
(SMITH, op. cit., p. 37).
É extremamente necessário que a nação seja mostrada como essa entidade a qual todos
se identificam. Ela é maior do que qualquer indivíduo, mas ao mesmo tempo se apresenta de
27
uma forma tão real e palpável através dos mecanismos culturais, que evoca o sentimento de
que todos devem e precisam defender a sua manutenção. Em linhas gerais a grande ideia
nacional seria amar a nação, observar as leis e defender o território.
Esses mecanismos de construção simbólica agem no sentido de resgatar raízes
culturais comuns e inerentes à nação, que gerem familiaridade entre todos. O grupo na
vanguarda desse processo – normalmente o governo – necessita resgatar valores que façam
sentido para a população. Não se trata simplesmente de inventar a esmo toda uma gama de
símbolos e rituais, já que até mesmo as tradições necessitam de legitimidade para que possam
constituir-se na prática.
Quando se fala em comunidades políticas imaginadas, não se trata de meras invenções
puramente abstratas sem conexão com a vida prática. Na verdade, quando se observa, por
exemplo, a Ásia e a Europa Oriental, nota-se, como já dito, que a maioria das nações nessas
regiões surgiram em torno de comunidades étnicas pré-existentes, nas quais se forma um
verdadeiro culto da autenticidade dos elementos da nação. Acompanhando a argumentação de
Anthony Smith, as nações:
[...] por mais problemáticas que sejam, [devem ser vistas] como
“comunidades reais” com seus próprios direitos, e algo mais do que puramente formações discursivas. A nação não é apenas “falada”, ela é
sentida, desejada, consumida e reencenada simbolicamente em diversas
ocasiões. Embora o conceito de nação possa ser visto como um elevado nível
de abstração, os seus símbolos, o seu imaginário e seus rituais convencionam um senso de tamanha proximidade entre seus membros, que chegam ao
ponto de exigir deles o sacrifício extremo. (SMITH, op. cit. p. 43).12
A nação não é simplesmente um constructo imaginário saído da mente de um gênio.
Há muito mais casos de nações formadas sobre bases étnicas já estabelecidas. Sendo assim, é
necessário retomar a importância dos intelectuais e dos profissionais que atuam no sentido de
construir a nação na prática, o que corrobora a ideia de que o esforço nacionalista aparece
antes da nação, e de que a valorização do sistema educacional é fundamental no sentido de
organizar e estabelecer a nação.
Seria um erro, portanto, considerar que esses intelectuais e profissionais simplesmente
imaginem a comunidade nacional, ou inventem tradições nacionais de forma indiscriminada,
como se fosse ex nihilo13
. Ademais, Geary afirma que, de fato, “acadêmicos, políticos e
poetas do século XIX não inventaram o passado do nada. Eles se basearam em tradições,
12 Tradução livre. 13 Essa expressão em latim indica a ideia de “fazer a partir de nada preexistente”.
28
fontes escritas, lendas e crenças preexistentes, mesmo que as tenham usados de novas
maneiras para forjar unidade ou autonomia política” (GEARY, 2005, p. 29).
A nação exerce influência na vida das pessoas de uma forma tão gigantesca que acaba
se tornando uma parte naturalmente constituinte de sua vida. E isso se torna ainda mais latente
quando se trata de grupos que já estavam constituídos previamente. Os membros da nação se
sentem tão naturalmente parte dela, que é como se sempre tivesse sido assim, ou seja, como se
esse tipo de organização política e simbólica sempre pudesse ter sido verificada ao longo da
história.
Evidentemente, como procuramos mostrar anteriormente, pensar a nação como sempre
tendo existido é uma visão bastante equivocada em termos de análise, já que como afirma
Ernest Gellner, “de fato, nações, assim como os Estados, são contingenciais, e não
necessidades universais. Nem nações e nem Estados sempre existiram em todos os tempos e
circunstâncias. E, ainda, eles não são a mesma contingência” (GELLNER, 2008, p. 6)14
. Além
do mais, Smith corrobora essa visão, afirmando que
qualquer suposição a respeito da universalidade das nações ou dos nacionalismos só podem ser atribuídos à retenção de crenças e ideais
nacionalistas dentro das próprias comunidades eruditas, crenças e ideais que
são profundamente enganosas para análise e explicação, e talvez também
para ação política (SMITH, 1993, p. 9).
Não se pode considerar que todos os povos ao longo dos tempos formassem
organizações sociais no formato da nação. De fato, há incontável formas de organização
sociopolítica que não a nação. Nesse sentido se torna até um equívoco analítico considerar
que já houvesse nações antes mesmo do esforço nesse sentido.
Entretanto, a fim de ilustrar o sentimento provocado pela construção social da ideia de
nação para os indivíduos, essa lógica se encaixa perfeitamente. O indivíduo que se considera
membro desse grupo, passa a reproduzir, não apenas simbolicamente, mas efetivamente nas
atitudes cotidianas, os valores da sua respectiva nação. A absorção dos valores se faz de forma
tão sólida que provoca naturalidade à filiação nacional.
Esse poder exercido pelo estabelecimento da nação, analisado historicamente, pode ser
compreendido levando-se em conta que numa conjuntura internacional de rivalidades e da
busca pela afirmação de interesses políticos, “os homens ainda não conseguiram conceber
uma forma prática que transcenda o Estado-nação” (BEINER, op. cit., p. 34). Ou seja, a
instituição estatal, é vista, segundo essa visão, ainda como a melhor forma prática de
14 Tradução livre.
29
organização política moderna. E, nessa análise, pode ser que o modelo nacional venha a ser
sobrepujado, ou não.
Mas, se na prática é assim que ocorre, isso não significa dizer, em última análise, que
os homens não consigam imaginar outras formas de organização política. Segundo a
argumentação de Ernest Gellner, “embora o homem moderno tenda a valorizar o Estado
centralizado (e mais especificamente, o Estado nacional centralizado), ele é capaz, com
relativamente pouco esforço, de imaginar uma situação social na qual o Estado está ausente”
(GELLNER, op. cit., p. 5). Esse é o caso das tribos, por exemplo, que não podem ser
consideradas, evidentemente, Estados nacionais.
Quando se afirma que os homens ainda não conceberam uma forma melhor de
organização política além do Estado-nação, obviamente referimo-nos ao homem ocidental
moderno, herdeiro da Revolução Francesa. Contudo, no caso dos povos orientais essa
concepção acabou por se tornar também uma demanda, na medida em que passaram a
estabelecer um contato mais próximo com o ocidente. Um contato, que a partir
fundamentalmente do final do século XIX, passaria não mais a ser unilateral, mas constituiria
um relacionamento (no caso japonês principalmente) em que ambos procurariam estabelecer
seus interesses.
Essa troca de experiências mostrou aos orientais que seria necessário que absorvessem
alguns valores do ocidente para que pudessem se contrapor às ambições dos países europeus.
Isso fica ainda mais latente no caso dos nipônicos, que através da restauração Meiji
procuraram estabelecer um Estado-nação, ainda que aos moldes orientais, para rivalizar com a
presença dos ocidentais no sudeste asiático, e mesmo para que o Japão não se tornasse, assim
como a China, uma quase colônia ocidental.
O nacionalismo surge onde o Estado é presente e/ou onde há mecanismos que
funcionem como reguladores da vida social. É interessante que os mecanismos simbólicos
envolvidos na construção do pertencimento à nação, que funcionam sobretudo através do
discurso nacionalista, proporcionam um cenário no qual se torna praticamente impensável não
ser membro de uma nação.
A esse respeito, vale a pena observar a argumentação de Beiner de que “a geopolítica
no século XX é ainda conduzida no nível dos Estados-nação e eles (obviamente com poder
desigual) são os personagens principais nesse drama. Se você não gostar do seu Estado-nação,
o plano alternativo na política (senão individualmente) é criar um novo” (BEINER, op. cit. p.
30
34). Normalmente na política não há a opção de ser apátrida. Ou o indivíduo é membro de
uma nação, ou ele é membro de uma nação.
E isso é, de fato, uma regra com raríssimas exceções. Cabe ressaltar, como destaca o
autor, os casos da Índia-Paquistão-Bangladesh e do Canadá-Quebéc, por exemplo. Ambas são
situações nas quais o descontentamento com os rumos tomados pelo Estado-nação original,
por assim dizer, se tornaram incongruentes com os anseios de ampla parcela populacional,
que ao invés de preferir tornar-se livre do Estado nacional, optou por formar uma nova
instituição política organizacional, só que mantendo os mesmos moldes estruturais.
Esses mecanismos podem ser entendidos partindo-se das raízes culturais da formação
do Estado-nação. Os valores culturais exercem influência no sentido de homogeneizar as
atitudes dos indivíduos em relação a essa entidade abstrata – a nação – que se estabelece na
prática. Homogeneidade, logicamente entendida dentro das suas limitações, num contexto
amplo em que se observa que mesmo apesar dos esforços no sentido de construí-la, ela não é
alcançada na sua plenitude.
A cultura nacional, empregada nesse esforço, oferece em grande medida o substrato
sobre o qual se estabelece a nação. E isso significa que é essa cultura que definirá qual será a
postura do Estado nacional constituído, em relação aos diversos assuntos pertinentes. Os
valores culturais aparecem quase como balizas valorativas que permeiam as atitudes dos
indivíduos membros da nação. Dessa forma, as nações “[...] são caracterizadas por um grau de
unidade e distinção cultural, que, em contrapartida, adquire muito da sua potência e
durabilidade de uma convicção de solidariedade étnica” (SMITH, op. cit. p. 45).15
A unidade cultural, nesse contexto, se torna condição sine qua non para a manutenção
política da nação. Segundo Gellner (op. cit. p. 54) “as culturas parecem ser os repositórios
naturais da legitimidade política”. Nesses termos, o nacionalismo, como movimento
sociopolítico atribui um papel de destaque às suas construções e representações culturais, que,
por sua vez, contribuem diretamente para o esforço nacionalista.
A cultura deve ser vista como uma parte fundamental da constituição da nação, já que
é o conjunto cultural o que provoca o senso de reconhecimento entre os membros da nação.
Na verdade, nesse caso não se deve observar a cultura num sentido antropológico, mas atentar
ao que a cultura faz. Deve-se levar em consideração quais são os impactos sociais gerados
pela difusão e absorção de uns ou outros valores culturais.
15 Tradução livre.
31
Não basta a institucionalização econômica do Estado para gerar o reconhecimento e o
senso de pertencimento à nação. O fator de unidade cultural vai além da solidariedade
estabelecida por parcerias ou até mercados regionais de caráter geográfico ou político-
administrativo, pois como afirma Anderson (op. cit., p. 63) esses mercados “‘naturais’ [...] ,
por si sós, não criam lealdades. Quem estaria disposto a morrer pelo Comecon ou pela CEE?”.
Não pretendemos indicar, com esse argumento, que o interesse econômico não produza
laços efetivos de relacionamento e reconhecimento. Pretendemos sugerir, por outro lado, que o
senso nacionalista vai muito além do interesse econômico, já que, de fato, ninguém em sã
consciência se disporia a dar a vida em sacrifício em favor de um bloco econômico, mas isso se
verifica em larga escala quando o assunto é a nação.
Sendo assim, os desdobramentos sociais gerados pelos valores culturais de uma
determinada nação possuirão influência direta na forma através da qual a nação se constituirá.
Os costumes e as leis servem não só para criar a unidade nacional, mas também para provocar
uma diferenciação em relação aos povos além das fronteiras. Isso se torna claro na
argumentação de Beiner, de que:
Qualquer sociedade [...] prefere os seus próprios costumes aos de outras
sociedades. De fato, possuir costumes que se prefere àqueles de outras
sociedades é o que, de um ponto de vista cultural, determina o ser uma
nação. Qualquer sociedade está disposta a lutar se a necessidade surgir, ou se houver o senso de que há pelo menos alguma chance de sucesso, pelas
cinzas de seus pais e pelo altar dos seus deuses (BEINER, op. cit., p. 36).16
A questão da unidade cultural produz um esquema social no qual cada indivíduo se
considera parte integrante e importante do grupo ao qual pertence, e isso se faz observando-
se, fundamentalmente, que há muitos que não fazem parte do grupo. Surge a ideia de que a
nossa comunidade é preferível à de outros, e por isso, somos orgulhosos por fazer parte dela.
Além disso, Smith afirma que “o cultivo de simbologias pressupõe o surgimento de uma
classe especialista de comunicadores com talento para selecionar, interpretar elementos da
herança comum a novas situações” (SMITH, op. cit., p. 49).
Sendo assim, é necessário saber, de fato, quem faz parte do grupo. Gellner (op. cit., p.
6-7) argumenta que duas pessoas só podem ser consideradas da mesma nação se possuírem a
mesma cultura, e essa entendida como um sistema de ideias, crenças, símbolos, modos de agir
e se comunicar. Mas não é só isso. A resolução de quem faz ou não parte do grupo perpassa a
ideia de reconhecimento por parte dos outros membros da nação. Ou seja, o indivíduo
16 Tradução livre.
32
necessita se considerar parte da comunidade e deve, da mesma forma, ser assim considerado
pelos outros.
O nacionalismo, nesse sentido, se torna muito parecido esteticamente com o discurso
religioso. A entidade sagrada do nacionalismo é a própria nação, que tem atribuídos a si um
senso de naturalização e inquestionabilidade, que acabam por provocar uma atitude rígida e,
em grande medida, engessada da população em relação à questão nacional. Atitude essa que
torna impensável não se devotar às causas da nação.
Isso ocorre, levando em conta que o nacionalismo, segundo a análise de Smith, “[...]é
muito mais do que uma ideologia política, ele é tanto uma forma de cultura quanto uma
‘religião’. Essa linha de raciocínio focaliza no ponto principal do nacionalismo, a ‘nação’” (p.
36). E, nesses termos, esse objeto central se torna, em determinados cenários uma instituição
sagrada.
O valor simbólico de cada aspecto cultural se faz sentir na medida em que proporciona
atitudes em favor da nação. Essa engenharia mental ganha corpo no sentido de produzir
símbolos que serão absorvidos pela população, sempre em vias de engrandecer o Estado
nacional. Nas palavras de Smith,
Sociologicamente falando, isso significa que as nações, por definição, são
repetidamente formadas e reformadas nas bases de processos simbólicos de
etnogênese, como nos casos da criação dos nomes, definição das fronteiras, mitos de origem e cultivo de simbolismos. Mas apenas em parte. Esses
processos, por si sós, não fazem uma nação; por isso, outros processos
políticos e sociais são necessários (SMITH, op. cit., p. 49).17
A cultura – e aqui também subentendidos a tradição e os costumes – representa o
campo prático do estabelecimento das nações. Isso porque é ela, entendida sociologicamente,
como apontado anteriormente, que estabelece os parâmetros que serão seguidos pelos
membros da comunidade política imaginada da nação. Sendo assim, é fundamental atentar
não para cada aspecto da cultura isoladamente, mas perceber quais mecanismos são
engendrados pela complexidade cultural.
Da mesma forma, vale salientar que a ocorrência desses aspectos, ainda que todos eles
juntos, mas desprovida de uma série de outros fatores políticos, bem como um espaço
territorial definido (ou que se pretende definir) e a preexistência de um Estado, não são
suficientes para o estabelecimento de uma nação. É necessária, como procuramos mostrar, a
conjunção de todos esses fatores para que se possa falar em nação.
17 Tradução livre.
33
A comoção popular e o senso de familiaridade e proximidade entre os membros do
Estado-nação, nessa linha de raciocínio, se estabelece de forma muito mais complexa e
fortalecida do que por simples interesse particular ou anseio por algum tipo de vantagem
política ou econômica individual.
A noção de bem-estar da nação se torna quase que um consenso entre todos.
Simbolicamente, a nação é construída e apresentada à população como representante de tudo
o que há de melhor em cada indivíduo. Nesse contexto as manifestações, ritos e locais
folclóricos possuem um papel de destaque, tendo em vista que eles representam uma parte
considerável do que é a nação colocada na prática.
E isso se deve aos mecanismos que são gerados pela cultura, já que “o objetivo dessa
indústria cultural seria empregar história e arqueologia, filologia e antropologia, bem como as
artes, não apenas para servir de aparência às pessoas, mas para autenticar a nação, para revelar
sua verdadeira essência e sua natureza pura” (SMITH, ibid., p. 56).
Os indivíduos passam a absorver esses valores culturais e a reconhecer as
manifestações folclóricas nacionais como sendo realmente representativas daquilo que é a
nação. Isso se torna nitidamente verificável quando se trata de monumentos e/ou rituais que
pretendem resgatar uma história ou tradição nacional. Eles possuem efetivamente um respaldo
popular que por si só já seria suficiente para garantir a sua existência.
Isso porque, como buscamos apontar, o aspecto cultural mais relevante, do ponto de
vista dos grupos de vanguarda na construção do Estado-nação, é justamente o cenário que o
conjunto cultural é capaz de proporcionar. Dessa forma, não basta erigir grandes monumentos
em prol da afirmação de uma tradição ou uma história nacional, se eles, na prática, não forem
capazes de promover e evocar os mais variados e intensos sentimentos populares em favor da
nação.
Quanto ao caráter de sacralidade que a nação acaba por assumir para os cidadãos,
pode-se dizer que o Estado nacional se torna, em grande medida, herdeiro do pensamento
religioso. Se é verdade que a nação assume um papel quase que sagrado para os que a
integram, então seria correto afirmar que a vida de cada indivíduo só faz sentido quando
direcionada em favor da nação.
Nesse sentido, o papel da língua nacional é um aspecto que também se destaca
sobremaneira na construção do Estado-nação, já que a linguagem representa, ela mesma, um
fator de coesão nacional. A língua e os símbolos nacionais exercem papel preponderante na
34
constituição da nação. A análise de cada símbolo constituído é fundamental devido à
abrangência do seu objeto, a nação.
É preciso notar, ainda, que se o uso de uma linguagem universal foi crucial para a
manutenção de uma força transnacional das comunidades religiosas, ou seja, se o fator
coesivo representado pela linguagem representou destacado papel no estabelecimento dessas
comunidades, por outro lado, o enfraquecimento do poder dessa língua (latim, por exemplo)
representou uma grande fragmentação, territorialização e pluralização dessas comunidades
religiosas imaginadas.
Da mesma forma, o fortalecimento de línguas que se pretendem nacionais viabiliza a
afirmação dos Estados nacionais. E já que os símbolos religiosos e dinásticos são capazes de
provocar uma coesão muito bem estabelecida, então o enfraquecimento desses tipos de poder
abre caminho para que outras comunidades imaginadas se estabeleçam como representantes
da coesão social e como guardiãs da tradição popular.
Entretanto, esse é um argumento que precisa ser bem entendido, para que não sirva a
um entendimento errôneo. As nações não se estabelecem estritamente onde o discurso
religioso se encontra enfraquecido. Muito pelo contrário. Anderson afirma que:
Seria uma visão acanhada [...] pensar que as comunidades imaginadas das
nações simplesmente tenham brotado das comunidades religiosas e dos
reinos dinásticos e tomado seu lugar. Por trás da decadência das comunidades, línguas e linhagens sagradas, tinha lugar uma mudança
fundamental nos modos de apreender o mundo, que, mais do que qualquer
outra coisa, tornou possível "pensar" a nação (ANDERSON, op. cit., p. 31).
Sendo assim, mais uma vez se trona clara a necessidade da conjunção de uma gama
muito mais complexa de fatores para que se estabeleça a nação. Os fatores de ordem política,
simbólica, cultural, folclórica, histórica, e por aí adiante, são igualmente necessários e
importantes na composição das comunidades imaginadas das nações. A língua nacional
aparece, assim, como facilitadora do processo de construção da autoimagem nacional.
O surgimento dos estados nacionais e a necessidade do fortalecimento das línguas
nacionais na Europa, por exemplo, colocaram em pé de igualdade as línguas desses diferentes
países no âmbito internacional, tendo em vista que havia, nesse ínterim, a necessidade de
comunicação e interação entre esses países. Isso se comprova pelo surgimento dos dicionários
monolíngues e bilíngues, que aproximavam e relacionavam esses conjuntos simbólicos das
nações.
É interessante notar que o fortalecimento dos Estados-nação provocava uma via de mão
dupla, na medida em que, se existia, por um lado, a necessidade do fortalecimento interno dos
valores nacionais, por outro lado isso se fazia normalmente num esquema de nós em
35
contraposição a eles. Sendo assim, não basta que seja estabelecido todo o constructo cultural que
dá embasamento à manutenção da nação, é necessário também que surjam nesse contexto fatores
externos que justifiquem a autoafirmação do grupo nacional.
Não basta, então, apenas o reconhecimento de quais são os membros da comunidade
nacional. É necessário, também, que estabeleça uma diferenciação em relação aos que estão
de fora dessa nação. Nota-se, na argumentação de Weber, a importância da contraposição a
outro grupo que esteja de fora do cenário social gerado pela nação:
É apenas com o surgimento de diferenças conscientes, em relação a
terceiros, que o fato de dois indivíduos falarem a mesma língua e
compartilharem de uma situação comum pode levá-los a experimentar um sentimento de comunidade e a criar modos de organização conscientemente
baseados na participação de uma língua comum (WEBER, op. cit., p. 74).
Já que a nossa nação e os nossos costumes são, para nós, melhores do que os dos
outros, naturalmente nós constituímos um grupo muito bem estabelecido, o que faz com que
as outras comunidades sejam simplesmente os outros. Nas palavras de Norbert Elias “a
complementaridade entre o carisma grupal (do próprio grupo) e a desonra grupal (dos outros)
é um dos aspectos mais significativos do tipo de relação estabelecidos-outsiders” (ELIAS, op.
cit., p. 23).
Essa postura dos membros de uma mesma nação que conta com uma autoimagem de
grupo coeso provoca uma atitude de supervalorização dos seus valores em detrimento dos
valores de outras nações. Isso indica que a noção de que os valores e crenças nacionais
funcionam para o indivíduo como balizadores do seu relacionamento com os outros membros
da nação, gera, por outro lado, uma reação um tanto depreciativa em relação aos valores de
outras nações. A análise de Elias (2000, p. 23) ajuda a compreender esse processo:
Há uma tendência a se discutir o problema da estigmatização social como se ele fosse uma simples questão de pessoas que demonstram, individualmente,
um desapreço acentuado por outras pessoas como indivíduos [...].
Entretanto, isso equivale a discernir apenas no plano individual algo que não
pode ser entendido sem que se o perceba, ao mesmo tempo, no nível do grupo [...]. Portanto, perde-se a chave do problema que costuma ser
discutido em categorias como a de “preconceito social” quando ela é
exclusivamente buscada na estrutura de personalidade dos indivíduos. Ela só pode ser encontrada ao se considerar a figuração formada pelos dois grupos
implicados ou, em outras palavras, a natureza de sua interdependência.
As relações de poder entre os grupos nacionais gera uma atmosfera de rivalidade entre
eles. Sendo assim, a própria construção simbólica dessas comunidades políticas imaginadas
oferece o escopo de observação para a análise desse fenômeno. A contraposição aos membros
de outras comunidades acontece na medida em que há sobreposição dos valores culturais das
nações envolvidas, no sentido de perceber no outro tudo o que não se deseja ser.
36
Sob esse prisma, o fato de os nossos valores serem preferíveis aos dos outros provoca
cada vez mais o fortalecimento interno do próprio grupo, influenciando, ainda, na absorção da
cultura nacional como sendo natural e perfeitamente aceitável. A nação construída pelos
nacionalistas aparece como sendo portadora da cultura e história ancestral da população em
questão e, assim, torna-se realmente digna do esforço em seu favor.
Esse é um processo que, como dito, não deve ser encarado como natural, ou analisado
simplesmente no plano individual. Os processos de estigmatização do outro perpassam
questões que vão muito além do relacionamento individual entre as pessoas, eles são, na
verdade, categorias das relações sociais coletivas que provocam a rotulação, não de um
indivíduo isoladamente, mas de todo um povo em relação a outro. Isso quer dizer que a
imagem que é criada não diz respeito somente a essa ou aquela pessoa, mas a todos os
membros da comunidade.
A explicação para esse processo passa pelo entendimento da complexidade do
relacionamento entre os dois ou mais grupos envolvidos, ou seja, além do esquema de
construção de cada uma das nações envolvidas, é fundamental que se observe o
desenvolvimento das relações entre elas. As rotulações que são geradas a partir desse
encontro é que estabelecem qual será a imagem que cada um dos grupos envolvidos terá do
outro.
O relacionamento entre as nações, entendido de forma muito mais profunda do que
simplesmente o relacionamento entre os Estados burocráticos, possui, nesse sentido, um papel
fundamental para a própria constituição dos nacionalismos. A interação entre esses
indivíduos, de forma coletiva, molda a representatividade que um terá para o outro. Nas
palavras de Spencer, “[…] fundamental a todas as formas de nacionalismo são os processos
de categorização que cria e reproduz como inimigos, estrangeiros e todos aqueles que não se
encaixem na nação, bem como estimula um senso de ‘profunda camaradagem horizontal’ para
aqueles que estejam incluídos na nação” (SPENCER, op. cit., p. 2).
O senso de coesão interna se fortalece cada vez mais, à medida em que há um inimigo
externo comum ou mesmo um estado de coisas as quais os membros da nação desejam evitar
a todo custo. Sendo assim, o fato da imagem de outra nação ser construída por nós com uma
representatividade pejorativa provoca quase que automaticamente um repúdio por ela, uma
atitude de vê-la como um modelo antagônico ao nosso, e por isso precisa ser evitado.
Os membros de uma mesma nação com valores culturais bem estabelecidos passam a
ter uma autoimagem através da qual se enxergam como uma grande família, mesmo
37
observando-se as peculiaridades individuais. E mesmo que haja diferenças acentuadas em
relação a algum aspecto da vida cotidiana, é o próprio pertencimento à mesma nação que
provoca a sensação e a certeza de homogeneidade.
Os laços de “profunda camaradagem horizontal” (id.) que são criados e estimulados
funcionam como a argamassa dos processos sociais envolvendo os membros da nação. Dessa
forma, o fato de ser alemão, americano ou japonês, por exemplo, ou seja, o fato de o
indivíduo possuir uma autoimagem de identificação com a comunidade e, mais do que isso,
ser aceito pelos seus pares como legitimamente integrante desse grupo, é o que garante uma
postura social orientada a determinados valores ou a outros.
As idiossincrasias de cada nação, entendidas na sua complexidade, formam uma teia
de relacionamentos sociais norteada fundamentalmente pela disputa pelo poder. Isso se
transfere inequivocamente para o relacionamento entre as nações, onde se observa
nitidamente a luta em função do poder. E essa luta determina, evidentemente, a vitória de uns
em detrimento de outros. A respeito dessa disputa pelo poder empreendida pelas nações, é
interessante a análise de Morgenthal de que:
o mundo, imperfeito como é do ponto de vista racional, resulta do
encontro de forças inerentes à natureza humana. Assim, para poder
melhorar o mundo, seria necessário trabalhar com essas forças, e não
contra elas. Tendo em vista que vivemos em um universo formado por
interesses contrários, em conflito contínuo, não há possibilidade de
que os princípios morais sejam algum dia realizados plenamente,
razão por que, na melhor das hipóteses, eles devem ser buscados
mediante o recurso, sempre temporário, ao equilíbrio de interesses e à
inevitavelmente precária solução de conflitos (MORGENTHAL,
2004, p. 4).
Essa argumentação suscita a ideia de que a busca pelo poder, ou seja, a busca pela
afirmação da nação frente às outras, gera um cenário de rivalidades e antagonismos no qual
aquelas nações que puderem estabelecer os seus interesses mais do que as demais serão as que
de forma real estabelecer-se-ão no cenário mundial como potências, sendo relegado às demais
comunidades nacionais o papel de coadjuvantes, ou mesmo de povos subjugados.
Todo esse mecanismo simbólico pressupõe, além da participação efetiva dos membros
da nação, a atuação forte daqueles que estão em posição de liderança, os que representam, na
prática, a figura do Estado. Sendo assim, esses indivíduos, no caso da discussão empreendida
até aqui sobre o que é a nação, precisam contar com um considerável grau de legitimidade
popular, o que leva à necessidade de uma análise desse processo de afirmação e legitimação
das lideranças.
38
Em relação às noções de dominação, é necessário que se observem os mecanismos
através dos quais as autoridades constituídas – por imposição ou adesão – consolidam seu
poder social e também de que formas os indivíduos absorvem essas construções mentais e os
tornam válidos. Nota-se, segundo a argumentação de Weber, que “a validação de uma
autoridade deverá significar, portanto, mais que a mera regularidade da ação social,
determinada pelo costume ou interesse próprio” (WEBER, op. cit., p. 53).
Sendo assim, nota-se que a legitimação da dominação de uma autoridade se faz através
de mecanismos que vão muito além da aceitação de normas ou costumes. Está relacionada,
entre outras coisas, ao sentido que as ações da autoridade, e ela mesma, têm para os
indivíduos socialmente organizados sob essa liderança. E isso acontece, tanto em relação à
liderança de uma figura carismática quanto em relação à aceitação de quaisquer instituições
pela população.
A construção dos mecanismos que receberão significação pela população pode, em
alguns casos, levar a um chauvinismo que se pauta pela supervalorização das instituições que
representam, na prática, a nação. Por isso mesmo, a compreensão do estabelecimento desses
mecanismos de coesão social precisa observar o anseio pela conquista de legitimidade e
manutenção do poder. Num grande número de casos, esses processos de afirmação nacional
no cenário mundial levam à adoção de medidas violentas e/ou dos meios que forem
considerados necessários para se alcançar os objetivos. A esse respeito, Beiner afirma que:
A articulação desse tipo de chauvinismo está intimamente ligada à
guerra. As grandes datas do chauvinismo nacional são quase todas
relacionadas às datas de batalhas ou tratados de paz que concluíram
com sucesso guerras de libertação nacional [...] A guerra foi o grande
motor da expansão nacional, não apenas no sentido mecânico da
conquista militar de territórios [...] mas também num sentido
psicológico, escorregadio, porém igualmente significativo e que
constitui um senso de solidariedade nacional. (BEINER, op. cit., p.
37).
O papel desempenhado pelas lideranças nacionais, no sentido de fortalecer a ideia de
coesão nacional e, sobretudo, em contraposição às demais nações, tem ligação direta com a
formação cultural nacional. O esforço nacionalista de cristalização das datas e manifestações
ditas nacionais, e principalmente datas e manifestações relativas a guerras e/ou feitos heroicos
oferece o fermento que faz crescer o orgulho da nação.
O que se deve atentar nesse mecanismo simbólico é a maneira através da qual são
vistos os que estão de fora da nação, ao mesmo tempo em que se solidifica a noção de que
essa nação é preferível às demais, ou seja, a comunidade nacional merece todo o esforço em
39
seu favor, a fim de que se afirme frente o cenário mundial. Sendo assim, a liderança passa a
ser vista como guardiã da honra e dos interesses nacionais.
Essa noção contribui para a ideia de que se a liderança nacional age em função do
estabelecimento dos interesses comuns da nação, então esse grupo (ou indivíduo) na
vanguarda das decisões possui uma autoridade legítima. Dessa forma, quando há a devida
significação, por parte da população, das ações dos líderes, entende-se que há, de fato, a
legitimação da dita autoridade. Nas palavras de Weber (id, p. 54):
Verdadeiramente, a conduta pode ser orientada a uma autoridade por
vários motivos. Mas o fato de que, ao lado de outros motivos, a
autoridade seja mantida também ao menos por alguns dos outros
indivíduos como sendo digna de imitação ou obrigatória, naturalmente
aumenta num grau considerável a probabilidade de que a ação de fato
se ajuste a ela.
Tomando como base esse argumento fica mais claro o entendimento da devoção e da
paixão observadas nos indivíduos quando o assunto é a comunidade nacional. Isso é um fato
interessantíssimo, já que muito além de uma abordagem individualizante que desconsidere o
caráter social dos eventos concretos, essa análise leva em conta as interações entre as
lideranças e os outros indivíduos envolvidos, socialmente falando. Em outras palavras, a
construção de determinados símbolos e padrões de conduta considerados legitimamente
representantes da nação provocam a noção coletiva de que todas as ações em prol da nação, e
nesse caso norteadas pelo comando das lideranças, são amplamente justificáveis, tendo em
vista a sobrevivência da comunidade.
Isso ocorre justamente devido ao culto à individualidade da nação, uma questão que
exerce grande influência sobre as atitudes dos membros do grupo. Em relação a um grupo de
indivíduos, acreditar que se pertence a uma nação que é preferível à outra, provoca a ideia de
que é realmente necessário que se defendam os elementos peculiares relativos à cultura
nacional e, mais ainda, que se estabeleça, de fato, uma diferenciação em relação às demais
culturas.
Além do mais, é primordial que o modus vivendi experimentado pelos membros da
nação seja mantido e se perpetue, a fim de que a legítima cultura nacional sobreviva aos
tempos. Por isso, então, é fundamental que haja realmente o direcionamento de cada membro
da comunidade aos padrões de vida e comportamento estabelecidos pela liderança, e para isso,
ela precisa ser, além de aceitável, portadora de uma legitimidade amplamente constituída.
Sendo assim, como apontamos, a cultura nacional é construída sobre bases que
legitimem um poder estabelecido, seja ele representado pela figura do Estado em si, ou por
40
um grupo no poder. As ideias e as noções que são divulgadas e repetidas agem no sentido de
fortalecer o conceito de que todos devem amar a nação, como portadora oficial da cultura do
povo em questão; observar as leis, que são vistas como reguladoras e garantidoras da
autoridade nacional; e defender o território, que, em última análise, é a casa da nação.
Essas três características expressam muito bem a dinâmica do discurso nacionalista, já
que apontam sempre para a valorização da comunidade nacional. A institucionalização do
Estado e das leis escritas funciona, nesse sentido, como mantenedora da organização (e a
cargo disso a perpetuação) da comunidade imaginada da nação. Dessa forma, o próprio grupo
diretivo aparece no papel de protetor oficial da sobrevivência e da peculiaridade da nação.
O território nacional aparece como um fator preponderante, na medida em que não há
como pensar em nações modernas, no sentido estrito do termo, sem que possuam um espaço
geográfico. Sendo assim, o estabelecimento das fronteiras territoriais é um fator de extrema
importância para as nações modernas, sobretudo a partir do final do século XIX, período em
que há um recrudescimento na relação entre as nações europeias. O nacionalismo serve, nesse
momento, como a mola mestra dos processos de demarcação das fronteiras.
A população nacional, orientada por símbolos que supervalorizam a sua comunidade
constituída, age em defesa do Estado nacional, a fim de garantir a sua sobrevivência.
Sobrevivência essa que deve ser garantida custe o que custar. Nas palavras de Beiner, no
sistema nacional, da forma como está posto,
[...]os Estados permanecem, pelo menos, comunidades de segurança mínima,
máquinas de autodefesa humana. E autodefesa, num nível comunal, como a defesa de modos de vida, direitos, autonomia coletiva, não constitui uma
questão individual e não pode ser moralmente ou na prática, reduzida a um
senso egoísta individualista (BEINER, op. cit., p. 37).
Como comunidades de segurança, os Estados necessitam garantir a segurança dos
cidadãos e a manutenção de sua própria soberania, o que perpassa pelo jogo de poder entre as
nações. Se o poder nesse caso puder ser entendido como a capacidade de impor um não e
extrair um sim, então, observando-se o contexto do século XIX, é possível notar que essa
prática se estabelece nitidamente através das políticas imperialistas empreendidas por
inúmeras nações – Inglaterra, Japão pós-1868, Alemanha pós-1870 – em relação a outras
comunidades que não podiam, nessa lógica de raciocínio, se autoafirmar como nações fortes.
O imperialismo, como política de estabelecimento de poder e dominação, com vistas à
obtenção de ganhos de qualquer espécie, especialmente financeiros, pressupõe um tipo de
relação que, comparado à análise de Norbert Elias, pode ser considerada do tipo estabelecidos
41
X outsiders. Mas para se compreender essa dinâmica de relacionamento é necessário recorrer
à análise de Weber acerca de poder e dominação. O autor argumenta que:
Entende-se por poder a oportunidade existente dentro de uma relação social
que permite a alguém impor a sua própria vontade, mesmo contra a resistência e independentemente da base na qual esta oportunidade se
fundamenta. Por dominação entende-se a oportunidade de ter um comando
de um dado conteúdo específico, obedecido por um dado grupo de pessoas. Por “disciplina” entende-se a oportunidade de obter-se obediência imediata e
automática de uma forma previsível de um grupo de pessoas, por causa de
sua orientação prática ao comando (Weber, op. cit., p. 97).
A política imperialista funciona na medida em que se estabelecem os parâmetros
simbólicos de autoafirmação de uma nação em detrimento de outra, ou seja, é uma relação
entre a autoimagem de poder de um grupo estabelecido e a imagem de fraqueza e impotência
de outro grupo. Ambas as comunidades acabam por absorver esses mecanismos simbólicos de
representação coletiva, fazendo com que até mesmo a própria população dominada se veja
como inferior à outra.
O fato de se impor a sua vontade à de outrem independente da circunstância, por si só,
já denota uma relação de poder. A luta pelo estabelecimento dessa vontade geralmente leva a
hostilidades e conflitos nos quais o ponto nevrálgico é a aceitação ou não da dominação, ou
seja, se a nação que se pretende como dominadora realmente possui, ou não, os meios
necessários para impor a sua vontade. Isso não significa que um dos grupos simplesmente
passe a considerar o outro como superior a si, mas está relacionado à estrutura de poder bélico
e simbólico dos quais está munida a nação, ou seja, não basta derrotar o inimigo fisicamente,
é necessário que ele também seja vencido psicologicamente.
A vitória no campo das mentalidades é importantíssima já que proporciona o
estabelecimento, de fato, dos interesses do grupo vencedor sobre o grupo dominado. Sem a
vitória simbólica, ainda que belicamente um dos grupos seja incrivelmente superior ao outro,
não há a construção de um imaginário que permita a consolidação dos processos de
dominação. Ou seja, é fundamental que uma das nações se renda à outra para que os
mecanismos se ajustem a fim de estabelecer uma relação de poder, o que não indica, todavia,
que o imperialismo esteja circunscrito ao campo das mentalidades.
Um exemplo muito claro em relação a essa dinâmica dos conflitos é o que diz respeito
ao final da Segunda Guerra Mundial, no contexto da derrota japonesa. Os mecanismos de
construção ideológica da nação japonesa18
se davam no sentido de formar coletivamente a
18 As questões referentes à construção simbólica da nação e do imperialismo nipônicos serão mais
detalhadamente trabalhadas no capítulo 2.
42
ideia de que o povo nipônico era superior a qualquer outro, ou seja, seria inconcebível a nação
japonesa ser dominada por qualquer outro povo.
Sendo assim, mesmo com a superioridade bélica estadunidense, estabelecida
sobretudo a partir de 1943, após a batalha de Midway, os japoneses não reconheciam as
crescentes vitórias conquistadas pelos americanos, o que fazia com que o Exército Imperial se
lançasse incessantemente nas batalhas perseguindo o êxito, mesmo que fosse seguidamente
derrotado e tivesse milhares de soldados mortos.
Isso ocorre justamente pelo fato dos japoneses coletivamente considerarem um ato
extremamente vergonhoso o de render-se aos americanos, que eram vistos como os
“bárbaros” ocidentais. Nesse contexto, mesmo com as bombas atômicas de Hiroshima e
Nagasaki não há uma rendição imediata da nação japonesa, ou seja, o reconhecimento de que
realmente o conflito havia levado a nação japonesa à exaustão.
É somente quando o próprio imperador faz um pronunciamento à população japonesa
reconhecendo a derrota, que os nipônicos deixam a empreitada bélica. Mesmo que as bombas
tenham provocado a declaração de Hiroíto, é somente a partir das palavras proferidas por ele
que os soldados, e a população em geral, imediatamente deixam de perseguir a vitória nos
campos de batalha e, em obediência ao imperador, se rendem aos americanos.
O ponto central aqui é levar em conta que não são as bombas lançadas sobre o
território japonês que levam a população a reconhecer a vitória dos americanos, mas sim as
palavras do imperador, sendo ouvidas pela primeira vez pelo povo japonês, ordenando que
todos reconheçam a vitória dos americanos. Esse mecanismo representou a tônica da
aceitação simbólica da derrota pelos nipônicos, que estariam dispostos a, literalmente, lutar
até o último homem ou até mesmo pôr em prática as medidas mais extremas (como suicídios
em massa) a fim de evitar a vergonha da rendição.
O fator simbólico de uma relação conflituosa de dominação representa o ponto central
do estabelecimento da própria dominação de um sobre o outro. Assim como no caso japonês
supracitado, mesmo que haja uma nítida disparidade de poder bélico entre duas nações, se
esse predomínio não estiver acrescido de mecanismos simbólicos, a destruição material e
humana, por si só, não gerará a devida dominação de um dos grupos sobre o outro.
A superioridade bélica necessita provocar, em certa medida, o domínio no campo
simbólico para que não só o grupo mais poderoso se considere como vencedor, mas para que,
também, os vencidos assumam a autoimagem de derrotados. Essa dinâmica de
43
relacionamentos contribui diretamente para o estabelecimento de relações de poder e
dominação, agindo no sentido de diferenciar vencedores e vencidos.
A representação surgida a partir desse relacionamento de hostilidade gerado entre duas
nações constitui-se através da criação de uma autoimagem da própria nação derrotada de que
ela é inferior à outra. Nas palavras de Elias, “os indivíduos ‘superiores’ podem fazer com que
os próprios indivíduos ‘inferiores’ se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes – julgando-se
humanamente inferiores” (ELIAS, op. cit., p. 20).
Sendo assim, nota-se que independentemente da forma através da qual esse
mecanismo de dominação se constrói, é imprescindível a sua ocorrência para que, de fato,
haja o estabelecimento de uma relação de poder. Dessa forma, os imperialismos
empreendidos principalmente no final do século XIX e início do XX, se fizeram sobre bases
simbólicas muito bem estabelecidas, já que é necessário à política imperialista o senso de
dominação de um povo subjugado por outro supostamente superior.
Essa é uma característica inerente à própria rede complexa de relacionamentos entre as
nações estabelecidas enquanto Estados nacionais. É interessante a análise sugerida por Weber
(op. cit., p. 187) de que “todas as estruturas políticas usam a força, mas diferem no modo e na
extensão com que empregam ou ameaçam empregar contra outras organizações políticas.
Essas diferenças têm um papel específico na determinação da forma e destino das
comunidades políticas.”
O conflito e a busca pelo estabelecimento de interesses estão presentes a todo o
momento quando se trata do relacionamento entre as nações. Isso se torna ainda mais latente
se uma das duas nações possui o que a outra anseia, principalmente em termos econômicos.
Na verdade, essa questão permeou a política externa da maioria das nações europeias no final
do século XIX.
No campo econômico, a relação conflituosa parece ainda mais proeminente. Ademais,
se fortalece no oitocentos, outro personagem que figurará no cenário mundial e influenciará
inclusive nos rumos das políticas nacionais: o capital privado. Não estamos sugerindo que até
esse momento ele não existisse, mas é nesse período que passará a exercer um papel mais
destacado no plano das políticas imperialistas europeias.
A esse respeito, vale à pena observar a análise de Lênin, que sugere que “na época do
capital financeiro, os monopólios de Estado e os privados se entrelaçam, formando um todo,
e, [...] tanto um como outro, não são na realidade mais do que diferentes elos da luta
44
imperialista travada pelos maiores monopolistas pela partilha do mundo” (LÊNIN, 2011, p.
195).
A busca pelos interesses nacionais acima de tudo provoca a ocorrência de inúmeros
eventos que têm a violência como norteadora das ações dos Estados nacionais. Nessa linha de
raciocínio, é imprescindível o argumento de Morgenthal afirmando que, de fato, “não
podemos, com base nas boas intenções de um político, concluir que suas políticas externas
serão moralmente elogiáveis ou politicamente bem-sucedidas” (MORGENTHAL, op. cit., p.
8).
É facilmente comprovável que as políticas imperialistas possuem um pano de fundo
motivacional econômico. Isso se verifica por meio de qualquer análise, ainda que superficial
das ações principalmente de alguns países europeus – França, Inglaterra, Alemanha, etc. – na
África e na Ásia a partir da segunda metade do século XIX. As questões que norteavam a
atitude desses países com relação às suas esferas de influência e domínio eram, via de regra,
questões econômicas.
O imperialismo aparece como um meio facilitador da otimização dos lucros que
poderiam ser obtidos, e isso através de uma série de mecanismos. Realmente, como afirma
Lênin, “o capitalismo, chegado à sua fase imperialista, conduz à socialização integral da
produção nos seus mais variados aspectos” (op. cit., p. 131). Isso não indica, todavia, que os
lucros provenientes da produção sejam, também, socializados. Na verdade o autor segue
argumentando que “A produção torna-se social, mas a apropriação continua a ser privada”
(id.).
As atitudes provenientes da política imperialista perseguem a satisfação dos interesses
da nação que se lança nessa empreitada. Mas seria um erro considerar que somente a busca
incansável de lucros financeiros, por si só, possa explicar suficientemente as ações
imperialistas. Segundo a análise de Weber:
poderíamos inclinar-nos a acreditar que a formação, bem como a expansão
das grandes potências, são sempre e primordialmente determinadas
economicamente. A suposição de que o comércio, especialmente quando
intenso e já existente numa área, é a condição preliminar e a razão para a sua unificação política poderia ser facilmente generalizada [...] A atenção mais
detalhada, porém, frequentemente revela que essa coincidência não é
necessária, e que o nexo causal de modo algum aponta numa única direção (WEBER, op. cit., p. 190).
Essa análise indica que muito além dos fatores econômicos, há uma série de outros
aspectos que precisam ser levados em consideração quando se analisa a expansão imperialista
das nações. Isso porque além dos ganhos econômico-financeiros imediatamente provenientes
45
da empresa imperialista, existem os fatores políticos que permeiam as ações dos governos
nacionais.
O jogo político entre as nações se faz por meio de mecanismos que vão muito além da
satisfação econômica do país. Isso não significa afirmar que haja, de fato, amplas evidências
históricas de que o fator econômico esteja totalmente descartado como motivador das ações
imperialistas, como se alguma nação encarasse essa empreitada visando ter prejuízos, sem que
estivesse interessada nos possíveis ganhos de natureza material que em algum momento
viriam.
Evidentemente, esse seria um argumento no mínimo ingênuo, o de achar que o
movimento imperialista possa, via de regra, desconsiderar as questões econômicas e materiais
que rendem frutos para os países imperialistas. O que se pretende afirmar através dessa
argumentação é que o fator material não é a única motivação para a expansão imperialista das
nações e, além disso, ele nem sempre representa a condição primeira. De fato, há exemplos
históricos que corroboram essa afirmação.
Um caso emblemático referente a isso é o caso francês. A esse respeito, Wesseling é
categórico em afirmar que na época da expansão imperialista, na França “não existia nada de
semelhante ao tipo de capitalismo moderno em expansão. A França não necessitava de um
império colonial, de mercados externos para capital e produtos industriais [...] Não tinha,
portanto, nenhuma necessidade econômica de imperialismo” (WESSELING, 1998, p. 18).
O que o governo francês buscava era o estabelecimento de zonas de domínio político
como forma, também, de se contrapor aos ingleses, que vinham estendendo seus tentáculos
sobre regiões na África e Ásia como um polvo que abraça sua presa. O próprio modelo
imperialista inglês possui características bastante peculiares no que tange à relação entre
interesses econômicos e políticos.
A multiplicidade dos casos de imperialismo indica, ela mesma, que há outro erro que
precisa ser evitado. Trata-se da interpretação que uniformiza todos os movimentos
imperialistas como se fossem representantes exatamente do mesmo tipo de ação. Os tipos de
prática imperialista, nos seus mais variados casos, apresentam muitas peculiaridades em cada
caso, o que provoca a necessidade da nomenclatura os imperialismos.
Se o fator econômico está fortemente presente como um aspecto proeminente em
diversos casos de empreitadas imperialistas, não se pode esquecer que as questões políticas e
estratégicas também compõem uma parte considerável da análise de tais movimentos. Isso
porque é necessário que se observe, como afirma Morgenthal, que o conceito de interesse seja
46
definido em termos de poder, já que dessa forma o conceito oferece um elo entre a tentativa
de compreender os variados aspectos da política internacional e os fatos a serem analisados.
Ademais, o autor argumenta que dessa forma se torna possível ver “a política como uma
esfera autônoma de ação e de entendimento, separada das demais esferas, tais como
economia, ética, estética ou religião” (MORGENTHAL, op. cit., p. 6).
Esse cenário fica ainda mais turbulento quando se envolvem questões inerentes à
cultura nacional que sugerem a ideia de que essa população é única e escolhida para um
propósito específico num papel de vanguarda. Smith afirma que essas são realmente questões
que vêm aviltar o senso patriótico e legitimar a expansão das nações, considerar a nação como
“[...]um povo único com uma história e um destino específicos, os sucessores seculares de
antigas crenças religiosas de eleição étnica, ou ‘o povo escolhido’.” (SMITH, op. cit., p. 38)
A aplicação prática dessa engenharia simbólica, por seu turno, garante a legitimação
de quaisquer atos que sejam cometidos visando o fortalecimento e a sobrevivência da nação,
ou seja, a subjugação de outros povos e mesmo o uso extensivo da violência se justificam
pelo próprio discurso que é construído em torno do movimento imperialista como um
mecanismo de fortalecimento da nação.
Por isso mesmo, não se pode considerar que as ações dos Estados, na prática, estejam
sempre voltadas para a melhor política externa, simplesmente pelo fato dos políticos que os
dirigem terem boas intenções. Em relação ao imperialismo, na verdade, existe uma grande
diferença entre o que se professa pretender fazer e o que se faz, e isso está diretamente
relacionado aos diversos fatores que influenciam as relações entre as duas nações (a que se
pretende por dominadora e a que estaria sendo subjugada). Nas palavras de Morgenthal:
Quando a mente humana defronta a realidade com o propósito de tomar medidas concretas, entre as quais o embate político é um dos principais
exemplos, ela costuma ser desencaminhada por um destes quatro
corriqueiros fenômenos mentais: a obsolescência, em face de uma nova
realidade social, de modos de pensar e de agir que até então se mostravam adequados; as interpretações demonológicas, que substituem a realidade dos
fatos por uma outra, fictícia, povoada por pessoas malvadas, mais do que por
questões aparentemente intratáveis; a recusa de enfrentar um estado de coisas ameaçador, que é negado mediante o recurso a uma verbalização
ilusória; e a crença na infinita maleabilidade de uma realidade notavelmente
turbulenta (MORGENTHAL, op. cit., p. 11).
Quando se observa a ocorrência do que o autor chama de “fenômenos mentais” nota-
se, então, que a realidade dos acontecimentos só pode ser compreendida através dos diversos
mecanismos envolvidos no processo, e não apenas desse ou daquele motivo. Depreende-se,
47
daí, a importância de se contemplar a política como uma esfera autônoma na análise, não
submetida à economia, mas complementar a ela.
A complexidade dos eventos que se referem aos imperialismos costumeiramente evoca
novos arranjos sociais que, para serem analisados, necessitam ser muito bem definidos. Em
relação à argumentação de Morgenthal, um fator interessante é o que ele analisa como sendo
as “interpretações demonológicas” que possuem o papel de atribuir à realidade prática uma
bruma por vezes exótica e fantasiosa com a função de construir uma imagem do outro como o
mal a ser combatido.
A imagem que se forma através da interpretação do outro a partir de prismas que
proporcionam uma leitura imbuída de um pré-julgamento muitas vezes infundado, remete a
uma associação da nação a ser dominada a todo tipo de perspectivas que desmerecem
completamente a sua cultura nacional, relacionando-a a estereótipos de barbárie, atraso e/ou
desonra.
Daí, então, fica muito mais fácil justificar as ações violentas que são cometidas, já que,
além do argumento de que são praticadas em favor da sobrevivência e expansão da nação,
elas também possuem um quê civilizatório e corretivo. Isso porque o país imperialista passa a
ter uma autoleitura de que de fato está assumindo uma condição por vezes até mesmo altruísta
em benefício do povo dominado, levando-lhe a civilização e ensinando-lhe o caminho que
deve seguir.
Essa perspectiva não pode, todavia, perder de vista uma questão importantíssima que,
como já apontado, está comumente presente quando se trata das empreitadas imperialistas: os
ganhos econômicos provenientes dessas ações. Não se pode pensar que os líderes das nações
imperialistas simplesmente estejam partindo de uma motivação puramente particular ou que
eles hajam de acordo com pressupostos individualistas e egoístas. Todo esse processo diz
respeito ao próprio desenvolvimento do sistema capitalista – quando se trata da necessidade
de expansão de mercados e zonas de interesse econômico. A esse respeito, vale a pena
observar a contribuição de Lênin de que:
Os capitalistas não partilham o mundo levados por uma particular
perversidade, mas porque o grau de concentração [da produção] a que se chegou os obriga a seguir esse caminho para obterem lucros; e repartem-no
“segundo o capital”, “segundo a força”; qualquer outro processo de partilha
é impossível no sistema da produção mercantil e no capitalismo (LÊNIN, op. cit., p. 198).
Essa visão indica que em relação aos aspectos econômicos dos imperialismos, existem
alguns pontos que tornam os casos semelhantes. O próprio sistema de produção capitalista
48
possui características eminentemente predatórias que impulsionam as nações a buscar
mercados externos e áreas nas quais possam colocar em prática as políticas necessárias à
manutenção e gradativa expansão da economia nacional.
De fato, segundo argumenta o autor, quanto mais desenvolvido está um sistema
econômico nacional, mais ele tende a se voltar para o exterior, buscando empreendimentos
arriscados e que exigem um longo tempo para o seu desenvolvimento. O tempo e o risco que
estão envolvidos na manutenção desses empreendimentos elevam sobremaneira os lucros
provenientes deles.
A construção política do imperialismo, que Lênin chama de “etapa superior do
capitalismo” (ibid.), pressupõe a manutenção de um Estado forte que possa estar na direção
do processo, a fim de garantir o êxito econômico nacional. Na verdade, junto aos Estados,
aparecem os grupos de empresas capitalistas como novos atores nessa nova fase de
desenvolvimento do capitalismo.
Essas empresas, especialmente a partir do século XIX, surgem como importantes
parceiras (ou rivais) dos Estados nacionais em relação aos investimentos nas regiões de
interesse econômico. Podem-se citar os casos dos Hothschilds e dos Rockfellers19
, que
atuaram ativamente no processo dos imperialismos europeus, sobretudo na África e na Ásia.
As condições econômicas, quando favoráveis, influenciam diretamente na ocorrência
dos imperialismos. O cenário favorável de desenvolvimento do sistema mercantil, e do
próprio sistema capitalista, age diretamente impulsionando a expansão nacional para além das
fronteiras econômicas do território nacional.
Isso não indica, contudo, que o fato de uma nação se lançar ao imperialismo esteja,
como analisado anteriormente, única e exclusivamente relacionado aos fatores econômicos e
materiais envolvidos no processo. Muito além disso. Se com um pano de fundo favorável,
sob o prisma econômico, for muito provável que haja, de fato, a expansão imperialista, a não
ocorrência desses fatores, não determinam que seria impossível que a nação se lance ao
imperialismo.
Na verdade, a construção da empreitada imperialista gera um cenário no qual a política
é considerada boa se ela é racional, tendo em vista que somente uma política externa racional
minimiza os riscos e maximiza as vantagens. Nesse sentido, o poder acaba abarcando tudo
que estabeleça o controle do homem sobre o homem visando o estabelecimento de um sistema
19 Não é objetivo e nem interesse do presente trabalho analisar a participação dos grandes grupos capitalistas no processo dos imperialismos. Para um exemplo dessa participação no Congo de Leopoldo II, vale à pena
consultar Hochschild (1999).
49
de dominação. Sendo assim, a racionalização das ações pode chegar ao ponto de considerar
friamente as ações sem levar em conta os seres humanos que estão envolvidos. Ocorre, nesse
ínterim, um mecanismo de despersonalização do outro.
Sob essa perspectiva, a utilização da violência é perfeitamente aceitável, sob o ponto
de vista dos imperialistas, já que o que importa são os fins a que se pretende chegar. A
perseguição desses objetivos perpassa por uma série de mecanismos que nem sempre podem
ser considerados aceitáveis sob o ponto de vista moral, mas que influenciam diretamente no
destino das nações envolvidas. A respeito disso, Hannah Arendt afirma que:
Uma vez que os propósitos da atividade humana, distintos que são dos
produtos finais da fabricação, não podem jamais ser previstos com
segurança, os meios empregados para se alcançar objetivos políticos são na maioria das vezes de maior relevância para o mundo futuro do que os
objetivos pretendidos (ARENDT, 1970, p. 4).
A questão da violência empregada nos processos de expansão imperialista não pode
ser lida e nem compreendida sob uma égide moralista, como se as ações dos Estados fossem
pautadas por mecanismos éticos. Se os próprios fins a que pretendem chegar as nações nunca
são, na verdade, muito claros de início, então o que se pode analisar são os meios através dos
quais elas buscam alcançá-los.
Sendo assim, a análise da política externa dos países imperialistas se faz por meio das
ações práticas dessas nações, e não apenas pelos objetivos e pelas supostas boas intenções
professadas pelos seus respectivos governos. Essas ações, muito mais do que os fins em si,
assim como o trecho supracitado indica, influenciam no direcionamento da situação futura de
todos os envolvidos nos processos imperialistas.
Sendo assim, a questão da violência precisa ser analisada como sendo parte integrante
e fundamental nos processos de dominação imperialista do final do século XIX e ao longo do
XX. Entretanto, não se pode considerar que o emprego da violência nesses e em outros casos
de relacionamento entre nações, esteja diretamente relacionado a uma espécie de sadismo ou
ausência de senso de autopreservação por parte dos homens. Na verdade como indica Arendt:
A razão principal por que os conflitos armados ainda existem, não é nem um
desejo secreto de morte da espécie humana, ou um irreprimível instinto de
agressão, nem, finalmente, e mais plausivelmente, os sérios perigos
econômicos e sociais inerentes ao desarmamento: porém o simples fato de que substituto algum para esse árbitro final nas relações internacionais
apareceu ainda no cenário político (Ibid, p. 5).
O emprego da força bélica, ou mesmo a possibilidade e ameaça de se utilizá-la, sugere
que no campo de relacionamento entre as nações existe um verdadeiro jogo de forças no qual
todos os participantes anseiam pelo estabelecimento do seu domínio, porém, apenas alguns
50
conseguem. No caso dos imperialismos, a utilização da violência aparece como um
instrumento que legitima o domínio de uma nação sobre a outra.
A questão da depreciação do outro que está sendo dominado através de processos
violentos realmente salta aos olhos quando se observa a progressão histórica dos
imperialismos. De fato, como observa Morgenthal “os princípios morais universais não
podem ser aplicados às ações dos Estados em sua formulação universal abstrata, mas [...]
devem ser filtrados por meio das circunstâncias concretas de tempo e lugar”
(MORGENTHAL, op. cit., p. 20).
A violência que se verifica nesses contextos se relaciona aos mecanismos de
abordagem figuracional que aparecem como norteadores do relacionamento entre
dominadores e dominados. É um tipo de relação muito próxima à noção de Estabelecidos-
outsiders analisada por Elias, na qual um dos grupos lança sobre o outro um rótulo
depreciativo que justifica a dominação e até o extenso uso de violência. Nas palavras do autor,
“a estigmatização, como um aspecto da relação entre estabelecidos e outsiders, associa-se,
muitas vezes, a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido”
(ELIAS, op. cit., p. 35)
Nota-se então que os mecanismos gerados a partir dessa interação social funcionam a
partir das representações que são cristalizadas pela ação direta dos dominadores, mas que são
aceitas pelos dominados. De fato, esses rótulos agem no sentido de imbuir naqueles
considerados outsiders características negativas e uma nítida diferenciação. Como afirma
Clastres, “o Outro é a diferença, certamente, mas é sobretudo a má diferença” (CLASTRES,
2004, p. 56).
O que chama atenção nos imperialismos é que as ações cometidas não podem ser
entendidas partindo de pressupostos individualistas, ou mesmo simplesmente dos sentimentos
que um grupo nutre pelo outro. Na verdade, os piores casos de violência, ao contrário do que
se poderia sugerir, não ocorrem movidos diretamente pela paixão, mas por uma
racionalização extrema. Racionalização essa que retira do outro aquilo que o aproxima do
perpetrador da violência: a condição humana
Os atos violentos se tornam coisas banais e perfeitamente aceitáveis, já que a suposta
vítima passa a ser vista como um mero objeto sendo utilizado com o fim de alcançar um
objetivo específico, ou mesmo como um empecilho no caminho de uma meta que se pretende
atingir. É interessante a análise de Arendt nesse sentido. Ela argumenta que :
Dizer que a violência origina-se do ódio é usar um lugar-comum, e o ódio
pode certamente ser irracional e patológico, da mesma maneira que o podem
51
ser todas as demais paixões humanas. É possível, indubitavelmente, criar
condições que desumanizam o homem – tais como os campos de
concentração, a tortura, a fome – porém, isto não significa que se tornem semelhantes aos animais; e nestas condições, não é o ódio ou a violência,
mas a sua ausência conspícua que constitui o mais claro sinal de
desumanização (ARENDT, op. cit., p. 39).
Essa questão de se retirar do outro a sua representatividade como ser humano, ou seja,
atribuir a ele características de inferioridade, desonra, vergonha, dentre tantas mais, é o que
torna as abordagens violentas ainda mais cruéis e desumanas. Isso se banaliza na medida em
que essas construções simbólicas se tornam naturais e amplamente aceitas pelos
conquistadores. Sendo assim, é natural, por exemplo, que mulheres sejam violentadas, mãos
sejam decepadas, prisioneiros sejam torturados, etc.
Imperialismo e violência são questões que não podem ser analisadas isoladamente.
Não que a violência dependa da ocorrência dos imperialismos, mas, de fato, os imperialismos
trazem consigo em larga escala o uso da coerção e da violência física, além dos mecanismos
de legitimação simbólica. Nesse contexto, o estabelecimento dos Estados-nação modernos
exerce um grande protagonismo nessas situações, já que a todo o momento o jogo de forças
entre as nações demanda uma acirrada disputa pelo poder que acaba por desaguar no aumento
e fortalecimento das relações de dominação.
52
CAPÍTULO 2. A Restauração Meiji e a construção do Japão imperialista
A partir da análise dos mecanismos simbólicos e políticos que se desenvolvem em
conjunto com o próprio desenvolvimento dos Estados-nação modernos e sua consolidação no
cenário internacional, é possível observar o pano de fundo contra o qual estão sobrepostos os
interesses de cada um dos governos nacionais em relação à manutenção e fortalecimento
daquilo que se considera vital à nação.
O fortalecimento dos símbolos e da cultura que se pretende como nacionais atuam
diretamente no sentido de viabilizar a construção da nação nos moldes modernos. No Japão,
esse processo foi bastante traumático e modificou completamente a estrutura social do país.
Havia uma série de interesses em jogo em relação à construção de um novo modelo nacional
que estivesse livre da dominação da antiga classe dos samurais, nesse momento – final do
século XIX – vistos pelo alto escalão do governo Meiji20
como totalmente prejudiciais ao
desenvolvimento nacional.
Seriam necessários, então, novos símbolos que representassem essa nação japonesa
moderna que estava sendo construída. Na verdade, houve um processo de reordenamento de
antigos símbolos que foram resgatados no intuito de difundir a ideia de um poder central que
é fosse legitimado diretamente dos deuses. A cultura japonesa passa a girar em torno do
fortalecimento da ideia da ascendência divina da casa imperial.
Sendo assim, a análise da construção do senso nacionalista no Japão deve começar
necessariamente pela observação da adoção, no período Meiji, de uma religião oficial, o
xintoísmo. Essa é, de fato, a única religião que pode ser considerada genuinamente japonesa,
com origens que se confundem com a da própria população, há pelo menos dois milênios, e
que predomina nas simbologias e na mística do arquipélago japonês.
Em contraposição ao Budismo, que têm origem indiana e influência chinesa, o
Xintoísmo é uma religião que possui expressão somente no seu país de origem. Um fato
interessante é que a prática xintoísta não implica o abandono total ou o repúdio a outras
formas de crença, ela não deve ser considerada uma concepção exclusivista. Muito pelo
contrário, o Xintoísmo pode conviver pacificamente e até complementarmente com outras
práticas religiosas.
20 A restauração Meiji (“o grande salto para frente”) se caracterizou por um conjunto de reformas que visavam principalmente a modernização do Japão e a consolidação do poder do imperador. Antes, por quase três séculos
os imperadores eram simplesmente figuras ilustrativas. Ver Behr (1991, p. 31-et seq.)
53
O que chama a atenção, contudo, é o poder de doutrinação do comportamento
xintoísta em relação à maneira de agir dos seus praticantes. Isso é amplamente perceptível não
só nos seus diversos rituais, mas em todos os aspectos cotidianos da vida do indivíduo, que
adquire sentido na medida em que se observam todos os preceitos que o tornam uma parte
integrante e participante de uma cosmovisão que engloba muito mais do que simplesmente os
homens ou até os seres vivos.
E isso porque o Xintoísmo se Baseia numa mitologia panteísta repleta de divindades e
que atribui valor sagrado a todos os elementos da natureza. Na verdade, segundo essa
concepção, todos os elementos no universo são divinos, sendo, também, interligados e
interdependentes de forma que não só os seres vivos, mas o vento, a água e as pedras, bem
como todos os níveis invisíveis da natureza, coexistem em harmonia, tendo se originado da
mesma fonte.
A base filosófica21
dessa religião aponta para uma origem divina da casa real japonesa
a partir da deusa solar Amaterasu. Consequentemente, a população absorve, mesmo que em
níveis diferentes, essa ascendência mítica para si, tornando-se herdeira, por direito, dos deuses.
Isso explica, em parte, a intensa preocupação dos japoneses no que diz respeito aos costumes
tradicionais e, ainda, sua fortíssima ligação com os elementos naturais.
A forte relação dos japoneses com a natureza chama a atenção, pois explica muito no
que concerne à estruturação da sociedade. Percebe-se, segundo explicita Sakurai (2007, p. 14),
que a ligação dos japoneses com os elementos naturais é realmente muito forte, e isso
contribui para que ela seja sentida em todos os setores da sociedade:
A casa imperial japonesa [...] é representada por um crisântemo. O Japão é
também conhecido como a terra das cerejeiras e seu cartão postal mais
popular é o Monte Fuji, em forma de cone, com o topo coberto de neve [...].
Quando na segunda metade do século XIX, as famílias foram obrigadas a adotar um sobrenome (o que não ocorria antes), optaram por alusões à
natureza.
Mesmo que um olhar descuidado possa sugerir uma aparente naturalidade e falta de
importância a esse comportamento, ele faz parte de um complexo conjunto de rituais e
21 A preocupação do trabalho não é detalhar todo o conjunto de simbologias e filosofias do xintoísmo, e sim
analisar o seu papel na construção do nacionalismo no Japão. Em linhas gerais, a mitologia indica que a criação
das ilhas do arquipélago japonês pela deusa do Sol Amaterasu, bem como a descendência divina da casa real
japonesa e do próprio povo, ainda que estes não derivem de deuses tão importantes quanto os da família real, são
pressupostos para a diferenciação da nação japonesa das demais nações. O relato dessa criação mitológica está compilado num documento intitilado Registros dos assuntos antigos, datado de 712 (SAKURAI, 2007, p. 13 et.
seq. ).
54
simbologias que serve como parâmetro às ações dos nipônicos. A noção do on22
no Japão é
extremamente forte e explicita a devoção e a obrigação que cada indivíduo necessariamente
tem em relação a tudo e todos que estão à sua volta, principalmente a natureza. Essa noção
suscita uma ideia de que todo japonês já nasce com uma dívida que precisa ser saldada ao
longo da sua vida.
A noção capitalista ocidental conseguiu convencer a todos que, se alguém contrai uma
dívida financeira com alguma instituição – um banco, por exemplo – essa pessoa tem a
obrigação moral de pagá-la. Comumente, não se discute a legitimidade da cobrança ou dos
juros, eles simplesmente fazem parte do mundo financeiro23
. Da mesma forma, na sociedade
japonesa, todos os indivíduos tem obrigações (on) uns em relação aos outros, em diferentes
níveis. Todos têm dívidas morais em relação às gerações passadas e em relação a todos
aqueles com quem se relacionam. Não se discute a origem dessas obrigações, elas
simplesmente são aceitas e fazem parte de uma cultura que, aparentemente, remete a tempos
imemoriais. Ruth Benedict afirma que no Japão:
Os homens virtuosos não declaram, como fazem nos Estados Unidos, que nada devem a ninguém. Não desprezam o passado. A probidade no Japão
repousa sobre o reconhecimento do próprio lugar dentro da grande rede de
mútuo débito, abarcando tanto os antepassados quanto os contemporâneos
[...] A situação de devedor pode tornar um homem extremamente suscetível, e os japoneses o comprovam. Igualmente lhes confere grandes
responsabilidades (BENEDICT, 2007, p. 88).
O on no Japão denota a disciplina com que os japoneses encaram todos os aspectos da
vida cotidiana em sociedade. Essa noção é ensinada desde a mais tenra idade, o que provoca
uma grande naturalidade na atitude dos nipônicos em relação a essas atitudes. Essa disciplina
explicita a devoção com a qual são realizados os compromissos e, também, a maneira através
da qual os cidadãos desenvolvem as relações sociais.
A ligação do Japão com a natureza se explicita do mesmo modo na religião, sobretudo
no mito da criação das ilhas pela deusa do Sol. A relação entre a religião xintoísta, com toda
sua simbologia, e a construção do nacionalismo no Japão foi muito forte, na medida em que
todo japonês, desde o imperador até o cidadão mais humilde, se sentia parte integrante de uma
raça escolhida, separada, divina. Segundo Sakurai (op. cit., p. 47), “a mensagem embutida
22 Essa expressão corresponde, em linhas gerias, às obrigações que cada japonês tem para com as gerações
passadas, o presente, a natureza, o universo, enfim, tudo o que possa estar direta ou indiretamente relacionado à
sua existência. Essa noção é muito mais forte do que o sentido ocidental da palavra obrigação e pode ter vários
significados, dependendo do contexto em que está sendo utilizada. Para uma explicação mais detalhada, ver
Benedict (2007, p. 87-et seq.). 23 Evidentemente não é objetivo do presente trabalho discutir a dinâmica capitalista na sociedade ocidental e seus desdobramentos. Utilizamos esse exemplo simplesmente a fim de explicar mais facilmente a força da ideia de
obrigação a que os japoneses estão familiarizados.
55
nessa mitologia [criacionista] é a de que os japoneses são diferentes do resto do mundo pela
sua origem divina e, mais ainda, que são homogêneos do ponto de vista racial e cultural”.
Em relação ao poder imperial, essas questões se aprofundam ainda mais, na medida
em que a casa imperial é tida como a representação máxima do que é o Japão. Desde o início
da sua construção, o Estado japonês moderno foi colocado como superior aos japoneses,
sendo representado pela casa imperial. Os cidadãos precisam ser extremamente devotados ao
imperador, mas, ao mesmo tempo, são uma parte fundamental da constituição dessa nação.
Nas palavras de Benedict:
On é sempre empregado neste sentido de devoção sem limites quando emana
do principal e maior dos débitos, on imperial. É o débito para com o
imperador, que se deve aceitar com gratidão incomensurável. Seria impossível, acham eles, estar satisfeito com o próprio país, com a própria
vida, com os próprios interesses grandes e pequenos, sem pensar em aceitar
tal privilégio (BENEDICT, op. cit., p. 89).
Nota-se nesse argumento que, de fato, a cultura pública dos japoneses gira em torno da
devoção ao imperador e da aceitação da ideia de que a casa imperial constitui a representação
máxima da nação japonesa e está acima de qualquer cidadão. Além do mais, essa questão não
aparece, segundo o trecho supracitado, como um fardo que precisa ser carregado pelos
nipônicos, mas sim como motivo de orgulho nacional, já que todos fazem parte dessa
comunidade a qual consideram única e divinamente moldada.
A construção simbólica proposta a partir dessas premissas sugere que o povo japonês,
invariavelmente, procede de uma linhagem pura e extremamente poderosa. Além disso, nota-
se que a própria complexidade da mitologia da religião xintoísta atende a variados setores da
vida comum do povo:
O mito não explica apenas a origem dos japoneses e seu território, mas
esclarece muitas outras questões. Por exemplo, a hierarquia entre os sexos como base da ordem social, a dependência humana dos frutos da terra, a
separação entre vivos e mortos, o motivo de haver tantas mortes seguidas de
tantos nascimentos, o relevo do país, os astros, os desastres naturais, a vaidade das mulheres. (SAKURAI, op. cit., p. 49)
A compreensão do processo de consolidação do senso de pertencimento à nação
japonesa e a construção da noção de nacionalidade entre os japoneses, seja através da religião
ou de qualquer outro meio, é de fundamental importância, pois como foi apontado no capítulo
anterior, a nacionalidade e o nacionalismo constituem-se produtos culturais específicos.
Sendo assim, o conjunto de ideias, bem como os constructos simbólicos, assumem um papel
extremamente importante, porque será baseado nesses pressupostos e atendendo a interesses
previamente determinados que a população será educada e doutrinada.
56
Considerando-se o período pós-restauração Meiji, nota-se que se fazia necessária a
reestruturação política nacional, tendo como base determinados padrões que possibilitariam
ao Japão ser tratado em pé de igualdade com as demais nações poderosas. O Japão (BEHR,
1991, p. 34) poderia ter sido colonizado assim como a China, entretanto, as famílias
tradicionais japonesas apoiaram fortemente o poder do imperador e o avanço econômico. Sob
o governo de Meiji, o país enfrentou as potências invasoras, ao mesmo tempo em que,
paradoxalmente, absorvia inúmeros valores e técnicas ocidentais.
Os japoneses, já em meados do século XIX, nota que as intenções dos ocidentais em
relação à Ásia não são nada amistosas, sendo assim, o Japão passa a adotar uma postura cada
vez mais de fortalecimento interno. A restauração Meiji, de 1868, lança o país numa cascata
de modernização e aumento do poder do imperador, fazendo com que este seja sentido em
cada canto do território nacional.
Sakurai (op. cit., p. 133) argumenta que “a restauração Meiji [...] se pauta por reformas
cujo objetivo foi adaptar o Japão às exigências do mundo da época. Trata-se de um profundo
redimensionamento das forças sociais no cenário político-econômico levado a cabo pela elite
do país.” Entretanto, esses padrões de modernização feriam, em parte, as ideologias japonesas,
bem como sua concepção de origem diferenciada. Ademais, até mesmo no período de
dominação do xogunato Tokugawa24
, já se debatia sobre a manutenção de um país forte que
pudesse se contrapor aos anseios imperialistas ocidentais e por si mesmo aumentar sua esfera
de influência, através de sua própria expansão territorial (BEASLEY, 1987, p. 29-30).
Enfatizando a necessidade de aceitação no cenário mundial, Anderson (2008, p. 146)
afirma que “[...] o Japão, para ser aceito como ‘grande’, também teria que converter o tenrô25
em imperador e se lançar nas aventuras ultra-marinas”. Fez-se necessário, então, que se
tomasse uma decisão acerca da permanência ou mudança. Permanência no sistema de clãs
estabelecido pelos samurais, com todo um conjunto de leis que primavam pela honra e pela
24 O xogunato (governo dos generais) no Japão foi instaurado a partir do séc. XII, e tem como uma de suas figuras principais Yoritomo Minamoto. Os xoguns governavam apoiados por exércitos de samurais, que a
princípio, visavam dominar todo o Japão, unificando o país através das armas e de fortes alianças e
administração organizada. Entretanto, com o tempo esse sistema contribuirá para que se desenvolva no Japão
uma espécie de feudalismo, com o poder central quase pulverizado, e que se caracterizou por frágeis poderes
locais sob algum líder militar mais forte. Ieyashu Tokugawa foi uma figura crucial no processo de unificação do
Japão após os anos de guerra civil provocados por essa descentralização política. Além de guerreiro, ele era um
excelente administrador, e seu projeto de unificação possibilitou, não só que a paz e a coesão fossem instauradas,
mas que pudessem ser mantidas até mesmo pelos governantes seguintes. O xogunato Tokugawa foi abolido em
1868 pela restauração Meiji. 25 Esse termo era comumente utilizado por alguns clãs samurais para designar o mestre de armas perfeito, o
melhor e mais habilidoso guerreiro. Posteriormente, esse termo passou a se referir ao líder do clã principal e que era considerado o “chefe” do Japão. Evidentemente, a tradução de termos como esse não representa efetivamente
a dimensão que ele possuía na sociedade japonesa pré-moderna.
57
sabedoria proveniente dos deuses, ou a mudança, tendo como base a modernização aos
moldes ocidentais, o que significava industrialização, poder econômico, e maior poderio
militar que, todavia, viria acrescido de todo um conjunto de ideias que eram totalmente
avessas à filosofia nipônica.
Essa encruzilhada na história japonesa contribuiu para o recrudescimento das disputas
no interior do sistema político japonês. Ao contrário do que se pode pensar, a despeito da
nação japonesa viver sob um sistema de intensa disciplina e devoção, o cenário polít ico no
país não era homogêneo. Havia disputas pesadas por influência, que eram facilitadas pela
própria constituição do aparelho político26
. Peter Duus afirma que “longe de criar um sistema
absolutista, o quadro constitucional forneceu muito espaço para o conflito político e a
competição”27
(DUUS, 1976, p. 114).
Esses dois paradigmas que foram apresentados aos japoneses, bem como a escolha
pela modernização, lançariam o país definitivamente no cenário político e econômico mundial,
o que embora trouxesse alguns benefícios, modificaria totalmente a estrutura do país, haja
vista que os ocidentais seriam presenças fixas durante as próximas décadas e isso representava
um problema. Cabe ressaltar que os valores ocidentais torna-se, de certa forma, moda no
Japão e tem presença muito forte, porquanto como observa Behr (op.cit., p. 32):
O Japão foi colocado sob uma administração moderna e centralizada, com prefeitos em cada província, responsáveis perante um ministro do interior.
As vestimentas ocidentais tornaram-se moda e o porte de espadas foi
proibido em 1870. Surgiu um culto às coisas estrangeiras tanto que, em 1880, uma canção infantil muito popular [era] entoada [...] e intitulada
canção de bola da civilização.
As décadas de 1870 e 1880 representam um período no qual se constrói um grande
paradoxo na sociedade japonesa. E isso se deve justamente pelo embate das forças culturais
em disputa após a restauração Meiji. De um lado estavam os valores tradicionais japoneses,
munidos de ideias de devoção, compromisso e honra, e que faziam parte da própria
constituição cultural do Japão. Do outro lado, observa-se uma série de costumes tipicamente
ocidentais e capitalistas sendo introduzidos na sociedade japonesa juntamente com o processo
de modernização.
A própria canção citada anteriormente, e que se tornou extremamente popular nos
grandes centros urbanos japoneses, nada mais é do que uma compilação do que os nipônicos
consideravam como sendo as dez invenções ocidentais mais importantes e valiosas. Dentre
26 Não pretendemos descrever a complexidade do sistema político japonês moderno. O objetivo aqui é
simplesmente demonstrar que o próprio sistema favoreceu o aumento das disputas por influência. Para uma análise mais ampla da organização política moderna no Japão, ver Ishii (1980). 27 Tradução livre.
58
essas invenções, uma que chama particularmente atenção é a máquina fotográfica, que,
colocada numa escala de importância, está à frente dos navios a vapor, por exemplo.
Isso indica, de fato, os mecanismos, muitas vezes sutis, através dos quais o modo de
vida ocidental ganhava corpo entre os japoneses. A fotografia adquire muito valor na
sociedade nipônica, tornando-se moda, além de representar um sinal de status. Esse é um fator
de ampla importância no entendimento do processo de modernização e ocidentalização da
sociedade japonesa. As fotos dos grandes líderes tornam-se muito comuns, geralmente
cobertos com indumentárias imponentes – geralmente ocidentalizadas – que representavam
simbolicamente todo o poderio da nação japonesa.
Esses são costumes tradicionalmente ocidentais, mas que passam a integrar em larga
escala o escopo cultural japonês. Na verdade, os nipônicos desenvolvem uma capacidade
extraordinária de absorver algumas das características de vida ocidentais. Numa análise até
certo ponto radical, Behr (op. cit., p. 33) afirma que “[...] em todos os setores os japoneses
começaram a dar provas de serem extremamente bons em copiar o Ocidente.”
Entretanto, nota-se que o processo de modernização japonesa não pode ser lido
exclusivamente como um produto do imperialismo ocidental por quaisquer motivos. Nesse
sentido, entende-se que o imperialismo japonês seria, no máximo, apenas um filho ilegítimo
do capitalismo ocidental. De fato, a despeito da intensa influência europeia e americana, ao
longo de três séculos antes da abertura dos portos, o Japão esteve desenvolvendo uma forma
de capitalismo comercial que legou à economia moderna um know-how que seria essencial no
futuro (BEASLEY, op. cit., p. 27). De qualquer forma, é inegável que os europeus e norte-
americanos se estabeleciam cada vez mais frequentemente no Japão e que isso incomodava
sobremaneira os japoneses.
O ponto principal que se deve salientar aqui é o fato de que os japoneses, apesar se
verem na necessidade de absorver os valores e técnicas ocidentais para se autoafirmar
enquanto nação poderosa, não estavam dispostos, ou pelo menos não previam que seu país se
tornaria uma área de intensa concentração de estrangeiros ocidentais. Na verdade, com o
processo de modernização, veio a liberdade de viajar ao estrangeiro, o que aumentou a
consciência dos nipônicos em relação aos estilos de vida fora de seu país.
Ao mesmo tempo em que entravam em contato com a sociedade norte-americana e as
europeias, os japoneses também se deparavam com o que acontecia num dos seus vizinhos
mais próximos, a China. Nas palavras de Behr:
Ali, os conselheiros de Meiji logo perceberam, havia um estado de coisas a
ser evitado a qualquer custo: a China estava se transformando numa virtual
59
colônia das potências estrangeiras [...] Devido à sua fraqueza e
ingovernabilidade, o país [...] estava em processo de entregar pedaços de
territórios soberanos à Grã-Bretanha, França e Alemanha (BEHR, op. cit., p. 33).
Ao se deparar com esse cenário, os japoneses percebiam que se não tomassem
providências quanto à manutenção da sua soberania nacional e ao fortalecimento interno, eles
também estariam no caminho de tornarem-se meros figurantes no jogo de forças internacional.
Nesse sentido, a presença cada vez maior de estrangeiros no Japão passou a ser considerada
prejudicial e até perigosa, no que tange à sobrevivência da cultura tradicional – mesmo que
convivendo com os novos valores ocidentais – e até mesmo no que diz respeito à soberania
nacional.
Como afirma Anderson (op. cit., p. 142), “o tenrô podia ser restaurado rapidamente
após a abolição do xogunato, mas não era tão fácil expulsar os bárbaros28
.” Em decorrência
disso, a presença cada vez maior de estrangeiros no Japão cultivaria na população um
sentimento de repulsa em relação aos “bárbaros” que gradativamente transformavam o país,
introduzindo produtos e ideias ocidentais.
No exército, principalmente, havia grupos de direita que eram extremamente
recalcitrantes em relação à introdução dos valores estrangeiros em detrimento dos valores
nacionais. Entretanto, não era possível derrotar os invasores sem que antes os próprios
japoneses tivessem adquirido conhecimento bélico suficiente. Como apontado anteriormente,
em meados do século XIX, a aversão às coisas estrangeiras no Japão era bastante forte,
contudo, a frequente introdução desses produtos e valores no país provocou um processo de
aceitação a essas coisas, pois o governo imperial percebeu que o país “necessitava dos
bárbaros para tornar-se, com o tempo, suficientemente forte para expulsá-los” (BEHR, op. cit,
p. 32).
O Japão, a partir daí, estaria desenvolvendo uma espécie de relação bastante
interessante com os povos estrangeiros. Essa relação de poder sendo desenvolvida acabaria
por colocar todo indivíduo não-japonês numa posição de outsider, que, como analisado no
capítulo anterior, é uma forma de estigmatização do outro em favor do fortalecimento do
grupo que se considera insider. Os japoneses, no papel de povo homogêneo e superior, tanto
28 Nota-se que a utilização dessa expressão torna-se bastante interessante, porque comumente o olhar ocidental
prevalece nos contatos com outros povos. Entretanto, ao se analisar a visão que as outras culturas tinham dos
europeus e ocidentais de maneira geral, é claramente perceptível o estranhamento e repulsa, não só num primeiro
momento, em relação à civilização trazida por eles. No caso do contato com os povos asiáticos, esse
estranhamento não foi diferente, e cabe salientar ainda que essa dicotomia Oriente – Ocidente se faz notar até mesmo nas esferas mais elementares das relações entre os povos. Para uma análise mais detida acerca da relação
entre ocidentais e os povos considerados não-ocidentais, ver (HANSON, op.cit.).
60
étnica quanto socialmente, transferem aos outros indivíduos uma abordagem figuracional
depreciativa, enquanto atribuem a si mesmos uma série de características valorativas. A
depreciação do outro, nesse caso, se fazia extremamente importante para o projeto de
afirmação nacional do Japão.
Nesse sentido, a necessidade da constituição de uma nação forte que pudesse se
contrapor aos estrangeiros, além de exigir total apoio popular, demandava poder econômico e
principalmente militar. Todavia, o Japão era ainda fraco demais para derrotar os estrangeiros,
e por isso, seriam necessárias as próprias técnicas dos ocidentais para derrotá-los, o que,
porém, os japoneses ainda não possuíam.
A incapacidade de restringir a influência dos estrangeiros no país de forma imediata
causaria no inconsciente coletivo dos nipônicos um misto de impotência e ódio em relação
aos “bárbaros”. Vale salientar que o povo japonês, herdeiro, ainda, de filosofias samurais e
que se autoconsiderava um povo superior (o papel da religião novamente merece ser
destacado), encontraria uma grande dificuldade em compreender e admitir que suas técnicas
militares, via de regra, eram ainda muito inferiores às ocidentais.
Com o seu modelo militar ainda baseado em guerreiros lutando com espadas e lanças,
o Japão notou que o estilo de guerra europeu moderno não poderia ser vencido. O alto escalão
do governo japonês se convenceu de que nem mesmo poderia exercer pressão sobre as demais
potências, levando-se em consideração que, diante dos exércitos ocidentais, o desorganizado
Exército imperial não representaria sequer um inimigo que exigisse muito esforço para ser
derrotado.
O Japão entra em contato com conhecimento proveniente do ocidente, pela primeira
vez, através de livros trazidos pelos alemães, isso possibilitou que, no momento em que a
guerra do ópio na China mostrasse o quão perigosas eram as intenções expansionistas
ocidentais, os japoneses já possuíssem algum conhecimento acerca da ciência e tecnologia
modernas (BEASLEY, op. cit., p. 28). Essas ações ocidentais demonstraram ao Japão, de
forma ainda mais incisiva, que era necessário adotar uma postura mais enérgica e agressiva,
ou, então, amargar o jugo ocidental.
Dessa forma, todo esse pano de fundo apresentado aos japoneses, justificava cada vez
mais a necessidade da manutenção de um Estado forte, com coesão popular contra os
“bárbaros”. A constituição desse Império merece tanto crédito quanto a mentalidade que os
61
japoneses atrelaram à modernização. The four corners of the world under one roof29
, é um
exemplo dos jargões que impulsionaram a criação e expansão de um império ultramarino, que
seria erigido em nome do imperador.
Muito mais do que simplesmente defender-se das possíveis investidas dos europeus e
norte-americanos, os japoneses ambicionavam expandir suas próprias fronteiras. E mesmo
que a princípio parecesse que buscavam tão somente a garantia da soberania sobre o seu
próprio território, a casa imperial japonesa demonstrou que visava muito mais do que isso, o
que incluía contrapor-se até mesmo à própria presença dos ocidentais na Ásia. Só que nesse
contexto os primeiros a sentir o seu japonês são, evidentemente, os territórios mais próximos:
a Coreia e a China.
Nesse ínterim, a cultura simbólica japonesa e a noção de dever para com o imperador
exerceram um papel preponderante. Partindo desses pressupostos, seria fácil estimular a
população, e mais especificamente o exército, a praticar qualquer tipo de ação em nome da
sua nação divina. Além disso, Anderson (op. cit., p. 142-143) argumenta que “[...] a
antiguidade exclusiva da casa imperial e a sua identidade nipônica simplificavam muito a
utilização da figura do imperador para finalidades nacionalistas oficiais.” Por outro lado,
afirma ainda o autor, se fazia necessário que toda a população, sem exceções, incorporasse o
sentimento nacionalista, e em decorrência disso notam-se medidas de longo prazo que, em
retrospecto, oferecem uma explicação às ações dos japoneses no final do século XIX:
Em 1872, um decreto imperial determinou a implantação de um programa
de alfabetização geral de adultos do sexo masculino. Em 1873, muito antes do Reino Unido, o Japão instaurou o serviço militar obrigatório. Ao mesmo
tempo, o regime acabou com a classe privilegiada e legalmente definida dos
samurais, numa medida essencial de abertura [lenta] do corpo de oficiais a
todos os talentos, e também para se adequar ao novo modelo, agora “disponível” da nação de cidadãos ( id.).
O modelo nacional que passou a ser adotado no Japão demandava a ampla
participação popular e aceitação do poder do imperador. Ao mesmo tempo em que os
cidadãos deveriam absorver os valores nacionais e saber que são partes fundamentais da
nação japonesa, eles precisavam reconhecer a dívida que tinham com a casa imperial, e, da
mesma forma, sentir-se orgulhosos em poder servi-la.
29 “The four corners of the world under one roof” (os quarto cantos do mundo sob o mesmo teto) é uma
expressão que destaca perfeitamente os anseios japoneses daquele período. Nota-se que realmente o país
ambicionava o controle de inúmeras áreas de influência na Ásia, dentre elas principalmente a China, mas que
também visava influência política sobre as potências ocidentais. Pode-se dizer que essa expressão utilizada, não como simples retórica, pretendia ser seguida exatamente ao pé da letra. Sobre esse assunto, vale a pena consultar
(BEASLEY,ibid., p. 27-et seq.)
62
Sendo assim, a construção em massa dessa mentalidade de nação de cidadãos
perpassaria diretamente pelo sistema educacional oficial. Vale lembrar que no período Meiji é
criado um sistema educacional obrigatório, que, inclusive, também passa a figurar na cultura
popular como sendo algo extremamente valioso e importante. De fato, esse sistema aparece
como o carro chefe na construção da cultura e dos valores do Japão moderno, em contraste ao
antigo modelo baseado nos clãs de samurais.
O imperador, nessa conjuntura, aparecia como o símbolo de poder da nação. Segundo
Beasley (op. cit., p. 35 et seq.) a constituição reconhecia sua descendência divina. Ele era
considerado um monarca benevolente e profundamente sábio no que concerne ao
comportamento moral do seu povo. Além do mais é preciso destacar, ainda, que nas escolas o
curso de ética treinava toda criança em reverência e lealdade ao imperador, ele era o foco da
unidade nacional, a personificação da tradição. Tudo quanto possível era feito para que todo
homem, mulher e criança do Japão o temesse.
Nesse contexto, ambos, o sistema educacional e a tradição religiosa desempenharam
papéis de destaque na construção de uma cultura de devoção incondicional ao imperador. O
cotidiano dos cidadãos funcionava no sentido de tornar natural a dominação da casa imperial
sobre todos os diversos aspectos da vida. Sendo assim, era fundamental que o imperador
aparecesse como o representante máximo das virtudes japonesas. As escolas e a religião
atuariam diretamente nesse sentido.
Vale considerar, ainda, que “todas as mudanças profundas na consciência, pela sua
própria natureza, trazem consigo amnésias típicas”. Desses esquecimentos, em circunstâncias
históricas específicas, nascem as narrativas” (ANDERSON, op. cit., p. 278). Em decorrência
disso, a engenharia simbólica feita no Japão no período pós-abolição do xogunato é de
fundamental importância para a reestruturação do país tendo como base novos princípios. O
enraizamento na população de doutrinas que pusessem em cheque a ideologia samurai, ao
mesmo tempo em que supervalorizasse a importância do imperador seria de vital importância
para a sustentação de um regime centralizado forte.
Analisando-se essas medidas tomadas pelo governo japonês30
, nota-se que, ao mesmo
tempo, deram fim à classe dos samurais, considerados naquele momento um mal à sociedade
japonesa em processo de modernização, e possibilitaram que o povo31
japonês pudesse
30 A expressão governo nesse caso se refere ao alto comando do governo (parlamento, gabinete) e não especificamente à figura do imperador. 31 Entende-se povo como os cidadãos adultos do sexo masculino.
63
integrar-se à máquina do Estado, reconhecendo na figura do imperador o grau máximo dessa
instituição.
A estratégia governamental de incorporação gradativa da população deve ser
entendida tendo como base o anseio de que o Japão se tornasse uma nação forte, e isso só
seria possível com aderência popular e, principalmente, através do reconhecimento por parte
dos ocidentais. Ao analisar essa questão, Behr (op.cit., p. 77) afirma que “para que o Japão se
tornasse uma grande potência, deveria ser tratado em pé de igualdade [pelos ocidentais].
Também deveria possuir meios para se defender das outras potências mundiais.” Isso significa
que o país deveria ser reconhecido como potência na Ásia e que também deveria conhecer os
meios para que pudesse agir em defesa, tanto do seu próprio território, como dos seus
vizinhos, do domínio estrangeiro.
Em concordância com essa argumentação, Beasley (op. cit., p. 27-et seq.) afirma que
na virada do séc. XIX para o XX, especialmente, se intensifica no Japão um sentimento de
reafirmação dos seus próprios valores de forma antagônica aos valores ocidentais, e, ainda,
que essa preocupação não se limitava às fronteiras nacionais e que declarava motivos bem
mais fortes do que meramente econômicos. O governo argumentava que o fortalecimento dos
seus valores visava a defesa não só do território dos países, mas de sua alma.
Essa característica, a despeito de parecer uma coisa simplesmente mística, metafísica,
ou até desprovida de aplicabilidade prática, ganharia corpo e legitimidade no Japão e estaria
fortemente presente no desenvolvimento da política externa do país, sobretudo em relação ao
sudeste asiático. Na verdade, essa questão representa uma das grandes balizas do próprio
empreendimento imperialista japonês. O que não quer dizer que os japoneses, de fato, fossem
agir de forma benevolente para com seus vizinhos, mas indica que as ações seriam pautadas
pela seguinte concepção: já que alguém iria exercer dominação na região, esse deveria ser o
Japão, a fim de proteger a Ásia dos “bárbaros”.
Partindo dessa premissa alegadamente altruísta, nota-se que na década de 1890 as
intenções expansionistas do Japão se intensificaram e os olhos se voltaram de forma especial
para o sudeste asiático. Contra esse pano de fundo, o que se desenrolaria seria uma guerra
contra a Coreia que representaria o primeiro estágio do imperialismo japonês (BEASLEY,
ibid., p. 55).
O Japão nesse momento perceberia a real importância de ter bases fortes, tanto política
quanto militarmente, para que seus interesses fossem atendidos e respeitados. Para tanto, seria
necessário que o país adotasse os mesmos meios, de ganho econômico e aumento de sua
64
esfera de influência, do que os ocidentais. O país ingressaria na empreitada imperialista.
Contudo, o imperialismo nipônico tinha bases que iam muito além dos ganhos materiais. O
ethos imperialista japonês estaria fortemente imbuído da mentalidade japonesa e das ideias de
honra e vergonha, o que, por si só, já representa uma grande diferenciação em relação aos
imperialismos ocidentais.
Os fatores que culminaram no processo imperialista japonês podem ser entendidos
através da análise da progressão histórica do país e sua relação com o ocidente. Tendo como
base as experiências históricas do Japão, em contraposição aos países europeus e os Estados
Unidos, pode-se considerar que, se nesses países o imperialismo surge atendendo a anseios
principalmente econômicos, naquele, ele surge por motivos bem diferentes. Beasley (ibid., p.
6) defende que o imperialismo japonês veio a existir por vias bastante diferentes do britânico,
alemão ou até mesmo do norte-americano. Ele se caracteriza, não pela necessidade de
aumentar mercados consumidores para uma superprodução, mas pela aliança de uma
burguesia com a elite militar no intuito de uma acumulação primitiva de capital.
As alianças entre os militares, a burocracia e a burguesia possibilitaram a expansão
japonesa. Além disso, a necessidade do Japão se adequar às condições mundiais de
capitalismo e imperialismo, como uma nação livre, levou o país a atuar como agente no
processo, como já dito anteriormente, para que não sofresse a ação de outros países. Além do
mais, o súbito contato japonês com o ocidente, como destaca Anderson (op. cit., 144-145),
contribuiu para que se adotasse um caráter imperialista agressivo em decorrência dos três
séculos de isolamento voluntário provocado pelo xogunato tokugawa.
A nação japonesa, por assim dizer, não se sentia parte integrante de um “pluralismo
tradicional de Estados dinásticos em interação” (id.), e por isso a postura defensiva do
passado logo se tornaria um anseio expansionista desenfreado. Nesse sentido, a ausência de
familiaridade com a comunidade internacional imaginada logo se materializaria num jogo de
forças no qual só há duas opções: conquistar ou ser conquistado.
O imperialismo japonês, sendo analisado sob o ponto de vista simbólico, apresenta
algumas semelhanças em comparação ao europeu e norte-americano. Como afirma Sakurai
(2007, p. 186-187):
A grande maioria do povo japonês, disciplinado e doutrinado há pelo menos
duas gerações, passou a acreditar que o Japão tinha uma missão de
“civilizar e esclarecer” o mundo o que, na prática, significava conquistar
territórios e fazer valer seus interesses sobre o de outras nações.
Nos movimentos expansionistas ocidentais, nota-se que a população acreditava
realmente que era o seu papel levar a civilização aos povos atrasados e que, em contrapartida,
65
esses povos se sentiam agradecidos pela modernização que recebiam. O Japão, por seu turno,
considerava sua liderança na Ásia um fator de extrema importância para sua sobrevivência
política e econômica, assim como dos próprios países que estavam sendo subjugados, mesmo
que isso significasse o martírio dessas outras nações asiáticas em favorecimento do
crescimento do povo nipônico.
Já na primeira década do séc. XX, o sentimento expansionista no Japão já está tão
enraizado, e esse ethos imperialista tão bem construído, que o apoio popular foi facilmente
conseguido. Anderson (op. cit., p. 144) afirma que:
O êxito espetacular do Exército japonês contra a China em 1894-5 e da
Marinha Imperial contra a Rússia czarista em 1905, e mais a anexação de
Taiwan e da Coréia, foram de imensa valia para criar a impressão geral de que a oligarquia conservadora era uma representante autêntica da nação,
enquanto os japoneses começavam a se imaginar membros dela.
A população japonesa era fortemente estimulada a adotar os valores da expansão
territorial como a missão do Japão. As ações do Exército Imperial na China atuariam no
sentido de mostrar que esse realmente seria o caminho correto a ser seguido, além de ser esse
um caminho bastante lucrativo. A despeito disso, Beasley (op. cit., p. 56), afirma que não há
evidências de que ao declarar guerra à China em 1894, o governo japonês tivesse expectativas
de ganho territorial, porém, a facilidade e a rapidez das vitórias japonesas contribuíram para o
aparecimento desse tipo de ambição. Além do mais, o fervor público no Japão durante a
guerra aumentou consideravelmente.
O fato é que a guerra com a China trouxe ao Japão a possibilidade de anexação de
alguns territórios, e embora a princípio essas anexações não fossem almejadas, elas depois se
mostraram bastante convenientes. Além disso, Sakurai (op. cit., p. 164) afirma que “a guerra
sino-japonesa revelou o poderio do Japão ao resto do mundo ocidental. Até então, desde 1868
ao final do séc. XIX, o Japão aparecia aos norte-americanos e europeus envolto numa bruma
exótica e inofensiva de gueixas ou imagens bucólicas do monte Fuji.”
A China, sendo uma das principais áreas de interesse do Japão, merece destaque no
que tange às representações do povo japonês em relação aos chineses. A princípio, nota-se
que o Japão “reconhecia a China como a matriz de muitos fundamentos da cultura japonesa –
a escrita, a religião budista, o confucionismo [...]” (SAKURAI, ibid., p. 163), contudo,
percebe-se uma mudança radical nesse sentimento, já que, como afirma Behr (op. cit., p. 33),
a partir de determinado momento “os japoneses desprezavam a China por sua falta de
patriotismo. Durante a era Meiji, os japoneses passaram a ver a China não como nação, mas
sobretudo como uma cultura, um estado de espírito”.
66
Uma mudança extremamente significativa como essa merece muita atenção. O
reconhecimento, por parte dos japoneses de que a China havia tido participações
consideráveis na formação cultural do Japão não pode ser descartada, contudo, é preciso
atentar para a maneira através da qual os chineses seriam representados na mentalidade
japonesa no período expansionista. Os japoneses passaram a observar que na China havia uma
série de coisas que deveriam, a qualquer custo, ser evitadas.
Nota-se que mais uma vez o contato com os ocidentais exerceria um papel bastante
importante na construção dessas representações. Behr (id.) afirma que “com a modernização e a
liberdade de viajar ao estrangeiro, surgiu uma crescente consciência da vida além das fronteiras
japonesas, especialmente na terra continental mais próxima, a China.” No Japão, o país vizinho era
visto como uma terra sem leis, terra de ninguém, e isso favorecia e fortalecia cada vez mais o
imperialismo japonês na área.
Nesse ponto, vale a pena estabelecer uma análise mais detida sobre a relação entre
Japão e China. Como dito anteriormente, o Japão, na trilha da modernização e
desenvolvimento econômico-militar, não poderia – e nesse aspecto torna-se claro o anseio
japonês – deixar que seu vizinho continental continuasse servindo, mesmo que
involuntariamente (considerando-se que a China não possuía os meios necessários para se
defender ou simplesmente não o fazia) aos interesses ocidentais.
A relação e as representações estabelecidas pelos nipônicos são bastante intrigantes,
no sentido de que torna-se claramente perceptível uma depreciação do povo chinês. No Japão
há um processo de estabelecimento e intensa afirmação de um sentimento de nós em
contraposição a eles. A China é a representação de tudo o que os japoneses não querem para
seu país. No Japão, a aversão e repúdio aos chineses passam a ser bastante comuns.
Esse processo de estigmatização de um grupo por outro pode ser entendido
analisando-se o processo de estruturação simbólica das partes envolvidas32
. Um grupo só
poderá atribuir máculas a outro desde o momento em que ele próprio estiver instalado em
posições de poder nas quais o outro não está. Cabe ressaltar ainda, que muito além de simples
preconceito individual do japonês em relação ao chinês, o estabelecimento dessa perspectiva
estigmatizante é, antes de qualquer coisa, um processo estritamente coletivo. Não é
simplesmente o chinês (ou um chinês específico) que é visto como pária, mas toda a China,
enquanto nação sofre essa exprobração.
O resgate à análise de Elias (2000, p. 23) ajuda a compreender esse processo:
32 Ver capítulo 1.
67
Há uma tendência a se discutir o problema da estigmatização social como se
ele fosse uma simples questão de pessoas que demonstram, individualmente,
um desapreço acentuado por outras pessoas como indivíduos [...]. Entretanto, isso equivale a discernir apenas no plano individual algo que
não pode ser entendido sem que se o perceba, ao mesmo tempo, no nível do
grupo [...]. Portanto, perde-se a chave do problema que costuma ser
discutido em categorias como a de “preconceito social” quando ela é exclusivamente buscada na estrutura de personalidade dos indivíduos. Ela
só pode ser encontrada ao se considerar a figuração formada pelos dois
grupos implicados ou, em outras palavras, a natureza de sua interdependência.
Inúmeros fatores merecem ser destacados no que concerne à relação entre esses dois
países. Todavia, o que mais deve ser destacado é o desprezo pelos chineses que,
complementarmente ao ódio, estimularia a materialização de cenários extremamente
pavorosos e desumanos, quando da ação do Exército Imperial na China. E essa é uma questão
extremamente pertinente, já que esse sentimento permeará as relações entre esses dois países.
No caso da Rússia, a rápida vitória num período de aproximadamente um ano (1904-
1905) tomaria proporções muito maiores do que uma simples campanha militar bem sucedida.
O exército russo representava um império de proporções continentais, o que, segundo Sakurai,
(ibid., p. 165-166), trazia ao Japão o status quo equivalente a Davi vencendo Golias. É
evidente que a alegoria à história bíblica não era tão recorrente entre a população japonesa,
haja vista que o cristianismo não tinha ampla difusão no país. Entretanto, no ocidente, o fato
do Exército Imperial, representante de uma nação tão pequena como o Japão, ter vencido as
tropas russas, mostrava que aquele país não estava adormecido, ou pelo menos que não era tão
alheio ao resto do mundo.
Mesmo que as demais potências tivessem conhecimento antes da guerra de que o
Japão possuía uma marinha e um exército de primeira classe, era praticamente impensável
que um país de proporções tão minúsculas pudesse vencer uma potência como a Rússia.
Mesmo no Japão, havia sérias dúvidas quanto à possibilidade real do país vencer a guerra.
E apesar do Japão ter sofrido pesadas baixas em seu efetivo e também um déficit
financeiro considerável, a representação simbólica do país perante os demais nunca mais seria
a mesma. A total entrega das tropas japonesas no campo de batalha33
mostraria efetivamente
quem era aquele pequeno país. A imprensa mundial exaltaria o caráter “heróico” do Exército
japonês. Uma manchete do The times (apud BEHR,op. cit., p. 37) acentuava que “A atitude do
povo japonês diante desse triunfo que marcará época é uma visão para homens e deuses”. 33 De fato, é interessante ressaltar que não se esperava realmente, segundo Behr (1991, p. 37) que muitos
soldados japoneses sobrevivessem aos conflitos, entretanto, a vontade com que combatiam e a dureza com a qual os oficiais os tratavam, fuzilando imediatamente qualquer um que abandonasse o campo de batalha, tomaram
dimensões gigantescas no cenário mundial.
68
Esse período, no qual o Japão pôde surpreender o resto do mundo com seu potencial
bélico, provocou o aparecimento de expressões referentes ao país, como perigo amarelo, que
permaneceu nas representações ocidentais nas décadas seguintes. No Japão, a vitória sobre o
gigante russo traria consequências extremamente significativas na psique da população.
Segundo Behr (ibid., p. 38), “as qualidades bushido de seu exército e marinha e as
histórias de legendário heroísmo em face de dificuldades esmagadoras eram contados e
recontados na imprensa e nos livros de história do Japão”. O Exército, a partir desse momento,
passaria a desempenhar um papel cada vez mais importante e as carreiras militares tornaram-
se mais procuradas do que nunca. A população realmente absorvia os ideais militares.
É interessante notar que, se num primeiro momento (final do século XIX) houve um
esforço empreendido pelo governo japonês, após a restauração Meiji, para acabar com a
cultura samurai, o alvorecer do século XX e os confrontos com as potências europeias
proporcionaram um cenário perfeito justamente para o resgate dessa mentalidade e dessas
filosofias, a fim de que os nipônicos pudessem rivalizar os ocidentais.
Nesse sentido, as ações cometidas pelo Exército Imperial posteriormente,
principalmente na China, merecem destaque justamente pelo fato de que elas eram
legitimadas pelos japoneses. O Japão, segundo Dower (2005, p. 268) “não [se considera] mais
culpado do que os outros países envolvidos na guerra e nem mais violento nos campos de
batalha e para com os prisioneiros do que os outros combatentes”. Existe todo um complexo
simbólico que dá suporte a cada país ou indivíduo envolvido em um conflito34
.
Contudo, essas justificativas nem sempre são realmente válidas. O que é interessante
destacar aqui é o fato de que até mesmo as ações mais pavorosas e desumanas possuem
pressuposições que são vistas como válidas pelos que promovem os atos. Aliás, falar em
conflitos, massacres ou qualquer tipo de conflagração sem falar dos seres humanos que estão
por trás desses acontecimentos é descaracterizar totalmente o papel da história.
Nesse sentido, a análise de assuntos como o imperialismo japonês não pode vir
separada da análise dos reais anseios e perspectivas que serviram como combustível e
afirmação dos valores expansionistas. Nota-se que nas épocas posteriores à Segunda Guerra
os países ocidentais adotaram uma postura de demonizar os japoneses pelos seus atos na
34 É necessário destacar, nesse ponto, que as ações dos imperialistas na África e Ásia principalmente, sem
esquecer das Américas, também eram justificadas sob o ponto de vista ideológico, entretanto essas justificativas
não diminuem o caráter desumano dos atos. Nota-se, contudo, que no caso japonês parece que a culpa pelos
acontecimentos vem em dobro, o que não acontece no caso do imperialismo ocidental. O objetivo aqui não é
condenar ou absolver os países, e seus respectivos meios imperialistas, das suas ações, mas analisar o processo de demonização das culturas orientais, e em especial o Japão, por seus atos, que muitas das vezes são até menos
prejudiciais do que os equivalentes ocidentais, considerando-se que se possa fazer essa comparação.
69
China. Entretanto, conforme se verifica na análise de Dower (op.cit., p. 274) as atitudes de
países como os Estados Unidos no Vietnã, por exemplo, oferecem uma demonstração de
como os americanos (e outros) se colocaram em posição de julgar os japoneses, mas sem ao
menos observar os mesmos critérios para si.
A questão central aqui é que a manutenção de um Japão forte no início da década de
1920 seria, por um lado, encarada como benéfica, principalmente pelos Estados Unidos,
porque representaria um baluarte asiático contra o comunismo russo, que ambicionava
influência política naquelas áreas. Todavia, a mentalidade expansionista japonesa aliada ao
fato de que a população se encontrava extremamente coesa com o governo, provocaria
prontamente a atenção dos americanos, e isso contribuiu para que “[...] em 1924 os Estados
Unidos [fechassem] definitivamente a entrada de imigrantes japoneses em seu território. Essa
postura, além de restringir a possibilidade de muitos jovens satisfazerem o sonho de mudar de
vida, feriu o orgulho dos japoneses” (SAKURAI, op.cit., p. 175).
Há de se atentar para o fato de que no início do séc. XX o fluxo de japoneses
imigrando para outros países e de estrangeiros migrando para o Japão havia se intensificado
consideravelmente devido à própria dinâmica política mundial. Sendo assim, essa atitude
tomada pelo governo dos EUA em relação aos japoneses tomaria proporções gigantescas na
mentalidade da população e nas relações diplomáticas entre esses países.
Em meio a esse cenário de crescente rivalidade dos nipônicos em relação a alguns
países ocidentais, o exército japonês vem sendo treinado e doutrinado, a fim de que se
tornasse uma verdadeira máquina de guerra que destruísse rapidamente os inimigos nacionais,
que visavam impedir que os anseios políticos nacionais – leia-se os anseios que eram
veiculados como sendo do próprio imperador – fossem colocados em prática.
As ações do Exército Imperial devem ser analisadas à luz do forte sentimento
nacionalista no Japão. Segundo argumenta Sakurai (op. cit., p. 187), no período a partir da
década de 1930:
O “espírito samurai” foi revivido de forma contundente como exemplo de comportamento a ser seguido por todos os japoneses: lealdade, obediência
às normas e à hierarquia, orgulho da pátria. A literatura e o cinema japonês
da época exploravam o espírito de auto-sacrifício em nome do país. As
músicas preferidas tinham o som de marchas militares, num vivo contraste com as décadas anteriores. O apelo patriótico, sempre presente, procurava
agora preparar a população para uma iminente guerra.
O trecho citado indica uma série de questões que não podem ser perdidas de vista
numa análise da sociedade japonesa do início do século XX. Primeiro, o resgate do que se
considera como sendo o “espírito samurai”; em segundo lugar, destaca-se o papel exercido
70
pelas artes no imaginário da população; e por último, deve-se levar em conta o esforço do
Estado para legitimar uma cultura bélica nacional.
O espírito samurai que se pretende resgatar representa tudo de mais precioso, em
relação a valores de honra e lealdade, que era extremamente necessário à manutenção de um
Japão forte nesse período. De fato, a cultura samurai havia sido oficialmente abolida desde a
década de 1870, entretanto, ainda havia um forte resquício simbólico do estilo de vida e
devoção dos antigos samurais, presente no cotidiano dos japoneses.
O esforço governamental ocorria no sentido de demonstrar que o compromisso de
honra maior que qualquer japonês deveria assumir era o próprio on em relação ao imperador.
Isso se conseguiria através do sistema educacional obrigatório que fora implantado após a
restauração Meiji. A educação de massa estabelecida pelo governo atendia, em larga escala,
aos interesses estatais para que se formasse uma cultura de legitimação das ações do governo.
Sendo assim, as próprias escolas se encarregaram de transformar alguns aspectos da
tradicional cultura samurai e adaptá-los à nova realidade do país. Aliás, a educação passou a
ser tão importante para a construção do Estado japonês moderno que os professores eram os
únicos cidadãos que não tinham por obrigação curvarem-se diante do imperador.
O sistema educacional funcionou como um dos principais instrumentos do governo
para construir, de fato, uma cultura pública no Japão. E isso se fez perceber ainda mais
fortemente dentro do exército, já que a cultura samurai que era resgatada apontava para uma
atitude em relação à guerra que era a de conseguir a vitória sobre os inimigos, ou uma morte
honrada no campo de batalha. Ou seja, os soldados japoneses seriam formados sob uma
pesada doutrina de repúdio à fraqueza (física e mental), extrema devoção e obediência aos
superiores, e principalmente, eram ensinados a não retroceder nunca, mesmo em face à morte
certa, e não demonstrar qualquer tipo de piedade para com o inimigo.
Esse é um ponto que salta aos olhos, tendo em vista que um exército formado por
soldados que são tão fortemente devotados a uma causa – e isso se faz notar claramente na
devoção do exército japonês em relação ao imperador – se torna uma máquina de matar
extremamente eficiente, dada a falta de limites provocada pela própria necessidade de se
atender a um objetivo maior: atender aos anseios do imperador.
Se o sistema educacional agia oficialmente no sentido de construir e consolidar os
ideais e a cultura que atenderiam aos anseios do Estado japonês moderno; as artes e aquilo
que se considera como sendo a cultura popular agiam no sentido de cristalizar e naturalizar
71
ainda mais os diversos aspectos simbólicos desse conjunto de representações que passaram a
fazer parte do cotidiano dos cidadãos.
Sendo assim, de fato, se passa a observar no país a introdução de uma série de
aspectos culturais ocidentalizantes (como, por exemplo, a já citada canção de bola da
civilização), que na medida em que fossem reproduzidos pela população trariam naturalidade
aos diversos símbolos recentemente introduzidos no país, e também a ideia de que essas
manifestações sempre fizeram parte da cultura nacional comum.
O impacto causado em médio prazo pela repetição constante dos inúmeros novos
símbolos culturais no Japão se faz notar na medida em que se observa o êxito dessa política
em adequar a cultura popular nipônica à nova conjuntura internacional enfrentada pelo país à
época. As músicas, as artes plásticas, o teatro, enfim, todos os aspectos culturais oficiais no
Japão se voltaram ao objetivo de colaborar com as metas do alto escalão governamental.
E isso porque, no Japão, se fazia necessária a construção de uma cultura pública
voltada para a guerra. Esse ponto seria de extrema importância, na medida em que o país
necessitaria do maciço apoio popular, no jogo de forças internacional, em contraposição aos
ocidentais que estendiam suas áreas de influência cada vez mais pelo sudeste asiático,
principalmente na China.
O Japão – leia-se o governo imperial – não poderia empreender grandes campanhas
militares, nem mesmo esboçar qualquer tipo de hostilidade em relação a outros países, sem
que tivesse a coesão interna que o possibilitasse. Sendo assim, a construção de uma cultura
pública voltada para a guerra garantiria que no momento em que fosse exigido de cada
cidadão a sua devida participação e apoio em relação aos conflitos, a legitimação popular viria
naturalmente, devido a esses fatores já fazerem parte da cultura do país.
Na verdade, a gradativa introdução, e ao mesmo tempo aceitação dos novos valores
culturais no Japão, por si mesmas, trataram de criar um terreno bastante fértil para o
fortalecimento de ideias favoráveis à manutenção de um Estado forte, e até mesmo um clamor
público pró-intervenção nas regiões (principalmente chinesas) onde houvesse forte presença
ocidental. É interessante perceber que todos esses fatores – educação, artes e cultura popular –
estarão intimamente ligados e interdependentes no Japão do início do século XX, e que, em
larga escala, serão fundamentais na constituição social nipônica de uma cultura em favor da
guerra.
As relações entre os nipônicos e os demais povos asiáticos, dentre eles principalmente
a China, devem ser analisadas partindo-se do entendimento de todo o conjunto cultural e
72
simbólico que servia como justificativa aos atos dos governantes e dos soldados. Pressupondo
esse entendimento, é possível se fazer um exame mais próximo dos eventos, evitando
qualquer tipo de maniqueísmo provocado pelo não conhecimento do contexto histórico no
qual os países estavam submersos.
Na década de 1890, atendendo aos fatores até agora apontados, as intenções
expansionistas japonesas se intensificaram e os olhos se voltaram com mais força para o
sudeste asiático. Sobre esse pano de fundo, começaria uma guerra contra a China e a Coréia
que representaria o primeiro estágio da expansão imperial japonesa (BEASLEY, op. cit., p.
55)
A guerra sino-japonesa de 1894-5 representa um marco fundamental para o início de
uma postura efetivamente agressiva do imperialismo japonês. Esse conflito, pode-se dizer,
caracterizou-se pelo anseio japonês em gradativamente diminuir a esfera de influência chinesa
no sudeste asiático, ao passo que aumentaria sua própria área de alcance. Como estopim para
esse conflito, podem-se citar as hostilidades que surgem fundamentalmente devido ao impasse
provocado pela questão da Coréia35
.
A respeito desse ponto, deve-se destacar a argumentação de Sakurai (op. cit., p. 163)
de que “o Japão via nela [Coréia] um terreno propício para cumprir seus objetivos de alargar
as fronteiras econômicas pelo comércio e para a obtenção de matérias-primas”. Nota-se que o
território coreano já era cobiçado pelos russos, pelos japoneses e mesmo pelos chineses há
pelo menos duas décadas. Ademais, desde meados do séc. XIX China e Japão, especialmente,
já divergiam quanto ao exercício de influência na região.
Em retrospecto, nota-se que os nipônicos em 1875 propuseram um acordo econômico
à Coréia a fim de garantir para si mesmos uma posição privilegiada. China e Rússia,
prontamente demonstraram descontentamento em relação a esse acordo, já que se sentiram
extremamente secundarizados por ele, o que fez aumentar ainda mais a inimizade entre os
países (SAKURAI, id.).
A fragilidade nas relações entre China e Japão era bastante notável. Ela seria tamanha
que, em 1885, os dois países se viram na eminência de uma guerra. Contudo, assinaram um
tratado para evitar tal conflagração. Em longo prazo, esse acordo se mostrou ineficiente, pois
em vez de anular a possibilidade de guerra entre os dois países, apenas a adiou em uma
década.
35 Durante as duas décadas anteriores à guerra sino-japonesa, a China e o Japão divergiram quanto à política
interna da Coréia e a forte influência chinesa no governo do país. A Coréia fica localizada numa área extremamente estratégica e seria de grande importância para atender aos anseios expansionistas japoneses, que
se voltavam para o sudeste asiático.
73
A análise da guerra sino-japonesa não pode perder de vista o desenvolvimento político
e cultural dos dois países envolvidos no conflito. Nesse sentido, mesmo uma rápida
observação seria capaz de explicar, pelo menos a princípio, a rápida vitória japonesa. Esse
exame da progressão histórica de japoneses e chineses viabiliza o entendimento dos
desdobramentos do conflito, e é necessária nesse ponto uma atenção especial para o
desenvolvimento militar dos dois países.
A virada do século XIX para o XX, na análise de Behr (op. cit., p. 33), é um período
no qual as marinhas assumem um papel de extrema importância no que tange ao poderio
militar de uma nação. Sendo assim, o Japão, que vinha num passo bastante acelerado de
modernização do exército e da marinha, assumia de início uma vantagem considerável em
relação à China. Esta, por seu turno, sofria com a forte influência estrangeira em seu território,
o que impossibilitava o desenvolvimento das estruturas militares.
Além disso, deve ser destacado ainda, o fato de que a situação da política interna dos
dois países era totalmente oposta. Enquanto o Japão vinha num crescente social, com
melhorias objetivando a legitimação do Estado nacional moderno por parte dos cidadãos, o
que visava a total coesão nacional; a China atravessava um período de instabilidade política,
marcado por inúmeras guerras civis e pela impossibilidade de manutenção de um governo
central forte. A decadente dinastia Manchu não tinha poder suficiente para que se fizesse
sentir em todo o imenso território chinês (BEHR, id).
A conflagração de 1894-95, levando em consideração a situação interna dos
beligerantes, foi fácil e rapidamente vencida pelos japoneses. O teatro de operações, que num
primeiro momento compreendeu o território da Coréia, num curtíssimo espaço de tempo se
arrastou para a Manchúria, no nordeste da China, onde os chineses foram definitivamente
derrotados pelas tropas japonesas. O período imediatamente após a guerra, mais do que o
conflito em si, merece uma atenção especial. O Japão, com a vitória no conflito, visa obter
grandes vantagens econômicas. Entretanto, como destaca Beasley (op. cit., p. 56 et seq.), os
termos do acordo de paz em vias de ser elaborado pelos japoneses foi causa de muitas
controvérsias entre o governo. O autor destaca que:
Os homens com voz ativa no governo japonês, que tinham influência na
elaboração dos termos de paz, se mostravam menos ambiciosos do que a
opinião pública e a imprensa. Mas nem tanto assim. Oficiais do ministério das finanças ansiavam por uma grande indenização, para que fossem pagos
os gastos de guerra japoneses. Logo após, o Exército descobriu boas razões
para anexação de porto Arthur e da província de Liaodong36
.
36 Tradução livre.
74
O clamor público e a pressão da imprensa devem ser destacados nesse período da
história política japonesa. Acompanhando a análise de Beasley (id), percebe-se que não há
evidências de que no período imediatamente anterior à declaração de guerra à China em 1894
o governo japonês tivesse alguma expectativa de ganho territorial. Entretanto, a facilidade e a
rapidez das vitórias japonesas gradativamente os impeliram a esses objetivos expansionistas.
Ademais, o clamor público no Japão se elevou consideravelmente durante a guerra. É notável
o fato de que as ideologias absorvidas pela população, durante a segunda metade do século
anterior, contribuíram diretamente para que ela aderisse aos valores imperialistas.
Apoiando essa argumentação, Behr (op. cit., p. 34-35) afirma que o fato de o
imperador Meiji ter tomado pessoalmente o comando do moderníssimo Exército Imperial
durante a guerra contribuiu diretamente para que os termos da paz fossem mais duros ainda:
“A Coréia se tornaria virtualmente um protetorado japonês, Taiwan se tornaria japonesa, a
China seria obrigada a pagar uma enorme ‘indenização’ e o Japão se moveria para a parte
sudeste da Manchúria”.
Os termos do acordo de paz, entretanto, como dito anteriormente, não foram tão
facilmente elaborados. O Japão necessitava de um significativo ressarcimento econômico para
que pudesse se reestruturar. E esse ganho econômico deveria vir, necessariamente, da China.
O ponto central aqui, é que a guerra com a China trouxe ao Japão a possibilidade de anexação
de alguns territórios. Muito embora não haja evidências de que a princípio essas anexações
fossem os objetivos primários da guerra, elas logo se mostrariam bastante convenientes. O
embaixador britânico em Tóquio, reportando a repercussão da guerra no Japão, afirmou que
“nada menos do que a inteira absorção de todo o império chinês é agora abertamente discutido
no país” (apud BEASLEY, op. cit, p. 55).
No entanto, a despeito de suas necessidades, o receio japonês de que suas ambições
estivessem acima do limite tolerável provocou uma flexibilização nas exigências do acordo. A
cautela das ações japonesas deve-se, na verdade, ao temor de que houvesse uma intervenção
das outras potências. De fato, os diplomatas japoneses nos Estados Unidos e na Europa
advertiam para o perigo de hostilidades por parte dos ocidentais a ações japonesas que
provocassem “desmembramento da China” ou “destruição da presente dinastia” (BEASLEY,
ibid., p. 58). Os países europeus com interesses na área não poderiam permitir que uma nação
com as proporções do Japão viesse a interferir nos assuntos ocidentais na China. O Japão,
enquanto potência bélica, era ainda totalmente desconhecido pelos ocidentais.
75
A evolução do cenário da guerra e a rápida vitória sobre a China apresentaram aos
demais países, ainda que de maneira discreta, o potencial bélico do Japão, que até então era
extremamente subestimado pelos ocidentais (SAKURAI, op. cit., p.163-164). A terra do Sol
nascente era vista envolta numa bruma totalmente exótica, com as imagens das gueixas e do
monte Fuji coberto de neve. Todavia, o país saía da guerra sino-japonesa com uma boa
indenização, além de sua mais nova colônia, Taiwan. Mais importante, ele teria agora acesso
a uma área que representaria uma importantíssima fonte de lucros: a Manchúria.
A ascensão do Japão como potência na Ásia foi tão dramática que, devidamente
alarmadas, França, Alemanha e Rússia se uniram numa tripla intervenção diplomática para
pressioná-lo a ser menos ambicioso. Em decorrência disso, o Tratado de Shimonoseki37
,
assinado no final da guerra, foi nada mais do que uma versão bem menos audaciosa do tratado
original. Beasley (op. cit., p. 58) enfatiza o argumento de que o Japão optaria por essa postura
menos agressiva, não pela condição de recusa chinesa, mas pela possibilidade de hostilidades
por parte dos ocidentais. Além disso, o autor prossegue argumentando que:
Se o Japão demandasse territórios na Coréia, a Rússia também poderia brigar por esses territórios. Os ganhos territoriais ao Sul da Manchúria trariam
oposição tanto da Rússia quanto da Inglaterra. A reivindicação por Taiwan
poderia provocar Inglaterra e França. Sendo assim, seria melhor considerar
os ganhos territoriais como inatingíveis e concentrar-se em assegurar a maior indenização possível
38.
Behr (op. cit., p. 35), analisando a posição japonesa em face às exigências ocidentais,
afirma que “o imperador Meiji relutantemente cedeu, mas a lembrança desse comportamento
‘colonialista’ e a suspeita de que o ocidente sempre tentaria impedir o Japão de obter suas
justas recompensas, iria inflamar-se no inconsciente coletivo dos japoneses durante gerações.”
A tripla intervenção foi promovida apenas seis dias após a assinatura do tratado de paz entre
China e Japão. Os nipônicos deveriam declinar suas ambições na península de Liaodong (na
Manchúria), além de suas pretensões na Coréia. Esse fato representou uma grande derrota
diplomática japonesa.
É plausível o argumento de que o governo russo se sentiria seriamente prejudicado
com a presença japonesa na Coréia e em Liaodong, tendo em vista que os russos também
tinham muitos interesses nessas regiões. Para ampliar sua esfera de influência no Oriente, os
russos necessitavam assegurar posições e áreas de influência na China, e o fato do Japão estar
despontando como grande potência asiática preocupava-os sobremaneira. Ademais, a Rússia
vivia numa atmosfera europeia onde tinha, a todo momento, que manter-se firme diante as
37 17 de Abril de 1895. 38 Tradução livre.
76
demais potências que disputavam sua adesão. Cabe ressaltar que quando o Japão finalmente
conseguiu a Coréia como colônia, o governo russo foi alertado pelos alemães do perigo que o
Japão estava representando, e que algo deveria ser feito (SAKURAI, op. cit., p. 165).
O império russo, após a tripla intervenção, prontamente tomou providências quanto
aos assuntos chineses, para que mantivesse influência na região. O governo olhava
fundamentalmente para a região da Manchúria, que devido à sua considerável atratividade
econômica39
chamava a atenção dos países com interesses em estabelecer influência na Ásia.
Em 1898, apenas três anos após o fim da guerra sino-japonesa, a Rússia procurou estabelecer
um acordo com os chineses a fim de conseguir a implantação de uma base naval em porto
Arthur, na península de Liaodong.
O Japão, dado esse cenário, não poderia permanecer numa posição inerte. Enquanto
país relativamente pequeno, não podia apenas ficar observando os europeus consolidarem
suas posições em todo o sudeste asiático, sem temer por sua própria integridade. No período
entre 1895-1900 os japoneses assistiram à partilha da China pelos imperialistas ocidentais em
áreas de influência. Os japoneses viam mais uma vez os ocidentais vetarem a expansão
nipônica, ao passo que cada vez mais estendiam seus cobiçosos tentáculos sobre a Ásia.
Contudo, esse foi um período no qual o Japão vinha se reestruturando economicamente após a
guerra e não podia fazer muito, apenas esperar o momento oportuno para agir.
No início do séc. XX, o Japão já estava novamente em condições de brigar por suas
posições. Segundo Behr (op. cit., p. 33), “as concessões estrangeiras se estendiam por toda a
China, e o Japão – depois de fornecer metade das tropas que dominaram a rebelião dos
boxers40
, em 1901 – também viu ser chegada a hora de pedir sua parte.” A melhor defesa para
o Japão, argumentavam os membros do governo, seria lançar-se ao ataque. O país deveria
mostrar-se como potência na Ásia.
Nesse período a Grã-Bretanha, em decorrência de seu intenso descontentamento com a
Rússia41
, estabelece um tratado de amizade com o Japão (1902) que possibilitou aos japoneses
uma maior afirmação dos seus interesses. A intromissão russa na Manchúria provocava uma
particular insatisfação no governo japonês, na medida em que o Japão é que deveria exercer
39 Apesar das condições climáticas adversas, a região da Manchúria possui um solo extremamente fértil. Além
disso, é bastante rica em recursos minerais e, em decorrência de seus extensos rios, possui um potencial
hidroelétrico bem elevado (HARRIS, 2002, p. 4). 40 O Japão começou a mostrar seu poderio bélico fornecendo 8000 soldados que se juntaram a outros 9000 de
todas as outras potência juntas. Esse feito representou grande importância no que diz respeito à posição
diplomática japonesa em relação aos ocidentais, pois demonstrava que os nipônicos não estavam inertes, nem
tampouco enfraquecidos. 41Nesse período a Rússia vinha ameaçando constantemente a hegemonia britânica na Índia através do Estado-
tampão do Afeganistão (BEHR, id).
77
influência na Ásia. Os japoneses, no papel de povo escolhido, deveriam tomar a vanguarda
dos assuntos asiáticos.
A Manchúria, como dito anteriormente, era uma região que provocava intensa
oposição entre Japão e Rússia. Essa, por sua posição geográfica, demandava uma saída para
um mar navegável no Pacífico42
. Isso possibilitaria que o país realizasse comércio fora da
Europa com mais facilidade, além de poder estabelecer uma Marinha de Guerra forte. A
China representava o caminho mais viável para os russos conseguirem êxito na sua
empreitada. Sendo assim, o exercício de influência na região era fundamental para o sucesso
desse empreendimento.
A frequente intromissão russa na Manchúria provocaria uma intensa animosidade com
os japoneses. Após a conclusão da ferrovia Transiberiana o governo japonês assistiu à
transformação definitiva da Manchúria numa área de enorme importância estratégica para a
Rússia. Os russos alegavam que aquela era a ferrovia Chinesa Oriental – havia até mesmo um
diretor chinês – mas os japoneses perceberam que na realidade o empreendimento
representava uma estrada de ferro russa atravessando a China (BEHR, ibid, p. 35).
Nesse momento, os russos procuraram estabelecer acordos junto aos chineses visando
o estabelecimento de guarnições militares no Nordeste da Manchúria, bem como a instalação
de uma base naval russa em Porto Arthur, na península de Liaodong. Os russos, enfim, tinham
conseguido tomar posse do único porto daquela região que não sofre as consequências do
congelamento no inverno (SAKURAI, op. cit., p. 165).
O Japão, dadas as circunstâncias, não poderia permanecer como um simples
espectador de toda essa movimentação russa no território chinês. Sakurai (id) afirma que a
princípio, o Japão tentou uma negociação, mediada pela Grã-Bretanha, propondo um
relaxamento dos interesses japoneses na Manchúria em troca do controle do Norte da Coréia.
Um acordo como esse, considerando-se o disputado jogo de interesses na Europa,
representaria um perigo para os demais europeus, porquanto os russos, além de uma vitória
diplomática, teriam ainda acesso livre a uma região que poderia render consideráveis lucros.
É possível presumir que os próprios britânicos tenham imposto dificuldades para que
esse acordo não vingasse. Além do mais os Estados Unidos, já demonstravam seus interesses
na Europa e na Ásia e, juntamente com a Grã-Bretanha, exerceram pressão diplomática
visando o malogro desse acordo. Uma Rússia fortalecida seria um perigo para as demais
42 O território russo possui saídas para o mar, entretanto, esses mares permanecem congelados durante boa parte
do ano, o que inviabiliza a navegação. A Rússia, por ter estreita ligação com as potências européias, buscava manter sua autonomia diante delas, e uma saída para o mar representava condição sine qua non para a
manutenção dessa autonomia (BEASLEY, op.cit.,p. 58 et seq.)
78
potências, ao passo que o enfraquecimento desse país, mesmo que não fosse desejado
abertamente, seria bem-vindo. Ao Japão, considerando a hipótese de não haver ressarcimento
pela perda da Manchúria e o insucesso da alternativa diplomática, restava apenas a opção de
um enfrentamento aberto com os russos para que pudesse garantir a afirmação dos seus
interesses na China.
Em 1904, com apoio internacional, a Marinha Imperial promoveu um ataque surpresa
à frota russa em Porto Arthur43
, visando evitar que os russos continuassem a se expandir no
território chinês. A análise de Behr (op. cit., p. 36) a respeito desse ataque é bastante
interessante: “Foi uma pré-encenação de Pearl Harbor. Na tradição dos samurais tudo é válido
na guerra, e atacar o inimigo de surpresa, sem qualquer aviso, não era meramente aceitável,
mas fazia parte das cruéis regras do jogo japonesas.”
Após o primeiro ataque furtivo, o Japão conseguiu desestruturar completamente as
forças russas levando a guerra a um desfecho rápido favorável a si (cerca de um ano). A
Rússia sairia completamente desmoralizada por ter sido derrotada por um país territorialmente
tão inferior.
A vitória japonesa se materializou apoiada por inúmeros fatores. Na reta final da
guerra, o Japão pôde contar com a fidelidade dos britânicos ao tratado de amizade de 1902.
Os remanescentes russos que haviam sido massacrados pelos japoneses refugiaram-se em
Porto Arthur, enquanto outra frota, que estava no mar Báltico, partiu para dar apoio a seus
compatriotas. Foi aí que os britânicos desempenharam um papel fundamental a favor dos
japoneses, negando aos navios russos a possibilidade de passagem pelo canal de Suez (BEHR,
id). A cansativa viagem ao redor da África enfraqueceria consideravelmente as forças russas.
Além disso, os franceses negaram-lhes o direito de aquartelar-se na Indochina francesa.
Desenhado o teatro final de operações, o alto comando japonês deveria tratar de
derrotar os russos enquanto esses ainda estavam enfraquecidos. Acompanhando ainda a
análise de Behr (id), nota-se que:
Era vital para o imperador Meiji subjugar a guarnição russa em Porto Arthur antes que os reforços chegassem, e ele ordenou a seu general favorito,
Maresuke Nogi, que capturasse a posição a qualquer custo. Nogi conclamou
seus soldados a estarem prontos a morrer pelo imperador. Não se esperava
que os oficiais sobrevivessem, e qualquer um que abandonasse o campo de
43 O Japão rompe as relações diplomáticas com a Rússia em 5 de Fevereiro, entretanto a declaração oficial de
guerra só foi feita no dia 10 do mesmo mês. Em 8 de Fevereiro, portanto antes da declaração oficial de guerra,
foi perpetrado o ataque surpresa ao Porto Arthur, pegando a marinha russa totalmente desprevenida, provocando resultados devastadores. Vale ressaltar que dois jovens oficiais japoneses ficaram especialmente marcados pela
guerra russo-japonesa: Isoroku Yamamoto e Hideki Tojo. (BEHR, op. cit., p. 36).
79
batalha sem motivo era imediatamente fuzilado. Durante cinco meses, ondas
sucessivas de infantaria japonesa tentaram romper as defesas russas44
.
A guerra russo-japonesa deixou o mundo perplexo. A grande bravura dos soldados
japoneses foi enaltecida pela imprensa internacional. Após a destruição das frotas russas, o
Japão pôde finalmente emergir como uma das maiores potências políticas e militares do
mundo. A possibilidade de um país das dimensões do Japão derrotar a Rússia num
enfrentamento direto45
(no início da guerra essa probabilidade era considerada quase nula)
mostrou aos demais imperialistas que havia realmente uma potência a ser respeitada na Ásia.
Isso não significa dizer que o Japão imediatamente conseguiu concretizar todos os seus
objetivos para com a Ásia. Contudo, vale considerar que essa vitória contra o gigante russo
denotaria prontamente uma maior respeitabilidade em relação aos nipônicos.
Como resultado da guerra, nota-se que os japoneses, através do tratado de Portsmouth,
conseguiram direitos incontestáveis sobre a Coréia, além do acesso novamente à Manchúria.
A influência russa nesse território foi prontamente substituída pela japonesa, o que
possibilitou aos nipônicos se tornarem a principal força estrangeira na região.
Copiando seus predecessores russos, os novos mestres da Manchúria empregaram uma
série de meios para consolidar sua influência na região. Na primeira década do domínio
japonês, uma grande quantidade de agências burocráticas emergiu em território manchu
(HARRIS, op. cit., p. 6). Isso pode ser explicado tendo como base o fato de que os japoneses
necessitavam manter o controle da região a todo custo, e para eles, o estabelecimento de uma
máquina estatal forte viabilizaria a manutenção do domínio na região.
Outra consequência expressiva da vitória japonesa foi a chance de estabelecimento de
um exército fixo em Kwantung46
, na parte Sul da península de Liaodong, com o pretexto de
proteger a nova ferrovia do Sul da Manchúria. O novo empreendimento japonês na região
logo tomaria gigantescas proporções para atuar na indústria e comércio.
44 Durante uma dessas batalhas, o general Nogi assistiu através de seus binóculos à morte de seus dois filhos à
frente das tropas brandindo suas espadas de samurai. Extremamente devotado ao imperador, Nogi anunciou que iria cometer suicídio, e Meiji proibiu afirmando que enquanto ele vivesse Nogi também deveria viver (BEHR,
ibid., p. 37) 45 O Japão realmente possuía uma Marinha de Guerra e um Exército moderníssimos, com treze divisões,
artilharia de primeira linha e mais de 76 navios de guerra. Todavia, nenhum especialista ocidental acreditava que
o pequeno país pudesse enfrentar uma das maiores potência europeias e vencer. Ademais até mesmo no Japão
havia sérias dúvidas quanto à capacidade do país de vencer a guerra. O partido constitucionalista, que tinha
grande influência nas questões políticas era abertamente contrário à guerra, e o próprio imperador Meiji
procurou obter garantias, junto aos americanos, de que esses não permitiriam que os russos invadissem o Japão
provocando mais humilhação além da derrota (BEHR, id.) 46 Apesar de formalmente o Exército só ser estabelecido em 1919, desde o final da guerra russo-japonesa já
foram estabelecidos “guardas da ferrovia” que fariam o papel de policiamento nas regiões próximas à ferrovia. Embora esses guardas fossem civis, o comandante em Kwantung era sempre um oficial do Exército Imperial
(HARRIS, op. cit., p. 6).
80
Estrategicamente, o fim da guerra com a Rússia trouxe ao Japão a chance de alargar
definitivamente sua esfera de influência no Leste asiático, ao mesmo tempo em que minou o
poder russo sobre essa região, bem como sua autoridade e supremacia nas áreas próximas à
sua fronteira. Os japoneses agora estariam perigosamente próximos do Império russo. Os
países nos quais os japoneses estabeleceriam domínios após o conflito começariam a sofrer o
peso do poder japonês em diversos setores (SAKURAI, op. cit., p. 166-167).
A situação interna do Japão no período exatamente posterior à guerra, entretanto, era
bastante delicada. O país mais uma vez saía economicamente arrasado de um conflito que
apesar de ter sido vencido, provocou pesadas baixas no Exército japonês. Behr (op. cit., p. 37-
38) afirma que:
Enquanto os políticos japoneses inflamavam a opinião pública, clamando
que o Japão deveria ter ganhado mais com a guerra, inclusive uma indenização russa, o imperador Meiji sabia que o fim do conflito e o
providencial papel pacificador dos norte-americanos entre Japão e Rússia
haviam chegado no momento exato [...] o Japão estava empobrecido, quase falido pelas dispendiosas campanhas em terra e mar e pela invasão da
Manchúria. [...] o custo, em termos de baixas e déficit financeiro, havia sido
enorme.
A vitória sobre os russos, a despeito de ter mostrado o poderio bélico dos japoneses ao
restante do mundo, indicava um aspecto muito mais alarmante às demais potências: o Japão
mostrava a sua força e ansiava por sua parte do bolo imperialista, mostrando que poderia
brigar, se necessário fosse, para garantir que seus interesses fossem observados pelas outras
potências.
Diante desse cenário, as carreiras militares no Japão passaram a ser intensamente
procuradas, mesmo por jovens de classe média baixa e do meio rural, que viam no Exército e
na Marinha a possibilidade de servir ao imperador e à nação em sua empreitada na Ásia. Esses
jovens, fortemente influenciados pelas últimas campanhas da guerra russo-japonesa,
reforçavam o sentimento de que uma nação pequena poderia derrotar e humilhar uma potência
gigantesca, desde que fosse muito bem organizada, corajosa e inescrupulosa.
Nos próximos anos o Japão assistiria à reestruturação do país, e em 1912 à morte de
Meiji47
, em decorrência de um câncer. O país sentiria profundamente essa perda, já que Meiji
era considerado o principal símbolo da nação japonesa moderna. O novo imperador seria
Taisho, filho de Meiji. Os anos subsequentes dariam ao Japão a oportunidade de fortalecer
47 29 de Julho de 1912. Meiji tinha 59 anos. Logo após o funeral, o general Nogi e sua esposa prepararam-se para
o ritual de suicídio, lembrando-se da frase: “Enquanto eu viver você também viverá”. Agora que o imperador
tinha morrido, não havia mais razão para as suas vidas, e finalmente poderiam cumprir o ritual de suicídio, que foi cumprido em sua casa. Primeiro a condessa Nogi, cortando a garganta, e depois o general Nogi, cometendo o
ritual do seppuku, que consiste em enfiar uma espada pequena afiadíssima no abdome (BEHR, op. cit., p. 47).
81
suas possessões na Ásia e seu status diante dos outros países. Nessa mesma época (1911-
1912) a dinastia manchu foi derrubada e a China entrou num período de grande fragmentação
política. Nesse ínterim, a política da China se mostrou desfavorável aos países com interesses
em seu território. Ademais, sem um governo central claramente estabelecido, as potências não
sabiam ao certo com quem negociar. A confusão da política chinesa durou aproximadamente
quinze anos. (BEASLEY, op. cit., p. 101-et seq.).
Apesar de tudo, as primeiras duas décadas do séc. XX deram ao Japão a possibilidade
de consolidar seus domínios no Leste asiático perante os países europeus e os Estados Unidos.
Além disso, a Primeira Guerra Mundial levou o Japão a estreitar seus laços diplomáticos com
os ocidentais. Após a eclosão da Grande Guerra, o país alinhou-se quase imediatamente com a
Grã-Bretanha48
, em oposição à Alemanha (SAKURAI, op. cit., p. 169).
Em suma, o apoio japonês à Tríplice Entente foi muito bem recebido, principalmente
pelo fato de que o Japão representava um forte baluarte na Ásia. Após o conflito, os japoneses
conseguiriam seu lugar de respeito entre as potências, sendo signatário da Liga das Nações,
fato que representou uma gigantesca vitória diplomática aos nipônicos49
. Ademais, os anos da
Primeira Guerra viabilizaram ao Japão o aumento de sua influência na China. Logo após
declarar guerra contra a Alemanha, o alto comando mobilizou tropas para a China “em nome
dos aliados” visando proteger o país (BEASLEY, op. cit., p. 109-114).
Internamente, o Japão experimentou nos anos da Guerra um grande desenvolvimento
capitalista, almejando atender às demandas do mercado asiático em substituição aos europeus.
A prosperidade dos capitalistas japoneses, entretanto, contrastava com o crescente
endividamento do governo para financiar os gastos militares e a manutenção dos territórios
ocupados.
Segundo Beasley (id)50
, “uma ótima síntese do que pode ser dito para explicar o
imperialismo japonês entre 1915-1918 é a consolidação dos ganhos, feita tendo como base as
21 demandas51
.” O governo japonês sabia que para conseguir estabelecer-se definitivamente
na Manchúria deveria agir cautelosamente. A fragmentação da China, que facilitava de certa
48 A aliança do Japão com a Tríplice Entente deveu-se muito mais ao anseio japonês de levantar oposição aos
alemães (é do Kaiser alemão a expressão perigo amarelo), para tentar tomar posse de suas posições no Oriente e
no Pacífico ocidental, do que por simpatia aos países integrantes da Entente – deve-se lembrar que a Rússia
estava entre eles (SAKURAI,op. cit., p. 169). 49 Mesmo que posteriormente os japoneses tenham reclamado do descaso dos ocidentais em retribuir
devidamente o apoio japonês na Guerra, a entrada na Liga das Nações e a possibilidade de expandir-se na China
representaram grandes vitórias aos japoneses (HARRIS, op. cit., p. 6 et seq.) 50 Tradução livre. 51 As 21 demandas (twenty-one demands) foram uma espécie de memorando escrito pelo ministro do exterior Abe Moritarô para garantir que a política japonesa em relação à China fosse cautelosa o suficiente para evitar
que os chineses se unissem contra os japoneses.
82
forma a penetração japonesa na área, por outro lado dificultava o relacionamento entre os
países. O Japão veria a necessidade da criação de uma esfera de co-prosperidade na Ásia para
garantir seus interesses na China, além de gradativamente diminuir a influência ocidental no
país.
A esfera de co-prosperidade, da forma como era professada pelos japoneses, indicava
a ideia de uma zona de ajuda mútua entre os países do sudeste asiático, ou seja, as nações
dessa região – sobretudo Japão, China e coreia – experimentariam um tipo de relacionamento
no qual haveria um esforço comum no sentido de promover um desenvolvimento
socioeconômico de toda a área. Essa esfera funcionaria, também, para fortalecer a região em
contraposição aos ocidentais que ansiavam por beneficiar-se economicamente desses países.
A esfera de co-prosperidade não significaria, contudo, amizade ou igualdade sob
nenhuma circunstância. Os japoneses acreditavam que a China já havia sido destituída desses
atributos pelos imperialistas ocidentais há muito tempo. O alto governo japonês propunha
uma direção do Japão nos assuntos asiáticos, uma espécie de relacionamento que os
caracterizaria como uma “comunidade de benefício mútuo”. Esses benefícios seriam tanto
políticos quanto econômicos (BEASLEY, ibid., p. 119).
A reação dos imperialistas ocidentais a essa atitude japonesa foi, num primeiro
momento, vista como positiva, principalmente pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha.
Sakurai (op. cit., p. 169) afirma que os japoneses, por sua posição geográfica estratégica,
representariam importantes aliados contra o comunismo russo crescente após a revolução bem
sucedida de 1917.
Nota-se que as potências ocidentais dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França,
contando com o importante apoio do Japão, promoveram uma intervenção militar no extremo
Norte da Manchúria a fim de tomar a Sibéria oriental. A despeito dos esforços ocidentais,
apenas os japoneses conseguiram manter algumas bases militares e ocupar partes da região.
Entretanto, a resistência japonesa apesar de ter durado quatro anos, foi expulsa pelas tropas
bolcheviques (SAKURAI, id.).
A respeito de toda a participação japonesa na Primeira Guerra e na intervenção na
Sibéria, Harris (op. cit., p. 7) oferece uma análise bastante intrigante no que diz respeito ao
pós-guerra, afirmando que “o país [Japão], embora tenha sido um dos vitoriosos da Grande
Guerra, foi humilhado por seus aliados em Versalhes. O Japão considerava que não havia
83
recebido nenhum despojo considerável pelos conflitos com a Alemanha e a Áustria-
Hungria52
.”
A instabilidade política provocada pela desconfiança japonesa em relação aos
ocidentais aumentaria gradativamente ao longo da década de 1920. Conjugados a uma série
de reformas liberais dificultadas pelo Exército, esses foram anos marcados por inúmeros
escândalos financeiros no Japão, além de consideráveis quebras de bancos. O terremoto de
1923 que atingiu Tóquio e provocou uma imensa devastação foi praticamente obscurecido
pelo governo japonês que temia que a divulgação da catástrofe demonstrasse fraqueza do país,
possibilitando uma intervenção dos ocidentais para ajudar o Japão (BEHR, op. cit., p. 79-80).
Nota-se que a todo momento, o esforço do alto escalão governamental japonês era de
não demonstrar nenhum tipo de fraqueza do país e, em contrapartida realçar a ideia de que o
governo japonês sempre tinha tudo sob controle. Mas a verdade era que o país vinha
atravessando maus momentos devido à destruição provocada pelo terremoto. Em termos
gerais, os anos da década de 1920 representaram um período bastante conturbado na
atmosfera interna do Japão, marcado por inúmeras transformações nos campos político e
militar que seriam sentidas profundamente nos anos posteriores.
Logo no início da década, a relação do Japão com os Estados Unidos, principalmente,
foi marcada sobretudo por uma grande instabilidade política. Os dois países despontavam
como grandes potências tanto militar como economicamente, e a reação dos americanos, a
despeito do apoio aos nipônicos nas décadas anteriores, foi de proibir definitivamente, em
1924, a imigração de japoneses para os Estados Unidos. Essa postura mesclava argumentos de
ordem racial, concorrência econômica e retaliação à agressiva política de expansão japonesa
(SAKURAI, op. cit., p. 175).
Nas forças armadas japonesas, uma nova mentalidade se faria presente e afetaria
profundamente o oficialato. À medida que as lembranças da Guerra russo-japonesa se
atenuavam, os oficiais de carreira de ambos, Marinha e Exército, se tornavam extremamente
determinados a reafirmar a importância da força das armas (BEHR, op. cit., p. 73).
Corroborando essa afirmação, Harris (op. cit., p. 7-8) defende que em face aos
acontecimentos destrutivos na política e na economia japonesas, os jovens membros da
oficialidade militar começaram a perder a confiança nas instituições básicas da sociedade
japonesa, exceto no imperador e na religião xintoísta. Muitos desses jovens oficiais
argumentavam que o modelo capitalista liberal dos ocidentais não era capaz de suprir as
52 Tradução livre.
84
necessidades da complexa sociedade japonesa. Em sua maioria provenientes das classes rurais,
esses novos membros do oficialato se tornavam cada vez mais frustrados diante da situação de
grande pobreza e desigualdade social na qual o Japão se encontrava.
Em 1926, Hiroíto53
(filho do Imperador Taisho) finalmente ascendia ao poder como
novo Imperador do Japão. O novo governante logo de início teve que lidar com a delicada
situação da política interna do país, que já nesse momento era marcada por uma série de
assassinatos políticos cometidos por grupos de extrema direita, que defendiam, em sua
maioria, as vias do nacionalismo autoritário como único modo de recuperar a glória da nação
japonesa. Nota-se que nesse período, emergiram no Japão três grandes correntes ideológicas
propondo a maneira através da qual o país deveria atuar para garantir o êxito da sua
empreitada imperialista na Ásia54
.
É interessante notar que esses grupos extremistas, formados via de regra por membros
do Exército, não apresentavam nenhum tipo de questionamento em relação à legitimidade do
poder do Imperador. Muito pelo contrário. Partiam da premissa de que a origem divina do
Imperador legitimava seu governo sobre todos os povos da Terra. Esses grupos, em sua
maioria, apoiavam uma ditadura estabelecendo poderes irrestritos ao Imperador. Além do
mais, os assassinatos eram cometidos contra figuras proeminentes que demonstravam
comportamento permissivo de qualquer tipo e que desonravam a nação japonesa (BEHR, op.
cit. , p. 71 et seq.).
Todo esse pano de fundo aliado à quebra da bolsa de Nova York em 1929, forneceram
à década de 1930 o estopim para a eclosão e consolidação definitiva dos movimentos
ultranacionalistas na Europa. A crise econômica proporcionou uma nova dinâmica ao
imperialismo japonês na China. Minando parte da estrutura econômica adotada até então, os
acontecimentos influenciaram para que o Japão se voltasse mais intensamente para os planos
baseados na idealizada esfera de co-prosperidade sino-japonesa, mas dessa vez visando
audaciosamente toda a Ásia (BEASLEY, op. cit., p. 175-176).
Os conservadores mais radicais, como afirma Sakurai (op. cit., p. 173), “defendiam um
retorno aos moldes da ética de obediência samurai sem abrir qualquer espaço para as
organizações dos trabalhadores como os sindicatos, e para manifestações populares como
53 Desde 1921, Hiroíto já governava o país como príncipe regente devido a uma série de complicações de saúde
de seu pai, o Imperador Taisho. O período de regência ensinou ao jovem príncipe a maneira através da qual ele
deveria conduzir a política externa do Japão para que o país se consolidasse como força definitiva na Ásia
(BEHR, op. cit., p. 79). 54 Essas correntes de ideias conseguiram inúmeros adeptos. Caracterizavam-se basicamente como Ofensiva
Norte, Ofensiva Sul e o Grande Projeto. Para detalhamentos, ver Behr (op. cit., p. 76 et seq.).
85
greves e revoltas no campo.” O enfraquecimento político provocado pela divergência de
opiniões e a intromissão dos valores ocidentais no Japão eram as principais causas do anseio
dos grupos de extrema direita em evitar, a qualquer custo, a liberalidade política que levaria o
país a enfraquecer-se.
Na China, o cenário político nesse momento crucial se mostrava desfavorável aos
japoneses. Entretanto, o estabelecimento de tropas oficiais em Kwantung nos anos anteriores,
bem como dos guardas da Ferrovia, proporcionou aos japoneses os meios para uma
intervenção militar. Mas ainda seria necessária uma boa prerrogativa diante dos outros países
para justificar as ações.
Sobre esse pano de fundo, as tropas na Manchúria começariam a fortalecer-se cada vez
mais. Após o assassinato de um espião japonês, pego pelos chineses no Leste da Mongólia em
Junho de 1931, o sentimento antichineses no Exército Kwantung se intensificaria. Tirando
proveito de descontentamentos entre os imigrantes coreanos e os fazendeiros chineses, o
comando japonês mobilizou tropas à fronteira da Coréia com a Manchúria. Todo o teatro já
estava armado, tudo que os japoneses necessitavam agora era o pretexto para uma invasão da
região. A pretensão dos nipônicos em conseguir definitivamente o controle dessa área era
realmente muito forte. Segundo Beasley (op. cit., p. 190), era muito frequente a argumentação
de que a Manchúria se tornaria a base da economia para os japoneses, isso provocou a
remoção desses assuntos de um status de “interesses especiais” para o de “sobrevivência
nacional”.
Os membros do governo mais diretamente ligados a esses assuntos que defendiam a
posição de que, uma vez consolidada a ocupação da Manchúria, a região rapidamente ficaria
sob a administração militar japonesa, o que direcionaria o desenvolvimento da economia da
área no sentido de complementar a economia do Japão (BEASLEY, ibid., p. 194).
A prerrogativa para as ações japonesas seria conseguida de uma maneira bastante
curiosa. Behr (op. cit., p. 132-133) oferece uma interessante análise acerca do desencadear
desse processo:
Um oficial do Exército japonês depositou uma pequena quantidade de
dinamite ao longo da linha Norte de Mukden, na ferrovia do Sul da Manchúria, planejada para explodir com o máximo de barulho e o mínimo
de danos. A explosão aconteceu por volta das 10:20 hs da noite [...] Contudo,
a explosão foi ouvida por uma patrulha chinesa que foi investigar imediatamente e se viu sob artilharia japonesa.
86
Essa série de acontecimentos, que posteriormente ficou conhecida como Incidente
Mukden55
, foi o pretexto utilizado pelos japoneses para a invasão da China. Eles afirmavam
que essa explosão representava um ato de agressão, por parte das tropas chinesas, que havia
destruído parte dos trilhos da ferrovia. Nada mais faltava. Os japoneses tinham um bom
motivo para sua intervenção militar.
No entanto, as tropas de Kwantung ainda não estavam fortes o suficiente para uma
confrontação direta. Sendo assim, a surpresa se fazia necessária. A situação, como foi
interpretada, demandava uma ocupação noturna de pontos chave no Sul, sendo seguida pela
extensão das operações a outras partes da Manchúria. A solução para os problemas no
estabelecimento da autoridade japonesa na região deveria evitar fundamentalmente os
distritos mais ao Norte, em decorrência do risco de provocar uma intervenção russa na área.
Os japoneses declaravam que as operações visavam única e exclusivamente o
restabelecimento da lei e da ordem, e que pretendiam respeitar a integridade chinesa.
A pressão exercida pelos japoneses na Manchúria, entretanto, contribuiu diretamente
para a declaração, em 1932, do Estado Independente Manchukuo. Para a exultação do
Governo japonês, o novo estado teria como governante Henry Pu Yi56
, que na verdade
serviria como um Imperador fantoche para atender aos anseios japoneses na região. Os
japoneses estabeleceram um conselheiro japonês para cada oficial chinês, e nenhuma decisão
importante era tomada sem que antes os oficiais observassem a opinião de seus conselheiros
(Harris, op. cit, p. 8-9).
As ambições do Japão tornavam-se categoricamente incômodas aos demais
imperialistas. Aproveitando a denúncia chinesa das ações japonesas que violavam seu
território, a Liga das nações promoveu uma verificação através de uma comissão e julgou que
os japoneses tinham infringido normas internacionais. Tanto que, em 1933, os japoneses
perdem seu lugar na Liga devido aos contínuos incidentes com a China.
O relacionamento entre os países se tornaria cada vez mais hostil. Behr (op. cit., p. 218
et seq.) enfatiza a ideia de que nesse momento de fundamental importância da história
japonesa, o país começaria a se alinhar com os métodos políticos da Alemanha Nazista.
A expansão japonesa, contudo, não deveria ser confundida com o imperialismo
ocidental. Este era representado como tirânico e opressor, enquanto aquela necessitaria ser
55 18 de Setembro de 1931. 56 Pu Yi (Henry Pu Yi como gostava de ser chamado) era o último descendente da dinastia manchu. Em 1934
ascendeu ao trono do Estado Independente Manchukuo como um imperador fantoche estabelecido pelos japoneses. Um fato interessante a ser destacado é que depois de muito pensar, utilizando uma inexplicável ironia,
Pu Yi resolveu nomear seu reino como K´ang-te, que significa prosperidade e virtude.
87
vista como libertadora do povo asiático a partir da liderança japonesa. A progressão do
Exército nipônico na China, porém, encontraria oposição. Em 1936, Chiang-Kai Chek57
iniciou uma resistência juntamente aos comunistas.
A percepção, de ambos os lados, da fragilidade da área da Manchúria possibilitou que
eclodissem hostilidades entre os países em 1937, culminando na invasão aberta da China pelo
Japão. Os chineses resistiram. Entretanto, o alto comando militar japonês persuadiu os
governantes de que essa seria mais uma vitória rápida e importante. Não demoraria, contudo,
para que se tornasse uma grande campanha, culminando em incontáveis massacres
perpetrados pelos japoneses e mesmo no deplorável evento que ficou conhecido como o
estupro de Nanquim.
57 As contínuas investidas japonesas contra a China, especialmente na década de 1920, provocaram o fortalecimento do movimento nacionalista no país, que já era uma república desde 1912, representado pelo
Partido Nacionalista (Kuomintang) liderado por Chiang-Kai Chek.
88
CAPÍTULO 3. O “estupro” de Nanquim
A declaração aberta de guerra do Japão à China em 1937 lançaria os dois países num
conflito de gigantescas proporções que os marcaria profundamente, sobretudo no que diz
respeito ao povo chinês. A caminhada e o desenrolar dos fatos que levaram à conflagração58
,
ao serem analisados, oferecem uma idéia mais clara do engajamento dos beligerantes na
campanha.
Quando se observa a paixão e a devoção com que os japoneses encaravam os seus
objetivos, é possível vislumbrar a amplitude a que os seus atos poderiam chegar, quando o
assunto fosse atingir esses objetivos. A complexificação das relações entre os japoneses e os
vizinhos continentais (China e Coreia, principalmente) provocou intensa instabilidade política
na região, causando, como apontado anteriormente no trabalho, conflito aberto entre os
países.
O Japão, por ter sido por tantas vezes privado pelos ocidentais de seus interesses na
Ásia, passa a agir cada vez mais agressivamente em relação à China. Os próprios chineses,
que vinham refreando a expansão japonesa, visando a manutenção de sua soberania territorial
e mesmo seus próprios interesses, provocam gradativamente o ódio dos nipônicos que, aliado
aos anseios imperialistas crescentes no país, desencadearam incontáveis massacres e episódios
brutais protagonizados pelo Exército japonês.
A trajetória dos japoneses no território chinês, sob uma perspectiva militar, desenhou
um cenário de incrível devastação, tanto material quanto humana. A caminho de Nanquim, o
Exército Imperial foi responsável pela destruição de inúmeras cidades – entre elas cita-se
principalmente Xangai. Contudo, o tratamento adotado pelos japoneses em relação aos
cidadãos de Nanquim especialmente, sugere que a despeito de qualquer anseio de ganho
econômico, os soldados japoneses propunham-se a punir os chineses pelas dispendiosas
campanhas empreendidas contra esses no Leste asiático e pela tentativa de travamento da
expansão imperialista japonesa.
Nesse ponto é necessário salientar, contudo, que a progressão militar dos japoneses em
território chinês não pode ser compreendida simplesmente tomando por base o ódio aos
chineses construído no Japão. Empreender esse tipo de análise simplória a um evento dessa
58 Esses pontos foram discutidos no capítulo 2.
89
magnitude significaria desconsiderar todos os mecanismos simbólicos e materiais que
também constituem partes essenciais dos eventos relativos ao massacre na cidade chinesa.
O que salta aos olhos no exame dos fatos, porém, é a crueldade e a frieza com que os
soldados japoneses encaravam não só os soldados inimigos, mas também a população civil
em geral. E isso inclui mulheres, idosos e até crianças da mais tenra idade. Ser chinês e estar
em Nanquim durante a ocupação do Exército japonês na cidade, sobretudo no período
chamado seis semanas de terror, significava estar sujeito a uma infinidade de atrocidades e a
uma intensa violência física e psicológica.
As mortes em Nanquim, segundo Chang (1997, p. 5-6) excedem o número de civis
mortos de alguns países europeus durante todo o período da Guerra e, extraordinariamente,
nem mesmo os piores ataques aéreos da Guerra fizeram mais mortos do que o massacre na
cidade chinesa. Nota-se, segundo a autora, que mesmo os ataques a Dresden no final da
Segunda Guerra não foram capazes de provocar tantas baixas civis e com um requinte de
crueldade tão grande quanto os acontecimentos de Nanquim.
A fim de oferecer um prelúdio à análise dos atos dos combatentes japoneses de um
modo geral, bem como de seus oficiais, vale a pena propor uma reflexão acerca do paradoxo
provocado, já no fim da Guerra, quando do episódio das bombas de Hiroshima e Nagasaki,
episódios que geraram grande comoção internacional devido às suas proporções e a extensão
da destruição causada nas cidades, tanto em termos materiais quanto em relação às perdas de
vidas humanas.
As mortes provocadas nessas cidades foram também cometidas sem qualquer chance
de defesa para os cidadãos. A falta de escrúpulos por parte do alto comando norte-americano
foi muito salientada na época e o mundo assistiu atônito aos horrores provocados por
explosões atômicas. É fato que os japoneses haviam cometido ações semelhantes – guardadas
as devidas proporções – no episódio de Pearl Harbor, entretanto, uma ação tão devastadora
quanto um ataque nuclear não pode ser justificado por premissas militares ou até políticas tão
frágeis como as professadas pelos americanos.
Cabe salientar, porém, que os americanos pelo menos possuíam meios para justificar
suas ações (mesmo que fossem justificativas não muito convincentes). Os japoneses, em
relação aos episódios na China, não apresentavam nenhuma prerrogativa que justificasse seus
atos, o que torna o massacre de Nanquim extremamente paradigmático no sentido de mostrar
como o militarismo excessivo e a adoção de ideologias que desmerecem o outro podem ser
perigosos.
90
Behr (op. cit., p. 207) afirma que os assuntos referentes a Nanquim receberiam, nos
círculos militares japoneses, uma nomenclatura de “Guerra de Punição”. Esse termo, nas
palavras do autor, possui “uma conotação muito mais violenta em japonês do que traduzido, e
tornava absurda a política declarada de amizade e cooperação [...]”. Sendo assim, torna-se
menos obscura a compreensão dos atos japoneses em Nanquim através da consideração
dessas premissas, e mesmo que ainda assim seja extremamente complicado entender quais
prerrogativas podem levar à materialização de casos como esse, nota-se que os nipônicos não
agiam simplesmente a esmo, ao contrário do que uma primeira análise pode sugerir.
Esse é um ponto que necessita de uma análise bastante cuidadosa, já que indica, de
fato, uma postura oficialmente violenta dos nipônicos em relação ao povo chinês. Quando os
japoneses se lançam no sentido de imputar uma punição nos chineses, simbolicamente isso
significa que eles se colocavam numa posição elevada e que tinham, de fato, direito de
corrigir a conduta dos vizinhos continentais. Ou seja, se o povo chinês não vinha agindo
conforme a cartilha dos japoneses, esses teriam o direito de castigar-lhes exemplarmente para
que não voltassem a cometer tais erros.
Ademais, a própria composição política interna do Japão como sendo constituinte de
uma raça elevada e herdeira dos deuses, provocaria gradativamente na população a ideia de
que o país deveria agir como um grande pai para as nações orientais vizinhas, e, nesse caso,
um pai que corrigia os filhos com punho de ferro. Sob esse prisma fica mais fácil entender a
naturalidade com que os japoneses encaravam tudo o que vinha acontecendo em território
chinês. Tudo aquilo, segundo a mentalidade japonesa, se justificava pela lógica de que
aqueles que agem vergonhosamente devem ser castigados.
A crise na Manchúria, que vinha se desenrolando desde o início da década de 1930,
conjugada ao decréscimo da produção rural desaguaram em uma atmosfera de crise e
incertezas no Japão, diante da qual se fortaleceu uma série de ideias de extrema direita
(DUUS, 1976, p. 209). Já no início de 1932, surgem várias associações de cunho patriótico,
partidos de extrema direita e até séquitos religiosos chauvinistas com o intuito de fortalecer o
sistema nacional.
O número de membros desses grupos cresceu assustadoramente entre 1932 e 1936,
fazendo com que se tornassem realmente expressivos. Eles eram, geralmente, guiados por
ideias nacionalistas de extrema direita e liderados por homens que tinham sido tão bem
educados a ponto de terem absorvido o culto oficial de lealdade ao trono, mas, ao mesmo
tempo, não tão instruídos para que pudessem chegar a questionar suas bases místicas.
91
Prejudicados por todos os lados por dificuldades econômicas e ressentidos de sua situação,
eles contrastaram seu próprio apego a virtudes tradicionais, diante da evidência do fracasso
moral e da possibilidade de corrupção política no alto escalão governamental.
O fortalecimento e a aceitação, pelo menos parcial, de tais grupos proporcionou o
questionamento ao papel exercido por alguns membros do governo imperial59
. Os
nacionalistas mais extremistas consideravam que vários assuntos da política externa do Japão,
particularmente os referentes à China, estavam sendo levados com muita frouxidão pelo
governo nacional, e, por isso, passaram a considerar que esses políticos não eram dignos de
ocupar tais cargos.
Os acontecimentos na Manchúria deram fim a um período em que os partidos ditavam
as regras e inauguraram uma era na qual a violência era a tônica do sistema político, ao ponto
de, segundo Duus (ibid, p. 210), um jornalista estrangeiro se referir à política japonesa do
período como “governo por assassinato”. Na verdade, o autor prossegue argumentando que:
o terrorismo fez sua primeira aparição em novembro de 1930, quando um jovem fanático de direita baleou e matou o premier Hamaguchi em protesto
pelo Tratado Naval Britânico. A situação se tornou ainda mais tensa com a
trama dos oficiais conta o alto gabinete em março de 1931 e outro evento similar em outubro do mesmo ano. Essas duas ações abortadas estimularam
outras atividades mais ousadas e violentas por parte de oficiais subalternos
que se consideravam samurais dos últimos dias e herdeiros das tradições legalistas dos anos 1850 e 1860. Convencidos de que o Japão estava sendo
mais uma vez ameaçado por perigos externos e problemas internos, eles
procuraram trazer a “restauração Showa”60
para salvar a nação de tais
apuros61
(id).
Os movimentos radicais de cunho nacionalista que se observam nesse período
buscavam eliminar todo e qualquer tipo de fraqueza que pudesse existir no interior do
governo. Sendo assim, na sua compreensão, seria necessário que cada vez menos políticos
civis fizessem parte do alto escalão governamental. Inicia-se, então, uma campanha de terror e
assassinatos destinada a aniquilar a predominância de tais políticos no governo.
Esse é um ponto de suma importância na análise sociopolítica do Japão na década de
1930. O terrorismo mencionado pelo autor e que era praticado contra alguns membros mais
moderados – ou mesmo pró-estrangeiros – do governo contribuiu para que cada vez mais os
militares fossem ocupando posições de destaque e importância no governo japonês. Dessa
59 É interessante destacar que em nenhum momento a autoridade e divindade do imperador são colocadas em
dúvida. 60 A era Showa é um termo comumente utilizado para caracterizar o período de governo do imperador Hiroíto,
que durou de 1926 a 1989. Essa nomenclatura indica a ideia de “período iluminado de harmonia e paz”. É
interessante observar que os grupos de extrema direita ansiavam por restabelecer o que compreendiam como sendo a soberania e harmonia interna do Japão. 61 Tradução livre.
92
forma, seria muito mais fácil que se colocassem em prática todos os objetivos da extrema
direita nipônica, nesse caso representada pelos militares.
Importante destacar que dentro do próprio alto escalão do governo, as ações radicais
teriam simpatizantes, mas, evidentemente, essa não era a postura da maioria. Na verdade
havia uma pequena minoria, representada principalmente pelo ministro da guerra Araki
Sadao, que via com bons olhos as ações praticadas e consideravam que, como o próprio
ministro declarou publicamente, “não são ações em busca de fama ou ganho pessoal [...] elas
foram praticadas pela crença sincera de que contribuem para o benefício do Japão Imperial”
(apud DUUS, ibid, p. 211).
Com mais prestígio e uma maior participação política, os militares começam então, já
no início da década, a implementar as medidas que assegurariam a absorção do projeto
nacional pelos mais jovens. Dito isso, observa-se que é nítida a importância do sistema
educacional e das escolas militares, bem como do próprio incentivo para que os mais jovens
ingressassem na vida militar.
A grande questão desse período é o ganho de prestígio e poder por parte do exército, o
que fez com que boa parte das ações sociais oficiais do governo girasse em torno dos
objetivos militares. O resgate do código de honra samurai62
elevou sobremaneira a ideia da
dicotomia entre glória e vergonha, contribuindo, dessa forma, até mesmo para o tipo de
postura que seria adotada em relação à população civil de maneira geral e, principalmente, nas
escolas e no exército.
Essa mentalidade, aplicada na prática em relação aos outros países do sudeste asiático,
traria uma atmosfera de naturalização das ações violentas em nome da honra, ou como
punição por algum tipo de vergonha. Sendo assim, na medida em que os chineses passaram a
ser vistos como os maiores representantes da desonra asiática, cabia aos nipônicos imputar-
lhes o devido castigo.
A noção de que o que se desenrolava em solo chinês nada mais era do que a merecida
punição da população gerava como dito, uma naturalização de tudo o que era praticado pelos
soldados. Na verdade, ocorre uma grande racionalização da máquina de guerra japonesa em
Nanquim (e em toda China), só que diferentemente dos nazistas em relação aos judeus, por
62 Bushido, “o caminho do guerreiro”. Era o estilo de vida dos samurais. A lealdade dos samurais ao imperador e
ao seu senhor (ou damio) era sem igual. Eles eram realmente homens leais e honestos. Viviam vidas simples sem
interesse em riquezas e coisas materiais. Os samurais não temiam a morte sob nenhuma circunstância, e
poderiam entrar em qualquer batalha, independente da probabilidade de vitória, e, além disso, morrer em batalha trazia honra para a família e o senhor de tal guerreiro. Essa era a mentalidade que os oficiais japoneses
desejavam resgatar e inculcar nos jovens soldados.
93
exemplo, não havia um esforço voltado diretamente para dizimar a população da China, mas
sim mostrar quem realmente mandava e deixar os chineses no seu devido lugar de submissão.
Em outras palavras, existe um fator simbólico aqui que vai muito além de aniquilar o
inimigo fisicamente. Na mentalidade japonesa era necessário liquidar totalmente os
adversários, e isso inclui derrotá-los fisicamente de forma brutal e irrecuperável, mas, além
disso, principalmente, destruir a sua alma. Isso significa que uma simples vitória sobre os
chineses não bastaria e não saciaria os anseios japoneses, era necessário trucidá-los, humilhá-
los, a um ponto em que não houvesse nenhuma possibilidade de reação.
Em relação a Nanquim, os japoneses acreditavam que, para os chineses, as notícias do
saque à cidade traria aos chineses o temor do poder divino do Japão e levaria a população, de
forma geral, a aceitar a ocupação japonesa como sendo uma alternativa menos terrível do que
se acontecessem outros episódios iguais a esse. É de se supor, então, que a violência e a
brutalidade perpetradas contra a população da cidade chinesa atingissem níveis astronômicos.
A ideia mais aceita nos altos círculos militares nipônicos era que isso também abalaria
a força do governo chinês – representado pela figura de Chiang Kai-Chek – e, certamente,
começariam a questionar sua liderança depois de uma derrota tão terrível. Mas o tiro sairia
pela culatra, como a história dos anos seguintes ao massacre mostraria. Nas palavras de Behr,
“esses argumentos brutais estavam errados: os chineses intensificaram sua resistência contra
os japoneses e Chiang Kai-Chek, embora tenha fugido inicialmente para Hankow, e depois
para Chungking, não caiu” (BEHR, op. cit., p. 206).
A despeito do que aconteceria depois do saque a Naquim, a política enérgica dos
japoneses em relação à China chama a atenção justamente pelo aspecto selvagem e punitivo
com que foi empreendida. Muito embora as ações tenham sido cometidas partindo-se da
crença de que contribuiriam para tornar mais fácil a dominação japonesa da China, os
soldados e oficiais japoneses eram implacáveis e impiedosos no sentido de destruir
completamente o moral dos chineses.
Isso é a guerra de punição no universo japonês. O modo de vida honrado dos
samurais, que vinha sendo resgatado pelos japoneses, contrastava drasticamente com a apatia
e a desonra que eram relacionados com o estilo de vida na China e a sua inabilidade em
preservar o espírito – ou seja, a essência – da cultura oriental frente aos bárbaros ocidentais.
Os chineses, por conta disso, eram vistos pelos nipônicos como portadores da vergonha e da
desgraça do sudeste asiático.
94
Para que se tenha uma ideia mais clara das implicações da utilização do termo guerra
de punição aos assuntos referentes a Nanquim, vale a pena observar a própria construção da
expressão em japonês: Batsu no sensô63
. Ela indica muito mais do que o que nos sugere o
português, e vai além de uma simples correção ou mesmo de um castigo brando. Essa
expressão possui uma conotação bastante agressiva em relação àquele que é o alvo da
punição, o que se torna compreensível levando-se em conta o rigor e a disciplina social no
Japão.
Dessa forma, seria impossível imaginar os japoneses empreendendo tal tipo de castigo
de uma forma menos dramática do que como aconteceu. No universo japonês, se os castigos
imputados aos filhos, alunos, ou mesmo cidadãos que se desviavam dos padrões
tradicionalmente aceitos já eram duríssimos, a leitura que se fazia dos chineses, por sua vez,
num contexto no qual eram vistos como desonrados e portadores de grande vergonha, era de
que eles eram notadamente merecedores das punições e do castigo exemplar.
Uma questão que chama atenção em relação à utilização desse termo, porém, é que ele
só era utilizado no gabinete do governo e nos círculos militares, mas jamais seria utilizado
pela imprensa japonesa. É interessante notar que os japoneses professavam abertamente um
grande altruísmo em relação à esfera de coprosperidade asiática, mas, na verdade, agiam
conforme as suas próprias convicções daquilo que seria o melhor para a região e,
principalmente, para o próprio Japão.
Observando-se todo esse cenário, torna-se incoerente qualquer argumento do Japão em
favor de uma fraternidade entre os povos asiáticos, já que o que os nipônicos queriam, de fato,
era garantir seus próprios interesses e estabelecer uma zona de domínio no sudeste asiático.
Evidentemente o poder militar dos japoneses garantiria dominação política e,
consequentemente, maior poder econômico.
É importante notar que essas concepções políticas passaram a fazer parte da cultura
japonesa quando da criação do Estado japonês moderno pós-1868. Sendo assim, essas ideias
ganham corpo e são absorvidas pela população, que, como apontado anteriormente no
trabalho, passa a considerar a expansão imperialista do país como sendo uma parte
fundamental do processo de afirmação nacional frente aos imperialistas ocidentais.
Cabe salientar ainda que a educação dada aos jovens japoneses durante anos a fio teria
agora o terreno chinês para se manifestar. A visão desses jovens de que eram muito superiores
63 Neste caso, a expressão significa literalmente “Guerra de punição”.
95
aos chineses alimentaria ainda mais o grau de crueldade empregado pelos soldados, afinal de
contas, os chineses representavam uma raça inferior64
.
As escolas japonesas operavam como pequenas unidades militares e, nesse sentido, o
enraizamento do militarismo nos estudantes era muito forte. Muito comuns também eram os
castigos físicos perpetrados pelos próprios professores a fim de garantir o cumprimento e
absorção da disciplina rígida. Essa rigidez se intensificava ainda mais quando alguns desses
estudantes resolviam tornar-se soldados. Os castigos físicos aumentavam sobremaneira, e
nesse sentido, é interessante a fala dos oficiais professores de que batiam nos jovens não
porque os odiavam, mas porque realmente se importavam com eles (Chang, op. cit., p. 30-32).
Peter Duus oferece uma análise interessante em relação à sociedade japonesa desse período:
As ideias tradicionais de harmonia social, dever e autosacrifício, de lealdade
ao imperador e obediência aos pais, e o caráter especial da kokutai65
japonesa eram incessantemente embutidos na mente da maioria dos
japoneses. Originalmente propagados pelo governo a fim de reforçar a
determinação popular em um tempo em que o Japão vinha protegendo a sua frágil nova soberania nacional, essas ideias eram facilmente desviadas para
mobilizar apoio popular a políticas de expansão externa e reorganização
política interna (DUUS, op. cit., p. 207)66
.
Vale notar que o governo japonês foi realmente muito hábil em resgatar valores do
final do séc. XIX e empregá-los em prol da sua nova política externa em relação ao sudeste
asiático. Essas ideias, repetidas à exaustão no Exército Imperial, pareciam, de fato, bastante
pertinentes e aplicáveis às estratégias militares e políticas dos nipônicos para garantir que seus
interesses fossem observados e que, acima de tudo, tivessem apoio popular em tudo.
Esse apoio se fazia necessário já que havia, de fato, no Japão, um esforço oficial para
que o país, de um modo geral, encarasse a expansão imperialista como sendo fundamental
para a própria sobrevivência do país. Os que haviam nascido no início do séc. XX
experimentaram claramente o empenho governamental em difundir uma mentalidade
militarista e imperialista no Japão.
Toda escola japonesa, desde o final do século XIX passara realmente a funcionar
como um quartel, e, agora, com o intenso militarismo da década de 1930, isso havia se
intensificado. Os próprios professores eram treinados como soldados e também passavam por
uma disciplina pesadíssima e um forte doutrinamento. As escolas claramente deixaram de
funcionar em benefício dos alunos e passaram a trabalhar em função do bem maior da nação.
As entradas de novos textos de ética – shûshin, em novembro de 1936 – e de um volume
64 Ver capítulo 2. 65 Tradicionalmente, esse termo refere-se à política nacional japonesa. 66 Tradução livre.
96
chamado de Princípios Básicos da Essência Nacional – kokutai no hongi, em maio de 1937 -
agiram no sentido de realçar ainda mais a distinção cultural do povo japonês na mentalidade
dos jovens estudantes67
.
Em 1936, o professor M. S. Bates, da Universidade de Nanquim, fez uma visita ao
Japão e pôde observar mais de perto a atmosfera política do país. Ele redigiu um documento
de 13 páginas no qual descreve as suas conclusões acerca dos rumos que o país vinha
trilhando em relação à sua organização interna e ao tratamento dado aos estrangeiros. As
informações foram conseguidas através de uma série de entrevistas não oficiais a japoneses,
estrangeiros que viviam no Japão, diplomatas, professores universitários, missionários
cristãos, educadores e estudantes.
É importante destacar o cuidado de Bates em preservar em sigilo os nomes e
endereços de algumas pessoas envolvidas na sua viagem. Ele chega ao ponto de colocar na
primeira folha do relatório a frase “Favor destruir esta folha depois de tomar as devidas
precauções e notas que se possa desejar”68
. Nessa folha (que provavelmente foi redigida por
outrem, já que se refere a Bates na terceira pessoa), são relatadas as condições da sua viagem,
das entrevistas e, por fim, os nomes e endereços de alguns colaboradores – que deveriam ser
mantidos em sigilo.
Em relação à viagem e a permanência do professor em algumas cidades (Tóquio e
Nagasaki, por exemplo), bem como a obtenção de alguns relatos das dificuldades encontradas
ao se trabalhar com qualquer tipo de cultura estrangeira no Japão nesse período, deve-se
destacar o papel desempenhado por grupos de missionários cristãos, sobretudo presbiterianos,
no sentido de colaborar com tal suporte ao professor Bates.
De fato, em observância ao cenário de nacional-militarismo excessivo que se observa
no Japão, a introdução de aspectos de cultura estrangeira, como língua e religião, não seria
tolerada. Na verdade, observa-se, inclusive, assédio moral e violência sendo empregados nas
escolas cristãs do Japão. Vale a pena, nesse sentido, observar um trecho do próprio relatório
de Bates:
67 Isso depois se tornaria ainda mais evidente, quando, em 1938, o ministro da educação japonês instituiu um
panfleto intitulado Mobilização Espiritual Nacional e Educação Escolar (HAVENS, 1974, p. 25). Esse panfleto
dava aos professores as diretrizes de como trabalhar a crise com a China nas diversas áreas do saber. Depois
disso, foi resgatado o documento de educação imperial, de 1890, para os estudantes e professores, e em todas
as escolas, passou a ficar num lugar de destaque, ao lado do retrato do imperador. Ele era lido todos os dias
pela manhã, e era encarado como uma coisa tão séria, que se chegou a recomendar a mais de um professor
que acidentalmente engasgou ou gaguejou durante a leitura, que cometessem suicídio por ter cometido
tamanho insulto ao documento sagrado. 68 RG 10: Box 90 Folder 718: C. NMP0104.
97
Há grande pressão dos nacionalistas extremistas sobre as mentes e vidas de
todas as pessoas. Isso só pode ser entendido através de casos concretos, a sua
maioria fornecidos por fontes cristãs. Missionários de várias partes do Japão reportaram que tanto os antigos quanto os novos convertidos são
pressionados a quebrarem a sua conexão com uma religião internacional e
não-japonesa. Essa pressão é particularmente forte nas escolas, e é
geralmente expressa através de oficiais locais combinados com líderes budistas ou xintoístas que enfatizam o caráter nacional de suas religiões [...]
em certa universidade cristã, vários alunos foram presos e alguns mantidos
por semanas e até meses, e pelo menos um deles foi continuamente torturado e mantido pendurado pelos punhos. Não foram feitas acusações reais contra
os alunos, mas eles foram pressionados a declarar que eram comunistas ou
que tinham recebido instrução comunista na universidade. Nitidamente o
propósito da polícia era incriminar um grupo de professores interessado em melhorias sociais, por motivos religiosos. Em Tóquio, um cristão japonês
está na prisão porque respondeu à pergunta de uma criança na escola
dominical dizendo que Jesus é maior que o imperador. Em Osaka, um cristão leigo foi preso porque ao pregar na rua, ele declarou que a presente família
imperial não é diretamente descendente da deusa do Sol.69
A pressão interna no Japão contra a influência de qualquer tipo de cultura estrangeira
era muito forte. Quando o assunto era a religião, então, as coisas ficavam muito piores, já que
a própria religião xintoísta representava a base da constituição social do país. A nação, de
fato, havia sido constituída sobre as bases da mitologia religiosa, que indicava uma relação
direta entre os japoneses e os deuses.
A intromissão de uma cultura religiosa que colocasse em xeque a veracidade e a
validade da natureza divina do imperador e, por conseguinte, de todo o sistema social
estabelecido, contrariaria totalmente os objetivos estabelecidos pelo governo japonês para
uma nação forte e poderosa. O sistema educacional, principalmente, não poderia sofrer
nenhum tipo de interferência externa.
O simples fato de existirem escolas de orientação cristã no Japão nesse período já
incomodava sobremaneira os membros mais radicais do governo. A cultura estrangeira, que
durante os primeiros anos do século XX vinha obtendo ampla aceitação no Japão devido aos
anseios de modernização do país, passou a representar, a partir da década de 1930, o risco de
desviar os jovens do propósito de devoção à nação.
O sistema educacional japonês e, por consequência, o sistema educacional militar
agiam no sentido de difundir a ideia de devoção dos cidadãos ao sistema nacional
representado pela figura do imperador. O emprego da violência em benefício do bem nacional
maior (leia-se, o imperador) tornava-se plenamente aceitável e até incentivado, tendo em vista
69 RG 10: Box 90 Folder 718: C. NMP0104 (tradução livre).
98
que a sobrevivência e fortalecimento da nação pressupunha fortalecimento do próprio
imperador.
Sendo assim, não se podem tolerar quaisquer tipos de afrontas ao sistema instituído,
partindo-se do pressuposto de que uma ofensa à nação representa ofensa ao imperador e
consequentemente aos deuses. Sob esse prisma, a violência empregada nas escolas japonesas
e principalmente em relação às escolas de cunho cristão torna-se perfeitamente aceitável do
ponto de vista da filosofia nipônica, já que todos devem adequar-se ao novo modelo nacional.
A presença dos missionários cristãos, nesse contexto, torna-se totalmente
inconveniente às autoridades nacionais, e o próprio ensino do inglês chegou a ser proibido.
Muito mais mal vista ainda era a ideia de um deus ocidentalizado que era ensinado como
sendo maior do que o próprio imperador. Seria impensável às autoridades japonesas conceber
a ideia de um Jesus branco, com fisionomia e vestes ocidentais, e representando um poder
maior do que a casa imperial japonesa70
.
Nesse sentido, a repressão praticada contra todo e qualquer ato considerado
antinacional estaria fortemente presente na sociedade japonesa na década de 1930. A religião
cristã ocidental colocava em risco a validade de todo o sistema social japonês, que estava
baseado na aceitação da divindade da casa imperial e na naturalidade da hierarquia política
estabelecida no país.
E se a repressão contra os ocidentais já era fortíssima, a ponto de até nas escolas
cristãs os professores e alunos serem obrigados a venerarem fotos do imperador, a rigidez em
relação aos próprios japoneses era ainda mais forte. Como se observa no relato de Bates, as
agressões e os aprisionamentos seguidos de tortura eram muito comuns em se tratando dos
cidadãos nipônicos que resolviam se converter ao cristianismo, ou mesmo que fossem estudar
nas escolas cristãs.
Essas pessoas eram consideradas como traidores da nação e do imperador, e, por isso,
eram rotulados como inimigos do bem comum. O que chama a atenção, entretanto, é que essa
não era uma postura defendida abertamente pelo governo japonês. De fato, a presença de
escolas cristãs ocidentais não era proibida no Japão, tampouco os japoneses eram proibidos de
se converterem ao cristianismo, só que os que adotavam tal postura passavam a ser preteridos
socialmente e até tratados com violência por parte das autoridades policiais, como é o caso
dos exemplos supracitados.
70 Essa é uma ideia realmente discrepante da realidade sociopolítica japonesa, na qual se fazia uma leitura dos
ocidentais como bárbaros (vide capítulo 2).
99
Ao mesmo tempo em que o governo japonês agia energicamente contra os atos
considerados antinacionais, o país, oficialmente, tentava passar uma imagem de coesão
interna e até uma aparente aceitação da presença de missionários e outros estrangeiros. Era
como se, de uma forma dissimulada, o governo professasse um tipo de postura, mas, na
prática, agisse de uma forma bem diferente. Em termos concretos, qualquer um que
demonstrasse atitudes que iam de encontro ao projeto nacional era rechaçado, só que em
relação à sua política externa, o Japão agia como se essas coisas não ocorressem.
Esse tipo de postura violenta acabou se naturalizando na sociedade japonesa e passou
a fazer parte do cotidiano da população. Como dito anteriormente, as escolas funcionavam em
função do êxito da implantação do projeto nacional e, dessa forma, os próprios professores
trabalhavam como agentes diretos do Estado, incutindo nas mentes dos jovens as doutrinas
nacionais e punindo aqueles que por qualquer motivo se desviavam da obrigação dos cidadãos
para com a nação japonesa.
Nota-se novamente a presença fortíssima do on71
que perpassa todas as áreas da vida
do japonês, desde a família até o governo e ao próprio imperador. O compromisso de servir à
sua comunidade de concidadãos gerava nos jovens estudantes um grande furor e o anseio em
serem aceitos para fazer parte do Exército Imperial. Não havia forma mais honrada de servir o
imperador diretamente do que integrar as fileiras da máquina de guerra japonesa. Só que para
isso acontecer, os jovens precisavam passar por um pesadíssimo treinamento e encarar o rigor,
a disciplina e os constantes castigos físicos a que eram submetidos os jovens cadetes.
As punições imputadas aos alunos, em inúmeros casos, eram tão brutais que os jovens
não suportavam as condições físicas e vinham a morrer. Outros, ainda, cometiam suicídio
para evitar a vergonha de desapontar o imperador. Psicologicamente, o mundo militar era, de
fato, extremamente causticante para os soldados. Como se não bastasse a dificuldade física,
eles estavam submetidos a condições psicológicas bastante adversas, e isso era encarado como
necessário, tendo em vista que o objetivo era fazer dos jovens garotos verdadeiras máquinas
de matar, cegamente devotados à causa do imperador.
Apesar dos suicídios e da brutalidade com que eram tratados, a grande maioria seguia
na carreira militar e passava a ver nela o único meio através do qual poderiam ganhar suas
vidas. Depois de se tornar soldado, não havia um caminho de volta a ser percorrido, ou seja,
não havia outra opção de carreira a ser seguida, já que esses soldados tinham passado toda a
juventude sendo doutrinados e disciplinados para cumprir esse dever para com a nação.
71 Conjunto de obrigações ao qual todos os japoneses já nascem submetidos. Vide capítulo 2.
100
O mundo desses jovens soldados estava circunscrito ao exército e, por conta disso,
dedicavam-se sobremaneira para cumprir as suas missões e agradar aos superiores. Dito isso,
é fácil perceber que para esses soldados não havia limites do que poderia ser feito em nome
do imperador. Em outras palavras, não havia uma fronteira muito bem definida entre o que
seria moralmente aceito ou não, e, então, valia tudo em nome da nação.
Além do mais, esses jovens eram comumente incentivados a irem até as últimas
consequências e darem as suas próprias vidas em nome do imperador, e também, como
apontado anteriormente, eram submetidos a castigos físicos duríssimos quando cometiam
algum tipo de erro ou agiam desonradamente. A lógica do exército japonês nesse período
estava muito próxima do código de honra samurai, o bushido, que incentivava os guerreiros a
vencer o inimigo a qualquer custo ou, então, conquistar uma morte honrada no campo de
batalha e evitar a vergonha de possivelmente tornar-se prisioneiro do inimigo.
A rotina de treinamento era extremamente causticante para os militares japoneses
tanto em termos físicos quanto psicológicos. Os japoneses chegavam a encarar mais do que o
dobro de horas de estudo e treinamento em comparação às academias militares ocidentais, por
exemplo, e havia muita cobrança para que apresentassem sempre os melhores resultados. E
essa cobrança vinha tanto por parte dos professores como deles mesmos. A autocobrança é
um ponto que realmente chama muito a atenção quando se fala da população japonesa em
geral, e no exército isso era ainda mais forte, a tal ponto que os resultados dos exames eram
mantidos o máximo possível em sigilo para minimizar o risco de suicídio.
As academias militares japonesas funcionavam como se estivessem à parte do resto do
mundo. Não havia praticamente nenhum tipo de interferência externa em relação à educação
dos jovens cadetes e, além disso, eles não contavam com nenhum tipo de privacidade (não
havia assuntos particulares na academia) e eram extremamente desencorajados a desenvolver
qualquer tipo de liderança individual dentro da academia, enquanto estivessem passando pelos
anos de treinamento. Pode-se dizer que em cada jovem aspirante era prensado o rótulo do
militarismo japonês, com todas as implicações que isso trazia consigo.
Como se não bastasse, todo o material de leitura dos estudantes passava por um
rigoroso controle de censura para que não tivessem contato com nenhum tipo de ensinamento
que colocasse em cheque a divindade do imperador e o papel soberano da liderança japonesa
na Ásia. A ciência e a história eram distorcidas a fim de afirmar a imagem dos japoneses
como uma super-raça. Durante anos a fio os estudantes eram submetidos a esse tipo de
educação que não tinha nenhum tipo de interferência do mundo além das fronteiras japonesas.
101
Desse ambiente de violência física constante e forte pragmatismo político, onde
literalmente os fracos não têm vez, sairiam os soldados japoneses que iriam a Nanquim. Sob
essa perspectiva, torna-se bem mais palatável a idéia de que os soldados japoneses não eram
simplesmente demônios de farda, mas que eram seres humanos submetidos a doutrinas e
condições de ensino que possibilitavam e até mesmo incitavam à realização de atos
extremamente violentos aos outsiders (ELIAS, op. cit.).
Quando se observa o contexto no qual emergem os oficiais e os jovens soldados que
estavam na linha de frente da progressão militar japonesa na China é possível, de fato, sugerir,
mesmo sem se ter conhecimento dos eventos que se seguiram, que, no mínimo, um cenário de
muita violência e barbaridades seria protagonizado por tal Exército, ainda mais em um
território que representava todo o avesso do que professava o código de honra nipônico.
Depois de passar anos a fio sendo submetidos ao tipo de educação e doutrinação
discutido até o presente momento, os soldados japoneses que se encontravam a caminho de
Nanquim ansiavam veementemente por mostrar o seu valor, e isso seria feito através da sua
postura de total impiedade em relação aos chineses. O terreno estaria, então, extremamente
fértil para a ocorrência de toda espécie de atrocidades.
A população – e não só o Exército chinês – estaria frente a soldados assustadoramente
acostumados a uma rotina de agressões e à naturalização da violência como parte da
educação. Sendo assim, as rápidas vitórias do Exército nipônico sobre o chinês e a
velocíssima progressão militar japonesa sobre o território do vizinho continental trariam à
população chinesa o pior cenário que se possa sugerir.
Com um exército parcialmente abatido e com um moral muito baixo, a população civil
estaria entregue à mercê dos soldados inimigos. Nada menos do que um panorama de
brutalidade e devastação deveria ser esperado pelos chineses, já que desde o início das
campanhas militares os japoneses demonstraram toda a sua força e violência em relação a
essa população. Mas como não era de conhecimento dos chineses a ideia japonesa de guerra
de punição, a população civil considerava-se, pelo menos em parte, livre de quaisquer tipos de
excessos cometidos pelo Exército Imperial.
Estavam enganados. Na verdade, as ações dos soldados japoneses na cidade de
Nanquim, especialmente, teriam consequências desastrosas para a população civil restante na
cidade. Os soldados e até oficiais japoneses agiam realmente como se aquela campanha
militar na China representasse a razão das suas vidas e, mais ainda, como se os chineses – e os
102
cidadãos de Nanquim especialmente – estivessem simplesmente se deparando com o seu
destino inevitável de castigo devido à sua postura seguidamente desonrosa.
Diante do que vem sendo exposto, não é o caso aqui, contudo, de sugerir uma espécie
de demonização dos japoneses, ou, ainda, a ideia de que eles estavam na China única e
exclusivamente a fim de punir os chineses. Não pretendemos levantar a hipótese de que os
nipônicos passaram a balizar o sentido de sua existência em executar a punição dos chineses
devido aos supostos desvios da conduta moral desses. Esse argumento sugeriria a ideia de que
os nipônicos passaram a agir como se fossem os carrascos de um tribunal de honra asiático
imaginário, quando, na verdade, a situação se mostraria bem mais complexa e repleta de
detalhes.
Não se pode perder de vista todos os aspectos sociopolíticos que compõem as relações
entre chineses e japoneses, sobretudo após 1930-1931. Tampouco se podem desconsiderar as
questões econômicas que permeiam a invasão da Manchúria e as constantes tentativas da
manutenção de zonas de domínio na região. Só que além dessas questões, é extremamente
necessário levar em conta todo o âmbito figuracional que contribuía diretamente para moldar
as abordagens de um para com o outro no contato entre ambos os povos.
Nesse sentido, a observação da forma através da qual se constrói o Exército Imperial
desde a base, é fundamental para se compreender a violência, até certo ponto incomum, com
que esses militares empreenderam suas campanhas na China. O dia a dia de violência no
interior do Exército seria vertido em ainda mais violência contra os inimigos e teria terreno
aberto para se materializar. O alvo seria a população civil de Nanquim.
Os acontecimentos que se seguiram em Dezembro de 1937 em Nanquim merecem
uma atenção especial no que se refere ao tratamento dado não só aos soldados capturados
como também aos próprios civis. Chang (op. cit., p. 6) argumenta que:
não apenas o enterramento de pessoas vivas, castrações, dilaceramento de
órgãos e a queima de cidadãos vivos se tornaram rotina, mas também outros
métodos mais diabólicos de tortura eram praticados, como pendurar os prisioneiros em ganchos pela língua e enterrar pessoas nos seus próprios
excrementos [...]. Tão doentio era o espetáculo que até mesmo alguns
membros do Exército nazista que estavam na cidade ficaram horrorizados, um deles chegando a proclamar que aquele massacre era uma obra de
“maquinaria demoníaca”72
.
72 Tradução livre.
103
Através das palavras acima73
, é possível se ter uma ideia da profundidade das ações
dos soldados e oficiais japoneses na cidade chinesa de Nanquim, a partir de dezembro de
1937. É impressionante o fato de até mesmo os membros do Exército nazista que estavam
presentes terem ficado horrorizados com o que viam. Evidentemente, não pretendemos sugerir
que os nazistas não pudessem se espantar com o número de atrocidades cometidas ou que
fossem simplesmente monstros inescrupulosos e que já na década de 1930 pretendiam colocar
em prática todo o sadismo representado pela solução final74
(é nítido o fato de que o sistema
nazista era muito mais complexo do que um maniqueísmo simplista poderia sugerir), contudo,
é de chamar particularmente a atenção, o fato de que mesmo esses homens que também
vinham sendo doutrinados de forma semelhante – e que depois, de forma geral, viriam a
cometer toda sorte de barbaridades contra os judeus – tenham ficado perplexos com o cenário
em Nanquim.
As torturas cometidas contra os cidadãos, comumente não se justificariam nem mesmo
se cometidas contra os soldados. Mas em relação à população civil, isso se torna ainda pior.
Não havia informações estratégicas importantes que se poderiam ser extraídas dos cidadãos;
os civis normalmente não representavam perigo real aos soldados; e nem mesmo havia focos
de resistência civil contra a ocupação da cidade, como guerrilhas urbanas, por exemplo. A
partir dessas evidências se torna ainda mais complicado encontrar uma justificativa para tais
atos. Não é o caso aqui de sugerir que alguma coisa pudesse justificar tais tipos de tortura com
tamanho requinte de crueldade ou qualquer tipo de ação brutal, entretanto, algumas premissas
daquele tipo pelo menos serviriam para auxiliar a compreensão dos fatos – mesmo que nunca
a aceitação.
O que justifica pendurar uma pessoa pela sua própria língua? Ou enterrá-la em seus
excrementos? Essas são questões que perpassam o estudo dos eventos em Nanquim e, de
73 Poucos são os trechos que, assim como esse, apesar da limitação das suas palavras, conseguem transmitir de
forma tão assustadora, e ao mesmo tempo tão sucinta, o extremismo e a brutalidade a que se pode chegar um
processo de dominação. Como se podem compreender essas ações tão desumanas que atingiam até mesmo
mulheres, idosos e crianças? Quais são os mecanismos que permitem fazer com que esse tipo de coisa possa
ser encarado de forma tão natural pelos soldados, mesmo ao ouvir os gritos desesperados das mulheres e
crianças chinesas? É chegado o ponto que justifica toda a investigação empreendida até agora. Seria impossível
compreender, ou até mesmo simplesmente analisar esses eventos sem que se compreendam os processos de
construção e afirmação da nação japonesa moderna e todas as implicações relativas a isso. Sendo assim, a
partir desse arcabouço sócio-histórico é possível de se vislumbrar o ponto de entendimento – o que não
significa resignação – dos eventos em Nanquim em 1937-8. 74 A solução final foi a política implementada por Hitler a fim de exterminar os judeus nos campos de
concentração, quando a partir de meados de 1944, o jogo de forças pendeu para o lado dos aliados e a Alemanha se viu face a uma inevitável derrota. Já que não seria possível vencer a guerra, então, pelo menos, os judeus
seriam exterminados, esse era o pensamento de Hitler.
104
maneira nenhuma, poderiam passar ao largo em análises aprofundadas a respeito do tema. Só
mesmo um desejo muito grande de humilhar o inimigo pode fazer com que se chegue a tais
coisas. Na verdade, derrotar e destruir o inimigo não bastam, é necessário, segundo a
mentalidade difundida no Exército japonês, retirar-lhe tudo de mais precioso que ele possui, a
sua própria humanidade.
Numa análise um pouco mais detida, nota-se claramente que a barbaridade e a falta de
escrúpulos tornaram-se rotina em Nanquim. E isso significa que não seria o caso de estarmos
nos referindo a uma análise, por exemplo, de desvio de conduta por parte de um ou outro
membro do Exército Imperial, mas que o tratamento dado aos chineses era incentivado e
praticado até mesmo por alguns dos oficiais japoneses.
É importante notar, ainda, que a brutalidade dos soldados se inicia tão logo eles
conseguiram romper as defesas da cidade chinesa. Mais interessante ainda, é o fato de que os
soldados não faziam distinção entre a população civil e os militares chineses, nem no primeiro
momento e nem posteriormente. Todos eram considerados inimigos e representavam um alvo
em potencial, sendo assim, o tratamento despendido pelo Exército deveria ser violento e letal.
A entrada dos japoneses na cidade de Nanquim foi totalmente dramática. O Exército
chinês superava em muito o número de soldados do Exército Imperial, e é muito improvável
que aquele não tenha oferecido nenhuma resistência aos invasores. Todavia, o plano de defesa
chinês se mostrou muito mal articulado e desorganizado desde o princípio. Os membros do
alto escalão militar divergiam quanto às medidas a serem tomadas a fim de deter o Exército
japonês, ou pelo menos minimizar as perdas humanas do lado chinês. Isso se fazia sentir no
front, onde cada vez mais soldados chineses pereciam.
Durante a campanha, num período de um mês (Novembro a Dezembro),
aproximadamente 90 mil soldados chineses se instalaram em Nanquim, buscando proteger a
cidade do jugo japonês. Nesse ínterim, se iniciaria uma gigantesca empreitada visando retirar
da cidade os principais bens culturais dos museus, bem como todas as pessoas que possuíssem
os meios para encarar uma fuga árdua em navios lotados pelo rio Yangtzé. Naturalmente, os
cidadãos que conseguiam sair rapidamente da cidade eram aqueles mais abastados, os que
possuíam considerável poder aquisitivo, o que indicava logo de início que boa parte da
população de Nanquim pereceria nas mãos dos japoneses.
A despeito de toda essa mobilização demonstrada pelos chineses, a chegada dos
japoneses ao entorno da cidade e o cerco que se seguiria seriam totalmente desastrosos para os
chineses. O incipiente Exército chinês – formado por inúmeros soldados que haviam se
105
tornado combatentes literalmente da noite para o dia, e por isso não possuíam experiência
nem treinamento suficientes para embates corpo-a-corpo – não foi páreo para o bem
organizado Exército Imperial. Além do mais, as tropas que vinham chegando a Nanquim nos
dias imediatamente anteriores à invasão da cidade, acabavam de sair de outras derrotas para
os japoneses, e com isso já estavam totalmente exauridas, proporcionando quase nenhuma
resistência aos nipônicos.
Essa apatia em relação aos invasores só pode ser entendida partindo do pressuposto de
que além das tropas japonesas serem muito mais bem preparadas e devotadas à causa que
perseguiam, os próprios chineses agiram no sentido de facilitar o trabalho dos inimigos, ou
pelo menos de não interpor-se no caminho dos soldados japoneses. Isso aconteceu, não
porque o Exército sitiado fosse covarde ou menos dedicado do que os japoneses, mas pela
própria estrutura das forças armadas chinesas nesse momento crucial de defesa do país. Um
ponto que deve ser muito frisado é o despreparo e a exaustão dos seus soldados, bem como a
desorganização das tropas.
Mesmo a retirada do Exército chinês foi extremamente marcada pela desorganização e
desinformação. Alguns oficiais rapidamente informavam seus comandados das ordens de
recuar, outros, contudo, procuravam salvar suas próprias vidas, entregando os soldados à sua
própria sorte. Em comparação com o lado japonês, atitudes como essa seriam impensáveis, o
que, mais uma vez, mostra a disparidade entre os dois exércitos.
A modesta resistência chinesa75
aos nipônicos em Nanquim, como presumível, não foi
capaz de parar o Exército Imperial, que estava muito mais empenhado em atingir seus
objetivos. Em 12 de Dezembro de 1937 os combatentes japoneses rompem os portões da
cidade, passando a dominá-la. Começaria um período de terror com episódios como os
supracitados e até piores do que eles.
No episódio de entrada dos japoneses em Nanquim, inúmeros civis que consideravam
terem sido abandonados por seu exército e governo, procuravam saldar os combatentes
vitoriosos. Alguns inclusive colocaram bandeiras japonesas improvisadas nas janelas de suas
casas. Mas a sensação de que seriam tratados honradamente pelo exército invasor, como
citado anteriormente, passou rapidamente, pois logo que entraram na cidade, os japoneses
atiravam e matavam indiscriminadamente qualquer cidadão que encontrassem pelo caminho e
que esboçasse qualquer reação diferente de correr apavorado (CHANG, ibid., p. 82).
75 Nota-se que os soldados chineses possuíam munição e suprimentos suficientes para suportar um cerco de até
cinco meses, entretanto a resistência aos japoneses durou apenas quatro horas (CHANG, op. cit., p. 70).
106
Imediatamente após a entrada, facilitada pelas rendições em massa dos soldados
chineses que haviam sido praticamente deixados para trás, os japoneses iniciam suas
pavorosas ações contra os prisioneiros. Além dos soldados chineses, qualquer um que fosse
confundido com um soldado era imediatamente feito prisioneiro.
A princípio, os japoneses matavam todo homem jovem que encontrassem, alegando
que fossem membros do Exército chinês disfarçados. Entretanto, com o passar dos dias, as
mortes se intensificaram e os assassinatos passaram a alcançar todo e qualquer homem,
mulher ou criança que simplesmente não entendesse algum comando dos soldados, comandos
esses que eram dados em japonês.
A vida em Nanquim naquele dezembro de 1937, para os habitantes remanescentes na
cidade, era intensamente apavorante. Após a onda inicial de mortes do primeiro dia da
invasão, os japoneses começaram a tornar ainda mais requintados os rituais de execução. Os
prisioneiros, sem exceção, eram deixados por alguns dias sem comida ou água para que
fossem enfraquecidos gradualmente e então depois seria muito mais fácil conduzi-los ao
extermínio.
Os estrangeiros que ainda estavam na cidade assistiam horrorizados às atrocidades
cometidas pelos soldados e oficiais japoneses. Na verdade, desde o dia 2 de dezembro, um
documento da embaixada norte-americana já havia alertado os americanos que viviam em
Nanquim que deixassem a cidade, devido ao “crescente perigo para aqueles que
permanecerem em Nanquim”76
. Essa – cuja íntegra está no anexo I – circular enfatizava a
urgência da saída de todos os cidadãos americanos de Nanquim o quanto antes, sugerindo,
ainda, que se o conflito chegasse aos arredores da cidade, passar pelos portões provavelmente
seria impossível77
.
Os números divergem um pouco, mas, oficialmente, uma lista78
de 23 de novembro
contabilizava em 44 o número só de americanos residindo na cidade – mesmo que o próprio
documento admitisse que pudesse haver vários outros não listados. Já outro documento79
,
reportando a permanência de estrangeiros na cidade quando da ocupação japonesa, informa
que em 13 de dezembro (portanto um dia depois da ocupação da cidade) o número total de
estrangeiros, incluindo alemães, americanos, austríacos, russos, ingleses (além de um possível
76 RG 10: Box 102, Folder 862 - NMP0130. 77 O governo americano solicitava que os cidadãos americanos, na medida do possível, reportassem a forma
através da qual deixariam a cidade, se por conta própria, através da embaixada, ou se buscariam refúgio no
U.S.S. Panay. Um fato interessante, porém, é que o referido navio norte-americano seria prontamente
bombardeado e destruído pelos japoneses, causando a morte de 11 pessoas e ferindo gravemente várias outras. 78 RG 10: Box 102, Folder 861 - NMP0127. Anexo II. 79 RG 10: Box 102, Folder 862 - NMP0141. Anexo III.
107
cidadão francês) era de 42 pessoas. E, ainda, desse total, a grande maioria deixou a cidade
entre 15 de dezembro e 28 de fevereiro, inclusive jornalistas e membros da embaixada
americana.
O que salta aos olhos é que havia um alarme geral aos estrangeiros para que evitassem
ao máximo permanecerem na cidade. Essa intensa preocupação dos governos estrangeiros
chega a sugerir que essas embaixadas já esperavam que a atitude do Exército japonês em
Nanquim fosse violenta, ou mesmo que elas possuíssem algum tipo de informação
privilegiada sugerindo que estava por vir.
Esse argumento, porém, na ausência de documentos ou provas que o justifiquem, fica
só na especulação. Mas é no mínimo estranha essa postura tão afoita dos governos
estrangeiros em apressar a saída dos seus cidadãos antes da chegada dos japoneses.
Evidentemente, em qualquer tipo de guerra ou confusão num território, a recomendação dos
governos estrangeiros na maioria das vezes é que seus cidadãos deixem o local do conflito,
mas o que destoa no caso de Nanquim é o assombro de que mesmo para os que fossem
chineses poderia ser impossível deixar a cidade após a chegada dos nipônicos. Isso sugere a
ideia de que havia, sim, na comunidade internacional o receio de que os soldados japoneses
não poupassem a população civil da cidade.
A situação na cidade tornara-se realmente muito difícil até mesmo para os estrangeiros
que lá viviam. Mesmo que não fossem alvos dos japoneses, esses estrangeiros sofriam os
danos colaterais de estar em uma cidade que sofria uma ocupação militar violentíssima. Os
únicos estrangeiros que permaneceram presenciaram inúmeros estupros, sequestros e
espancamentos constantes perpetrados pelos soldados japoneses.
A fim de ilustrar a barbaridade dos soldados japoneses, vale a pena acompanhar a
história de Tang Shunsan. Um sapateiro que na época estava com 25 anos, e que após a
entrada dos japoneses na cidade havia encontrado refúgio juntamente com outros dois amigos
que tinham camuflado sua casa, colocando tijolos no lugar de uma das portas, ficando
abrigados dos japoneses no interior do cômodo escondido por alguns dias. A saga de Tang
iniciaria quando ele resolveu, movido pelo calor do momento, sair do amparo do esconderijo
para ver pessoalmente um soldado japonês. Chang (op. cit., p. 83, et seq.) descreve a trajetória
do rapaz:
Tão logo Tang pisou do lado de fora ele se arrependeu. Uma cena de horror quase surreal o chocou profundamente. Ele viu inúmeros corpos de homens
e mulheres – até mesmo corpos de pequenas crianças e de idosos –
apodrecerem diante de seus olhos nas ruas, a maioria havia sido apunhalado ou baionetado até a morte [...]. Tang viu um outro chinês na rua e, atrás
108
dele, um grupo de oito ou nove japoneses observando à distância [...]. Um
dos soldados [veio ao encontro deles] gritando e, antes que Tang soubesse o
que estava realmente acontecendo, o soldado decapitou o outro chinês com sua espada [...]. Foi aí que ele viu um grupo maior de soldados japoneses
levando centenas de cidadãos chineses ao longo da rua. Tang foi ordenado a
se juntar a eles [...]. Não muito depois, Tang se viu num lugar com um
buraco no chão recentemente aberto, que continha aproximadamente sessenta corpos de chineses [...]. Os japoneses ordenaram que os
prisioneiros se alinhassem lado a lado ao longo da cova, formando dois
grupos [...]. Então, para o horror de Tang, uma competição começou entre dois soldados – uma competição para estabelecer qual dos dois poderia
matar mais rápido [...]. Em cada um dos dois grupos de pessoas um dos
soldados decapitava os prisioneiros com uma espada, enquanto um outro
apanhava as cabeças e as empilhava à parte. Os prisioneiros permaneciam congelados de medo e terror enquanto seus compatriotas caíam, um por um
[...]. Foi então que Tang pode contar miraculosamente com a sorte. Quando
o soldado decapitou o homem exatamente em frete a Tang, o corpo da vítima caiu sobre ele. Segurando-se ao corpo, Tang caiu juntamente com o
cadáver na vala comum sem que ninguém notasse80
.
A sorte desse chinês tomado como exemplo não era comum naquele cenário. E a sorte
foi maior ainda porque depois de quase uma hora daquela disputa sangrenta, os soldados, a
fim de poupar tempo passaram a apenas cortar as gargantas dos prisioneiros em vez de
arrancar-lhes as cabeças, o que aumentou ainda mais as chances de sobrevivência de Tang,
afinal de contas, ele não seria o único corpo ainda com cabeça na vala.
É impressionante observar as ações que se tornaram rotina em Nanquim e que
atingiam diretamente toda a população civil chinesa na cidade. Exceção feita à uma pequena
parte da cidade onde se estabeleceu uma zona de segurança internacional, as ruas se tornaram
palco de todo tipo de atrocidades contra os cidadãos e formavam um cenário digno de filmes
de terror, com poças de sangue, cadáveres apodrecendo, pessoas sendo torturadas e
submetidas ao mais alto grau de sofrimento.
A falta de escrúpulos dos japoneses em Nanquim realmente chama muito a atenção.
Mais ainda porque, de modo geral, não se tratavam de combatentes lutando contra eles, e sim
de civis amedrontados. Além de casos como o supracitado, nota-se que a imaginação dos
nipônicos quanto aos tipos de tortura a serem realizados não tinha limites. Harris (op. cit., p.
55) oferece uma análise bastante interessante desse aspecto da conduta dos japoneses, no
episódio de sua progressão na China, de que nem mesmo os melhores escritores de ficção
poderiam rivalizar com os horrores da vida real na China.
Através de uma série de cartas enviadas pelo Dr. Robert O. Wilson, um americano que
trabalhava no Hospital Universitário de Nanquim, é possível notar a gigantesca extensão da
80 Tradução livre.
109
violência, sendo observada pela ótica dos estrangeiros na cidade. Além disso, outro aspecto
chama a atenção: a falta de preparo dos médicos chineses em atender a imensa quantidade de
pacientes graves que chegavam ao hospital. Nesse sentido, vale a pena acompanhar um trecho
de uma das cartas81
do Dr. Wilson para sua família, em 15 de dezembro de 1937:
O hospital fica mais sobrecarregado a cada dia. Nós estamos prestes a atingir
nossa capacidade normal, na medida em que os pacientes recebem alta.
Houve cerca de trinta novas entradas hoje e ninguém recebeu alta. Não podemos dispensar nenhum paciente, porque eles não tem nenhum lugar
para onde ir. Cerca de dez dos cento e cinquenta casos são ambulatoriais e
obstétricos, e o resto é de casos cirúrgicos. Nenhum de nossos médicos
chineses tem a habilidade para cuidar deles, exceto sob cuidadosa supervisão e isso me mantém muito atarefado.
82
Diante do cenário apresentado até agora, não é de causar espanto o número de entradas
de novos pacientes no hospital a cada dia, mesmo que já nos primeiros dias da ocupação
japonesa. A grande maioria desses pacientes (mais de 90%) representavam casos graves e que
requeriam cirurgias urgentes. O próprio Dr. Wilson relata que fazia em média mais de dez
cirurgias por dia, todas de pessoas que haviam sido vítimas dos soldados japoneses.
Como é possível perceber, a situação dos cidadãos se tornava ainda pior, na medida
em que a assistência médica era, também, muito ruim por parte dos médicos chineses, o que
acabava por sobrecarregar os poucos médicos estrangeiros que haviam permanecido na
cidade. Esses médicos, evidentemente, não conseguiam dar conta da gigantesca quantidade de
pacientes e a grande maioria desses vinha a morrer.
Através da perspectiva de um estrangeiro que tinha contato direto com as vítimas dos
japoneses, é presumível o espanto do médico americano em observar o que acontecia em
Nanquim. Nessa mesma carta que, é importante frisar, foi redigida apenas três dias após a
chegada dos japoneses, o Dr. Wilson afirma que “o massacre de civis é chocante, [...] casos de
estupro e brutalidade quase inacreditáveis”83
Alguns homens sofriam longas torturas procedidas pela morte, e essas torturas
variavam assustadoramente. Há numerosos casos em que os japoneses enterravam os
prisioneiros vivos e depois passavam por sobre eles com os tanques. As mutilações físicas
eram extremamente comuns, além das queimaduras, congelamentos e mordidas de cães, o que
sugere que havia realmente um toque especial de crueldade nos atos dos japoneses. Do
mesmo modo, os japoneses saturavam pessoas em ácido e, assustadoramente, empalavam
bebês com as baionetas (CHANG, op. cit., p. 88).
81 RG 11: Box 229 Folder 3875: NMP0016. 82 Tradução livre. 83 Idem.
110
Não há premissas que justifiquem o cometimento, especialmente, dessas duas últimas
ações. Atirar ácido numa pessoa não é um ato de alguém que está preocupado em
proporcionar ao inimigo uma morte honrada, ou mesmo uma morte rápida. Esse é um ato que
realmente indica crueldade e desumanidade por parte de quem o pratica. A ideia não é só
matar, mas imputar o maior sofrimento possível.
O empalamento de bebês, então, é uma coisa totalmente impensável sob qualquer
ponto de vista. Não existe nenhuma premissa ou doutrina bélica que justifiquem tais atos de
selvageria cometidos contra vítimas que nem sequer podem entender o que está se passando.
Esses tipos de eventos, por si só, indicam um dose bem grande de sadismo por parte dos
japoneses e, também, que realmente eles faziam uma leitura totalmente pejorativa em relação
aos chineses. Entretanto, não se pode perder de vista o fato de que esses não são atos de
violência gratuita, e sim o resultado de décadas de doutrinação política de estigmatização do
outro. Sendo assim, na lógica daqueles soldados, esses atos são perfeitamente justificáveis,
ainda mais sob a perspectiva da guerra de punição.
Quando se observam esses tipos de casos por uma ótica mais humanizada, é quase
impossível conter as emoções ao se imaginar tais atos sendo cometidos contra pessoas
acuadas, enfraquecidas fisicamente e que não esboçam, na maioria das vezes, nenhum tipo de
reação. É muito difícil acreditar que esses soldados estivessem agindo por conta própria de
forma desordenada e indisciplinada.
Não se trata de alguns casos isolados que foram reportados, mas de uma lista
astronômica de episódios de brutalidade e selvageria cometidos pelos japoneses. Sendo assim,
parece cada vez mais estranha a ideia de que os soldados estivessem agindo a esmo, ou que
recebessem punições ao excederem no uso da violência para com os cidadãos de Nanquim.
De fato, não há informações de repreensões significativas a soldados japoneses por parte das
autoridades competentes no período da tomada da cidade chinesa.
Nesse cenário, as mulheres, como em qualquer invasão de cidade, eram as que mais
sofriam. Os estupros em Nanquim atingiram proporções astronômicas, e era muito fácil para
uma mulher ser vítima de estupro na cidade. Além do mais, acompanhando a análise de
Chang (ibid., p. 90-91) nota-se que “nenhum lugar era sagrado o bastante para evitar um
estupro. Os japoneses atacavam mulheres em templos, igrejas, escolas bíblicas.” Levando-se
em conta que assim que chegavam a uma casa os soldados imediatamente procuravam
desmoralizar todos os membros da família, forçando-os a cometer incesto e depois
estupravam todas as mulheres da casa sem distinção de idade, pode-se considerar que não
111
havia nenhuma hora do dia sequer na qual não estivesse havendo um estupro em algum canto
da cidade.
Além dos estupros, que por si só já são extremamente brutais, os soldados japoneses
passaram a não só violentar as mulheres chinesas, mas também assassiná-las após os atos.
Esses soldados na verdade temiam que seus atos fossem revelados e que sofressem algum tipo
de retaliação dos oficiais superiores. Portanto preferiam se assegurar que nada realmente fosse
revelado. Cadáveres não falam.
Enganoso, porém, é o pensamento de que todos os oficiais estavam alienados dos atos
de seus subordinados. Muito pelo contrário. Assim como apontado anteriormente, muitos
oficiais participavam das orgias e, além disso, instigavam os soldados rasos a cometerem os
estupros em grupo, o que mais uma vez reforça a ideia de que essas ações não estavam
relacionadas ao desvio de conduta de um ou outro soldado, mas que se tornaram prática
corrente na cidade.
A gigantesca extensão dos estupros em Nanquim contribuiu diretamente para que
surgisse a preocupação entre os japoneses de manter mais discrição aos seus atos, temendo
retaliações dos ocidentais. É nesse contexto que são criadas as casas de conforto para servir
aos soldados e oficiais, já há tanto tempo no campo de batalha. As mulheres de conforto eram
selecionadas por toda a extensão do domínio japonês na Ásia e, após serem seqüestradas,
eram enviadas para esses locais onde passariam a servir de escravas sexuais.
Há inúmeros relatos e depoimentos da situação das mulheres de conforto chinesas e
suas condições de vida. Na verdade, os testemunhos corroboram ainda mais a idéia de que
realmente havia um quê de sadismo nas ações dos japoneses. Cabe lembrar que a margem de
idade para as violências sexuais era assustadoramente de 11 a 80 anos, e se o tratamento das
mulheres idosas já era apavorante, as violências contra as mais jovens era ainda pior.
Algumas, inclusive, tinham suas vaginas cortadas a fim de facilitar a penetração dos
japoneses.
Além das execuções dos prisioneiros e habitantes de maneira geral e das orgias
sexuais, os japoneses também iniciaram um empreendimento no sentido de capturar
prisioneiros para enviá-los para os novos complexos industriais de desenvolvimento de armas
químicas e biológicas na Manchúria. Os japoneses acreditavam que o desenvolvimento desse
tipo de arma desempenharia um importante papel nos possíveis conflitos futuros com os
112
ocidentais84
. Sendo assim, o teste desse tipo de armamento necessitaria de um número
considerável de cobaias humanas para o incremento em larga escala. Tendo um complexo de
purificação de água como disfarce perfeito, o plano de desenvolvimento de armas biológicas
do dr. Ishii Shiro poderia agora funcionar e receber fortes investimentos do governo japonês
(HARRIS, op. cit., p. 40).
As pesquisas de desenvolvimento de armas químicas e biológicas receberam a
nomenclatura de unidade 731 e entravam nos orçamentos do governo japonês como verba de
pesquisa. A unidade contou com alguns complexos industriais pela Manchúria, dentre eles
principalmente os de Harbin, Ping Fan e Beyinhe.
A desumanização inferida aos pacientes desses centros de pesquisa, bem como aos
trabalhadores chineses na construção dos prédios, merece ser destacada. Nota-se que
realmente os japoneses “tratavam brutalmente os trabalhadores chineses durante o processo de
construção das novas fábricas. Os obreiros enfraquecidos eram obrigados a trabalhar longas
horas, suportar condições de vida extremamente adversas e recebiam uma verdadeira ninharia
por seu trabalho” (HARRIS, ibid., p. 32).
Paradoxalmente, nota-se mais uma vez que a despeito das barbaridades cometidas no
interior dos pavilhões, o responsável pelas instalações, Ishii Shiro, procurava manter o sigilo
das reais ações dos centros de pesquisa. Behr (op. cit., p. 212) ilustra muito bem os esforços
do general afirmando que:
a seus colegas e superiores do Exército,vangloriava-se da contribuição que
estava dando à capacidade de defesa do Japão e do interesse despertado por seu trabalho nos círculos mais elevados; entre seus subordinados, ele
difundia a necessidade de segredo, fazendo-os jurar que nunca divulgariam
o que presenciaram em Ping Fan.
O terror nas unidades de pesquisa do dr. Shiro poderia ser rivalizado apenas pelos
posteriores campos de concentração nazistas e pelos experimentos dos médicos alemães em
judeus. Os tipos de pesquisa desenvolvidos nessas instalações evocam também um pavor
quase surreal. Apesar de os prisioneiros dessas fábricas da morte85
receberem boa
alimentação a princípio, os tipos de situações e condições as quais seriam submetidos
mostravam que eles representavam nada mais do que ratos de laboratório.
84 Desde o início da década de 1930 a gradativa transformação da Manchúria numa área de teste e implantação
de armas químicas e biológicas se deve principalmente aos esforços do Maj. Ishii Shiro, médico do exército.
Shiro foi o grande responsável pelas milhares de mortes nessas verdadeiras fábricas da morte que em muitos
casos compreendiam complexos gigantescos semelhantes a cidades. Ele teve sua grande chance de implementar
esse tipo de pesquisa com o apoio do governo após o Exército de Kwantung sofre uma baixa de 6000 homens em
1936 por um surto de cólera. Para uma análise mais detalhada dessas unidades de pesquisa biológica, vale a pena consultar Harris (ibid.). 85 Harris (op. cit.).
113
Harris (op. cit., p. 64-65) afirma que os escolhidos para os experimentos só recebiam
boa alimentação para que os médicos japoneses pudessem apurar realmente quais seriam os
efeitos das armas em condições normais. Sendo assim, testes em cobaias debilitadas teriam
seus resultados mascarados pelas próprias condições físicas dessas.
Outro aspecto que torna ainda mais peculiares as instalações de pesquisa biológica
japonesas é que a quantificação das cobaias se torna praticamente impossível, na medida em
que em Ping Fan, por exemplo, era utilizada uma numeração de 101 até 1500 que era repetida
ciclicamente quantas vezes fossem necessárias. Estima-se que dezenas de milhares de civis
chineses foram mortos só em Ping Fan (HARRIS, id.).
A numeração era inferida aos prisioneiros no exato momento de chegada, o que
provocava a total despersonalização das vítimas. Logo após, elas eram dirigidas para os
diversos tipos de experiência: “alguns eram infectados com disenteria ou injetados com
tétano; outros (alguns usando máscaras, outros não) eram levados a um lugar aberto e
‘bombardeados’ com cianureto; outros, ainda, eram encerrados em ‘câmaras frias’ a 50 graus
negativos e congelados até a morte” (BEHR, op. cit., p. 213).
A invasão de Nanquim contribuiu em muito para o estabelecimento dos complexos
industriais de pesquisa na Manchúria. A posição estratégica da cidade favorecia o lançamento
de um ataque armas biológicas a fim de aterrorizar os exército de Chiang Kai-Shek (HARRIS,
OP. CIT., P. 137). Levando-se em consideração que a população da cidade no momento da
invasão japonesa era de aproximadamente meio milhão de pessoas (CHANG, op. cit., p. 40 et
seq.), o arrebanhamento de vítimas para a unidade 731 foi facilitado diante do enorme
tamanho da população.
O período de dois meses que compreendeu o massacre de Nanquim é totalmente
incomum tendo em vista que a cidade não fica numa área isolada, como ficam as cidades de
Harbin e Cahngchun, que também sofreriam muito com a progressão militar japonesa. Mesmo
assim, os soldados japoneses não pouparam os cidadãos de Nanquim, muito pelo contrário, a
matança nesse local foi particularmente assombrosa (HARRIS, op. cit., p. 136).
Ao se analisar uma série de documentos e correspondências enviados pelos
responsáveis estrangeiros pela Universidade de Nanquim à embaixada japonesa na cidade,
nota-se alguns pontos bastante elucidativos em relação à postura das autoridades japonesas no
tocante às ações dos soldados. A maioria dessas cartas refere-se à péssima conduta dos
nipônicos para com a população civil chinesa, e até mesmo funcionários chineses da
114
Universidade. Em uma dessas cartas, datada de 17 de dezembro, um membro do Comitê
Emergencial da Universidade questiona a embaixada japonesa da seguinte forma:
Nós acreditamos que o Exército japonês tem o poder e a eficiência para
manter uma conduta respeitosa e para garantir ao povo conquistado uma chance de viver e trabalhar de forma ordenada. Nós não conseguimos
compreender por que isso não acontece, e, ainda, por que isso não é feito
antes que mais danos sejam causados à população local e à reputação do Japão.
86
Nessa mesma carta, e em várias outras, são relatados casos nos quais os soldados
vinham sempre em busca de dinheiro, relógios e mulheres, além de cometerem vários
estupros, mesmo à luz do dia. Na verdade, numa outra carta do dia anterior, havia sido
relatada a situação na Universidade, onde havia cerca de 1500 refugiados. É narrado que
alguns soldados japoneses derrubaram a bandeira americana e invadiram as casas do campus
universitário. Próximo à biblioteca, quatro mulheres foram estupradas, três foram levadas e
não mais retornaram e uma delas foi salva graças aos policiais do Exército nipônico que
estavam próximos à embaixada.
É importante notar que aparecem nesse cenário novos atores que teoricamente agiriam
em favor da população civil: os policiais e guardas do Exército. Na verdade, esses homens
tinham por função fiscalizar a conduta dos soldados e garantir a ordem social na cidade. A
despeito disso, o que acontece é que o número desses guardas era ínfimo, e, por isso, não era
possível realmente garantir que atos de violência contra os cidadãos acontecessem.
O acompanhamento das correspondências do complexo universitário com a
Embaixada é de vital importância para a compreensão de toda a conjuntura que envolve a
grande questão de se os soldados agiam a esmo e por conta própria, ou se estavam
fundamentalmente colocando em prática o que haviam sido instruídos a fazer. Do dia 16 ao
dia 31 de dezembro as cartas são quase que diárias. De início, os assuntos pautavam-se em
reclamações a respeito de “soldados desordeiros e sem disciplina e sem oficiais”87
, mas com o
passar dos dias, as reclamações voltaram contra as próprias autoridades japonesas.
Em 19 de dezembro, o Dr. Wilson reportou uma ocorrência bastante incomum que
ocorreu no hospital universitário. Três soldados entraram pelos fundos do hospital e ficaram
circulando pelos corredores, quando uma das enfermeiras, uma senhora americana de 63 anos,
passou a acompanhá-los. Eles tomaram o relógio dela, mesmo sob protestos, e depois de
algum tempo, dois dos soldados foram embora, enquanto que o terceiro desapareceu.
86 RG 10: Box 4 Folder 59: NMP0064. 87 RG 10: Box 4 Folder 59: NMP0070.
115
Aproximadamente uma hora depois, o Dr. Wilson foi alertado de que havia um soldado
japonês no dormitório das enfermeiras.
Ao chegar ao local, ele se deparou com o soldado parcialmente vestido, em um quarto
com seis enfermeiras. Descobriu, então, que o soldado já tinha estuprado três das enfermeiras
antes dele chegar. Diante do flagrante, o soldado pegou suas coisas e foi embora. As vítimas e
as demais enfermeiras do hospital ficaram horrorizadas com o acontecido. O texto da carta
não deixa muito claro, mas ao que tudo indica, as enfermeiras que foram vítimas desse
soldado eram todas chinesas.
O secretário Fukuda, da embaixada japonesa, responde a essa carta solicitando que os
estrangeiros responsáveis pela Universidade averiguassem mais de perto as denúncias contra
os soldados, a fim de verificar se realmente são reais. Uma carta de 21 de dezembro
endereçada à Embaixada começa a mudar o tom das reclamações. Nela, são reforçadas as
denúncias e o fato de que tinham sido cuidadosamente investigadas, conforme solicitado.
Aparece novamente, nessa carta, a reclamação de que os nipônicos derrubaram a
bandeira americana na Universidade e, dessa vez, ameaçaram de morte os funcionários, se
mais uma vez a bandeira fosse hasteada. O documento reafirma o pedido para que houvesse
mais guardas do Exército para garantir a segurança dos cidadãos, solicitação essa que vinha
sendo insistentemente feita aos oficiais da embaixada.
De fato, o número de guardas, segundo as cartas, era irrisório e não representava, nem
de longe, algum tipo de real segurança para as pessoas. O último parágrafo do documento
chama particularmente a atenção e sugere mudança no foco das reclamações. Os membros do
Comitê Emergencial argumentam que “se os generais pretendem destruir as casas das pessoas
e levar seus últimos alimentos e roupas, é melhor que isso seja dito honestamente em vez de
enganá-los com falsa esperança de ordem.”88
A partir dessa data, o foco das reclamações nitidamente começa a se direcionar para as
autoridades japonesas além dos soldados. Nitidamente, começa a surgir entre os estrangeiros a
insatisfação a respeito da apatia dos chefes japoneses em acabar com os episódios de
violência. Os textos dos documentos são enfáticos em relação à não existência de guardas e,
mesmo, ao desrespeito dos soldados para com as poucas ações da guarda.
Uma correspondência datada de 27 de dezembro é bastante interessante no que tange à
sua clareza em elencar os casos de violência relativos a estupros (inclusive de uma menina de
11 anos de idade), espancamentos e sequestro de chineses. Além disso, é enfática em afirmar:
88 RG 10: Box 4 Folder 59: NMP0068.
116
“há mais de uma semana foram feitas promessas de que se restauraria a ordem e haveria um
maior número de guardas”89
. Como o próprio documento explicita, a “desordem continua” e,
a despeito das promessas feitas pela Embaixada japonesa no sentido de acabar com esses
problemas, nada vinha sendo feito.
Segundo essa correspondência, os japoneses havia prometido proteger a escola bíblica,
mas não cumpriram a promessa. A escola sofria constantes ataques de soldados que a
invadiam, sequestravam meninas e as estupravam. Os episódios de violência geralmente eram
protagonizados por grupos de três ou quatro soldados, mas havia grupos bem maiores que
contavam com doze ou quatorze homens que pareciam incansáveis na tarefa de violentar os
cidadãos, sobretudo as mulheres.
Além disso, os oficiais japoneses haviam se comprometido perante os estrangeiros em
resguardar a população civil, coisa que, evidentemente, não ocorria. Novamente é possível
observar que as palavras e as ações dos nipônicos eram muito contraditórias umas em relação
às outras. Esses documentos relativos ao período de dezembro, principalmente, transparecem
a ideia de que os próprios estrangeiros não enxergavam aqueles atos como a prática oficial do
Exército Imperial, mas que consideravam ações de indisciplina dos soldados.
Todavia, as críticas direcionadas às autoridades japonesas foram duríssimas e, na
verdade, já se vinha pondo em dúvida o seu desejo de realmente reverter essa situação. O
resultado disso foi que em 30 de dezembro, a Embaixada recebe outra carta da Universidade
afirmando que “nos últimos dois dias, o número de soldados nos arredores diminuiu
bastante”90
. Pode-se supor que devido às insistentes reclamações, os oficiais passaram a
instruir que os soldados evitassem a área. Não se pode dizer que tenha havido um real esforço
para frear os eventos de violência.
As evidências mostram justamente o contrário. Esse próprio documento parece ser um
tanto contraditório, pois ao mesmo tempo em que agradece, já no primeiro parágrafo, a
suposta melhora que houve na situação, os parágrafos subsequentes estão repletos de relatos
de casos de violência, incluindo mulheres raptadas, invasão de casas e desaparecimentos.
Contudo parece que esse esforço virtual dos japoneses chegou a convencer os responsáveis
pela Universidade de que estavam agindo em represália aos atos violentos, já que no final da
carta, o professor Bates conclui: “grato pelo seu interesse amigável pela boa ordem e
tratamento justo às pessoas.”91
89 RG 10: Box 4 Folder 59: NMP0071. 90 RG 10: Box 4 Folder 59: NMP0073 91 Idem.
117
O que chama a atenção, pelo menos em relação às correspondências diretas com a
Embaixada japonesa, é que aparentemente o Dr. Wilson, o professor Bates e os outros
estrangeiros realmente acreditavam que as autoridades japonesas iriam esmerar-se em
repreender e punir os soldados transgressores. Ao se observar a saudação final de Bates não se
pode considerar que ele estivesse querendo dizer o contrário ou que estivesse sendo irônico
em relação aos oficiais da Embaixada, mesmo porque isso, sim, ofereceria a eles as razões
para agirem de forma mais severa.
Essa crença na veracidade das intenções do alto escalão japonês se reflete ainda no
post scriptum (P.S.) deixado na carta, no qual Bates argumenta: “Ontem de manhã, os guardas
militares no nosso portão levaram três colchões que tinham pegado emprestado aqui. Parece-
nos que um ou dois policiais confiáveis seriam melhores que os oito soldados descuidados
que ficam sentados o dia todo e à noite dormem numa sala ao lado”92
.
Ao explicitar esses protestos, fica claro que eles realmente esperavam que os oficiais
japoneses fossem tomar as providências cabíveis para restaurar a ordem. Todavia, mesmo que
os nipônicos professassem uma preocupação em relação ao que vinha acontecendo, suas ações
demonstram que essa preocupação era muito mais no sentido de evitar que as atrocidades
cometidas viessem a público na comunidade internacional.
A percepção que se tem é realmente de uma postura dissimulada das autoridades
nipônicas em Nanquim a respeito da conduta dos soldados. Oficialmente, os nipônicos
professavam uma atitude de controle de conduta, fiscalização e restauração da ordem, mas na
prática, as suas ações se mostravam bastante condescendentes em relação aos episódios de
violência. Por isso mesmo, é difícil acreditar que os episódios em Nanquim representem a
indisciplina ou o sadismo de alguns soldados.
Havia uma preocupação dos japoneses em demonstrar à comunidade internacional que
tudo corria bem na China, e, sendo assim, procuravam passar a imagem de que oficialmente
repreendiam os soldados. Da mesma forma, quando recebiam reclamações dos estrangeiros a
respeito dos episódios de violência cometidos pelos soldados, buscavam transmitir a ideia de
que agiam no sentido de adverti-los e puni-los. Evidentemente, não se pode considerar que
todo o amplo alto escalão governamental japonês estivesse planejando desde o início o
massacre em Nanquim. Não há evidências que comprovem tal ideia93
, nem tampouco é isso
que pretendemos supor.
92 Idem. 93 A respeito da complexidade política do alto escalão japonês em relação aos assuntos referentes a Nanquim,
vale à pena consultar Behr (op. cit., p. 207 – et seq.).
118
A partir das premissas apontadas acima é possível compreender o porquê de os
japoneses não terem se preocupado tanto com o fato da cidade de Nanquim não ficar numa
área isolada. Na verdade, como é de conhecimento geral, Nanquim era a capital da China
nessa época. Sendo assim, as ações brutais cometidas na cidade seriam facilmente
interpretadas como ímpeto e sadismo dos soldados rasos, já que seria realmente inimaginável
a ideia de que o oficialato japonês pudesse incentivar os soldados a cometerem barbaridades
contra a população civil.
Entretanto, numa análise mais detida é possível identificar a real natureza dos eventos
em Nanquim: representavam a aplicação prática da política militarista japonesa para a Ásia.
Dessa forma, em observância à cultura japonesa construída desde o final do século XIX e
fortalecida durante as primeiras décadas do século XX, é nítida a conclusão de que, quando a
hora chegasse, o Exército Imperial estaria pronto a colocar em prática todas as ideias relativas
à superioridade racial dos japoneses, do vanguardismo nipônico e do poder divino da nação
japonesa. E isso incluía derrotar, destruir e, principalmente, humilhar os inimigos, sobretudo
os que se mostrassem desonrados. Esse foi o caso dos chineses.
A elucidação das correspondências supracitadas contribui fortemente no sentido de
corroborar esse argumento, já que em quase todas as correspondências observa-se a aparência
enganadora dos japoneses de que estavam agindo contra os episódios de violência, mas, na
realidade, nada faziam de concreto para que esses atos fossem coibidos, nem mesmo
aumentaram a fiscalização ou o número de guardas do Exército na cidade.
A falta de ações das autoridades nipônicas no sentido de frear os atos de brutalidade
em Nanquim indica muito mais o desinteresse do que incapacidade em fazê-lo. É muito difícil
acreditar que com toda a disciplina e o rigor com que era comandado o Exército Imperial, os
soldados pudessem agir tão desordenadamente e indisciplinadamente quanto se pretende
sugerir. A ideia de soldados agindo à revelia dos seus superiores é praticamente impensável
no universo cultural japonês.
Além do mais, nota-se que ao se confrontar os eventos em Nanquim com o tipo de
cultura construída no Japão durante as décadas anteriores, é possível identificar diversos
aspectos peculiares de proximidade entre as ações dos soldados e o tipo de educação que
recebiam nas escolas militares. Como dito anteriormente, os acontecimentos em Nanquim
refletiam a cultura imperial-militarista japonesa sendo colocada em prática, ou seja, os
soldados faziam o que foram ensinados a fazer.
119
Isso significa que não se pode analisar o massacre de Nanquim simplesmente
considerando que os soldados fossem sádicos e inescrupulosos (mesmo que, como foi
explicitado no trabalho, houvesse inúmeros casos de crueldade nos quais os soldados
claramente se divertiam ao massacrar os chineses). É evidente que tanto a brutalidade quanto
a falta de escrúpulos estavam presentes nas ações supracitadas, entretanto, a análise se torna
rasa se não leva em conta a cultura de violência que foi sendo construída no Japão desde o
final do século XIX. Sendo assim, o massacre de Nanquim representa a política japonesa para
o sudeste asiático sendo colocada em prática.
Os eventos em Nanquim duraram efetivamente apenas alguns meses, mas a marca que
elas deixariam na população chinesa atravessaria gerações. Muitas mulheres violentadas
durante a invasão da cidade ficaram grávidas, o que provocou um enorme número de suicídios
e infanticídios nos meses subseqüentes. Ademais, os sobreviventes tiveram que conviver com
a vergonha e a dor das lembranças pelo resto de suas vidas.
É através do testemunho desses sobreviventes que se tornaria possível ter uma ideia
mais clara da bestialidade com que os soldados japoneses tratavam os civis na cidade. Além
disso, os experimentos químicos e biológicos na Manchúria e a presença japonesa em
Nanquim durariam até a derrota japonesa em 1945, o que, diante das evidências, indica que
possivelmente dezenas ou até centenas de milhares de pessoas encontraram, também, o
trágico destino de engrossar as estatísticas da máquina de morte japonesa.
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Massacre de Nanquim, analisado em retrospectiva, precisa ser entendido no amplo
contexto da expansão militar japonesa no sudeste asiático. E, mais ainda, sob os
desdobramentos da política militarista e imperialista construída no Japão desde o final do
século XIX com a restauração Meiji. Não se podem encarar os eventos em Nanquim, em
1937, como se fossem fatos isolados, mas como integrantes de um contexto histórico muito
maior.
A pesquisa procurou mostrar como a construção histórica da nação japonesa moderna
contribuiu diretamente no sentido de favorecer a ocorrência de eventos como o assalto à
cidade chinesa supracitada. Evidentemente, há uma série de fatores que precisam ser levados
em conta nesse estudo, e, nesse sentido, foram necessárias as apreciações de alguns aspectos
que fazem parte desse contexto, como, por exemplo, as questões relativas ao próprio
estabelecimento de alguns conceitos, como nação e imperialismo; e o exame do emprego da
violência nas relações sociais.
Nesse sentido, observamos que a cultura representa o campo prático do
estabelecimento das nações. Isso porque é ela que estabelece os parâmetros que serão
seguidos pelos cidadãos da nação. Sendo assim, é fundamental atentar não para cada aspecto
da cultura isoladamente, mas perceber os mecanismos que são engendrados pela
complexidade cultural do povo em questão.
Da mesma forma, vale salientar que a ocorrência dos aspectos culturais por si sós, mas
desprovida de uma série de outros fatores políticos, bem como um espaço territorial definido
(ou que se pretende definir) e a preexistência de um Estado, não são suficientes para o
estabelecimento de uma nação. É necessária, como procuramos mostrar, a conjunção de todos
esses fatores para que se possa falar em nação.
A comoção popular e o senso de familiaridade e proximidade entre os membros do
Estado-nação, nessa linha de raciocínio, se estabelecem de forma muito mais complexa e
fortalecida do que por simples interesse particular ou anseio por algum tipo de vantagem
política ou econômica individual, e isso garante grande legitimidade ao Estado nacional que
se pretende construir.
A noção de bem-estar da nação se torna um grande consenso entre todos.
Simbolicamente, a nação é construída e apresentada à população como representante de tudo
o que há de melhor em cada indivíduo. Nesse contexto as manifestações, ritos e locais
121
folclóricos possuem um papel de destaque, tendo em vista que eles representam uma parte
considerável do que é a nação colocada na prática.
Os indivíduos passam a absorver esses valores culturais e a reconhecer as
manifestações folclóricas nacionais como sendo realmente representativas daquilo que é a
nação. Isso se torna nitidamente verificável quando se trata de monumentos e/ou rituais que
pretendem resgatar uma história ou tradição nacional. Eles possuem efetivamente um respaldo
popular que por si só já seria suficiente para garantir a sua existência.
Isso porque, como buscamos apontar, o aspecto cultural mais relevante, do ponto de
vista dos grupos de vanguarda na construção do Estado-nação, é justamente o cenário que o
conjunto cultural é capaz de proporcionar. Dessa forma, não basta erigir grandes monumentos
em prol da afirmação de uma tradição ou uma história nacional, se eles, na prática, não forem
capazes de promover e evocar os mais variados e intensos sentimentos populares em favor da
nação.
Quanto ao caráter de sacralidade que a nação acaba por assumir para os cidadãos,
pode-se dizer que o Estado nacional se torna, em grande medida, herdeiro do pensamento
religioso. Se é verdade que a nação assume um papel quase que sagrado para os que a
integram, então seria correto afirmar que a vida de cada indivíduo só faz sentido quando
direcionada em favor da nação.
Nesse sentido, o papel da língua nacional é um aspecto que também se destaca
sobremaneira na construção do Estado-nação, já que a linguagem representa, ela mesma, um
fator de coesão nacional. A língua e os símbolos nacionais exercem papel preponderante na
constituição da nação. A análise de cada símbolo constituído é fundamental devido à
abrangência do seu objeto, a nação.
Além disso, o fator que merece ênfase é o fato que as nações constituem comunidades
políticas imaginadas, e como tais, surgem primeiro no campo das ideias. Isso reforça a noção
de que o nacionalismo vem antes da nação em si e serve não apenas para validar, mas para
atuar no sentido de construir propriamente a nação. O discurso nacionalista, nesse sentido,
resguarda os principais aspectos do Estado nacional soberano.
As relações de poder entre os grupos nacionais gera uma atmosfera de rivalidade entre
eles. Sendo assim, a própria construção simbólica dessas comunidades políticas imaginadas
oferece o escopo de observação para a análise desse fenômeno. A contraposição aos membros
de outras comunidades acontece na medida em que há sobreposição dos valores culturais das
nações envolvidas, no sentido de perceber no outro tudo o que não se deseja ser.
122
Esse é um processo que não pode ser encarado como natural, ou analisado
simplesmente no plano individual. Os processos de estigmatização do outro perpassam
questões que vão muito além do relacionamento individual entre as pessoas, eles são, na
verdade, categorias das relações sociais coletivas que provocam a rotulação, não de um
indivíduo isoladamente, mas de todo um povo em relação a outro. Isso quer dizer que a
imagem que é criada não diz respeito somente a essa ou aquela pessoa, mas a todos os
membros da comunidade.
A explicação para esse processo passa pelo entendimento da complexidade do
relacionamento entre os dois ou mais grupos envolvidos, ou seja, além do esquema de
construção de cada uma das nações envolvidas, é fundamental que se observe o
desenvolvimento das relações entre elas. As rotulações que são geradas a partir desse
encontro é que estabelecem qual será a imagem que cada um dos grupos envolvidos terá do
outro. Daí surge a noção de estabelecidos e outsiders.
Sob esse prisma, notou-se que a política imperialista funciona na medida em que se
estabelecem os parâmetros simbólicos de autoafirmação de uma nação em detrimento de
outra, ou seja, é uma relação entre a autoimagem de poder de um grupo estabelecido e a
imagem de fraqueza e impotência de outro grupo. Ambas as comunidades acabam por
absorver esses mecanismos simbólicos de representação coletiva, fazendo com que até mesmo
a própria população dominada se veja como inferior à outra.
O fato de uma nação impor a sua vontade à outra independente da circunstância, por si
só, já denota uma relação de poder. A luta pelo estabelecimento dessa vontade geralmente
leva a hostilidades e conflitos nos quais o ponto nevrálgico é a aceitação ou não da
dominação, ou seja, se a nação que se pretende como dominadora realmente possui, ou não,
os meios necessários para impor a sua vontade.
A vitória no campo das mentalidades é importantíssima já que proporciona o
estabelecimento, de fato, dos interesses do grupo vencedor sobre o grupo dominado. Sem a
vitória simbólica, ainda que belicamente um dos grupos seja incrivelmente superior ao outro,
não há a construção de um imaginário que permita a consolidação dos processos de
dominação. Ou seja, é fundamental que uma das nações se renda à outra para que os
mecanismos se ajustem a fim de estabelecer uma relação de poder, o que não indica, todavia,
que o imperialismo esteja circunscrito ao campo das mentalidades.
Sob essa perspectiva, a utilização da violência é perfeitamente aceitável, sob o ponto
de vista dos imperialistas, já que o que importa são os fins a que se pretende chegar. A
123
perseguição desses objetivos perpassa por uma série de mecanismos que nem sempre podem
ser considerados aceitáveis sob o ponto de vista moral, mas que influenciam diretamente no
destino das nações envolvidas.
A questão da violência precisa ser analisada como sendo parte integrante e
fundamental nos processos de dominação imperialista do final do século XIX e ao longo do
XX. Entretanto, não se pode considerar que o emprego da violência nesses e em outros casos
de relacionamento entre nações, esteja diretamente relacionado a uma espécie de sadismo ou
ausência de senso de autopreservação por parte dos homens.
O que chama atenção nos imperialismos é que as ações cometidas não podem ser
entendidas partindo de pressupostos individualistas, ou mesmo simplesmente dos sentimentos
que um grupo nutre pelo outro. Na verdade, os piores casos de violência, ao contrário do que
se poderia sugerir, não ocorrem movidos diretamente pela paixão, mas por uma
racionalização extrema. Racionalização essa que retira do outro aquilo que o aproxima do
perpetrador da violência: a condição humana
Aliados a esses fatores, observa-se o desenvolvimento histórico do Estado japonês
moderno durante os primeiros anos do século XX. A crescente atmosfera de militarismo e
nacionalismo exerce um papel preponderante para o enraizamento das doutrinas bélicas e de
violência pessoal que viriam a ganhar terreno quando da progressão japonesa na Ásia. Os
combatentes nipônicos experimentariam uma grande possibilidade de colocar em prática tudo
quanto tinham sido doutrinados a viver.
As apavorantes histórias de sobreviventes do massacre de Nanquim, em retrospectiva,
sugerem realmente que não havia limites para os assassinatos na cidade. As torturas e os
estupros, que também não tinham limites, tornam ainda mais complicado de se compreender a
paixão que os japoneses empregavam para destruir o inimigo derrotado. As ideias atreladas à
guerra eram realmente muito fortes.
Os soldados japoneses em Nanquim não agiam simplesmente por conta própria, e isso
a própria constituição do Estado japonês e do Exército Imperial confirmam. A forte devoção e
disciplina empregados no Exército contribuem para que se descarte a possibilidade de que os
eventos em Nanquim representem numerosos casos de indisciplina e insubordinação por parte
dos soldados.
Na verdade, a pesquisa procurou evidenciar que, ao contrário disso, não se pode falar
efetivamente de ações individuais no caso do referido massacre. O gigantesco número de
casos de estupros, espancamentos e atos de brutalidades desmancha a hipótese de que os
124
soldados pudessem estar agindo fora de controle. E, nesse sentido, a própria participação de
oficiais nos episódios de violência contribui para o entendimento de que as ações não eram
cometidas a esmo.
A maneira dissimulada e apática com que as autoridades japonesas em Nanquim
encaravam as denúncias contra o Exército sugere que, mesmo que oficialmente a política
japonesa que era professada fosse de reestabelecimento da ordem e garantia de salvaguarda da
população civil, o que as ações práticas demonstraram é que essas autoridades no mínimo não
davam muita atenção aos episódios de violência na cidade.
Além do mais, os assuntos referentes às ações do Exército Imperial na Ásia eram tabus
na imprensa japonesa e o governo nipônico procurava a todo momento encobrir e camuflar as
notícias que prejudicassem a reputação do país na esfera internacional. Mesmo que não haja
indícios de que o massacre de Nanquim tenha sido planejado, as evidências sugerem que as
ações violentas na cidade serviam a um propósito mais amplo de dominação dos japoneses no
sudeste asiático.
Tudo leva a crer que, na verdade, os japoneses acreditavam que as notícias de
Nanquim divulgadas no interior da China possibilitariam uma vitória ainda mais rápida dos
japoneses, já que a rendição seria mais vantajosa do que a ocorrência de outros Nanquins. Na
verdade, tudo fazia parte de um grande esquema de dominação imperialista japonesa do
sudeste asiático, lembrando, é claro, do anseio dos japoneses em contrapor-se aos ocidentais.
O fato é que os cidadãos da cidade chinesa estiveram à mercê de toda sorte de
atrocidades e barbaridades nas mãos dos combatentes japoneses. Durante as seis semanas de
terror a que foram submetidos, os chineses – e, indiretamente, os ocidentais que estavam na
cidade – presenciaram e foram vítimas dos mais terríveis tipos de violência física e
psicológica que representariam aquilo que seria conhecido como o holocausto esquecido da
Segunda Guerra.
125
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Sites:
Documentos acerca do massacre de Nanquim
http://www.library.yale.edu/div/Nanking/findingaid.html acessado em: 16/09/2012 às 12:10 h
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ANEXOS
Anexo I: Carta de George Atcheson, Jr, Segundo Secretário da Embaixada Americana, para
"todos os americanos em Nanquim”.
130
Anexo II: Lista de cidadãos americanos vivendo em Nanquim, em 23 de novembro de 1937
131
132
Anexo III: Total de estrangeiros em Nanquim quando da entrada do Exército Imperial
133
134
Anexo IV: Correspondência entre os membros do Comitê Emergencial da Universidade de
Nanquim e a Embaixada japonesa.
135
136
Anexo V: Carta do prof. Bates, endereçada à embaixada japonesa em Nanquim.
137
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