View
745
Download
2
Category
Preview:
Citation preview
Carlos Ruiz Zafón
O Prisioneiro do Céu
Planeta
PLANETA MANUSCRITO Rua do Loreto, n.° 16 - 1.° Direito 1200-242 Lisboa • Portugal
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor
© 2011, Carlos Ruiz Zafón © 2011, Planeta Manuscrito
Título original: El Prisionero dei Cielo Tradução: Sérgio Coelho
Editing: Editorial Planeta
Revisão: Fernanda Fonseca
Paginação: Guidesign
l.a edição: Junho de 2012
Depósito legal n.° 344754/12
Impressão e acabamento: Guide - Artes Gráficas
ISBN: 978-989-657-300-3
www.planeta.pt
O Cemitério dos Livros Esquecidos
ESTE livro integra um ciclo de romances que se enredam no universo literário do Cemitério dos
Livros Esquecidos. Os romances que fazem parte deste ciclo interligam-se através de
personagens e fios argumentais, que estendem pontes narrativas e temáticas, ainda que cada um
se constitua como uma história fechada, independente e válida por si só.
Os diferentes títulos relativos à série do Cemitério dos Livros Esquecidos poderão ser lidos
por qualquer ordem ou separadamente, permitindo ao leitor explorar e aceder ao labirinto de
histórias através de diferentes portas e caminhos, que, quando interligados, o irão conduzir ao
coração da narrativa.
SEMPRE soube que, um dia, regressaria a estas ruas para contar a história do homem que perdeu a
alma e o nome, por entre as sombras daquela Barcelona submersa no turvo sono de um tempo de
cinzas e de silêncio. São páginas escritas a fogo, escoradas na cidade dos malditos, palavras
gravadas na memória do que regressou dos mortos com uma promessa cravada no coração e
arrastando o peso de uma maldição. O pano sobe, o público faz silêncio e, antes de a sombra que
paira sobre o seu destino fazer a sua aparição, um elenco de espíritos brancos entra em cena, de
comédia nos lábios e com a bendita inocência de quem, tendo o terceiro acto por derradeiro, nos
vem narrar um conto de Natal, ignorando que, ao virar a última página, a tinta do seu esforço o
arrastará lenta e inexoravelmente para o coração das trevas.
JULIÁN CARAX, O Prisioneiro do Céu Éditions de la Lumière, Paris, 1992
Primeira parte
Um conto de Natal
1Barcelona, Dezembro de 1957
NAQUELE ano, o Natal teimou em amanhecer invariavel
mente vestido de chumbo e de geada. Uma penumbra azulada tingia a cidade, as pessoas
caminhavam apressadas, agasalhadas até às orelhas e com a respiração a esboçar espirais de
vapor no frio reinante. Eram poucos os que, nesses dias, se detinham para observar a montra da
Sempere e Hijos, e menos ainda os que se aventuravam a entrar e a perguntar pelo tal livro
perdido que por eles aguardara a vida inteira e cuja venda, poesias à parte, teria contribuído para
remediar as precárias finanças da livraria.
- Acho que hoje será o dia. Hoje, a nossa sorte irá mudar - proclamei aquando do primeiro
café do dia, optimismo puro em estado líquido.
O meu pai, que desde as oito horas daquela manhã batalhava com o livro de contabilidade,
fazendo malabarismos com o lápis e a borracha, ergueu os olhos do balcão e observou o desfile
de clientes fugidios, perdendo-se rua abaixo.
- Que o céu te ouça, Daniel, porque, por este andar, e se a época natalícia não nos for
favorável, em Janeiro nem sequer conseguiremos pagar a factura da electricidade. Alguma coisa
teremos de fazer.
- Ontem, o Fermín teve uma ideia - adiantei. - Na sua opinião, trata-se de um plano
magistral para salvar a livraria da insolvência iminente.
- Deus nos acolha puros de coração.
Citei textual:
- Talvez, se me pusesse de cuecas a decorar a montra, conseguíssemos que uma fêmea ávida de
literatura e de emoções fortes aqui entrasse e fizesse compras, porque, e de acordo com os
especialistas, o futuro da literatura depende das mulheres, e até Deus jurará que está ainda por
nascer criatura capaz de resistir aos atractivos agrestes deste corpo serrano - declamei.
Ouvi, nas minhas costas, o lápis do meu pai a cair ao chão, fazendo-me voltar.
- Fermín dixit - acrescentei.
Pensava que o meu pai iria sorrir perante a ideia de Fermín, mas, ao verificar que não dava
mostras de despertar do seu silêncio, olhei-o de esguelha. O mais velho dos Sempere não só pare-
cia não ter achado graça a tamanho disparate como assumira uma expressão meditabunda, como
se equacionasse tomá-lo a sério.
- Bem vistas as coisas, parece que foi o Fermín a descobrir a pólvora - murmurou.
Observei-o com incredulidade. Talvez a míngua comercial que nos fustigara nas últimas
semanas tivesse acabado por afectar a mente sã do meu progenitor.
- Não me vais dizer que lhe permitirás passear-se em trajes menores pela livraria.
- Não, nada disso. Tem a ver com a montra. Ao falares nisso, acabei por ter uma ideia...
Talvez ainda estejamos a tempo de salvar o Natal.
Vi-o desaparecer para as traseiras da livraria, regressando, pouco depois, agasalhado com o
seu uniforme oficial de Inverno: o mesmo casaco, cachecol e chapéu que lhe conhecia desde
criança. Bea costumava dizer que suspeitava que o meu pai não tornara a comprar roupa desde
1942, e todos os indícios apontavam para que a razão estivesse do lado da minha mulher.
Enquanto calçava as luvas, o meu pai sorria subtilmente, sendo perceptível nos seus olhos aquele
brilho quase infantil, que apenas lhe reconhecia aquando de grandes iniciativas.
- Deixo-te só por um bocado - informou. - Vou sair para tratar de um assunto.
- Posso saber aonde vais?
O meu pai piscou-me o olho.
- É surpresa. Depois verás.
Segui-o até à porta e vi-o partir, com passo decidido, na direcção da Puerta dei Ángel, uma
silhueta mais, por entre a maré cinzenta de transeuntes a enfrentar um novo longo Inverno de
sombra e de cinzas.
APROVEITANDO o facto de ter ficado sozinho, decidi ligar o rádio para me entreter com alguma
música, enquanto reordenava a meu gosto os livros nas estantes. O meu pai considerava que não
era conveniente manter o rádio ligado na livraria na presença de clientes e, se o ligasse com
Fermín presente, este desatava a entoar saetas a pretexto de qualquer melodia - ou, pior ainda, a
dançar o que designava por «ritmos sensuais das Caraíbas» -, o que, poucos minutos depois, me
punha de nervos em franja. Tendo em conta tais dificuldades logísticas, concluíra que deveria
limitar o meu gozo das ondas de rádio aos raros momentos em que, além de mim e de milhares
de livros, mais ninguém se encontrasse na loja.
A Radio Barcelona emitia, naquela manhã, uma gravação clandestina, que um coleccionador
fizera, de um magnífico concerto que o trompetista Louis Armstrong e a sua banda haviam dado
no Hotel Windsor Palace, na Diagonal, há três natais. Nos intervalos publicitários, o locutor não
hesitava em classificar aquele som como liasse e advertia que algumas daquelas síncopes
irreverentes poderiam revelar-se inapropriadas para o gosto do ouvinte nacional formado nos
ritmos da tonadilha, do bolero e do ainda incipiente movimento ye-ye, que dominavam as ondas
por esta altura.
Fermín costumava dizer que, se Don Isaac Albéniz tivesse nascido negro, o jazz seria
inventado em Camprodón, como as bolachas em lata, e que, como os sutiãs pontiagudos exibidos
pela sua adorada Kim Novak em alguns dos filmes a que podíamos assistir nas sessões da manhã
do Cinema Fémina, aquele som era uma das escassas conquistas da humanidade nos já
decorridos anos do século xx. Não ousava contra-argumentar. Deixei passar o resto daquela
manhã cativado pela magia da música e pelo cheiro dos livros, saboreando a serenidade e a
satisfação transmitidas pelo trabalho prosseguido com consciência.
Fermín tirara a manhã para, segundo disse, concluir os preparativos do seu casamento com
Bernarda, previsto para o princípio de Fevereiro. Da primeira vez que havia falado no assunto, há
apenas duas semanas, todos lhe dissemos que se estaria a precipitar e que, com pressa, não se
chega a lugar algum. O meu pai tentou convencê-lo a adiar a cerimónia em, pelo menos, dois ou
três meses, argumentando que os casamentos se deviam realizar no Verão e na altura do bom
tempo, mas Fermín insistira em manter a data, alegando que ele, criatura forjada no inclemente
clima seco das colinas estremenhas, transpirava profusamente chegado o Verão da costa
mediterrânica, que tinha por subtropical, e nem por sombras quereria apresentar-se na sua
cerimónia de casamento com manchas do tamanho de rabanadas nos sovacos.
Começava a pensar que alguma coisa estranha estaria a acontecer para que Fermín Romero
de Torres, bandeira hasteada da resistência civil contra a Santa Madre Igreja, a banca e os bons
costumes, naquela Espanha de missa e de NO-D O1 dos anos de 1950, manifestasse tamanha
urgência em subir ao altar. No seu zelo pré-matrimonial, chegara ao extremo de fazer amizade
com o novo pároco da Igreja de Santa Ana, Don Jacobo, sacerdote originário de Burgos, de
ideário liberal e modos de pugilista reformado, que contagiara com a sua desenfreada paixão pelo
dominó. Aos domingos, depois da missa, Fermín e ele defrontavam-se em partidas históricas, no
Bar Almirall, com o sacerdote a rir a bom rir quando o meu amigo lhe perguntava, entre um e
1 Acrónimo de Noticiários y Documentales. Foram instituídos pelo regime franquista a partir de 1942, com finalidade
predominantemente propagandística. Tratava-se de noticiários projectados obrigatoriamente nas salas de cinema antes da exibição de um
filme. (N. do T.)
outro cálice de aromas de Montserrat, se lhe poderia garantir que as freiras teriam mesmo coxas
e, se assim fosse, se seriam tão roliças e mordiscáveis como vinha suspeitando desde a
adolescência.
- O senhor acabará por fazer com que o excomunguem - repreendia-o o meu pai. - As freiras
não são nem para olhar nem para tocar.
- Todavia, este nosso clérigo é quase mais libertino do que eu - protestava Fermín. - Não
fosse pelo hábito...
Estava eu a recordar aquela discussão, trauteando ao som do trompete de mestre Armstrong,
quando ouvi a sineta sobre a porta da livraria emitindo o seu ténue tilintar e ergui então a
cabeça, esperando deparar com o meu pai, que regressava da sua missão secreta, ou com Fermín,
preparado para iniciar o turno da tarde.
- Bom dia - entoou uma voz grave e áspera a partir da ombreira da porta.
À contraluz da rua, a sua silhueta assemelhava-se a um tronco açoitado pelo vento. O
visitante vestia fato escuro e de corte antiquado e desenhava uma figura sombria apoiada numa
bengala. Deu um passo em frente, coxeando visivelmente. A claridade da lâmpada que incidia
sobre a montra revelou um rosto enrugado pelo tempo. O visitante observou-me por alguns ins-
tantes, analisando-me sem pressa. O seu olhar tinha algo semelhante ao de uma ave de rapina,
paciente e calculista.
- É o senhor Sempere?
- Sou o Daniel. O senhor Sempere é o meu pai, mas, de momento, não se encontra. Posso
ajudá-lo nalguma coisa?
O visitante ignorou a minha pergunta e começou a deambular pela livraria, examinando
tudo palmo a palmo e com um interesse que raiava a cobiça. O coxear de que sofria fazia pensar
que as lesões que se ocultavam sob aquelas roupas eram bastante sérias.
- Recordações da guerra - disse o estranho, como se lesse os meus pensamentos.
Segui-o com o olhar enquanto ia inspeccionando a livraria, suspeitando já do local onde
pretenderia ancorar. Tal como supusera, o estranho deteve-se em frente da vitrina de ébano e
vidro, relíquia da fundação da livraria na sua primeira encarnação por volta do ano de 1888,
quando o tetravô Sempere, então um jovem acabado de regressar das suas aventuras índias por
terras das Caraíbas, contraíra um empréstimo para adquirir uma antiga luvaria e transformá-la
em livraria. Aquela vitrina, lugar de honra da loja, era tradicionalmente onde guardávamos os
exemplares mais valiosos.
O visitante aproximou-se dela o suficiente para que a respiração se desenhasse no vidro.
Retirou da algibeira um par de óculos, que levou aos olhos, e dedicou-se a estudar o conteúdo da
vitrina. Os seus modos recordaram-me os de uma doninha, cheirando, num galinheiro, ovos
acabados de pôr.
- Belo exemplar - murmurou. - Deve valer bastante.
- E uma antiguidade familiar. Na verdade, tem um valor predominantemente sentimental -
informei, perturbado pelos juízos e considerações daquele peculiar cliente, que, com o olhar,
parecia trespassar o próprio ar que respirávamos.
Pouco depois, guardou os óculos e falou num tom pausado.
-Julgo saber que trabalha convosco um senhor de reconhecido engenho.
Como não respondi de imediato, voltou-se, dirigindo-me um desses olhares capazes de
envelhecer aquele que os vê.
- Como pode verificar, estou sozinho. Mas, se o senhor me disser o título que pretende, terei
o maior prazer em procurá-lo.
O estranho esboçou um sorriso que parecia tudo menos amigável, acabando por concordar.
- Vejo que expõem nesta vitrina um exemplar de O Conde de Monte Cristo.
Não era o primeiro cliente que reparava naquele exemplar. Contemplei-o com o discurso
oficial que reservávamos para tais ocasiões.
- O senhor tem um olhar perspicaz. É uma edição magnífica, numerada, com ilustrações de
Arthur Rackham e proveniente da biblioteca pessoal de um grande coleccionador de Madrid.
Uma peça única e catalogada.
O visitante ouviu-me com desinteresse, centrando a atenção na consistência dos painéis de
ébano das estantes e evidenciando com clareza que as minhas palavras o aborreciam.
- A mim, todos os livros me parecem iguais, mas gosto do azul da capa - replicou num tom
depreciativo. - Quero-o.
Noutras circunstâncias, teria dado um salto de alegria por conseguir vender aquele que,
decerto, seria o exemplar mais caro da livraria, mas havia algo na ideia de aquela edição acabar
nas mãos desta personagem que me revolvia o estômago. Alguma coisa me dizia que, se aquele
volume saísse da livraria, jamais alguém viria a ler sequer o primeiro parágrafo.
- É uma edição muito cara. Se o senhor quiser, poderei mos- trar-lhe outras edições da
mesma obra, em perfeito estado de conservação e a preços mais acessíveis.
As pessoas de alma pequena rebaixam sempre os outros e aquele estranho, que intuí
esconder a sua alma na cabeça de um alfinete, contemplou-me com o seu mais tenso olhar de
desdém.
- E que também têm capa azul - acrescentei.
Ignorou a impertinência da minha ironia.
- Não, obrigado. E este que quero. Não estou preocupado com o preço.
Assenti a contragosto, dirigindo-me à vitrina. Conseguia sentir os olhos do estranho cravados
nas minhas costas.
- Tudo o que é bom está sempre fechado à chave - comentou em voz baixa.
Peguei no livro e suspirei.
- O senhor é coleccionador?
- Pode dizer-se que sim. Embora não de livros.
Voltei-me com o exemplar nas mãos.
- E que colecciona o senhor?
De novo, o estranho ignorou a minha pergunta, estendendo o braço para que lhe entregasse
o livro. Tive de resistir ao impulso de devolver o livro à vitrina e de a tornar a fechar à chave. O
meu pai não me perdoaria se deixasse escapar a oportunidade de concretizar uma venda destas,
nos tempos que corriam.
- Custa trinta e cinco pesetas - informei-o antes de lhe estender o livro, na esperança de que
tal quantia o fizesse mudar de opinião.
Concordou sem pestanejar, retirando uma nota de cem pesetas do bolso daquele casaco que
não deveria sequer valer um duro. Perguntei-me se não seria uma nota falsa.
- Receio não possuir troco para essa nota, senhor.
Poderia ter-lhe pedido que aguardasse uns instantes, enquanto corria ao banco mais próximo
para a trocar e, também, me certificar de que era autêntica, mas não queria deixá-lo sozinho na
livraria.
- Não se preocupe. É genuína. E sabe como pode verificar?
O estranho ergueu a nota à contraluz.
- Observe a marca-d agua. E estas linhas. A textura...
- O senhor é especialista em falsificações?
- Tudo neste mundo é falso, jovem. Tudo, menos o dinheiro.
Pôs-me a nota na palma da mão e apertou-ma, dando palmadinhas nos nós dos dedos.
- Gastarei o troco na minha próxima visita - disse.
- É muito dinheiro, senhor. São sessenta e cinco pesetas...
- É uma ninharia.
- De qualquer modo, faço-lhe uma nota de crédito.
- Confio em si.
O estranho examinou o livro com ar indiferente.
- Trata-se de uma oferta. Peço que sejam vocês a fazer a entrega.
Hesitei um instante.
- Por norma, não fazemos entregas, mas, neste caso, teremos todo o gosto em nos
encarregarmos da entrega, e sem qualquer custo acrescido. Posso perguntar-lhe se será na cidade
de Barcelona ou...
- É aqui mesmo - disse.
A frieza do seu olhar parecia denunciar anos de raiva e rancor.
- O senhor deseja fazer alguma dedicatória ou colocar uma nota pessoal antes de o
embrulhar?
O visitante, com dificuldade, abriu o livro no fronstispício. Verifiquei então que a sua mão
esquerda era postiça, uma peça de porcelana pintada. Retirou do bolso uma caneta de tinta per-
manente e escreveu umas palavras. Devolveu-me o livro e virou costas. Observei-o a coxear até à
porta.
- Teria a amabilidade de me indicar o nome e o endereço do local onde quer que a entrega
seja feita? - perguntei.
- Está tudo aí - disse, sem sequer olhar para trás.
Abri o livro e procurei a página com a dedicatória, que o estranho redigira pelo seu próprio
punho e caligrafia:
Para Feemín Romero de Torres, (que regressou de entre os mortos eposuí a chave do fiuturo)
Ouvi então a sineta da entrada e, quando olhei, já o estranho havia partido.
Dirigi-me apressado até à porta e espreitei para a rua. O visitante afastava-se a coxear,
misturando-se com as silhuetas que atravessavam o véu de bruma azul que varria a Calle Santa
Ana. Ia chamá-lo, mas mordi a língua. O mais fácil seria tê-lo deixado caminhar sem mais, mas o
instinto e a minha tradicional falta de prudência e de sentido prático impuseram-se.
PENDUREI o cartaz de «Encerrado» e fechei a porta à chave, disposto a seguir o estranho por
entre a multidão. Sabia que, se o meu pai regressasse - que por uma vez me deixara sozinho, no
meio da aridez de vendas - e descobrisse que havia abandonado o posto de trabalho, não me
livraria de uma reprimenda, mas decerto encontraria alguma desculpa pelo caminho. Preferi
confrontar-me com a fúria contida do meu pai em vez de engolir a perturbação que me deixara
no corpo aquela sinistra personagem, e não saber a verdadeira natureza da sua relação com
Fermín.
Um livreiro de profissão dispõe de poucas ocasiões para aplicar na prática a requintada arte
de seguir um suspeito sem ser descoberto. A não ser que boa parte dos seus clientes seja cons-
tituída por caloteiros, a maioria dessas oportunidades é-nos oferecida no catálogo de romances
policiais e outras narrativas de cordel que têm nas suas estantes. O hábito não faz o monge, mas
o crime ou a sua presunção fazem o detective, sobretudo o amador.
Enquanto seguia aquele estranho rumo às Ramblas, fui rememorando as noções básicas,
começando por deixar uma distância de, pelo menos, 50 metros entre nós, esconder-me atrás de
alguém de maior envergadura e ter sempre previsto um esconderijo rápido, fosse numa porta de
uma casa ou numa loja, se se desse o caso de a pessoa seguida parar e, imprevisivelmente, decidir
olhar para trás. Ao chegar às Ramblas, o estranho atravessou o passeio central, encaminhando-se
depois para o porto. O passeio estava decorado com os tradicionais enfeites natalícios, vendo-se
mais de uma loja exibindo as suas próprias iluminações, estrelas e anjos anunciadores de uma
bonança que, confirmada pela rádio, não devia ser certa.
Naqueles anos, o Natal conservava ainda um certo ar de magia e de mistério. O pó de luz do
Inverno, o olhar e a esperança de pessoas que viviam rodeadas de sombras e de silêncios confe-
riam àquele panorama um leve perfume a verdade, no qual, pelo menos as crianças e aqueles que
haviam aprendido a esquecer, ainda poderiam acreditar.
Talvez por isso me pareceu ainda mais evidente que não existiria em todo aquele magote de
gente pessoa menos natalícia e desenquadrada do que o estranho que queria seguir. Coxeava com
lentidão, parando com frequência junto de uma loja de aves ou de uma florista, admirando
periquitos e rosas como se nunca os tivesse visto. Por algumas vezes, aproximou-se de quiosques
de venda de jornais, que proliferavam nas Ramblas, entretendo-se a mirar as primeiras páginas
de jornais e revistas, bem como a fazer rodopiar os suportes para postais. Dir-se-ia que nunca
aqui estivera, comportando-se como uma criança ou turista que passeasse pelas Ramblas pela
primeira vez, ainda que as crianças e os turistas costumem exibir uma inocência passageira típica
das pessoas que não sabem bem onde estão, e aquele indivíduo nunca houvera cheirado a
inocência nem com a bênção do Menino Jesus, com cuja efígie se cruzara ao passar em frente à
Igreja de Belén.
Deteve-se então, parecendo cativado por uma catatua de plumagem rosa-clara, que, dentro
de uma gaiola, o olhava de esguelha numa loja de aves em frente ao cruzamento com a
Puertaferrisa. O estranho aproximou-se da gaiola da mesma forma que da montra da livraria,
começando a murmurar algumas palavras para a catatua. A ave, um exemplar portentoso e com
uma envergadura de galo-capão, de luxuosa plumagem, para além de ter sobrevivido ao hálito
sulfúrico do estranho, mostrou-se com empenho e concentração bastante interessada no que o
visitante lhe estava a dizer. Se dúvidas houvesse, a catatua abanava repetidas vezes a cabeça e,
visivelmente excitada, erguia a crista de penas cor-de-rosa.
Passados alguns minutos, o estranho, satisfeito com o seu intercâmbio aviário, prosseguiu
caminho. Não haviam decorrido sequer trinta segundos quando, ao passar em frente à loja de
pássaros, pude verificar que se gerara um pequeno burburinho, com o empregado,
envergonhado, a apressar-se a cobrir a gaiola com uma lona, dado que a ave começara a repetir,
com uma dicção perfeita, o estribilho «Franco, cabrito<, no se te levanta el pito», e não tive
qualquer dúvida em perceber com quem o aprendera. Pelo menos, o estranho denotava algum
sentido de humor e convicções arriscadas, o que, naquela época, era tão raro como saias acima
do joelho.
Distraído pelo incidente, pensei tê-lo perdido de vista, mas depressa vislumbrei a sua
silhueta estropiada em frente à montra da Joalharia Bagués. Avancei dissimulado até uma das
barraquinhas de escreventes que ladeavam a entrada do Palácio de la Virreina, observando-o
com atenção. Os olhos brilhavam-lhe como rubis e o espectáculo de ouro e de pedras preciosas
atrás da montra à prova de bala parecia ter-lhe despertado uma luxúria tal, que nem sequer todo
um corpo de coristas de La Criolla, nos seus anos de glória, conseguiria fazê-lo.
- Uma carta de amor, um requerimento, uma súplica dirigida à excelência que pretender,
uma carta-padrão do tipo serve-a- -presente-para-dizer-que-estamos-bem, para enviar aos
familiares da província, jovem?
O escrevente da barraquinha que elegera como esconderijo espreitara pela guarita, qual
sacerdote confessor, observando- -me ansioso por me oferecer os seus serviços. O cartaz afixado
na janela rezava:
Oswaldo Dario de Mortenssen
Literato e pensador.
Escrevem-se cartas de amor, petições, testamentos, poemas, convites, felicitações, requerimentos,
declarações de pêsames, hinos, dissertações, súplicas, requisições e composições diversas, em todos os
estilos e métricas. Dez cêntimos por frase (excluindo rimas). Preços especiais para viúvas, mutilados e
menores.
- O que me diz, jovem? Uma carta de amor, dessas que levam as raparigas em idade núbil a
encharcarem o saiote com as secreções do desejo? Por ser quem é, faço-lhe um preço especial.
Mostrei-lhe a aliança de casamento. O escrevente Oswaldo encolheu os ombros, impávido.
- Vivemos em tempos modernos - argumentou. - Se o senhor fizesse ideia da quantidade de
casados e de casadas que aqui vêm...
Reli o cartaz, que me era familiar, embora não soubesse ao certo porquê.
- O seu nome não me é estranho...
-Já vivi melhores tempos. Talvez fosse dessa altura.
- É mesmo quem anuncia ser?
- Nom de plume. Úm artista necessita de uma assinatura digna da sua arte. Na minha
certidão de nascimento, reza o nome de Jenaro Rebollo, mas quem confiaria a redacção de uma
carta de amor a alguém com tal nome? E então, o que me diz à oferta do dia? Sai uma carta
repleta de paixão e de saudades?
- Numa outra vez.
O escrevente anuiu, resignado. Seguiu o meu olhar e franziu o sobrolho, intrigado.
- Está a observar o coxo, não é? - acabou por dizer.
- O senhor conhece-o? - perguntei.
- Há já uma semana que o vejo passar por aqui todos os dias, estacando, embasbacado, em
frente à montra da joalharia, como se, em vez de anéis e colares, estivesse exposto o traseiro da
Bella Dorita - explicou.
- Alguma vez falou com ele?
- Um dia destes um dos meus colegas passou-lhe uma carta a limpo; como lhe faltam
dedos...
- E quem foi? - perguntei.
O escrevente observou-me hesitante, receoso, no caso de não responder, de vir a perder um
potencial cliente.
- Luisito. É aquele que está ali em frente, ao lado da Casa Beethoven, o que tem cara de
seminarista.
Ofereci-lhe umas moedas como agradecimento, mas recusou- -se a aceitá-las. .
- Ganho a vida com a pena, não com a boca. E por se falar de mais que as coisas estão como
estão. Se um dia tiver qualquer necessidade de índole gramatical, aqui me tem.
Entregou-me um cartão, onde se reproduzia o texto do cartaz de propaganda.
- De segunda-feira a sábado, das oito às oito - precisou. - Oswaldo, soldado da palavra, para
o servir a si e à sua causa epistolar.
Guardei o cartão e agradeci-lhe a ajuda.
- Olhe que o pombo se lhe escapa - alertou.
Ao voltar-me, vi que o estranho retomara o caminho. Apressei-me no seu encalço e segui-o
Ramblas abaixo, até à entrada do Mercado de la Boquería, onde parou para contemplar o
espectáculo de bancas e de pessoas a entrarem e a saírem, carregando ou descarregando
apetitosas e ricas carnes. Vi-o coxear até ao balcão do Bar Pinocho, subindo para um dos bancos
altos com dificuldade, mas com entusiasmo. Durante meia hora, o estranho tentou dar vazão às
delícias que lhe iam sendo servidas pelo filho mais novo do proprietário, o Juanito, mas tive a
sensação de que a sua saúde não lhe permitia grandes excessos, pelo que, acima de tudo, comia
com os olhos, como se, ao pedir tapas e petiscos que nem podia provar, recordasse tempos mais
gloriosos. O paladar não se saboreia, apenas se recorda. Por fim, resignando-se à abstinência
gastronómica e ao prazer vicário da contemplação de como outros degustavam e se regozijavam,
o estranho pagou a conta e prosseguiu o seu périplo até ao cruzamento com a Calle Hospital,
onde, pelos acasos da irrepetível geometria de Barcelona, convergiam com uma das grandes salas
de ópera da velha Europa e um dos bordéis mais rodados do hemisfério norte.
ÀQUELA hora, as tripulações de diversos navios mercantes e de embarcações militares
atracados no porto aventuravam- -se Ramblas acima, para saciar apetites de índole diversa. Dada
a procura, a oferta confluíra já para a esquina, na forma de um bando de mulheres de aluguer
com aspecto de apresentarem grande rodagem na vida e de se disponibilizarem a oferecer os seus
serviços ao mais convidativo dos preços. Reparei, apreensivo, nas saias justas por cima das varizes
pálido roxo que doíam só de ver, nos rostos cansados e na atmosfera de última representação
antes da retirada que inspirava tudo menos lascívia. Muitos meses teria um marinheiro de passar
no alto mar para morder aquele anzol, pensei, mas, para minha surpresa, o estranho deteve-se a
namoriscar com duas daquelas acabadas damas, sem levar em conta as muitas primaveras sem
flor, a elas se dirigindo como se fossem beldades de refinado cabaré.
- Vamos, crido, que te tiro vinte anos de cima numa só voltinha - ouvi dizer a uma delas, que
passaria por avó do escrevente Oswaldo.
Uma voltinha e mata-o, pensei. O estranho, numa atitude prudente, rejeitou o convite.
- Outro dia, rapariga - retorquiu, aventurando-se no El Raval.
Segui-o durante mais uma centena de metros, até que se
deteve junto de um portão estreito e escuro, quase em frente à Pensão Europa. Vi-o desaparecer
no interior, pelo que aguardei meio minuto antes de retomar a perseguição.
Ao atravessar a porta, deparei com umas escadas sombrias, que se perdiam nas entranhas
daquele edifício que parecia manter-se em pé devido às escoras que o sustentavam e que, tendo
em conta o fedor a humidade e as canalizações deterioradas, deveria estar prestes a afundar-se
nas catacumbas do El Raval. De um dos lados do átrio, situava-se uma espécie de guarita, onde
um indivíduo de aspecto sebento, vestido com camisola de alças e de palito nos lábios, com o
rádio sintonizado numa emissora de cariz tauromáquico, me dirigiu um olhar entre o inquisitivo
e o hostil.
- Vem sozinho? - perguntou, um pouco intrigado.
Não era necessário ser muito esperto para deduzir que estava à entrada de um
estabelecimento de aluguer de quartos à hora, e que a única nota dissonante era que eu não
vinha pela mão de uma das Vénus de pacotilha que andavam pela esquina.
- Se desejar, arranjo-lhe uma rapariga - disponibilizou-se, preparando-me já o conjunto de
toalha, sabonete e aquilo que intuí tratar-se de um artigo de borracha ou, porventura, um qual-
quer profiláctico recurso.
- Na verdade, queria apenas fazer-lhe uma pergunta - comecei.
O porteiro revirou os olhos.
- São vinte pesetas por cada meia hora e a gaja fica por sua conta.
- Não deixa de ser tentador. Talvez outro dia. Aquilo que gostaria de lhe perguntar é se, há
poucos minutos, não terá subido um senhor idoso, um pouco alquebrado. Vinha sozinho, sem
potranca.
O porteiro franziu o sobrolho. Vi que o seu olhar me despromovia instantaneamente do
estatuto de cliente para o de mosca varejeira.
- Não vi ninguém. Vamos, ponha-se a andar antes que chame o Tonet.
Calculei que o tal Tonet não seria uma personagem recomendável. Coloquei as moedas que
me restavam sobre o balcão e, numa atitude conciliadora, sorri para o porteiro. O dinheiro
desapareceu, qual insecto em língua de camaleão, como se os dedos do porteiro com dedeiras a
isso se pudessem comparar. Num ápice, deixou de existir.
- O que quer saber?
- Vive aqui o senhor que lhe descrevi?
- Tem aqui um quarto arrendado há uma semana.
- Sabe como se chama?
- Pagou um mês adiantado, não lho perguntei.
- Sabe de onde vem, o que faz?
- Isto não é um consultório sentimental. Aqui, nada perguntamos às pessoas que vêm
fornicar. E, quanto a esse, nem sequer fornica. Ou seja, basta-nos que pague.
Reconsiderei a abordagem.
- A única coisa que sei é que, de vez em quando, sai por algum tempo, acabando por
regressar. Por vezes, pede-me para lhe mandar lá acima uma garrafa de vinho, pão e algum mel.
Paga bem e não chateia.
- E tem a certeza de que não se recorda de ele ter mencionado qualquer nome?
Negou.
- Muito bem. Obrigado e desculpe o incómodo.
Preparava-me já para partir quando o porteiro me chamou.
- Romero - disse.
- Perdão?
- Parece-me que disse chamar-se Romero ou alguma coisa parecida...
- Romero de Torres?
- Isso mesmo.
- Fermín Romero de Torres? - repeti, incrédulo.
- Isso mesmo. Não havia um toureiro com esse nome, antes da guerra? - perguntou o
porteiro. - Sabia que esse nome me dizia qualquer coisa...
PERCORRI o caminho de regresso à livraria ainda mais confuso do que antes de sair. Ao passar
em frente ao Palácio de la Virreina, o escrevente Oswaldo cumprimentou-me com um gesto de
mão.
- Teve sorte? - perguntou.
Neguei peremptório.
- Tente com o Luisito, talvez ele se recorde de alguma coisa.
Anuí e dirigi-me à guarita do tal Luisito, que, naquela altura,
estava a limpar a sua colecção de aparos de caneta. Sorriu-me assim que me viu, convidando-me
a sentar.
- O que vai ser? Amor ou trabalho?
- Foi-me aconselhado pelo seu colega Oswaldo.
- O mestre de todos nós - sentenciou Luisito, que não deveria ter sequer vinte e cinco anos. -
Um grande senhor das letras, ao qual o mundo não reconheceu o justo valor. E aqui está ele, em
plena rua, a manejar o verbo ao serviço dos analfabetos.
- O Oswaldo disse-me que, há uns dias, teve por cliente um senhor idoso, coxo e bastante
adoentado, sem uma das mãos e alguns dedos da outra...
- Recordo-me dele. Recordo-me sempre dos manetas. E é por causa do Cervantes, sabia?
- Compreendo. E podia dizer-me qual foi o assunto que o trouxe aqui?
Luisito ajeitou-se na cadeira, perturbado com o rumo que a conversa tomara.
- Compreenda... isto é quase um confessionário. O segredo profissional está acima de tudo.
- Tenho consciência disso. A questão é que se trata de um assunto grave.
- Grave a que ponto?
- O suficiente para pôr em causa o bem-estar de pessoas que me são muito queridas.
- Sim, mas...
Luisito esticou o pescoço, procurando o olhar de mestre Oswaldo, do outro lado do largo. Ao
verificar que este concordava, Luisito relaxou.
- O senhor trazia consigo uma carta que escrevera e que gostava de passar a limpo e com
melhor caligrafia, dado que, com aquela mão...
- E nessa carta falava de...
- Mal me recordo... tenha em conta que são muitas as cartas que redigimos diariamente...
- Esforce-se, Luisito. Em nome de Cervantes.
- Parece-me, ainda que corra o risco de me confundir com a carta de outro cliente, que tinha
a ver com uma quantia de dinheiro, que o senhor maneta iria receber ou recuperar ou algo
assim... E qualquer coisa sobre uma chave.
- Uma chave?!
- Isso mesmo. Não especificou se seria inglesa, de artes marciais ou de uma porta.
Luisito sorriu-me, notoriamente satisfeito pela eloquência e engenho que trouxera à
conversa.
- Recorda-se de mais alguma coisa? Luisito mordiscou os lábios, pensativo.
- Disse que via que a cidade mudara muito.
- Que mudara muito em que sentido?
- Não sei. Dizia que mudara. Sem mortos nas ruas.
- Mortos nas ruas? Foi isso que disse?
- Se a memória não me falha...
AGRADECI a Luisito a informação e estuguei o passo, confiante de ter a sorte de chegar à
livraria antes de o meu pai ter regressado do seu recado e a minha ausência ser detectada. O
cartaz de «Encerrado» continuava pendurado na porta. Abri-a, retirei o cartaz e coloquei-me
atrás do balcão, convencido de que nem um único cliente se teria dirigido à livraria nos quarenta
e cinco minutos em que me ausentara.
À falta de trabalho, comecei a reflectir no que iria fazer com o exemplar de O Conde de Monte
Cristo e como abordaria o assunto com Fermín assim que chegasse à livraria. Não queria
preocupá-lo mais do que o necessário, mas a visita daquele estranho e a minha infrutífera
tentativa de esclarecer aquilo que poderia querer haviam-me deixado perturbado. Em qualquer
outra situação, tê-lo-ia colocado ao corrente do que acontecera sem problemas, mas, neste caso,
disse a mim próprio que deveria agir com tacto. De há uns tempos para cá, Fermín mostrava- -se
bastante abatido e com um humor de cão. Entretanto, por mais que tentasse alegrá-lo com as
minhas piadas inócuas, não conseguia arrancar-lhe um sorriso.
- Fermín, não limpe tanto o pó aos livros, porque dizem que quem os levar já não será um
romance cor-de-rosa, mas um romance negro - dizia-lhe eu, aludindo à cor que, então, os críticos
se começavam a referir às histórias de crime e castigo, que nos chegavam a conta-gotas em
traduções hipócritas.
Fermín, longe de reagir com um sorriso forçado a tão lamentável gracejo, usava qualquer
pretexto para se entregar a uma das suas apologias de desalento e náusea.
- No futuro, todos os romances serão negros, porque, se na segunda metade deste século de
carnificinas algum cheiro vier a predominar, será o da falsidade e o do crime, a que nos referi-
remos em jeito de eufemismo - sentenciava.
Voltamos ao mesmo, pensei. O Apocalipse segundo São Fermín Romero de Torres.
- Não pode ser assim tão mau, Fermín. Talvez devesse apanhar mais sol. Há dias, li no jornal
que a vitamina D alimenta a fé nos outros.
- E também se podia ler que um qualquer livreco de poemas da autoria de um afilhado de
Franco se tornou um fenómeno no panorama literário internacional, mesmo que não se encontre
à venda em nenhuma livraria para além de Móstoles - contrapôs.
Quando Fermín mergulhava nas águas do pessimismo visceral, era melhor não lhe dar corda.
- Sabe o que lhe digo, Daniel? Por vezes, julgo que Darwin se enganou e que, na verdade, o
homem descende do porco, dado que, em oito de cada dez hominídeos, haverá um chouriço à
espera de ser enchido - argumentava.
- Fermín, prefiro vê-lo expressar uma visão mais humanista e positiva das coisas, como há
dias, quando disse aquilo de, no fundo, ninguém ser mau, mas apenas todos terem medo.
- Foi devido a uma baixa de açúcar. Uma parvoíce!
O Fermín brincalhão de que tanto gostava encontrava- -se, por aqueles dias, em exílio, tendo
sido substituído por um homem atormentado por preocupações e maus presságios, que não
desejava partilhar. Por vezes, quando julgava que ninguém o via, parecia encolher-se num
qualquer recanto, permitindo que a angústia lhe devorasse as entranhas. Perdera peso e, tendo
em conta que pouco mais era do que pele e osso, o seu aspecto começava a ser preocupante.
Comentara essa situação com ele uma ou outra vez, mas recusava-se a admitir a existência de
qualquer problema, colocando uma pedra no assunto com desculpas peregrinas.
- Não se passa nada comigo, Daniel. A questão é que comecei a acompanhar os resultados da
liga e tenho uma quebra de tensão sempre que o Barça perde. Mas chegará um pedaço de
manchego para tornar a ficar tão forte como um touro.
- Tem a certeza? Em toda a sua vida, nunca assistiu a um jogo de futebol.
- Isso é o que pensa. O Kubala e eu crescemos praticamente juntos.
- Pois eu vejo-o num farrapo. Ou está doente ou não cuida de si.
Em jeito de resposta, exibia-me dois bíceps de forma amendoada, sorrindo como se estivesse
a vender pasta dentífrica porta a porta.
-Apalpe, apalpe. Trata-se de aço tão temperado como a espada de El Cid.
O meu pai atribuía a má forma ao nervosismo provocado pelo casamento e por todas as
preocupações inerentes, incluindo a confraternização com o clero e a procura de um restaurante
ou de qualquer outro espaço para organizar o copo- -d agua, mas nunca deixei de pressentir que
aquela melancolia teria raízes mais profundas. Digladiava-me entre contar-lhe o que acontecera
naquela manhã e mostrar-lhe o livro ou esperar por um momento mais propício, quando o vi
entrar pela porta, exibindo uma expressão que não destoaria num velório. Ao ver-me, esboçou
um leve sorriso, esgrimindo uma saudação matinal.
- Bons olhos o vejam, Fermín. Julgava que já não vinha.
- Fui retido por Don Federico ao passar em frente à relojoaria, que me contou uma história
qualquer sobre, esta manhã, alguém ter visto o senhor Sempere perto da Calle Puertaferrisa,
aprumado e com rumo desconhecido. Don Federico e a ingénua da Merceditas queriam saber se
teria arranjado um amor, o que, pelo que se vê, não irá deixar de ser conversa entre os
comerciantes do bairro, ainda mais se a moça for corista.
- E o que lhe respondeu?
- Que o senhor seu pai, na sua viuvez exemplar, regressou a um estado de virgindade
original, que intriga bastante a comunidade científica e que lhe valeu já um processo expresso de
pré-canonização por parte do arcebispado. No que diz respeito à vida privada do senhor
Sempere, nada comento nem com os próximos nem com estranhos, dado que apenas a ele diz
respeito.
E a qualquer um que queira tirar nabos da púcara ponho-o na ordem.
- É um cavalheiro à antiga, Fermín.
- Porque também o senhor seu pai é um cavalheiro à antiga, Daniel. Mas entre nós, e que
isto não saia destas quatro paredes, diga-se, em abono da verdade, que não lhe faria mal
descontrair- -se de vez em quando. Desde que deixámos de vender um tostão furado, passa os
dias emparedado nas traseiras da livraria, às voltas com aquele livro egípcio dos mortos.
- É o livro de contabilidade - rectifiquei.
- Seja o que for. Na verdade, confesso que, há dias, penso que o deveríamos levar ao Molino
e, depois, irmos para a farra, porque, mesmo que o cozido de tais mesteres seja mais insonso do
que caldo de couve, julgo que um encontrão com uma moça preta e de sangue quente lhe
aqueceriam o tutano - disse Fermín.
-Vejam só quem fala! O homem mais alegre nesta casa! Se me permite dizer-lhe, é você quem
mais preocupado me deixa - contrapus. - Há dias que parece uma barata tonta.
- Permita-me então que lhe diga, Daniel, que a sua metáfora não deixa de ser adequada,
porque, ainda que a barata não disponha dos atributos hipócritas requeridos pelos frívolos costu-
mes desta sociedade inconsciente que nos tocou em sorte, tanto o desgraçado artrópode como
este vosso servo se distinguem por um idêntico e inigualável instinto de sobrevivência, por uma
voracidade insaciável e por uma libido de leão, que nem submetida aos mais elevados níveis de
radiação definha.
- É impossível discutir consigo, Fermín.
- É que sou de têmpera dialéctica e perco as estribeiras perante qualquer vislumbre de
falsidade ou cretinice, caro amigo, mas o seu pai é uma florzinha terna e delicada, e penso ter
chegado a altura de eu mesmo jogar umas cartadas nesta partida, antes que fossilize de vez.
- E que cartadas são essas, Fermín? - interrompeu a voz do meu pai atrás de nós. - Não me
diga que irá combinar um lanche com a Rociíto.
Voltámo-nos como dois colegiais surpreendidos em flagrante. O meu pai, estacado à porta, e
apresentando escassas semelhanças com uma terna florzinha, fitava-nos com severidade.
E como sabe o senhor da Rociíto? - murmurou Fermín, atónito.
Assim que o meu pai acabou por saborear o susto que nos pregou, sorriu-nos de forma afável,
dirigindo-nos uma piscadela de olho.
- Começo a fossilizar, mas ainda tenho bom ouvido. Bom ouvido e boa cabeça. Por isso
decidi que tinha de fazer algo para reavivar o negócio - anunciou. - A visita ao Molino pode
esperar.
Só então nos apercebemos que o meu pai vinha carregado com dois sacos de considerável
volume e uma grande caixa, envolvida em papel de embrulho e atada com cordel grosso.
- Não me digas que acabaste de assaltar o banco da esquina - perguntei.
- No que respeita aos bancos, tento evitá-los o mais possível, dado que, como muito bem diz
Fermín, por norma, são eles que nos assaltam. Venho do Mercado de Santa Lucía.
Fermín e eu trocámos um olhar de dúvida.
- Não me querem ajudar? Isto pesa como chumbo.
Atarefámo-nos a colocar o conteúdo dos sacos sobre o balcão, enquanto o meu pai desfazia o
invólucro da caixa. Os sacos estavam repletos de pequenos objectos envoltos em papel de
embrulho. Fermín abriu um deles, ficando a olhar o conteúdo sem compreender.
- E o que é isso? - perguntei.
- Diria tratar-se de um jumento adulto à escala de um para cem - respondeu Fermín.
- De um quê?
- Um burro, asno ou jerico, afectuoso quadrúpede solípede que, com graça e aprumo, povoa
as paisagens desta nossa Espanha... ainda que em miniatura, como os pequenos comboios de
brincar que se vendem na Casa Palau - explicou Fermín.
- É um burro de argila, uma figurinha para o presépio - esclareceu o meu pai.
- Que presépio?
Como única resposta, o meu pai limitou-se a abrir a caixa de cartão, extraindo um
monumental estábulo provido de iluminação, que, intuí, quereria colocar na montra da loja,
como decoração de Natal. Fermín, entretanto, desembrulhara já diversos bois, camelos, porcos,
patos, reis orientais, palmeiras, um São José e uma Virgem Maria.
- Sucumbir ao jugo do nacional-catolicismo e às suas sub- -reptícias técnicas de doutrinação,
sob a forma de pequenas figuras e de lendas de pacotilha, não me parece a solução - sentenciou
Fermín.
- Não digas disparates, Fermín, porque é uma tradição bonita, além de as pessoas gostarem
de ver presépios durante a época de
Natal - cortou o meu pai. - À livraria faltava-lhe a chispa da cor e da alegria que a época exige.
Bastará dar uma espreitadela a todas as lojas do bairro para concluir que, em comparação, pare-
cemos uma funerária. Vamos, ajude-me a montar isto na montra. E retire da mesa todos os
volumes acerca da desamortização de Mendizábal, que assustam qualquer um.
- Será o nosso fim - murmurou Fermín.
Entre os três, conseguimos montar o presépio e colocar as figuras na posição devida. Fermín
colaborava a contragosto, franzindo o sobrolho e procurando qualquer desculpa para manifestar
a sua objecção ao projecto.
- Senhor Sempere, não quero ser desmancha-prazeres, mas este Menino Jesus é três vezes
maior do que o seu putativo pai, e quase não cabe na manjedoura.
- Não faz mal. Os mais pequenos já estavam esgotados.
- Diria que, comparado com a Virgem, me parece um desses lutadores japoneses com
problemas de excesso de peso, que têm o cabelo alisado com brilhantina e de tanga enfiada no
rego do rabo.
- Chamam-se lutadores de sumo - precisei eu.
- Esses mesmos - concordou Fermín.
O meu pai suspirou, não acreditando no que ouvia.
- Além disso, repare nesses olhos. Parece que está possuído.
- Vamos, Fermín, cale-se de vez e ligue as luzes - ordenou o meu pai, estendendo-lhe a ficha.
Fermín, numa das suas manobras de malabarista, conseguiu enfiar-se sob a plataforma que
sustinha o presépio e alcançar a tomada num dos extremos da montra.
- E fez-se luz - clamou o meu pai, contemplando, entusiasmado, o novo e resplandecente
presépio da Sempere e Hijos. - Renovar ou morrer - acrescentou satisfeito.
- Antes morrer - sussurrou Fermín.
Não se passara um minuto sequer da iluminação oficial, quando uma mãe, trazendo três
crianças pela mão, se deteve em frente da montra para ver o presépio e, após um instante de
hesitação, se aventurou a entrar na livraria.
- Boa tarde - disse. - Têm histórias sobre a vida dos santos?
- Com certeza - respondeu o meu pai. - Permita-me mos- trar-lhe a Colecção Jesusín de mi
Vida, pois estou certo de que agradará aos seus filhos. São obras profusamente ilustradas e com
prólogo de Don José Maria Pemán, nem mais nem menos.
-Ah! Que bom! Na verdade, hoje em dia é bastante difícil encontrar livros com mensagens
positivas, que nos façam sentir bem, sem todos esses crimes e mortes, e esse tipo de outras coisas
que ninguém consegue compreender... Não acha?
Fermín revirou os olhos. Estava prestes a abrir a boca, quando o impedi e o afastei para longe
da cliente.
- O que a senhora disser - concordou o meu pai, observando- -me pelo canto do olho e
indicando com um gesto que mantivesse Fermín manietado e amordaçado, pois não podíamos
perder aquela venda por nada deste mundo.
Arrastei Fermín até às traseiras da livraria, certificando-me de que a cortina se mantinha
corrida, para permitir ao meu pai concluir a venda com calma.
- Fermín, ignoro que mosca lhe terá mordido, mas, embora saiba que isto dos presépios lhe
mete confusão, opinião que respeito, o facto é que este Menino Jesus do tamanho de um rolo
compressor mais umas quantas figuras de barro levantaram o ânimo ao meu pai e trouxeram
clientes à livraria, pelo que lhe pediria que pusesse de lado os seus pregões existencialistas e
pusesse uma expressão rejubilante, pelo menos durante o horário de funcionamento.
Fermín suspirou e anuiu, envergonhado.
- Não é isso, amigo Daniel - disse. - Perdoe-me. Para tornar o seu pai feliz e salvar a livraria,
se preciso fosse, percorria o caminho de Santiago de traje de luces1 vestido.
- Basta que diga ao meu pai que o presépio lhe parece uma boa ideia e siga a maré.
Fermín concordou.
- Farei mais do que isso. Pedirei também desculpas ao senhor Sempere pelas minhas
imprecações e eu próprio contribuirei com uma figura para o presépio, para demonstrar que, no
que respeita ao espírito de Natal, nem os grandes armazéns me levam a melhor. Tenho um amigo
na clandestinidade que faz uns caga- ner de Dona Carmen Polo de Franco, com acabamentos tão
reais que até nos põem os pêlos em pé.
- Um cordeiro ou uma representação do rei mago Baltasar irão a matar.
- Às suas ordens, Daniel. Agora, se lhe parecer bem, farei alguma coisa útil, como abrir as
caixas do lote da viúva Recasens, que há uma semana estão a ganhar pó.
- Quer que o ajude?
' Designação comum do fato envergado pelos toureiros a pé. (N.. do T.)
- Não se preocupe. Você tem as suas próprias tarefas.
Observei-o a dirigir-se para o armazém, que ficava ao fundo
das traseiras, e a vestir a bata de trabalho azul.
- Fermín - resolvi chamá-lo.
Voltou-se e fitou-me, solícito. Hesitei por um instante.
- Hoje aconteceu uma coisa que queria contar-lhe.
- Estou ao seu dispor.
- Na verdade, não sei como abordar a questão. Esteve aqui uma pessoa a perguntar por si.
- Era bonita? - perguntou Fermín, tentando fingir um ar de brincadeira, que, no entanto, não
conseguia esconder a perturbação que lhe toldava o olhar.
- Era um senhor. Bastante envelhecido e um pouco estranho, para dizer a verdade.
- Disse como se chamava? - perguntou Fermín.
Neguei.
- Não, mas deixou-me isto para si.
Fermín franziu o sobrolho. Estendi-lhe o livro que o visitante comprara umas horas antes.
Fermín aceitou-o e olhou a capa, sem compreender.
- Mas este não é o exemplar de Dumas que tínhamos na vitrina, ao preço de sete duros?
Assenti.
- Abra-o no frontispício.
Fermín assim fez. Ao ler a dedicatória, ficou de súbito pálido, engolindo em seco. Fechou os
olhos por um instante e, depois, fitou-me em silêncio. Pareceu-me ter envelhecido cinco anos no
espaço de cinco segundos.
- Assim que saiu, segui-o - disse. - Há uma semana que vive num meublé mal frequentado,
na Calle Hospital, em frente à Pensão Europa e, tanto quanto consegui apurar, usa um nome
falso; na verdade, o seu nome é Fermín Romero de Torres. Soube, por um dos escreventes nas
imediações de La Virreina, que mandou copiar uma carta onde se referia a uma grande quantia
de dinheiro. Alguma coisa do que acabei de dizer lhe soa familiar?
Fermín ia-se encolhendo, como se cada palavra daquela história representasse uma paulada
na cabeça.
- Daniel, é muito importante que não torne a seguir esse indivíduo, nem fale com ele. Nada
faça. Mantenha-se afastado. E muito perigoso.
- Quem é esse homem, Fermín?
Fermín fechou o livro e ocultou-o atrás de umas caixas, numa das estantes. Espreitando para
a loja, de modo a assegurar-se de que o meu pai continuava ocupado com a cliente e não nos
poderia ouvir, aproximou-se de mim e falou-me num tom muito baixo:
- Por favor, não conte nada disto nem ao seu pai nem a ninguém.
-Fermín...
- Faça-me esse favor. Peço-lho em nome da amizade que temos.
- Mas, Fermín...
- Por favor, Daniel. Aqui não. Confie em mim.
Cedi a contragosto, mostrando-lhe a nota de cem com que o estranho me pagara. Não
precisei de lhe explicar de onde saíra.
- Esse dinheiro está amaldiçoado, Daniel. Doe-o às irmãs da caridade ou a um pobre que veja
na rua. Ou, melhor ainda, queime-o.
Sem nada mais dizer, apressou-se a despir a bata e a vestir a sua esgaçada gabardina,
colocando sobre a pequena cabeça uma boina que parecia uma sertã para paelha com a
assinatura de Dali.
-Vai sair já?
- Diga ao seu pai que me surgiu um imprevisto. Faz-me esse favor?
- Claro que sim, mas...
- Agora não posso explicar, Daniel.
Levou uma das mãos ao estômago, como se lhe tivessem laçado os intestinos e começou a
gesticular com a outra, como se quisesse agarrar no ar palavras que não afloravam aos lábios.
- Fermín, se me contar tudo, talvez o possa ajudar...
Fermín hesitou por um instante, para logo depois se recusar
em silêncio, saindo para o átrio. Segui-o até ao portão, vendo-o partir sob a chuva miudinha -
apenas um homenzinho carregando às costas o peso do mundo, à medida que a noite, mais
escura do que nunca, se abatia sobre Barcelona.
É um facto cientificamente provado que qualquer criança com poucos meses de vida sabe
detectar, com infalível instinto, o momento preciso da madrugada em que os pais conseguiram
adormecer, para romper em pranto e evitar, assim, que consigam dormir por mais de trinta
minutos seguidos.
Naquela madrugada, como em quase todas, o pequeno Julián acordou pouco antes das três
horas, não hesitando em apregoar a boa nova a plenos pulmões. Abri os olhos e voltei-me. A meu
lado, Bea, cintilante na penumbra, agitou-se naquele lento despertar que me permitia
contemplar as formas do seu corpo sob os lençóis, acabando por murmurar qualquer coisa
incompreensível. Resisti ao impulso natural de lhe beijar o pescoço e de a libertar daquela
interminável e blindada camisa de noite, que o meu sogro, decerto intencionalmente, lhe
oferecera no seu aniversário e que eu nem por artes mágicas conseguia fazer desaparecer por
entre as outras roupas.
- Levanto-me eu - sussurrei, beijando-a na testa.
Como única resposta, Bea voltou-se e cobriu a cabeça com a almofada. Mantive-me a
saborear as curvas daquelas costas e a sua suave descida, que nem todas as camisas de noite do
mundo conseguiriam esconder. Se bem que estivesse casado há quase dois anos com aquela
prodigiosa criatura, ficava ainda surpreendido ao despertar a seu lado, sentindo o seu calor.
Começara a desviar o lençol e a acariciar a parte superior daquela coxa aveludada, quando a mão
de Bea me espetou as unhas no pulso.
- Daniel, agora não. O menino está a chorar.
- Sabia que estavas acordada.
- É difícil dormir nesta casa, entre homens que não sabem parar de chorar ou de apalpar o
traseiro a uma pobre-coitada que não consegue dormir mais de duas horas por noite.
- És tu quem sai a perder.
Levantei-me e percorri o corredor até ao quarto de Julián, ao fundo da casa. Pouco depois do
casamento, instalámo-nos nas águas-furtadas do edifício da livraria. Don Anacleto, o professor
catedrático que aqui vivera durante vinte e cinco anos, decidira jubilar-se e regressar à sua
Segóvia natal, para escrever poemas ousados à sombra do aqueduto e para estudar a ciência do
leitão assado.
O pequeno Julián recebeu-me com um choro sonoro e de alta frequência, que ameaçava
perfurar-me os tímpanos. Peguei-o nos braços e, depois de lhe cheirar a fralda e de confirmar
que, desta vez, não havia mouro na costa, fiz o que qualquer pai inexperiente e de juízo são faria:
comecei a murmurar-lhe disparates, dando pequenos saltos ridículos pelo quarto. Estava eu
imerso em tais afazeres, quando dei por Bea a observar-me da porta, exteriorizando uma
expressão de desaprovação.
- Dá-mo cá, porque vais despertá-lo ainda mais.
- Como podes ver, ele não se queixa - protestei, entregando- -lhe a criança.
Bea pegou o nosso filho nos braços e começou a sussurrar-lhe uma melodia, ao mesmo
tempo que o embalava com suavidade. Cinco segundos depois, Julián parou de chorar, esboçando
aquele sorriso embasbacado que a mãe sempre lhe conseguia arrancar.
- Sai - disse. - Vou já.
Expulso do quarto do meu filho, e depois de a minha inaptidão com bebés em idade de
gatinhar ficar demonstrada, regressei ao quarto e estendi-me na cama, sabendo que não
conseguiria pregar olho durante o resto da noite. Pouco depois, Bea entrou no quarto,
estendendo-se a meu lado e suspirando.
- Estou que nem me aguento em pé.
Abracei-a e assim ficámos durante alguns minutos.
- Tenho andado a pensar - disse Bea.
Treme, Daniel, pensei. Bea ergueu o tronco e sentou-se sobre os calcanhares à minha frente,
sobre a cama.
- Quando o Julián for um pouco mais crescido e a minha mãe puder cuidar dele durante
algumas horas do dia, acho que vou trabalhar.
Concordei.
- E onde?
- Na livraria.
A prudência aconselhou-me a manter-me calado.
-Julgo que vos seria útil - acrescentou. - O teu pai já não tem saúde para trabalhar tantas
horas e, não te ofendas com o que vou dizer, acho que tenho mais tacto para os clientes do que
tu e o Fermín, que, nos últimos tempos, me parece assustar as pessoas.
- Não vou discutir isso.
- Que se passa com esse desgraçado? Há dias, cruzei-me com a Bernarda na rua e, de
imediato, desatou a chorar. Levei-a até uma pastelaria da Calle Petritxol e, depois de a
empanturrar de pães-de-leite, acabou por me contar que o Fermín tem andado estranhíssimo. Ao
que parece, de há uns dias para cá, recusa-se a preencher a documentação da paróquia necessária
para o casamento. Tenho cá a suspeita de que, esse, não se irá casar. Disse-te alguma coisa?
- Tenho notado algo - menti. - Talvez a Bernarda o esteja a pressionar de mais...
Bea fitou-me em silêncio.
- O que se passa? - acabei por perguntar.
- A Bernarda pediu-me que não contasse a ninguém.
- Que não contasses o quê?
Bea olhou-me fixamente.
- Que, este mês, está atrasada.
- Atrasada? Tem trabalho acumulado?
Bea fitou-me como se fosse idiota e acabou por se me fazer
luz.
- A Bernarda está grávida ?
- Baixa a voz, para não acordares o Julián.
- Está grávida ou não? - repeti num fio de voz.
- É provável.
- E o Fermín sabe disso?
- Ela ainda não lho quis dizer. Tem medo que a deixe.
- O Fermín nunca faria isso.
- Todos os homens fariam isso se pudessem.
Fiquei surpreendido com a aspereza do seu tom de voz, que depressa suavizou, esboçando
um sorriso tão carinhoso que nem queria acreditar.
- Tão mal nos conheces.
Ergueu-se na penumbra e, sem nada dizer, despiu a camisa de noite e deixou-a cair para um
dos lados da cama. Deixou-se contemplar por alguns segundos e, depois, devagar, debruçou-se
sobre mim e, sem pressas, lambeu-me os lábios.
- Tão mal vos conheço - sussurrou.
No dia seguinte, o efeito publicitário do presépio iluminado confirmou a sua eficácia, e vi o
meu pai sorrir pela primeira vez em semanas, enquanto registava algumas vendas no livro de
contabilidade. Desde o início da manhã, iam aparecendo alguns dos antigos clientes, que há já
bastante tempo não se deixavam ver na livraria, e novos leitores, que nos visitavam pela primeira
vez. Deixei que fosse o meu pai a atendê-los, dada a sua experiência acumulada, e tive o gosto de
o ver desfrutar ao recomendar- -lhes obras, despertando a sua curiosidade e intuindo os seus
gostos e interesses. Aquele prometia ser um dia bom, o primeiro em muitas semanas.
- Daniel, temos de expor as colecções de clássicos ilustrados para crianças. As das Ediciones
Vértice, de lombada azul.
- Parece-me que estão na cave. Tens as chaves?
- A Bea pediu-mas há uns dias, para guardar algumas coisas do menino, não sei bem o quê.
Não me recordo de mas devolver. Vê na gaveta.
- Não estão aqui. Subo até casa num instante, para as ir buscar.
Deixei o meu pai a atender um senhor que acabara de entrar e que manifestava interesse em
comprar um livro relativo à história dos cafés de Barcelona e saí para as traseiras, onde eram as
escadas. O andar onde Bea e eu vivíamos era alto e, além de significar mais luz, implicava um
subir e descer de escadas que tonificava o ânimo e as coxas. Durante a subida, cruzei-me com
Edelmira, uma viúva do terceiro andar que fora bailarina e que, agora, como sustento, pintava
virgens e santos em casa. Demasiados anos sobre o palco do Teatro Arnau haviam-lhe desfeito os
joelhos e precisava de se agarrar ao corrimão com ambas as mãos, para negociar a subida ou
descida de um simples lance de escadas, mesmo assim tinha sempre um sorriso nos lábios, nunca
lhe faltando palavras amáveis para dizer.
- Como está a tua bela mulher, Daniel?
- Não tão bela como a senhora, Dona Edelmira. Ajudo-a a descer?
Edelmira, como sempre, recusou a ajuda e enviou cumprimentos para Fermín, que sempre
que a via lhe dizia piropos e fazia propostas indecentes.
Quando abri a porta do apartamento, o interior cheirava ainda ao perfume de Bea e a essa
mistura de aromas libertada pelos bebés e seu attrezzo. Bea costumava levantar-se cedo e saía
para passear levando Julián no flamejante carrinho Jané que Fermín nos oferecera e ao qual nos
referíamos como el Mercedes.
- Bea? - chamei.
O apartamento era pequeno e o eco da minha voz regressou até mim antes que pudesse
fechar a porta. Bea já saíra. Dirigi- -me à sala de jantar, tentando reconstruir o processo mental
da minha mulher, para deduzir onde poderia ter guardado as chaves da cave. Bea era muito mais
organizada e metódica do que eu. Comecei por procurar nas gavetas do móvel da sala, onde
costumava guardar facturas, cartas para responder e algumas moedas. Depois, passei para as
mesinhas, cestas de fruta e estantes.
A paragem seguinte foi a cozinha, onde havia uma vitrina onde Bea costumava afixar notas e
lembretes. A sorte não estava do meu lado e acabei por dar por mim no quarto, de pé em frente à
cama, olhando em redor com espírito de investigador. Bea ocupava setenta e cinco por cento do
guarda-vestidos, das gavetas e da restante mobília do quarto. Justificava-se argumentando que eu
me vestia sempre da mesma maneira e que, por isso, bastar-me-ia um recanto do
guarda-vestidos. A organização reinante nas gavetas era de uma sofisticação que me ultrapassava.
Submergi num certo sentimento de culpa ao procurar nos espaços privados da minha mulher,
mas, após infrutíferas buscas em todos os móveis à vista, continuava sem encontrar as chaves.
Reconstituamos os factos, disse para mim próprio. Recordava- -me vagamente de Bea ter
referido qualquer coisa relativa à necessidade de se guardar na cave uma caixa com roupa de
Verão. Fora há alguns dias. Se a memória não me traía, naquele dia, Bea vestia o casaco cinzento
que lhe oferecera pelo primeiro aniversário do nosso casamento. As minhas capacidades de
dedução levaram- -me a sorrir e abri o guarda-vestidos para procurar o dito casaco entre as
roupas da minha mulher. Lá estava ele. Se tudo o que pude aprender ao ler Conan Doyle e os
seus discípulos estivesse certo, as chaves do meu pai estariam numa das algibeiras daquele
casaco. Enfiei as mãos na da direita, dando com duas moedas e uns quantos rebuçados de
mentol, dos que as farmácias costumavam oferecer. Depois, dediquei-me à inspecção da outra
algibeira, sentindo-me satisfeito ao confirmar que a minha tese estava certa. Os meus dedos
roçaram no molho de chaves.
E em algo mais.
Havia na algibeira um pedaço de papel. Retirei as chaves e, hesitante, decidi retirar também o
papel. Provavelmente, era uma das listas de afazeres que Bea costumava escrever para não se
esquecer de nada.
Ao examiná-lo com mais atenção, vi tratar-se de um sobrescrito. De uma carta. Fora
endereçada a Beatriz Aguilar, com o carimbo dos correios a datá-la de há uma semana. Fora
remetida para o endereço dos pais de Bea e não para o nosso apartamento de Santa Ana. Virei o
sobrescrito e, ao verificar o nome do remetente, as chaves da cave caíram-me da mão:
Pablo Cascos Buendía
Sentei-me na cama e fiquei a olhar para aquele sobrescrito, transtornado. Pablo Cascos
Buendía era o prometido de Bea na época em que havíamos começado a namoriscar. Filho de
uma família abastada, que possuía diversos estaleiros e fábricas em El Ferrol, aquela personagem,
que nunca fora santo da minha devoção, nem eu da sua, estava, na altura, a cumprir o serviço
militar como alferes. Desde que Bea lhe havia escrito para romper o compromisso, não tornara a
saber dele. Até agora.
O que faria uma carta do antigo prometido de Bea, com data recente, na algibeira do seu
casaco? Ainda que o sobrescrito estivesse aberto, por mais de um minuto os escrúpulos impedi-
ram-me de retirar a carta. Apercebi-me de que aquela era a primeira vez que espiava Bea, estando
prestes a tornar a colocar a carta no local de onde a retirara e a sair dali. O meu momento de
consciência não durou mais de uns segundos. Qualquer réstia de culpa ou de vergonha
volatilizara-se antes ainda de concluir a leitura do primeiro parágrafo.
Querida Beatriz
Espero que estejas bem e que sejas feliz, nessa tua nova vida em Barcelona. Durante estes
últimos meses, não recebi resposta às cartas que te enviei e, por vezes, pergunto-me se te fiz algo
para me ignorares por completo. Compreendo que és uma mulher casada e mãe de um filho, e
escrever-te não será uma atitude correcta, mas tenho de te confessar que, por mais tempo que
passe, não te consigo esquecer, ainda que tenha tentado, e não sinto vergonha ao admitir que
continuo apaixonado por ti.
Também a minha vida seguiu um novo rumo. Há um ano, comecei a trabalhar como director
comercial de uma importante casa editorial. Sei o quanto os livros significavam para ti e poder
trabalhar com eles faz-me sentir mais próximo de ti. O meu gabinete está sediado na nossa
delegação de Madrid, embora, por motivos de trabalho, viaje com frequência por toda a Espanha.
Penso em ti constantemente, na vida que poderíamos ter tido juntos, nos filhos que poderíamos ter
gerado... Todos os dias me pergunto se o teu marido te fará feliz e se não te terás casado com ele
forçada pelas circunstâncias. Não consigo acreditar que a vida modesta que ele te possa oferecer
seja o que desejas. Conheço-te bem. Fomos companheiros e amigos, e não havia segredos entre nós.
Recordas-te das tardes que passámos juntos na praia de San Pol? Lembras-te dos projectos, dos
sonhos que partilhámos, das promessas que fizemos? Nunca me senti com ninguém como contigo.
Desde que rompemos o noivado, saí com algumas raparigas, mas sei agora que nenhuma se pode
comparar a ti. Sempre que beijo outros lábios penso nos teus, sempre que acaricio outra pele sinto a
tua.
Dentro de um mês, vou a Barcelona, aos escritórios da editora, para ter diversas reuniões com o
pessoal relativas a uma futura reestruturação da empresa. Na verdade, podia ter resolvido tudo isto
por correio e telefone. O verdadeiro motivo da minha viagem não é senão a esperança de me poder
encontrar contigo. Sei que pensarás que estou louco, mas prefiro que penses isso do que acredites
que te esqueci. Chego a 20 de Janeiro e fico hospedado no Hotel Ritz da Gran Via. Por favor, peço-te
que te encontres comigo, ainda que seja por breves momentos, para que me permitas dizer-te
pessoalmente o que trago no coração. Reservei uma mesa no restaurante do hotel para o dia 21, às
duas da tarde. Estarei lá, à tua espera. Se fores, tornar- -me-ás o homem mais feliz do mundo e
saberei que ainda pode existir esperança nos meus sonhos de recuperar o teu amor.
Deste que te quer,
PABLO
Permaneci imóvel durante alguns segundos, sentado na cama que partilhara com Bea há
apenas algumas horas. Tornei a colocar a carta dentro do sobrescrito e, ao levantar-me, senti-me
como se me tivessem desferido um murro no estômago. Corri para a casa de banho e vomitei no
lavatório o café da manhã. Abri a torneira da água fria e molhei a cara. O rosto daquele Daniel de
dezasseis anos, cujas mãos tremiam aquando da primeira vez que acariciara Bea, fitava-me no
espelho.
QUANDO regressei à livraria, o meu pai lançou-me um olhar inquisidor, consultando o relógio
de pulso. Supus que se perguntaria onde estivera na última meia hora, mas não disse nada.
Estendi-lhe a chave da cave, tentando evitar que os nossos olhares se cruzassem.
- Mas não eras tu que ias lá abaixo para trazer os livros? - perguntou.
- Claro. Peço desculpa. Vou agora mesmo.
O meu pai observou-me de soslaio.
- Estás bem, Daniel?
Assenti, fingindo estranheza perante a sua pergunta. Antes que pudesse repeti-la, dirigi-me
para a cave, para recolher as caixas que pedira. O acesso à cave era ao fundo do átrio do edifício.
Uma porta de metal fechada a cadeado, situada sob o primeiro lance de escadas, dava acesso a
uma espiral de degraus que se perdiam na escuridão, ali reinando o cheiro a humidade e a outra
coisa indeterminada, mas que fazia pensar em terra batida e flores mortas. Uma pequena fileira
de lâmpadas fluorescentes de piscar anémico pendia do tecto, dando ao local à atmosfera de um
abrigo antiaéreo. Desci as escadas até à cave e, uma vez ali, tacteei na parede até dar com o
interruptor.
Uma lâmpada de luz amarelada iluminou-se sobre a minha cabeça, revelando os contornos
do que apenas era uma arrecadação com delírios de grandeza. Múmias de velhas bicicletas sem
dono, quadros cobertos de teias de aranha e caixas de cartão empilhadas em estantes de madeira,
que a humidade esbranquiçara, formavam um retábulo que convidava qualquer pessoa a não
passar ali mais tempo do que o estritamente necessário. Apenas ao observar aquele cenário me
apercebi de que não deixava de ser estranho que Bea tivesse decidido descer por sua vontade, em
vez de me pedir para o fazer. Vasculhei por entre aquele labirinto de despojos e velharias,
perguntando-me sobre os restantes segredos que ela ali teria escondidos.
Ao aperceber-me do que estava a fazer, suspirei. As palavras daquela carta iam-se
depositando na minha mente como gotas de ácido. Prometi a mim próprio que não ia começar a
escarafunchar no meio das caixas, à procura de um maço de cartas perfumadas remetidas por
aquele tipo. Poucos segundos depois, teria traído a minha promessa, não fosse ter ouvido o som
de passos a descerem as escadas. Ergui o olhar e deparei com Fermín, que contemplava aquele
cenário com uma expressão de nojo.
- Oiça, aqui fede a morte e medo. Quero dizer, não terão aqui a mãe da Merceditas, envolta
em rendas e embalsamada numa dessas caixas?
-Já que está aqui, ajude-me a levar umas caixas que o meu pai quer.
Fermín arregaçou as mangas, pronto para se entregar à tarefa. Apontei para duas caixas com
o logótipo das Ediciones Vértice e cada um pegou numa.
- Daniel, está com uma cara pior do que a minha. Passa-se alguma coisa?
- Deve ser dos vapores desta cave.
Fermín não se deixou enganar pelo meu gracejo forçado. Pousei a caixa no chão e sentei-me
em cima ela.
- Posso fazer uma pergunta, Fermín?
Por sua vez, também Fermín pousou a sua caixa, usando-a como assento. Fitei-o e
dispunha-me a falar, mas era incapaz de fazer as palavras aflorarem-me aos lábios.
- Problemas conjugais? - perguntou.
Corei ao aperceber-me quão bem o meu amigo me conhecia.
- Algo do género.
- A senhora Bea, bendita seja entre as mulheres, não está com disposição para grandes
desvarios ou, pelo contrário, está para demasiados, e você não consegue garantir os serviços
mínimos? Pense que as mulheres, depois de terem um filho, é como se lhes soltassem no sangue
uma bomba atómica de hormonas. Um dos grandes mistérios da natureza é determinar como é
possível que não enlouqueçam nos primeiros vinte segundos após o parto. Estou a par disto
porque a obstetrícia, depois do verso livre, é um dos meus maiores interesses.
- Não, não é isso. Que o saiba...
Fermín fitou-me com uma expressão de estranheza.
- Tenho de lhe pedir que não conte a ninguém aquilo que lhe vou dizer.
Fermín benzeu-se com solenidade.
- Há pouco, por acaso, encontrei uma carta na algibeira do casaco da Bea.
A minha pausa não o pareceu impressionar. -E?
- A carta era do antigo prometido.
- O parvalhão? Mas esse não se mudou para a querida El Fer- rol dei Caudillo, para
protagonizar uma carreira espectacular na qualidade de filhinho de papá?
- Isso julgava eu. Mas, de tempos a tempos, escreve cartas de amor à minha mulher.
Fermín sobressaltou-se.
- Grandessíssimo filho-da-mãe - murmurou, ainda mais furioso do que eu.
Retirei a carta da algibeira e estendi-lha. Fermín cheirou-a antes de a abrir.
- E de mim ou este sacana escreve as cartas em papel perfumado? - perguntou.
- Não havia reparado, mas não me surpreende. O homem é mesmo assim. Mas o melhor está
para vir. Leia, leia...
Fermín leu, murmurando em voz baixa e abanando a cabeça.
- Além de miserável e desprezível, este rastejante dá mostras de um mau gosto atroz. Isso de
«beijar outros lábios» devia ser suficiente para passar a noite numa masmorra.
Guardei a carta e deixei o meu olhar perder-se no chão.
- Não me vai dizer que suspeita da senhora Bea, pois não? - perguntou Fermín, incrédulo.
- Não, claro que não.
- Mentiroso.
Levantei-me e comecei a dar voltas pela cave.
- E o que faria se encontrasse uma carta deste tipo na algibeira da Bernarda?
Fermín reflectiu bastante tempo.
- O que faria seria confiar na mãe do meu filho.
- Confiar nela?
Fermín assentiu.
- Não se ofenda, Daniel, mas está com o problema clássico dos homens que se casam com
uma mulher excepcional. A senhora Bea, que para mim é e será uma santa, está, para recorrer à
expressão popular, de molhar o pão e lamber os dedos. Por isso, é previsível que uns quantos
crápulas, infelizes, pseudogalãs e todo o tipo de pavões andem atrás das saias dela. Com ou sem
marido e filho, porque isso, ao símio vestido de fato que benevolamente chamamos Homo
sapiens, não interessa para nada. O senhor não se apercebe disso, mas eu punha as mãos no fogo
se a sua santa mulher não se visse rodeada de mais moscas do que um pote de mel na Feira de
Abril. Esse cretino não passa de uma ave necrófaga, que atira pedras para ver se acerta no alvo.
Ouça bem o que lhe digo, uma mulher de cabeça no lugar detecta ao longe essa ralé.
- Tem a certeza?
- A sua dúvida ofende. Julga o senhor que, se Dona Beatriz quisesse comer fora de casa,
esperava que um pinga-amor de meia-tigela lhe escrevesse parvoíces delicodoces para a cortejar?
Se não tem dez pretendentes sempre que sai a passear com o menino, e com aquele corpo, não é
nada. Confie em mim, sei do que falo.
- Agora que o disse, não sei se é de grande consolo.
- Ouça, o que tem a fazer é voltar a pôr essa carta na algibeira do casaco onde a encontrou e
esquecer-se do assunto. E nem pense dizer nada à sua mulher.
- Era isso que o senhor faria?
- O que eu faria era ir à procura desse sacana e desferir-lhe tamanho pontapé nas partes
pudendas, que, mal se conseguisse recuperar, o que desejaria era dar às de vila-diogo. Mas eu sou
eu. E o senhor é o senhor.
Senti a angústia a espalhar-se dentro de mim, como uma gota de azeite em água límpida.
- Não estou certo de que me tenha ajudado, Fermín.
Ele encolheu os ombros e, pegando numa das caixas, desapareceu escadas acima.
Passámos o resto da manhã ocupados com as obrigações da livraria. Depois de algumas horas
de reflexão dando voltas à cabeça, acabei por concluir que Fermín estava certo. O que não tinha a
certeza era se devia confiar e calar, assim como procurar aquele desgraçado e desfazer-lhe a cara.
O calendário sobre o balcão indicava estarmos a 20 de Dezembro. Tinha um mês para tomar uma
decisão.
O dia decorreu animado e com vendas modestas, ainda que constantes. Fermín não perdia
uma oportunidade para alardear junto do meu pai as glórias do presépio e as virtudes daquele
Menino Jesus com laivos de levantador de pesos basco.
- Como verifico que o senhor se está a revelar um verdadeiro especialista em vendas,
retiro-me para as traseiras, para limpar e preparar a colecção que, há dias, a viúva nos deixou no
armazém.
Aproveitei a conjuntura e segui Fermín até às traseiras, correndo o cortinado atrás de mim.
Fermín fitou-me com uma certa preocupação, pelo que o contemplei com um sorriso
reconciliador.
- Se quiser posso ajudá-lo.
- Como queira, Daniel.
Nos minutos que se seguiram, dedicámo-nos a retirar os livros das caixas e a empilhá-los
consoante o género, o estado de conservação e o tamanho. Fermín não dizia palavra e evitava o
meu olhar.
- Fermín...
-Já lhe disse que não tem de preocupar-se com a questão da carta. A sua senhora é uma
mulher às direitas e no dia em que quiser trocá-lo por outro, queira Deus que nunca chegue, dir-
-lho-á cara a cara e sem intrigas novelescas.
- Mensagem recebida, Fermín. Mas não é isso.
Fermín ergueu o olhar e, ao ver-me aproximar, arvorou uma expressão de angústia.
- Estive a pensar que, hoje, depois de fecharmos, podíamos sair e jantar juntos - propus-lhe. -
Para falarmos das nossas coisas, da visita do outro dia. E do que o preocupa, que pressinto estar
relacionado.
Fermín pousou sobre a mesa o livro que estava a limpar. Fitou-me com desânimo e suspirou.
- Meti-me num sarilho, Daniel - acabou por murmurar. - Num sarilho que não sei como sair
dele.
Coloquei-lhe a mão sobre o ombro. Sob a bata o que sentia era apenas pele e osso.
- Então, permita-me ajudá-lo. Quando são duas cabeças apensar, as coisas tornam-se mais
simples.
Fitou-me de olhar perdido.
- Tenho a certeza de que já nos desenvencilhámos de problemas mais complexos - insisti.
Sorriu com tristeza, pouco convencido acerca do meu diagnóstico.
- O senhor é um bom amigo, Daniel.
Uma amizade que nem por sombras se aproxima da que merecia, pensei.
NAQUELA época, Fermín vivia ainda na velha pensão da Calle Joaquin Costa, onde me
constava de fonte segura que os restantes inquilinos, em estreita e secreta colaboração com
Rociíto e as suas irmãs de armas, lhe estavam a organizar uma despedida de solteiro digna de
ficar na história. Ao chegar à pensão, pouco depois das nove da noite, já me esperava à entrada.
- Para ser sincero, não estou com muita fome - disse assim que me viu.
- É pena, porque tinha pensado em irmos ao Can Lluís - propus. - Esta noite, têm
grão-de-bico cozido e cap ipota...
-Bem... não devo precipitar-me - considerou Fermín. - Um bom jantar é como uma rapariga
na flor da idade: não saber apreciá-la é ser cego.
E tendo por lema essa pérola do baú de aforismos do exímio Fermín Romero de Torres,
caminhámos a pé até ao que era um dos restaurantes favoritos do meu amigo, na cidade de Bar-
celona e em boa parte do mundo conhecido. O Can Lluís era no número 49 da Calle de la Cera, à
entrada do famigerado El Raval.
Decorado com modéstia e reinando um ar algo boémio, impregnado dos mistérios da velha
Barcelona, o Can Lluís oferecia uma gastronomia requintada, um serviço exemplar e preços que
até eu e Fermín podíamos pagar. Nas noites de semana, ali costumava afluir uma descontraída
freguesia de gentes do teatro e das letras, bem como outras criaturas da boa e da má vida, que ali
brindavam lado a lado.
Mal entrámos, deparámos, jantando ao balcão e a folhear um jornal, com um cliente habitual
da livraria, o professor Albur- querque, sábio local, professor da Faculdade de Letras e reputado
crítico e cronista, que fazia dali a sua segunda casa.
- Que difícil é pôr-lhe os olhos em cima, professor! - disse- -lhe ao passar a seu lado. - A ver
se nos visita e actualiza a sua biblioteca, porque um homem não pode viver apenas da leitura do
obituário do La Vanguardia.
- Bem gostaria. Já não posso ver mais dissertações à frente do nariz. De tanto ler as patetices
que escrevem estes rapazolas dos dias de hoje, até creio que estou com princípios de dislexia.
Nesse momento, um empregado veio servir-lhe a sobremesa: um belo e trémulo flan,
escorrendo gotas de açúcar queimado e emanando um delicioso aroma a baunilha.
- Bastar-lhe-ão duas colheradas dessa iguaria para sua excelência se ver livre de tais sintomas
- observou Fermín -, além de esse balanço caramelizado se assemelhar ao busto de Dona
Margarita Xirgu.
O douto professor observou a sua sobremesa à luz de tal consideração e concordou com
graciosidade. Deixámos o sábio a saborear as beldades açucaradas da diva do teatro e refugiámo-
-nos numa mesa de esquina na sala dos fundos, onde, a pouco e pouco, nos foram servindo uma
opípara refeição, que Fermín devorou com a voracidade e o ímpeto de uma trituradora industrial.
-Julgava que estava sem apetite - comentei.
- São os músculos a implorar por calorias - explicou Fermín, enquanto limpava
impecavelmente o prato com o último pedaço de pão que restava no cesto, ainda que, a meu ver,
o que de facto o estava a consumir era pura ansiedade.
Pere, o empregado que nos atendia, aproximou-se para verificar como estavam as coisas e, ao
ver a razia a que Fermín se entregara, estendeu-lhe a ementa das sobremesas.
- Uma sobremesazinha para rematar a faena, mestre?
-Já que falas nisso, não te diria que não a um par desses pudins da casa iguais aos que vi
antes, se possível com uma ginja bem vermelha em cima de cada um - disse.
Pere anuiu, contando-nos que, depois de o proprietário ouvir o modo como Fermín glosara a
consistência e a alusão metafórica daquela receita, decidira rebaptizar os pudins com o nome de
margaritas.
- Eu contento-me com um café pingado - disse.
- O chefe diz que a sobremesa e os cafés são por conta da casa - informou Pere.
Erguemos os copos de vinho na direcção do proprietário, que, atrás do balcão, conversava
com o professor Alburquerque.
- Boa gente - murmurou Fermín. - Por vezes, acabamos por nos esquecer que, neste mundo,
nem todos são escumalha.
Surpreendeu-me a dureza e a amargura do seu tom de voz.
- Por que diz isso, Fermín?
O meu amigo encolheu os ombros. Pouco depois, chegaram os pudins, tremendo tentadores
e coroados com duas reluzentes ginjas.
- Recordo-lhe que se irá casar daqui a algumas semanas e, então, já não haverá mais
margaritas para ninguém - gracejei.
- Pobre de mim - disse Fermín. - Estou feito num trapo. Já não sou como era antes.
- Nenhum de nós é como era.
Fermín degustou os pudins com prazer.
- Não sei agora onde terei lido que, no fundo, nunca fomos a pessoa que julgamos ter sido,
que só nos lembramos do que nunca aconteceu... - disse Fermín.
- É no início de um romance de Julián Carax - elucidei.
- Por falar nisso, por onde andará o nosso amigo Carax? O senhor nunca se interroga sobre
isso?
- Todos os dias.
Fermín sorriu, recordando-se das nossas aventuras de outros tempos. Apontou-me então o
dedo ao peito, assumindo um gesto inquisitivo.
-Ainda lhe dói?
Desabotoei dois botões da camisa e mostrei-lhe a cicatriz herdada da bala do inspector
Fumero, depois de me ter atravessado o peito, naquele longínquo dia nas ruínas de El Angel de
Bruma.
- De vez em quando.
- As cicatrizes nunca desaparecem, não é verdade?
- Desaparecem e reaparecem, julgo eu. Fermín, olhe-me nos olhos.
O olhar fugidio de Fermín incidiu sobre o meu.
- Vai contar-me o que está a acontecer?
Hesitou por alguns segundos.
- O senhor sabia que a Bernarda está grávida? - perguntou.
- Não - menti. - É isso que o tem estado a preocupar?
Fermín negou, levando à boca a colher com os restos do
segundo pudim e sorvendo o açúcar queimado que sobrara.
- Ela ainda não me quis dizer, coitada, porque está preocupada. Mas tornar-me-á o homem
mais feliz do mundo.
Fitei-o com determinação.
- Mas se quer que lhe diga aqui e agora a verdade, está muito longe de parecer feliz. E por
causa do casamento? Está preocupado pela subida ao altar e por todas as questões que estão
envolvidas?
- Não, Daniel. Na verdade, isso tudo deixa-me encantado, ainda que hajam padres no meio.
Casar-me-ia com a Bernarda todos os dias.
- Então?
- O senhor sabe qual é a primeira coisa que pedem a um homem quando se quer casar?
- O nome - disse sem pensar.
Fermín assentiu devagar. Nunca havia pensado naquilo até agora. De repente, compreendi o
dilema com que o meu amigo se enfrentava.
- Recorda-se do que lhe contei há anos, Daniel?
Lembrava-me muito bem. Durante a guerra civil e graças
às sinistras diligências do inspector Fumero, que, nessa altura, e antes de alinhar pelos fascistas,
era atirador a soldo dos comunistas, o meu amigo fora parar à prisão, onde esteve a ponto de
perder o juízo e a vida. Quando conseguiu sair, milagrosamente vivo, decidiu adoptar uma nova
identidade e apagar o passado. Moribundo, adoptara um nome que vira num velho cartaz que
anunciava uma corrida de touros na Praça Monumental. Assim nasceu Fermín Romero de Torres,
um homem que inventava a sua história dia após dia.
- Por isso não queria preencher os registos paroquiais - concluí. - Porque não pode usar o
nome de Fermín Romero de Torres.
Fermín confirmou.
' - Estou certo de que podemos encontrar uma forma de lhe conseguir novos documentos.
Recorda-se do tenente Palacios, que deixou a polícia? Agora, dá aulas de educação física num
colégio da Bonanova. Passou uma ou outra vez pela livraria e, falando por falar, contou-me que
existia um mercado negro de novas identidades, pelo regresso ao país de pessoas que haviam
passado alguns anos fora e que conhecia um indivíduo com escritório perto das Atarazanas, que
tinha contactos na polícia e que, por cem pesetas, conseguia ao requerente um novo bilhete de
identidade, que ele próprio registaria na conservatória.
- Bem sei. Chamava-se Heredia. Era um verdadeiro artista.
- Chamava-se?
- Encontraram-no a boiar nas águas do porto, há cerca de dois meses. Disseram que caíra de
uma gaivota, enquanto dava um passeio até ao molhe. Com as mãos atadas atrás das costas.
Típico humor dos fachos.
- O senhor conhecia-o?
- Tivemos alguns negócios.
- Assim, se tem documentos que o creditam como Fermín Romero de Torres...
- O Heredia conseguiu-mos em 1939, perto do fim da guerra. Nessa altura, era mais fácil,
aquilo era uma gritaria e, quando as pessoas se aperceberam de que o barco se estava a afundar,
por dois duros até vendiam o brasão de armas.
- Então, por que não pode usar o seu nome?
- Porque o Fermín Romero de Torres morreu em 1940. Aqueles eram tempos maus, Daniel,
muito piores do que os de hoje. O desgraçado não durou nem um ano.
- Morreu? Onde? Como?
- Na prisão do castelo de Montjuic. Na cela número 13. Lembrei-me da dedicatória que o
estranho escrevera a Fermín no exemplar de O Conde de Monte Cristo.
Para Fermín Romero de Torres, que regressou, de entre, os mortos e possuí a chave do futuro,
13
- Naquela noite, apenas lhe contei uma pequena parte da história, Daniel.
-Julgava que confiava em mim.
- Ao senhor, confiava-lhe a minha vida sem pestanejar. A questão não é essa. Se lhe contei
apenas parte da história, foi para o proteger.
- Para me proteger? A mim? De quê? Fermín baixou o olhar, cabisbaixo.
- Da verdade, Daniel... da verdade.
Segunda parte
De entre os mortosBarcelona, 1939
Os novos prisioneiros eram trazidos de noite, em automóveis ou carrinhas pretas que
atravessavam a cidade em silêncio, vindos da esquadra da Via Layetana, sem que ninguém
reparasse neles ou quisesse reparar. As viaturas da Brigada Social subiam a velha estrada que
ascendia pela montanha de Mont- juic, e várias pessoas contavam que, ao vislumbrarem a
silhueta do castelo a recortar-se lá no alto, contra as nuvens negras que subiam do mar,
souberam que nunca dali sairiam com vida.
A fortaleza estava ancorada no topo do rochedo, suspensa sobre o mar para este, o tapete de
sombras de Barcelona a norte e, a sul, a infinita cidade dos mortos, o velho cemitério de
Montjuic, cujo fedor escalava o rochedo e se infiltrava por entre as fendas das pedras e as grades
das celas. Noutros tempos, o castelo fora usado para bombardear a cidade a tiros de canhão, mas,
poucos meses após a queda de Barcelona, em Janeiro, e a derrota final, em Abril, a morte ali se
aninhara em silêncio, e os barceloneses, submersos na mais longa noite da sua história, preferiam
não erguer o olhar para o céu, para não reconhecerem a silhueta da prisão no cimo da colina.
Aos presos detidos pela polícia política era dado um número assim que entravam na prisão,
por norma o da cela que iam ocupar e onde, decerto, viriam a morrer. Para a maioria dos inquili-
nos, como alguns carcereiros gostavam de os chamar, na viagem para o castelo apenas se possuía
bilhete de ida. Na noite em que o inquilino 13 chegou ao castelo chovia copiosamente. Pequenos
sulcos de água enegrecida sangravam pelos muros de pedra e o ar fedia a terra remexida. Dois
agentes escoltaram-no até uma sala onde nada mais havia do que uma mesa de metal e uma
cadeira. Uma lâmpada nua pendia do tecto, cintilando intermitente sempre que a rotação dos
dínamos do gerador abrandava. Ali permaneceu cerca de meia hora, de pé, com as roupas
encharcadas e sob a vigilância de um guarda armado com espingarda.
Por fim, ouviram-se passos, a porta abriu-se e entrou um homem jovem, que não devia ter
ainda feito trinta anos. Vestia fato de lã recém-engomado e cheirava a água-de-colónia. Não tinha
o ar marcial de um militar de carreira ou de um agente policial. Os seus traços eram suaves e os
modos amáveis. O prisioneiro pensou que denotava modos de cavalheiro, transmitindo o ar
condescendente de quem se sente acima do lugar que ocupa e do cenário em que se insere. A
característica do seu rosto que mais chamava a atenção eram os olhos. Azuis, penetrantes, cinti-
lantes de cobiça e suspeita. Só neles, sob aquela fachada de estudada elegância e modos cordiais,
se intuía a sua natureza.
Óculos de lentes redondas ampliavam-lhe o olhar e o cabelo alisado com brilhantina e
penteado para trás conferia-lhe um ar vagamente amaneirado, desfasado naquele sinistro
cenário. O homem sentou-se na cadeira atrás da mesa e abriu uma pasta que trazia na mão. Após
uma rápida análise do seu conteúdo, uniu as mãos, apoiando o queixo sobre as pontas dos dedos
e fitou demoradamente o prisioneiro.
- Perdoe-me, mas julgo que terão feito alguma confusão...
A coronhada no estômago deixou-o sem respiração e o prisioneiro caiu no chão,
enrodilhando-se sobre si próprio.
- Falas apenas quando o senhor director to perguntar - ordenou o guarda.
- De pé - ordenou o senhor director, cuja voz trémula indicava que ainda não estava
acostumado a mandar.
O prisioneiro conseguiu levantar-se, enfrentando o incómodo olhar do senhor director.
- Nome?
- Fermín Romero de Torres.
O prisioneiro reparou naqueles olhos azuis, mais não vendo que desprezo e desinteresse.
- Mas que raio de nome é esse? Achas que sou idiota? Vamos, nome, o verdadeiro.
O prisioneiro, um homem pequeno e franzino, estendeu os seus documentos ao senhor
director. O guarda arrancou-lhos da mão e aproximou-os da mesa. O senhor director limitou-se
a passar os olhos e, depois, deu um estalido com a língua, sorrindo.
- Mais um dos do Heredia... - murmurou, antes de atirar os documentos para o cesto dos
papéis. - Estes documentos não são válidos. Vais dizer-me como te chamas ou temos de nos
zangar?
O inquilino número 13 tentou formar algumas palavras, mas, de lábios trémulos, foi incapaz
de balbuciar algo inteligível.
- Não tenhas medo, homem, porque nós não comemos ninguém. O que te contaram? Há
muitos vermelhos de merda que se dedicam a espalhar calúnias por toda a parte, mas aqui todos
os que colaboram são bem tratados, como espanhóis que são. Vamos, despe-te.
O inquilino pareceu hesitar por alguns instantes. O senhor director baixou o olhar, como se
todos aqueles trâmites o incomodassem e apenas a teimosia do prisioneiro ali o retivesse. Pouco
depois, o guarda desferiu-lhe uma segunda coronhada, desta vez nos rins, que o tornou a
derrubar.
- Ouviste o senhor director. Em pelota. Não temos a noite toda.
O inquilino número 13 conseguiu colocar-se de joelhos e foi despindo as roupas
ensanguentadas e sujas que o cobriam. Uma vez nu, o guarda enfiou-lhe o cano da espingarda
debaixo de um ombro, obrigando-o a levantar-se. O senhor director ergueu o olhar da mesa,
esboçando um gesto de desgosto ao ver as queimaduras que lhe cobriam o tronco, as nádegas e
boa parte das coxas.
- Parece-me que este campeão é um velho conhecido do Fumero - comentou o guarda.
- Você cale-se - ordenou o senhor director com pouca convicção.
Fitou o prisioneiro com impaciência, verificando que este estava a chorar.
- Vamos, não chores e diz-me como te chamas.
O prisioneiro sussurrou de novo o seu nome.
- Fermín Romero de Torres-...
O senhor director suspirou, enfastiado.
- Vamos, estás a esgotar-me a paciência. Quero àjudar-te e não me apetece ter de telefonar
ao Fumero e dizer-lhe que estás aqui...
O prisioneiro começou a gemer como um cão ferido e a tremer com tal violência, que o
senhor director, visivelmente desagradado com aquele cenário e desejando pôr cobro àqueles
procedimentos o mais depressa possível, trocou um olhar com o guarda e, sem nada mais dizer,
limitou-se a anotar na folha de registo o nome que o.prisioneiro lhe dera, praguejando e
insultando-o em voz baixa.
- Merda de guerra - murmurou para si próprio quando levaram o prisioneiro para a sua cela,
arrastado nu pelos túneis encharcados.
A cela era um rectângulo escuro e húmido, com um pequeno orifício aberto na rocha, por
onde entrava ar frio. As paredes estavam cobertas de mossas e marcas gravadas pelos inquilinos
anteriores. Alguns gravavam os seus nomes, datas ou deixavam algum indício de que haviam
existido. Um deles, entretivera-se, na escuridão, a gravar crucifixos com as unhas, mas o céu não
parecera reparar nele. As grades que isolavam a cela eram de ferro forjado, deixando um rasto de
ferrugem nas mãos.
Fermín aninhara-se sobre um catre, tentando cobrir a nudez com um pedaço de tecido
esfarrapado, que, calculou, ser usado como manta, colchão e almofada. A penumbra tingia-se de
um tom acobreado, como o halo de uma vela mortiça. Passado pouco tempo, os olhos
acostumavam-se àquela treva perpétua e a audição apurava-se, para distinguir ténues
movimentos de corpos entre a litania das gotas da chuva e dos ecos ressoantes das correntes de
ar que se infiltravam do exterior.
Fermín estava ali há meia hora, quando reparou, no outro extremo da cela, num vulto na
sombra. Levantou-se e aproximou-se devagar, acabando por descobrir tratar-se de uma saca de
serapilheira suja. O frio e a humidade haviam começado a penetrar- -lhe nos ossos e, por mais
que o cheiro emanado daquele fardo salpicado de manchas escuras não augurasse agradáveis
conjecturas, Fermín pensou que talvez a saca tivesse uma farda de prisioneiro, que ninguém se
dera ao trabalho de lhe entregar e, com um pouco de sorte, um cobertor para se aquecer.
Ajoelhou-se em frente à saca e desatou o nó que atava uma das extremidades.
Ao abri-la, a iluminação das candeias que cintilavam trémulas no corredor revelou o que, por
momentos, julgou tratar-se do rosto de um boneco, de um manequim como os que os alfaiates
colocavam nas montras para exporem os fatos. O fedor e a náusea fizeram-no compreender que
não se tratava de um boneco. Cobrindo o nariz e a boca com uma das mãos, retirou o resto de
tecido e atirou-se para trás, contra a parede da cela.
O cadáver parecia ser de um adulto de idade indeterminada, entre os quarenta e os setenta e
cinco anos, que não deveria pesar mais do que cinquenta quilos. Os cabelos compridos e a barba
branca cobriam-lhe uma boa parte do tronco esquelético. As mãos ossudas, de unhas compridas
e retorcidas, assemelhavam-se às garras de uma ave. Tinha os olhos abertos e as córneas
pareciam ter-se-lhe enrugado, como frutos maduros. Aboca estava entreaberta e a língua,
inchada e enegrecida, ficara presa entre os dentes apodrecidos.
- Tire-lhe a roupa antes que o levem - entoou uma voz de uma cela do outro lado do
corredor. - A si, ninguém lhe vai dar outras roupas até ao próximo mês.
Fermín perscrutou na penumbra, vislumbrando aqueles olhos cintilantes que o observavam
do catre da outra cela.
- Sem medo, porque esse desgraçado já não pode fazer mal a ninguém - garantiu a voz.
Fermín assentiu e aproximou-se de novo da saca, pergun- tando-se como ia levar a cabo a
operação.
- Perdoe-me - murmurou para o defunto. - Descanse em paz e que Deus o acolha na sua
glória.
- Era ateu - informou a voz vinda da cela em frente.
Fermín compreendeu e deixou-se de cerimónias. O frio que
inundava o cubículo penetrava até aos ossos, parecendo insinuar que, ali, as cortesias estavam a
mais. Susteve a respiração e deitou mãos à obra. A roupa libertava um cheiro idêntico ao do
morto. O rigor mortis começara a instalar-se por todo o corpo e a tarefa de despir o cadáver
revelou-se mais difícil do que calculara. Após libertar o defunto das suas vestimentas, Fermín
voltou a cobri-lo com a saca, fechando-a depois com um nó de marinheiro que nem o grande
Houdini conseguiria desfazer. Por fim, ataviado com aquela muda, esfarrapada e pestilenta,
Fermín recolheu-se no seu catre, questionando-se sobre quantos usuários poderiam ter vestido
aquele mesmo uniforme.
- Obrigado - acabou por dizer.
- Não tem de quê - respondeu a voz do outro lado do corredor.
- Fermín Romero de Torres, ao seu dispor para o servir.
- David Martin.
Fermín franziu o sobrolho. O nome soava-lhe familiar. Depois de vasculhar na memória e
nas recordações durante quase cinco minutos, fez-se-lhe luz, lembrando-se de tardes passadas
num recanto da Biblioteca dei Carmen, devorando uma série de livros com capas e títulos
ousados.
- Martin, o escritor? O autor de A Cidade dos Malditos?
Um suspiro na escuridão.
- Neste país, já ninguém respeita os pseudónimos.
- Perdoe-me a indiscrição. É que a minha devoção pelos seus livros era escolástica e por isso
sei que era a sua mão que segurava na pena do ilustre Ignatius B. Samson...
- Ao seu inteiro dispor.
- Permita-me que lhe diga, senhor Martin, é um prazer conhecê-lo, ainda que em tão
infaustas circunstâncias, porque há anos que sou seu admirador e...
- A ver se se calam, suas gralhas, porque há aqui pessoas a tentar dormir - bramou uma voz
áspera, que parecia vir da cela ao lado.
- Falou a alegria desta casa - interveio uma segunda voz, proveniente de um ponto do
corredor um pouco mais afastado. - Não faça caso, Martin, porque, aqui, o que adormecer será
comido vivo pelos percevejos, que começarão logo pelas partes baixas. Vamos, Martin, por que
não nos conta uma história? Uma das da Chloé...
- Isso mesmo, para a descascares como um macaco - retorquiu a voz hostil.
- Amigo Fermín - informou Martin da sua cela -, tenho o prazer de lhe apresentar o número
12, que tudo pinta de negro, independentemente do que possa estar em causa, e o número 15,
insone, culto e ideólogo oficial deste corredor. Quanto aos restantes, falam pouco, sobretudo o
número 14.
- Falo só quando tenho alguma coisa para dizer - interveio uma voz grave e cortante, que
Fermín calculou ser a do número 14.
- Se todos os que aqui se encontram fizessem o mesmo, teríamos paz durante a noite.
Fermín reflectiu sobre tão particular vizinhança.
- Desejo uma boa noite a todos. Chamo-me Fermín Romero de Torres e é um prazer
conhecê-los.
- O prazer é todo seu - replicou o número 12.
- Bem-vindo e espero que a sua estada seja breve - disse o número 14.
Fermín tornou a dirigir olhares para a saca que continha o cadáver, engolindo em seco.
- Esse era o Lucio, o anterior número 13 - esclareceu Martin. - Nada sabemos acerca dele,
porque o desgraçado era mudo. Uma bala destroçou-lhe a laringe, na batalha do Ebro.
- É uma pena que fosse o único - acrescentou o número 12.
- De que morreu? - perguntou Fermín.
- Aqui, morre-se por se estar cá - respondeu o número 12.
- Não é preciso muito mais.
A rotina ajudava. Uma vez por dia, durante uma hora, levavam os prisioneiros das duas
primeiras alas para o pátio do fosso, para que pudessem apanhar sol, chuva ou o que o tempo
ditasse. A comida era uma tigela meio cheia de uma argamassa fria, gordurosa e acinzentada, de
natureza indeterminada e de gosto a ranço, a que, passados alguns dias, e em virtude das cãibras
da fome no estômago, todos acabavam por se habituar. Era distribuída a meio da tarde e, com o
tempo, os prisioneiros acabavam a ansiar pela sua chegada.
Uma vez por mês, os prisioneiros entregavam as suas roupas sujas e recebiam outras, que, em
princípio, teriam sido submersas durante um minuto num caldeirão com agua a ferver, ainda que
os percevejos não parecessem interessados em desistir com o tratamento. Aos domingos, era
rezada uma missa de presença recomendada e à qual ninguém se atrevia a faltar, porque o sacer-
dote procedia a uma chamada, anotando o nome de quem faltasse. Duas ausências
representariam uma semana de jejum. Três, davam direito a um mês de férias nas celas de
isolamento, sediadas na torre.
As alas, pátios e espaços frequentados pelos prisioneiros estavam sob forte vigilância. Um
corpo de guardas armados com espingardas e pistolas patrulhava a prisão e, quando os detidos
estavam fora das celas, era impossível olhar em qualquer direcção e não ver pelo menos uma
dúzia de arma em riste e olho na mira. A eles se juntavam, ainda que de modo menos
ameaçador, os carcereiros. Nenhum tinha aspecto militar e a opinião generalizada entre os
detidos era que se tratava de um bando de desgraçados, que, naqueles dias de miséria, não
conseguiram encontrar melhor emprego.
A cada ala estava atribuído um carcereiro, que, munido de um molho de chaves, fazia turnos
de doze horas, sentado numa cadeira num dos extremos do corredor. A maioria evitava confra-
ternizar com os prisioneiros, ou mesmo dirigir-lhes a palavra ou o olhar, além do estritamente
necessário. A única excepção era um pobre-diabo alcunhado de Bebo, que perdera um olho num
bombardeamento aéreo, quando era segurança nocturno numa fábrica de Pueblo Seco.
Dizia-se que Bebo tinha um irmão gémeo preso numa prisão de Valência e que, talvez por
isso, tratava os prisioneiros com uma certa amabilidade, quando ninguém o podia ver, os
brindava com água potável, pedaços de pão duro ou qualquer outra coisa que conseguisse
surripiar da despensa que os guardas faziam com os envios das famílias dos presos. Bebo gostava
de arrastar a cadeira até às proximidades da cela de David Martin e ouvir as histórias que, por
vezes, o escritor contava aos outros presos. Naquele singular inferno, Bebo era o mais parecido
com um anjo.
Era costume, após a missa de domingo, o senhor director dirigir algumas palavras edificantes
aos presos. Tudo o que se sabia dele era chamar-se Mauricio Valls e que, antes da guerra, fora um
modesto aspirante a literato, trabalhando como secretário e moço de recados de um autor local
de algum prestígio e também eterno rival do malogrado Don Pedro Vidal. Nos tempos livres,
entregava-se à má tradução de clássicos do grego e do latim, à edição, com um ou outro
congénere, de um panfleto de grandes ambições culturais e de pequena circulação, à organização
de tertúlias de salão, onde um batalhão de eminentes personalidades de ideologia similar
lamentava a situação actual e profetizava que, se um dia lhes viesse a caber a responsabilidade de
tomar as rédeas do cavalo, o mundo ascendia ao Olimpo.
A sua vida parecia encaminhada por essa existência cinzenta e amarga dos medíocres, aos
quais Deus, na sua infinita crueldade, abençoou com delírios de grandeza e com a soberba dos
titãs. Não obstante, a guerra reescrevera o seu destino, tal como o de tantos outros e a sua sorte
mudara quando, num episódio classificável entre o acaso e o oportunismo, Mauricio Valls, até
então apenas apaixonado pelo seu prodigioso talento e inimitável requinte, contraiu matrimónio
com a filha de um poderoso industrial, cujos tentáculos sustinham uma boa parte da base de
apoio do general Franco e das suas tropas.
A noiva, oito anos mais velha do que Mauricio, desde os treze estava confinada a uma cadeira
de rodas, carcomida por uma doença congénita que lhe devorava os músculos e a vida. Nenhum
homem jamais a olhara nos olhos ou lhe havia pegado na mão, para lhe louvar a beleza ou
perguntar o nome. Mauricio, que, como todos os literatos sem talento, era, no fundo, um homem
tão prático como vaidoso, foi o primeiro e o último a fazê-lo, e um ano depois o casal contraía
matrimónio em Sevilha, contando entre os convidados com a galáctica presença do general
Queipo de Llano e de outras estrelas do firmamento nacional.
- O senhor irá longe, Valls - pressagiou-lhe o próprio Serrano Súner numa reunião privada,
em Madrid, requerida por Valls com vista a mendigar o cargo de director da Biblioteca Nacional.
- Espanha está a viver momentos difíceis e todo o espanhol bem-nascido deve cerrar fileiras para
conter as hordas do marxismo, que ameaçam corromper os nossos valores espirituais - anunciou
o cunhado do Caudilho, engalanado na sua farda de almirante de pacotilha.
- Conte comigo, excelência - disponibilizou-se Valls. - Para o que for preciso.
«O que for preciso» traduziu-se no cargo de director, não da prodigiosa Biblioteca Nacional,
como ele desejava, mas sim de uma penitenciária de lúgubre reputação, erguida num penhasco
sobranceiro à cidade de Barcelona. A lista de afilhados e clientes à espera de colocação em cargos
de prestígio era longa e complexa e Valls, não obstante os seus esforços, estava no terço inferior.
- Tenha paciência, Valls. Os seus méritos serão recompensados.
Assim aprendeu Mauricio Valls a sua primeira lição na complexa arte nacional de manobrar e
ascender no decurso de qualquer alteração de regime: milhares de acólitos e convertidos
haviam-se juntado à corrida e a competição era feroz.
ESSA era, pelo menos, a lenda. Aquele chorrilho não confirmado de suspeitas, conjecturas e
rumores em terceira mão chegara aos ouvidos dos presos por via das más práticas do anterior
director, deposto após duas semanas no cargo, envenenado pelo ressentimento face àquele
arrivista, que, daquele modo, lhe vinha roubar o título pelo qual lutara durante toda a guerra. O
demitido carecia de influências familiares de relevo, arrastando consigo o fatídico precedente de
ter sido surpreendido ébrio e a proferir comentários jocosos sobre o Generalíssimo de todas as
Espanhas e as suas surpreendentes semelhanças com o Grilo Falante. Antes de ser desterrado
para o cargo de subdirector de uma prisão de Ceuta, dedicara-se a maldizer Don Mauricio Valls
junto de quem o quisesse ouvir.
O que não deixava margens para dúvidas era que a ninguém era permitido dirigir-se a Valls
sob nenhum outro título senão o de senhor director. A versão oficial, promulgada pelo próprio,
rezava que Don Mauricio Valls era um homem de letras de prestígio reconhecido, detentor de
um intelecto culto e de requintada erudição, acumulada em anos de estudos em Paris e que,
muito para além daquela passagem temporária pelo sistema prisional, tinha por destino e missão,
com o auxílio de um selecto círculo de intelectuais congéneres, a educação do povo inculto
daquela Espanha arrasada, pretendendo ensiná-lo a pensar.
Os seus discursos incluíam com frequência extensas citações dos textos, poemas ou artigos
de índole pedagógica que publicava com assiduidade na imprensa nacional, versando sobre lite-
ratura, filosofia ou o necessário renascimento do pensamento no Ocidente. Se os prisioneiros
aplaudiam com sonoridade quando chegava o fim dessas magistrais sessões, o senhor director,
num gesto magnânimo, ordenava aos carcereiros que distribuíssem cigarros, velas ou algum
outro luxo, recolhido do lote de donativos e bens enviados pelas famílias dos presos. Os artigos
mais apetecíveis haviam sido confiscados pelos carcereiros, que ou os levavam para casa ou, por
vezes, os vendiam entre os prisioneiros, pois era melhor do que nada.
Aqueles que faleciam de causas naturais ou induzidas, por norma entre um e três por
semana, eram recolhidos à meia-noite, exceptuando fins-de-semana e feriados; então, o cadáver
permanecia na cela até segunda-feira ou até ao dia útil seguinte, habitualmente fazendo
companhia ao novo inquilino. Quando os presos passavam a palavra de que um dos
companheiros partira para uma vida melhor, um carcereiro aproximava-se, sentia-lhe o pulso ou
a respiração e enfiava-o numa das sacas de serapilheira que usavam para esse fim. Depois de
atada a saca, o cadáver jazia na cela até que os serviços fúnebres do contíguo cemitério de
Montjuic o viessem recolher. Ninguém sabia o que acontecia aos cadáveres e, quando Bebo fora
questionado a tal respeito, recusara-se a responder e desviara o olhar.
A cada quinze dias, realizava-se um julgamento militar sumário, com os condenados a serem
fuzilados ao romper da aurora. Por vezes, o pelotão de fuzilamento não acertava em nenhum
órgão vital, devido ao mau estado das espingardas ou das munições, e os lamentos de agonia dos
fuzilados, caídos no fosso, ouviam-se horas a fio. De vez em quando, ouvia-se uma explosão e os
gritos cessavam de vez. A teoria que circulava entre os presos era que algum dos oficiais tinha
acabado por resolver a questão com uma granada, mas ninguém estava certo de que fosse essa a
explicação.
Outro dos rumores que circulava entre os presos era que o senhor director, nas manhãs de
sexta-feira, recebia mulheres, filhas, namoradas ou tias e avós dos presos. Sem aliança de casa-
mento, que confinava na gaveta de cima da secretária, ouvia as suas súplicas, reflectia sobre os
pedidos, oferecia-lhes um lenço para enxugarem as lágrimas e aceitava as suas ofertas e favores
de outra índole, sob promessas de melhor alimentação e tratamento ou de comutação de penas
duvidosas, que caíam sempre em saco roto.
Noutras ocasiões, Mauricio Valls limitava-se a servir-lhes biscoitos e um cálice de moscatel e
se, não obstante a escassez da época, continuassem agradáveis aos olhos e ao tacto, lia-lhes
alguns dos seus escritos, confessava-lhes que o seu casamento com uma doente crónica era um
verdadeiro calvário de santidade, desdobrava-se em palavras acerca do quão detestava aquela
missão de carcereiro e falava-lhes da humilhação que pressupunha o confinamento de um
homem de tão elevados padrões de requinte, cultura e sofisticação àquele cargo vil, quando o seu
destino natural era fazer parte das elites do país.
Os veteranos do estabelecimento aconselhavam todos a não se referirem ao senhor director
e, se possível fosse, a nem sequer pensarem nele. A maioria dos presos preferia falar da família
que havia deixado, da mulher e das recordações da sua vida anterior. Alguns tinham fotografias
de namoradas ou mulheres, que guardavam e defendiam com a própria vida, se alguém lhas
quisesse arrebatar. Mais de um preso explicara a Fermín que os primeiros três meses eram os
piores. Depois, uma vez perdidas as esperanças, o tempo começava a decorrer devagar e os dias
sem sentido iam adormecendo a alma.
Aos domingos, depois da missa e do discurso do senhor director, alguns presos reuniam-se
num canto soalheiro do pátio, partilhando um cigarro e ouvindo as histórias que, quando tinha a
sanidade necessária, David Martin lhes contava. Fermín, que as conhecia quase todas, porque
lera a série completa de A Cidade dos Malditos, juntava-se-lhes, dando asas à imaginação. Mas
amiúde Martin não estava em condições sequer de contar até cinco, altura em que os outros o
deixavam em paz, enquanto se punha a falar sozinho pelos cantos. Fermín observava-o demo-
radamente e, por vezes, seguia-o de perto, porque algo naquele pobre-diabo lhe encolhia a alma.
Fermín, por via das suas artes e esquemas malabaristas, tentava arranjar-lhe cigarros ou até tor-
rões de açúcar, que ele adorava.
- Fermín, o senhor é um bom homem. Trate de o disfarçar.
Martin trazia sempre consigo uma velha fotografia que gostava de contemplar durante
bastante tempo. Nela surgia um cavalheiro vestido de branco, de mão dada com uma menina que
devia ter cerca de dez anos. Ambos olhavam o crepúsculo, na ponta de um cais de madeira, que,
partindo da praia, pelo mar se adentrava, qual passadeira estendida sobre águas transparentes.
Quando Fermín lhe perguntava pela fotografia, Martin remetia- -se ao silêncio e limitava-se a
sorrir, antes de a guardar no bolso.
- Quem é a menina nessa fotografia, senhor Martin?
- Não tenho a certeza, Fermín. Por vezes, a memória falha- -me. Não lhe acontece?
- Claro que sim. Acontece a todos.
Corria o rumor de que Martin não estaria no pleno uso da sua razão mas, à medida que ia
convivendo com ele, Fermín começara a suspeitar de que o desgraçado estava mais demente do
que os restantes prisioneiros supunham. Por vezes, estava mais lúcido do que ninguém, mas
eram muitas as vezes em que parecia não compreender onde se encontrava, falando de lugares e
de pessoas que apenas na sua imaginação ou nas suas recordações poderiam existir.
Com frequência, Fermín acordava de madrugada, conseguindo ouvir Martin a falar na sua
cela. Se se aproximasse em silêncio das grades e apurasse o ouvido, conseguia escutar com
nitidez Martin a discutir com alguém a quem chamava «senhor Corelli» e que, a confiar nas
palavras que com ele trocava, parecia ser uma personagem notavelmente sinistra.
Numa dessas noites, Fermín acendera o que restava da última vela, tendo-a erguido na
direcção da cela da frente, para se certificar de que Martin estava só e de que ambas as vozes, a
dele e a do tal Corelli, provinham dos mesmos lábios. Martin caminhava em círculos pela cela e,
quando o seu olhar se cruzou com o de Fermín, este não teve quaisquer dúvidas em concluir que
o seu companheiro não o via e que se comportava como se os muros daquela prisão não
existissem e a sua conversa com aquele estranho cavalheiro estivesse a decorrer muito longe dali.
- Não lhe preste atenção - murmurou o número 15 desde a penumbra. - Todas as noites faz o
mesmo. Enlouqueceu por completo, afortunado seja.
Na manhã seguinte, quando Fermín o questionou acerca do tal Corelli e das suas conversas
nocturnas, Martin fitou-o com estranheza e, confuso, limitou-se a sorrir. Numa outra vez, não
conseguindo adormecer devido ao frio, Fermín aproximara-se outra vez da grade, ouvindo
Martin a falar com mais um dos seus amigos invisíveis. Nessa noite, ousou interrompê-lo.
- Martin? Sou o Fermín, o vizinho da frente. Sente-se bem?
Martin aproximou-se da grade e Fermín pôde ver que tinha
o rosto marejado de lágrimas.
- Senhor Martin? Quem é Isabella? Ainda há pouco estava a falar dela.
Martin fitou-o longo tempo.
- A Isabella é a única coisa boa que me resta neste mundo de merda - respondeu com uma
aspereza pouco usual nele. - Não fosse por ela, mais valia atear-me fogo e deixar arder, até que
não restassem nem as cinzas.
- Perdoe-me, Martin. Não queria perturbá-lo.
Martin retirou-se para as sombras. No dia seguinte, encon- traram-no a tremer, deitado
sobre um charco de sangue. Bebo adormecera sentado na sua cadeira e Martin aproveitara a
oportunidade para roçar os pulsos nas pedras até cortar as veias. Quando o levaram numa maca,
estava tão pálido, que Fermín pensou que não o voltava a ver.
- Não esteja preocupado com o seu amigo, Fermín - disse o número 15. - Se fosse outro, ia
direito para a saca, mas ao Martin o senhor director não deixa morrer. Ninguém sabe porquê.
A cela de David Martin esteve vazia durante cinco semanas. Quando Bebo o trouxe, nos
braços e de pijama branco, qual criança, tinha os braços envoltos em ligaduras até aos cotovelos.
Não se lembrava de ninguém e passou a primeira noite a falar sozinho e a rir. Bebo instalou a sua
cadeira em frente às grades, mantendo-se a zelar por ele a noite inteira, passando-lhe torrões de
açúcar que roubou da messe dos oficiais e que escondera nos bolsos.
- Senhor Martin, por favor, não diga essas coisas, porque Deus vai castigá-lo - sussurrava-lhe
o carcereiro entre torrões de açúcar.
No mundo real, o número 12 fora o doutor Román Sanahuja, chefe do Serviço de Medicina
Interna do hospital Clínico, homem íntegro e imune às exaltações e aos delírios ideológicos,
enviado para o castelo devido à sua consciência e à recusa em denunciar colegas. Por norma,
dentro daquelas paredes, a nenhum dos prisioneiros se reconhecia profissão ou título algum.
Excepto quando tal profissão pudesse trazer benefícios para o senhor director. No caso do doutor
Sanahuja, a sua utilidade depressa foi estabelecida.
- Infelizmente, não disponho aqui dos recursos médicos desejáveis - explicou-lhe o senhor
director. - Na verdade, o regime tem outras prioridades e pouco importa que um de vocês
apodreça de gangrena na cela. Depois de muito batalhar, consegui que me enviassem uma
malguarnecida farmácia e um médico tão impreparado, que julgo que nem na faculdade de
medicina veterinária o aceitavam, nem como varredor. Mas são estes os meios que há. Julgo saber
que, antes de sucumbir às falácias da neutralidade, você era um médico prestigiado. Por motivos
que não vêm ao caso, tenho um interesse particular em que o prisioneiro David Martin não nos
deixe precocemente. Se concordar em colaborar e em ajudar a mantê-lo, dadas as circunstâncias,
num estado de saúde razoável, garanto-lhe que torno a sua estada neste estabelecimento mais
suportável e encarrego- -me eu mesmo para que o seu caso seja revisto, a fim de encurtar a sua
sentença.
O doutor Sanahuja mostrou-se receptivo.
- Chegou-me aos ouvidos que alguns presos dizem que o Martin está com um parafuso a
menos, como vocês dizem. É assim? - perguntou o senhor director.
- Não sou psiquiatra, mas, na minha modesta opinião, diria que o Martin está visivelmente
desequilibrado.
O senhor director reflectiu sobre aquela opinião.
- E, tendo em conta a sua opinião, quanto tempo diria que pode durar? - perguntou. - Com
vida, quero dizer.
- Não sei. As condições nesta prisão são insalubres e...
O senhor director interrompeu-o com um gesto de aborrecimento, anuindo.
- E quanto ao juízo? Durante quanto tempo consegue o Martin manter as suas faculdades
mentais?
- Não por muito mais, suponho.
- Compreendo.
O senhor director ofereceu-lhe um cigarro, que o médico declinou.
- O senhor gosta dele, não é?
- Mal o conheço - contrapôs o médico. - Parece um bom homem.
O senhor director sorriu.
- E um péssimo escritor. O pior que alguma vez este país teve.
- Aqui, o internacional e reputado especialista em literatura é o senhor. Eu não percebo nada
do assunto.
O senhor director fitou-o com frieza.
- Por impertinências menores enviei homens três meses para a solitária. Poucos sobrevivem
e, os que o conseguem, saem de lá piores do que o seu amigo Martin. Não julgue que o seu
diploma lhe concede algum privilégio. Consta do seu processo que tem mulher e três filhas no
exterior. O seu destino e o da sua família dependem do quão útil me possa ser. Estou a ser claro?
O doutor Sanahuja engoliu em seco.
- Sim, senhor director.
- Obrigado, doutor.
Periodicamente, o senhor director pedia a Sanahuja que examinasse Martin, porque as
más-línguas diziam que não confiava no médico residente da prisão, um carniceiro desleal e que,
à força de lavrar tantas certidões de óbito, parecia ter-se esquecido da noção de cuidados
preventivos e que acabou por ser despedido pouco tempo depois.
- Como está o paciente, doutor?
- Debilitado.
- Compreendo. E os seus demónios? Continua a falar sozinho e a imaginar coisas?
- Não há alterações.
- Li no ABC um magnífico artigo assinado pelo meu bom amigo Sebastián Jurado, que falava
sobre a esquizofrenia, que classifica como doença dos poetas.
- Não tenho capacidade para fazer tal diagnóstico.
- Mas sim para o manter com vida, não é?
- Estou a tentar.
- Faça mais do que tentar. Pense nas suas filhas. Tão jovens. Tão desprotegidas, tendo em
conta os desalmados e os vermelhos que continuam por aí escondidos.
Com o passar dos meses, o doutor Sanahuja acabou por se afeiçoar a Martin e, certo dia,
enquanto partilhavam beatas, contou a Fermín o que sabia acerca da história daquele homem,
que alguns, gracejando em torno dos seus desvarios e da sua condição de lunático oficial da
prisão, haviam começado a alcunhá-lo de o Prisioneiro do Céu.
PARA ser sincero, acho que, quando o trouxeram para aqui, o David Martin já estava doente
há algum tempo. Já ouviu falar de esquizofrenia, Fermín? É uma das novas palavras favoritas do
senhor director.
- E o que o povo costuma referir como «estar doido varrido».
- Não é assunto para brincadeiras, Fermín. É uma doença bastante grave. Não é a minha
especialidade, mas conheci alguns casos e, com frequência, ouvem vozes, vêem e recordam-se de
pessoas que nunca conheceram ou de eventos que nunca aconteceram... A mente vai-se
deteriorando a pouco e pouco e o doente deixa de conseguir distinguir entre a realidade e a
ficção.
- Tal como com setenta por cento dos espanhóis... E o senhor acha que o desgraçado do
Martin padecerá de tal doença, doutor?
- Não sei bem. Já lhe disse que não é a minha especialidade, mas parece-me que apresenta
alguns dos seus sintomas mais típicos.
- Bem vistas as coisas, talvez neste caso essa doença seja uma bênção...
- Nunca é uma bênção, Fermín.
- E ele sabe que está, digamos, afectado?
- O louco julga sempre que são os outros que estão loucos.
- É o que eu dizia dos tais setenta por cento dos espanhóis...
Um guarda observava-os a partir do alto de uma guarita,
como se desejasse ler-lhes os lábios.
- Baixe a voz ou ainda estamos tramados.
O médico indicou a Fermín que dessem a volta e encaminha- ram-se até ao outro extremo do
pátio.
- Nos tempos que correm, até as paredes têm ouvidos - disse o médico.
- Só faltaria agora que tivessem meio cérebro entre os dois, e ainda nos conseguíamos safar -
replicou Fermín.
- Sabe o que me disse o Martin da primeira vez que o examinei a pedido do senhor director?
«- Doutor, julgo ter descoberto a única forma de sair desta prisão.
«- Como?
«-Morto.
«-Não tem uma solução mais prática?
«- O senhor já leu O Conde de Monte de Cristo, doutor?
«- Quando era rapaz. Já quase não me recordo da história.
«- Pois releia-o. Está tudo lá.
«Não lhe quis dizer que o senhor director mandara retirar da biblioteca da prisão todos os
livros de Alexandre Dumas, bem como os de Dickens, de Galdós e de muitos outros autores, pois
considerava-os lixo para entreter uma plebe sem o gosto educado, e substituiu-os por uma
colecção de romances e narrativas inéditos da sua própria lavra e de alguns amigos, que mandou
encadernar a pele ao Valenti, um preso que trabalhou em artes gráficas e o qual, concluído o
trabalho, deixou morrer de frio, obrigando-o a manter-se no pátio, sob chuva, durante cinco
noites de Janeiro, por ter ousado gracejar acerca da pretensa elegância da sua prosa. O Valenti
conseguiu escapar com o sistema do Martin: morto.
«Algum tempo depois de eu chegar, e por conversas ouvidas entre os carcereiros, percebi que
o Martin chegara a esta penitenciária a pedido do próprio senhor director. Antes, estivera na
Modelo, acusado de uma série de crimes a que, julgo eu, ninguém dava crédito. Entre outras
coisas, diziam que havia matado, possesso pelos ciúmes, o seu mentor e melhor amigo, um
cavalheiro abastado chamado Pedro Vidal, escritor como ele, e a mulher, Cristina Vidal. E
também que assassinara a sangue-frio vários polícias, e nem sei quem mais. Ultimamente, tanta
gente é acusada de tantas coisas, que já não se sabe o que pensar. A mim, custa-me acreditar que
o Martin seja um assassino, mas também é verdade que, nos anos da guerra, vi tanta gente de
ambas as facções a perder as estribeiras e a deixar cair a máscara, que já nem sei o que lhe diga.
Toda a gente atira a pedra e aponta para o vizinho.
- Se eu lhe contasse umas coisas... - reflectiu Fermín.
- O certo é que o pai desse tal Vidal é um industrial poderoso e muito abastado e diz-se que
foi um dos principais financiadores da facção nacionalista. Por que será que todas as guerras são
vencidas pelos banqueiros? Por fim, seria o poderoso Vidal a pedir ao Ministério dajustiça para
procurarem o Martin e se assegurarem de que apodreceria na prisão, pelo que fizera ao filho e à
nora. Ao que parece, o Martin andara fugido fora do país durante quase três anos, até que o
capturaram perto da fronteira. Não podia estar muito bom da cabeça para regressar a uma
Espanha onde o esperavam para o crucificarem, acho eu. Sobretudo nos últimos dias da guerra,
altura em que a maioria das pessoas atravessava em sentido contrário.
- Por vezes, as pessoas cansam-se de fugir - disse Fermín. - O mundo é demasiado pequeno
quando não se tem um sítio para onde ir.
- Suponho que foi isso que o Martin pensou. Não sei a que estratagema recorreu para a
passar, mas alguns habitantes locais de Puigcerdá denunciaram-no à Guardia Civil, depois de o
verem a vaguear pela localidade durante dias, vestindo roupas andrajosas e a falar sozinho.
Alguns pastores disseram que o haviam visto no caminho de Bolvir, a cerca de dois quilómetros
da povoação. Existia aí uma antiga estalagem chamada La Torre dei Remei, que, durante a
guerra, foi reconvertida em hospital para acolher os feridos na frente. Era gerido por um grupo de
mulheres, que, decerto, se apiedaram do Martin e, julgando-o miliciano, lhe ofereceram abrigo e
alimentação. Quando o foram buscar, já não estava lá, mas naquela noite surpreenderam-no
dentro de um lago gelado, quando tentava abrir, com uma pedra, um orifício na superfície. No
início, julgavam que estava a tentar suicidar-se e levaram-no para o sanatório de Villa San
Antonio. Mas parece que um dos médicos da instituição o reconheceu, não me pergunte como
nem porquê, e quando o nome dele chegou aos ouvidos das chefias foi transferido para
Barcelona.
- Para a boca do lobo.
- Bem pode dizê-lo. O julgamento não durou nem dois dias. A lista de acusações que lhe
imputavam era interminável, embora poucos indícios ou provas existissem a sustentá-las, mas,
por um estranho motivo, o oficial de justiça conseguiu arrolar numerosas testemunhas que
depuseram contra ele. Na sala de audiências, compareceram dúzias de pessoas que odiavam o
Martin, revelando um zelo tal que surpreendeu o próprio juiz, e que, presumivelmente,
receberam luvas do velho Vidal. Antigos colegas dos anos em que trabalhara num jornal de
pequena tiragem chamado La Voz de la Industria, literatos de café, desgraçados e invejosos de
diversa estirpe saíram da sombra para jurar que o Martin era culpado de tudo de que era acusado
e de muito mais. Já sabe como funcionam as coisas aqui. Por ordem do juiz e a pedido do Vidal
pai, todas as suas obras foram confiscadas e queimadas, consideradas subversivas e atentatórias
da moral e dos bons costumes. Quando o Martin declarou no julgamento que o único bom
costume que defendia era o de ler e que o resto era com cada um, o juiz acrescentou mais dez
anos de pena aos não sei quantos a que já o condenara. Parece que, no decurso do julgamento,
em vez de se calar, Martin respondeu sem papas na língua a tudo o que lhe perguntavam e
acabou por cavar a sua própria sepultura.
- Nesta vida, perdoa-se tudo, menos dizer a verdade.
- O certo é que o condenaram a prisão perpétua. No La Voz de la Industria, propriedade do
velho Vidal, foi publicado um extenso artigo onde os seus crimes eram enumerados e, como se
não bastasse, um editorial. Adivinhe quem o assinou?
- O nosso excelentíssimo senhor director, Don Mauricio Valls.
- O próprio. Nesse editorial, qualificava-o como «o pior escritor da história», celebrando o
facto de os seus livros terem sido destruídos, porque eram «uma afronta à humanidade e ao bom
gosto».
- Também disseram isso acerca do Palau de la Música - precisou Fermín. - Reside nesta
cidade a fina-flor da intelectualidade internacional. Já dizia Unamuno: eles que inventem, que
nós opinaremos.
- Inocente ou não, o Martin, depois de se ver humilhado em público e de ter assistido à
queima de todas as páginas que escrevera, foi parar a uma cela da Modelo, onde decerto morreria
numa questão de semanas, não fosse o senhor director, que tinha seguido o caso com particular
interesse e por algum estranho motivo estava obcecado pelo Martin, teve acesso ao seu processo
e pediu que o transferissem para aqui. O Martin contou-me que, no dia em que chegou, o Valls
ordenou que o levassem ao seu gabinete e contemplou-o com um dos seus discursos:
«- Martin, ainda que seja um criminoso convicto e decerto um subversivo inveterado, alguma
coisa nos une. Ambos somos homens de letras e ainda que tenha dedicado a sua malograda
carreira a escrever lixo para as massas ignorantes e desprovidas de orientação intelectual, julgo
que talvez o senhor me possa ajudar e assim redimir- -se dos seus erros. Tenho uma série de
romances e de poemas nos quais tenho vindo a trabalhar nos últimos anos. São de excelso nível
literário e, lamentavelmente, duvido muito que, neste país de analfabetos, hajam mais de trezentos
leitores capazes de compreender e apreciar o seu valor. Assim, pensei que talvez o senhor, dado ser
escritor a soldo, e dada também a sua proximidade a essa populaça que lê nos eléctricos, me possa
ajudar a fazer algumas pequenas alterações, de modo a aproximar a minha obra do triste nível dos
leitores deste país. Se concordar em colaborar; garanto-lhe que posso tornar a sua vida muito
mais agradável. Posso diligenciar para que o seu processo seja reaberto. A sua amiguinha... Como
se chama ela? Ah! Sim, a Isabella. Uma beleza, se me permite a apreciação. Enfim, a sua
amiguinha veio ver-me e contou-me que contratou um jovem advogado, um tal Brians, e que
conseguiu reunir o dinheiro suficiente para a sua defesa. Não nos enganemos: ambos sabemos
que o seu processo não tinha qualquer base de sustentação e que foi condenado à mercê de
testemunhos discutíveis. Você parece ter uma enorme facilidade em fazer inimigos, Martin,
mesmo entre pessoas que nem sabem que existe. Não cometa o erro de me fazer um dos seus
inimigos, Martin. Não sou um desses desgraçados. Aqui, entre estas paredes, e para falar sem
rodeios, sou Deus.
«Não sei se o Martin acabou por aceitar ou não a proposta do senhor director, mas penso
que sim, pois permanece vivo e o nosso Deus privado continua interessado em que isso não
mude, pelo menos por enquanto. Até lhe deu o papel e o material de escrita que possui na cela,
suponho que para lhe reescrever as suas obras-primas, de modo a que o nosso senhor director
possa ascender ao Olimpo da fama e da fortuna literária, que tanto anseia. Quanto a mim, e para
lhe dizer a verdade, não sei o que pensar. Tenho a impressão de que o pobre Martin não está em
condições de reescrever nem o número que calça e que passa a maior parte do tempo numa
espécie de purgatório que o mantém preso na sua cabeça, estando a ser devorado em vida pelos
remorsos e dor. Ainda que a minha especialidade seja medicina interna, não sou a pessoa mais
indicada para fazer tal diagnóstico...
A história contada pelo bom médico deixara Fermín intrigado. Fiel à sua perene adesão às
causas perdidas, decidiu investigar por sua própria conta e risco, tentando descobrir algo mais
sobre Martin e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar o plano de fuga via mortis, ao estilo de Alexandre
Dumas. Quanto mais voltas dava ao assunto mais lhe parecia que, a esse respeito, o Prisioneiro do
Céu não estava tão louco como o pintavam. No pátio, sempre que se proporcionava, Fermín tudo
fazia para se aproximar de Martin e com ele encetar conversa.
- Fermín, começo a pensar que o senhor e eu somos quase namorados. Sempre que me volto,
aí está você.
- Perdoe-me, senhor Martin, mas há uma coisa que me tem intrigado.
- E qual é motivo de tamanha intriga?
- Pois olhe, para falar sem rodeios, não consigo compreender como um homem decente
como você pôde aceitar ajudar essa almôndega nauseabunda e vaidosa, que é o nosso
excelentíssimo senhor director, nas suas fraudulentas tentativas de se fazer passar por grande
literato.
- Você não tem papas na língua. Parece-me que nesta casa não existem segredos.
- É que tenho um dom especial para enredos de alta intriga e outros mesteres detectivescos.
- Saberá então que não sou um homem decente, mas sim um criminoso.
- Isso foi o que disse o juiz.
- E um exército de testemunhas ajuramentadas.
- Compradas por um facínora e todas instigadas pela inveja e por mesquinhezes várias.
- Diga-me, há alguma coisa que não saiba, Fermín?
- Montes delas. Mas há dias que fiquei entupido por querer saber porque pactuará com esse
cretino endeusado. Pessoas como ele são a gangrena deste país.
- Pessoas como ele existem em todo o lado, Fermín. Ninguém detém a patente.
- Mas aqui é levado a sério.
- Não o julgue tão precipitadamente. O senhor director é uma personagem mais complicada
de que parece em todo este sainete. Para começar, esse cretino endeusado, como o senhor lhe
chama, é um homem muito poderoso.
- Deus, segundo ele.
- Neste purgatório particular, não está muito enganado.
Fermín torceu o nariz. Não estava a gostar do que ouvia.
Quase parecia que Martin estava a saborear o vinho da sua derrota.
- Ameaçou-o? É isso? Que mais lhe pode fazer?
- A mim, nada, excepto rir. Mas outros há, fora daqui, a quem pode fazer muito mal.
Fermín remeteu-se a um prolongado silêncio.
- Perdoe-me, senhor Martin. Não queria ofendê-lo. Não tinha pensado nisso.
- Não me ofende, Fermín, pelo contrário. Julgo que tem uma visão demasiado generosa em
relação ao meu caso. A sua boa-fé revela muito mais de si do que de mim.
- É essa menina, não é? A Isabella.
- Senhora.
- Ignorava que era casado.
- E não sou. A Isabella não é minha mulher. Nem minha amante, se é o que está a pensar.
Fermín ficou em silêncio. Não queria pôr em causa as palavras de Martin, mas só ao ouvi-lo
falar dela não restava qualquer dúvida de que aquela menina, ou senhora, era quem mais o des-
graçado Martin amava no mundo e, decerto, também a única coisa que o mantinha vivo naquele
poço de miséria. E o mais triste era que, provavelmente, nem se dava conta.
- Isabella e o marido gerem uma livraria, um local que, desde criança, sempre teve um
significado especial para mim. O senhor director disse-me que, se não fizesse o que me pedia, se
encarregaria de os acusar de vender materiais subversivos, para que lhes expropriassem o negócio
e fossem presos e separados do filho, que ainda nem tem três anos.
- Filho de uma grandessíssima puta - murmurou Fermín.
- Não, Fermín - disse Martin. - Esta guerra não é sua. É a minha guerra. É aquilo que mereço
pelo que fiz.
- O senhor nada fez, Martin.
- Não me conhece, Fermín. Nem precisa. No que tem de se concentrar é em fugir daqui.
- Essa é a outra coisa que queria perguntar-lhe. Julgo saber que o senhor estará a desenvolver
um método experimental para escapar desta latrina. Se necessitar de uma cobaia seca de carnes,
mas rejubilante de entusiasmo, considere-me ao seu serviço.
Martin observou-o, pensativo.
-Já leu as obras de Dumas?
- De fio a pavio.
- Bem me parecia. Se assim é, já saberá de onde vêm as ideias. Ouça-me bem.
FERMÍN estava prestes a cumprir os seus primeiros seis meses de cativeiro, quando uma série
de acontecimentos veio alterar substancialmente o que, até à altura, havia sido o rumo da sua
vida. O primeiro foi quando, naqueles dias, o regime ainda acreditava que Hitler, Mussolini e
companhia iriam vencer a guerra e que, em breve, a Europa se tingiria com as mesmas cores das
cuecas do Generalíssimo, uma horda impune e furiosa de carniceiros, bufos e comissários
políticos recém-convertidos viera contribuir para que o número de cidadãos presos, detidos, con-
denados ou desaparecidos alcançasse números históricos.
As prisões do país não davam vazão a tantos condenados e as autoridades militares
ordenaram à direcção da prisão que duplicasse ou triplicasse o número de presos, para absorver
parte do caudal de condenados que emanava daquela Barcelona derrotada e miserável de 1940.
Para esse efeito, o senhor director, no seu floreado discurso dominical, informou os presos de
que, a partir daí, iriam partilhar as celas. O doutor Sanahuja foi colocado na cela de Martin,
presumivelmente para o manter sob vigilância e evitar tentativas de suicídio. Fermín teve de
partilhar a cela 13 com o seu vizinho do lado, o número 14, e assim por diante. Todos os presos
daquela ala foram colocados dois a dois, para deixar espaço para os recém-chegados, que, todas
as noites, traziam em carrinhas, vindos da Modelo ou do Campo de la Bota.
- Não faça essa cara, que isto agrada-me ainda menos do que a si - advertiu o número 14 ao
confrontar-se com o seu novo companheiro.
- Aviso-o que a hostilidade me provoca aerofagia - ameaçou Fermín. - Por isso, deixe-se de
aventuras à Buffalo Bill e esforce- -se por ser cortês e mijar voltado para a parede sem salpicar ou,
mais dia menos dia, acordará coberto de fungos.
O antigo número 14 passou cinco dias sem dirigir a palavra a Fermín. Por fim, rendendo-se às
sulfúricas emanações com que este o presenteava de madrugada, mudou de estratégia.
-Já o avisei - disse Fermín.
- Está bem. Rendo-me. Chamo-me Sebastián Salgado. Sindicalista de profissão. Aperte-me a
mão e sejamos amigos, mas, por favor, deixe de dar tantos peidos, porque começo a ter aluci-
nações e, em sonhos, vejo já o Noi dei Sucre a dançar charleston.
Fermín apertou a mão de Salgado, notando que lhe faltavam os dedos mindinho e anelar.
- Fermín Romero de Torres, encantado, por fim, em conhecê-lo. Por profissão, trabalhava
para os serviços secretos, secção Caraíbas, da Generalitat de Catalunya, agora retirado,
bibliógrafo de vocação e amante das belas-letras.
Salgado fitou o seu novo colega de infortúnio, para depois revirar os olhos.
- E dizem que o louco é o Martin.
- Louco é o que se tem por sensato e que os néscios estão acima da sua condição.
Salgado anuiu, assumindo a derrota.
O segundo acontecimento deu-se passados alguns dias, quando dois guardas, ao anoitecer, o
foram buscar. Bebo abriu- -lhes a cela, tentando dissimular a sua preocupação.
- Tu, magrelas, levanta-te - ordenou um dos guardas.
Por um instante, Salgado considerou que as suas preces haviam sido ouvidas e que estariam
a levar Fermín para o fuzilarem.
- Coragem, Fermín - animou-o, sorridente. - Morrer por Deus e por Espanha é a mais bela
das mortes.
Os dois guardas imobilizaram Fermín, algemaram-lhe os pés e as mãos e levaram-no a
arrastar, perante o olhar angustiado de todos os presos da ala e das gargalhadas de Salgado.
- Desta, nem com peidos escapas - disse, rindo, o seu companheiro.
CONDUZIRAM-NO através de um emaranhado de túneis, até um longo corredor que
desembocava junto a um grande portão de madeira. Fermín sentiu-se nauseado e disse a si
próprio que a miserável viagem que a sua vida fora estava prestes a chegar ao fim e que, atrás
daquela porta, Fumero estaria à sua espera, com um maçarico e a noite livre. Para sua surpresa,
ao chegarem à porta, um dos guardas tirou-lhe as algemas, enquanto o outro batia com
delicadeza.
- Entre - respondeu uma voz familiar.
Foi assim que Fermín deu por si no gabinete do senhor director, uma sala decorada
luxuosamente, com tapeçarias confiscadas de alguma mansão da Bonanova e com mobiliário de
qualidade. O cenário era rematado por um estandarte espanhol brasonado com águia, escudo e
inscrição, uma fotografia do Caudilho mais retocada do que uma fotografia de Marlene Dietrich e
pela presença do senhor director, Don Mauricio Valls, sorridente, atrás da sua secretária,
enquanto saboreava um cigarro importado e um copo de brande.
- Senta-te. Não tenhas medo - convidou.
Fermín reparou que, a seu lado, um tabuleiro com um prato com carne, ervilhas e puré de
batata fumegante emanava um cheiro a manteiga derretida.
- Não é uma miragem - disse com doçura o senhor director. - É o teu jantar. Espero que
gostes.
Fermín, que não via iguaria igual desde Julho de 1936, lan- çou-se a devorar as carnes antes
que desaparecessem. O senhor director via-o comer com uma expressão de asco e desprezo
debaixo do seu sorriso improvisado, acendendo um cigarro no anterior e alisando
constantemente o cabelo. Quando Fermín deu o jantar por terminado, Valls ordenou aos dois
guardas que se retirassem. A sós, o senhor director parecia-lhe muito mais sinistro do que na
companhia de guardas armados.
- Fermín, não é? - perguntou em tom casual.
Fermín assentiu devagar.
- Perguntar-te-ás porque te mandei chamar.
Fermín encolheu-se na cadeira.
- Nada que te deva preocupar. Muito pelo contrário. Ordenei que te trouxessem porque
quero melhorar as tuas condições de vida e, quem sabe, talvez rever a tua pena, porque ambos
sabemos que as acusações que incidiam sobre ti não eram fortes. E um sinal dos tempos,
remexe-se muita água e por vezes há justos que pagam pelos pecadores. E o preço do
renascimento nacional. A margem destas considerações, quero que saibas que estou do teu lado.
Também eu sou um pouco prisioneiro neste lugar. Julgo que ambos queremos sair daqui o mais
depressa possível, pelo que pensei que nos podemos ajudar. Um cigarrinho?
Fermín aceitou, tímido.
- Se não se importa, guardo-o para mais tarde.
- Claro. Toma, fica com o maço.
Fermín guardou o maço de cigarros no bolso. O senhor director debruçou-se sobre a
secretária, sorridente. No jardim zoológico, existia uma serpente em tudo semelhante,
exceptuando o facto de aquela comer ratos.
- Que tal o teu novo companheiro de cela?
- O Salgado? É insuportável.
- Não sei se sabes, mas, antes de ter sido encarcerado, esse mal-nascido era um pistoleiro e
partidário dos comunistas.
Fermín negou.
- Disse-me que era sindicalista.
Valls riu-se levemente.
- Em Maio de 1938, agindo sozinho, entrou em casa da família Vilajoana, no Paseo de la
Bonanova, e matou toda a gente, incluindo os cinco meninos, as quatro jovens e a avó de oitenta
e seis anos. Alguma vez ouviste falar dos Vilajoana?
- Assim de repente...
- Eram joalheiros. Na altura do crime, havia na casa a quantia de vinte e cinco mil pesetas,
em jóias e numerário. Sabes onde está esse dinheiro?
- Não sei.
- Nem tu nem ninguém. O único que sabe é o camarada Salgado, que optou por não os
entregar ao proletariado e escondeu- -os, para viver à grande após a guerra. Algo que nunca fará,
porque o manteremos aqui até que conte ou o teu amigo Fumero acabe por o cortar aos
bocadinhos.
Fermín anuiu, começando a compreender.
-Já reparei que lhe faltam dois dedos na mão esquerda e que anda esquisito.
- Um dia pede-lhe para baixar as calças e verás que lhe faltam outras coisas mais, que pelo
caminho perdeu devido à sua teimosia em não confessar.
Fermín engoliu em seco.
- Quero que saibas que sinto repugnância por essas selvajarias. Essa é uma das duas razões
pelas quais ordenei que o Salgado fosse transferido para a tua cela. Porque penso que a falar é
que a gente se entende. Assim, quero que descubras onde escondeu o saque dos Vilajoana, bem
como todos os roubos e crimes que cometeu nos últimos anos... e que depois me contes.
Fermín sentiu o coração cair-lhe aos pés.
- E a outra razão?
- A segunda razão é que reparei, de há algum tempo para cá, que te tornaste bastante amigo
do David Martin. E isso parece-me muito bem. A amizade é um valor que enobrece o ser humano
e que ajuda a reabilitação dos presos. Não sei se sabias, mas o Martin é escritor.
-Já ouvi qualquer coisa a esse respeito.
O senhor director dirigiu-lhe um olhar gélido, mas manteve o sorriso conciliador.
- Na verdade, o Martin não é má pessoa, mas está enganado a respeito de muitas coisas. Uma
delas é a ingénua ideia de que deve proteger pessoas e segredos indesejáveis.
- Ele é de facto uma pessoa muito estranha e tem dessas coisas.
- Claro. Por isso pensei que o melhor seria que te mantivesses a seu lado, de olhos e de
ouvidos bem abertos, para me contares o que diz, pensa e sente... Estou certo de que já terá
comentado algo contigo que te chamou a atenção.
- Agora que o senhor director fala nisso, nos últimos tempos, queixa-se bastante de uma
borbulha que lhe apareceu na virilha, devido ao roçar das cuecas.
O senhor director suspirou e abanou a cabeça, exausto por esgrimir tamanha amabilidade
com um indesejável.
- Olha, chico-esperto, podemos fazer isto a bem ou a mal. Estou a tentar ser razoável, mas
basta-me pegar no telefone e o teu amigo Fumero está aqui dentro de meia hora. Contaram- -me
que, nos últimos tempos, além do maçarico, levou para uma das masmorras da cave uma caixa
de ferramentas de marcenaria e com elas faz todos vergar. Estou a ser claro?
Fermín agarrou as mãos, para dissimular o tremor.
- Bastante. Perdoe-me, senhor director. Já não comia carne há tanto tempo, que as proteínas
devem-me ter subido à cabeça. Não tornará a acontecer.
O senhor director voltou a sorrir, prosseguindo como se nada tivesse acontecido.
- Em particular, interessa-me saber se alguma vez mencionou um Cemitério dos Livros
Esquecidos... ou mortos... ou algo do género. Pensa bem antes de responderes. O Martin alguma
vez te falou desse local?
Fermín negou.
-Juro a sua excelência que nunca ouvi falar desse local em toda a minha vida, nem pela boca
do senhor Martin nem pela de ninguém...
O senhor director dirigiu-lhe uma piscadela de olho.
- Acredito em ti. E é por isso que sei que, se ele o referir, tu me dirás. E, se não o fizer, tu
falas no assunto e descobres onde fica.
Fermín assentiu repetidamente.
- Mais uma coisa. Se o Martin te falar de um certo pedido que lhe fiz, convence-o de que,
para seu bem e sobretudo para o de uma certa dama por quem ele tem elevada estima, e marido e
filho, melhor será que se empenhe a sério e que escreva a sua obra-prima.
- Está a referir-se à senhora Isabella? - perguntou Fermín.
-Ah! Vejo que já te falou dela... Tinhas de a ver - disse,
enquanto limpava os óculos com um lenço. - Jovenzinha, jovenzinha, com uma pureza de
colegial... Não sabes as vezes que esteve sentada aí, onde tu estás agora, a suplicar-me pelo pobre
infeliz do Martin. Não te vou dizer o que me ofereceu, cavalheiro que sou, mas, aqui entre nós, a
devoção que essa rapariga nutre pelo Martin é imensa. Se tivesse de apostar, diria que esse
menino, o Daniel, não é filho do marido, mas sim do Martin, que tem um gosto péssimo para a
literatura, mas exigente no que às mulheres diz respeito.
O senhor director interrompeu o seu discurso ao verificar que o prisioneiro o fitava com um
olhar impenetrável, que não lhe agradou.
- Para onde estás a olhar? - desafiou.
Desferiu uma pancada no tampo da secretária com os nós dos dedos e a porta abriu-se atrás
de Fermín. Os dois guardas agarraram-no pelos braços e levantaram-no da cadeira até os pés
deixarem de tocar no chão.
- Lembra-te do que te disse - retorquiu o senhor director. - Daqui a quatro semanas, quero
ver-te aqui outra vez sentado. Se trouxeres resultados, garanto-te que a tua estada aqui mudará
para melhor. Caso contrário, farei uma reserva em teu nome para a masmorra da cave do
Fumero, com os seus brinquedos. Estou a ser claro?
- Como água.
Depois, com um gesto de aborrecimento, ordenou aos guardas que levassem o prisioneiro e
terminou o copo de brande, enojado por, dia após dia, ter de lidar com aquela gentalha inculta e
embrutecida.
DANIEL, está branco como a cal - murmurou Fermín, despertando-me do transe.
A sala de jantar do Can Lluís e as ruas que tínhamos percorrido para chegar ali haviam
desaparecido. A tal ponto, que conseguia até visualizar aquela sala no castelo de Montjuic e o
rosto daquele homem, falando da minha mãe com palavras e insinuações que me queimavam.
Senti algo frio e cortante abrindo caminho no meu interior, uma raiva como jamais sentira. Dese-
jei por um instante, mais do que qualquer outra coisa no mundo, estar na presença daquele
mal-nascido, para lhe apertar o pescoço e fitá-lo cara a cara, até os olhos lhe saírem das órbitas.
- Daniel...
Fechei os olhos por um instante e respirei fundo. Quando os tornei a abrir, estava de regresso
ao Can Lluís e Fermín Romero de Torres olhava-me derrotado.
- Perdoe-me, Daniel - disse.
Tinha a boca seca. Servi-me de um copo de água e levedo à boca, esperando que as palavras
me viessem aos lábios.
- Nada há para perdoar, Fermín. Nada do que me contou é culpa sua.
- É culpa minha, por lhe contar isto - disse, numa voz quase inaudível de tão baixa.
Vi-o baixar o olhar, como se não se atrevesse a fitar-me. Compreendi que a dor que o
embargava ao recordar aquele episódio e ter de me revelar a verdade era tão intensa, que senti
vergonha do rancor que se apoderara de mim.
- Fermín, olhe para mim.
Fermín acabou por me olhar de soslaio e sorri-lhe.
- Quero que saiba que lhe agradeço por me ter contado a verdade e que compreendo por
que preferiu não me dizer nada nestes dois anos.
Fermín assentiu com timidez, mas alguma coisa no seu olhar me deu a entender que as
minhas palavras não lhe serviam de consolo algum. Pelo contrário. Mantivemo-nos em silêncio
por alguns instantes.
- Há mais, não é verdade? - acabei por perguntar.
Fermín assentiu.
- E o que vem é pior?
Fermín tornou a confirmar.
- Muito pior.
Desviei o olhar e sorri para o professor Alburquerque, que se retirava, não sem antes nos
cumprimentar.
- Sendo assim, por que não pedimos mais água e me conta o resto? - sugeri.
- Melhor que seja vinho - calculou Fermín. - E que seja carrascão.
Barcelona, 1940
UMA semana depois da reunião entre Fermín e o senhor director, dois indivíduos que nunca
ninguém tinha visto naquela ala e que deviam pertencer à Brigada Social levaram Salgado
algemado sem nada dizerem.
- Bebo, sabes para onde o levam? - perguntou o número 12.
O carcereiro negou, mas nos seus olhos podia notar-se que
alguma coisa teria ouvido e que preferia não abordar o assunto. À falta de outras notícias, a
ausência de Salgado foi de imediato objecto de discussão e especulação entre os prisioneiros, que
formularam todo o tipo de teorias.
- Esse era um espião dos nacionalistas que infiltraram aqui para nos sacar informações, sob a
fachada de o terem detido como sindicalista.
- Sim, e foi por isso que lhe cortaram dois dedos e sabe-se lá mais o quê, para que a fachada
fosse mais convincente.
- Neste preciso momento, deve estar no Amaya, a banquetear-se com pescada à moda do País
Basco com os seus amiguinhos e a rir-se de todos nós.
- Eu acho que confessou tudo o que queriam ouvir; para depois o atirarem ao mar; a dez
quilómetros da costa e com uma pedra amarrada ao pescoço.
- Tinha cara de falangista. Ainda bem que não abri o pio; pois, vão-vos chamar à pedra.
- Sim, homem. É possível até sermos presos.
À falta de outro passatempo, as discussões prolongaram-se, até que, dois dias depois, os
mesmos indivíduos que o haviam levado o trouxeram. A primeira coisa em que todos repararam
foi que Salgado não se sustinha em pé e que o arrastavam como se fosse um fardo. A segunda,
que estava pálido como um cadáver e empapado em suor frio. O prisioneiro regressara seminu e
coberto por uma crosta acastanhada, que parecia uma mistura de sangue seco e dos seus próprios
excrementos. Atiraram-no para o chão da cela como se fosse uma saca de esterco, partindo sem
descolar os lábios.
Fermín agarrou-o pelos braços e estendeu-o sobre o catre. Começou a lavá-lo devagar com
tiras de tecido que ia rasgando da própria camisa, embebidas em água que Bebo lhe trouxera às
escondidas. Salgado estava consciente e respirava com dificuldade, mas os olhos cintilavam como
se alguém lhes ateasse fogo por dentro. Onde, há dois dias, estivera a mão esquerda, via- -se
agora um coto de carne violácea, cauterizada com alcatrão. Enquanto Fermín lhe lavava o rosto,
Salgado sorriu-lhe, exibindo os poucos dentes que lhe restavam.
- Por que não conta, de uma vez por todas, a estes carniceiros o que querem saber, Salgado?
É apenas dinheiro. Não sei quanto tem escondido, mas não vale tamanhos sacrifícios.
- Uma merda - conseguiu dizer com o pouco fôlego que lhe restava. - Esse dinheiro é meu.
- Será de todas as pessoas que assassinou e roubou, se não se importa com a correcção.
- Não roubei ninguém. Eles roubaram primeiro o povo. Se os executei, foi para aplicar a
justiça que o povo reclamava.
- Compreendo. E então surgiu você, Robin dos Bosques de Matadepera, para endireitar o
que estava torto. Grande justiceiro me saiu!
- Esse dinheiro é o meu futuro - vociferou Salgado.
Fermín passou-lhe o pano humedecido pela testa, fria e
coberta de arranhões.
- O futuro não se deseja, merece-se. E você não tem futuro, Salgado. Nem você nem um país
que vai parindo facínoras como você e o senhor director que depressa desvia o olhar. Fomos nós
quem arrasou o futuro e a única coisa que nos espera é um monte de merda, como esta que agora
lhe escorre do corpo e que estou farto de limpar.
Salgado deixou escapar um gemido gutural, que Fermín imaginou ser uma gargalhada.
- Poupe-se nos discursos, Fermín. Até parece que, agora, se dá ares de herói.
- Não. Existem heróis a mais. Não sou mais do que um cobarde. Nem mais nem menos -
declarou Fermín. - Mas ao menos sei-o e admito-o.
Fermín continuou a limpá-lo o melhor que lhe foi possível, em silêncio, para depois o tapar
com aquele trapo que tinham por manta conjunta, guarnecido de percevejos e fedendo a urina.
Ficou ao lado do ladrão até Salgado fechar os olhos, mergulhando num sono tão profundo, que
Fermín não estava certo de que dele pudesse despertar.
- Diga-me que já morreu - chegou a voz do número 12.
- Aceitam-se apostas - acrescentou o número 17. - Aposto um cigarro em como se vai.
- Vão todos dormir ou à merda - sugeriu Fermín.
Agachou-se no extremo oposto da cela e tentou conciliar o
sono, mas depressa se apercebeu de que, naquela noite, ficaria em claro. Pouco depois, encostou
o rosto às grades da cela, deixando os braços pendentes sobre a barra de metal horizontal que as
atravessava. Do outro lado do corredor, saídos das sombras da cela em frente, fitavam-no dois
olhos iluminados pela brasa de um cigarro.
- Não me disse o motivo por que, há alguns dias, o Valls o mandou chamar - disse Martin.
- Tente imaginá-lo.
- Algum pedido fora do vulgar?
- Quer que lhe saque informações acerca de um tal cemitério dos livros ou qualquer coisa do
género.
- Interessante - comentou Martin.
- Fascinante.
- Explicou-lhe o porquê do seu interesse nesse assunto?
- Para ser franco, senhor Martin, a nossa relação não é assim tão estreita. O senhor director
limita-se a ameaçar-me com mutilações várias e se dentro de quatro semanas não cumpro as suas
ordens, limito-me a dizer que sim.
- Não se preocupe, Fermín. Daqui a quatro semanas, já estará fora daqui.
- Sim, numa praia dás Caraíbas e com duas belas mulatas a massajarem-me os pés.
- Tenha fé.
Fermín deixou escapar um suspiro de desalento. Era entre loucos, facínoras e moribundos
que os dados do seu destino estavam lançados.
AQUELE domingo, após o seu discurso no pátio, o senhor director dirigiu a Fermín um olhar
curioso, rematado com um sorriso que lhe trouxe um sabor a bílis aos lábios. Mal os guar-
das permitiram que os presos circulassem, Fermín aproximou-se sub-repticiamente de
Martin.
- Um discurso brilhante - comentou Martin.
- Histórico. Sempre que este homem fala, a história do pensamento no Ocidente sofre uma
reviravolta completa.
- O sarcasmo não condiz consigo, Fermín. Soa contraditório com a sua ternura natural.
- Vá para o inferno.
-Já estou nele. Um cigarro?
- Não fumo.
- Dizem que ajuda a morrer mais depressa.
- Sendo assim, não digo que não.
Fermín nem sequer conseguiu passar a primeira passa. Martin tirou-lhe o cigarro dos dedos e
deu-lhe uma palmada nas costas, enquanto este tossia a tal ponto que parecia prestes a vomitar
as recordações da primeira comunhão.
- Não sei como pode gostar disso. Sabe a cão chamuscado.
- Estes cigarros são do melhor que se consegue aqui. Dizem que os fazem com restos de
beatas recolhidas nos corredores da Monumental.
- Pois permita-me que lhe diga que este bouquet faz-me pensar em urinóis, veja lá bem.
- Respire fundo, Fermín. Sente-se melhor?
Fermín assentiu.
- Vai contar-me alguma coisa sobre esse tal cemitério, para ter alguma coisa que dizer ao
leitão-chefe? Não precisa de ser verdade. Qualquer disparate que lhe ocorrer serve.
Martin sorriu, exalando entre os dentes aquele fumo fétido.
- Como está o seu companheiro de cela, o Salgado, esse defensor dos pobres?
- Para ser sincero, pensava já ter alguma idade e tudo visto neste mundo enlouquecido. Esta
madrugada, quando pensava que o Salgado havia expirado, eis que o ouço alevantar-se e a apro-
ximar-se do meu catre, como se fosse um vampiro.
- Tem algo disso - confirmou Martin.
- Aproximou-se de mim e manteve-se a observar-me fixamente. Fingi continuar adormecido
e, quando o Salgado ficou com a certeza, vejo-o aninhar-se a um canto da cela e, com a única
N
mão que tem, começar a coçar o que a medicina designa por recto ou parte final do intestino
grosso - prosseguiu Fermín.
- Como diz?
- Tal como conto. O nosso bom Salgado, convalescente da sua mais recente sessão de
mutilação medieval, decide celebrar a primeira vez que é capaz de se levantar para explorar esse
esconso recanto da anatomia humana que a natureza vedou à luz do Sol. Eu, incrédulo, nem a
respirar me atrevi. Passado um minuto, pareceu-me que o Salgado tinha já dois ou três dedos, os
únicos que ainda restam, enfiados ali dentro, em busca da pedra filosofal ou de uma hemorróida
muito profunda. Tudo isto acompanhado de gemidos contidos, que não vou reproduzir.
- Deixa-me petrificado! - exclamou Martin.
- Prepare-se para o granfinale. Passados um ou dois minutos de trabalho exploratório em
território anal, deixa escapar um suspiro digno de São João da Cruz e dá-se o milagre. Ao retirar
os dedos das entranhas, extrai uma coisa brilhante, que, mesmo do canto onde estava, consegui
certificar-me de que não se tratava de um cagalhoto.
- O que era então?
- Uma chave. Não uma chave-inglesa, mas uma dessas chaves mais pequenas, de uma mala
ou de um cacifo de ginásio.
- E então?
- Então, pega na chave, limpa-a com saliva, por que calculo que devia cheirar a rosas bravas,
e, depois de se certificar de que continuo adormecido, que confirmo com um ressonar profundo
e digno de uma cria de São Bernardo, esconde a chave, inserindo-a numa fenda entre as pedras,
que torna depois a cobrir com musgo e com um ou outro derivado da sua palpação anal.
Martin e Fermín fitaram-se em silêncio.
- O senhor está a pensar o mesmo que eu? - quis saber Fermín.
Martin confirmou.
- Que quantia julga que esse seboso terá escondida no seu ninho de cobiça? - perguntou
Fermín.
- A suficiente para pensar que vale a pena perder dedos, mãos, parte dos testículos e sabe
Deus o que mais para proteger o segredo da sua localização - aventurou Martin.
- E agora o que faço? Porque, antes de permitir que a víbora do senhor director deite as
garras ao tesourinho do Salgado, para financiar uma edição em capa dura das suas obras-primas e
comprar um assento na Real Academia de la Lengua, eu seria capaz de engolir essa chave ou, se
preciso fosse, introduzi-la nas partes ignóbeis do meu aparelho intestinal.
- Para já, nada faça - aconselhou Martin. - Certifique-se de que a chave permanece no
mesmo local e aguarde pelas minhas instruções. Estou a ultimar os pormenores da sua fuga.
- Sem querer ofendê-lo, senhor Martin, agradeço-lhe o seu auxílio e apoio moral, mas esta
ousadia pode custar-me a vida ou, até mesmo, uma ou outra protuberância e, tendo em conta
que todos o têm por doido varrido, fico preocupado ao pôr a minha vida nas suas mãos.
- Se não se fia num romancista, em quem vai confiar?
Fermín viu Martin a afastar-se no pátio, envolto na sua nuvem
portátil de fumo de cigarro de restos de beatas.
- Mãe de Deus - murmurou para o vento.
O macabro casino de apostas organizado pelo número 17 prolongou-se por vários dias, no
decurso dos quais Salgado tão depressa parecia prestes a expirar como se levantava para se
arrastar até às grades da cela, onde, aos berros, vituperava o estribilho
«Filhosdeumacadelanãovosdareicêntimoqueseja ecagonaputaqueospariu» e variações do género
até desfalecer e, exangue, cair por terra, de onde Fermín o levantava e o tornava a devolver ao
catre.
- O barata vai bater a bota, Fermín? - perguntava o número 17 assim que o ouvia cair
redondo.
Fermín já não se dava ao trabalho de divulgar o relatório médico do seu companheiro de cela.
Se se fosse, veriam passar a saca de serapilheira.
- Vamos lá a ver, Salgado, se vai morrer, morra de vez e se quer continuar vivo, rogo-lhe que
o faça em silêncio, por que estou pelos cabelos com os seus recitais de asneiradas - dizia Fermín
enquanto o cobria com um pedaço de tecido sujo, que, na ausência de Bebo, conseguira de um
dos carcereiros, depois de o ter enganado com uma receita científica para conquistar ado-
lescentes em idade núbil, que as enlouquecia com leite meren- gado e cavacas doces.
- Você não se arme em caridoso, porque vejo a léguas as suas intenções. E é igual a todos
estes necrófagos, que apostam as cuecas para que morra.
- Pois olhe que não tenho ganas de contradizer um moribundo nos seus derradeiros ou, pelo
menos, tardios estertores, mas saiba que não apostei um real que fosse nesta partida e, se um dia
viesse a cair nas malhas do vício, não seria com apostas sobre a vida de um ser humano, ainda
que você tenha tanto de humano quanto eu de coleóptero - sentenciou Fermín.
- Não julgue que me engana com todo esse palavreado - replicou Salgado, malicioso. - Sei
muito bem o que o senhor e o seu grande amigo, o Martin, estão a tramar, com toda essa história
de O Conde de Monte Cristo.
- Não sei do que fala, Salgado. Durma um pouco, ou um ano, que ninguém sentirá a sua
falta.
- Se julga que consegue escapar desta prisão, é porque está tão louco como ele.
Fermín sentiu um suor frio nas costas. Salgado exibiu-lhe o seu sorriso, desdentado à
porrada.
- Sei de tudo - disse.
Fermín negou e resolveu aninhar-se num canto, afastando-se o mais possível de Salgado. A
paz apenas durou um minuto.
- O meu silêncio tem um preço - anunciou Salgado.
- Deveria tê-lo deixado morrer quando o trouxeram - murmurou Fermín.
- Em sinal de gratidão, estou disposto a fazer-lhe um desconto - disse Salgado. - Só lhe peço
um último favor e guardarei o seu segredo.
- Como sei que será o último?
- Porque você será capturado, como todos os que tentaram escapar daqui pelos seus
próprios meios e, depois de lhe untarem bem o corpo durante alguns dias, será enforcado no
pátio, como espectáculo edificante para todos os prisioneiros e, então, já nada mais lhe poderei
pedir. O que me diz? Um pequeno favor em troca da minha total cooperação. Dou-lhe a minha
palavra de honra.
- A sua palavra de honra? Homem, por que não falou nisso antes? Isso muda tudo.
- Aproxime-se...
Fermín hesitou por momentos, mas concluiu que nada tinha a perder.
- Sei que o cabrão do Valls o encarregou de tentar descobrir onde tenho escondido o
dinheiro - disse. - Não se dê ao trabalho de negar.
Fermín limitou-se a encolher os ombros.
- Quero que lho diga - instruiu Salgado.
- Farei o que quiser, Salgado. Onde está o dinheiro?
- Diga ao senhor director que tem de ir ele e sozinho. Se for acompanhado, não conseguirá
um duro que seja. Diga-lhe que se dirija à antiga Fábrica Villardel, no Pueblo Nuevo, atrás do
cemitério. À meia-noite. Nem antes nem depois.
- Isso parece adaptado de uma comédia de mistério de Don Carlos Arniches, Salgado...
- Ouça-me bem. Diga-lhe que tem de entrar na fábrica e de procurar a antiga casita do
guarda, junto à sala dos teares. Assim que aí chegar, bate à porta e, quando alguém perguntar,
deve dizer: «Durruti vive.»
Fermín conteve uma gargalhada.
- Essa é mesmo a pior idiotice que ouvi desde o último discurso do senhor director.
- Você limite-se a repetir o que lhe disse.
- E como poderá o senhor saber que não irei eu lá, seguindo à letra as suas intrigas e
contra-senhas de policial de cordel, acabar por deitar a mão ao seu dinheiro?
A cobiça cintilava nos olhos de Salgado.
- Não me diga: porque estarei morto - completou Fermín.
Os lábios de Salgado alargavam-se num sorriso de réptil. Fermín analisou aqueles olhos
consumidos pela sede de vingança. Compreendeu então o que Salgado pretendia.
- É uma armadilha, não é?
Salgado não respondeu.
- E se o Valls sobrevive? Não parou para pensar no que lhe vão fazer?
- Nada que não me tivessem feito já.
- Dir-lhe-ia que você tem um grande par de tomates, se não soubesse que só tem parte de
um... e, se esta jogada correr mal, nem isso - conjecturou Fermín.
- Isso é problema meu - interrompeu-o Salgado. - O que me diz, Montecristo? Temos
acordo?
Salgado ofereceu a mão que lhe restava. Fermín contemplou-a durante alguns instantes,
antes de a apertar sem grande vontade.
FERMÍN teve de esperar pelo tradicional discurso de domingo, após a missa e pelo curto
intervalo ao ar livre no pátio para se aproximar de Martin e lhe contar o que Salgado lhe pedira.
- Não interferirá com o plano - garantiu Martin. - Faça o que ele lhe pede. Agora, não nos
podemos permitir uma fuga.
Fermín, que, desde há dias, andava num estado entre a náusea e a taquicardia, limpou o suor
frio que lhe escorria da testa.
- Martin, não é que desconfie, mas, se este plano que está a preparar é assim tão bom, por
que não o usa para sair daqui?
Martin aquiesceu, como se desde há dias esperasse ouvir aquela pergunta.
- Porque mereço estar aqui e, mesmo que não fosse assim, não há nada para mim fora destes
muros. Não tenho para onde ir.
- Tem a Isabella...
- A Isabella está casada com um homem dez vezes melhor do que eu. Se fugisse, mais não
faria do que desgraçar-lhe a vida.
- Mas ela está a fazer tudo ao seu alcance para o tirar daqui.
Martin negou.
- Tem de me prometer uma coisa, Fermín. É a única coisa que lhe pedirei a troco de o ajudar
a fugir.
Este é o mês das promessas, pensou Fermín, concordando de boa vontade.
- Tudo o que me pedir.
- Se conseguir sair daqui, peço-lhe que, dentro das suas possibilidades, cuide dela. À
distância, sem que o saiba, nem sequer que o senhor existe. Que cuide dela e do filho, o Daniel.
Fará isso por mim, Fermín?
- Claro que sim.
Martin sorriu com tristeza.
- Você é um bom homem, Fermín.
- Já é a segunda vez que me diz isso e cada vez me soa pior.
Martin retirou do bolso um dos seus fedorentos cigarros
e acendeu-o.
- Não temos muito tempo. O Brians, o advogado que a Isabella contratou para defender o
meu caso, esteve aqui ontem. Cometi o erro de lhe contar o que o Valls quer de mim.
- A reescrita das patranhas dele...
- Exacto. Pedi-lhe que nada dissesse à Isabella, mas já o conheço, sei que, mais tarde ou mais
cedo, o fará, e ela, que conheço ainda melhor, vai ficar furiosa e virá aqui para ameaçar o Valls de
que vai contar o seu segredo aos quatro ventos.
- E o senhor nada poderá fazer para a impedir?
- Tentar deter a Isabella é como tentar deter um comboio de mercadorias: uma missão para
néscios.
- Quanto mais me fala dela mais vontade tenho de a conhecer. A mim, as mulheres com
têmpera...
- Fermín, recordo-lhe a sua promessa.
Fermín levou a mão ao coração, jurando com solenidade. Martin prosseguiu.
- Dizia eu que, quando isso acontecer, o Valls poderá fazer um disparate. É um homem
movido pela vaidade, inveja e cobiça. Quando se sentir encurralado, dará um passo em falso. Não
sei o quê, mas tenho a certeza que alguma coisa fará. É importante que, nessa altura, já esteja
fora daqui.
- Não é que tenha muita vontade de ficar, mas, na verdade...
- Você não está a compreender. Há que antecipar o plano.
- Antecipá-lo? Para quando?
Martin fitou-o através da cortina de fumo que ascendia dos lábios.
- Esta noite.
Fermín tentou engolir em seco, mas tinha a boca cheia de pó.
- Mas nem sei qual é o plano.
- Abra bem os ouvidos.
NAQUELA tarde, antes de regressar à cela, Fermín aproximou-se de um dos guardas que o
levaram até ao gabinete de Valls.
- Diga ao senhor director que tenho de falar com ele.
- Acerca do quê, se se pode saber?
- Diga-lhe que já tenho as informações que esperava. Ele saberá do que falo.
Ainda nem uma hora se passara, quando o guarda e o colega se dirigiram à cela número 13
para escoltarem Fermín. Salgado observava tudo com uma expressão canina, deitado no seu catre
e a massajar o coto. Fermín dirigiu-lhe uma piscadela de olho e partiu, sob custódia dos guardas.
O senhor director recebeu-o com um .sorriso aberto e um prato com doces da Casa Escribá.
- Fermín, caro amigo, é um enorme prazer tê-lo de novo aqui, para manter uma conversa
inteligente e produtiva. Sente-se, por favor, e deguste esta excelsa selecção de doçarias que a
mulher de um dos prisioneiros me trouxe.
Fermín, que há dias era incapaz de engolir um grão de alpista, pegou numa rosca apenas para
não contradizer Valls, sustendo-a na mão como se fosse um amuleto. Fermín verificou que o
senhor director deixara de o tratar por tu, calculando que o novo tratamento, na terceira pessoa,
poderia ter consequências funestas. Valls serviu-se de um copo de brande e deixou-se cair sobre a
sua poltrona de general.
- E então? Disseram-me que tinha boas notícias para mim - instigou-o o senhor director.
Fermín confirmou.
- No respeitante às Belas-Letras, poderei confirmar a sua excelência que o Martin está mais
do que persuadido e motivado a fazer o trabalho de corte e costura que lhe solicitou. Além disso,
comentou que o material que lhe proporcionou é de tão elevada qualidade e de tanto requinte,
que acredita que a sua tarefa será simples, porque bastará acrescentar um ou outro ponto nos
«iis» à genialidade do senhor director para se conseguir uma obra-prima digna do mais exigente
Paracelso.
Valls concentrou-se em absorver o chorrilho de palavreado de Fermín, mas, cortês, acabou
por se mostrar de acordo, sem aflorar o sorriso gelado.
- Não precisa de pintar tudo de cor-de-rosa, Fermín. Basta- -me saber que o Martin fará o
que tem de fazer. Ambos sabemos que tal incumbência não lhe agrada, mas fico feliz por ter
reconsiderado e compreendido que facilitar as coisas nos beneficiará a todos. Agora, a respeito
das outras duas questões...
- Preparava-me para falar sobre elas. No respeitante à sepultura dos volumes alienados...
- Cemitério dos Livros Esquecidos - corrigiu Valls. - Conseguiu que o Martin lhe dissesse a
localização?
- Pelo que pude perceber, o referido ossário está escondido no fim de um labirinto de túneis
e antecâmaras sob o Mercado dei Borne.
Valls contrapesou aquela revelação, visivelmente surpreendido.
- E a entrada?
- Isso não consegui saber, senhor director. Calculo que sob um alçapão, escondido pela
camuflagem pestilenta e dissuasora de uma das bancas de venda de legumes por grosso. O
Martin não queria falar do assunto e pensei que se o pressionasse demasiado se fechava em
copas.
Valls aquiesceu devagar.
- Agiu bem. Prossiga.
- E para concluir, em relação ao terceiro pedido de vossa excelência, aproveitando-me dos
estertores e das agonias mortais do abjecto Salgado, consegui convencê-lo, no seu delírio, a
revelar-me o esconderijo do chorudo saque das suas criminosas andanças ao serviço da
maçonaria e do marxismo.
- Acredita que vai então morrer?
- A qualquer momento. Acho que já encomendou a alma a São Leon Trotski, estando à
espera do sopro final para ascender ao politburo da posteridade.
Valls acenou.
-Já disse àqueles animais que, à força, nada lhe sacariam.
- Tecnicamente, sacaram uma ou outra gónada ou outro membro, mas concordo com o
senhor director, ao dizer que, com bestas como o Salgado, a única solução é a psicologia aplicada.
- E então? Onde escondeu ele o dinheiro?
Fermín debruçou-se para a frente e adoptou um tom de confidência.
- É complicado de explicar.
- Deixe-se de rodeios ou envio-o de imediato para a cave, para lhe refrescarem a oratória.
Fermín dedicou-se então a vender a Valls aquela intriga peregrina que obtivera dos lábios de
Salgado. O senhor director ouvia-o com incredulidade.
- Fermín, advirto-o de que se estiver a mentir-me se irá arrepender. O que fizeram ao
Salgado será uma brincadeira comparado com o que lhe farão a si.
- Garanto a sua excelência que lhe estou a repetir, palavra por palavra, o que o Salgado me
disse. Se quiser, poderei jurá-lo perante o irrefutável retrato do Caudilho que, pela graça de Deus,
zela pelo seu gabinete.
Valls fitou-o nos olhos. Fermín susteve-lhe o olhar sem pestanejar, tal como Martin lhe
ensinara. Por fim, o sorriso do senhor director desvaneceu-se e, uma vez obtidas as informações
desejadas, o mesmo aconteceu ao prato com a doçaria. Sem qualquer pretensão de cordialidade,
estalou os dedos e os dois guardas entraram para levarem Fermín de regresso à cela.
Desta vez, Valls nem sequer se deu ao trabalho de ameaçar Fermín. Enquanto o arrastavam
pelo corredor, Fermín viu o secretário do senhor director cruzar-se com eles, acabando por se
deter à porta do gabinete de Valls.
- Senhor director, disse-me o Sanahuja, o médico da cela do Martin...
- Sim. O que quer?
- Diz que o Martin desmaiou e que pensa ser algo grave. Solicita autorização para ir à
farmácia buscar algumas coisas...
Valls levantou-se, iracundo.
- E do que está à espera? Vamos. Levem-no lá e ele que leve o que necessitar.
Por ordem do senhor director, um carcereiro ficou de vigia em frente à cela de Martin
enquanto o doutor Sanahuja lhe administrava cuidados. Era um jovem com não mais de vinte
anos, novo naquele serviço. Por norma, seria Bebo a estar de serviço no turno da noite, mas, em
seu lugar e sem explicação, apresentara-se aquele novato ingénuo, que não parecia capaz de lidar
com o molho de chaves e que estava mais nervoso do que qualquer prisioneiro. Rondavam as
nove da noite quando o médico, visivelmente cansado, se aproximou das grades e se dirigiu ao
carcereiro.
- Preciso de mais ligaduras limpas e de água oxigenada.
- Não posso abandonar o posto.
- E eu não posso abandonar um paciente. Por favor. Ligaduras e água oxigenada.
O carcereiro agitou-se nervoso.
- O senhor director não gosta que as suas ordens não sejam seguidas à letra.
- E menos gostará que alguma coisa aconteça ao Martin porque você não me ligou.
O jovem carcereiro avaliou a situação.
- Chefe, não vamos atravessar paredes nem comer as grades... - argumentou o médico.
O carcereiro soltou uma praga e partiu apressado. Enquanto o homem se afastava em
direcção à farmácia, Sanahuja aguardou junto às grades. Salgado adormecera há duas horas,
respirando com dificuldade. Fermín aproximou-se em silêncio do corredor, trocando um olhar
com o médico. Sanahuja lançou-lhe então o embrulho, que não tinha o tamanho de um baralho
de cartas, envolto numa tira de tecido e atado com um cordel. Fermín recolheu-o e retirou-se
rápido para as sombras do fundo da sua cela. Quando o carcereiro regressou com o que Sanahuja
lhe pedira, aproximou-se da grade e vislumbrou a silhueta de Salgado.
- Está nas últimas - disse Fermín. - Não me parece que aguente até amanhã.
- Mantém-no vivo até às seis. Ele que não me foda a vida e que morra no turno de outro.
- Farei o que for humanamente possível - replicou Fermín.
NAQUELA noite, enquanto Fermín abria o embrulho que o doutor Sanahuja lhe passara da
outra cela, um Studebaker preto conduzia o senhor director pela estrada que descia de Montjuic
para as escuras ruas que bordejavam o porto. Jaime, o motorista, prestava particular atenção para
evitar que buracos ou quaisquer outros solavancos pudessem incomodar o seu passageiro ou
interromper o rumo dos seus pensamentos. O novo director não era como o anterior. O antigo
director costumava encetar conversa com ele quando iam no automóvel e, algumas vezes,
sentara-se no lugar da frente, a seu lado. O director Valls não lhe dirigia a palavra a não ser para
dar ordens e era raro os olhares de ambos se cruzarem, a não ser que tivesse cometido um erro,
passado por cima de uma pedra ou entrado numa curva demasiado depressa. Então, os seus
olhos cintilavam no espelho retrovisor e uma expressão de displicência aflorava-lhe o rosto. O
director Valls não lhe permitia ligar o rádio, porque dizia que as emissões disponíveis eram um
insulto à sua inteligência. Também não lhe autorizava manter à vista, no tabliê, os retratos da
mulher e da filha.
Felizmente, àquela hora da noite, já não havia tráfego e o trajecto decorreu sem sobressaltos.
Em minutos apenas, o automóvel passou pelas Atarazanas, contornou o monumento em
homenagem a Colombo e seguiu Ramblas acima. Dois minutos depois, estava já em frente ao
Café da Ópera e parou. Os espectadores do Liceo, do outro lado da rua, já tinham entrado para a
sessão da noite, pelo que as Ramblas estavam quase desertas. O motorista saiu e, depois de se
certificar de que não havia ninguém perto, abriu a porta a Mauricio Valls. O senhor director
apeou-se e, sem interesse, contemplou o passeio. Ajeitou a gravata e, com as mãos, sacudiu os
ombros do casaco.
- Espere aqui - disse ao motorista.
Quando o senhor director entrou, o café estava quase deserto. O relógio de parede atrás do
balcão marcava cinco minutos para as dez da noite. O senhor director retribuiu o cumprimento
do empregado com um aceno de cabeça e sentou-se a uma mesa no fundo da divisão. Descalçou
parcimoniosamente as luvas e retirou do bolso a cigarreira de prata, que lhe fora oferecida pelo
sogro aquando do seu primeiro aniversário de casamento. Acendeu um cigarro e observou o
velho café. O empregado aproximou-se de bandeja na mão, limpando a mesa com um pano
húmido e que cheirava a lixívia. O senhor director lançou-lhe um olhar de desprezo, que o
empregado ignorou.
- O que deseja o senhor tomar?
- Duas infusões de camomila.
- Na mesma chávena?
- Não. Em chávenas separadas.
- O cavalheiro aguarda companhia?
- É evidente.
- Muito bem. Deseja mais alguma coisa?
- Mel.
- Sim, senhor.
O empregado afastou-se sem pressa, com o senhor director a murmurar em voz baixa algo
depreciativo. Sobre o balcão, a telefonia transmitia o murmúrio de um consultório sentimental,
intercalado pelos anúncios da empresa de cosméticos Bella Aurora, cujo uso diário garantia
juventude, beleza e longevidade. A quatro mesas dali, um homem de uma certa idade parecia ter
adormecido de jornal nas mãos. O resto das mesas estava vazia. As duas chávenas fumegantes
chegaram cinco minutos depois. O empregado pousou-as sobre a mesa com uma infinita lentidão
e logo deixou um boião com mel.
- Será tudo, cavalheiro?
Valls assentiu. Esperou até que o empregado regressasse para trás do balcão para tirar um
frasco que trouxera no bolso. Desenrascou a tampa e lançou um olhar para o outro cliente, que
continuava mergulhado nas notícias. Atrás do balcão, o empregado estava agora de costas
voltadas, a limpar copos.
Valls pegou no frasco e verteu o conteúdo na chávena do outro lado da mesa. Depois,
misturou uma generosa porção de mel e mexeu a infusão, até estar diluída. Na rádio, lia-se a
angustiada carta de uma senhora de Betanzos, cujo marido, contrariado por ela ter deixado
queimar o estufado do Dia de Todos-os-Santos, a partir daí enfiara-se no bar com os amigos, a
ouvir relatos de futebol, não parando em casa, nem voltara à missa. Era-lhe recomendada oração,
integridade e que usasse as suas armas
femininas, ainda que sempre dentro dos restritos limites de uma família cristã. Valls tornou a
olhar para o relógio. Eram dez e um quarto.
ÁS dez e vinte, Isabella Sempere entrou pela porta. Vestia um casaco modesto e trazia o
cabelo apanhado atrás, sem maquilhagem no rosto. Valls viu-a e ergueu a mão. Isabella parou a
observá-lo por alguns instantes e, depois, aproximou-se devagar da mesa. Valls levantou-se e
estendeu-lhe a mão, sorrindo-lhe afável. Isabella ignorou a mão e sentou-se.
- Tomei a liberdade de pedir duas infusões de camomila, que é o que melhor nos saberá
numa noite desagradável como esta.
Isabella assentiu, evitando o olhar de Valls. O senhor director contemplou-a com demora. A
senhora Sempere, tal como acontecia sempre que ia encontrar-se com ele, desarranjava-se o mais
possível, tentando esconder a sua beleza. Valls observou o contorno dos seus lábios, o sangue a
pulsar-lhe na garganta, a curva dos seios sob o casaco.
- Diga-me o que quer - disse Isabella.
- Antes de mais, permita-me agradecer-lhe por ter aceitado este encontro, feito tão em cima
da hora. Recebi o seu recado esta tarde e considerei que seria conveniente falarmos do assunto
fora do meu gabinete e da prisão.
Isabella limitou-se a anuir. Valls provou a infusão e lambeu os lábios.
- Deliciosa. A melhor de Barcelona. Prove.
Isabella ignorou o convite.
- Como compreenderá, toda a discrição é pouca. Posso per- guntar-lhe se disse a alguém que
vinha encontrar-se aqui comigo esta noite?
Isabella negou.
- Talvez com o seu marido?
- O meu marido está a fazer o inventário na livraria. Apenas regressará a casa a altas horas
da madrugada. Ninguém sabe que estou aqui.
- Peço outra coisa? Se não lhe apetece uma infusão de camomila...
Isabella negou e tomou a chávena nas mãos.
- Está bem assim.
Valls sorriu sereno.
- Como lhe dizia, recebi a sua carta. Compreendo a sua indignação e queria explicar-lhe que
tudo não passa de um mal- -entendido.
- O senhor está a chantagear um desgraçado doente mental, seu prisioneiro, para que lhe
escreva uma obra que o possa tornar famoso. Não me parece existir qualquer mal-entendido.
Valls aproximou a mão de Isabella.
- Isabella... posso tratá-la assim?
- Não me toque.
Valls retirou a mão, esboçando um gesto de conciliação.
- Está bem, limitemo-nos a conversar com calma.
- Nada há nada para conversar. Se o senhor não deixar o David em paz, comunicarei a sua
história e a sua fraude a Madrid ou até onde for preciso. Todos ficarão a saber o tipo de pessoa e
de literato que o senhor é. Nada nem ninguém me poderá impedir.
As lágrimas marejavam os olhos de Isabella, com a chávena a tremer-lhe nas mãos.
- Por favor, Isabella, beba um pouco. Far-lhe-á bem.
Isabella bebeu alguns goles, com uma expressão ausente.
- Assim, com umas gotas de mel, é como sabe melhor - acrescentou Valls.
Isabella bebeu mais dois ou três goles.
- Tenho de confessar que a admiro, Isabella - disse Valls. - Poucas pessoas teriam a coragem
e a integridade de defender um pobre infeliz como o Martin... alguém a quem todos abandona-
ram e traíram. Todos, menos a senhora.
Isabella olhou nervosamente para o relógio sobre o balcão. Eram dez e trinta e cinco. Bebeu
mais alguns goles da infusão de camomila e pousou a chávena.
- A senhora deve gostar muito dele - arriscou Valls. - Por vezes, pergunto-me se, com o
tempo, e quando me vier a conhecer melhor, tal como sou, possa apreciar-me tanto como a ele.
- O senhor enoja-me, Valls. O senhor e toda a escória da sua
laia.
- Bem sei, Isabella. Contudo, é a escória da minha laia que manda neste país e são as pessoas
como a senhora que permanecem sempre na sombra. É indiferente a facção que esteja no
- Desta vez, não. Desta vez, os seus superiores saberão o que está a fazer.
- O que a leva a pensar que se importarão ou que não fazem o mesmo ou ainda pior do que
eu, que apenas sou apaixonado pela literatura?
Valls sorriu, retirando da algibeira do casaco uma folha dobrada.
- Isabella, quero que saiba que não sou como a senhora pensa. E, para o demonstrar, está
aqui a ordem de libertação do David Martin, com a data de amanhã.
Valls mostrou-lhe o documento. Isabella analisou-o, incrédula. Valls sacou da sua caneta e,
sem mais, assinou o documento.
- Está feito. O David Martin é, oficialmente, um homem livre. Graças à senhora, Isabella.
Graças à senhora...
Isabella devolveu-lhe um olhar vítreo. Valls observou como as suas pupilas se dilatavam
devagar e como uma película de suor se acumulava no seu lábio superior.
- Sente-se bem? Está pálida...
Isabella levantou-se cambaleante, agarrando-se à cadeira.
- Está enjoada, Isabella? Acompanho-a a algum sítio?
Isabella recuou alguns passos e, a caminho da porta, chocou
contra o empregado. Valls ficou à mesa, saboreando a infusão, até o relógio marcar dez e
quarenta e cinco. Deixou então umas moedas sobre a mesa e, devagar, dirigiu-se para a saída. O
automóvel aguardava-o junto ao passeio e o motorista abriu-lhe a porta.
- O senhor director deseja ir para casa ou para o castelo?
- Para casa. Mas primeiro vamos fazer uma paragem no Pue- blo Nuevo, na antiga Fábrica
Villardel - ordenou.
A caminho de recolher o saque prometido, Mauricio Valls, futura eminência das letras
espanholas, contemplava o desfile de ruas negras e desertas daquela Barcelona maldita que tanto
detestava, e derramou lágrimas por Isabella e pelo futuro que poderiam ter tido.
QUANDO Salgado despertou da sua letargia e abriu os olhos, a primeira coisa que distinguiu
foi a silhueta de alguém imóvel, a observá-lo junto ao catre. Sentiu um assomo de pânico e, por
um instante, julgou que estava ainda naquela divisão da cave. Uma intermitência na luz que
flutuava pelas candeias do corredor permitiu-lhe vislumbrar traços conhecidos.
- Fermín, é você? - perguntou.
A silhueta na sombra confirmou e Salgado respirou fundo.
- Tenho a boca seca. Ainda há alguma água?
Fermín aproximou-se com lentidão. Trazia alguma coisa na mão: um pano e um frasco de
vidro.
Salgado viu Fermín a verter sobre o pano o líquido do frasco.
- O que é isso, Fermín?
Fermín não respondeu. O seu rosto não mostrava qualquer expressão. Debruçou-se sobre
Salgado e fitou-o nos olhos.
- Fermín, não...
Antes que pudesse pronunciar outra sílaba, já Fermín lhe tapara a boca e o nariz com o pano,
pressionando com força, ao mesmo tempo que lhe empurrava a cabeça contra o catre. Salgado
debatia-se, com as poucas forças que lhe restavam. Fermín manteve o pano pressionado contra o
seu rosto. Salgado fitava-o aterrado. Passados alguns segundos, perdeu os sentidos. Fermín não
tirou o pano. Contou mais cinco segundos e só depois o retirou. Sentou-se no catre, de costas
voltadas para Salgado, e aguardou mais alguns minutos. Depois, tal como Martin lhe dissera,
aproximou-se da porta da cela.
- Carcereiro! - chamou.
Ouviu os passos do novato a aproximarem-se pelo corredor. O plano de Martin previa que
fosse Bebo quem estivesse de serviço naquela noite e não aquele cretino.
- O que se passa agora? - perguntou o carcereiro.
- É o Salgado... bateu a bota.
O carcereiro abanou a cabeça e esboçou uma expressão exasperada.
- Maldita seja a puta que o pariu. E agora?
-Traga a saca.
O carcereiro maldisse o seu azar.
- Se quiser, eu próprio o enfio lá dentro, chefe - ofereceu-se Fermín.
O carcereiro anuiu, mostrando-se grato.
- Se me trouxer já a saca, enquanto o vou enfiando, o senhor pode ir informar quem de
direito e recolhem-no antes da meia- -noite - acrescentou Fermín.
O carcereiro tornou a anuir, afastando-se para ir buscar a saca de serapilheira. Fermín ficou
junto à porta da cela. Do outro lado do corredor, Martin e Sanahuja observavam-no em silêncio.
Passados dez minutos, o carcereiro regressou, segurando a saca na mão por uma das pontas,
incapaz de disfarçar a náusea provocada por aquele fedor a cadáver apodrecido. Fermín reti-
rou-se para o fundo da cela, sem aguardar por novas instruções.
- Informe-os agora, chefe, para nos tirarem de cima esta coisa antes da meia-noite ou
teremos de o aguentar até amanhã à noite.
- Tem a certeza que consegue enfiá-lo sozinho na saca?
- Não se preocupe, chefe, já tenho prática.
O carcereiro anuiu de novo, não muito convencido.
- A ver se temos sorte, porque o coto está a começar a gangrenar e o cadáver vai libertar um
fedor que nem quero imaginar...
- Foda-se - disse o carcereiro, afastando-se apressado.
Assim que o ouviu chegar ao fim do corredor, Fermín começou a despir Salgado e logo se
soltou também das suas roupas. Vestiu os pestilentos farrapos do ladrão e, a este, pôs-lhe os seus.
Estendeu Salgado sobre o catre, deitado de lado e de cara voltada para a parede, e tapou-o com a
manta até cobrir metade do rosto. Então, pegou na saca de serapilheira e enfiou-se lá dentro.
Preparava-se para fechar a saca quando se lembrou de algo.
Tornou a sair apressado e aproximou-se da parede. Com as unhas, raspou entre as duas
pedras onde vira Salgado esconder a chave, até dar com a ponta. Tentou agarrá-la com os dedos,
mas a chave resvalava, ficando presa entre as pedras.
- Despache-se - dizia-lhe a voz de Martin do outro lado do corredor.
Fermín espetou as unhas na chave e puxou com força. A unha do anelar partiu-se e uma onda
de dor cegou-o uns segundos. Fermín conteve um grito, levando o dedo aos lábios. O sabor do
seu próprio sangue, salgado e metálico, encheu-lhe a boca. Abriu de novo os olhos e viu que um
centímetro da chave sobressaía já da fenda. Desta vez, conseguiu retirá-la com facilidade.
Tornou a enfiar-se na saca de serapilheira e, o melhor que conseguiu, atou o nó pelo interior,
deixando uma abertura de quase um palmo. Conteve as náuseas que lhe subiam pela garganta e
estendeu-se no chão, apertando os cordéis do interior da saca até deixar uma abertura do
tamanho de um punho. Tapou o nariz com os dedos e optou por respirar pela boca, tragando
sujidade, em vez de se render àquele fedor a podridão. Agora, é só esperar, disse para si próprio.
As ruas do Pueblo Nuevo estavam submersas numa treva espessa e húmida, que subia desde
o bairro-de-lata e cabanas da praia de Somorrostro. O Studebaker do senhor director atravessava
lentamente os véus de bruma e avançava entre os canhões de sombra formados por fábricas,
armazéns e depósitos escuros e decrépitos. Os faróis do automóvel desenhavam dois túneis de
claridade à sua frente. De súbito, a silhueta da antiga Fábrica Têxtil Villardel apareceu entre a
neblina. As chaminés e os telhados pontiagudos dos pavilhões e oficinas abandonados
perfilaram-se ao fundo da rua. O grande portão tinha uma fileira de lanças; depois desta,
adivinhava-se um labirinto de ervas daninhas, onde sobressaíam os esqueletos de camiões e
carroças abandonados. O motorista parou junto à entrada da velha fábrica.
- Deixe o motor ligado - ordenou o senhor director.
Os feixes de luz de ambos os faróis penetravam na negritude para além do portão, revelando
o estado ruinoso da fábrica, bombardeada durante a guerra e abandonada, como tantas outras
estruturas em toda a cidade.
De um lado, apareciam os barracões selados com tábuas de madeira e, em frente de umas
garagens que pareciam ter sido pasto de chamas, erguia-se o que Valls calculou ser a antiga casa
dos guardas. O halo avermelhado de uma vela ou candeia de azeite tremeluzia no contorno de
uma janela fechada. O senhor director observou o cenário sem pressa, a partir do banco de trás
do automóvel. Após vários minutos de espera, inclinou-se para a frente e dirigiu-se ao motorista.
- Está a ver aquela casa à esquerda, Jaime, em frente à garagem? Era a primeira vez que o
senhor director se dirigia a si pelo
nome próprio. Alguma coisa naquele tom de repente amável e cálido o fez preferir o habitual
tratamento frio e distante.
- A casita, disse o senhor?
- Precisamente. Quero que vá até lá e bata à porta.
- Quer que entre ali? Na fábrica?
O senhor director deixou escapar um suspiro de impaciência.
- Não é na fábrica. Ouça-me bem. Está a ver a casa, certo?
- Sim, senhor.
- Muito bem. Pois aproxime-se da vedação, enfie-se na abertura entre as grades, vá até à
casita e bata à porta. Até aqui tudo claro?
O motorista assentiu, ainda que sem grande entusiasmo.
- Muito bem. Depois de bater à porta, alguém a irá abrir. Quando isso acontecer, diga:
«Durruti vive.»
- Durruti?
- Não me interrompa. Limite-se a repetir o que lhe disse. Dar-lhe-ão alguma coisa. Talvez
uma mala ou um embrulho. Traga consigo... e pronto. É simples, não é?
O motorista estava pálido, não cessando de olhar para o retrovisor, como se esperasse que
alguém ou alguma coisa emergisse das sombras a qualquer momento.
- Tenha calma, Jaime. Nada de mal irá acontecer. Peço-lhe como um favor pessoal. Diga-me,
é casado?
- Estou casado há quase três anos, senhor director.
- Ah! Muito bem. E tem filhos?
- Uma menina de dois anos e a minha mulher está outra vez grávida, senhor director.
-A família é o mais importante na nossa vida, Jaime. O senhor é um bom espanhol. Se lhe
parecer bem, como presente de baptizado antecipado e em sinal da minha gratidão pelo seu
excelente trabalho, vou dar-lhe cem pesetas. E, se me fizer este pequeno favor, recomendá-lo-ei
para uma promoção. O que lhe pareceria um emprego de escritório no governo civil? Possuo
bons amigos lá, que me dizem que procuram homens com carácter, para retirarem o país do
poço a que os bolcheviques o levaram.
À menção de dinheiro e de boas perspectivas, um leve sorriso esboçou-se nos lábios do
motorista.
- Não será perigoso ou...
-Jaime, sou eu quem lhe pede, o senhor director. Julga que lhe pedia que fizesse alguma coisa
perigosa ou ilegal?
O motorista fitou-o em silêncio. Valls sorriu-lhe.
- Repita-me o que tem de fazer, vamos.
- Vou até à porta e bato. Quando abrirem, digo: «Viva Dur- ruti.»
- Durruti vive.
- Isso mesmo. Durruti vive. Entregam-me uma mala e trago-a.
- E ambos regressamos às nossas casas. E fácil.
O motorista anuiu e, após um instante de hesitação, saiu do automóvel e aproximou-se da
vedação. Valls observou a sua silhueta a atravessar o feixe de luz dos faróis e a chegar à entrada.
Aí, voltou-se por um instante, olhando para o automóvel.
- Vamos, imbecil, entra - murmurou Valls.
O motorista passou por entre as grades e, contornando escombros e ervas daninhas,
aproximou-se devagar da porta da casita. O senhor director muniu-se do revólver que levava no
bolso interior do casaco e puxou o cão. O motorista chegou à porta e estacou. Valls viu-o bater
duas vezes e esperar. Decorreu quase um minuto sem que nada acontecesse.
- Bate outra vez - murmurou Valls para si próprio.
O motorista olhava agora para o automóvel, como se não soubesse o que fazer. De súbito,
uma centelha de luz amarelada desenhou-se onde antes estivera a porta fechada. Valls viu o
motorista a pronunciar a contra-senha. Voltou-se e, de novo, olhou para o automóvel, a sorrir. O
disparo à queima-roupa rebentou- -lhe a têmpora e trespassou-lhe o crânio. Uma neblina de
sangue emergiu do outro lado e o corpo, já cadáver, manteve-se em pé por alguns instantes,
envolto em fumo de pólvora, antes de cair no chão, como uma marioneta sem fios.
Valls agachou-se no banco de trás e, rápido, instalou-se ao volante do Studebaker. Sustendo o
revólver contra o tabliê, apontando para a entrada da fábrica com a mão esquerda, engatou a
marcha atrás e pisou o acelerador. O automóvel retrocedeu na escuridão, passando por cima dos
buracos e poças de água que ponteavam a rua. Enquanto se afastava, pôde ainda ver os relâm-
pagos de diversos disparos provenientes da porta da fábrica, mas nenhum atingiu o automóvel.
Só quando estava já a duzentos metros, fez a manobra para dar a volta e, acelerando a fundo,
afastou-se dali, mordendo os lábios de raiva.
FECHADO no interior da saca, Fermín só podia ouvir as suas vozes.
- Tivemos sorte, rapaz - disse o carcereiro novato.
- O Fermín já adormeceu - disse o doutor Sanahuja da sua cela.
- Sorte de alguns - disse o carcereiro. - Aqui o têm. Já o podem levar.
Fermín ouviu passos em seu redor, sentindo uma sacudidela repentina no momento em que
um dos coveiros refez o nó, atando-o com força. Ele e outro homem levantaram-no e, sem
contemplações, arrastaram-no pelo corredor de pedra. Fermín não se atrevia a mexer um
músculo que fosse.
Os embates contra patamares, esquinas, portas e degraus martirizavam-lhe impiedosos o
corpo. Levou um punho à boca e mordeu-o, para não gritar de dor. Após um longo périplo,
Fermín apercebeu-se de um brusco arrefecimento da temperatura e do desaparecimento daquele
eco claustrofóbico que existia em todo o interior do castelo. Estavam no exterior. Arrastaram-no
vários metros por um caminho empedrado e com poças de água. O frio depressa começou a
penetrar no interior da saca.
Por fim, sentiu que o levantavam e lançavam para o vazio. Aterrou naquilo que lhe pareceu
uma superfície de madeira. O som de passos a afastar-se. Fermín respirou fundo. O interior da
saca fedia a excrementos, carne podre e gasóleo. Ouviu o motor do camião a arrancar e, após
uma sacudidela, sentiu o veículo em movimento e depois a inclinação de uma descida, que fez a
saca rolar. Compreendeu que o veículo rodava colina abaixo, devagar e aos solavancos
constantes, pelo mesmo caminho que fizera alguns meses antes. Recordava-se de que a subida da
montanha fora lenta e atormentada pelas curvas. Aos poucos, contudo, notou que o veículo
virava e se enfiava num caminho plano e rudimentar, não alcatroado. Fizeram um desvio e
Fermín teve a certeza de que se estavam a adentrar pela montanha em vez de descerem para a
cidade. Alguma coisa correra mal.
Apenas então lhe ocorreu pensar que talvez Martin não calculara tudo, que algum pormenor
lhe escapara. Afinal de contas, ninguém tinha certezas absolutas do que faziam com os cadáveres
dos presos. Talvez Martin não pensasse que, porventura, atirassem os corpos para um forno, para
se verem livres deles. Conseguiu imaginar Salgado, ao acordar da sua letargia de clorofórmio,
rindo-se e dizendo que, antes de arder no inferno, Fermín Romero de Torres, ou como diabos se
chamasse, ardera em vida.
O trajecto prolongou-se uns minutos. Foi pouco depois, quando a viatura começou a
abrandar, que Fermín por fim compreendeu. Um fedor como nunca antes havia conhecido.
Sentiu
um aperto no coração e, enquanto aquele vapor indescritível o nauseava, desejou não ter dado
ouvidos ao louco do Martin e ter ficado na sua cela.
QUANDO O senhor director chegou ao castelo de Montjuic, saiu do automóvel e dirigiu-se
apressado para o gabinete. O seu secretário, instalado atrás da respectiva secretária, de frente
para a porta, dactilografava a correspondência do dia com dois dedos.
- Deixa isso e ordena que tragam já esse filho de uma cadela do Salgado - ordenou.
O secretário fitou-o desconcertado, hesitando se devia abrir a boca.
- Não fiques aí pasmado. Mexe-te.
O secretário levantou-se, ruborizado, e viu o olhar iracundo do senhor director.
- O Salgado morreu, senhor director. Esta noite...
Valls fechou os olhos e respirou fundo.
- Senhor director...
Sem se dar ao trabalho de dar explicações, Valls desatou a correr, parando apenas ao chegar
junto da cela número 13. Ao vê-lo, o carcereiro saiu da sua modorra, cumprimentando-o com
uma continência.
- Excelência, o que...
- Abre, rápido.
O carcereiro abriu a cela e Valls entrou sem contemplações. Dirigiu-se ao catre e, pegando no
ombro do homem ali deitado, puxou com força. Salgado ficou estendido de boca para cima. Valls
inclinou-se sobre o corpo e cheirou-lhe o hálito. Voltou-se então para o carcereiro, que o fitava
aterrado.
- Onde está o corpo?
- Foi levado pelos da funerária...
Valls desferiu-lhe tamanha bofetada, que o derrubou. Dois guardas haviam comparecido no
corredor, aguardando pelas ordens do senhor director.
- Quero-o vivo - disse-lhes.
Os dois guardas assentiram e afastaram-se em passo acelerado. Valls ficou ali, apoiado contra
as grades da cela que Martin e o doutor Sanahuja partilhavam. O carcereiro, que já se levantara,
mas que nem se atrevia a respirar, julgou ver que o senhor director se estava a rir.
- A ideia foi sua, calculo, não é, Martin? - acabou Valls por perguntar.
O senhor director fez um esboço de reverência e, enquanto se afastava pelo corredor, ia
aplaudindo lentamente.
FERMÍN notou que o camião abrandava e negociava os últimos obstáculos daquele caminho
sem pavimento. Após dois minutos mais de solavancos e chiadeira, o motor parou. O fedor que
penetrava pelo tecido da saca era indescritível. Os dois coveiros aproximaram-se da traseira do
camião. Ouviu o ruído do ferrolho que fechava o taipal e, depois, um súbito e forte puxão na
saca, a que se seguiu uma queda no vazio.
Fermín embateu com as costas no chão. Uma dor seca estendeu-se pelo ombro. Antes que
pudesse reagir, os dois coveiros levantaram a saca do chão empedrado e, segurando um por cada
extremo, levaram-no encosta acima, até se deterem alguns metros depois. Deixaram cair de novo
a saca e então Fermín ouviu um deles ajoelhar-se e começar a desatar o nó. Os passos do outro
afastaram-se alguns metros e pôde perceber que pegara em algo metálico. Fermín tentou
inspirar, mas aquele miasma queimava-lhe a garganta. Fechou os olhos. O ar frio tocou-lhe o
rosto. O coveiro pegou na saca pelo extremo fechado e puxou com força. O corpo de Fermín
rolou sobre pedras e terra encharcada.
- Vamos, aos três - disse um deles.
Quatro mãos ergueram-no pelos calcanhares e pelos pulsos. Fermín lutou por conter a
respiração.
- Ouve uma coisa... não está a suar?
- Como caralho vai suar um morto, anormal. Estará encharcado. Vamos, um, dois e...
Três. Fermín sentiu balançar-se no ar. Um instante depois, voava já e abandonou-se à sua
sorte. Abriu os olhos em pleno voo e tudo o que pôde ver antes do impacte foi que caía para o
fundo de uma vala escavada na montanha. A claridade da Lua não lhe permitia distinguir mais
nada do que algo pálido que cobria o solo. Fermín teve a certeza que eram pedras e,
serenamente, no meio segundo de queda, decidiu que não se importava de morrer.
A aterragem foi suave. Fermín sentiu que o seu corpo havia caído sobre algo mole e húmido.
Cinco metros acima, um dos coveiros sustinha uma pá na mão, cujo conteúdo atirou para o vazio
do ar. Um pó esbranquiçado espalhou-se numa neblina brilhante, que lhe acariciou a pele, para,
um segundo depois, começar a devorá-la, como um ácido. Os dois coveiros afastaram-se e
Fermín levantou-se, para descobrir que se encontrava numa vala comum, repleta de cadáveres
cobertos com cal viva. Tentou sacudir do corpo aquele pó de fogo e trepou pelos corpos, até
chegar ao muro de terra. Escalou cravando as mãos na terra e ignorando a dor.
Quando chegou ao cimo, conseguiu arrastar-se até um charco de água suja, a fim de se livrar
da cal. Levantou-se e viu que as luzes do camião se afastavam na noite. Voltou-se por um
instante para olhar para trás e viu que a vala que se estendia a seus pés se assemelhava a um
oceano de cadáveres entrelaçados. A náusea agrediu-o com força e caiu de joelhos, vomitando
bílis e sangue sobre as mãos. O fedor a morte e o pânico apenas lhe permitiam respirar. Ouviu
então um rumor distante. Ergueu o olhar e viu os faróis de dois automóveis a aproximarem-se.
Correu pela ladeira da montanha, chegando a um pequeno socalco, de onde se podia ver o mar
no sopé da montanha e o farol do porto na ponta do molhe.
No alto, o castelo de Montjuic erguia-se entre nuvens negras, que se arrastavam e
mascaravam a Lua. O ruído dos automóveis aproximava-se. Sem pensar duas vezes, Fermín
lançou-se ladeira abaixo, caindo e rolando entre troncos, pedras e ervas, que o golpeavam e lhe
arrancavam pedaços de pele. Já não sentia dor, nem medo, nem cansaço, até chegar à estrada, de
onde começou a correr na direcção dos armazéns do porto. Correu sem parar e até perder o
fôlego, sem noção do tempo nem consciência das feridas que lhe cobriam o corpo.
A aurora despontava quando chegou ao infindável labirinto de barracas da praia do
Somorrostro. A bruma do amanhecer ascendia do mar e serpenteava por entre os telhados.
Fermín aventurou-se pelas ruelas e túneis da cidade dos pobres, até cair entre dois montes de
escombros. E foi aí que o encontraram dois meninos andrajosos que arrastavam caixas de
madeira e que se detiveram para contemplar aquela silhueta esquelética que parecia jorrar
sangue por todos os poros da sua pele.
Fermín sorriu-lhes e ergueu dois dedos, em sinal de vitória. Os meninos olharam-se. Um
deles disse algo que não conseguiu ouvir. Abandonou-se ao cansaço e, de olhos entreabertos,
pôde ver quatro pessoas a levantarem-no do chão e a estendê-lo numa enxerga, junto a uma
fogueira. Sentiu o calor na pele e, devagar, começou a recuperar a sensibilidade nos pés, mãos e
braços. A dor viria depois, qual lenta mas inexorável maré. Em seu redor, inaudíveis vozes
femininas murmuravam palavras incompreensíveis. Despiram-lhe os poucos farrapos que ainda
lhe restavam. Panos embebidos em água quente e cânfora acariciaram-lhe o corpo nu e
maltratado com uma delicadeza infinita.
Entreabriu os olhos ao sentir a mão de uma idosa sobre a testa, o olhar cansado e sábio fito
no seu.
- De onde vens? - perguntou aquela mulher, que Fermín, no seu delírio, pensou que era a
mãe.
- De entre os mortos, mãe - murmurou. - Regressei de entre os mortos.
Terceira parte
Tornar a nascer
Barcelona, 1940
O incidente na velha Fábrica Villardel nunca chegou aos jornais. A ninguém convinha que
aquela história visse a luz do dia. O que ali aconteceu só o recordavam as pessoas que haviam
estado presentes. Na mesma noite em que Mauricio Valls regressou ao castelo e descobriu que o
prisioneiro número 13 fugira, o inspector Fumero, da Brigada Social, foi advertido pelo senhor
director de uma denúncia feita por um dos presos. Fumero e os seus homens estavam a postos
antes do nascer do Sol.
O inspector pôs dois dos seus homens a vigiar o perímetro e concentrou os restantes na
entrada principal, de onde, e tal como Valls lhes havia indicado, se avistava a casita. O corpo de
Jaime Montoya, o heróico motorista do director da prisão, que se oferecera como voluntário
para, sozinho, averiguar a veracidade das alegações relativas à presença na fábrica de elementos
subversivos, denunciada por um dos prisioneiros, continuava ali, estendido entre os escombros.
Pouco antes do alvorecer, Fumero ordenou aos seus homens para entrarem na velha fábrica.
Cercaram a casita e, quando os ocupantes, dois homens e uma mulher jovem, detectaram a sua
presença, só houve um pequeno incidente porque, como ela estava armada, atingiu um dos
polícias num braço. A ferida era uma simples arranhadela sem importância. À parte aquele
deslize, Fumero e os seus homens dominaram os rebeldes em trinta segundos.
O inspector ordenou então que os metessem todos na casita do guarda e que para aí
arrastassem também o corpo do motorista morto. Fumero não pediu os documentos nem
identificação. Ordenou aos seus homens que atassem com arame os rebeldes de pés e mãos a
umas cadeiras de metal enferrujadas e abandonadas num canto. Uma vez imobilizados, Fumero
indicou aos seus homens que o deixassem sozinho e que assumissem posições à porta da casita e
da fábrica, esperando as suas instruções. A sós com os prisioneiros, fechou a porta e sentou-se à
sua frente.
- Não preguei olho esta noite e estou cansado. Quero ir para casa. Vão dizer-me onde estão o
dinheiro e as jóias que escondem para o tal Salgado e nada de mal vos acontecerá. Estamos de
acordo?
Os prisioneiros olhavam-no com um misto de perplexidade e terror.
- Nada sabemos de jóias ou de um tal Salgado - disse o mais velho dos homens.
Fumero anuiu com um certo enfado. Passeava parcimoniosamente o olhar pelos três
prisioneiros, como se lhes conseguisse ler os pensamentos e estes o aborrecessem. Passados
alguns instantes de hesitação, escolheu a mulher, puxando a cadeira de modo a ficar a uns meros
palmos dela, que tremia.
- Deixa-a em paz, filho-da-puta - cuspiu o homem mais novo. - Se lhe tocares, juro que te
matarei.
Fumero sorriu melancólico.
- Tens uma namorada muito bonita.
Navas, o agente que assumira posição à porta da casita, notava que o suor frio lhe empapava
a roupa. Ignorava os gritos que vinham do interior e, quando os colegas lhe dirigiram um olhar
de preocupação, Navas abanou a cabeça.
Ninguém disse uma só palavra. Fumero estava no interior da casita há já meia hora, quando,
por fim, a porta se abriu atrás de si. Navas afastou-se, evitando olhar para as manchas húmidas
nas roupas pretas do inspector. Fumero afastou-se devagar até à saída, e Navas, após uma
sumária vista de olhos pelo interior da casita, conteve as náuseas e fechou a porta. A um sinal de
Fumero, dois dos homens aproximaram-se com bidões de gasolina e regaram o perímetro e as
paredes da mesma. Não ficaram a vê-la arder.
Quando regressaram ao automóvel, Fumero aguardava-os sentado no banco de trás. Partiram
em silêncio, enquanto uma coluna de fumo e chamas se erguia das ruínas da velha fábrica,
deixando um rasto de cinzas que se espalhava ao vento. Fumero abriu a janela e pôs a mão aberta
ao ar frio e húmido. Tinha sangue nos dedos. Navas conduzia com o olhar cravado na estrada à
sua frente, ainda que os seus olhos vissem o olhar de súplica que lhe lançara a jovem, ainda viva,
antes de ter fechado a porta.
Vendo que Fumero o observava, apertou as mãos no volante, para esconder o tremor.
No passeio, um grupo de crianças andrajosas observava o automóvel a passar. Uma delas,
esboçando uma pistola com as mãos, começou a disparar. Fumero sorriu e retribuiu o gesto,
pouco antes de o automóvel se perder no emaranhado de ruas que cercavam aquela selva de
chaminés e armazéns, como se nunca ali tivesse estado.
FERMÍN passou sete dias delirando no interior da barraca.
Nenhum pano húmido lhe conseguia apaziguar a febre e nenhum unguento podia acalmar o
mal que, diziam, o devorava por dentro. As velhas daquele lugar, que se revezavam em turnos
para cuidarem dele e lhe administrarem tónicos, na esperança de o manterem com vida, diziam
que o estranho tinha um demónio dentro de si, o demónio dos remorsos, e que a sua alma queria
fugir para o fim do túnel, para então repousar no vazio da escuridão.
Ao sétimo dia, o homem a que todos chamavam Armando, e cuja autoridade naquele local
ficava poucos centímetros abaixo da de Deus, dirigiu-se à barraca e sentou-se ao lado do doente.
Examinou as suas feridas, levantou-lhe as pálpebras com os dedos e leu os segredos escritos nas
suas pupilas dilatadas. As anciãs que cuidavam dele haviam-se reunido atrás do homem e
esperavam em respeitoso silêncio. Pouco depois, anuindo para si próprio, Armando abandonou a
barraca. Dois jovens que o aguardavam junto à porta seguiram-no até à linha de espuma da costa
onde rompia o mar e ouviram com atenção as suas instruções. Armando viu-os partir e ali se
quedou, sentado sobre os restos de uma barcaça de pescadores desfeita pelo temporal e que
ficara varada entre a praia e o purgatório.
Acendeu um cigarro pequeno, saboreou-o à brisa do amanhecer. Enquanto fumava e
meditava sobre o que devia fazer, Armando retirou do bolso um pedaço de uma página do La
Van- guardia, que havia guardado há dias. Ali, enterrada entre anúncios e notícias breves sobre
os espectáculos em cena na Avenida dei Paralelo, saltava uma curta notícia, que informava sobre
a fuga de um prisioneiro do cárcere de Montjuic. O texto tinha o registo estéril das notícias que
reproduzem palavra por palavra o comunicado oficial. A única liberdade permitida ao redactor
fora um aditamento final, onde se afirmava que nunca antes ninguém conseguira fugir daquela
inexpugnável fortaleza.
Armando ergueu o olhar e contemplou a montanha de Montjuic, que se erguia a sul. O
castelo, uma edificação de torres que se recortavam na bruma, dominava sobre Barcelona.
Armando sorriu com amargura e, com a brasa do cigarro, queimou aquele recorte de jornal e
viu-o desfazer-se em cinzas levadas pela brisa. Os jornais, como sempre, eludiam a verdade,
como se disso lhes dependesse a vida e, quem sabe, com razão. Tudo naquela notícia soava a
meias-verdades e a pormenores que deixou de lado. Entre eles, a circunstância de que nunca
ninguém havia conseguido fugir de Montjuic. Ainda que talvez) pensou, neste caso fosse verdade
porque ele, o homem a quem chamavam Armando,
era só alguém no mundo invisível da cidade dos pobres e intocáveis. Há alturas e locais em que
não ser ninguém é mais honroso do que ser alguém.
Os dias arrastavam-se com parcimónia. Armando passava uma vez por dia pela barraca, para
saber do estado do moribundo. A febre dava tímidas mostras de ir amainando e a madeixa de
golpes, cortes e feridas que cobriam o seu corpo parecia começar a sarar devagar, devido aos
unguentos. O moribundo passava a maior parte do dia a dormir ou a murmurar palavras
incompreensíveis, entre a vigília e o sono.
- Viverá? - perguntava Armando às vezes.
- Ainda não decidiu - respondia-lhe aquela mulherona desfigurada pelos anos, que o
desgraçado tomara por sua mãe.
Os dias cristalizaram-se em semanas e, em breve, pareceu evidente que ninguém viria
perguntar pelo estranho, dado que ninguém pergunta por quem prefere ignorar. Por norma, a
polícia e a Guardia Civil não entravam em Somorrostro. Uma lei de silêncio delineava com
clareza que a cidade e o mundo acabavam às portas daquele bairro-de-lata e a ambas as partes
interessava manter aquela fronteira invisível. Armando sabia que, do outro lado, muitos eram os
que, secreta ou abertamente, rezavam para que, um dia, a tempestade levasse para sempre a
cidade dos pobres, mas, até esse dia chegar, todos preferiam desviar o olhar, virando costas ao
mar e às gentes que viviam na miséria, entre a costa e a selva de fábricas do Pueblo Nuevo.
Mesmo assim, Armando tinha as suas dúvidas. A história que intuía existir por trás daquele
estranho hóspede, que haviam acolhido, poderia fazer que a lei do silêncio se quebrasse.
Passadas poucas semanas, dois polícias novatos aproxima- ram-se, perguntando se alguém
havia visto um homem que se parecia com o estranho. Armando manteve-se alerta durante dias,
mas quando ninguém mais tornou em busca, acabou por compreender que, àquele homem,
ninguém o queria encontrar. Talvez tivesse morrido e nem o sabia.
Passado um mês e meio de estar ali, as feridas do seu corpo começaram a sarar. Quando o
homem abriu os olhos e perguntou onde se encontrava, ajudaram-no a erguer o tronco e a sorver
um caldo, mas não lhe disseram nada.
- O senhor tem de repousar.
- Estou vivo? - perguntou.
Ninguém confirmou se o estava ou não. Os seus dias passavam entre o sono e uma fadiga que
não o abandonava. Sempre que fechava os olhos e se entregava ao cansaço, viajava ao lugar. No
seu sonho, que se repetia noite após noite, voltava a escalar as paredes de uma vala infinita, com
uma maré de cadáveres. Quando chegava ao cimo e se voltava a olhar, via aquela maré de corpos
espectrais a revolver-se, qual ninho de enguias. Os mortos abriam os olhos e escalavam as
paredes, seguindo os seus passos. Seguiam- -no através das montanhas e adentravam-se nas ruas
de Barcelona, procurando o que haviam sido os seus lares, batendo às portas de quem tinham
amado. Alguns procuravam os seus assassinos, percorrendo a cidade sedentos de vingança, mas a
maioria só queria regressar a sua casa, à sua cama, abraçar os filhos, as mulheres e as amantes
que deixaram para trás. Mas ninguém lhes abria as portas, ninguém lhes pegava nas mãos e
ninguém queria beijar-lhes os lábios, e o moribundo, encharcado em suor, acordava na escuri-
dão, com o estrondo ensurdecedor do pranto dos mortos na alma.
Um estranho costumava visitá-lo amiúde. Cheirava a tabaco e a água-de-colónia, dois artigos
de pouca circulação naquela época. Sentava-se numa cadeira a seu lado e fitava-o com um olhar
impenetrável. O cabelo era preto como alcatrão, os traços do rosto, aquilinos. Quando se
apercebia de que o doente estava acordado, sorria-lhe.
- O senhor é Deus ou o diabo? - perguntou-lhe o moribundo uma vez.
O estranho encolheu os ombros, reflectindo na pergunta.
- Um pouco de ambos - acabou por responder.
- Eu, por princípio, sou ateu - informou o doente. - Ainda que, na verdade, tenha muita fé.
- Como muita gente. Agora, repouse, caro amigo. O céu pode esperar. E o inferno
parece-me pequeno.
ENTRE as visitas do estranho cavalheiro de cabelo cor de azeviche, o convalescente deixava-se
alimentar, lavar e vestir com roupas limpas, que lhe ficavam grandes. Quando foi capaz de se
manter em pé e de dar uns passos, acompanhavam-no até à beira-mar, onde molhava os pés e se
deixava acariciar pela luz do Mediterrâneo. Um dia, passou a manhã vendo algumas crianças,
vestidas com andrajos e de cara suja, a brincarem na areia e pensou que lhe apetecia viver, pelo
menos um pouco mais. Com o , tempo, as recordações e a raiva começaram a aflorar e, còm elas,
o desejo, e por sua vez o medo, de regressar à cidade.
Pernas, braços e restantes engrenagens começaram a funcionar mais ou menos com
normalidade. Recuperou o raro prazer de urinar ao vento, sem sentir ardores ou percalços
embaraçosos, e disse a si próprio que um homem que conseguia mijar em pé e sem ajuda era um
homem em condições de enfrentar as suas responsabilidades. Naquela mesma noite, de
madrugada, levantou-se com discrição e afastou-se pelas estreitas ruelas do bairro até à sua
fronteira, delimitada pelos carris do caminho- -de-ferro. Do outro lado, erguia-se a floresta de
chaminés e as cabeças dos anjos e mausoléus do cemitério. Um pouco mais afastada, um lençol
de luzes que ascendia pelas colinas, estava Barcelona. Ouviu passos atrás de si e, ao voltar-se,
deparou com o olhar sereno do homem de cabelo cor de azeviche.
- O senhor tornou a nascer - disse.
- A ver se, desta vez, me saio melhor do que da primeira, porque tenho tido cá um azar...
O homem de cabelo cor de azeviche sorriu.
- Permita-me apresentar-me. Sou o Armando, o cigano.
Fermín apertou-lhe a mão.
- Fermín Romero de Torres, o não cigano, mas boa pessoa.
- Amigo Fermín, pareceu-me que andava a pensar regressar para o mundo deles.
- O íman atrai o ferro - sentenciou Fermín. - Deixei algumas coisas meio resolvidas.
Armando assentiu.
- Compreendo, mas ainda é cedo, meu amigo - disse-lhe. - Tenha paciência. Fique connosco
mais algum tempo.
O medo do que o aguardava quando regressasse e a generosidade daquelas gentes
retiveram-no ali, até que, uma manhã de domingo, pediu emprestado um jornal a um dos
rapazes, que o encontrara no caixote do lixo de um quiosque abarracado, na praia da
Barceloneta. Era difícil determinar há quanto tempo o jornal estaria entre os detritos, embora
datasse três meses depois da noite da sua fuga. Folheou as páginas, em busca de um indício, de
um sinal, de uma menção, mas nada havia. Naquela tarde, quando já decidira que, ao anoitecer,
regressaria a Barcelona, Armando aproximou-se dele e informou-o de que um dos seus homens
passara pela pensão em que vivia.
- Fermín, é melhor que não passe lá para ir buscar os seus pertences.
- Como sabe a minha morada?
Armando sorriu, ignorando a pergunta.
- A polícia disse-lhes que você faleceu. Há algumas semanas, apareceu uma notícia sobre a
sua morte. Nada lhe quis dizer, porque compreendo que ler sobre a própria morte, quando se
está convalescente, não ajuda.
- Do que morri?
- Causas naturais. Caiu por uma ladeira quando queria fugir da justiça.
- Então, estou morto?
- Como a polca.
Fermín reflectiu nas implicações do seu novo estatuto.
- E agora que faço? Para onde vou? Não posso ficar aqui para sempre, abusando da vossa
bondade e pondo-vos em perigo.
Armando sentou-se a seu lado e acendeu um dos cigarros que ele próprio enrolava e que
cheiravam a eucalipto.
- O Fermín pode fazer o que quiser, porque você não existe. Quase lhe diria que ficasse
connosco, porque, agora, é um dos nossos, gente que não tem nome nem rosto em nenhum
lugar. Somos fantasmas. Invisíveis. Mas sei que tem de regressar e de resolver o que quer que seja
que lá deixou. Lamentavelmente, uma vez que saia daqui, não lhe posso oferecer protecção.
- O senhor já fez por mim o suficiente.
Armando deu-lhe uma palmada no ombro e estendeu-lhe uma folha de papel dobrada que
trazia no bolso.
- Mantenha-se longe da cidade um tempo. Deixe passar um ano e, quando regressar, comece
por aqui - disse ao afastar-se.
Ao desdobrar a folha, Fermín pôde ler:
FERNANDO BRIANS
Advogado Calle de Caspe, 12 Águas-furtadas, 1.a Barcelona. Telefone 564375
- Como posso pagar-lhes o que fizeram por mim?
- Quando tiver resolvido os assuntos, passe um dia por aqui e pergunte por mim. Iremos
juntos ver dançar a Carmen Amaya e, depois, conta-me como conseguiu fugir lá de cima. Tenho
curiosidade - disse Armando.
Fermín fitou aqueles olhos pretos, anuindo devagar.
- Em que cela esteve, Armando?
- Na 13.
- Eram suas as marcas de cruzes na parede?
- Ao contrário de si, Fermín, eu sou crente, mas já não tenho fé.
Naquele fim de tarde, ninguém o impediu de partir, ninguém
se despediu. Partiu, mais um entre os invisíveis, até às ruas de uma Barcelona que fedia a
electricidade. Viu, ao longe, as torres da Sagrada Família, encalhadas num manto de nuvens
avermelhadas que ameaçavam uma tempestade bíblica e continuou a
caminhar. Os seus passos levaram-no até à paragem de autocarros da Calle Trafalgar. Nos bolsos
do casaco que Armando lhe ofereceu encontrou dinheiro. Comprou o bilhete com o trajecto mais
longe possível e passou a noite no autocarro, a percorrer estradas desertas debaixo de chuva. No
dia seguinte, tornou a fazer o mesmo e assim, após um périplo de viagens de comboio, de
caminhadas e de autocarros nocturnos, chegou a um local onde as ruas não tinham nome, onde
as casas não tinham número e onde nada nem ninguém se poderia recordar dele.
Teve cem ofícios e nenhum amigo. Ganhou dinheiro que gastou. Leu livros que falavam de
um mundo em que já não acreditava. Começou a escrever cartas que nunca soube como
terminar. Viveu contra as recordações e os remorsos. Mais de uma vez se aproximou da beira de
uma ponte ou de um precipício, contemplando o abismo com serenidade. No último momento,
voltava-lhe sempre à memória aquela promessa e o olhar do Prisioneiro do Céu. Um ano passado,
saiu do quarto que arrendara por cima de um bar e, sem outra bagagem que não um exemplar de
A Cidade dos Malditos, que encontrara num mercado de rua, com certeza o único exemplar dos
livros de Martin que não fora queimado, e que lera uma dúzia de vezes, percorreu a pé os dois
quilómetros que o separavam da estação dos caminhos-de-ferro e aí comprou o bilhete que o
esperara todos aqueles meses.
- Um para Barcelona, por favor.
O funcionário emitiu o bilhete, entregando-lho com um olhar de desdém.
- Que raio de escolha - disse. - Com os polacos de merda.
Barcelona, 1941
ANOITECIA quando Fermín desceu do comboio, na Estação de Francia. A máquina cuspira
uma nuvem de vapor e de fuligem, que se estendia pelo cais e envolvia os passos dos passageiros
que, após tão longa viagem, desciam. Fermín juntou-se à marcha silenciosa até à saída, entre
pessoas vestidas com roupas esfarrapadas e que arrastavam malas sujas com correias, idosos
prematuros que traziam num fardo todos os pertences e crianças de olhar e bolsos vazios.
Dois agentes da Guardia Civil vigiavam a entrada para o cais e Fermín pôde ver que os seus
olhos se passeavam pelos passageiros, detendo alguns ao acaso, para lhes pedir os documentos.
Fermín continuou a caminhar em linha recta na direcção de um deles. Quando apenas os
separavam uma dúzia de metros, apercebeu-se de que o guarda o observava. No romance de
Martin, que lhe servira de companhia em todos aqueles meses, uma das personagens afirmava
que a melhor forma de desarmar a autoridade é dirigir-se a ela antes que se dirija a nós. Antes
que o guarda o pudesse interpelar, Fermín falou-lhe com voz serena:
- Boa noite, chefe. Teria a amabilidade de me indicar onde fica o Hotel Porvenir? Acho que
fica na Plaza Palacio, mas quase não conheço a cidade.
O guarda observou-o em silêncio, um tanto desconcertado. O colega aproximara-se,
colocando-se do seu lado direito.
- Isso vai ter de perguntar à saída - disse num tom pouco amigável.
Fermín acenou com cortesia.
- Perdoe-me o incómodo. Assim farei.
Preparava-se para continuar até ao átrio da estação, quando o outro guarda o reteve por um
braço.
- A Plaza Palacio fica à esquerda, ao sair. Em frente à Capitania.
- Muito obrigado. Desejo-lhes uma boa noite.
O guarda soltou-lhe o braço e Fermín afastou-se devagar, medindo os passos até que chegou
ao átrio e, daí, à rua.
Um céu escarlate cobria uma Barcelona negra e semeada de silhuetas obscuras e afiladas. Um
eléctrico semivazio arrastava-se projectando uma luz mortiça sobre o empedrado. Fermín espe-
rou que passasse para atravessar para o outro lado. Enquanto evitava os carris luzidios, observou
a vista que se desenhava sobre o Paseo Colón e, ao fundo, a montanha de Montjuic e o castelo,
que se alçava sobre a cidade. Baixou o olhar e percorreu a Calle
Comercio, em direcção ao Mercado dei Borne. As ruas estavam desertas e uma brisa fria soprava
entre os becos. Não tinha para onde ir.
Recordou-se que Martin lhe havia contado que, há anos, vivera perto dali, num velho casarão
incrustrado no estreito canhão de sombras da Calle Flassaders, perto da Fábrica de Chocolates
Mauri. Dirigiu-se para lá, mas, ao chegar, verificou que o edifício e o terreno circundante haviam
sido pasto dos bombardeamentos durante a guerra. As autoridades não se deram ao trabalho de
limpar os escombros e os vizinhos, presumivelmente para deambularem por uma rua mais
estreita do que os corredores de algumas casas da zona nobre, limitaram-se a afastar o entulho e
a amontoá-lo fora do caminho.
Fermín observou em redor. Apenas se via o halo de luzes e velas que exalavam uma claridade
mortiça das varandas. Aventurou-se por entre as ruínas, evitando escombros, gárgulas quebradas
e vigas retorcidas em nós impossíveis. Procurou uma abertura entre os escombros, aninhando-se
sob o abrigo de uma pedra onde ainda era possível ler-se o número 17, a antiga residência de
David Martin. Cobriu-se com o casaco e os velhos jornais que levava sob a roupa. Em posição
fetal, fechou os olhos e tentou conciliar o sono.
Passada meia hora, o frio começou a penetrar-Ihe nos ossos. Um vento carregado de
humidade varria as ruínas, procurando frestas e orifícios. Fermín abriu os olhos e levantou-se.
Tentava encontrar um recanto mais resguardado, quando vislumbrou uma silhueta que o
observava da rua. Fermín ficou imóvel. A figura deu alguns passos na sua direcção.
- Quem é? - perguntou.
A figura aproximou-se um pouco mais e o eco de um lampadário desenhou-lhe o perfil. Era
um homem alto e robusto, vestido de preto. Fermín reparou no colarinho. Um sacerdote. Fermín
levantou as mãos, em sinal de paz.
- Vou-me já embora, padre. Por favor, não chame a polícia. O sacerdote mirou-o de alto a
baixo. Tinha o olhar severo e
o ar de ter passado metade da vida a carregar sacas no porto, em vez de a levantar cálices.
- Tem fome? - perguntou.
Fermín, que seria capaz de comer qualquer um daqueles pedregulhos se alguém os tivesse
regado com três gotas de azeite, negou.
- Acabo de jantar no Las Siete Puertas e até fiquei roxo, de tanto arroz preto - disse.
O sacerdote esboçou uma sugestão de sorriso. Voltou-se e começou a andar.
- Venha - ordenou.
O padre Valera vivia no sótão de um edifício situado no fim do Paseo dei Borne, que dava
directamente para os telhados do mercado. Fermín deu conta, com entusiasmo, de três pratos de
sopa e de umas quantas côdeas de pão seco e de dois copos de vinho diluído com água que o
padre lhe colocou à frente, enquanto o observava com curiosidade.
- O senhor não janta, padre?
- Não tenho por costume jantar. Desfrute porque vejo que tem fome atrasada desde 1936.
Enquanto sorvia com ruído a sopa e os pedaços de pão, Fermín ia passeando o olhar pela sala
de jantar. A seu lado, um armário envidraçado mostrava uma colecção de pratos e copos, vários
santos e o que lhe parecia um modesto faqueiro de talheres de prata.
- Eu também li Os Miseráveis, assim nem sequer pense nisso - advertiu o sacerdote.
Fermín negou, envergonhado.
- Como se chama?
- Fermín Romero de Torres, para servir vossa excelência.
- É procurado, Fermín?
- Depende do ponto de vista. É um assunto complicado.
- Nada tenho a ver com isso, se não me quiser contar. Mas não pode andar por aí com essa
roupa. Acabará no calabouço antes de chegar à Via Layetana. Estão a deter muita gente que
estava escondida há bastante tempo. Há que ter muita prudência.
- Assim que deitar as mãos a umas poupanças bancárias que têm estado em hibernação,
pensei ir até ao El Dique Flotante, de onde sairei um janota.
- Vamos lá a ver, levante-se um instante.
Fermín largou a colher e pôs-se de pé. O sacerdote observou-o em pormenor.
- O Ramón fazia dois de si, mas creio que algumas roupas de quando era novo lhe servem.
- Ramón?
- O meu irmão. Mataram-mo lá em baixo na rua, à porta do prédio, em Maio de 1938.
Procuravam-me a mim, mas ele ousou enfrentá-los. Era músico. Tocava na banda municipal. Era
pri- meiro-trompetista.
- Lamento muito, padre.
O sacerdote encolheu os ombros.
- Quase toda a gente perdeu alguém, seja de que facção for.
- Eu não apoio nenhuma - esclareceu Fermín. - E digo-lhe mais, as bandeiras mais me
parecem trapos coloridos que fedem a ranço e basta-me ver alguém que se envolva com elas e
com a boca cheia de hinos, brasões e discursos para ficar de caganeira.
Sempre pensei que aquele que sente muito apego a um rebanho é porque tem algo de carneiro.
- O senhor deve passar muito mal neste país.
- Não calcula o senhor a que ponto. Mas digo sempre que o acesso directo a um bom
presunto compensa tudo. E em todo o lado se cozem favas.
- Isso é verdade. Diga-me, Fermín, há quanto tempo não prova um bom presunto?
- Desde 6 de Março de 1934. No Los Caracoles, na Calle Escudellers. Outra vida.
O sacerdote sorriu.
- Pode passar aqui a noite, Fermín, mas, amanhã, terá de procurar outro sítio. As pessoas
falam. Posso dar-lhe algum dinheiro para uma pensão, mas saiba que todas pedem o bilhete de
identidade e fornecem a lista de hóspedes à esquadra.
- Não precisa de dizer mais, padre. Amanhã, antes de o Sol nascer, esfumo-me mais rápido
do que a boa vontade. Mas está fora de questão aceitar um cêntimo, pois já abusei o suficiente
da...
O sacerdote ergueu a mão, interrompendo-o.
- Vamos ver como lhe ficam algumas roupas do Ramón - disse, levantando-se da mesa.
O padre Valera insistiu em providenciar a Fermín um par de sapatos em condições razoáveis,
um fato de lã modesto, mas limpo, duas mudas de roupa interior e alguns artigos de higiene, que
lhe pôs numa mala. Numa das estantes, estava uma trompete reluzente e várias fotografias de
dois jovens bem-parecidos a sorrir, no que parecia as festas de Gracia. Era preciso bastante
atenção para se perceber de que um era o padre Valera, que agora parecia trinta anos mais velho.
- Não tenho água quente. A cisterna só torna a ser enchida de manhã, assim, ou espera ou
usa a água do jarro.
Enquanto Fermín se lavava o melhor que podia, o padre Valera preparou uma cafeteira com
uma espécie de chicória, misturada com outras substâncias de aspecto suspeito. Não havia
açúcar, mas a água suja naquela chávena estava quente e a companhia era agradável.
- Quase se diria estarmos na Colômbia, a saborear os mais finos e seleccionados grãos - disse
Fermín.
- O senhor é um homem peculiar, Fermín. Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?
- Ao abrigo do segredo confessional?
- Digamos que sim.
- Dispare.
- Matou alguém, Fermín? Na guerra, quero dizer.
- Não - respondeu Fermín.
- Eu sim.
Fermín ficou imóvel, com a chávena a meio sorvo. O sacerdote baixou o olhar.
- Nunca havia dito a ninguém.
- Fica sob segredo confessional - garantiu Fermín.
O sacerdote esfregou os olhos e suspirou. Fermín per- guntou-se há quanto tempo viveria
aquele homem ali sozinho, com a única companhia daquele segredo e a memória do irmão
morto.
- Decerto que teve as suas razões, padre.
O sacerdote abanou a cabeça.
- Deus abandonou este país - disse.
- Pois nada receie, porque assim que vir como estão as coisas a norte dos Pirenéus, voltará
de rabo entre as pernas.
O sacerdote guardou um prolongado silêncio. Acabaram de beber aquele sucedâneo de café e
Fermín, para animar o pobre sacerdote que parecia mais alquebrado a cada minuto que passava,
serviu-lhe uma segunda chávena.
- Gosta mesmo disto?
Fermín assentiu.
- Quer que o ouça em confissão? - perguntou de súbito o sacerdote. - Estou a falar a sério.
- Não se ofenda, padre, mas eu não consigo acreditar...
- Mas pode dar-se o caso de Deus acreditar em si.
- Duvido.
- Não precisa de acreditar em Deus para se confessar. E algo entre o senhor e a sua
consciência. O que tem a perder?
Durante duas horas, Fermín contou ao padre Valera tudo o que mantivera silenciado desde
que fugira do castelo de Mont- juic, há mais de um ano. O padre ouvia-o com atenção, anuindo
ocasionalmente. Por fim, quando Fermín sentiu que já havia desabafado tudo e que tirara de
cima um fardo cujo peso, há meses, o asfixiava sem que se apercebesse, o padre Valera retirou de
uma caixa uma garrafa de licor e, sem perguntar, serviu-lhe o que restava.
- Não me dá a absolvição, padre? Só uma pinga de conhaque?
- O resultado é o mesmo. Além disso, já não tenho o direito de perdoar ou de julgar
ninguém, Fermín. Mas pareceu-me que lhe faria bem desabafar. O que pensa fazer agora?
Fermín encolheu os ombros.
- Se regressei, e se me arrisco ao fazê-lo, é pela promessa que fiz ao Martin. Tenho de
procurar esse advogado e, depois, a senhora Isabella e o filho, o Daniel, e protegê-los.
- Como?
- Não sei. Algo me ocorrerá. Aceitam-se sugestões.
- Mas você não os conhece de lado algum. São apenas estranhos, dos quais lhe falou um
homem que conheceu na prisão...
- Bem sei. Dito assim, parece loucura, não é?
O sacerdote fitava-o como se pudesse ver através das suas palavras.
- Não será por ter visto tanta miséria e mesquinhez entre os homens, que quer fazer algo
bom, ainda que seja uma loucura?
- E por que não?
Valera sorriu.
- Eu sabia que Deus acreditava em si.
NO dia seguinte, Fermín saiu em bicos dos pés, para não acordar o padre Valera, que
adormecera no sofá com um um livro de poemas de Machado na mão e que, agora, roncava como
um touro de lide. Antes de sair, deu-lhe um beijo na testa e deixou na mesa da sala de jantar o
dinheiro que o sacerdote envolvera num guardanapo e pusera na mala. Depois, desceu as escadas
de roupa e consciência limpas, determinado a continuar a viver, pelo menos, por mais alguns
dias.
Naquele dia, despontara um sol e uma brisa suave que vinha do mar, estendendo um céu
cintilante e de um azul-profundo, que desenhava longas sombras à passagem das pessoas. Fermín
dedicou a manhã a percorrer as ruas de que se recordava, a parar em frente às montras e a
sentar-se em bancos, a ver passar raparigas bonitas, que para ele todas o eram. Ao meio-dia,
dirigiu-se a uma taberna no início da Calle Escudellers, perto do restaurante Los Caracoles, de
tão grata memória. A taberna em si tinha reputação infausta, entre os mais indomáveis paladares,
de vender os bocadillos mais baratos de toda a Barcelona. O segredo consistia, diziam os
especialistas, em não perguntar sobre os ingredientes.
Com os seus novos trajes de senhor e uma contundente armadura de exemplares do La
Vanguardia dobrados sob a roupa, para dar robustez, simulacro de musculatura e casaco barato,
Fermín sentou-se ao balcão e, depois de consultar a lista de delícias ao alcance das bolsas e dos
estômagos mais modestos, encetou negociações com o empregado.
- Tenho uma pergunta, jovem. O especial do dia, o bocadillo de mortadela e fiambre de
Cornellá em pão depayés, o pão é com tomate fresco?
- Recém-colhido nas nossas hortas no el Prat, por trás da fábrica de ácido sulfúrico.
- Bouquet de primeira. E diga-me o senhor, fia-se nesta casa?
O empregado perdeu a expressão risonha e estacou atrás do
balcão, colocando o pano no ombro com um gesto hostil.
- Nem a Deus.
- Não abrem excepções para mutilados de guerra condecorados?
- Desapareça ou chamo a Social.
Dado o rumo que a negociação havia tomado, Fermín bateu em retirada, à procura de um
recanto tranquilo para repensar a estratégia. Acabara de se instalar nos degraus de entrada de um
prédio, quando a silhueta de uma jovem, que não devia ainda ter dezassete anos, embora já com
curvas de corista, passou a seu lado e se estatelou no chão.
Fermín levantou-se para a ajudar e acabara de lhe pegar no braço, quando ouviu passos atrás
de si e uma voz que fazia com que a do rude empregado que acabara de o mandar apanhar ar lhe
soasse a música celestial.
- Olha, rameira de merda, não me venhas com histórias ou racho-te a cara e deixo-te caída
na rua, que é mais puta do que tu.
O autor daquele discurso era um proxeneta de tez escura e de gosto duvidoso em adornos de
bijutaria. À parte ter uma corpulência duas vezes superior à de Fermín e trazer na mão o que
parecia ser um objecto cortante ou, pelo menos, pontiagudo, Fermín, que começava a estar pelos
cabelos com rufias e chulos, interpôs-se entre a jovem e aquele tipo.
- E tu quem caralho és, desgraciao? Vamos, põe-te ao largo antes que te parta a cara.
Fermín sentiu que a rapariga, que lhe pareceu cheirar a uma estranha mistura de canela e
fritos, se aferrava aos seus braços. Uma vista de olhos ao rufia bastava para perceber que a
situação não tinha cariz de se resolver pela via dialéctica e, como resposta, Fermín decidiu passar
à acção. Após uma análise in extremis do seu oponente, chegou à conclusão que a maioria
daquela massa muscular era banha e que, no que respeitava a músculo, ou matéria cinzenta, não
possuía grande vantagem.
- Não lhe permito que me fale assim, e muito menos à menina.
O proxeneta fitou-o atónito, sem rasgos de ter registado as
palavras. Um instante depois, o homem, que esperava daquele alfinete qualquer coisa menos
guerra, encaixou, com surpresa, um contundente golpe de mala nas partes baixas, a que se segui-
ram, mais quatro ou cinco porradões, com o canto de cabedal da mala, em pontos estratégicos,
que o deixaram, pelo menos algum tempo, prostrado e desmotivado.
Um grupo de transeuntes que assistira ao incidente começou a aplaudir e, quando Fermín se
voltou para se certificar de que a rapariga estava bem, encontrou-se com o seu olhar embelezado
e envenenado de gratidão e ternura.
- Fermín Romero de Torres, para servi-la, menina.
A rapariga levantou-se, juntou os pés e deu-lhe um beijo na face.
- Eu sou a Rociíto.
A seus pés, o rufia tentava levantar-se e recuperar o fôlego. Antes de o equilíbrio de forças
deixar de lhe ser favorável, Fermín optou por se retirar do campo de batalha.
- Torna-se premente sairmos daqui - anunciou Fermín. - Perdida a iniciativa, a batalha está
contra nós...
Rociíto pegou-lhe no braço e guiou-o através de uma rede de estreitas ruelas, que
desembocavam na Plaza Real. Uma vez ao sol e em campo aberto, Fermín parou por um instante,
para recuperar o fôlego. Rociíto viu que Fermín empalidecia, não estando com bom aspecto. A
jovem intuiu que as emoções do confronto, ou a fome, haviam provocado uma quebra de tensão
ao seu corajoso campeão e levou-o até à esplanada do Hotel Dos Mundos, onde Fermín colapsou
sobre uma cadeira.
Rociíto, que teria dezassete anos mas com um olho clínico tal, que, se quisesse, o próprio
doutor Trueta2 a contratava, pediu- -lhe um prato de tapas diversas, para que retemperasse
forças. Quando Fermín viu chegar o festim, alarmou-se.
- Rociíto, não trago nem um cêntimo...
- Isto sou eu quem paga - atalhou ela com orgulho. - Do meu homem, quem cuida sou eu,
quero-o bem alimentao.
Rociíto ia-o cevando com rodelas de chouriço, pão e batatas bravas, tudo isto banhado com
uma monumental caneca de cerveja. Fermín foi-se revivendo e recuperando a vitalidade, perante
o olhar de satisfação da rapariga.
- Como sobremesa, se quiser, faço-lhe uma especialidade da casa que o enlouquece -
ofereceu a jovem, lambendo os lábios.
- Mas, rapariga, a estas horas, não devias estar no liceu, com as freiras?
Rociíto riu-se de tal ideia.
- Ai! Por Deus, a lábia que este senhor tem!
À medida que o festim decorria, Fermín compreendeu que, se dependesse da rapariga, tinha
à sua frente uma prometedora carreira de proxeneta. Não obstante, outros assuntos de maior
calibre reclamavam a sua atenção.
- Quantos anos tens, Rociíto?
- Dezoito e meio, senhor Fermín.
- Pareces mais velha.
- É da prateleira. Cresceu-me aos treze e abençoada seja, ainda que me fique mal dizê-lo.
Fermín, que nunca vira uma conspiração de curvas comparáveis desde os saudosos tempos
de La Habana, tentou recobrar o bom senso.
- Rociíto - começou -, não me posso encarregar de ti...
- Bem sei, senhor, não creia que sou tonta. Bem sei que não é homem para viver à custa de
uma mulher. Posso ser jovem, mas, por conviver com tantos homens, tenho aprendido...
- Terás de me dizer para onde te posso enviar o dinheiro deste banquete, porque, agora,
apanhas-me numa situação económica delicada...
Rociíto abanou a cabeça.
2 Josep Trueta i Raspall (1897-1977) foi um cientista e médico espanhol, nascido em Barcelona e catalão convicto. Granjearia fama durante
a Guerra Civil Espanhola, pelos métodos que desenvolveu para o tratamento de feridos e mutilados de guerra. (.N.doT.)
- Tenho um quarto, na pensão, a meias com a Lali. Mas ela passa o dia inteiro fora, porque
ataca na marinha mercante... Por que não sobe o senhor e faço-lhe uma massagem?
- Rociíto...
- É a casa que convida...
Fermín contemplava-a melancólico.
- Tem olhos tristes, senhor Fermín. Deixe que a Rociíto lhe alegre a vida, ainda que seja um
bocadinho. Que mal há nisso?
Fermín baixou o olhar, envergonhado.
- Há quanto tempo não está o senhor com uma mulher, como Deus manda?
-Já nem me lembro.
Rociíto pegou-lhe na mão e, puxando-o, levou-o escadas acima, a um quarto minúsculo e
onde apenas havia uma enxerga e uma pia. O quarto tinha uma pequena varanda, que dava para
a praça. A rapariga correu a cortina e, num ápice, libertou-se do vestido com flores que levava,
por baixo do qual apenas estava a sua pele. Fermín contemplou aquele milagre da natureza,
deixando-se abraçar por um coração quase tão velho como o seu.
- Se o senhor não quer, nada precisamos de fazer.
Rociíto deitou-o na enxerga e estendeu-se a seu lado. Abra-
çou-o e acariciou-lhe a cabeça.
- Chhh, chhh - sussurrava.
Fermín, de rosto contra aquele peito de dezoito anos, começou a chorar.
Ao cair da tarde, quando Rociíto tinha de se preparar para o turno do seu ofício, Fermín
recuperou o pedaço de papel com o endereço do advogado Brians que Armando lhe entregara há
um ano e decidiu procurá-lo. Rociíto insistiu em emprestar-lhe alguns trocos para que pudesse
apanhar eléctricos e tomar um café, obrigando-o a jurar e a rejurar que voltaria para vê-la, nem
que fosse para a levar ao cinema ou à missa, porque ela era muito devota da Virgen dei Carmen e
gostava muito das cerimónias, sobretudo quando cantavam. Rociíto acompanhou-o até lá abaixo
e, ao despedir-se, deu-lhe um beijo nos lábios e um beliscão no traseiro.
- Bombonaso - disse-lhe ao vê-lo afastar-se sob as arcadas da praça.
Quando cruzou a Plaza de Cataluna, um lago de nuvens carregadas começava a fazer
remoinhos no céu. Os bandos de pombos que por hábito sobrevoavam a praça haviam procurado
refúgio nas árvores e esperavam inquietos. As pessoas conseguiam cheirar a electricidade no ar e
apertavam o passo até às entradas do metro. Levantara-se um vento desagradável, que arrastava
uma maré de folhas secas pelo chão. Fermín estugou o passo e, quando chegou à Calle Caspe,
começava o dilúvio.
O advogado Brians era um jovem, com ar de estudante boémio e de se alimentar à base de
bolachas de água e sal e café, que era a que o seu escritório cheirava. A isso e a papel empoeirado.
O seu gabinete era numa pequena divisão entrincheirada nas águas-furtadas do edifício que
albergava o grande Teatro Tivoli, no fim de um corredor sem luz. Embora fossem oito e meia da
noite, Fermín encontrou-o lá. Brians abriu-lhe a porta em mangas de camisa e, ao vê-lo,
limitou-se a assentir e a suspirar.
- Fermín, suponho. O Martin falou-me de si. Começava já a perguntar-me quando passaria
por aqui.
- Estive um tempo fora.
- Claro. Entre, por favor.
Fermín seguiu-o para o interior do cubículo.
- Que grande noite, não é? - perguntou o advogado, nervoso.
- E só água.
Fermín olhou em redor, verificando que havia uma única cadeira à vista. Brians cedeu-lha.
Ele acomodou-se sobre uma pilha de volumes de direito comercial.
- Ainda têm de me trazer os móveis.
Fermín verificou que ali não cabia nem um afia-lápis, mas preferiu nada dizer. Sobre a mesa,
havia um prato com uma bifana do lombo e uma cerveja. Um guardanapo de papel denunciava
que o opíparo jantar do advogado viera do café de baixo.
- Preparava-me para jantar. Tenho todo o gosto em partilhar consigo.
- Coma, coma, porque vocês, os jovens, têm de crescer e eu já jantei.
- Não posso oferecer-lhe nada? Café?
- Se tivesse Sugus...
Brians esgaravatou numa gaveta, onde tudo poderia haver, menos Sugus.
- Rebuçados Juanola?
- Estou bem, obrigado.
- Com sua licença.
Brians desferiu uma dentada na bifana e mastigou com deleite. Fermín perguntou-se qual
dos dois tinha mais aspecto de morto de fome. Ao lado da secretária, havia uma porta entre-
aberta que dava para uma divisão contígua, onde se vislumbravam uma enxerga desdobrável por
fazer, um cabide com camisas amarrotadas e uma pilha de livros.
- O senhor vive aqui? - perguntou Fermín.
Claramente, o advogado que Isabella pudera contratar para
defender Martin não era de altos voos. Brians seguiu o olhar de Fermín e ofereceu-lhe um sorriso
modesto.
- Este é, por uns tempos, o meu escritório e a minha casa - respondeu Brians, inclinando-se
para fechar a porta do quarto.
- Deve pensar que não tenho muita pinta de advogado. Para que conste não é o único, o meu pai
pensa o mesmo.
- Não faça caso. O meu pai dizia-me sempre e aos meus irmãos que éramos uns inúteis e que
íamos acabar a trabalhar nas obras. E aqui me tem, muito bem. Não há mérito em triunfar na
vida quando a família acredita em nós e nos apoia.
Brians assentiu a contragosto.
- Visto assim... A verdade é que me estabeleci há pouco por conta própria. Dantes,
trabalhava num escritório conceituado, ali na esquina, no Paseo de Gracia. Mas tivemos alguns
desentendimentos. Desde então, as coisas não têm sido fáceis.
- Não me diga. O Valls?
Brians confirmou, despachando a cerveja em três goladas.
- Desde que aceitei o caso do senhor Martin, não descansou até conseguir que todos os meus
clientes me despedissem. Os poucos que não o fizeram são os que não têm um cêntimo para
pagar os meus honorários.
- E a senhora Isabella?
O olhar do advogado obscureceu. Pousou a cerveja sobre o tampo da secretária e fitou
Fermín, hesitante.
- O senhor não sabe?
- Saber o quê?
- Que a Isabella Sempere morreu.
A tempestade dava com força sobre a cidade. Fermín sustinha uma chávena de café nas mãos,
enquanto Brians, de pé e de frente para a janela aberta, contemplava a chuva açoitando os
telhados do Ensanche e contava os últimos dias de Isabella.
- Adoeceu de repente, sem explicação. Se a tivesse conhecido... A Isabella era jovem, cheia de
vida. Tinha uma saúde de ferro e sobreviveu às misérias da guerra. Tudo aconteceu, como se
costuma dizer, de um dia para o outro. Na noite em que você conseguiu fugir do castelo, a
Isabella voltou tarde a casa. Quando o marido a encontrou, estava ajoelhada na casa de banho, a
suar e com palpitações. Disse que se sentia mal. Chamaram o médico, mas, antes que chegasse,
começaram as convulsões e vomitou sangue. O médico disse que era uma intoxicação e que devia
fazer uma dieta rigorosa durante uns dias, mas, na manhã seguinte, estava pior. O senhor
Sempere envolveu-a em cobertores e um vizinho taxista levou-os ao Hospital dei Mar.
Haviam-lhe aparecido umas manchas escuras na pele como chagas e o cabelo caía-lhe às
mãos-cheias. No hospital, estiveram cerca de duas horas à espera, mas, por fim, os médicos
recusaram-se a atendê-la, porque havia alguém na sala, um paciente que ainda não fora atendido,
que disse conhecer o Sempere, acusando-o de ter sido comunista ou de qualquer estupidez
do género. Suponho que o fez para ser atendido depressa. Uma enfermeira deu-lhe um
xarope, que, segundo disse, a ajudaria a limpar o estômago, mas a Isabella não conseguia engolir.
O Sempere não sabia o que fazer. Levou-a para casa e começou a telefonar para médico atrás de
médico. Ninguém sabia do que padecia. Um cliente habitual da livraria, que era médico interno,
conhecia alguém do corpo médico do Clínico. O Sempere levou-a lá.
«No Clínico, disseram-lhe que podia ser cólera e que a levasse para casa, porque havia um
surto e eles estavam cheios. Várias pessoas no bairro já haviam falecido. A Isabella estava cada
dia pior. Delirava. O marido desdobrou-se em diligências e removeu céu e terra, mas, ao fim de
alguns dias, estava tão débil que nem a podia levar para o hospital. Morreu uma semana depois
de ter adoecido, no apartamento da Calle Santa Ana, por cima da livraria...
Um silêncio prolongado instalou-se entre eles, sem mais companhia que o repicar da chuva e
o eco dos trovões, que soava mais longe à medida que o vento amainava.
- Foi quase um mês depois que me disseram que a tinham visto, certa noite, no Café da
Ópera, em frente ao Liceo. Estava sentada com Mauricio Valls. A Isabella, desobedecendo aos
meus conselhos, ameaçara revelar o seu plano de utilizar o Martin para lhe reescrever umas
patranhas quaisquer, que o tornariam célebre e que lhe fariam chover medalhas. Fui lá para fazer
algumas perguntas. O empregado recordava-se de que o Valls havia chegado antes, de
automóvel, e disse-me que pedira duas infusões de camomila e mel.
Fermín sobrepesou as palavras do jovem advogado.
- E o senhor julga que o Valls a envenenou?
- Não posso prová-lo, mas quanto mais penso mais evidente me parece. Teve de ser o Valls.
Fermín arrastou o olhar pelo chão.
- O senhor Martin sabe?
Brians negou.
- Não. Após a sua fuga, o Valls ordenou que o Martin fosse confinado a uma cela de
isolamento, numa das torres.
- E o doutor Sanahuja? Não os puseram juntos?
Brians suspirou, derrotado.
- O Sanahuja foi levado a conselho de guerra por traição. Fuzilaram-no duas semanas depois.
Um demorado silêncio inundou a sala. Fermín levantou-se e começou a andar em círculos,
agitado.
- E a mim, por que ninguém me procurou? Afinal de contas, sou eu a causa de todo este...
- Você não existe. Para evitar a humilhação perante os superiores e a ruína da promissora
carreira no regime, o Valls obrigou a patrulha que enviou à sua procura a jurar que o alvejou,
quando fugia pela ladeira de Montjuic e que o seu corpo fora atirado para a vala comum.
Fermín sentiu nos lábios o sabor da raiva.
- Olhe que estou a pensar ir agora mesmo ao Governo Militar e dizer «estes são os meus
tomates». Veremos como o Valls explica a minha ressurreição.
- Não diga disparates. Se o fizesse nada ia adiantar. A única coisa que conseguiria era que o
levassem pela estrada de Las Aguas e lhe dessem um tiro na nuca. Esse canalha não vale isso.
Fermín concordou, mas a vergonha e a culpa comiam-no por dentro.
- E o Martin? O que vai ser dele?
- O que sei é confidencial. Não pode sair destas quatro paredes. Há um carcereiro no castelo,
um tal Bebo, que me deve uns favores. Queriam matar um irmão, mas consegui que comutassem
a sentença para uma pena de dez anos, numa prisão de Valência. O Bebo é um bom homem e
conta-me tudo o que vê e ouve no castelo. O Valls não me deixa visitar o Martin, mas, através do
Bebo, pude saber que está vivo e que o Valls o tem encarcerado na torre e sob vigilância vinte e
quatro horas por dia. Deu-lhe papel e material de escrita. O Bebo diz que o Martin está a
escrever.
- O quê?
- Tanto quanto sei, o Valls acredita, pelo menos foi o que me disse o Bebo, que o Martin está
a escrever o livro que ele lhe encomendou, com base nas suas notas. Mas o Martin, que tanto eu
como o senhor sabemos não estar no pleno uso das suas faculdades mentais, parece que está a
escrever outra coisa. Às vezes, repete em voz alta o que escreve ou levanta-se e começa a dar vol-
tas pela cela, recitando fragmentos de diálogos e frases inteiras.
O Bebo faz o turno da noite, junto da sua cela e, quando pode, passa-lhe cigarros e torrões de
açúcar, que é a única coisa que come. O Martin alguma vez lhe falou de algo chamado O Jogo do
Anjo ?
Fermín negou.
- E esse o título do livro que está a escrever?
- É o que o Bebo diz. Mas pelo que conseguiu perceber do que Martin lhe conta e do que lhe
ouve dizer em voz alta, é uma espécie de autobiografia ou uma confissão... Se quer saber a minha
opinião, o Martin apercebeu-se de que está a perder o juízo e, antes que seja demasiado tarde,
está a tentar pôr no papel o que se lembra. É como se estivesse a escrever uma carta a si próprio,
para saber quem é...
- E o que acontecerá quando o Valls descobrir que não quis saber das suas ordens?
O advogado Brians fitou-o com um olhar fúnebre.
QUANDO deixou de chover rondava a meia-noite. Das águas-furtadas onde estava o escritório
do advogado Brians, Barcelona oferecia um aspecto inóspito, sob um céu de nuvens baixas que se
arrastavam sobre os telhados.
- Tem para onde ir, Fermín? - perguntou Brians.
- Tenho uma oferta tentadora para assumir o cargo de concubino e guarda-costas de uma
rapariga um pouco amalucada, mas de bom coração e um corpaço de cortar a respiração, mas
não me vejo no papel de mantido, nem que fosse aos pés da Vénus de Jerez.
- Não me agrada a ideia de o saber na rua, Fermín. É perigoso. Pode ficar aqui o tempo que
quiser.
Fermín olhou em volta.
-Já sei que não é o Hotel Colon, mas tenho uma cama desdobrável ali atrás, não ressono e, na
verdade, agradecia a companhia.
- O senhor não tem namorada?
- A minha namorada era a filha do sócio fundador do escritório de onde o Valls e companhia
conseguiram que me despedissem.
- Esta história do Martin está a sair-lhe cara. Voto de castidade e de pobreza.
Brians sorriu.
- Dê-me uma causa perdida e sou feliz.
- Pois olhe, não digo que não. Mas só se me permitir ajudar e contribuir. Posso limpar,
arrumar, dactilografar, cozinhar, dar- -lhe assessoria e serviços de investigação e vigilância, e se,
num momento de fraqueza, se vir em apuros e necessitar de libertar a pressão, através da minha
amiga Rociíto, tenho a certeza que lhe posso conseguir uma profissional que o deixe como novo,
porque, na juventude, há que vigiar para que uma sobreacumu- lação de eflúvios seminais não
lhe suba à cabeça, porque depois é pior.
Brians estendeu-lhe a mão.
- Negócio fechado. O senhor está contratado como estagiário- -adjunto da empresa Brians e
Brians, defensora dos insolventes.
- Eu não me chame Fermín se, antes do fim da semana, não lhe arranjo um cliente dos que
pagam em dinheiro e adiantado.
E foi assim que Fermín Romero de Torres se instalou temporariamente no minúsculo
escritório do advogado Brians, onde começou por arrumar, limpar e reordenar todos os dossiês,
pastas e casos em curso. Passados não mais de dois dias, já a superfície parecia ter triplicado
mercê das artes de Fermín, que a deixara a reluzir como uma salva de prata. Fermín passava a
maior parte do dia ali fechado, mas destinava cerca de duas horas para tratar de afazeres
diversos, regressando com punhados de flores subtraídos do átrio do Teatro Tivoli, algum café,
que conseguia da empregada do bar do rés-do-chão por a bajular, e deliciosos víveres da
Mercearia Quilez, que registava na conta do escritório que despedira Brians e de que Fermín se
apresentou como o novo moço de recados.
- Fermín, este presunto é fabuloso. Onde o arranjou?
- Prove o manchego, que verá estrelas.
Durante as manhãs, revia todos os casos de Brians e passava a limpo as suas anotações. À
tarde, pegava no telefone e, folheando a lista telefónica, lançava-se à procura de clientes
presumivelmente solventes. Quando cheirava possibilidades ao telefone, procedia a uma visita ao
domicílio. De um total de cinquenta telefonemas para estabelecimentos comerciais, profissionais
e pessoas do bairro, dez converteram-se em visitas e três em novos clientes de Brians.
O primeiro, era uma viúva em litígio com uma companhia de seguros, que se negava a pagar
o enterro do marido, argumentando que a paragem cardíaca que o vitimara, na sequência de
uma come- zaima de lagostins no Las Siete Puertas, era um caso de suicídio, não contemplado na
apólice. O segundo era um taxidermista, ao qual um toureiro retirado levara para embalsamar o
miura3 de quinhentos quilos, que terminara a sua carreira de lide e que, uma vez dissecado, o
matador se recusou a levá-lo e pagar, porque segundo ele os olhos de vidro que o taxidermista
lhe colocara lhe conferiam um ar demoníaco, que o fizera sair a correr do estabelecimento aos
gritos de «lagarto! lagarto!». O terceiro, um alfaiate da zona de San Pedro, ao qual um dentista
sem diploma extraíra cinco molares, nenhum cariado. Eram casos de pouca monta, mas todos os
clientes haviam pago um adiantamento e assinado contrato.
- Fermín, vou dar-lhe um salário fixo.
- Nem pensar.
Fermín recusou-se a aceitar qualquer compensação pelos seus bons ofícios, excepto
pequenos empréstimos ocasionais, quando, aos domingos à tarde, levava a Rociíto ao cinema, a
dançar no La Paloma ou ao Parque do Tibidabo, onde, na casa dos espelhos, a jovem lhe deixou
um chupão no pescoço que lhe durou uma semana, aproveitando, um dia, serem os únicos pas-
sageiros do simulador de avião que sobrevoava em círculos o céu em miniatura de Barcelona,
Fermín recuperou o pleno exercício e gozo da sua virilidade, após tão longo período afastado dos
cenários do amor apressado.
Um dia, no alto da roda do parque, enquanto, com as mãos, media as belezas de Rociíto,
Fermín concluiu para si que quase parecia que aqueles tempos, contra qualquer prognóstico,
estavam a ser bons tempos. E então entrou-lhe o medo, porque sabia que não podiam durar e
3 Casta de touros de lide de grande porte e envergadura e que resultou originalmente do cruzamento entre outras raças. Os touros miura
começaram a marcar presença nas praças de touros espanholas a partir de 1838, por via dós esforços do ganadeiro Juan Miura. (N. do T.)
que aquelas gotas de paz e de felicidade roubadas se evaporariam antes da juventude abandonar
a carne e os olhos de Rociíto.
NAQUELA mesma noite, sentou-se no escritório à espera que Brians regressasse das suas
rondas por tribunais, escritórios, procuradorias, prisões e dos mil beija-mãos que tinha de sofrer
para obter informações. Eram quase onze da noite quando ouviu os passos do jovem advogado a
aproximarem-se pelo corredor. Abriu-lhe a porta e Brians entrou arrastando os pés e a alma, mais
derrotado do que nunca. Deixou-se cair num canto e levou as mãos à cabeça.
- O que aconteceu, Brians?
- Venho do castelo.
- Boas notícias?
- O Valls recusou-se a receber-me. Fizeram-me esperar quatro horas e, depois, disseram-me
para me ir. Retiraram-me o visto de visitante e a autorização para entrar no recinto.
- Deixaram-no ver o Martin?
Brians negou.
- Não estava lá.
Fermín fitou-o sem compreender. Brians permaneceu em silêncio por alguns instantes,
procurando as palavras.
- Quando saía, o Bebo veio atrás de mim e contou-me o que sabia. Aconteceu há duas
semanas. O Martin estava a escrever como um possesso, dia e noite, sem dormir. O Valls
suspeitava de alguma coisa estranha e ordenou ao Bebo que confiscasse ao Martin as páginas que
escrevera até então. Foram precisos três guardas para o imobilizarem e lhe arrancarem o
manuscrito. Escrevera mais de quinhentas páginas em menos de dois meses.
O Bebo entregou-as ao Valls e, quando este começou a ler, parece que ficou para lá de
furibundo.
- Não era o que esperava, imagino...
Brians abanou a cabeça.
- O Valls esteve a ler durante toda a noite e, na manhã seguinte, subiu à torre escoltado por
quatro dos seus homens. Ordenou- -lhes que algemassem as mãos e os pés do Martin e entrou na
cela. O Bebo estava à escuta, através da fresta da porta da cela, e ouviu parte da conversa. O Valls
estava furioso. Disse-lhe que estava muito decepcionado com ele, que lhe havia entregue as
sementes de uma obra-prima e que ele, ingrato, em vez de seguir as suas instruções, começara a
escrever aquele disparate, que não tinha pés nem cabeça. «Este não é o livro que esperava de si,
Martin», não parava de repetir Valls.
- E o que dizia o Martin?
- Nada. Ignorava-o. Agia como se não estivesse ali, o que punha o Valls cada vez mais
furioso. O Bebo ouviu-o a esbofetear e a agredir o Martin, mas este não deixou escapar nem um
gemido. Quando o Valls se cansou de o agredir e insultar, sem conseguir que o Martin se
dignasse dirigir-lhe a palavra, disse o Bebo que sacou de uma carta da algibeira, uma carta que o
senhor Sempere enviara ao Martin há meses, mas que fora confiscada. Encerrada no sobrescrito,
estava uma nota que a Isabella escrevera para o Martin no seu leito de morte...
- Filho de uma cadela.
- O Valls deixou-o ali, fechado com aquela carta, porque sabia que nada no mundo o ia
magoar mais do que saber que a Isabella morrera... Disse o Bebo que, quando o Valls saiu e o
Martin leu a carta, começou a gritar, e que esteve aos uivos durante toda a noite, batendo nas
paredes e na porta de ferro com as mãos e com a cabeça...
Brians ergueu o olhar e Fermín ajoelhou-se à sua frente, colocando-lhe a mão sobre o ombro.
- Sente-se bem, Brians?
- Sou o seu advogado - disse com voz trémula. - Pressupõe- -se que é meu dever protegê-lo e
tirá-lo dali...
- O senhor fez tudo o que pôde, Brians. E o Martin sabe.
Brians abanou a cabeça.
- A coisa não acaba aqui - disse. - O Bebo contou-me que, como o Valls proibiu que lhe
dessem mais papel e tinta, o Martin começou a escrever no verso das páginas que lhe havia
atirado à cara. À falta de tinta, fazia cortes nas mãos e nos braços e utilizava o sangue...
«O Bebo tentava falar com ele, acalmá-lo... Não lhe aceitava nem os cigarros nem os torrões
de açúcar, que tanto apreciava... Nem sequer o reconhecia. O Bebo acha que ao receber a notícia
da morte da Isabella, o Martin perdeu totalmente o juízo e vivia no inferno que construiu na sua
mente... Passava as noites a gritar e toda a gente o podia ouvir. Começaram a correr rumores
entre os visitantes, os presos e o pessoal da prisão. O Valls estava a ficar nervoso. Por fim, certa
noite, ordenou a dois dos seus pistoleiros que o levassem...
Fermín engoliu em seco.
- Para onde?
- O Bebo não tem a certeza. Pelo que conseguiu ouvir, julga que para um casarão
abandonado, perto do Parque Gúell... um local onde, ao que parece, durante a guerra, se diz
terem matado várias pessoas, que logo enterraram no jardim... Quando os pistoleiros
regressaram, disseram ao Valls que estava tudo tratado, mas o Bebo disse-me que, nessa mesma
noite, os ouviu falar entre si, tendo-lhe parecido que aconteceram problemas. Alguma coisa se
passara naquela casa. Parece que havia mais alguém lá.
- Mais alguém?
Brians encolheu os ombros.
- Então o David Martin está vivo?
- Não sei, Fermín. Ninguém sabe.
Barcelona, 1957
FERMÍN falava num fio de voz e olhar cabisbaixo. Invocar aquelas recordações parecia tê-lo
deixado exangue e fazia das tripas coração para se suster na cadeira. Servi-lhe um último copo de
vinho e observei-o a limpar as lágrimas com as mãos. Estendi-lhe um guardanapo, mas
ignorou-o. O resto dos clientes do Can Lluís haviam ido para casa há algum tempo e supus que
devia passar da meia-noite, mas ninguém nos queria dizer nada, deixando-nos tranquilos na sala
de refeições. Fermín fitava-me exausto, como se desvelar aqueles segredos que durante tantos
anos guardara lhe houvesse sugado até a vontade de viver.
- Fermín...
-Já sei o que me vai perguntar. A resposta é não.
- Fermín, o David Martin é meu pai?
Fermín fitou-me com seriedade.
- O seu pai é o senhor Sempere, Daniel. Nunca duvide disso. Nunca.
Anuí. Fermín manteve-se ancorado à cadeira, ausente, com o olhar perdido em lado nenhum.
- E a si, Fermín? O que lhe aconteceu a si?
Fermín demorou a responder, como se aquela parte da história não tivesse importância
alguma.
- Voltei à rua. Não podia ficar ali, com o Brians. Não podia ficar com a Rociíto. Nem com
ninguém...
Fermín deixou o relato suspenso e eu retomei-o por ele.
- Voltou à rua, um mendigo sem nome, sem nada nem ninguém no mundo, um homem que
todos tomavam por louco e que queria morrer, se não houvesse uma promessa...
- Prometi ao Martin que cuidava da Isabella e do filho... de si. Mas fui um cobarde, Daniel.
Estive escondido tanto tempo, tive tanto medo de regressar, que, quando o fiz, a sua mãe já cá
não estava...
- Foi por isso que o encontrei naquela noite, na Plaza Real? Não foi um acaso? Há quanto
tempo me seguia?
- Meses. Anos...
Imaginei-o seguindo-me quando, em criança, ia para a escola, quando brincava no Parque de
la Ciudadela, quando parava com o meu pai em frente àquela montra, a contemplar aquela pena
que acreditava a pés juntos ter pertencido a Victor Hugo, quando me sentava na Plaza Real a ler
para a Clara e a acariciá-la com os olhos, quando julgava que ninguém me via. Um mendigo, uma
sombra, uma figura em que ninguém reparava e que todos os olhares evitavam. Fermín, o meu
protector e meu amigo.
- E por que não me contou a verdade anos depois?
- Ao princípio, queria fazê-lo, mas acabei por me aperceber que lhe faria mais mal do que
bem. Porque nada pode mudar o passado. Decidi esconder-lhe a verdade porque pensava que
era melhor que se parecesse mais com o seu pai e menos comigo.
Mergulhámos num prolongado silêncio, em que trocámos olhares de soslaio, sem saber o
que dizer.
- Onde está o Valls? - acabei por perguntar.
- Nem pense nisso - cortou Fermín.
- Onde está agora? - insisti. - Se não mo disser, averiguo eu.
- E o que fará? Vai a casa dele para o matar?
- E por que não?
Fermín riu com amargura.
- Porque tem uma mulher e um filho, porque tem uma vida e pessoas que o amam e a quem
ama... porque tem tudo, Daniel.
- Tudo, menos a minha mãe.
- A vingança não lhe devolverá a sua mãe, Daniel.
- Isso é muito fácil de dizer. Ninguém assassinou a sua...
Fermín ia dizer algo, mas mordeu a língua.
- Por que julga que o seu pai nunca lhe falou da guerra, Daniel? Acaso pensa que ele não
imagina o que aconteceu?
- Se é assim, por que se calou? Por que não fez nada?
- Por si, Daniel. Por si. O seu pai agiu como muita gente a quem lhes tocou viver aqueles
anos e tudo engoliram e calaram. Porque não tiveram alternativa. De todas as facções e de todas
as cores. Todos os dias se cruza com eles nas ruas e nem os vê. Apodreceram em vida, todos
estes anos com essa dor dentro, para que o senhor e outros como você pudessem viver. Não se
atreva a julgar o seu pai. Não tem esse direito.
Senti como se o meu melhor amigo me tivesse desferido uma murraça na boca.
- Não se irrite comigo, Fermín...
Fermín negou.
- Não estou irritado.
- Apenas estou a tentar compreender o melhor possível isto tudo. Deixe-me fazer-lhe uma
pergunta. Só uma.
- Sobre o Valls? Não.
- Só uma pergunta, Fermín. Juro-lhe. Se não quiser, não me responda.
Fermín anuiu a contragosto.
- Esse Mauricio Valls é o mesmo Valls que estou a pensar? - perguntei.
Fermín assentiu.
- O mesmo. O que foi ministro da Cultura até há quatro ou cinco anos. O que os jornais
falavam dia sim, dia não. O grande Mauricio Valls. Autor, editor, pensador e messias revelado da
intelectualidade nacional. Esse Valls - disse Fermín.
Compreendi então que vira nos jornais a imagem daquele homem dezenas de vezes, que
ouvira o seu nome e o vira impresso na lombada de alguns dos livros que tínhamos na livraria.
Até àquela noite, o nome de Mauricio Valls era um entre tantos do desfile de figuras públicas que
formam uma paisagem desenhada, a que ninguém presta especial atenção, mas que está sempre
ali. Até àquela noite, se alguém me perguntasse quem era Mauricio Valls, teria dito que era uma
personalidade que me parecia vagamente familiar, uma figura destacada daqueles míseros anos,
onde nunca me havia fixado. Até àquela noite, nunca me passara
pela cabeça que, um dia, aquele nome, aquele rosto, seria para sempre o do homem que
assassinou a minha mãe.
-Mas... - protestei.
- Mas nada. Disse-me que era uma única pergunta e já lhe respondi.
- Fermín, não me pode deixar assim...
- Ouça-me bem, Daniel.
Fermín fitou-me nos olhos e agarrou-me o pulso.
- Juro-lhe que, quando for o momento, eu mesmo o ajudarei a encontrar esse
filho-da-puta, ainda que seja a última coisa que faça nesta vida. Então, ajustaremos contas.
Mas não agora. Não assim.
Fitei-o duvidando.
- Prometa-me que não fará nenhum disparate, Daniel. Que esperará pelo momento certo.
Baixei o olhar.
- Não me pode pedir isso, Fermín.
- Posso e devo.
Anuí por fim e Fermín largou-me o braço.
ERAM quase duas da madrugada quando cheguei a casa.
Ia transpor a soleira da porta, quando vi que havia luz no interior da livraria, um resplendor
débil, vindo de trás da cortina das traseiras. Entrei pela porta do átrio do edifício e encontrei o
meu pai sentado à sua secretária, saboreando o primeiro cigarro que alguma vez lhe via fumar em
toda a minha vida. À sua frente, na mesa, estava um sobrescrito aberto e as folhas de uma carta.
Peguei numa cadeira e sentei-me à sua frente. O meu pai fitava- -me em silêncio, impenetrável.
- Boas notícias? - perguntei, apontando a carta.
O meu pai estendeu-ma.
- E da tua tia Laura, que vive em Nápoles.
- Tenho uma tia em Nápoles?
- É a irmã da tua mãe, que partiu para viver em Itália com a família materna no ano em que
nasceste.
Assenti, ausente. Não me recordava dela e o seu nome apenas o registava entre os estranhos
que vieram ao funeral da minha mãe anos antes e que nunca voltei a ver.
- Diz que tem uma filha que vem estudar para Barcelona e pergunta se pode ficar a viver
connosco por algum tempo. Uma tal Sofia.
- É a primeira vez que ouço falar dela - disse.
-Já somos dois.
A ideia de o meu pai vir a partilhar o apartamento com uma adolescente desconhecida não
me parecia muito credível.
- O que lhe vais dizer?
O meu pai encolheu os ombros, indiferente.
- Não sei, mas algo terei de dizer.
Permanecemos em silêncio quase um minuto, fitando-nos sem nos atrevermos a falar do
assunto que realmente nos ocupava os pensamentos, e não a visita de uma prima longínqua.
- Suponho que tenhas estado com o Fermín - acabou o meu pai por dizer.
Confirmei.
- Fomos jantar ao Can Lluís. O Fermín quase comia os guardanapos. Quando entrámos,
encontrámos o professor Alburquerque, que estava a jantar, e disse-lhe para passar pela livraria.
O som da minha própria voz recitando banalidades tinha um eco acusador. O meu pai
observava-me tenso.
- Contou o que se passa com ele?
- Penso que são nervos, por causa do casamento e de todas essas coisas que, a ele, nada lhe
dizem.
-Apenas isso?
Um bom mentiroso sabe que a mentira mais eficaz é sempre uma verdade sustida por uma
peça-chave.
-Bem... contou-me coisas dos velhos tempos, de quando esteve na prisão e coisas desse
género.
- Calculo então que te terá falado do advogado Brians. O que te contou?
Não tinha certezas do que sabia ou suspeitava o meu pai, pelo que decidi avançar com
pezinhos de lã.
- Contou-me que esteve preso no castelo de Montjuic e que conseguiu fugir com a ajuda de
um homem chamado David Martin, alguém que tu conheces.
O meu pai guardou um prolongado silêncio.
- A minha frente, nunca ninguém se atreveu a dizê-lo, mas sei que há pessoas que
acreditavam, e que ainda a acreditam, que a tua mãe estava apaixonada pelo Martin - disse, com
um sorriso tão triste, que soube que se encontrava entre elas.
O meu pai tinha esse hábito de algumas pessoas de sorrirem exageradamente quando
querem conter o pranto.
- A tua mãe era uma boa mulher. Uma boa esposa. Não gostaria que pensasses coisas
esquisitas sobre ela pelo que o Fermín te possa ter contado. Ele não a conheceu. Eu sim.
- O Fermín não insinuou nada - menti. - Entre a mamã e o Martin só os unia uma amizade
mútua e ela tentou ajudá-lo a sair da prisão, contratando esse tal advogado, o Brians.
- Imagino que também te terá falado desse homem, Valls...
Hesitei antes de assentir. O meu pai reconheceu a consternação nos meus olhos e negou.
- Atua mãe morreu de cólera, Daniel. O Brians, nunca perceberei porquê, empenhou-se em
acusar esse homem, um burocrata com delírios de grandeza, de um crime de que não tinha
indícios nem provas.
Não disse nada.
- Tens de tirar essa ideia da cabeça. Quero que me prometas que não irás pensar no assunto.
Permaneci em silêncio, perguntando-me se o meu pai era tão ingénuo como parecia ou se, de
facto, a dor da perda o cegara e o havia empurrado para a cobardia dos sobreviventes. Lembrei-
-me das palavras de Fermín e concluí que nem eu nem ninguém tínhamos o direito de o julgar.
- Promete-me que não farás nenhuma loucura e não procurarás esse homem - insistiu.
Aquiesci sem convicção. Agarrou-me no braço.
- Jura-me. Pela memória da tua mãe.
Senti uma dor a atenazar-me o rosto e apercebi-me de que estava a apertar os dentes com
tanta força que quase os partia. Desviei o olhar, mas o meu pai não me soltava o braço. Fitei- -o
nos olhos e, até ao último momento, pensei que lhe podia mentir.
- Juro-te pela memória da mamã que, enquanto fores vivo, nada farei.
- Não foi isso que te pedi.
- E tudo o que te posso dar.
O meu pai pôs a cabeça entre as mãos e respirou profundamente.
- Na noite em que a tua mãe morreu, lá em cima, no apartamento...
- Recordo-me perfeitamente.
- Tu tinhas cinco anos.
- Quatro anos e seis meses.
- Naquela noite, a Isabella pediu-me que nunca te contasse o que se passara. Ela pensava que
seria melhor assim.
Era a primeira vez que o ouvia referir-se à minha mãe pelo seu nome próprio.
- Bem sei, papá.
Fitou-me nos olhos.
- Perdoa-me - murmurou.
Sustive o olhar do meu pai, que às vezes parecia envelhecer um pouco mais só por me ver e
recordar. Levantei-me e abracei-o em silêncio. Ele estreitou-me contra si com força e, quando
rompeu a chorar, a raiva e a dor que havia enterradas na alma durante todos aqueles anos
começaram a correr como sangue aos borbotões. Soube então, sem conseguir explicar porquê,
que, lenta e inexoravelmente, o meu pai começava a morrer.
Quarta parte
Suspeita Barcelona, 1957
A claridade do alvorecer surpreendeu-me na porta do quarto do pequeno Julián, que, por
uma vez, dormia alheado de tudo e de todos, com um sorriso nos lábios. Ouvi os passos de Bea
aproximando-se pelo corredor e senti as suas mãos nas minhas costas.
- Há quanto tempo estás aqui? - perguntou.
- Há algum.
- O que fazes?
- Olho para ele.
Bea aproximou-se do berço de Julián e inclinou-se para lhe beijar a testa.
- A que horas chegaste ontem?
Não respondi.
- Gomo está o Fermín?
- Vai andando.
- E tu? - Sorriu a contragosto. - Vais contar-me?
- Outro dia.
- Pensava que não havia segredos entre nós - disse Bea.
- Também eu.
Ela íitou-me com estranheza.
- O que queres dizer, Daniel?
- Nada. Não quero dizer nada. Estou muito cansado. Vamos para a cama?
Bea pegou-me na mão e levou-me até ao quarto. Estendemo- -nos na cama e abracei-a.
- Esta noite, sonhei com a tua mãe - disse Bea. - Com a Isabella.
O som da chuva começou a arranhar os vidros da janela.
- Eu era ainda menina e ela levava-me de mão dada. Estávamos numa casa muito grande e
muito antiga, com salões enormes e um piano de cauda e uma galeria que dava para um jardim
com um tanque. Junto ao tanque, estava um menino igual ao Julián, mas, na verdade, eu sabia
que eras tu, não me perguntes porquê. A Isabella ajoelhava-se ao meu lado e perguntava-me se te
conseguia ver. Tu brincavas na água, com um barco de papel. Eu disse-lhe que sim. Então, ela
pediu-me para cuidar de ti. Para cuidar de ti para sempre, porque tinha de partir para longe.
Permanecemos em silêncio, ouvindo o repicar da chuva durante longos momentos.
- O que te contou o Fermín ontem à noite?
- A verdade - respondi. - Contou-me a verdade.
Bea ouvia-me em silêncio, enquanto eu tentava reconstituir a história de Fermín. De início,
senti como a raiva crescia de novo dentro de mim, mas, à medida que avançava na história,
invadiu- -me uma profunda tristeza e uma grande desesperança. Para mim, tudo aquilo era novo
e não sabia ainda como iria conviver com os segredos e as implicações do que Fermín me
desfiara. Aqueles acontecimentos tinham tido lugar há quase vinte anos e o tempo havia-me
condenado ao mero papel de espectador, numa junção em que se haviam tecido os fios do meu
destino.
Quando acabei de falar, verifiquei que Bea me observava com preocupação e inquietude. Não
era difícil adivinhar o que estava a pensar.
- Prometi ao meu pai que, enquanto for vivo, não procurarei esse homem, o Valls, e que não
farei nada - acrescentei para a tranquilizar.
- Enquanto ele for vivo? E depois? Não pensaste em nós? Nojulián?
- É claro que pensei. E não tens com que te preocupar - menti. - Depois de falar com o meu
pai, compreendi que tudo aconteceu há muito tempo e não se pode fazer nada para mudá-lo.
Bea parecia pouco convencida da minha sinceridade.
- É a verdade - tornei a mentir.
Susteve-me o olhar por alguns instantes, mas aquelas eram as palavras que ela queria ouvir e,
por fim, sucumbiu à tentação de acreditar nelas.
NAQUELA mesma tarde, enquanto a chuva continuava a açoitar as ruas desertas e
encharcadas, a silhueta sombria e carcomida pelo tempo de Sebastián Salgado perfilou-se às por-
tas da livraria. Observava-nos através do vido da montra com o seu inconfundível ar rapace, com
a iluminação do presépio sobre o rosto. Vestia a mesma roupa velha da sua primeira visita, mas
agora empapada. Aproximei-me da porta e abri-lha.
- O presépio é lindo - disse ele.
- Não quer entrar?
Segurei-lhe a porta e Salgado, a coxear, entrou. Deteve-se pouco depois, apoiando-se na
bengala. Fermín fitava-o com receio. Salgado sorriu.
- Há quanto tempo, Fermín - entoou.
- Julgava-o morto - retorquiu Fermín.
- Também eu a si, como toda a gente. Foi isso que nos contaram. Que o apanharam quando
tentava fugir e lhe deram um tiro.
- Não caiu nessa.
- Se quer que lhe diga, sempre tive a esperança de que tivesse escapulido. Já se sabe que as
ervas daninhas...
- Comove-me, Salgado. Quando saiu?
- Vai fazer um mês.
- Não me diga que o libertaram por bom comportamento!? - ironizou Fermín.
-Julgo que se cansaram de esperar pela minha morte. Sabe que me deram um indulto? Tenho
um documento assinado pelo próprio Franco.
- Emoldurou-o, calculo.
- Tenho-o num local de honra: sobre o autoclismo, não se me vá acabar o papel.
Salgado deu alguns passos na direcção da vitrina, apontando para uma cadeira que estava
num canto.
- Importam-se que me sente? Ainda não estou habituado a caminhar mais de dez metros em
linha recta e canso-me com facilidade.
- E toda sua- convidei-o.
Salgado deixou-se cair sobre a cadeira e respirou fundo, massajando o joelho. Fermín fitava-o
como quem observa uma ratazana que acabasse de trepar pelo esgoto e saísse pela sanita.
- Não deixa de ser engraçado que quem todos pensavam que ia ser o primeiro a bater a bota
fosse o último... Sabe o que me manteve vivo durante todos estes anos, Fermín?
- Se não o conhecesse tão bem, diria que foi a dieta mediterrânica e o ar do mar.
Salgado esboçou uma tentativa de sorriso, o que, no seu caso, soava a tosse seca e de
brônquios à beira do colapso.
- Você é sempre o mesmo, Fermín. E por isso me caiu no goto. Que tempos aqueles... Mas
também não quero aborrecê-los com disparates e muito menos ao jovem, porque, a esta geração,
os nossos tempos não lhe interessam. Querem é dançar o charles- ton ou como se chama agora.
Podemos falar de negócios?
- Diga-me o que quer.
- Você é que tem de me dizer, Fermín. Eu já disse tudo o que tinha para dizer. Vai dar-me o
que me deve? Ou vamos armar um escândalo que não convém?
Fermín permaneceu impassível durante alguns instantes, que nos deixaram num silêncio
incómodo. Salgado tinha os olhos cravados nele e parecia a ponto de cuspir veneno. Fermín diri-
giu-me um olhar que não consegui decifrar e, abatido, suspirou.
- Ganha você, Salgado.
Fermín retirou um pequeno objecto do bolso e deu-lho. Uma chave. A chave. Os olhos de
Salgado incendiaram-se como os de uma criança. Levantou-se e, devagar, aproximou-se de
Fermín. Aceitou a chave com a única mão que lhe restava, tremendo de emoção.
- Se planeia de novo introduzi-la por via rectal, rogo-lhe que vá à casa de banho, porque este
é um estabelecimento familiar e aberto ao público - advertiu Fermín.
Salgado, que recuperara as cores e uma respiração da mais tenra juventude, desfez-se num
sorriso de infinita satisfação.
- Bem pensado, no fundo fez-me o favor da minha vida ao guardá-la todos estes anos -
declarou.
- É para isso que são os amigos - retorquiu Fermín. - Vá com Deus e não hesite em nunca
mais voltar aqui.
Salgado sorriu e piscou-nos o olho. Dirigiu-se para a saída, já perdido nas suas reflexões.
Antes de sair para a rua, voltou-se por um instante, erguendo a mão num gesto conciliador.
- Desejo-lhe sorte e uma longa vida, Fermín. E fique tranquilo, o seu segredo fica a salvo.
Vimo-lo partir debaixo de chuva, um idoso que qualquer pessoa tomaria por um moribundo,
mas que, naquele momento, teve a certeza, não sentia nem as gotas da chuva sobre o rosto nem
os anos de reclusão e de penúria que levava no sangue. Fitei Fermín, que ficara cravado ao chão,
pálido e confuso com a visão do seu velho companheiro de cela.
- Vamos deixá-lo partir assim? - perguntei.
- Tem algum plano melhor?
DECORRIDO o proverbial minuto de prudência, fizemo-nos à rua envergando gabardinas
escuras e um guarda-chuva do tamanho de um chapéu-de-sol, que Fermín adquirira numa loja do
porto com a ideia de o usar, tanto no Inverno como na época estival, nas suas escapadelas com
Bernarda à praia da Bar- celoneta.
- Fermín, com esta armação, daremos mais nas vistas do que uma raposa num galinheiro -
avisei.
- Esteja calmo, porque esse desavergonhado a única coisa que vê são dobrões de ouro a
chover do céu - retorquiu Fermín.
Salgado levava-nos cerca de cem metros de vantagem, coxeava a passo ligeiro pela Calle
Condal, sob a chuva. Encurtámos um pouco a distância, mesmo a tempo de ver que se dispunha
a entrar num eléctrico que subia a Via Layetana. Fechando o guarda-chuva sem deixarmos de
andar, começámos a correr e foi por milagre que chegámos a tempo de saltar para o estribo. Fiéis
à melhor tradição da época, percorremos o trajecto pendurados na parte de trás. Salgado
encontrou um lugar sentado na parte da frente, cedido por um bom samaritano, que ignorava a
sua estirpe.
- É uma das vantagens de se ser velho - disse Fermín. - Ninguém pensa que também fomos
uns cretinos.
O eléctrico percorreu a Calle Trafalgar até chegar ao Arco de Triunfo. Espreitámos e
verificámos que Salgado estava cravado no assento. O cobrador, um homem com um frondoso e
bem- -cuidado bigode, fitava-nos de sobrolho franzido.
- Não julguem que lhes faço um desconto por irem aí pendurados, porque estou de olho em
vocês desde que subiram.
-Já ninguém valoriza o realismo social - murmurou Fermín. - Que país este!
Estendemos-lhe umas moedas e entregou-nos os nossos bilhetes. Começávamos a pensar que
Salgado adormecera, quando, no desvio do eléctrico para o percurso que levava até à Estação do
Norte, se levantou e puxou o cabo, a pedir para parar. Aproveitando que o condutor ia travando,
apeámo-nos em frente ao sinuoso palácio modernista que albergava a sede da companhia
hidroeléctrica e seguimos o eléctrico até à paragem. Vimos Salgado descer ajudado por dois
passageiros e encami- nhar-se para a estação.
- O senhor está a pensar o mesmo que eu? - perguntei.
Fermín assentiu. Seguimos Salgado até ao amplo átrio da
estação, camuflando-nos, ou tornando a nossa presença dolorosamente óbvia, com o descomunal
guarda-chuva de Fermín. Uma vez no interior, Salgado aproximou-se de uma fileira de cacifos
metálicos alinhados a uma das paredes, como um grande cemitério em miniatura. Sentámo-nos
num banco que estava na penumbra. Salgado detivera-se perante a infinidade de cacifos e
contemplava-os absorvido.
- Ter-se-á esquecido onde escondeu o saque? - perguntei.
- Como se poderia esquecer? Esteve vinte anos esperando por este momento. O que está a
fazer é a saborear.
- Se o senhor o diz... Eu acho que se esqueceu.
Ali permanecemos, observando e aguardando.
- Nunca me disse onde escondeu a chave quando fugiu do castelo... - conjecturei.
Fermín lançou-me um olhar hostil.
- Não penso abordar esse assunto, Daniel.
- Esqueça.
A espera prolongou-se por mais uns minutos.
- Se calhar tem um cúmplice... - disse - e está à sua espera.
- O Salgado não é pessoa para partilhar.
- Talvez exista mais alguém que...
- Chiu! - silenciou-me Fermín, apontando para Salgado, que, por fim, se mexera.
O idoso aproximou-se de um dos cacifos e pousou a mão sobre a porta de metal. Sacou da
chave e introduziu-a na fechadura. Abriu a porta e olhou para o interior. Nesse instante, dois
agentes da Guardia Civil dobraram a esquina do átrio, vindos do cais, aproximando-se do local
onde Salgado tentava retirar algo do cacifo.
- Ai, ai, ai... - murmurei.
Salgado voltou-se e cumprimentou os dois guardas. Depois de trocarem umas palavras, um
deles retirou uma mala do interior, pousando-a aos pés de Salgado. O ladrão agradeceu-lhes
efusivamente a ajuda e os dois guardas, cumprimentando-o com a aba do tricórnio, continuaram
a sua ronda.
- Viva Espanha - murmurou Fermín.
Salgado pegou na mala e arrastou-a até outro banco que ficava no extremo oposto àquele em
que nos encontrávamos.
- Não a vai abrir aqui, pois não? - perguntei.
- Precisa de certificar-se de que está tudo lá - argumentou Fermín. - São muitos anos de
sofrimento suportados por esse canalha para recuperar o seu tesouro.
Salgado observou em redor mais de uma vez para se certificar de que não havia ninguém
perto e, por fim, decidiu-se. Vimo-lo abrir a mala apenas uns centímetros e espreitar o interior.
Assim permaneceu quase um minuto, imóvel. Fermín e eu fitámo-nos sem perceber. De
súbito, Salgado fechou a mala e levantou-se. Sem rodeios, dirigiu-se para a saída, deixando a
mala, em frente ao cacifo aberto.
- Mas, o que faz? - perguntei.
Fermín levantou-se e esboçou um gesto.
- O senhor vá tratar da mala, que eu vou segui-lo.
Sem me dar tempo para retorquir, Fermín apressou-se até à saída. Dirigi-me em passo rápido
para o local onde Salgado abandonara a mala. Um espertalhaço que estava a ler o jornal num
banco próximo do local também lhe havia deitado o olho e, mirando para um lado e outro, para
se certificar de que ninguém o via, levantou-se e aproximou-se, como um abutre rondando a sua
presa. Acelerei o passo. O estranho estava prestes a deitar-lhe a mão quando lha arrebatei, quase
por milagre.
- Essa mala não é sua - disse.
O homem cravou-me um olhar hostil, aferrando a mão à pega.
- Chamo a Guardia Civil? - perguntei.
Agitado, o crápula largou a mala, perdendo-se na direcção dos cais. Levei-a até ao banco e,
assegurando-me de que ninguém me observava, abri-a.
Estava vazia.
Só então ouvi o burburinho e, ao erguer o olhar, vi que se gerara um grande alvoroço à saída
da estação. Levantei-me e, através dos vidros, pude ver a Guardia Civil a abrir caminho entre o
círculo de curiosos, que se havia formado sob a chuva. Quando as pessoas se afastaram, vi Fermín
ajoelhado no chão, sustendo Salgado nos braços. O idoso tinha os olhos abertos, à chuva. Uma
mulher que entrava naquele momento levou a mão à boca.
- O que aconteceu? - perguntei-lhe.
- Um pobre idoso, caiu redondo... - disse.
Saí para o exterior e aproximei-me devagar do círculo de pessoas que observavam a cena. Vi
Fermín a erguer o olhar e a trocar algumas palavras com os guardas civis. Um deles assentia.
Fermín despiu então a gabardina e estendeu-a sobre o cadáver de Salgado, cobrindo-lhe o rosto.
Quando cheguei, uma mão só com três dedos assomava debaixo da peça de vestuário e na palma,
reluzente sob a chuva, havia uma chave. Cobri Fermín sob o guarda-chuva e pus-lhe a mão no
ombro. Afastámo-nos lentamente dali.
- Sente-se bem, Fermín?
O meu bom amigo encolheu os ombros.
- Vamos para casa - conseguiu dizer.
ENQUANTO nos afastávamos da estação, despi a gabardina e pu-la sobre os ombros de Fermín.
A sua havia ficado sobre o cadáver de Salgado. Não me parecia que o meu amigo estivesse em
condições para grandes caminhadas e decidi mandar parar um táxi. Abri-lhe a porta e, quando
estava lá dentro sentado, fechei-a e entrei pelo outro lado.
- A mala estava vazia - disse eu. - Alguém ludibriou o Salgado.
- Quem rouba ladrão...
- Quem acha que foi?
- Talvez a mesma pessoa que lhe disse que eu tinha a chave e lhe explicou onde me
encontrar - murmurou Fermín.
- O Valls?
Fermín suspirou, abatido.
- Não sei, Daniel. Já não sei o que pensar.
Vi o olhar do taxista no espelho retrovisor, à espera.
- Leve-nos para a entrada da Plaza Real, na Calle Fernando - indiquei.
- Não regressamos à livraria? - perguntou um Fermín, a quem já não restava energia nem
para discutir uma corrida de táxi.
- Eu sim. Mas você vai para casa de Don Gustavo, para passar o resto do dia com a Bernarda.
Fizemos o trajecto em silêncio, enquanto Barcelona se desenhava debaixo de chuva. Ao
chegarmos às arcadas da Calle Fernando, onde, havia anos, conhecera Fermín, paguei a corrida e
descemos. Acompanhei Fermín até à porta de Don Gustavo e dei-lhe um abraço.
- Tenha cuidado consigo, Fermín. E coma alguma coisa ou a Bernarda ainda se espeta
nalgum osso na noite de núpcias.
- Não se preocupe. Porque eu, quando ponho isso na cabeça, tenho mais facilidade em
engordar do que uma soprano. Assim que subir, irei enfartar-me com essespolvorones que Don
Gustavo compra na Casa Quilez e, amanhã, tem-me mais gordo do que toucinho.
- Veremos se assim é. Dê os meus cumprimentos à noiva.
- Dar-lhos-ei, ainda que, como as coisas estão no domínio jurídico-administrativo, vejo-me a
viver em pecado.
- Isso nem se põe. Lembra-se do que uma vez me disse? Que o destino não nos bate à porta,
que temos de ser nós a ir ter com ele?
- Tenho de confessar que o retirei de um livro do Carax. Soava-me bem.
- Pois eu acreditei e continuo a acreditar. E é por isso que lhe digo que o seu destino é
casar-se com a Bernarda com toda a pompa e na data prevista, com padres, arroz e nome e
apelidos.
O meu amigo fitava-me, céptico.
- Não me chame eu Daniel se o senhor não se casar como mandam as regras - prometi a um
Fermín tão derrotado, que suspeitava que nem um pacote de Sugus nem um filmaço com Kim
Novak, no Cinema Fémina, exibindo sutiãs tão pontiagudos que desafiavam a lei da gravidade,
conseguiriam levantar-lhe o ânimo.
- Se o senhor o diz, Daniel...
- O senhor devolveu-me a verdade. Eu vou devolver-lhe o seu nome.
NAQUELA mesma tarde, de regresso à livraria, pus em marcha o meu plano para resgatar a
identidade de Fermín. O primeiro passo consistiu em fazer vários telefonemas nas traseiras e
definir uma agenda estratégica. O segundo passo requeria a solicitação do talento de especialistas
de eficácia reconhecida.
No dia seguinte, a um meio-dia soalheiro e agradável, dirigi- -me à Biblioteca dei Carmen,
onde combinara reunir-me com o professor Alburquerque, convencido de que, aquilo que ele
não soubesse, ninguém o saberia.
Encontrei-o na sala de leitura principal, rodeado de livros e de papéis, e concentrado de
caneta na mão. Sentei-me à sua frente do outro lado da mesa e deixei-o trabalhar. Demorou
quase um minuto a reparar na minha presença. Ao erguer os olhos da mesa, fitou-me
surpreendido.
- Deve ser algo apaixonante o que estava a escrever - conjecturei.
- Estou a trabalhar numa série de artigos sobre escritores malditos de Barcelona - explicou. -
Recorda-se do tal Julián Carax, um autor que me recomendou há alguns meses, na livraria?
- Claro - respondi.
- A questão é que tenho estado a indagar sobre ele e a sua história é incrível. Sabia que,
durante anos, uma personagem diabólica se dedicou a percorrer o mundo à procura dos livros de
Carax, para os queimar?
- Não me diga! - exclamei, fingindo surpresa.
- Um caso bastante curioso. Dar-lhe-ei o artigo quando o terminar.
- Devia escrever um livro sobre o assunto - propus. - Uma história secreta de Barcelona
através dos seus escritores malditos e proibidos em versão oficial.
O professor ponderou a ideia, intrigado.
- Na verdade, passou-me pela cabeça, mas tenho tanto trabalho, entre os jornais e a
universidade...
- Se não for o senhor a escrevê-lo, ninguém o escreverá.
- Deixe-me que lhe diga que se o meter na cabeça faço-o. Não sei como vou arranjar tempo,
mas...
-A Sempere e Hijos disponibiliza-lhe o seu fundo editorial e a assessoria para o que for
necessário.
- Terei isso em conta. E então, vamos almoçar?
O professor Alburquerque fechou a loja por aquele dia e fomos rumo à Casa Leopoldo, onde,
acompanhados por bons vinhos e umas tapas de um presunto sublime, nos sentámos à espera de
duas doses de rabo de boi, que era o prato do dia.
- Como está o nosso bom amigo Fermín? Há duas semanas, no Can Lluís, vi-o de crista
caída.
- Era sobre isso que lhe queria falar. É uma questão um pouco delicada e tenho de lhe pedir
que fique entre nós.
- Nem era preciso dizer. Em que posso ser útil?
Comecei a esboçar-lhe o problema de forma sucinta, evitando entrar em pormenores
escabrosos ou desnecessários. O professor intuiu que, naquele assunto, havia muito mais pano
para mangas do que eu contava, mas fez gala da sua exemplar discrição.
- Vamos lá a ver se compreendi - disse. - O Fermín não pode usar a sua identidade porque,
oficialmente, foi declarado morto há quase vinte anos e portanto, aos olhos do Estado, não existe.
- Correcto.
- Mas, pelo que o senhor me conta, também essa identidade que foi anulada era fictícia, uma
invenção do próprio Fermín durante a guerra, para salvar a pele.
- Correcto.
- E a partir daí que me perco. Ajude-me, Daniel. Se o Fermín já sacou da manga uma
identidade falsa uma vez, por que não utiliza outra para se poder casar?
- Por dois motivos, professor. O primeiro é de cariz prático, porque, use o seu nome
verdadeiro ou outro inventado, o Fermín não tem identidade, pelo que, qualquer que seja a que
decida usar, terá de ser criada do zero.
- Mas quer continuar a chamar-se Fermín, calculo.
- Certo. E esse é o segundo motivo, que não é prático e sim espiritual, por assim dizer, e que
é muito mais importante. O Fermín quer continuar a chamar-se Fermín, porque é essa a pessoa
pela qual a Bernarda se apaixonou e porque é esse o homem que é nosso amigo, que conhecemos
e que ele quer ser. Há anos que a pessoa que foi já não existe. É uma pele que abandonou. Nem
eu, que sou decerto o seu melhor amigo, sei com que nome o baptizaram. Para mim, para todos
os que gostam dele e, sobretudo para ele mesmo, é Fermín Romero de Torres. No fundo, se se
trata de lhe criar uma identidade nova, por que não criar-lhe a sua?
O professor Alburquerque assentiu por fim.
- Correcto - sentenciou.
- E então? Parece-lhe exequível, professor?
- Bem... é uma missão quixotesca como poucas - considerou o professor. - Como
providenciar ao enxuto fidalgo Don Fermín de la Mancha uma ascendência, um passado e um
conjunto de documentos falsificados que lhe permitirão desposar a sua bela Bernarda dei Toboso
aos olhos de Deus e do Registo Civil?
- Tenho estado a pensar e consultei alguns códigos legais - disse. - Neste país, a identidade
de uma pessoa começa com um registo de nascimento, documento que, se analisado com minú-
cia, é muito simples.
O professor arqueou as sobrancelhas.
- O que sugere é delicado. Para não dizer que é um delito de graves proporções.
- Sem precedentes, pelo menos nos anais da jurisprudência. Já me informei.
- Continue, já estou interessado.
- Suponhamos que alguém, hipoteticamente falando, tivesse acesso à Conservatória do
Registo Civil e quisesse, por assim dizer, introduzir um registo de nascimento nos arquivos... Não
era suficiente para criar a identidade de uma pessoa?
O professor abanou a cabeça.
- Para um recém-nascido, claro, mas, se falamos em termos hipotéticos de um adulto, seria
necessário criar um historial de documentação. Ainda que, hipoteticamente, o senhor tivesse
acesso aos arquivos, onde ia sacar tais documentos?
- Digamos que seria possível criar um conjunto de fac-símiles credíveis. Parece-lhe então
possível?
O professor ponderou com cuidado.
- O principal risco seria que alguém descobrisse a fraude e desejasse desmascará-la. Tendo
em conta que, neste caso, digamos, a parte ameaçadora, que poderia alertar para as inconsis-
tências documentais, já faleceu, o problema reduzir-se-ia a, um, aceder ao arquivo e introduzir
no sistema uma pasta com um histórico de identidade fictício e, dois, gerar toda a parafernália de
documentos necessários para criar a identidade. Estou a falar em papéis de todas as cores e tipos,
desde certidões paroquiais de baptismo, a cédulas, certificados...
- No respeitante ao primeiro ponto, julgo saber que o senhor está a escrever uma série de
reportagens sobre as maravilhas do sistema legal espanhol, a pedido do Governo Civil e para
integrar um conjunto de estudos sobre a instituição. Tenho vindo a fazer algumas perguntas e
descobri que, durante os bombardeamentos da guerra, vários arquivos do Registo Civil foram
destruídos. Isso significa que centenas, milhares, de identidades tiveram de ser reconstituídas.
Não sou especialista, mas atrevo-me a calcular que isso terá aberto algum precedente que alguém
bem informado, com bons contactos e um plano poderia aproveitar.
O professor observou-me de soslaio.
- Vejo que o senhor fez um verdadeiro trabalho de investigação, Daniel.
- Perdoe-me a ousadia, professor, mas, para mim, a felicidade do Fermín merece isso e muito
mais.
- Isto só o honra. Mas também podia trazer uma pena pesada a quem tentasse fazer uma
coisa dessas e fosse apanhado com as mãos na massa.
- Foi por isso que pensei que, se houvesse alguém, hipoteticamente falando, que tivesse
acesso a um desses arquivos reconstituídos do Registo Civil, podia levar um assistente consigo,
que, por assim dizer, assumiria a parte mais arriscada da operação.
- Em tal caso, o hipotético assistente deveria estar em condições para garantir ao que
facilitava um desconto vitalício de vinte por cento sobre o preço de qualquer livro adquirido na
Sempere e Hijos. E convites para o casamento do recém-nascido.
- Negócio fechado. E até subiria para vinte e cinco por cento. Ainda que no fundo saiba que
há pessoas que, hipoteticamente, quanto mais não fosse pelo prazer de desferir um golpe a um
regime apodrecido e corrupto, se aventurariam a colaborar pro bono e sem contrapartidas.
- Sou um académico, Daniel. Comigo, a chantagem emocional não funciona.
- Faça-o pelo Fermín.
- Isso é outra coisa. Passemos aos aspectos técnicos.
Extraí a nota de cem pesetas que Salgado me dera e mostrei-lha.
- Este é o meu adiantamento para gastos e trâmites - disse.
- Vejo que até faz passes de magia, mas é melhor que guarde esse dinheiro para outras
diligências que esta façanha requererá, porque tem os meus serviços a título gracioso - esclareceu
o professor. - O que mais me preocupa, estimado assistente, é a necessária falsificação
documental. Os novos centuriões do regime, por via de legislação e diversos procedimentos,
duplicaram uma por si só já descomunal estrutura burocrática, digna dos piores pesadelos do
amigo Franz Kafka. Como lhe digo, um processo assim precisará de todo um leque de cartas,
requerimentos, requisições e restante documentação, que têm de parecer credíveis, com a
textura, o matiz de cor e o cheiro próprios de um processo manuseado, poeirento e
inquestionável...
- Aí, não haverá problemas - disse.
- Vou precisar de saber a lista de cúmplices nesta conspiração, para garantir que o tiro não
sai pela culatra.
Comecei então a expor-lhe o resto do meu plano.
- Podia funcionar - concluiu o professor.
Assim que o prato principal chegou, pusemos um ponto final no assunto, com a conversa a
derivar para outras temáticas. Por altura do café, e por mais que tenha mordido a língua durante
toda a refeição, não pude mais e, fingindo que o assunto não tinha importância, deixei cair a
pergunta.
-Já agora, professor... há alguns dias, na livraria, um cliente falava de um assunto comigo e
veio à colação o nome de Mauricio Valls, que foi ministro da Cultura e tudo o mais. O que sabe o
senhor dele?
O professor arqueou uma sobrancelha.
- Do Valls? O mesmo que toda a gente, suponho.
- Tenho a certeza de que o senhor sabe mais do que o comum mortal, professor. Muito mais.
- Bem... a verdadeéquejáhá algum tempo que não ouvia esse nome, mas até não há muito
para trás, o Mauricio Valls era uma personalidade eminente. Como você disse, foi nosso brilhante
e renomado ministro da Cultura durante uns anos, director de numerosas instituições e
organismos, homem bem posicionado no regime e de grande prestígio no sector, tendo
apadrinhado muita gente e menino mimado das páginas culturais da imprensa espanhola...
Como lhe disse, é uma personagem de renome.
Sorri debilmente, como se a surpresa me agradasse.
- E já não é?
- Para ser franco, diria que, já há algum tempo, desapareceu do mapa... ou, pelo menos, da
esfera pública. Não sei se lhe atribuíram um posto diplomático ou qualquer cargo numa ins-
tituição internacional, sabe bem como essas coisas funcionam, mas, a verdade ê que de há uns
tempos para cá perdi-lhe o rasto.
Sei que ele e uns sócios abriram uma editora, há alguns anos. A editora vai de vento em popa e
não pára de publicar novidades. Aliás, não há mês em que não receba convites para sessões de
lançamento de algum dos seus títulos...
- E o Valls vai a esses lançamentos?
- Há alguns anos, não faltava. Gracejávamos porque falava mais de si próprio do que do livro
ou do autor que apresentava, mas isso foi há muito tempo. Há anos que não o vejo. Posso
perguntar-lhe a razão do seu interesse, Daniel? Não o julgava interessado na pequena fogueira
das vaidades da nossa literatura.
- Simples curiosidade.
- Sim.
Enquanto pagava a conta, o professor Alburquerque olhou- -me de soslaio.
- Por que será que acho que a missa que me está a contar não é nem a metade, mas apenas
um quarto?
- Um dia, contar-lhe-ei tudo, professor. Prometo.
- É melhor, porque as cidades não têm memória e faz-lhes falta alguém como eu, um sábio
nada distraído, para a manter viva.
- Esse é o acordo: o senhor ajuda-me a resolver o problema do Fermín e eu, um dia,
contar-lhe-ei algumas coisas que Barcelona preferiria esquecer.
O professor estendeu-me a mão e eu apertei-lha.
- Acredito na sua palavra. Agora, voltando ao assunto do Fermín e à documentação que
vamos ter de sacar da cartola...
-Julgo que tenho o homem adequado para essa missão - informei.
OSWALDO Dario de Mortenssen, príncipe dos escreventes barceloneses e velho conhecido,
saboreava a pausa da tarde na sua barraquinha, junto ao Palácio de la Virreina, a desfrutar de um
café com cheirinho e de uma cigarrilha, quando me viu aproximar e me saudou com a mão.
- O filho pródigo regressa. Mudou de ideias? Deitamos mãos a essa carta de amor que lhe vai
granjear acesso à chave e fechadura proibidas dessa franganita que deseja?
Tornei a mostrar-lhe a minha aliança de casamento e ele assentiu, recordando-se.
- Desculpe. E o hábito. O senhor é da velha guarda. O que posso fazer por si?
- No outro dia, lembrei-me que o seu nome não me era estranho, Don Oswaldo. Trabalho
numa livraria e encontrei um romance seu, publicado em 1933, Losjinetes dei crepúsculo.
Oswaldo voou nas suas recordações e sorriu com nostalgia.
- Que tempos aqueles. Aquele par de desavergonhados do Barrido e Escobillas, os meus
editores, espremeram-me até ao último centavo. Que Pedro Botero4 os tenha na sua glória e
fechados à chave. Mas o que desfrutei ao escrever aquele romance, isso ninguém mo poderá tirar.
- Se lho trouxer um dia, dá-me um autógrafo?
- Ora essa. Foi o meu canto do cisne. O mundo não estava preparado para um western
passado no delta do Ebro, com bandoleiros a preterirem os cavalos por canoas e com mosquitos
do tamanho de melancias a proliferarem por toda a parte.
- O senhor é o Zane Grey do litoral.
- Bem gostaria. O que posso fazer por si, jovem?
- Prestar-me a sua arte e engenho para uma não menos heróica missão.
- Sou todo ouvidos.
- Preciso que me ajude a inventar um passado documental, para que um amigo possa
contrair matrimónio, sem entraves, com a mulher que ama.
- É bom homem?
- O melhor que conheço.
- Então não se fala mais nisso. Os meus cenários favoritos sempre foram os casamentos e os
baptizados.
- Precisam-se requisições, relatórios, requerimentos, certidões e tudo o que for.
- Não será problema. Delegaremos parte da logística no Lui- sito, a quem o senhor já
conhece, que é de total confiança e um artista com doze caligrafias diferentes.
Retirei do bolso a nota de cem pesetas que o professor declinara e dei-lha. Oswaldo
esbugalhou os olhos e apressou-se a guardá-la.
- Ainda dizem que, em Espanha, não se pode viver da escrita - disse.
- Cobrirá os gastos de produção?
- Mais do que suficiente. Quando tiver tudo organizado, digo- -lhe em quanto lhe fica a
brincadeira, mas agora neste ponto atrever-me-ia a dizer que quinze duros, mais coisa menos
coisa.
- Deixo ao seu critério, Oswaldo. Um amigo meu, o professor Alburquerque...
- Grande mestre da pena - atalhou Oswaldo.
4 Figura recorrente da literatura renascentista espanhola. Apesar das mais díspares versões explicativas da etimologia desta personagem
lendária, todas coincidem em nele reconhecer uma personificação do diabo ou uma entidade demoníaca. (N. do T.)
- E ainda mais ilustre cavalheiro. Como lhe digo, o professor passará por aqui e dar-lhe-á
uma relação dos documentos necessários e todos os pormenores. Para qualquer coisa que
necessite, encontrar-me-á na livraria Sempere e Hijos.
Ao ouvir o nome, o rosto de Oswaldo iluminou-se.
- O santuário. Quando era jovem, não havia sábado em que não fosse lá, para que o senhor
Sempere me abrisse os olhos.
- O meu avô.
-Já há anos que não vou lá, porque as minhas finanças estão abaixo de zero e tenho optado
pelo empréstimo bibliotecário.
- Pois, faça-nos a honra de voltar à livraria, Don Oswaldo, que a casa é sua e os preços não
serão problema.
- Assim farei.
Estendeu-me a mão e apertei-lha.
- É uma honra fazer negócio com os Sempere.
- Que seja o primeiro de muitos.
E aquele coxo que queria mundos e fundos? Afinal, não era ouro tudo o que reluzia - disse. O
sinal dos tempos.
Barcelona, 19 58
AQUELE mês de Janeiro chegou vestido de céus cristalinos e de uma luz gélida, que soprava
neve em pó sobre os telhados da cidade. O Sol brilhava todos os dias, arrancando arestas de
brilho e sombra às fachadas de uma Barcelona transparente, onde os autocarros de dois andares
circulavam com as açoteias vazias e os eléctricos deixavam um halo de vapor sobre os carris ao
passarem.
As luzes dos enfeites natalícios brilhavam em grinaldas de fogo azul sobre as ruas da cidade
velha e os bem-intencionados desejos de boa vontade e de paz que gotejavam nos cânticos de um
sem-fim de altifalantes junto a lojas e a estabelecimentos comerciais chegaram a calar-se o
suficiente para que, quando um espontâneo decidiu colocar uma barretina de lã no Menino Jesus
do presépio que o município montara na Plaza San Jaime, o guarda de vigia, em vez de o arrastar
à estalada até à esquadra, como reclamou um grupo de beatas, fez vista grossa, até que alguém
do arcebispado fez soar o alarme, e três freiras se apresentaram para restabelecer a ordem.
As vendas natalícias estavam relançadas e uma estrela de Belém, na forma de números
negros no livro de contabilidade da Sempere e Hijos, garantia-nos que, pelo menos, íamos poder
fazer frente às facturas da electricidade e do aquecimento e, com sorte, podíamos comer uma
refeição quente, pelo menos, uma vez por dia. O meu pai parecia ter redobrado o ânimo, decre-
tando que, no ano seguinte, não esperaríamos até à última hora para decorar a livraria.
- Temos presépio para muito tempo - murmurou Fermín sem entusiasmo.
Passado o Dia de Reis, o meu pai deu-nos instruções para que encaixotássemos com cuidado
o presépio e o guardássemos na cave, até ao próximo Natal.
- Com carinho - advertiu o meu pai. - Que não venha a saber que, por acidente, as caixas
acabaram por cair, Fermín.
- Cuidarei dele como da mais delicada flor, senhor Sempere. Respondo com a vida pela
integridade deste presépio e de todos os animais da quinta que veneram este Messias de fraldas.
Depois de termos arranjado espaço para colocarmos as caixas com os enfeites natalícios, fiz
uma pausa para vistoriar a cave e os seus recantos esquecidos. Na última vez em que ali
estivéramos, a conversa assumira contornos que nem eu nem Fermín havíamos voltado a
mencionar, mas que continuavam na minha memória. Parecendo ler-me os pensamentos, Fermín
abanou a cabeça.
- Não me diga que continua a pensar no assunto da carta daquele idiota.
- De vez em quando.
- Nada terá dito nada a Dona Beatriz?
- Não. Voltei a colocar a carta na algibeira do seu casaco e nem disse pio.
- E ela? Não mencionou que havia recebido uma carta desse Don Juan Tenorio?
Neguei. Fermín franziu o nariz, indicando que isso não era bom augúrio.
-Já decidiu o que vai fazer?
- Em relação a quê?
- Não se arme em parvo, Daniel. Vai seguir a sua mulher quando se for encontrar com esse
convencido no Ritz e fazer uma cena ou não?
- Está a assumir que ela vai - protestei.
- E o senhor não?
Baixei o olhar, desgostoso comigo mesmo.
- Que tipo de marido não confia na mulher? - perguntei.
- Dou-lhe nomes e apelidos ou chega-lhe dados estatísticos?
- Confio na Bea. Ela não me trairia. Ela não é assim. Se tivesse alguma coisa para me dizer,
dir-ma-ia cara a cara, sem mentiras.
- Então não tem por que se preocupar.
Algo no tom de Fermín me fazia pensar que as minhas suspeitas e inseguranças o
decepcionaram e, ainda que nunca o fosse admitir, entristecia-o pensar que dedicava as minhas
horas a pensamentos mesquinhos, a duvidar da sinceridade de uma mulher que não o merecia.
- Deve pensar que sou um néscio.
Fermín negou.
- Não. Julgo que o senhor é um homem afortunado, pelo menos nos amores e que, como
com quase todos que o são, não se dão conta.
Uma pancada na porta, no cimo das escadas, chamou-nos a atenção.
- A não ser que tenham encontrado petróleo aí em baixo, façam o favor de subir de uma vez,
porque há trabalho - chamou- -nos o meu pai.
Fermín suspirou.
- Desde que saiu dos números vermelhos, está feito um tirano - disse Fermín. - As vendas
encorajaram-no. Quem o viu e quem o vê...
Os dias decorriam a conta-gotas. Por fim, Fermín acabou por consentir delegar os
preparativos e os pormenores do copo- -d agua e da cerimónia nas mãos do meu pai e de Don
Gustavo, que haviam assumido o papel de figuras paternais e autoritárias. Eu, na qualidade de
padrinho, prestava assessoria à comissão dirigente, enquanto Bea exercia as funções de directora
artística e coordenava todos os envolvidos com mão de ferro.
- Fermín, a Bea ordenou-me que o levasse à Casa Pantaleoni, para o senhor experimentar o
fato.
- Desde que não seja um fato às riscas...
Eu jurara-lhe e tornara a jurar-lhe que, chegado o momento, o problema do seu nome estaria
resolvido e que o seu amigo pároco poderia entoar aquilo de «Fermín, aceitas receber por tua
esposa...» sem acabarmos todos na esquadra, mas, à medida que a data se aproximava, Fermín
consumia-se pela angústia e ansiedade. A Bernarda sobrevivia ao suspense à base de orações e de
toucinhos-do-céu, ainda que, confirmada a gravidez, por um médico discreto e de confiança,
passava boa parte do dia a combater náuseas e enjoos, já que tudo indicava que o primogénito de
Fermín chegava dando luta.
Foram aqueles dias de aparente e enganadora calma, mas por baixo da fachada havia
sucumbido a uma corrente turva e obscura, que me ia arrastando devagar para as profundezas de
um sentimento novo e irresistível: o ódio.
Quando tinha algum tempo, sem dizer a ninguém aonde ia, escapava-me até ao Ateneo da
Calle Canuda e, na hemeroteca e no catálogo de fundos, rasteava os passos de Mauricio Valls. O
que, durante anos, fora uma imagem desfocada e sem interesse, ia adquirindo, dia após dia, uma
claridade e uma precisão dolorosas. As minhas pesquisas permitiram-me ir reconstituindo, a
pouco e pouco, a carreira pública de Valls nos últimos quinze anos. Muita água tinha corrido
desde o seu início como benjamim do regime. Com o tempo e boas influências, Don Mauricio
Valls, se se fosse acreditar no que diziam os jornais (exagero que Fermín comparava à crença de
que os sumos TriNaranjus se obtinham do sumo espremido de laranjas de Valência), vira os seus
anseios cristalizarem-se, convertendo-se numa estrela cintilante no firmamento da Espanha das
artes e das letras.
A sua escalada fora imparável. A partir de 1944, fora contemplado com cargos e nomeações
oficiais, de crescente relevância, no mundo das instituições académicas e culturais do país. Os
seus artigos, discursos e publicações tinham uma legião de seguidores. Qualquer evento,
congresso ou efeméride cultural que se prezasse requeria a participação e a presença de Don
Mauricio. Em 1947, em parceria com dois sócios, criava a Socie- dad General de Ediciones
Ariadna, com escritórios em Madrid e Barcelona, que a imprensa se esforçara por canonizar
como a «marca de prestígio» das letras espanholas.
Em 1948, essa mesma imprensa começava a referir-se habitualmente a Mauricio Valls como
«o mais brilhante e respeitado intelectual da nova Espanha». A autodesignada intelectualidade
do país e os que aspiravam a fazer parte dela pareciam viver um apaixonado romance com
Mauricio Valls. Os repórteres das secções de cultura desfaziam-se em elogios e adulações,
procurando cair-lhe nas graças e, com sorte, a publicação na sua editora de uma das obras que
guardavam na gaveta, para poder assim fazer parte do panteão oficial e saborear algumas
iguarias, ainda que fossem migalhas.
Valls aprendera as regras do jogo, reinando sobre o tabuleiro como ninguém. No início dos
anos de 1950, a sua fama e influência transcendiam já os círculos oficiais, começando a penetrar a
designada sociedade civil e os seus servos. As máximas de Mauricio Valls converteram-se em
cânone de verdades reveladas e qualquer cidadão pertencente à selecta camada de três ou quatro
mil espanhóis que gostavam de se ter por cultos e de olharem por cima do ombro os seus
concidadãos da plebe, tomavam-nas como suas e repetiam-nas como alunos aplicados.
No caminho até ao cume, Valls reunira em seu redor um restrito círculo de personalidades
afins, que lhe comiam na mão e o iam posicionando à frente de instituições e cargos de poder. Se
alguém ousasse questionar as palavras ou os méritos de Valls, a imprensa empenhava-se em
crucificá-lo sem trégua e, depois de esboçar um retrato grotesco e indesejável do pobre infeliz,
este passava a ser um pária, um sem-nome e mendigo a quem todas as portas se fechavam e cuja
alternativa era o esquecimento ou o exílio.
Passei horas intermináveis a ler, nas entrelinhas, a comparar histórias e versões, a compilar
datas e a elaborar listas de triunfos e de coisas escondidas nos armários. Noutras circunstâncias,
se o objecto do meu estudo fosse puramente antropológico, tiraria o chapéu ante Don Mauricio e
o seu golpe de mestre. Ninguém podia negar que aprendera a ler no coração e na alma dos seus
compatriotas e a manobrar os fios que moviam os seus anseios, esperanças e quimeras.
Se algo me ficou, após dias e dias submerso na versão oficial da vida de Valls, foi a certeza de
que o mecanismo de construção de uma nova Espanha se ia aperfeiçoando e de que a meteórica
ascensão de Don Mauricio ao poder e aos altares exemplificava um padrão ascendente, que tinha
perspectivas de futuro e que, com toda a certeza, sobreviveria ao regime e disseminaria raízes
profundas e inexpugnáveis no território e durante muitas décadas.
A partir de 1952, Valls alcançou o topo, ao assumir o mandato do Ministério da Cultura
durante três anos, tempo que aproveitou para expandir o seu domínio e pôr os seus lacaios nas
poucas posições que ainda não conseguira controlar. O tom da sua projecção pública assumiu
uma áurea monotonia. As suas palavras eram citadas como fonte de sabedoria e certeza. A sua
presença em júris, tribunais e toda a espécie de beija-mãos era constante. O seu arsenal de
diplomas, galardões e condecorações não parava de crescer.
De súbito, algo estranho aconteceu.
Não me apercebi nas minhas primeiras leituras. O desfile de louvores e de notícias sobre Don
Mauricio prolongava-se sem trégua, mas, a partir de 1956, em todas as informações notava-se um
pormenor enterrado, que contrastava com as notícias publicadas antes dessa data. O tom e o
conteúdo das menções não variava, mas, à força de as ler, reler e comparar cada uma, reparei
numa coisa.
Don Mauricio Valls não voltara a aparecer em público.
O seu nome, prestígio, reputação e poder continuavam de vento em popa. Só faltava uma
peça: a sua pessoa. Depois de 1956, não havia fotografias, menções à sua presença, referências
directas à sua participação em actos públicos.
O último recorte de jornal em que se dava conta da presença de Mauricio Valls estava datado
de 2 de Novembro de 1956, por ocasião da entrega que se havia feito do galardão da mais distinta
personalidade do ano no universo editorial, durante uma cerimónia solene no Círculo de Bellas
Artes de Madrid e a que assistiram as autoridades máximas do poder e a mais fina-flor da alta
sociedade da época. O texto seguia as linhas habituais. O mais interessante era a fotografia que o
acompanhava, a última de Valls em público, pouco antes do seu sexagésimo aniversário. Nela
aparecia vestido com elegância com um fato de bom corte, sorrindo, com um gesto humilde e
cordial, perante a ovação do público presente. Outros habitués naquele tipo de acontecimentos
apareciam com ele e, nas suas costas, um pouco desenquadrados e com um semblante sério e
impenetrável, conseguia ver-se dois indivíduos vestidos de preto e com óculos escuros. Não
pareciam participar na cerimónia. A sua postura era severa e distante. Vigilante.
Após aquela noite no Círculo de Bellas Artes, ninguém voltou a fotografar Don Mauricio
Valls ou a vê-lo em público. Por mais que me esforçasse, não conseguia encontrar um só
aparecimento. Cansado de explorar becos sem saída, voltei ao princípio e reconstruí a história
daquela personagem, até a memorizar como se fosse minha. Cheirava-lhe o rasto na esperança de
descobrir uma pista, um indício que me permitisse descobrir onde estava aquele homem que
sorria nas fotografias e passeava a sua vaidade por um sem-fim de páginas, que retratavam uma
corte servil e faminta de favores. Procurava o homem que assassinara a minha mãe para esconder
a vergonha do que era e jamais seria capaz de admitir.
Naquelas tardes solitárias na velha biblioteca do Ateneo aprendi a odiar, onde, não há muito
tempo, votara os meus anseios a causas mais puras, como a pele do meu primeiro amor impossí-
vel, a cega Clara, ou os mistérios de Julián Carax e o seu romance A Sombra do Vento. Quanto
mais difícil se revelava descobrir o rasto de Valls mais me negava a reconhecer-lhe o direito de
desaparecer e de apagar o seu nome da história. Da minha história. Precisava saber que fora feito
dele. Necessitava de o olhar nos olhos, mais não fosse para lhe recordar que alguém, uma única
pessoa no universo, sabia quem ele era na verdade e o que fizera.
UMA tarde, já farto de perseguir fantasmas, cancelei a minha visita à hemeroteca e fui
passear com a Bea e o Julián, por uma Barcelona límpida e soalheira e que quase havia
esquecido. Caminhámos desde a nossa casa até ao Parque da Ciudadela. Sentei-me num banco e
vi o Julián a brincar na relva com a mãe. Contemplando-os, repeti para mim as palavras de
Fermín. Um homem de sorte, esse era eu, Daniel Sempere. Um homem afortunado, que
permitira que um rancor cego crescesse dentro de si, até o fazer sentir náuseas de si mesmo.
Observei o meu filho a entregar-se a uma das suas paixões: gatinhar até não poder mais. Bea
seguia-o de perto. De vez em quando, Julián parava e olhava na minha direcção. Uma lufada de
vento levantou as saias da minha mulher e Julián riu-se. Aplaudi e Bea lançou-me um olhar de
reprovação. Encontrei os olhos do meu filho e disse-me que, em breve, me iam fitar como se eu
fosse o homem mais sábio e bondoso do mundo, o portador de todas as respostas. Disse então
para mim próprio que nunca mais voltaria a mencionar o nome de Mauricio Valls nem a
perseguir a sua sombra.
Bea aproximou-se e sentou-se a meu lado. Julián seguiu-a, gatinhando até ao banco. Quando
chegou aos meus pés, peguei-o nos braços e começou a limpar as mãos na lapela do meu casaco.
- Recém-saido da lavandaria - disse Bea.
Encolhi os ombros, resignado. Bea debruçou-se sobre mim e pegou-me na mão.
- Belas pernas - disse.
- Não vejo onde está a graça. Assim, o teu filho aprende essas coisas. Ainda bem que não
havia ninguém ao pé.
- Bem... estava ali um avozinho escondido atrás de um jornal que acho que quase teve uma
taquicardia.
Julián decidiu que a palavra taquicardia era a mais divertida que alguma vez ouvira na sua
vida, e passámos uma boa parte da caminhada de regresso a casa cantando «ta-qui-car-dia»,
enquanto Bea, caminhando uns passos à nossa frente, soltava chispas.
Naquela noite de 2,0 de Janeiro, Bea deitou Julián e adormeceu no sofá, a meu lado,
enquanto eu relia pela terceira vez um dos velhos romances de David Martin, que Fermín
conseguira encontrar nos seus meses de exílio, após ter fugido da prisão, e que havia guardado
durante todos aqueles anos. Gostava de saborear o desenrolar do enredo e esmiuçar a
arquitectura de cada frase, acreditando que, se decifrasse a música daquela prosa, descobriria
algo acerca daquele homem que nunca conhecera e que todos me garantiam que não era meu
pai. Mas, naquela noite, era incapaz de o fazer. Antes de terminar uma frase, o meu pensamento
ausentava- -se da página e tudo o que via à minha frente era a carta de Pablo Cascos Buendía,
onde convidava a minha mulher a encontrar-se com ele no Hotel Ritz, às duas da tarde do dia
seguinte.
Por fim, fechei o livro e olhei Bea que dormia a meu lado, intuindo que nela se encerrariam
mil vezes mais segredos do que nas histórias de Martin e na sua sinistra cidade dos malditos.
Passava da meia-noite quando Bea abriu os olhos e me descobriu escrutinando-a. Sorriu-me,
ainda que algo na minha cara lhe tenha avivado uma sombra de preocupação.
- Em que pensas? - perguntou.
- Pensava na sorte que tenho - disse.
Bea fitou-me demoradamente, a dúvida nos olhos.
- Dizes como se não acreditasses.
Levantei-me e dei-lhe a mão.
- Vamos para a cama - sugeri.
Dando-me a mão, seguiu-me pelo corredor até ao quarto. Estendi-me na cama e olhei-a em
silêncio.
- Estás estranho, Daniel. O que se passa contigo? Disse alguma coisa?
Neguei, oferecendo-lhe um sorriso tão amargo como a mentira. Bea aquiesceu, despindo-se
com lentidão. Nunca me voltava as costas quando se despia, nem se escondia na casa de banho
ou atrás da porta, como aconselhavam os manuais de decoro maritais que o regime promovia.
Observei-a sereno, lendo as formas do seu corpo. Bea fitava-me nos olhos. Vestiu aquela camisa
de noite que eu detestava e meteu-se na cama, voltando-me as costas.
- Boa noite - disse, de voz tolhida e, para quem a conhecia bem, aborrecida.
- Boa noite - murmurei.
Ouvindo-a respirar, soube que demorou mais do que meia hora a adormecer, mas, por fim, o
cansaço levou a melhor sobre o meu estranho comportamento. Fiquei a seu lado, hesitando se a
acordava para lhe pedir perdão ou, simplesmente, para a beijar. Não fiz nada. Mantive-me ali
imóvel, observando a curva das suas costas e sentindo como aquela negrura dentro de mim que
me sussurrava que, dentro de algumas horas, Bea iria encontrar- -se com o seu antigo prometido
e que aqueles lábios e aquela pele seriam de outro, como a sua carta delicodoce parecia insinuar.
Quando acordei, já Bea saíra. Não conseguira adormecer até ao amanhecer e, quando os
sinos da igreja repicaram as nove horas, acordei sobressaltado, vestindo as primeiras roupas que
encontrei. Lá fora, esperava-me uma segunda-feira fria e salpicada de flocos de neve, que
flutuavam no ar e caíam, como aranhas de luz suspensas por fios invisíveis sobre as pessoas que
passavam. Ao entrar na livraria, encontrei o meu pai em cima do tamborete, a que subia
diariamente para mudar a folha do calendário: 21 de Janeiro.
- Ninguém com mais de doze anos se pode desculpar com o facto de os lençóis se lhe terem
colado ao corpo - insinuou. - Hoje, era a tua vez de abrir.
- Desculpa. Passei mal a noite. Não se repetirá.
Por duas horas tentei manter a cabeça e as mãos ocupadas nos afazeres da livraria, mas o
meu pensamento era aquela maldita carta, que uma e outra vez recitava em silêncio. A meio da
manhã, Fermín aproximou-se sub-reptício e ofereceu-me Sugus.
- É hoje o dia, não é?
- Cale-se, Fermín - interrompi-o com tal brusquidão, que o meu pai ergueu o sobrolho.
Refugiei-me nas traseiras e ouvi-os murmurar. Sentei-me atrás da secretária do meu pai e
olhei para o relógio. Eram uma e vinte da tarde. Tentei deixar os minutos passar, mas os
ponteiros do relógio resistiam a mexer-se. Quando regressei à livraria, Fermín e o meu pai
fitaram-me com preocupação.
- Daniel, talvez queiras tirar o resto do dia - sugeriu o meu pai. - Eu e o Fermín cá nos
arranjamos. *
- Obrigado, acho que sim. Quase não dormi e não me sinto muito bem.
Não tive coragem para olhar Fermín, enquanto me escapulia pelas traseiras. Ao abrir a porta
de casa, ouvi a água a correr na casa de banho. Arrastei-me em silêncio para o quarto e parei à
porta. Bea estava sentada no rebordo da cama. Não me vira nem ouvira entrar. Via-a calçar as
meias de seda e vestir-se, com o olhar cravado no espelho. Apenas passados alguns minutos se
apercebeu da minha presença.
- Não sabia que estavas aí - disse, entre a surpresa e a irritação.
- Vais sair?
Assentiu, enquanto pintava os lábios com batom carmesim.
-Aonde vais?
- Tenho uns recados para fazer.
- Vestiste-te bem.
- Não gosto de sair para a rua mal arranjada - replicou. Observei-a a aplicar sombra nos
olhos. Homem de sorte, zombava aquela voz interior.
- Que recados?
Bea voltou-se e fitou-me.
- O quê?
- Perguntava-te que recados tens de fazer.
- Várias coisas.
- E o Julián?
- A minha mãe veio buscá-lo e foi passear com ele.
- Pois...
Bea aproximou-se e, abandonando a irritação, fitou-me preocupada.
- O que se passa contigo, Daniel?
- Esta noite não preguei olho.
- E por que não dormes uma sesta? Far-te-á bem. Concordei.
- Boa ideia.
Bea sorriu-me debilmente e acompanhou-me até ao meu lado da cama. Ajudou-me a deitar,
cobriu-me com a colcha e beijou-me na testa.
- Chego tarde - disse. Vi-a sair.
-Bea...
Parou a meio do corredor, voltando-se.
- Amas-me? - perguntei.
- É claro que te amo. Que disparate...
Ouvi a porta fechar-se, seguindo-se os passos felinos de Bea e dos seus saltos de agulha a
perderem-se escadas abaixo. Peguei no telefone e esperei até ouvir a voz da operadora.
- Ligue-me para o Hotel Ritz, por favor.
A ligação demorou alguns segundos.
- Hotel Ritzj boa tarde, em que lhe podemos ser úteis?
- Queria confirmar se uma pessoa está hospedada no vosso hotel, por favor?
- Queira ter a amabilidade de me dar o nome.
- Cascos. Pablo Cascos Buendía. Julgo que deve chegado ontem.
- Um momento, por favor.
Um longo minuto de espera, vozes sussurradas, ecos na linha.
- Cavalheiro...
- Sim.
- De momento, não temos nenhuma reserva no nome que mencionou...
Invadiu-me um alívio infinito.
- Poderia dar-se o caso de que a reserva estivesse feita no nome de uma empresa?
- Irei verificar.
Desta vez, a espera foi breve.
- Com efeito, o senhor tinha razão. O senhor Cascos Buendía. Aqui está ele. Suite Continental.
A reserva foi feita em nome da Editora Ariadna.
- Como disse?
-Dizia-lhe que a reserva do senhor Cascos Buendía esta no nome da Editora Ariadna. O senhor
deseja que lhe passe a ligação ao quarto?
O telefone resvalou-me das mãos. Ariadna era a editora que Mauricio Valls fundara há
alguns anos.
Cascos trabalhava para Valls.
Desliguei o telefone com um gesto brusco e fui para a rua, seguindo a minha mulher com o
coração envenenado de suspeita.
NÃO havia rasto de Bea entre as gentes que, àquela hora, desfilavam pela Puerta dei Ángel,
em direcção à Plaza de Cataluna. Deduzi que aquele fora o trajecto seguido pela minha mulher
para ir ao Ritz, mas com Bea nunca se sabia. Gostava de experimentar diferentes rotas entre dois
destinos. Pouco depois, desisti de a encontrar e supus que apanhou um táxi, algo mais de acordo
com a indumentária que vestira para a ocasião.
Demorei um quarto de hora a chegar ao Hotel Ritz. Ainda que a temperatura não devesse ser
mais de dez graus, estava a suar e faltava-me o fôlego. O porteiro dirigiu-me um olhar
sub-reptício, mas abriu-me a porta com uma pequena vénia. O átrio, com ar de cenário de
romance e de intriga de espionagem, deixou-me desnorteado. A minha pouca familiaridade com
hotéis de luxo não me preparara para deduzir o que era o quê. Vi um balcão, atrás do qual um
esmerado recepcionista me observava, entre o curioso e o alarmado. Aproximei-me do balcão e
ofereci-lhe um sorriso que não o impressionou.
- O restaurante, por favor?
O recepcionista examinou-me com um cepticismo cortês.
- O senhor tem reserva?
- Marquei encontro com um hóspede do hotel.
O recepcionista sorriu com frieza, anuindo.
- O senhor encontrará o restaurante ao fundo deste corredor.
- Muito obrigado.
Dirigi-me para lá de coração na boca. Não tinha ideia do que dizer ou fazer quando
encontrasse Bea e aquele indivíduo. Um maitre veio ao meu encontro e barrou-me a passagem
com um sorriso blindado. O seu olhar denunciava pouca aprovação pela minha indumentária.
- O senhor tem reserva? - perguntou.
Afastei-o com a mão e entrei na sala de refeições. A maioria das mesas estava vazia. Um casal
de idosos, com ar mumificado e maneiras nonocentistas, interrompeu o seu solene sorvo da sopa
para me fitar com desprezo. Apenas duas outras mesas albergavam comensais, com aspecto de
homens de negócio, e uma ou outra dama refinada, decerto paga com despesas de representação.
Não havia rasto de Cascos ou de Bea.
Ouvi atrás de mim os passos do maitre e da sua escolta de dois empregados.
- O senhor Cascos Buendía não tinha uma reserva para as duas? - perguntei.
- O senhor avisou para que a refeição lhe fosse servida na suite - informou o maitre.
Consultei o meu relógio. Eram duas e vinte. Dirigi-me para o corredor dos elevadores. Um
dos porteiros estava de olho em mim, mas, quando tentou alcançar-me, eu já conseguira
esgueirar- -me num dos elevadores. Premi o botão dos últimos andares, sem me lembrar que não
tinha ideia de onde era a Suite Continental.
Começa por cima, pensei.
Saí do elevador no sétimo andar e comecei a vaguear por amplos corredores desertos. Pouco
depois, dei com uma porta que dava acesso às escadas de incêndio e desci até ao andar de baixo.
Fui de porta em porta à procura da Suite Continental, mas sem sorte. O meu relógio marcava
duas e meia. No quinto andar, encontrei uma criada de quarto a empurrar um carrinho com
espanadores, sabonetes e toalhas e perguntei-lhe onde era a suite. Fitou-me com consternação,
mas devo-a ter assustado o suficiente para que apontasse o dedo para cima.
- Oitavo andar.
Preferi evitar os elevadores, não fosse dar-se o caso de o pessoal do hotel andar à minha
procura. Quatro andares de escadas e um longo corredor, depois cheguei encharcado em suor à
porta da Suite Continental. Fiquei ali durante um minuto, tentando imaginar o que estava a
acontecer atrás da porta de madeira nobre, perguntando-me se me restava bom senso suficiente
para me ir embora. Pareceu-me que alguém me observava de soslaio do outro extremo do
corredor e temi que se tratasse de um dos porteiros, mas, assim que apurei a visão, vi a silhueta
perder-se no canto do corredor e supus que se tratava de um hóspede do hotel. Por fim, toquei à
campainha.
Ouvi passos aproximando-se da porta. A imagem de Bea a abotoar a blusa deslizou pela
minha mente. Uma chave a rodar na fechadura. Apertei os punhos. A porta abriu-se. Um homem
de cabelo alisado com brilhantina, vestido de roupão branco e calçado com luxuosas pantufas.
Haviam-se passado anos, mas não se esquecem as caras de quem se detesta com determinação.
- Sempere? - perguntou incrédulo.
O murro atingiu-o entre o lábio superior e o nariz. Apercebi- -me como a carne e a
cartilagem se perdiam sob o meu punho. Cascos levou as mãos à cara e cambaleou. O sangue
brotava-lhe por entre os dedos. Dei-lhe um forte empurrão, que o atirou contra a parede, e entrei
no quarto. Atrás de mim, ouvi Cascos a cair no chão. A cama estava feita e um prato fumegante
estava na mesa, voltada para um terraço com vista para a Gran Via. Só havia talheres para um.
Voltei-me e encarei Cascos, que, agarrando-se a uma cadeira, tentava levantar-se.
- Onde está? - perguntei.
Cascos tinha o rosto deformado pela dor. O sangue escorria- -lhe pelo rosto e para o peito.
Pude ver que lhe abrira o lábio e que, quase de certeza, tinha o nariz partido. Apercebi-me de um
forte ardor nos nós dos dedos e, ao olhar para a mão, vi que havia esfolado a pele ao partir-lhe a
cara. Não senti nenhum remorso.
- Não veio. Estás feliz? - cuspiu Cascos.
- Desde quando te dedicas a escrever cartas à minha mulher?
Pareceu-me que se ria e, antes que pudesse pronunciar outra
palavra, atirei-me a ele. Dei-lhe um segundo murro, com toda a raiva concentrada que tinha
dentro. Atingi-o nos dentes e fiquei com a mão dormente. Cascos emitiu um gemido de agonia,
caindo sobre a cadeira em que se apoiara. Viu que me debruçava sobre si e protegeu o rosto com
os braços. Cravei-lhe as mãos no pescoço e apertei com os dedos, como se quisesse rasgar a
garganta.
- Qual é a tua relação com o Valls?
Cascos observava-me aterrorizado, convencido de que o ia matar ali mesmo. Balbuciou algo
incompreensível e as minhas mãos cobriram-se com a saliva e o sangue que lhe caíam da boca.
Apertei com mais força.
- O Mauricio Valls. Qual é a tua relação com ele?
O meu rosto estava tão próximo do seu, que podia ver o meu reflexo nas suas pupilas. Os
seus vasos capilares começavam a latejar abaixo da córnea e uma rede de linhas negras abriu
caminho até à íris. Dei-me conta de que o estava a matar e soltei-o de súbito. Cascos emitiu um
som gutural, ao respirar, levando as mãos ao pescoço. Sentei-me na cama e de frente para ele. As
mãos tremiam-me, cobertas de sangue. Entrei na casa de
banho e lavei-as. Passei água fria pela cara e cabelo e, ao ver o meu reflexo no espelho, não
me reconheci. Estivera a ponto de matar um homem.
QUANDO regressei ao quarto, Cascos continuava derrubado na cadeira, ofegante. Enchi um
copo com água e estendi- -lho. Ao ver que me aproximava de novo, desviou-se para um lado,
esperando outro murro.
- Toma - disse.
Abriu os olhos e, ao ver o copo, hesitou por uns segundos.
- Toma - repeti. - É só água.
Aceitou o copo com mão trémula, levando-o depois aos lábios. Pude ver então que lhe partira
vários dentes. Cascos gemeu e os olhos encheram-se de lágrimas pela dor quando a água fria lhe
roçou as gengivas expostas debaixo do esmalte. Estivemos em silêncio mais de um minuto.
- Chamo um médico? - acabei por perguntar.
Ele ergueu o olhar, recusando.
- Vai-te daqui antes que chame a polícia.
- Diz-me qual é a tua relação com o Mauricio Valls e vou.
Fitei-o com frieza.
- É... é um dos sócios da editora para a qual trabalho.
- Foi ele quem te pediu que escrevesses essa carta? Cascos hesitou. Levantei-me e dei um
passo na sua direcção.
Agarrei-lhe no cabelo e puxei com força.
- Não me batas mais - suplicou.
- Foi o Valls quem te pediu para escreveres essa carta? Cascos evitava fitar-me nos olhos.
- Não foi ele - conseguiu dizer.
- Então quem?
- Um dos seus secretários. Chama-se Armero.
- Quem?
- Paco Armero. É um empregado da editora. Disse-me para retomar o contacto com a
Beatriz. Que, se o fizesse, havia algo para mim. Uma recompensa.
- E por que tinhas de retomar o contacto com a Bea?
- Não sei.
Fiz menção de tornar a esbofeteá-lo.
- Não sei - gemeu Cascos. - É a verdade.
- E foi por isso que marcaste encontro aqui?
- Continuo a amar a Beatriz.
- Bela maneira de o demonstrares. Onde está o Valls?
- Não sei.
- Como podes não saber onde está o teu chefe?
- Porque não o conheço. Compreendes? Nunca o vi. Nunca falei com ele.
- Explica-te.
- Comecei a trabalhar para a Editora Ariadna há um ano e meio, no escritório de Madrid.
Durante todo esse tempo, nunca o vi. Ninguém o viu.
Levantou-se lentamente e dirigiu-se para o telefone do quarto. Não o detive. Levantou o
auscultador e lançou-me um olhar de ódio.
- Vou telefonar para a polícia...
- Não será necessário - disse uma voz do corredor.
Voltei-me e descobri Fermín, ataviado com o que calculei
ser um dos fatos do meu pai e exibindo uma identificação com aspecto oficial.
- Inspector Fermín Romero de Torres. Polícia. Foi-nos comunicado um distúrbio. Qual dos
senhores pode resumir os factos?
Não sei qual dos dois estava mais desconcertado, se Cascos, se eu. Fermín aproveitou a altura
para arrebatar com suavidade o auscultador das mãos de Cascos.
- Com sua licença - disse, afastando-o. - Vou ligar para a esquadra.
Fingiu marcar um número e sorriu-nos.
- Á esquadra, por favor. Sim, obrigado.
Esperou uns segundos.
- Sim, Mari Pili, sou o Romero de Torres. Passe-me ao Palacios. Sim, espero.
Enquanto Fermín fingia esperar, cobrindo o auscultador com a mão, fez um gesto a Cascos.
- O senhor bateu contra a porta da casa de banho ou há algo que deseje declarar?
- Este selvagem agrediu-me e tentou matar-me. Quero apresentar queixa agora. Até lhe vão
arrancar o pêlo.
Fermín olhou-me com ar oficial e anuiu.
- Efectivamente. Folículo a folículo.
Fingiu ouvir algo ao telefone e, com um gesto, indicou a Cascos que se calasse.
- Sim, Palacios. No Ritz. Sim. Um 424. Um ferido. Predominantemente na cara. Depende. Eu
diria que é como um mapa. De acordo. Procedo à detenção sumária do suspeito.
Desligou o telefone.
- Está tudo resolvido.
Fermín aproximou-se de mim e, agarrando-me com autoridade no braço, ordenou-me que
me calasse.
- O senhor nem abra a boca. Tudo o que disser será usado para o engavetar até ao Dia de
Todos-os-Santos. Vamos, andando.
Cascos, retorcido de dor e ainda confuso com o aparecimento de Fermín, contemplava a cena
com uma expressão de descrença.
- Não o vai algemar?
- E um hotel de prestígio. Algemá-lo-emos no carro-patrulha.
Cascos, que continuava a sangrar e provavelmente via a
dobrar, barrou-nos a passagem, pouco convencido.
- O senhor tem a certeza de que é polícia?
- Da brigada secreta. Vou pedir agora mesmo que lhe enviem um costeletão de vitela cru,
para que o ponha na cara como uma máscara. E remédio santo para isso. Mais tarde, os meus
colegas passarão para recolher o seu depoimento e registar a queixa - recitou, afastando o braço
de Cascos e empurrando-me a toda a velocidade para a saída.
APANHÁMOS um táxi à saída do hotel e percorremos a Gran Via em silêncio.
-Jesus, Maria e josé! - explodiu Fermín. - Está louco? Olho para si e não o reconheço. O que
queria? Tratar daquele imbecil?
- Trabalha para o Mauricio Valls - disse como única resposta.
Fermín revirou os olhos.
- Daniel, esta sua obsessão está a começar a roçar o exagero. Maldita a hora em que lhe
contei... Mas, está bem? Deixe-me ver essa mão...
Mostrei-lhe o punho.
- Virgem Santa!
- Como sabia...
- Porque o conheço como se o tivesse parido, ainda que há dias em que quase me arrependa
- disse colérico.
- Não sei o que me deu...
- Mas eu sei. E não gosto. Não gosto mesmo nada. Esse não é o Daniel que conheço. Nem o
Daniel de quem quero ser amigo.
Doía-me a mão, mas doeu-me mais compreender que decepcionara Fermín.
- Fermín, não se zangue comigo.
- Não. O menino ainda deve querer uma medalha...
Mantivemo-nos em silêncio um bocado, cada um olhando
para o seu lado da rua.
- Ainda bem que apareceu - disse por fim.
-Julgava que o deixava sozinho?
- Não contará nada à Bea, pois não?
- Se lhe parecer bem, escreverei uma carta ao director do La Vanguardia, para contar a sua
façanha.
- Não sei o que me deu, não sei...
Fitou-me com severidade, mas por fim relaxou e deu-me uma palmada na mão. Suportei a
dor.
- Não falemos mais do assunto. Calculo que eu teria feito o mesmo.
Contemplei Barcelona a desfilar do outro lado do vidro.
- Que cartão era aquele?
- Como diz?
- A identificação de polícia que exibiu... O que era?
- O cartão do padre de sócio do Barça.
- Tinha razão, Fermín. Fui um imbecil ao suspeitar da Bea.
- Tenho sempre razão. Sou assim desde nascença.
Rendi-me às evidências e calei-me, porque já dissera disparates suficientes para um dia.
Também Fermín ficara muito calado e tinha o semblante meditabundo. Perturbou-me pensar
que a minha conduta lhe provocara uma decepção tão grande que não sabia o que me dizer.
- Em que pensa, Fermín?
Voltou-se e olhou-me com preocupação.
- Pensava nesse homem.
- No Cascos?
- Não, no Valls. No que esse idiota disse em tempos. No que pode significar.
- A que se refere?
Fermín fitou-me, sombrio.
- Que, até agora, o que mais me preocupava era que o senhor quisesse encontrar o Valls.
- E já não?
- Há algo que me preocupa mais, Daniel.
- O quê?
- Que é ele quem o procura a si.
Fitámo-nos em silêncio
- E sabe porquê? - perguntei.
Fermín, que tinha sempre resposta para tudo, abanou lenta e negativamente a cabeça,
afastando o olhar.
Fizemos o resto do trajecto em silêncio. Ao chegar a casa, subi direito ao meu apartamento,
tomei um duche e engoli quatro aspirinas. Depois, desci o estore e, abraçando aquela almofada
que cheirava a Bea, adormeci como o idiota que era, perguntando-me onde estaria essa mulher
pela qual não me importava de ter protagonizado o mais ridículo papel do século.
PAREÇO um porco-espinho - sentenciou Bernarda, contemplando a sua imagem multiplicada
por cem na sala de espelhos das Modas Santa Eulalia.
Duas costureiras ajoelhadas a seus pés continuavam a marcar o vestido de noiva com dúzias
de alfinetes, sob o olhar atento de Bea, que andava em círculos à volta de Bernarda e
inspeccionava cada prega e costura como se a sua vida dependesse disso. Bernarda, de braços
abertos em cruz, quase não se atrevia a respirar, mas o seu olhar estava preso na diversidade de
ângulos que a divisão hexagonal revestida de espelhos lhe devolvia da sua silhueta, em busca de
indícios do volume do ventre.
- De certeza que não se nota nada, senhora Bea?
- Nada. Estás plana como uma tábua de engomar. Onde é preciso, claro.
- Ai! Não sei, não sei...
O martírio de Bernarda e o trabalho das costureiras em ajustar e talhar prolongaram-se por
mais meia hora. Quando parecia que já não existiriam mais alfinetes no mundo para marcar a
pobre Bernarda, o estilista-estrela da casa e autor da peça apareceu, correu o cortinado e, após
uma análise sumária e uma ou duas correcções na bainha, deu a sua aprovação e estalou os
dedos, para indicar às suas assistentes que deviam sair.
- Nem o Pertegaz a teria deixado mais bela - opinou com agrado.
Bea sorriu e assentiu.
O estilista, um esbelto cavalheiro de modos requintados e de boa postura, que respondia
apenas pelo nome de Evaristo, beijou Bernarda na face.
- A senhora é a melhor modelo do mundo. A mais paciente e a que mais sofreu. Custou, mas
valeu a pena.
- E pensa o senhor que consigo respirar aqui dentro?
- Meu amor, vai casar pela Santa Madre Igreja e com um macho ibérico. Respirar acabou,
digo-lho eu. Pense que um vestido de noiva é como um escafandro: não é o melhor sítio para
respirar, o divertido começa quando lho despem.
Bernarda benzeu-se ante as insinuações do estilista.
- O que agora lhe vou pedir é que dispa o vestido com muito cuidado, porque as costuras
estão soltas e, com tanto alfinete, não quero vê-la subir ao altar a parecer um coador - disse Eva-
risto.
- Eu ajudo-a - ofereceu-se Bea.
Evaristo, lançando um olhar sugestivo a Bea, radiografou-a dos pés à cabeça.
- E a si, quando a vou poder despir e vestir? - perguntou e retirou-se para trás do cortinado,
numa saída teatral.
- Viu o olhar que esse desavergonhado lhe lançou?! - espan- tou-se Bernarda. - E ainda
dizem que não gosta.
- Parece-me que o Evaristo caminha em todas as calçadas, Bernarda.
- Será possível? - perguntou.
- Vamos a ver se conseguimos tirar-te daí sem que caia um alfinete.
Enquanto Bea ia libertando Bernarda do seu cativeiro, a noiva abanava a cabeça.
Desde que se inteirara do preço do vestido, que o seu patrão, Don Gustavo, se empenhara em
pagar do seu próprio bolso, Bernarda andava envergonhada.
- Don Gustavo não devia ter gastado esta fortuna. Insistiu que tinha de ser aqui, que deve ser
o sítio mais caro de Barcelona inteira, e contratar o tal Evaristo, que é seu meio-sobrinho, ou
qualquer coisa do género, e que diz que os tecidos que não são da Casa Gratacós lhe provocam
alergia. É isso.
- A cavalo dado... Além disso, Don Gustavo faz gosto em ver- -te casar com grande pompa.
Ele é assim.
- Eu com o vestido da minha mãe e um ou outro retoque caso- -me na mesma e ao Fermín
é-lhe indiferente, porque sempre que lhe mostro um novo o que quer é despir-mo... E o resultado
está à vista, Deus me perdoe - disse Bernarda, passando a mão pelo ventre.
- Bernarda, eu também me casei grávida e estou certa de que Deus tem coisas muito mais
urgentes com que se preocupar.
- Isso diz-me o meu Fermín, mas não sei...
- Ouve o Fermín e não te preocupes com mais nada.
Bernarda, em combinação e esgotada, após duas horas em pé,
calçada com sapatos de salto alto e de braços abertos, deixou-se cair sobre uma poltrona e
suspirou.
- Ai, o desgraçado está que nem se vê, com os quilos que perdeu. Estou preocupadíssima.
- Verás como, a partir de agora, recupera. Os homens são assim, como os gerânios. Quando
parecem prestes a definhar, revivem.
- Não sei, senhora Bea. Acho o Fermín muito abatido. Ele diz-me que se quer casar, mas às
vezes tenho dúvidas.
- Ele está caidinho por ti, Bernarda.
Bernarda encolheu os ombros.
- Olhe que não sou tão tonta como pareço. A única coisa que faço na vida, desde os treze
anos, é limpar casas, e há muitas coisas que não compreenderei, mas sei que o meu Fermín viu
mundo e teve os seus namoricos. Ele nunca me conta coisas da sua vida antes de nos
conhecermos, mas sei que teve outras mulheres e que passou por muito.
- E acabou por te escolher a ti. Isso devia bastar-te.
- É que ele gosta mais de raparigas do que um urso de mel. Quando vamos passear ou
dançar, lança tantos olhares a torto e a direito que vai ficar vesgo.
- Enquanto não passar para ás mãos... Sei, de fonte segura, que o Fermín sempre te foi fiel.
-Já sei. Mas, sabe o que me dá medo, senhora Bea? Ser pouco para ele. Quando vejo que me
olha enternecido e me diz que quer que envelheçamos juntos e todas essas lamechices que
costuma dizer, não deixo de pensar que, um dia, acordará de manhã e ficará a olhar para mim e
dirá: Onde terei ido arranjar esta palerma?
- Acho que estás enganada, Bernarda. O Fermín nunca pensará isso. Tem-te num pedestal.
- Isso também não é bom, porque já vi muitos senhorzinhos desses que põem a mulher num
pedestal, como se fosse uma virgem, e logo desatarem a correr atrás do primeiro rabo-de-saia que
passa, como se fossem cães com cio. Não acreditaria nas vezes que vi essas coisas com estes
olhinhos que Deus me deu.
- Mas o Fermín não é assim, Bernarda. O Fermín é dos bons. Dos poucos, porque os homens
são como as castanhas que se vendem na rua: quando as compras, estão quentes e cheiram bem,
mas a que tiras do cartucho arrefece logo e percebes que a maioria está podre por dentro.
- Não o dirá do senhor Daniel, pois não?
Bea tardou um segundo antes de responder.
- Não. Claro que não.
Bernarda olhou-a de soslaio.
- Está tudo bem em sua casa, senhora Bea?
Bea brincou com uma prega da combinação, que assomava pelo ombro de Bernarda.
- Sim, Bernarda. O que se passa é termos as duas arranjado maridos que têm as suas coisas e
os seus segredos.
Bernarda concordou.
- Por vezes, parecem criancinhas.
- Homens. Deixemo-los andar.
- Mas gosto deles assim - disse Bernarda -, e já sei que é pecado.
Bea riu.
- E de que homens gostas? Como o Evaristo?
- Não, por Deus. De tanto se olhar ao espelho, ainda o gasta. A mim, um homem que demora
mais do que eu a arranjar-se mete-me confusão. Gosto deles um pouco brutos... o que quer que
lhe diga? Bem sei que o meu Fermín é bonito, no sentido que dizem de bonito, não é. Mas eu
vejo-o bonito e bondoso. E muito homem. E no fundo é isso que conta, que seja bondoso e
genuíno. E que, numa noite de Inverno, te possas agarrar a ele e que ele te tire o frio do corpo.
Bea sorria, assentindo.
- Ámen. Ainda que um passarinho me tenha dito que de quem tu gostavas mesmo era do
Cary Grant.
Bernarda corou.
- E a senhora não? Não para me casar, porque estou convencida que esse se apaixonou por si
próprio no dia em que se viu ao espelho, mas, aqui entre nós, e que Deus me perdoe, para uma
boa cambalhota, não lhe dizia que não...
- Que diria o Fermín se te ouvisse, Bernarda?
- O que diz sempre: «No fim, todos seremos comidos pelos bichos...»
Quinta parte
O nome do herói
Barcelona, 1958
MUITOS anos depois, os vinte e três convidados ali reunidos para celebrar a ocasião haviam de
olhar para trás e recordar aquela véspera histórica do dia em que Fermín Romero de Torres
abandonou a vida de solteiro.
- É o fim de uma era - proclamou o professor Alburquerque, erguendo a sua taça de
champanhe num brinde e sintetizando, melhor do que ninguém, o que todos sentíamos.
A festa de despedida de solteiro de Fermín, um evento cujos efeitos na população feminina
da urbe Don Gustavo Barcelo comparou com a morte de Rudolfo Valentino, teve lugar numa
noite clara de Fevereiro de 1958, no salão de baile de La Paloma, cenário em que o noivo
protagonizara tangos inesquecíveis e momentos que, agora, passariam a fazer parte dos anais
secretos de uma longa carreira ao serviço do eterno feminino.
O meu pai, que conseguimos tirar de casa por uma vez na vida, contratou a orquestra de
baile semiprofissional La Habana dei Baix Llobregat, que aceitou actuar a um preço de saldo e
nos deleitou com uma selecção de mambos, guarachas e música popular que transportaram o
noivo para os seus longínquos dias no mundo da intriga e do glamour internacional nos grandes
casinos da Cuba esquecida. Uns mais do que outros, os presentes na festa abandonaram o pudor
e lançaram-se na pista a abanar o esqueleto, para glória de Fermín.
Barcelo convencera o meu pai de que os copos de vodca que lhe ia dando não eram mais do
que de água com duas gotinhas de aromas de Montserrat e pouco depois todos assistimos ao iné-
dito espectáculo de o ver abraçado a uma das fêmeas que Rociíto, verdadeira alma da festa,
trouxera consigo para alegrar o acontecimento.
- Bendito seja Deus - murmurei, ao contemplar o meu pai a menear as ancas e a sincronizar a
compasso golpes de traseiro com aquela veterana da noite.
Barcelo circulava entre os convidados, distribuindo charutos e estampas comemorativas que
mandara imprimir numa gráfica especializada em recordações de comunhões, baptizados e fune-
rais. Em papel de pouca gramagem, podia ver-se uma caricatura de Fermín ataviado de anjinho,
com as mãos em posição de oração e a legenda:
Fermín, pela primeira vez em muito tempo, estava feliz e sereno. Meia hora antes de a farra
começar, havia-o acompanhado até ao Can Lluís, onde o professor Alburquerque deu fé de que,
naquela mesma manhã, estivera no Registo Civil armado com o dossiê de documentos e papéis
coligidos pela mão de mestre de Oswaldo Dario de Mortenssen e do seu assistente Luisito.
- Amigo Fermín - proclamou o professor -, dou-lhe as boas- -vindas oficiais ao mundo dos
vivos e entrego-lhe, na presença de Don Daniel Sempere e dos amigos do Can Lluís como
testemunhas, o seu novo e legítimo bilhete de identidade.
Fermín, emocionado, examinou os seus novos documentos.
- Como conseguiram este milagre?
- Da parte técnica é melhor poupá-lo. O que conta é que, quando se tem um verdadeiro
amigo, disposto a tudo fazer e a mover céu e terra para que o senhor se possa casar como
mandam as regras e começar a trazer ao mundo crianças para dar continuidade à dinastia
Romero de Torres, quase tudo é possível, Fermín - disse o professor.
Fermín fitou-me com lágrimas nos olhos e abraçou-me com tanta força, que julguei que me
ia asfixiar. Não tenho qualquer vergonha em admitir que aquele foi um dos momentos mais feli-
zes da minha vida.
HAVIA passado uma hora e meia de música, bebidas e danças provocantes, quando fiz uma
pausa e me aproximei do balcão, para beber alguma coisa que não contivesse álcool, porque não
conseguiria ingerir nem mais uma gota de rum com limão, a bebida oficial da noite. O
empregado serviu-me uma água fria e encostei as costas ao balcão, a observar a farra. Não tinha
reparado que, no outro extremo do balcão, estava Rociíto. Sustinha nas mãos uma taça de
champanhe e observava com ar melancólico a festa que organizara. Pelo que Fermín me contara,
calculei que Rociíto deveria estar prestes a cumprir os trinta e cinco anos, mas mais de vinte anos
no ofício deixaram muitas marcas e mesmo naquela colorida meia-luz a rainha da Calle
Escudelers parecia mais velha.
Aproximei-me dela e sorri-lhe.
- Rociíto, está mais bonita do que nunca - menti.
Aperaltara-se com as suas melhores roupas e reconhecia-se o trabalho do melhor salão de
cabeleireiro da Calle Conde dei Asalto, mas pareceu-me que, naquela noite, Rociíto estava mais
triste do que nunca.
- Sente-se bem, Rociíto?
- Olhe bem para ele, coitadito... é só ossos e ainda tem forças para dançar.
Os seus olhos estavam presos em Fermín e soube que sempre veria nele o paladino que a
salvara de um proxeneta de pacotilha e que, com certeza, após vinte anos nas ruas, ele era o
único homem que havia conhecido que valia a pena.
- Don Daniel, não o quis dizer ao Fermín, mas, amanhã, não vou ao casamento.
- Que diz, Rociíto? Mas o Fermín até reservou um lugar de honra...
Rociíto baixou o olhar.
- Eu sei, mas não posso ir.
- Porquê? - perguntei, mas imaginava a resposta.
- Porque ficaria muito triste e quero que o senhor Fermín seja feliz com a sua senhora.
Rociíto começou a chorar. Não soube o que dizer e abracei-a.
- Sempre o amei, sabia? Desde que o conheci. Eu sei que não sou mulher para ele, que ele me
vê como... bem... como a Rociíto.
- O Fermín gosta muito de si, nunca se esqueça disso.
A mulher afastou-se e secou as lágrimas, envergonhada. Sor- riu-me e encolheu os ombros.
- Perdoe-me, mas sou uma palerma e, quando bebo uma pin- guinha, nem sei o que digo.
- Não há problema.
Ofereci-lhe o meu copo com água e aceitou-o.
- Um dia apercebemo-nos de que a juventude passou e o comboio se foi embora, sabia?
- Há sempre comboios a passar. Sempre.
Rociíto concordou.
- E é por isso que não vou ao casamento, Don Daniel. Há uns meses, conheci um senhor de
Reus. É bom homem. Viúvo. Bom pai. Tem uma sucateira e, sempre que passa em Barcelona,
encontra-se comigo. Pediu-me em casamento. Nenhum dos dois vai enganado. Envelhecer
sozinho é muito duro e bem sei que já não tenho corpo para continuar na rua. O Jaumet, o
senhor de Reus, pediu-me para viajar com ele. Os filhos já saíram de casa e ele passou a vida a
trabalhar. Disse que quer ver o mundo antes de se ir e pediu-me para o acompanhar. Como sua
esposa, não como mulher de usar e deitar fora. O barco parte amanhã de manhã cedo. O Jaumet
disse que o capitão de um navio tem autoridade para celebrar um casamento em alto mar e,
senão, procuraremos um padre em qualquer dos portos onde atracarmos.
- O Fermín sabe?
Como se nos tivesse ouvido à distância, Fermín estacou na pista de dança, ficando a
observar-nos. Abriu os braços na direcção de Rociíto e pôs aquela cara de malandro a precisar de
aconchego, que tantos resultados lhe trouxera. Rociíto riu-se, abanando a cabeça e, antes de
reunir-se com o amor da sua vida para o último bolero, voltou-se e disse-me:
- Cuide bem dele por mim, Daniel. Porque Fermín só há um.
A orquestra parara de tocar e a pista abriu-se para receber
Rociíto. Fermín pegou-lhe nas mãos. As luzes de La Paloma extinguiram-se lentamente e de
entre as sombras emergiu um foco que desenhou um círculo de luz vaporosa aos pés do par.
Todos se afastaram para um lado e a orquestra, devagar, atacou os acordes do mais triste bolero
jamais composto. Fermín envolveu com o braço a cintura de Rociíto. Fitando-se nos olhos, longe
do mundo, os amantes daquela Barcelona a que nunca voltaria dançaram abraçados pela última
vez. Quando a música se desvaneceu, Fermín beijou-a nos lábios e Rociíto, banhada em lágrimas,
acariciou-lhe a face, afastando-se devagar para a saída sem se despedir.
A orquestra acudiu ao resgate do momento com uma guaracha e Oswaldo Dario de
Mortenssen, que, de tanto escrever cartas de amor, se havia convertido num enciclopedista de
melancolias, instigou os convivas a regressarem à pista e a fingirem que ninguém vira nada.
Fermín, um tanto abatido, dirigiu-se ao balcão e sentou-se sobre um banco alto a meu lado.
- Está bem, Fermín?
Assentiu debilmente.
- Acho que me faria bem apanhar um pouco de ar fresco, Daniel.
- Espere-me aqui, que vou buscar os casacos.
Caminhávamos pela Calle Tallers rumo às Ramblas, quando,
cerca de cinquenta metros adiante, vislumbrámos uma silhueta de aspecto familiar, caminhando
lentamente.
- Olhe, Daniel, não é o seu pai?
- Ele mesmo. Bêbedo que nem um cacho.
- Era a última coisa que esperava ver neste mundo - disse Fermín.
- Então imagine eu...
Acelerámos o passo até o alcançarmos e, ao ver-nos, o meu pai sorriu-nos com os olhos
vidrados.
- Que horas são? - perguntou.
- Muito tarde.
- Bem me parecia. Ouça, Fermín, a festa foi fabulosa. E que raparigas... Ali havia rabos que
davam para desencadear uma guerra.
Revirei os olhos. Fermín pegou no braço do meu pai e guiou os seus passos.
- Senhor Sempere, nunca pensei que lhe diria isto, mas o senhor está em estado de
intoxicação etílica e é melhor que não diga nada de que se arrependa depois.
O meu pai concordou, de repente envergonhado.
- Foi esse demónio do Barcelo, deu-me não sei o quê e eu não estou habituado a beber...
- Não há problema. Agora vai tomar bicarbonato e deitar-se descansado. Amanhã, acorda
como novo e será como se nada se tivesse passado.
- Acho que vou vomitar.
Entre Fermín e eu mantivemo-lo em pé, enquanto o pobre devolvia tudo o que bebera. Com
a mão, sustive-lhe a testa empapada em suor frio e, quando era óbvio que já nada mais lhe
restava dentro, nem a primeira papa, sentámo-lo por alguns momentos nos degraus de entrada
de um prédio.
- Respire profunda e lentamente, senhor Sempere.
O meu pai concordou, de olhos fechados. Fermín e eu trocámos olhares.
- Ouça... o senhor não estava para casar em breve?
- Amanhã à tarde.
- Homem, então as maiores felicidades!
- Obrigado, senhor Sempere. E o que me diz? Julga-se com coragem de, a pouco e pouco,
irmos até casa?
O meu pai confirmou.
- Vamos, valente, que está tudo bem.
Corria um ar fresco e seco, que conseguiu desanuviar o meu pai. Dez minutos depois, quando
entrámos na Calle Santa Ana, já havia recuperado a compostura e estava mortificado de vergo-
nha. Decerto, nunca na sua vida se embriagara.
- Por favor, não contem a ninguém - suplicou-nos.
Estávamos a vinte metros da livraria quando me apercebi de que havia alguém sentado à
entrada do prédio. O grande projector da Casajorba, na esquina da Puerta dei Angel, desenhava a
silhueta de uma jovem com uma mala sobre os joelhos. Ao ver- -nos levantou-se.
- Temos companhia - murmurou Fermín.
O meu pai viu-a primeiro. Apercebi-me de algo estranho no seu rosto, uma calma tensa
assaltou-o, como se tivesse recuperado de repente a sobriedade. Avançou até à rapariga, mas de
repente parou, petrificado.
- Isabella? - ouvi-o.
Temendo que a bebida ainda lhe toldasse a cabeça e fosse desmaiar ali mesmo, em plena rua,
avancei alguns passos. Foi então quando a vi.
NÃO devia ter mais de dezassete anos. Emergiu na claridade do lampadário da fachada do
edifício, sorriu-nos com timidez, erguendo a mão num gesto de cumprimento.
- Eu sou a Sofia - disse, com a voz a denotar um ténue sotaque.
O meu pai fitava-a atónito, como se tivesse visto uma assombração. Engoli em seco e senti
um calafrio a percorrer-me o corpo. Aquela rapariga era a cara viva da minha mãe, tal como
aparecia nos álbuns de fotografias que o meu pai guardava na secretária.
- Sou a Sofia - repetiu a jovem, um pouco desconcertada -, a sua sobrinha. De Nápoles...
- Sofia - balbuciou o meu pai. - Ah!, a Sofia...
Quis a providência que Fermín ali estivesse para tomar as rédeas da situação. Depois de
recuperar do susto, começou a explicar à rapariga que o senhor Sempere estava vagamente indis-
posto.
- Vimos de uma prova de vinhos e ao coitado basta um copo de Vichy e já se passa. Não faça
caso, signorina, porque normalmente não tem este ar pasmado.
Encontrámos o telegrama urgente que a tia Laura, a mãe da rapariga, enviara na nossa
ausência para informar da sua chegada, enfiado por debaixo da porta.
Já no apartamento, Fermín instalou o meu pai no sofá e ordenou-me que preparasse café bem
forte. Enquanto conversava com a jovem, perguntando-lhe sobre a viagem e lançando para o ar
todo o tipo de banalidades, o meu pai, devagar, voltava à vida.
Com um sotaque delicioso e um ar elegante, Sofia contou- -nos que chegara às dez da noite à
Estação de Francia. Ali apanhara um táxi até à Plaza de Cataluna. Ao não encontrar ninguém em
casa, refugiara-se num bar próximo até fecharem. Depois, sentara-se à espera na entrada,
confiando que, mais cedo ou mais tarde, alguém aparecesse. O meu pai recordava-se da carta em
que a mãe lhe anunciava que Sofia viria estudar para Barcelona, mas não supunha que fosse já.
- Lamento muito que tenhas tido de esperar na rua - disse. - Por norma não saio, mas, esta
noite era a despedida de solteiro do Fermín e...
Sofia, radiante com a notícia, levantou-se e plantou em Fermín um beijo de felicitações na
face. Fermín, não obstante estar retirado do campo de batalha, não pôde conter o impulso e
convidou-a para o casamento.
Estávamos há meia hora em conversa fiada quando Bea, que regressava da despedida de
solteira de Bernarda, ouviu vozes enquanto subia as escadas e bateu à porta. Quando entrou na
sala e viu Sofia, ficou branca, lançou-me um olhar.
- Esta é a minha prima Sofia, de Nápoles - anunciei. - Veio estudar para Barcelona e vai viver
aqui uma temporada...
Bea tentou dissimular a surpresa, cumprimentando-a com absoluta naturalidade.
- Esta é a minha mulher, a Beatriz.
- Bea, por favor. Ninguém me chama Beatriz.
O passar do tempo e o café reduziram o impacte da chegada de Sofia e, pouco depois, Bea
sugeriu que a pobre devia estar esgotada e o melhor era que fosse dormir, porque amanhã seria
outro dia, ainda que fosse de casamento. Decidiu-se que Sofia se instalaria no que fora o meu
quarto quando criança e Fermín, depois de se certificar de que o meu pai não ia entrar de novo
em coma, foi deitá-lo na cama. Bea tranquilizou Sofia, dizendo que lhe emprestaria um dos seus
vestidos para a cerimónia e quando Fermín, cujo hálito cheirava a espumante a dois metros de
distância, se dispunha a fazer algum comentário inapropriado sobre semelhanças e disparidades
de tamanhos, silenciei-o com uma cotovelada.
Uma fotografia dos meus pais no dia do seu casamento obser- vava-nos da prateleira.
Ficámos os três sentados na sala, fitando-a sem sairmos do nosso assombro.
- Como duas gotas de água - murmurou Fermín.
Bea observava-me de soslaio, tentando decifrar os meus pensamentos. Pegou-me na mão e
assumiu uma expressão risonha, disposta a desviar a conversa para outras coisas.
- E então, que tal a farra? - perguntou Bea.
- Recatada - garantiu Fermín. - E a vossa, a das mulheres?
- A nossa, de recatada não teve nada.
Fermín fitou-me com ar grave.
- Digo-lhe que, para estas coisas, as mulheres são muito mais depravadas do que nós.
Bea sorriu enigmática.
- A quem está a chamar depravadas, Fermín?
- Desculpe-me este imperdoável deslize, Dona Beatriz, pois é o espumante de Penedés que
ainda tenho nas veias que me faz dizer palermices. Sabe Deus que a senhora é um baluarte de
virtude e de requinte e este humilde servo, antes de insinuar o mais remoto sinal de depravação
da sua parte, preferiria emudecer e passar o resto dos seus dias numa cela de cartuxo e em
silenciosa penitência.
- Não cairá nessa - adverti.
- O melhor é não falarmos no assunto - interrompeu-nos Bea, olhando-nos como se os dois
tivéssemos onze anos. - Agora calculo que vão dar um passeio até à ponta do molhe, que é tradi-
ção da noite antes do casamento - disse.
Fermín e eu trocámos olhares.
- Vamos, saiam daqui. É melhor estarem a horas amanhã na igreja...
O único estabelecimento que encontrámos aberto àquela hora foi o El Xampanyet, na Calle
Monteada. Devem ter sentido tanta pena de nós, que nos deixaram ficar ali um pouco enquanto
limpavam e, ao fecharem, ante a notícia de que Fermín estava a poucas horas de se converter
num homem casado, o dono deu-lhe os pêsames e ofereceu-nos uma garrafa da pinga da casa.
- Coragem de toureiro - aconselhou.
Vagueámos pelas ruelas do Barrio de la Ribera, entretidos a mudar o mundo à martelada,
como fazíamos sempre, até que o céu se tingiu de um ténue púrpura e soubemos que era já hora
de o noivo e o seu padrinho, que era eu, nos dirigirmos até à ponta do molhe para nos sentarmos
e receber a alvorada, uma vez mais frente à maior miragem do mundo, aquela Barcelona que
amanhecia reflectida sobre as águas do porto.
Ali nos sentámos com as pernas a pender, partilhando a garrafa que nos haviam oferecido no
El Xampanyet. Entre tragos, contemplámos a cidade em silêncio, seguindo o voo de um bando de
gaivotas sobre a cúpula da Igreja de la Mercê, traçando um arco entre as torres do edifício dos
Correos. Ao longe, no alto da montanha de Montjuic, o castelo erguia-se obscuro como uma ave
espectral, escrutinando a cidade a seus pés, expectante.
A buzina de um navio rompeu o silêncio e vimos, do outro lado da doca nacional, um grande
navio-cruzeiro a levantar âncora e a preparar-se para partir. O barco separou-se do molhe e, com
um golpe de hélices que deixou um enorme sulco nas águas do porto, apontou a proa para a
embocadura. Dúzias de passageiros reuniram-se na popa e saudavam com a mão. Perguntei-me
se Rociíto estaria entre eles, com o seu elegante e maduro sucateiro de Reus. Fermín observava o
navio, pensativo.
-Julga que a Rociíto será feliz, Daniel?
- E o senhor, Fermín? Será o senhor feliz?
Vimos o navio a afastar-se, com as figuras a tornarem-se pequenas, até serem invisíveis.
- Fermín, há uma coisa que me intriga. Por que não quis que ninguém lhe oferecesse prendas
de casamento?
- Não gosto que as pessoas façam sacrifícios por minha causa. Além disso, o que íamos fazer
com conjuntos de copos e colheres com gravações dos brasões de Espanha e essas coisas que as
pessoas oferecem como prenda de casamento?
- Pois eu fazia questão em oferecer-lhe um presente.
- O senhor já me ofereceu a melhor das prendas, Daniel.
- Isso não conta. Estou a falar de uma prenda de uso e desfrute pessoal.
Fermín olhou-me intrigado.
- Não será uma virgem de porcelana ou um crucifixo, pois não? A Bernarda tem tamanha
colecção, que nem sei onde nos vamos sentar.
- Não se preocupe. Não se trata de um objecto.
- Não será dinheiro...
- O senhor sabe bem que, lamentavelmente, não tenho nem um cêntimo. O do dinheiro é o
meu sogro e esse não oferece nada a ninguém.
- Esses franquistas de última hora são mais avarentos do que um judeu.
- O meu sogro é um bom homem, Fermín. Não se meta com
ele.
- Passamos uma borracha sobre isto, mas não mude de assunto, porque fiquei com a pulga
atrás da orelha. Que prenda?
- Adivinhe.
- Um lote de Sugus.
- Frio, frio...
Fermín arqueou as sobrancelhas, morto de curiosidade. De súbito, os seus olhos
iluminaram-se.
- Não... Já vai sendo altura. Assenti.
- Tudo a seu tempo. Agora, ouça-me bem. O que vai ver hoje não o pode contar a ninguém,
Fermín. A ninguém...
- Nem sequer à Bernarda?
O primeiro sol do dia derramava-se como cobre líquido entre as cornijas da Rambla de
Santa Mónica. Era manhã de domingo e as ruas estavam desertas e em silêncio. Depois de
entrarmos na estreita passagem do Arco dei Teatro, o foco de luz impressionante que penetrava
das Ramblas foi-se extinguindo à medida que caminhávamos e, quando chegámos ao grande por-
tão de madeira, havíamos submergido numa cidade de sombras.
Subi os degraus e bati com a aldraba. O eco perdeu-se devagar no interior, como a ondulação
de um tanque. Fermín, que assumira um respeitoso silêncio e parecia um rapazinho prestes a
estrear-se no seu primeiro ritual religioso, olhou-me ansioso.
- Não será muito cedo para bater? - perguntou. - Não vá o chefe chatear-se.
- Não são os armazéns El Siglo. Aqui, não há horários - tran- quilizei-o. - E o chefe chama-se
Isaac. O senhor não diga nada, a não ser que ele pergunte.
Fermín assentiu, solícito.
- Não dou um pio.
Dois minutos depois, ouvi a dança da combinação de engrenagens, roldanas e alavancas que
controlavam a fechadura do portão e desci os degraus. A porta abriu-se apenas um palmo, com o
rosto aquilino de Isaac Monfort, o guardião, a espreitar com o seu habitual olhar penetrante. Os
seus olhos pousaram primeiro em mim e, após uma breve análise, começaram a radiografar,
catalogar e trespassar criteriosamente Fermín.
- Este deve ser o ilustre Fermín Romero de Torres - murmurou.
- Ao seu inteiro dispor, de Deus e da...
Silenciei Fermín com uma cotovelada e sorri ao severo guardião.
- Bom dia, Isaac.
- Bom será o dia em que o senhor não bata de madrugada, quando estou na casa de banho
ou de feriado, Sempere - replicou Isaac. - Vamos, entrem.
O guardião abriu um palmo mais o portão, para nos permitir entrar. Quando a porta se
fechou atrás de nós, Isaac ergueu a candeia do chão e Fermín pôde contemplar o arabesco mecâ-
nico daquela fechadura, que se fechava sobre si mesma como as entranhas do maior relógio do
mundo.
- Com esta, um larápio não teria sorte - deixou cair.
Lancei-lhe um olhar de censura e de imediato me dirigiu um
gesto de silêncio.
- Recolha ou entrega? - perguntou Isaac.
- Na verdade, há muito tempo que queria trazer o Fermín aqui, para que conhecesse
pessoalmente este lugar. Já lhe falei dele muitas vezes. É o meu melhor amigo e casa-se hoje, ao
meio- -dia - expliquei.
- Bendito seja Deus - disse Isaac. - Pobrezinho. Tem a certeza de que não quer que lhe
ofereça aqui asilo nupcial?
- O Fermín é dos que se casam convencidos, Isaac.
O guardião observou-o de cima a baixo. Fermín ofereceu-lhe um sorriso, de desculpa pela
ousadia.
- Que coragem!
Guiou-nos ao longo do comprido corredor até à abertura da galeria que nos conduzia à
grande sala. Deixei que Fermín se adiantasse alguns passos, para que fossem os seus olhos a des-
cobrir aquela visão que as palavras não podiam descrever.
A sua silhueta diminuta emergiu perante o grande foco de luz que descia da grande cúpula de
vidro em cima. A claridade, caía em cascata de vapor, por entre as passagens do grande labirinto
de corredores, túneis, escadas, arcos e abóbadas, que pareciam brotar do solo como o tronco de
uma árvore infinita feita de livros, e que se abria para o céu, numa geometria impossível. Fermín
estacou no início de uma passadeira que se adentrava como uma ponte na base da estrutura e,
boquiaberto, contemplou o espectáculo. Aproximei-me em silêncio e pus-lhe a mão sobre o
ombro.
- Fermín, bem-vindo ao Cemitério dos Livros Esquecidos.
SEGUNDO a minha experiência pessoal, quando alguém descobria aquele local, a sua reacção
era de encantamento e assombro. A beleza e o mistério do recinto reduziam o visitante ao
silêncio, à contemplação, ao sonho. Como é óbvio, a reacção de Fermín teve de ser diferente.
Passou a primeira meia hora hipnotizado, deambulando como um possesso pelas passagens do
enorme quebra-cabeças que era o labirinto. Parava para bater com os nós dos dedos em
arcobotantes e colunas, como se duvidasse da sua solidez. Detinha-se em ângulos e perspectivas,
fazendo um telescópio com as mãos e tentando decifrar a lógica da estrutura. Percorria a espiral
de bibliotecas com o seu considerável nariz a um centímetro da infinidade de lombadas
alinhadas em ruas sem fim, escrutinando títulos e catalogando tudo quanto descobria. Seguia-o a
poucos passos, entre o alarme e a preocupação.
Começava a suspeitar que Isaac nos expulsaria a pontapés, quando, numa das pontes
suspensas entre as abóbadas de livros, choquei com ele. Para minha surpresa, não só não se lia no
seu rosto qualquer sinal de irritação como sorria bem-disposto, ao contemplar os progressos que
Fermín ia fazendo na sua primeira exploração do Cemitério dos Livros Esquecidos.
- O seu amigo é um espécimen bastante particular - observou Isaac.
- Não sabe o senhor a que ponto.
- Não se preocupe, deixe-o à vontade, que já descerá das nuvens.
- E se se perder?
- Vejo que é astuto. Conseguirá desenvencilhar-se.
Não estava certo disso, mas não quis contradizer Isaac. Acom- panhei-o até à divisão que
usava como escritório, aceitando a chávena de café que me ofereceu.
-Já explicou as regras ao seu amigo?
- O Fermín e as regras são conceitos que não coabitam na mesma frase. Mas resumi-lhe o
básico, ao que me respondeu com um convicto: «Evidentemente, por quem me toma?»
Enquanto Isaac tornava a encher-me a chávena, surpreendeu- -me a olhar uma fotografia da
sua filha Nuria, exposta na parede em frente à sua secretária.
- Fará em breve dois anos que partiu - disse, com uma tristeza de cortar a respiração.
Baixei o olhar, pressuroso. Podiam passar cem anos e a morte de Nuria Monfort continuaria
gravada na minha memória, tal como a certeza de que, se nunca me tivesse conhecido, talvez
fosse viva. Isaac acariciava o retrato com o olhar.
- Estou a ficar velho, Sempere. Já vai sendo hora de alguém me substituir.
Ia protestar por semelhante insinuação, quando Fermín entrou na divisão, com uma
expressão delirante e a arquejar, como se acabasse de correr a maratona.
- E então? - perguntou Isaac. - O que lhe parece?
- Glorioso. Ainda que vejo que não têm casa de banho. Pelo menos, à vista.
- Espero que não tenha feito chichi nalgum recanto.
- Resisti de forma sobre-humana até chegar aqui.
- Naquela porta à esquerda. Terá de puxar duas vezes a corrente do autoclismo, que à
primeira não funciona.
Enquanto Fermín se desfazia em urina, Isaac serviu-lhe uma chávena de café, que o esperava
fumegante quando regressou.
- Tenho uma série de perguntas que gostava de lhe fazer, Don Isaac.
- Fermín, não me parece que... - intervim.
- Pergunte, pergunte.
- A primeira série tem a ver com a história deste lugar. A segunda é de cariz técnico e
arquitectónico. A terceira é basicamente bibliográfica...
Isaac riu-se. Nunca o vira rir em toda a sua vida e não soube se aquilo seria um sinal do céu
ou o presságio de um desastre iminente.
- Primeiro terá de escolher o livro que quer salvar - informou Isaac.
- Deitei o olho a uns quantos, mas, por uma questão sentimental, tomei a liberdade de
escolher este.
Retirou da algibeira uma obra encadernada a pele vermelha, com o título impresso a letras
douradas em relevo e uma caveira gravada na capa.
- Homem... A Cidade dos Malditos, capítulo treze: Daphné e a escadaria interminável, de
David Martin... - leu Isaac.
- É um velho amigo - explicou Fermín.
- Não me diga! Pois olhe que houve uma época em que o via aqui amiúde - disse Isaac.
- Seria antes da guerra - conjecturei.
- Não, não... uns tempos depois.
Fermín e eu olhámo-nos. Perguntava-me se Isaac tinha realmente razão e se começava a ficar
um pouco velho de mais para aquele lugar.
- Não quero contradizê-lo, chefe, mas isso é impossível - disse Fermín.
- Impossível? Vai ter de se explicar melhor...
- O David Martin fugiu do país antes da guerra - expliquei. - No início de 1939, até ao fim da
contenda, regressou cruzando os Pirenéus e, passados poucos dias, foi detido em Puigcerdá.
Esteve na prisão até 1940, quando foi assassinado.
Isaac olhava-nos com incredulidade.
- Acredite, chefe - garantiu Fermín. - As nossas fontes são fidedignas.
- Posso garantir-lhes que o David Martin esteve sentado aí, na mesma cadeira em que está
agora, Sempere, e que estivemos a conversar um bocado.
- Tem a certeza, Isaac?
- Nunca estive tão certo de nada em toda a minha vida - retorquiu o guardião. - Recordo-me
porque havia anos que não o via. Estava enfezado e parecia doente.
- Lembra-se da data em que veio?
- Perfeitamente. Foi na última noite do ano de 1940, véspera de Ano Novo. Foi a última vez
que o vi.
Fermín e eu andávamos perdidos em cálculos.
- Isso significa que o que aquele carcereiro, o Bebo, contou ao Brians estava certo. Na noite
em que o Valls ordenou que o levassem para o casarão, perto do Parque Guell e que o
matassem... Bebo disse que, depois disso, ouviu os homens do Valls dizer que algo se passara lá,
que havia mais alguém naquela casa... Alguém que pode ter evitado a morte do Martin... -
conjecturei.
Isaac ouvia aqueles raciocínios com consternação.
- Do que estão a falar? Quem queria assassinar o Martin?
- É uma longa história - disse Fermín -, com toneladas de notas de rodapé.
- Pois a ver se ma contam um dia...
- Pareceu-lhe que o Martin estava são, Isaac? - perguntei.
Isaac encolheu os ombros.
-Com Martin, nunca se sabia... Esse homem tinha a alma atormentada. Quando ia a sair,
pedi-lhe que me deixasse acompanhá-lo ao comboio, mas disse-me que um automóvel o
aguardava lá fora.
- Um automóvel?
- Um Mercedes Benz, propriedade de alguém a quem se referia como Patrão e que, pelos
vistos, o esperava lá fora. Mas, quando saí com ele, não havia ali nenhum automóvel, nem patrão,
nem nada de nada...
- Não me leve a mal, chefe, mas, sendo véspera de Ano Novo, e dado o espírito festivo da
data, não podia o senhor ter-se excedido na ingestão de vinhos e espumantes e, atordoado pelos
cânticos e pelo elevado teor de açúcar do torrão de Jijona, imaginar tudo isto? - inquiriu Fermín.
- No capítulo espumantes só bebo gasosa e o líquido mais etílico que tenho é água oxigenada
- informou Isaac, sem se mostrar ofendido.
- Desculpe, pela dúvida. Era mera formalidade.
- Dei-me conta. Mas, quando lhe digo, a menos que quem aqui viesse naquela noite fosse um
espírito, e não creio que o fosse porque sangrava do ouvido e as mãos tremiam-lhe com a febre,
para já não dizer que devorou todos os torrões de açúcar que tinha na despensa. O Martin estava
tão vivo como eu ou os senhores.
- E disse ao que vinha, passado tanto tempo?
Isaac acenou com a cabeça.
- Disse que vinha para deixar-me algo e que, quando pudesse, voltaria para a recolher. Ele ou
alguém que enviaria...
- E o que lhe deixou?
- Um pacote embrulhado em papel e atado com cordel. Não sei o que tinha lá dentro.
Engoli em seco.
- E ainda o tem? - perguntei.
O pacote, resgatado do fundo de um armário, repousava sobre a secretária de Isaac. Quando
lhe toquei com os dedos, a fina película de pó que o cobria levantou-se numa nuvem de
partículas, que cintilaram à luz da candeia que Isaac segurava à minha esquerda. À minha direita,
Fermín retirou o canivete do bolso e estendeu-mo. Olhámo-nos os três.
- Que seja o que Deus quiser - disse Fermín.
Passei a lâmina debaixo do cordel que segurava o papel de embrulho que envolvia o pacote e
cortei-o. Com extremo cuidado, fui afastando o papel até o conteúdo ficar à vista. Era um
manuscrito. As páginas estavam sujas, impregnadas de cera e de sangue. A primeira página exibia
o título, grafado numa caligrafia diabólica.
- É o livro que escreveu enquanto esteve preso na torre - murmurei. - O Bebo conseguiu
salvá-lo.
- Há qualquer coisa por baixo, Daniel... - observou Fermín. Um canto de papel espreitava por
baixo das páginas do
manuscrito. Puxei-o e recuperei um sobrescrito. Fora selado com lacre escarlate, com a imagem
de um anjo. À frente, uma só palavra escrita com tinta vermelha.
Uma sensação de frio subiu-me pelas mãos. Isaac, que presenciava a cena entre o assombro e
a consternação, afastou-se em silêncio até à ombreira da porta, seguido por Fermín.
- Daniel - chamou-me suavemente Fermín -, deixamo-lo sozinho para que possa abrir o
sobrescrito com calma e privacidade ...
Escutei os seus passos a afastarem-se devagar e apenas pude ouvir o início da sua conversa.
- Ouça, chefe, entre tantas emoções, esquecia-me de lhe dizer que, ao entrar, não pude
evitar ouvi-lo dizer que queria reformar-se e abandonar este cargo.
- Assim é. Foram muitos anos passados aqui, Fermín. Porquê?
- Pois olhe, sei que acabámos de nos conhecer, como se diz, mas eu podia estar interessado...
As vozes de Fermín e de Isaac desvaneceram-se nos ecos do labirinto do Cemitério dos Livros
Esquecidos. A sós, sentei-me na poltrona do guardião e quebrei o selo de lacre. O sobrescrito
continha uma folha de papel dobrada, de cor ocre. Desdobrei-a e comecei a ler.
Barcelona, 31 de Dezembro de 1940
Caro Daniel
Escrevo estas palavras com a esperança e a convicção de que, um dia, descobrirás este
lugar, o Cemitério dos Livros Esquecidos, um lugar que mudou a minha vida e que, estou
certo, também mudará a tua. É essa mesma esperança que me leva a acreditar que talvez
então, quando eu já não estiver aqui, alguém te falará de mim e da amizade que me uniu à
tua mãe. Sei que, se chegares a ler estas palavras, muitas serão as perguntas e as dúvidas que
te vão invadir. Poderás encontrar algumas das respostas neste manuscrito, onde tentei verter
a minha história como a recordo, sabendo que a minha lucidez tem os dias contados e que,
amiúde, dou por mim a evocar o que nunca aconteceu.
Sei também que, quando receberes esta carta, o tempo terá já começado a apagar as
marcas do que passou. Sei que albergas suspeitas e que, se a verdade acerca dos últimos dias
da tua mãe chegar ao teu conhecimento, partilharás comigo a fúria e sede de vingança.
Dizem que é atributo dos sábios e dos justos perdoar, mas sei que nunca poderei fazê-lo. A
minha alma está já condenada e não tem salvação possível. Sei que devotarei cada gota de
fôlego que me reste neste mundo a tentar vingar a morte da Isabella. Esse é o meu destino,
mas não o teu.
A tua mãe não teria querido para ti uma vida como a minha, a nenhum preço. A tua mãe
teria querido para ti uma vida plena, sem ódio nem rancor. Por ela, peço-te que leias esta
história e que, uma vez terminada, a destruas, que te esqueças de tudo o que possas ter
ouvido sobre um passado que já não existe, que limpes o teu coração de ira e que vivas a vida
que a tua mãe te quis dar, olhando sempre para o futuro.
E se um dia, ajoelhado frente à sepultura dela, sentires o fogo da raiva a tentar
apoderar-se de ti, recorda-te de que na minha história, como na tua, houve um anjo detentor
de todas as respostas.
O teu amigo
DAVID MARTÍN
Reli várias vezes as palavras que David Martín me enviava através do tempo, palavras que me
pareciam impregnadas de arrependimento e de loucura, palavras que não consegui decifrar por
completo. Mantive a carta nas mãos mais uns instantes e depois cheguei-a à chama da candeia e
contemplei-a a arder.
Encontrei Fermín e Isaac ao pé do labirinto, a conversarem como velhos amigos. Ao
verem-me aparecer, as suas vozes silenciaram-se e ambos me fitaram expectantes.
- O que estava na carta só a si diz respeito, Daniel. Nada terá de nos contar.
Assenti. O eco de umas campainhas insinuou-se além dos muros. Isaac fitou-nos e consultou
o relógio.
- Oiçam... os senhores não iam hoje a um casamento?
A noiva vestia de branco e, ainda que não ostentasse muitas
jóias ou adornos, não houve na história uma mulher que fosse mais bela aos olhos do seu
prometido do que Bernarda, naquele primeiro dia de Fevereiro, de sol reluzente, no adro da
Igreja de Santa Ana. Don Gustavo Barcelo, que, se não tivesse comprado todas as flores de
Barcelona para enfeitar a entrada do templo, preferia não ter comprado nenhuma, chorou como
uma madalena e o sacerdote amigo do noivo surpreendia-nos a todos com um sermão lúcido e
até a Bea arrancou lágrimas, o que não era de todo fácil.
Eu estive a ponto de deixar cair as alianças, mas tudo ficou esquecido quando o sacerdote,
jurados os votos, convidou Fer- mín a beijar a noiva. Foi então que, quando me virei por um
instante, me pareceu ver uma figura na última fila da igreja, um desconhecido que me olhava
sorrindo. Não conseguiria dizer porquê, mas, por um instante, tive a certeza de que aquele estra-
nho não era outro se não o Prisioneiro do Céu. Todavia, quando olhei de novo, já ninguém estava
ali. A meu lado, Fermín abraçou Bernarda e, sem contemplações, plantou-lhe tal beijo nos lábios,
que arrancou uma ovação comandada pelo próprio sacerdote.
Naquele dia, ao ver o meu amigo a beijar a mulher que amava, dei por mim a pensar que
aquele momento, aquele instante roubado ao tempo e a Deus, valia todos os dias de miséria que
nos haviam levado até ali e outros tantos que nos esperavam ao sair de regresso à vida, e que
tudo quanto era decente e puro neste mundo e tudo por que valia a pena continuar a respirar
estava naqueles lábios, naquelas mãos, no olhar daqueles dois afortunados que, soube, ficariam
juntos até ao fim das suas vidas.
Epílogo
1960
UM homem jovem, mesclado com apenas alguns brancos e uma certa sombra no olhar,
caminha ao sol do meio-dia entre as lápides do cemitério, debaixo de um céu preso no azul do
mar.
Leva nos braços uma criança que mal consegue compreender as suas palavras, mas que sorri
ao encontrar os seus olhos. Juntos, aproximam-se de uma modesta sepultura afastada numa
balaustrada suspensa sob o Mediterrâneo. O homem ajoelha-se em frente da sepultura e,
segurando no filho, deixa-o acariciar as letras gravadas na pedra.
ISABELLA SEMPERE
1917-1939
O homem permanece em silêncio por alguns instantes, de pálpebras apertadas para conter o
choro.
A voz do filho devolve-o ao presente e, ao abrir os olhos, vê que a criança está a apontar para
uma pequena figura que assoma por entre as pétalas de flores secas, à sombra de uma jarra de
vidro ao pé da lápide. Tem a certeza de que não estava ali da última vez que visitou a sepultura. A
sua mão procura entre as flores e recolhe uma estatueta de gesso, tão pequena que cabe numa
mão. Um anjo. As palavras que julgava esquecidas surgem na sua memória, como uma velha
ferida.
E se um dia, ajoelhado frente à sepultura dela, sentires o fogo da raiva a tentar apoderar-se de
tirecorda-te de que na minha história, como na tua, houve um anjo detentor de todas as respostas...
O menino tenta pegar na figura do anjo que repousa na mão do pai e, ao roçar-lhe com os
dedos, empurra-a sem querer. A estatueta cai sobre o mármore e quebra-se. É então que a vê.
Uma pequeníssima folha, oculta no interior do gesso. O papel é fino, quase transparente.
Desenrola-a com os dedos e de imediato reconhece a letra:
Mauricio Valls El Pinar
Calle de Manuel Arnús Barcelona
A brisa do mar ergue-se por entre as lápides e o hálito de uma maldição acaricia-lhe o rosto.
Guarda o papel no bolso. Pouco depois, deixa uma rosa branca sobre a lápide e, com a criança
nos braços, refaz os passos até à álea de ciprestes, onde o espera a mãe do seu filho. Os três
unem-se num abraço e, quando ela o fita nos olhos, descobre algo neles que lá não estava
instantes antes. Algo turvo e obscuro, que lhe dá medo.
- Estás bem, Daniel?
Ele fita-a longamente e sorri.
- Amo-te - diz, e beija-a, sabendo que a história, a sua história, não terminou.
Acaba de começar.
Recommended