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Livrinho de teatro nº 66
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livrinhos de teatro / 66
Lluïsa Cunillé (Badalona, 1961) participou durante três anos nos seminá-rios de dramaturgia textual dados por José Sanchis Sinisterra na Sala Beckett de Barcelona. Funda, em 2005, com Paco Zarzoso e Lola López, La Com-panyia Hongaresa de Teatre. E em 2008, funda a companhia La reina de la nit com Xavier Albertí e Lola Davó. Entre obras originais e adaptações, estreou cerca de quarenta montagens teatrais. Das suas obras estreadas destacam-se Rodeo (1992), Libración (1994), Intempèrie (escrita com Paco Zarzoso em 1995), Privado (1998), La Cita (1999), Passatge Gutenberg (2000), Et Diré Sempre la Veritat (2002), Ilusionistas (2004), Barcelona, Mapa de Sombras (2004), PPP (adaptação da obra de Pier Paolo Pasolini, 2005), Occisió (2005), El Dúo de la Africana (a partir da zarzuela de Manuel Fernández Caballero e Miguel Echegaray, 2006), Après Moi, le Déluge (2007) e El Bordell (2008). Obteve, entre outros, os prémios da Crítica de Barcelona para o melhor texto do ano de 1994 (Libración), de 2000 (Passatge Gutenberg) e de 2008 com Après Moi, le Déluge. Foi vencedora do Prémio Born de Teatre em 1999 com L’Aniversari, do Premi de la Institució de les lletres catalanes no ano de 1996 com Accident, do Premi Ciutat de Barcelona em 2005 com Barcelona, Mapa d’Ombres, do Premi Nacional de Teatre de la Generalitat de Catalunya em 2007, e do prémio La lletra d’Or em 2009. Desde 2007 é autora residente do Teatro Lliure de Barcelona. Com a peça O Tempo venceu o Prémio Borne de Teatro em 2010.
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ARTISTAS UNIDOSCOTOVIA
lluïsa cunillé
O Tempo
A Noite
Ilusionistas
Tradução de
Ângelo Ferreira de Sousa
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títulos originais: El Temps
© Lluïsa Cunillé, 2010
La Nit
© Lluïsa Cunillé, 2006
Il.lusionistes
© Lluïsa Cunillé, 2003
autora: Lluïsa Cunillé
tradução:Ângelo Ferreira Sousa
revisão:Madalena Alfaia
© desta edição: Artistas Unidos/ Livros Cotovia, Lisboa, Novembro de 2012
As traduções O Tempo e A Noite contaram
com o apoio do Instituto Ramon Llull
ARTISTAS UNIDOSR. Campo de Ourique, 120
1250 — 062 Lisboawww.artistasunidos.pt
artistasunidos@artistasunidos.pt
LIVROS COTOVIARua Nova da Trindade, 24
1200 — 303 Lisboawww.livroscotovia.ptgeral@livroscotovia.pt
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ÍNDICE
7 O Tempo 53 A Noite
81 Ilusionistas
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O TEMPO
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PERSONAGENS
ElaEle
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O escritório de uma empresa. Ela e Ele estão de pé.
Ela Lamento muito. Compreendo a sua dor. Ele Obrigado. Cumprimentam-se com um aperto de mãos. Pausa.
Ela Que idade tinha o seu pai?Ele Oitenta e seis.Ela Porque não tira uns dias de descanso?Ele Obrigado, acho que vou precisar de uns dias, na semana
que vem, para esvaziar o apartamento do meu pai.Ela O seu pai vivia sozinho? Ele Vivia.Ela Tire os dias que precisar. Fale você com o chefe do pessoal.Ele Obrigado. Ela Diga-lhe de quantos dias necessita para tratar de tudo. Ele Com certeza. Pausa.Ela Se precisar de mais alguma coisa, diga. Ele É muito amável da sua parte. Pausa.Ela Acho que nunca tinha estado aqui. (Olha pela janela.)
A vista não é lá muito bonita, pois não?Ele Não muito, não.Ela Na verdade, isto fi ca longe de tudo... A fábrica antiga, ape-
sar de ser mais pequena, estava mais bem situada. (Pausa.) Bem, vou deixá-lo trabalhar. E não se esqueça de falar com o chefe do pessoal.
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Ele Dê cumprimentos meus à sua mãe. Ela Fá-lo-ei. Obrigada.Ele Como está ela?Ela Bem, completamente recuperada.Ele Já teve alta do hospital?Ela Já há uns dias que está em casa.Ele Isso são boas notícias.Ela Pois, mas pregou-nos um valente susto.Ele Sim. Pausa.Ela Bem, vou andando. Cuide de si. Ele O mesmo para si. Ela sai. Escuro.
2
O mesmo escritório. Ele está sentado a trabalhar. Ela está
de pé junto à porta.
Ela Posso entrar? Ele Sim. Ele levanta-se e cumprimenta-a com um aperto de mão.
Ela Vim ver se está tudo bem.Ele Tudo bem, obrigado. (Pausa.) Sente-se, por favor.Ela Sim, vou-me sentar um bocado. (Ela senta-se do outro
lado da mesa e depois Ele senta-se no lugar dele.) Como tem andado?
Ele Bem. Ela Já arrumou as coisas do seu pai? Ele Já, obrigado. Já está tudo arrumado. Pausa.
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Ela Não está um bocado frio aqui? Ele Quer que ligue o aquecimento? Ela O radiador não funciona? Ele Desliguei-o porque fazia muito barulho. Ela E não tem frio?Ele De momento, não. Mas se tem frio, ligo o aquecimento.Ela Não se incomode. Ele Não me incomoda nada. (Levanta-se, liga o aquecimento
e volta a sentar-se. Pausa.) Como está a sua mãe? Ela Cada dia melhor. Até está a pensar em fazer uma viagem
com o meu pai.Ele Uma viagem?Ela A minha mãe sempre quis viajar, desde pequena, mas com
a empresa não era possível, ou pelo menos é o que ela está sempre a dizer.
Pausa.Ele Foi muito corajoso da sua parte dar continuidade ao tra-
balho da sua mãe, assim tão inesperadamente.Ela Espero que ela possa voltar em breve. É preciso tomar
algumas decisões em relação à empresa e sem ela é difícil avançar. (Pausa.) Eu chamo-lhe empresa e a minha mãe cha-ma-lhe fábrica...
Ele Bem observado, as duas coisas são verdade agora. Ela Suponho que sim e é isso que é um bocado assustador. Ele Está assustada? Ela É uma maneira de falar. Ele Pois. Pausa.Ela No início tenho de reconhecer que sim, que fi quei assus-
tada, mas agora parece-me que está tudo sob controlo.Ele Quando se começa, tudo parece mais difícil. Ela Foram uns dias de muita azáfama para todos.
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Ele Sim, foram. Pausa.Ela Se acha que alguma coisa podia melhorar, se tiver alguma
sugestão, gostava que mo dissesse. O senhor é um dos em-pregados mais antigos e conhece bem a casa.
Ele Eu não faço parte dos mais antigos, só trabalho aqui há três anos.
Ela Três anos?Ele Sim.Ela Desculpe, pensava que já estava cá há mais tempo. Como
tem um gabinete só para si, pensei que era dos mais antigos.Ele Quando cheguei havia outras duas pessoas aqui, mas
quando mudaram a contabilidade para o andar de cima não fi cou cá mais ninguém, por agora.
Pausa.Ela E porque é que não tem telefone?Ele O computador chega.Ela Vou pedir que lhe instalem aqui um telefone e que lhe
venham arranjar o radiador. Tem papel e uma caneta? Vou apontar antes que me esqueça.
Ele Sim. Ela aponta alguma coisa com a caneta que Ele lhe dá.
Ela Se não aponto logo tudo, nunca mais me lembro, ainda que seja importante.
Pausa. Ela guarda o papel e devolve-lhe a caneta.
Ele Pode fi car com ela. Tenho muitas aqui. Ela Obrigada. (Ela guarda a caneta. Pausa.) Se precisar de
mais alguma coisa, não hesite em falar com o chefe do pessoal. Ele De acordo.Ela É importante ir melhorando as coisas pouco a pouco.
As que devem ser melhoradas, claro. (Pausa. Ela fi xa uma
pequena fi gura que está em cima da mesa: um cavalo negro
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de xadrez que não estava lá na cena 1.) Desculpe, posso ver?
Ele Sim. Ela (pega na fi gura) É uma peça de xadrez, não é? Ele Sim, é um cavalo. Pausa.
Ela É muito delicado.Ele Era de um tabuleiro antigo do meu pai. Encontrei-o
quando esvaziei o apartamento dele. Ela O seu pai gostava de xadrez? Ele Sim, jogava muito bem. Pausa.Ela E você joga? Ele Xadrez? Não. Ela Não sabe jogar?Ele Sei, mas nunca jogo. (Pausa. Ela põe a fi gura onde estava.)
É o jogo que exige mais cálculos e menos acção. Podia ter sido o meu jogo.
Ela E porque não é?Ele Sendo o jogo do meu pai, não podia ser meu também.
(Pausa.) Ele dizia que o xadrez era demasiado difícil para ser um jogo e demasiado simples para ser uma ciência.
Pausa.
Ela Desculpe. Ele Porquê?Ela Por fazê-lo pensar no seu pai. Ele Não, pelo contrário. Agradeço-lhe o interesse. Pausa.Ela Bem, vou deixá-lo trabalhar. (Levanta-se.)Ele Desculpe, mas ainda toca piano?Ela Como?Ele Se ainda toca piano.
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Ela Como sabe que toco piano?Ele Ouvi-a tocar há uns anos na Casa da Cultura.Ela A sério? E como é que foi lá parar?Ele A sua mãe foi muito amável e convidou-nos a todos.Ela A quem?Ele Aos que trabalhavam no escritório.Ela Não sabia que ela tinha convidado o pessoal da empresa.Ele Sim, convidou-nos a todos.Ela Esse concerto era suposto que fosse só para os amigos. Era
o concerto de fi nal de curso, mas já sabe como é a minha mãe.Ele A minha mulher gostou muito. Ela A sua mulher também foi?Ele Foi o único concerto a que fomos os dois.Ela O meu concerto? Ele Nós ouvimos muitas vezes música na rádio e também
temos discos em casa. Mas não gostamos muito de sair. Pausa.Ela Bem, vamo-nos vendo por cá. Ele Sim. (Levanta-se.) Ela Cuide de si. Ele Você também. Ela sai. Escuro.
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O mesmo escritório. Ele está sentado à mesa a trabalhar e
Ela está de pé com um copo de plástico na mão, junto à por-
ta. Pausa.
Ela Desculpe. Sabe francês? Ele Francês?
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Ela Sim, sabe? Ele Não.Ela Alguém me disse que você sabia. Pausa.Ele Lamento.Ela É que estou à espera de uns fornecedores marroquinos
e não sei se entendem bem inglês. E lá em cima não há nin-guém que saiba francês.
Ele E a sua mãe? Ela A minha mãe?Ele A sua mãe sabe falar francês. Porque não lhe pede ajuda?Ela A minha mãe não está cá. Ele Desculpe, mas ela não devia ter voltado esta semana?Ela Não sabe? Os médicos disseram-lhe que tem o coração
muito fraco e recomendaram que não voltasse a trabalhar. Pausa.
Ele Não sabia. Ela Ninguém lhe disse nada? Ele Não.Ela Foi há coisa de duas ou três semanas, depois de ter tido
uma conversa com os médicos, que a minha mãe resolveu não voltar a trabalhar. Ou seja, a partir de agora sou eu que tomo, defi nitivamente, conta da empresa. Pensava que já toda a gente sabia.
Pausa.Ele E como é que a sua mãe reagiu?Ela Por agora, bastante bem. Mas com ela nunca se sabe.Ele O que quer dizer?Ela Vai ter de passar mais tempo até se ter uma ideia de como
ela reage. Pode-se dizer que esta empresa é a vida dela.Ele Sim, claro. Ela aproxima-se da janela e olha para fora.
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Ela Há duas semanas que não paro de andar de um lado para o outro, de falar com clientes e fornecedores de todo o lado e de lhes explicar a nova situação. Não sei se vou conseguir.
Ele Estou certo que sim. Pausa.Ela Como? Ele De certeza que vai tudo correr pelo melhor.Ela Toda a gente conhece a minha mãe, mas a mim ninguém
me conhece.Ele Isso é só uma questão de tempo.Ela Já perdemos alguns clientes. Assim que se soube da his-
tória da minha mãe, a concorrência não tardou a ligar aos nossos clientes e a oferecer todo o tipo de condições mais favoráveis. Agora, se quiser recuperá-los, tenho de igualar ou superar as novas condições.
Ele Ao início tudo parece um desastre, mas com o tempo é normal que as coisas voltem ao sítio.
Pausa. Ela acaba o café do copo de plástico e deita-o no cesto
dos papéis. Ela Eu não devia beber tanto café. E o pior é que se o faço não
é porque necessite mas porque gosto muito. Pausa.Ele Lembro-me de que, no seu concerto, antes de começar,
ofereceram ao público uma chávena de café.Ela Sim, foi ideia minha. E no fi nal um copo de vinho, para
premiar os que aguentaram o concerto todo.Ele Não vi ninguém que tivesse ido embora a meio.Ela Essas coisas não eram mais do que pormenores para agra-
dar aos amigos. Ele Antes de começar, o apresentador disse uma coisa muito
bonita. Disse que a música é uma revelação mais elevada que
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a ciência ou a fi losofi a.Ela Sim, é uma frase de Beethoven. Ele De Beethoven?Ela Essa apresentação foi feita por um amigo da família que
quis enfeitar um bocado. Pausa.Ele Desculpe, mas não tocou bem nesse dia? Ela Sim, toquei bem. Acho que não podia ter tocado melhor. Pausa.Ele Vai dar outro concerto? Ela Não. Esse foi o concerto de fi nal de curso e chega. (Pausa
longa.) Não sente um mau cheiro? Ele Vem dos sanitários. Às vezes, quando chove, fi cam a chei-
rar mal. Ela Não estão limpos? Ele Sim, mas o problema não é esse.Ela Isto não acontece com os sanitários lá de cima. Ele É do caruncho. De certeza que lá em cima não há caruncho.Ela Lá em cima não há nenhum móvel que seja realmente de
madeira. Estes devem ser os únicos móveis que restam da antiga fábrica. Não preferia trabalhar lá em cima? Assim já tinha um telefone. Porque é que ainda não lhe instalaram um?
Ele Não sei. Pausa. Ela olha para o relógio de pulso.Ela Já devem estar a chegar os fornecedores. Espero que o
inglês chegue para nos entendermos. Pausa.Ele Desculpe, mas uma vez ouvi a sua mãe dizer que aos
clientes é preciso ir recebê-los à porta, mas com os fornece-dores o melhor é deixá-los um bocado à espera.
Ela A minha mãe disse isso?
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Ele E até vi como aplicava essa regra. Pausa.Ela E quanto tempo fazia a minha mãe esperar os fornece-
dores?Ele De um quarto de hora a vinte minutos. O tempo que de-
morasse a fumar dois ou três cigarros.Ela A minha mãe fumava aqui? Ele Às vezes. Ela Você também fuma? Ele Não, mas não me incomoda que os outros fumem. Pausa longa. Ela (olha pela janela) Estão a chegar. Ele São os fornecedores? Ela São. (Pausa.) Bem, deseje-me boa sorte. Ela sai. Pausa. Escuro.
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O mesmo escritório. Ele está sentado a trabalhar e Ela está
de pé com uma mala ao ombro. É de noite.Ela Ainda a trabalhar? Ele Sim, tenho de acabar este trabalho para amanhã. Pausa.Ela Disseram-me que esteve doente. Ele Sim, eu e a minha mulher apanhámos gripe ao mesmo
tempo. Ela Voltou hoje ao trabalho? Ele Não. Ontem. Ela Sente-se bem, agora? Ele Sim. Obrigado.
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Ela E a sua mulher?Ele Ainda está em casa, mas já está melhor. Pausa.Ela Tem muito trabalho atrasado?Ele Muito não.Ela Precisa que alguém o ajude, por uns dias?Ele Não. Não vou tardar a ter tudo em dia. Obrigado. (Pausa.)
Desculpe. Não lhe perguntei se se queria sentar.Ela Obrigada, mas tenho de ir andando. Já é muito tarde. Já
não está cá ninguém para além de si e do vigilante.Ele Eu também já estou a acabar. Pausa.Ela Tem carro? Ele Sim, tenho, mas vim de autocarro.Ela A esta hora ainda há autocarros que venham até aqui?Ele Às dez passa o último. Ela Deve ser muito cansativo vir trabalhar de autocarro. Ele Já estou habituado.Ela Vem todos os dias de autocarro? Ele Venho. Ela Quanto tempo demora da paragem até aqui? Ele Um quarto de hora. Ela Eu pensava que a paragem era mais perto. Ele: De qualquer maneira, eu caminho devagar. Pausa.Ela Bem, boa noite.Ele Quer que a acompanhe até ao carro?Ela Não vale a pena. Está estacionado à porta. E também ainda
lá está o segurança. Ainda que não lhe conheça a cara. Man-dam um segurança diferente todas as semanas, não entendo porquê. Gostava que fosse sempre o mesmo.
Ele Então tem de pedir que seja sempre o mesmo.
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Ela Já fi z isso, mas por enquanto continua tudo na mesma. Se calhar devia mudar de empresa de segurança. (Pausa.) Bem, boa noite.
Ele Boa noite. Ela sai. Pausa. Escuro.
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Na escuridão ouve-se um altifalante que diz: «Atenção, devi-do a uma emergência, solicita-se a todo o pessoal que abando-ne imediatamente o edifício. Para vossa segurança, utilizem as escadas e evitem usar os elevadores e o monta-cargas. Obri-gado.»
Pausa longa. Ilumina-se o mesmo escritório. Ele e Ela estão
sentados em lados opostos da mesa.
Ela Porque é que não desceu como toda a gente, esta ma-nhã? O facto de trabalhar sozinho não signifi ca que se pos-sa abster de cumprir as normas de segurança como o resto do pessoal.
Ele Desculpe. Lamento muito. Pausa.Ela Dentro de seis meses vai haver outra simulação de emer-
gência. Digo-lho para que não seja apanhado desprevenido. (Pausa.) Tinha outra coisa para lhe dizer mas esqueci-me. Eu, se não aponto, esqueço-me de tudo.
Pausa longa.Ele Peço desculpa, mas esta manhã não desci, porque não
ouvi o aviso. Neste andar, o altifalante não se ouve bem, e também tinha tampões nos ouvidos para não ouvir o baru-lho de baixo.
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Ela Usa tampões nos ouvidos para trabalhar? Ele Só quando o barulho de baixo é muito.Ela E não sabia que hoje havia uma simulação de emergência?Ele Não. Ela O chefe do pessoal não lhe disse nada? Ele Não. Pausa.Ela Na verdade, esta simulação não correu nada bem. Ninguém
levou a sério, talvez porque era a primeira vez que se fazia e toda a gente foi prevenida. Até me senti um bocado ridícula.
Ele Ridícula?Ela Fui a primeira a chegar à rua. Pensei que devia dar o exem-
plo e fi quei na rua não sei quanto tempo à espera que os ou-tros saíssem.
Ele Que chatice.Ela É evidente que ninguém leva a sério o perigo até ao mo-
mento em que o tem pela frente. Pausa.Ele Talvez não lhes agrade mostrar que têm medo. Ela A quem?Ele Aos trabalhadores.Ela Medo de quê?Ele Do perigo. E por isso fazem de conta que não dão impor-
tância ao exercício.Ela Nesse caso, o que é que se podia fazer? Não voltar a repe-
tir nenhuma simulação? Ele Não sei. Pausa.Ela Da próxima vez, não aviso ninguém antecipadamente, a
ver o que acontece, quero ver como reagem. (Pausa longa.) Não consigo lembrar-me do que tinha para lhe dizer.
Pausa.
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Ele Vou buscar um café para mim, se quiser trago-lhe um e, entretanto, pode ser que lhe venha à cabeça. (Levanta-se.) Quer açúcar?
Ela Sim, mas não se incomode com isso, eu tenho de voltar lá para cima.
Ele Não é incómodo nenhum. Ele sai. Pausa longa. Ela levanta-se. Escuro.
6
O mesmo escritório. Chove no exterior. Desde o início Ela
está de pé, por trás da mesa, com uma mala ao ombro, lendo
umas folhas de papel escritas à mão que estão em cima da
mesa. Depois de um momento, senta-se na mesma cadeira da
cena 5. Pausa longa. Entra Ele.Ele Desculpe, está à espera há muito tempo? Ela Não. Cheguei há pouco. Ele Lamento tê-la feito esperar. Ela Como tem andado? Ele Bem. Ele pega nas folhas escritas à mão que estão em cima da
mesa e guarda-as numa gaveta enquanto Ela fala.
Ela Não sei se sabe, mas casei-me há dois meses. Cheguei da viagem de núpcias anteontem. Estivemos uma semana fora.
Ele Sim, o chefe do pessoal já me tinha falado do seu casa-mento.
Ela Tivemos de adiar a viagem de núpcias umas semanas, por causa dos nossos trabalhos.
Ele Parabéns. Ela Na verdade, correu tudo muito bem.
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