View
217
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 1
Maria Emília Lopes Freire
Doutoranda em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil. Mestre
em Desenvolvimento Urbano (2015) e Graduada em Arquitetura e Urbanismo (1983) ambos pela
Universidade Federal de Pernambuco. Servidora do Instituto Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. E-mail:
melopesfreire@gmail.com. Fone: 55-81-988460600
Resumo
Algumas estruturas remanescentes das ferrovias em Pernambuco, tão vastamente representadas
em fotografias, não mais existem em sua completude formal, frente ao processo de desindustrialização e
aos processos de “reestruturação urbana” que as consideram como espaços esvaziados de historicidade.
Diante dessas razões, tal patrimônio tem passado por um processo de valoração cultural demandado pela
Lei Federal no. 11.483/2007, como portador de referência à “memória ferroviária” brasileira. Investiga-se
neste artigo: em que medida o uso da fotografia como fonte histórica no processo de valoração cultural
pode contribuir na interpretar das estruturas ferroviárias do presente, a fim de identificar os testemunhos
que se pretende preservar? Para tanto, este artigo relata a experiência de valoração cultural a qual utilizou
a fotografia como fonte documental: as oficinas ferroviárias em Jaboatão dos Guararapes-PE. O arranjo
conceitual revelou elementos do passado não mais presentes, porém essenciais para compreender e
identificar aquele complexo enquanto bem de interesse patrimonial.
Palavra-chave: Fotografia. Preservação. Valoração Cultural. Patrimônio Ferroviário.
Abstract
Some remaining structures of the railways in Pernambuco, as widely represented in photographs,
no longer exist in their formal completeness, due to the deindustrialization process and the process of
"urban restructuring" that consider as emptied of historicity spaces. Given these reasons, this heritage has
undergone a process of cultural value demanded by Federal Law. 11.483 / 2007, as a reference carrier to
brazilian " Railway Memory ". It is investigated in this article: until what extent the photography used as a
historical document in the cultural valuation process can contribute to the interpretation of the railway
structures of the present in order to identify the elements that you pretend to preserve? Therefore, this
article talks about the cultural value of experience using photography as a documentary resource: the
railway workshops in Jaboatão dos Guararapes-PE. The conceptual arrangement revealed elements of the
past that no longer exist, but essential to understand and identify that complex as well of heritage interest.
Keyword: Photography. Preservation. Cultural Valuation. Heritage Railway.
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 2
Introdução
O processo de construção das ferrovias brasileiras foi vastamente registrado nos contextos –
econômico, cultural, social, político, tecnológico –, por diversos documentos históricos produzidos ao longo
do tempo, dentre eles, a fotografia. Em Pernambuco, a Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA) acumulou um
significativo acervo fotográfico, tanto no que diz respeito ao conteúdo das informações nas imagens como
importante registro qualitativo dos fatos, quanto ao volume desse acervo, que expressa a diversidade
temática envolvendo as ferrovias.
Essa coleção fotográfica, constituída por 2.726 unidades documentais, vem passando por um
processo de arrolamento e conservação preventiva1 em seu lugar de guarda – o Escritório da Inventariança
da RFFSA em Recife/PE—, processo esse realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), em atendimento a Lei no. 11.483/2007.2 Os resultados parciais desse trabalho revelaram
um significativo acervo de imagens e uma diversidade temática sobre o processo de implantação, expansão
e funcionamento das ferrovias em Pernambuco e no Nordeste brasileiro. Até o momento, foram
contempladas, nesse processo, 1.692 unidades documentais produzidas por técnicos da RFFSA – durante
suas viagens de inspeção3–, e por alguns fotógrafos ferroviários, como Alcindo de Souza4
Os temas recorrentemente registrados estão relacionados à dimensão histórica da memória das
ferrovias – como arquitetura ferroviária; urbanismo ferroviário; tecnologia aplicada aos equipamentos de
sinalização e comunicação, material rodante, infraestrutura e superestruturas ferroviárias; paisagens,
dentre outros –, e à dimensão social dessa memória – como rotinas do trabalho da classe ferroviária,
cotidiano dos ferroviários e de seus familiares, o modo de fazer, eventos sociais, etc. Os registros referem-
se a fatos ocorridos, em grande parte, no Estado de Pernambuco – como nas cidades de Palmares, Caruaru,
Jaboatão dos Guararapes, Recife, Nazaré da Mata, Garanhuns, Cabo e etc. –, e em outros Estados a
exemplo do Rio Grande do Norte, citando a Cidade de Natal, e Alagoas a Cidade de Maceió.
, no período entre
1940 a 1980.
No presente, algumas das estruturas remanescentes do primitivo sistema ferroviário em
Pernambuco, tão vastamente representadas nessas imagens, não mais existem em sua completude no que
tange a seu aspecto formal. Alguns fatores contribuíram para esse fato, a exemplo do processo de
desindustrialização – que levaram à desativação de alguns trechos ferroviários e fechamento de estações –,
e o processo de “reestruturação urbana”— os quais comumente consideravam essas estruturas como
espaços esvaziados da sua historicidade.
Perante tal situação, as Instituições governamentais que tratam das questões relacionadas à
preservação do patrimônio ferroviário vêm adotando ações com vistas à tutela desses bens. Nesse sentido,
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 3
pressupõe-se que as fotografias do passado produzidas e acumuladas pela RFFSA, se utilizadas como fonte
histórica nessas ações de preservação, poderiam revelar elementos até então ocultos que outros
documentos não conseguiriam revelar. Elementos fundamentais para interpretação das estruturas
ferroviárias do passado que chegaram até o presente.
Nesse contexto, o presente artigo traz uma reflexão: em que medida a utilização de fotografias
como documento no processo de valoração cultural dos bens ferroviários trariam em si indícios para
resgatar informações sobre elementos do passado, contribuindo assim para uma compreensão mais ampla
e uma interpretação mais adequada das estruturas ferroviárias do passado que chegaram até o presente?
Para tanto, analisa-se o processo de reconhecimento de valor do complexo das oficinas
ferroviárias situado em Jaboatão dos Guararapes-PE, em razão dele ter sido objeto de valoração cultural,
no qual o uso da fotografia como documento contribuiu para maior compreensão e interpretação das
estruturas do passado ainda presentes e para identificação dos elementos de interesse patrimonial.
Para se conhecer os acontecimentos do passado, David Lowenthal (1998) enuncia três caminhos:
memória, história e fragmentos. O autor esclarece que:
Memória e outra, e suas fronteiras são tênues. [...] a memória é inevitável e indubitável prima-facie: a história é contingente e empiricamente verificável. Ao contrário da memória e história, fragmentos não são processos, mas resíduos de processos. Fragmentos feitos pela história são processos de introspecção [...] uma envolve componente do homem são chamados artefatos [...] Ambos [fragmentos e artefatos] atestam o passado biologicamente, por envelhecimento e desgaste e, historicamente, por formas e estruturas anacrônicas (LOWENTHAL, 1998, p. 66).
Nesta perspectiva, supõe-se que é possível recuperar a consciência dos acontecimentos do
passado relacionados a memória visual das estruturas ferroviárias, percorrendo-as e compreendendo-as no
presente a partir da interpretação do conteúdo latente das fotografias, associada a outros suportes
documentais escritos e orais, a fim de identificar elementos que deveriam ser preservados para as gerações
futuras, bem como para a parcela da população presente que os recebem.
Segundo Kossoy (2012, p. 41), a fotografia é “[...] a imagem, registro visual fixo de um fragmento
do mundo exterior, conjunto dos elementos icônicos que compõem o conteúdo: as informações de
diferentes naturezas nele gravadas [...]”. Ressalta ainda o mesmo autor que as fotografias “[...] captadas de
diferentes contextos sociogeográficos têm preservado a memória visual de inúmeros fragmentos do
mundo, dos seus cenários e personagens, dos seus eventos contínuos, de suas transformações
ininterruptas”. (KOSSOY 2012, p.29).
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 4
Surge o desafio em decifrar, adequadamente, essa mensagem visual oferecida no fragmento do
passado. Neste sentido, Ivan Lima (1988) aponta três caminhos possíveis: a “percepção” entendida como
rápida e meramente ótica; a “identificação” que consiste na identificação que pode ser mental ou ótica dos
elementos que compõem a imagem; e, por fim, a “interpretação” que é meramente mental e varia de
acordo com cada leitor.
Para tanto, o artigo se desenvolve em duas etapas seguidas das considerações finais. A primeira
aborda reflexões sobre o uso da fotografia enquanto documento. A segunda apresenta uma análise crítica
sobre o uso da fotografia como documento na abordagem metodológica de compreensão e identificação
das estruturas ferroviárias, etapa primeira do processo de valoração cultural de um bem. Assim, apresenta-
se a experiência do complexo das oficinas ferroviárias em Jaboatão dos Guararapes. Nas considerações
finais, lançam-se reflexões sobre os limites e as possibilidades do uso da fotografia como documento
testemunhal no processo de preservação.
A fotografia como documento | uma reflexão possível
A fotografia, resultante da ação do homem, desde os primórdios da sua existência já mostrava o
seu potencial de uso por sua capacidade em documentar fatos de natureza social, históricos, científicos,
cultural e etc. Registrar tais fatos implica em preservação determinados fragmentos do passado e, desse
modo, preservar memórias visuais, simbólicas e afetivas de determinado grupo social. Tais registros
permitem ainda, por meio de estudos comparativos associados a outras fontes históricas, revelar a
evolução cronológica dos lugares e das paisagens de determinado território.
Entretanto, Kossoy (2012) chama a atenção de que, “[...] apesar do amplo potencial de
informação contido na imagem, ela não substitui a realidade tal como se deu no passado. Ela apenas traz
em sua superfície, informações visuais acerca de um determinado tema, selecionado e organizado estética
e ideologicamente.”
Nesse sentido, apesar de todo o esforço em armazenar lembranças do passado nas imagens,
sempre haverá dúvidas sobre a realidade dos fatos passados porque esta é irrecuperável na sua totalidade.
Contudo, mesmo conhecendo essas limitações “[...] elas tendem a levar o receptor a compreendê-las como
expressão de toda uma realidade.” (KOSSOY, 2012, p. 126).
Esta realidade, mais cedo ou mais tarde, será enfrentada por pesquisadores que utilizam as fontes
fotográficas do passado em suas investigações. Parece não haver outro caminho a ser percorrido a não ser
interpretar tal fragmento a partir do seu momento histórico, buscando entendê-lo associado a outras
fontes histórias – orais e escritas.
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 5
LE Goff (1985) discutindo a relação entre a história e memória, descreve os progressos da
memória escrita e figurada destacando, dentre outros meios, a fotografia como uma das manifestações
mais significativas da memória coletiva que apareceram no século XIX e início do século XX. Tal afirmação é
explicada pelo autor no entendimento de que a fotografia por ter revolucionado “[...] a memória:
multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo
assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica.” (LE GOFF, 1985, p. 39 apud KOSSOY, 2012,
p. 164).
A valorização da fotografia como documento se dá em razão dela oferecer registros visuais de
artefatos do passado, conformando-se, sobretudo, como portadora de importantes informações que
permitem interpretar no presente acontecimentos e estruturas espaciais do passado. Questão a ser
discutida na segunda parte deste artigo, centrando-se no caso do complexo das oficinas ferroviárias
situadas em Jaboatão.
Kossoy (2012, 32) lembra que apesar da capacidade de armazenamento de conhecimento e
informação carreada pela fotografia “[...] existiu um certo preconceito quanto à utilização da fotografia
como fonte histórica ou instrumento de pesquisa.” Duas razões para isso são explicadas pelo autor. A
primeira, de ordem cultural, é porque “[...] existe um aprisionamento multissecular à tradição escrita como
forma de transmissão do saber [...]”. A segunda diz respeito à expressão, ou seja, as informações não são
dadas diretamente, é necessário que o pesquisador se debruce sobre o documento analisando-o e
interpretando-o para então extrair no seu conteúdo as informações que precisa. (KOSSOY 2012, p.30).
Contudo, Kossoy (2012, p. 33) destaca que na década de 1990 – com a Revolução documental e o
alargamento do entendimento do termo documento –, a fotografia passou a ser reconhecida como fonte
documental e, despertado com isso debates e reflexões sobre o seu alcance e sobre o seu valor. Até então,
destaca o autor, a fotografia não havia alcançado o status de documento “[...] que no sentido tradicional do
termo, sempre significou o documento escrito, manuscritos, impresso na sua enorme variedade.” (KOSSOY,
2012, p. 30).
Desse mesmo entendimento comunga LE Goff (1990), quando ressalta que a partir do
alargamento do entendimento do termo documento, tudo que estivesse relacionado à produção do
conhecimento sobre o homem, em um determinado tempo e espaço, poderia ser entendido como fonte
documental, inclusive as fotografias.
O desafio em utilizar a fotografia como documento histórico vai além do seu reconhecimento
como tal. Implica, sobretudo, em decifrar a mensagem visual oferecida pelo conteúdo ali latente, como
explica Miriam Moreira Leite (1996, p. 83) – “A decifração de uma mensagem visual é uma tarefa sem fim,
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 6
que pode ser iniciada pelo conteúdo manifesto, uma unanimidade de compreensão, mas precisa levar em
conta o conteúdo latente e as interpretações possíveis.”.
Nesse sentido, Ivan Lima (1988) oferece alguns procedimentos metodológicos para leitura das
fotografias, conforme já enunciados: percepção, identificação e interpretação. Tais procedimentos
orientam a leitura dos conteúdos das imagens na busca por informações que possam revelar elementos
elucidativos para responder as questões investigadas.
Dos caminhos citados, Lima (1988) destaca a preocupação quando a multiplicidade e
subjetividade das interpretações:
"[...] A interpretação é uma ação mental permanente. É nesse estado que se manifesta o caráter polissêmico da foto. De uma forma geral, as pessoas fazem a mesma leitura, mas cada uma interpreta de sua forma, em função de sua idade, do seu sexo, da sua profissão, de sua ideologia, enfim, do seu saber [...].” (LIMA, 1988, p. 59).
É certo que a fotografia, por meio da interpretação do seu conteúdo, mesmo considerando o seu
caráter polissêmico, mostra o que é visível, a materialidade do fato, mas, sobretudo, leva o observador às
memórias do passado, mesmo de um passado recente.
“[...] fotografia é memória e com ela se confunde. Fonte inesgotável de informação e emoção. Memória visual do mundo físico e natural, da vida individual e social. Registro que cristaliza, enquanto dura, a imagem – escolhida e refletida – de uma ínfima porção de espaço do mundo exterior.” (Kossoy, 2012, p. 168).
Portanto, a documentação fotográfica mostra-se como fonte privilegiada a ser utilizada nos
processos de investigação do patrimônio cultural, como será discutido a seguir, por oferecer informações
não mais presentes ou ocultas, algumas vezes não encontradas em documentação escrita.
O uso da fotografia no processo de interpretação do patrimônio ferroviário | o complexo das oficinas
ferroviárias em Jaboatão
O complexo das oficinas ferroviárias de manutenção e reparo de carros de passageiros e vagões
faz parte da Estrada de Ferro Central de Pernambuco, uma das ferrovias formadoras da Rede Ferroviária
Nordeste (RFN). Situado na cidade de Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, ocupa uma área de
aproximadamente 42.000 mil metros², sendo formado por diversas edificações – oficina de carro de
passageiros, oficina de vagões, serrarias, almoxarifados, serralharias, seção de pintura, seção de mecânica,
administração, restaurante, etc. Segundo Estevão Pinto (1948, p. 143) era para lá que “[...] convergia a
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 7
maior parte dos serviços (ferroviários) feitos no Barbalho, no Arraial, em Palmares e em Cabedelo [...]”. Tal
citação expressa à importância funcional e estrutural desse complexo no contexto da RFN.
Em 2011 esse complexo de oficinas foi desativado e cedido ao Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (SENAI) para instalação de uma Escola Técnica. Nessa época teve seu valor cultural reconhecido
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como portador de referência à memória
ferroviária brasileira com base na Lei 11.483/2007.
O Parecer Técnico desenvolvido por técnico do IPHAN5
Esse Parecer estruturou-se em três etapas: a) compreender e interpretar as estruturas ferroviárias
do passado ainda presente e suas relações socioespaciais; b) identificar os elementos remanescentes
capazes de serem elucidativos da dimensão social e histórica da memória e, portanto, de interesse
patrimonial; c) e, por fim, elencar os valores atribuídos a esses elementos pela parcela da comunidade que
o recebia.
– um dos documentos que compõem o
processo de valoração cultural –, apontou no complexo das oficinas valores consubstanciados nos atributos
materiais portadores de sentidos e significados para as gerações que o construiu e o vivenciou, bem como
para a parcela da população presente que o recebia.
Para tanto, este artigo analisa a etapa primeira do Parecer Técnico de valoração cultural a fim de
trazer duas reflexões críticas: em que medida o uso da fotografia como documento na abordagem
metodológica de compreensão e identificação das estruturas ferroviárias remanescente do complexo
examinado trouxe em si informações sobre a memória histórica e social daquele lugar? Em que medida o
uso da fotografia para esses fins contribuiu na identificação dos testemunhos que se pretendia preservar?
O Parecer esclarece, logo no início, que a base legal da análise é o instrumento da “Memória
Ferroviária” (Lei no. 11.483/2007), termo entendido como sendo:
“[...] todos os suportes e fontes de informações sobre o contexto ferroviário brasileiro, sobretudo os de ordem documental-bibliográfica, iconográfica, histórica (incluindo fontes de história oral e ruínas de testemunhos), arquitetônico-urbanística (tanto no plano interno a cada complexo ferroviário – organização espacial – quanto em relação à implantação na paisagem da cidade) e sociológica (relações de produção, de trabalho, de vizinhança – micro e macrossocial – de parentesco)” (Iphan, 2010a, p. 56).
Nesta Perspectiva, percebe-se que o estudo apropriou-se do conceito de memória e de história
para conduzir a investigação de compreensão sistêmica das estruturas remanescentes das oficinas.
Se for correta, como parece, a observação de David Lowenthal (1998) ao escrever que a
consciência dos acontecimentos do passado passa por três caminhos – memória, história e fragmentos –,
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 8
não é difícil então compreender que essas dimensões conformaram-se como fio investigativo do processo
de valoração cultural do complexo das oficinas ferroviárias. Interpretando tais conceitos no objeto
examinado pelo Parecer, é possível entender que: a) a memória foi vista como um caminho para evocar,
reviver fatos do passado vivenciados naquele lugar, para em seguida interpretá-los nas estruturas
presentes; b) a história foi utilizada como um caminho para apreensão sistêmica da evolução espacial do
conjunto no tempo, a qual guiou a investigação desse passado; c) e, a fotografia foi vista como documento,
mesmo entendida como fragmentos do passado (KOSSOY, 2012), caminho possível para reconstituir a
memória visual e a história do bem. Memória, história e fotografia (fragmentos do passado) se
conformaram, portanto, como conceitos norteadores para identificar elementos capazes de transmitirem
conhecimento sobre a memória social e histórica do complexo, sendo por isso, elementos que deveriam ser
preservados para a geração futura e para a parcela da população presente que o recebia. Nenhum desses
conceitos foi examinado separadamente, mas sim do ponto de vista do tempo e do espaço, afinal o retorno
ao passado para compreender as transformações ocorridas nessas estruturas ferroviárias foi caminho
decisivo para esclarecer os elementos que, bem ou mal, chegaram ao presente como documentos
portadores de valores e, portanto, deveriam ser tutelados.
O procedimento metodológico adotado para utilizar a fotografia como documento seguiu o
entendimento de Kossoy (2012, p. 34), quando esse explicita que:
“As fontes fotográficas são uma possibilidade de investigação e descoberta que promete frutos na medida em que se tentar sistematizar suas informações, estabelecer metodologias adequadas de pesquisa e análise para decifração de seus conteúdos e, por consequência, da realidade que os originou.”
Para leitura do conteúdo das informações das fotografias o Parecer Técnico fundamentou-se nas
dimensões oferecidas por Ivan Lima (1988) – percepção, identificação e interpretação. A percepção e
identificação tinham como objetivo selecionar as fotografias que pudessem, no processo de interpretação
do seu conteúdo revelar fragmentos do passado e contribuir para compreender a lógica funcional6 do
complexo. Para tanto, era necessário entender e interpretar, minimamente, os fluxos de circulação
percorridos pelo material rodante (carros de passageiros, vagões, auto de linha etc.) desde a chegada até a
liberação do equipamento para o tráfego. Com vistas a alcançar tais objetivos, primeiramente as imagens
fotográficas foram agrupadas em dois segmentos, embora sua análise tenha se dado de maneira
entrelaçada: as representativas da dimensão social e as representativas da dimensão histórica da memória
das oficinas. No segundo momento, os conteúdos das informações foram interpretados e sistematizados
com vistas a subsidiar o processo de identificação e compreensão das estruturas do presente.
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 9
No processo de seleção das imagens relacionadas à dimensão social da memória foram escolhidas
aquelas que registravam a rotina do trabalho no complexo das oficinas como atividades vinculadas: a) às
funções desenvolvidas pelos ferroviários na serraria a exemplo da confecção de lastro de vagões e carros
de passageiros (fig. 1); à seção de produção e conservação dos rodeiros dos carros de passageiros e dos
vagões (fig. 2); e, na oficina de manutenção e reparo de material rodante (fig. 3); b) às vivências e
experiências compartilhadas entre os ferroviários, seus familiares e uma parcela da sociedade – como o
desfile promovido pela Escola Souza Brandão da RFFSA onde estudavam os filhos dos ferroviários (fig. 4) e a
apresentação da banda musical de Jaboatão formada por ferroviários (fig.5).
Figura 1. Atividades desenvolvidas pelos ferroviários na serraria do complexo das oficinas em Jaboatão. Observa-se a arquitetura
ferroviária, mobiliário, layout dos fluxos no espaço e o vestuário dos trabalhadores. Fonte: acervo da RFFSA, s/d.
Figura 2. Atividades desenvolvidas na seção de produção e manutenção de rodeiros das oficinas em Jaboatão. Fica evidente a tipologia arquitetônica da oficina, os tipos de rodeiros o que remete a diversidade do material
rodante existente à época. Fonte: acervo da RFFSA, s/d.
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 10
Figura 3. Grupo de ferroviários trabalhando nas oficinas em Jaboatão. Observa-se a tipologia arquitetônica,
o vestuário e equipamentos de segurança utilizados à época. Fonte: acervo da RFFSA, s/d.
Figura 4. Desfile promovido pela Escola Souza Brandão da RFFSA onde estudavam os filhos dos ferroviários.
Fonte: acervo da RFFSA, 1962.
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 11
Figura 5. Apresentação da banda musical de Jaboatão dos Guararapes formada por ferroviários. Fonte: acervo da RFFSA, s/d.
Por sua vez, na seleção das imagens relacionadas à dimensão histórica da memória do complexo
das oficinas foram escolhidas aquelas que deixaram registros sobre os substratos materiais de suporte para
desenvolvimento das rotinas do trabalho daquele lugar. Ou seja, foram selecionadas as imagens (figs. 6 e 7)
que evocavam elementos físicos do passado como: elementos urbanos que levam ao entendimento da
inserção do complexo na dinâmica da Cidade, a exemplo do rio, praça e paisagem; o entendimento mais
amplo dos edifícios, das suas articulações socioespaciais e do seu funcionamento, por meio do desenho
urbano vinculado à implantação do conjunto como um todo; a compreensão mais ampla das funções e dos
fluxos do complexo por meio da revelação de elementos do passado não mais presentes nas estruturas do
presente como o girador e o traçado das linhas férreas, dentre outros, que permitiam o deslocamento,
rápido e eficiente, dos pesados vagões e carros de passageiros em madeira de uma oficina a outra, ou de
uma seção a outra a exemplo do registro de um vagão tipo “gondola” identificado com a logomarca da
RFFSA.
Fazer uso da fotografia como documento, mas associadas outras fontes documentais – caminho
seguido pelo Parecer Técnico –, possibilitou que as estruturas ferroviárias do presente fossem
compreendidas sistemicamente e de maneira mais ampla, revelando a dimensão do trabalho humano
naquele patrimônio. Em outras palavras, a interpretação do conteúdo da fotografia permitiu ir além da
compreensão da dimensão material daquele complexo, em geral restringindo-se aos bens vinculados à
produção arquitetônica. Sobretudo permitiu que a dimensão social e histórica da memória fosse o fio
condutor dessa investigação.
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 12
Figura 6. Complexo das oficinas ferroviárias em Jaboatão. Observa-se que diversos edifícios compõem esse complexo como estação (1), complexo administrativo e armazéns de carga e de bagagem (2), Administração (3), serraria (4), serralharia (5), oficinas de reparo de carro de passageiro e oficinas de vagões (6), pátio de manobra (7), restaurante e área de lazer (8), rio
Jaboatão (9), Praça da Cidade (10). Fonte: acervo do engenheiro ferroviário Raimundo Oliveira, década de 1960.
Figura 7. Pátio das oficinas destacando o girador que permitia o deslocamento do material rodante e a articulação dos fluxos
operacionais entre os diversos edifícios do complexo. Fonte: acervo da RFFSA, s/d.
Isso fica evidente quando se constatou que a utilização das fotografias produzidas e acumuladas
pela RFFSA levou a produção de conhecimentos acerca do passado histórico do bem e da sua memória
visual, como: atividades sociais e educativas; estilo arquitetônico ferroviário (tipologia, esquadrias,
estruturas de coberta, material de revestimento e mobiliário); layout dos fluxos no espaço; ofícios
desenvolvidos pelos ferroviários e as ferramentas e matéria prima utilizada; produtos lá fabricados, como
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 13
os rodeiros e os carros de passageiros em madeira; vestuário usado pelos trabalhadores; equipamentos de
segurança individual; equipamentos de manobra, dentre outros.
A reconstituição da memória visual desse artefato industrial compreendido em seu
contexto socioespacial por meio da fotografia, apoiada por outras fontes documentais, contribuiu para
identificar os elementos mais representativos da sua lógica funcional e para apontar as estruturas que
deveriam ser preservados.
Como resultado, o Parecer Técnico deixa claro que aquele lugar representa um dos marcos na
história da ferrovia no Nordeste por ter se conformado enquanto uma centralidade7
da Rede Ferroviária
Nordeste. Entende-se o termo centralidade como lugar capaz de comportar uma expressiva concentração
de fixos (edificações, linhas férreas, equipamentos, etc.) e uma significativa intensidade de fluxos
polarizados pelas funções ali desempenhadas (serralharia, serraria, reparo e montagem de carros de
passageiros e vagões de carga, etc.). E, por assim ser, o complexo das oficinas deveria ser preservado como
espaço dotado de uma materialidade histórica capaz de revelar aspectos das distintas práticas sociais e
operativas ocorridas ao longo da história.
Considerações finais
Longe de esgotar as reflexões sobre o uso das imagens fotográficas nos processos de identificação
e compreensão de um bem cultural. O propósito é lançar luz sobre a importância da fotografia na
perspectiva identitária e na reconstituição da memória social e histórica de um lugar de interesse
patrimonial.
O uso das fotografias do passado no processo de valoração cultural das estruturas ferroviárias em
Jaboatão possibilitou interrogar as experiências temporais da história, compreendê-las e percorrê-las no
presente e colocá-las em relação com o futuro. Nesse contexto, é possível afirmar que a fotografia se
mostrou suporte essencial como ponte entre passado e presente na reconstituição da memória visual do
funcionamento e das estruturas daquele lugar. Permitiu ainda ampliar a percepção e a identificação dos
elementos que se pretendia preservar. Isto ficou evidente quando as informações resultantes das
interpretações do conteúdo das fotografias revelaram elementos do passado não mais presentes ou
ocultos, mas essenciais para compreender e identificar aquele complexo enquanto bem de interesse
patrimonial.
O uso da fotografia do passado na interpretação das estruturas ferroviárias do presente: o complexo das oficinas em Jaboatão dos Guararapes-PE.
ANAIS do 5º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus Fotografia e Memória 14
Bibliografia
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. 4ª Edição- São Paulo, Ateliê Editora, 2012. http://pt.slideshare.net/ValdriaSouza/fotografia-e-historia Acesso em 02.04.2016.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP, 1990.
LEITE, Miriam Moreira. Imagem e educação. In: SEMINÁRIO PEDAGOGIA DA IMAGEM NA PEDAGOGIA. Anais... Rio de Janeiro: UFF, 1996.
LIMA, Ivan. A Fotografia é a sua linguagem. Rio de Janeiro: Editora Espaço e Tempo, 1988.
LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Revista projeto História, SP, n. 17, 1998. Tradução: Lúcia Haddad, Revisão técnica: Mariana Maluf.
PINTO, Estevão. História de uma Estrada de Ferro do Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1949.
Notas 1 Trabalho realizado pelo IPHAN por meio da empresa PYX CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO LTDA (Contrato no. 08/2013). O processo incluiu as etapas de diagnóstico, higienização, conservação e acondicionamento de parte do acervo. 2A Lei no. 11.483/2007 extinguiu a RFFSA e determinou ao IPHAN preservar e difundir a Memória Ferroviária por meio de diversas ações, dentre elas, a construção e organização de arquivos, coleções e acervos documentais. 3 Fiscalização realizada por ferroviários para acompanhar a realização dos serviços de infraestrutura e superestrutura das ferrovias. 4 Ver o Livro de Alcindo de Souza intitulado Antologia ferroviária do Nordeste. Editora Bagaço, Recife, 1988. 5 Elaborado pela autora deste artigo enquanto ferroviária e arquiteta e urbanista atuando no IPHAN. 6 Para melhor entendimento do termo “compreensão da lógica funcional” ver dissertação da autora intitulada – Patrimônio Ferroviário: por uma compreensão da sua lógica funcional. Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Desenvolvimento Urbano. Recife, 2015.
7 Para melhor entendimento do termo centralidade no contexto das ferrovias, ver a dissertação da autora intitulada – Patrimônio Ferroviário: por uma compreensão da sua lógica funcional. Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Desenvolvimento Urbano. Recife, 2015.
Recommended