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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6Cadernos PDE
OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
O cinema como linguagem e expressão artística: uma nova
forma de aprender e dizer
Silvia Gabriela Alves de Albuquerque Queluz1
Soraya Sugayama2
RESUMO: O presente artigo vem apresentar as experiências desenvolvidas no PDE – Programa de
Desenvolvimento Educacional - ao longo de aproximadamente 15 meses de pesquisa, discussão de conceitos e práticas, da elaboração de propostas de trabalho pedagógico e aplicação do Projeto O cinema como linguagem e expressão artística: uma nova forma de aprender e dizer, que foi desenvolvido para os estudantes do 9º ano noturno, do Ensino Fundamental, do Colégio Estadual Hildebrando de Araújo. O projeto surgiu com o objetivo de propiciar a experiência do cinema na Escola, como um elemento motivador e integrador diante de uma escola “pouco atrativa”, mas que vem procurando formas de se adequar às transformações tecnológicas e às consequências decorrentes dessas mudanças no comportamento dos estudantes e, também, nas formas de ensinar e aprender. Esse processo de repensar a escola em sua dimensão prático-metodológica e de propor um projeto inovador trouxe um desafio muito grande, não só para mim, enquanto professora, como também para os estudantes e para a escola. Contudo, diante de uma realidade complexa, o trabalho desenvolveu-se muito bem em algumas etapas as quais destacarei, mas também, algumas que não ocorreram conforme planejado, gerando novas reflexões a cerca do lugar em que essa escola está inserida no contexto histórico-social.
PALAVRAS-CHAVE: Linguagem. Cinema. Análise do Discurso. Vídeo com celular.
INTRODUÇÃO
O PDE - Programa de Desenvolvimento Educacional – desenvolvido em
parceria entre a Secretaria do Estado e Educação do Paraná e as IES - Instituições
de Ensino Superior localizadas no Estado – promove, através da formação
continuada, a reflexão sobre a prática docente com o objetivo de superar as práticas
educacionais. Num processo colaborativo, orientado pela orientadora Soraya
Sugayama, vinculada à Universidade Federal do Paraná, desenvolvi a pesquisa
sobre o cinema enquanto linguagem e expressão como forma de estimular os alunos
para a aprendizagem da Língua Portuguesa – disciplina que leciono – bem como
para as outras áreas afins.
As Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa do Estado do Paraná –DCEs –
Língua Portuguesa (SECRETATARIA DO ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ,
1 Professora de Língua da Rede Estadual de Ensino do Estado do Paraná, Pós graduada em
Línguística aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Paraná. Aluna do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE. 2 Profª. Ma. Arq. Soraya Sugayama
2008, p.15), diz que “a escola deve incentivar novas práticas pedagógicas”. Diante
dessa oportunidade de repensar/inovar a prática docente e também motivada pelo
pensamento de Jean-Luc Godard apresentado no curta metragem Je Vous Salue
Sarajevo3, no qual afirma que a cultura mantém, mas arte subverte, ou seja, a arte
como processo de desconstrução e reconstrução de novas formas de pensar e agir,
e, ainda, ao entrar em contato com proposta do cineasta e educador Alain Bergala
que vê o cinema como “um gesto de criação” como arte, como algo que “se
experimenta, se transmite por outras vias além do discurso do saber”4 (BERGALA,
2008, p. 34) é que desenvolvi o projeto O cinema como linguagem e expressão
artística: uma nova forma de aprender e dizer.
O cinema enquanto linguagem possibilita a interação desses pensamentos
pela sua dimensão criadora, artística e multidisciplinar, além de outras qualidades e
características próprias da tecnologia que lhe é inerente. No campo da linguagem,
há muitos pontos que convergem tanto no aspecto da criação do roteiro, como
também nos processos de planejamento e da produção. Essa heterogeneidade do
discurso é apontada nas DCEs – Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná - que
apresenta essa dimensão ao citar FARACO (2002) que diz:
...(as artes visuais, a música, o cinema, a fotografia, a semiologia
gráfica, o vídeo, a televisão, o rádio, a publicidade, os quadrinhos, as charges, a multimídia e todas as formas infográficas ou qualquer outro meio linguageiro criado pelo homem), percebendo seu chão comum (são todas práticas sociais, discursivas) e suas especificidades (seus diferentes suportes tecnológicos, seus diferentes modos de composição e de geração de significados) (FARACO, 2002, p.101 Apud PARANÁ. SEED, 2008, p. 51)
Promover essa interação foi – e tem sido – uma tarefa desafiadora, já que
apresenta um caráter inovador, com técnicas próprias para cada gênero discursivo.
O CINEMA NA ESCOLA
Muitas são as justificativas para trabalhar o cinema como instrumento
pedagógico. O cinema já vem sendo utilizado na escola, mas geralmente é utilizado
como ilustração ou pretexto para discutir um conteúdo. Essa é uma estratégia
interessante e tem muito valor. Mas o que propus nesse projeto foi utilizar o cinema
enquanto linguagem, como arte, como uma nova forma de aprender e dizer. O
cinema/vídeo foi visto aqui através da análise fílmica do seu conteúdo e enquanto 3GODARD, Jean-Luc. Je vous salue Sarajevo. http://www.youtube.com/watch?v=LU7-
o7OKuDg&hd=1 4 “Gesto de criação” para Alain Bergala é entender o processo de criação.
produção de filmes (estudo das formas de produção fílmica). Essa análise associada
aos planos foi orientada sob a perspectiva da proposta de Alain Bergala:
“não como uma leitura decodificável, mas, cada plano, como uma pincelada do pintor pela qual se pode compreender um pouco seu processo de criação”. (BERGALA, 2008, p. 34)
O fazer cinema passa por entender o processo de criação. Ao analisar o
conteúdo observamos as intenções e o contexto de produção, como e porque se
escolhemos um determinado enquadramento, uma sequência, a cor do filme, a
música etc.
Dentro dessa perspectiva propus, através da análise, construir um diálogo
entre os estudantes e o filme, desenvolvendo estratégias para que ele sentisse
vontade de se manifestar e, através do contato com a linguagem cinematográfica,
entendesse os mecanismos de produção. O desafio foi criar o que Bergala (2008)
chama de “expectador-criador”, aquele em que a obra cria uma ressonância e, aos
poucos, os sensibiliza, como também desenvolver o olhar crítico à linguagem
audiovisual.
A partir desse contato com algumas obras cinematográficas, decidimos pela
criação de um vídeo utilizando algumas técnicas cinematográficas básicas.
Outra justificativa relevante é uso das tecnologias digitais como uma nova
forma de produção, de criação e de reinvenção do imaginário. O uso do aparelho
celular como tecnologia é indiscutível, pela sua principal característica: a mobilidade.
Além da acessibilidade, praticamente todo jovem possui um aparelho e através dele
tem registrado, quase que o tempo todo, tudo o que acontece a sua volta. A
utilização desses mecanismos para a produção de vídeo arte, vídeo experimental,
vídeo ensaio, curtas metragens e documentários é uma atividade instigante no meio
escolar.
A importância do aprendizado com as tecnologias digitais, com os recursos
disponíveis nessas ferramentas são fundamentais para a formação do estudante
com vistas à sociedade contemporânea exige. Segundo Jesus Martín-Barbero:
“a educação não pode virar as costas para as transformações do mundo do trabalho, dos novos saberes que a produção mobiliza, das novas figuras que recompõem aceleradamente o campo e o mercado das profissões.” (MARÍN-BARBERO, 2004, p. 352).
É preciso relacionar a tecnologia audiovisual ao grande mercado de trabalho
no campo tanto da indústria nacional, que vem crescendo nos últimos anos graças
às leis de incentivo à cultura, bem como as agências de publicidade, as emissoras
de televisão.
A LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA
A linguagem cinematográfica, como toda linguagem, tem uma gramática com
suas partes. Jean Cocteau diz que “um filme é uma escrita em imagens" (MARTIN,
2007, p.16) que produz significado. Essa escrita se dá por mecanismos como
imagem em movimento, o som, a montagem dentro de uma lógica que faça sentido.
Compreender o processo de criação de um filme, assim como o da produção
de um texto, não importando o gênero, depende muito da observação e análise de
modelos a serem seguidos ou recriados. Como princípio norteador do trabalho os
alunos assistiram alguns documentários, curtas e um longa-metragem observando
as características e as intenções de cada tipo de produção. Importante ressaltar que
a proposta não é de utilizar o filme para transmitir uma mensagem, “uma moral da
história”, ou como pretexto ou suporte para outro conteúdo que não ele próprio. A
proposta visou observar não só aspectos metalingüísticos (metacinema – linguagem
cinematográfica) do filme, mas também compreender sua dimensão estética,
artística e ideológica. Para Eisenstein “a imagem nos conduz ao sentimento (ao
movimento afetivo) e, deste a idéia” (MARTIN, 2007, p. 28).
Ao analisarmos um filme temos um encadeamento de discursos: o verbal,
expresso nos diálogos, nas falas das personagens; o não verbal, que compreende
as expressões e gestos das personagens e cenários; as entrelinhas, os silêncios na
análise dos planos de filmagem. A interpretação do filme pela ótica da Análise do
Discurso (AD) vê a linguagem como:
“mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação torna possível tanto utilizando para a permanência ou continuidade, deslocamento ou transformação do homem e da realidade em que vive.” (ORLANDI, 2000a, p.15).
O filme, enquanto um gênero discursivo constitui-se numa narrativa, cuja
linguagem, mediadora entre expectador e uma realidade e que vem carregada de
sentidos, já foi produzida num contexto, com uma intenção, um destinatário, uma
ideologia, que manifestada no discurso, expressa a posição do sujeito em sua
relação sócio-histórica.
Para que faça sentido, a linguagem do filme deve estar próxima a do seu
expectador/leitor, tanto no que se refere ao idioma, como também aos códigos
culturais (seus símbolos), além do processo de interpretação que o expectador faz
dela, através dos mecanismos de análise das metáforas, metonímias, análise dos
símbolos.
Um aspecto básico na construção de um filme é o Roteiro, que é resultante de
um processo de criação na qual é necessário estabelecer uma ideia inicial, que se
dá na criação da storyline, depois, desenvolvê-la no Argumento e na produção de
uma Sinopse. É no Roteiro que se aprofunda a trama para, em seguida, desenvolver
os diálogos. Esse trabalho exige paciência, pois, a todo o momento, são retomados
os textos iniciais. É um processo de escrita e reescrita até se chegar ao texto
definitivo. O processo é trabalhoso, mas exercita a criatividade.
Além da escrita verbal, há o processo de Decupagem, no qual o texto escrito
é transformado, decodificado em imagem – linguagem não verbal. Também é
necessário mostrar ao estudante que tanto na produção dos textos verbais, como na
decupagem ou na Montagem – processo que se dá quando as filmagens já foram
realizadas - há que se seguir uma lógica, respeitar a sintaxe da linguagem
cinematográfica. Na linguagem textual é observado muitos aspectos, como a coesão
e a coerência, conceitos fundamentais para o cinema, observados na continuidade
dos planos, numa relação espaço-temporal.
O PROJETO
O contexto social
Os estudantes do 9º ano noturno, do Ensino Fundamental, do Colégio
Estadual Hildebrando de Araújo foram os atendidos pelo Projeto. A maioria deles
vem de uma realidade em que o ensino diurno não lhes é mais possível, visto que
muitos precisam trabalhar para ajudar na renda familiar, há também os que fazem
cursos como o Menor Aprendiz, outros por repetência ou não se adequar às
exigências desse período.
A escola localiza-se próximo à Vila Torres, na Rua Omar Sabbag, cuja rua é a
continuação da Rodovia 277 que liga Curitiba à São José dos Pinhais, atendendo
também aos alunos de bairros deste Município da Região Metropolitana.
Os estudantes que frequentam o Colégio advêm das imediações, que
compreende dois lugares com características semelhantes, bairros que abrigam
famílias de baixa renda, com alto índice de criminalidade.
A partir dessas informações é importante apresentar alguns dados
importantes quanto à frequência e permanência dos alunos no Colégio. No início do
período letivo a turma era composta por 31 alunos, destes apenas 21 mantiveram
frequência, 4 transferidos ou remanejados, 10 com frequência inferior a 10 faltas.
Quanto as notas ao final do 1º trimestre, 9 estudantes com notas acima de 5,9 e três
com notas abaixo de 3,0. Foram dadas 56 horas/aula. Até meados de Junho,
período de finalização projeto a turma recebeu mais 5 alunos, mas também outros 5
saíram, 1 por transferência, os outros por desistência.
Sensibilização – desenvolvendo o olhar
O Projeto chamou a atenção dos estudantes pelo caráter inovador. Quase
todos gostavam de sair da sala de aula normal para irem à sala de Vídeo, a qual
possui uma televisão de 40 polegadas, tela plana, além de uma estrutura de
tablados como um auditório. Mas, mesmo com essas condições, após a explicação
do conteúdo e/ou a exibição de um curta-metragem havia pouca participação.
Percebi que eles tinham muita dificuldade em expor suas opiniões ou por vergonha,
ou pela dificuldade em entender a proposta. Aos poucos a participação foi
aumentando, mas sempre de forma parcial, restrita a alguns alunos.
Ao apresentar a história do cinema a partir de curtas-metragens, os
estudantes surpreenderam-se com a rápida evolução e poder ilusionista que o filme
pode ter. Compreenderam o papel da montagem na criação desse efeito ao entrar
em contato com as obras de George Méliès no filme Viagem à lua, observando os
truques, os efeitos próprios dos filmes de ficção científica, como: a sobreposição de
imagens e o cenário teatral, os efeitos de corte (os fade-ine os fade-out5.
Com trechos do filme O auto da compadecida6 houve um processo
semelhante. No filme há um jogo de ilusão que tanto envolve a narrativa, quando
João Grilo (Matheus Nachtergaele) propõe ao Chicó (Selton Mello) enganar o
Cangaceiro Severino (Marcos Nanine), como no aspecto da montagem, quando
Chicó finge matar João Grilo para ver “padim padre Ciço” levando o capanga a
matar o cangaceiro. A ilusão é construída através da linguagem, num jogo de
5Fade in é a gradativa aparição da imagem a partir da tela escura, em oposição ao fade out, que é o
desaparecimento gradativo da imagem até o preto total. 6 O Auto da compadecida – Filme de Guel Arraes lançado em 1999. Globo filmes.
palavras, com humor e ironias, e da ação das personagens, com trejeitos e
expressões que contribuem para a composição da cena. A gaita, objeto milagroso, é
alegoria da salvação, do encontro com o divino, ao mesmo tempo, que é um
elemento que, através da sua sonoridade, suaviza a tensão estabelecida pelo
conflito. É importante ressaltar a importância da música e os efeitos sonoros na
construção da narrativa cinematográfica.
Após a discussão sobre a história do cinema, assistimos ao documentário
filosófico Jevous salue Sarajevo de Jean-Luc Godard. Foi um processo difícil, no
entanto gerou pela primeira vez um grande debate no qual a maioria dos alunos se
manifestou.
A maior dificuldade foi entender parte do complexo texto apresentado pelo
cineasta. Havia a intenção de trazer aos estudantes um discurso mais elaborado
para, juntamente com ele, parafraseá-lo de modo a reconstruir os conceitos ali
apresentados. O texto propõe uma ruptura entre o que a cultura, enquanto tradição
mantém, e arte, como processo de criação, subversão a práticas estagnadas e
opressivas.
Não obstante, umas das questões levantadas no debate pelos estudantes -
observando a intertextualidade, o interdiscurso, o discurso de memória os quais são
elementos importantes na interpretação, pois, a partir dele, pode-se construir uma
rede de significados, através de experiências já vividas – foi a relação direta com o
contexto nos quais estão inseridos, que é a “cultura da violência”. Fizeram uma
relação intertextual com as imagens dos soldados oprimindo civis, com a ação da
polícia tanto na favela, quanto nas manifestações populares que ocorreram ano
passado no país e que estavam voltando diante da proximidade da Copa do Mundo
de 2014.
Nesse contexto, os estudantes apresentaram questões sobre a condição dos
jovens da periferia e dos afrodescendentes que sofrem o preconceito,
condicionando-os à marginalidade, tanto pela sociedade, como pela polícia. Muitos
foram os relatos de situações experimentadas por eles, através dos quais,
implicitamente, percebe-se um pouco de conformismo com a situação de que essa
realidade se mantém como parte da cultura da violência, advinda de uma cultura
dominante.
Outra relação foi estabelecida diante da reflexão proposta nas perguntas:
“Que elementos da cultura você questiona? Por quê?” 7 A questão mais abordada
nas respostas foi a violência contra a mulher tanto nas relações familiares como no
trabalho, em que ainda predomina o pensamento machista que ainda vê a mulher
como objeto. Nesse processo de compreensão, devem-se observar aspectos da
linguagem “sua memória, sua espessura semântica, sua materialidade linguístico-
discursiva (ORLANDI, 2000, p.63)”, em cujos discursos predominam o pensamento
historicamente construído em suas múltiplas possibilidades de leitura, revelando o
funcionamento do discurso na qual se revela “as condições de produção em relação
à memória, onde intervém a ideologia, o inconsciente, o esquecimento, a falha, o
equívoco” (ibid.p.65).
No debate sugiram relatos – a memória – de fatos ocorridos com os
estudantes e seus familiares, “as falhas” ou o “ato falho” através de brincadeiras
machistas, preconceituosas por parte de alguns meninos, que reforçam a ideologia
dominante reproduzida socialmente e comprovada pelas experiências relatadas.
Outros comentários foram feitos, mas de outra forma, com um tom de
denúncia e reclamação sobre a ação da polícia e da sociedade em relação ao pobre
e ao negro, mostrando como há preconceito, do qual eles são vítimas.
Assim se deu, também, diante da exibição do filme de François Truffaut, Os
Incompreendidos. Inicialmente houve uma dificuldade em assistir a um filme antigo,
em preto e branco. Aos poucos alguns estudantes foram se identificando com o
personagem Doinel e se comovendo com drama apresentado na trama. Drama
representado pela ausência de carinho por parte da mãe, o abandono e a
indiferença da sociedade diante da situação da criança, que busca chamar atenção
através da indisciplina tanto na escola como em casa e que leva o protagonista a
resolver seus problemas por si só, procurando num primeiro momento fugir para um
lugar da brincadeira, do lúdico – ao ir ao parque de diversão e perambular pela
cidade – fugir para casa do colega – lugar carregado de situações de abandono,
com a mãe alcoólatra e ausente, o pai indo às corridas de cavalo sem se preocupar
com o filho. Por fim, Antoine Doinel passa a cometer pequenos delitos, o que o leva
para a prisão e o reformatório.
7 Produção didático pedagógica, pagina 5.
Esse lugar ocupado pelo personagem é próximo da realidade de muitos, ou
por experiência própria ou por vivenciar a história de amigos, colegas e parentes.
Observei, nesse caso, que a narrativa ficcional é compreendida a partir das relações
sociais e culturais já vividas pelos estudantes, que a ressignificam através do
discurso.
“dizíveis”, em novos ditos. É onde habita a historicidade. E onde os domínios, da narrativa da ficção ou da realidade, garantem sua permanência e sua inteligibilidade. Dito de outro modo: estamos falando da memória, a qual, quando pensada em relação ao discurso, é tratada como interdiscurso (BACECEGA, 2011, p.13).
Portanto a memória discursiva advém das experiências e situações vividas
no cotidiano desses estudantes, advindos de uma realidade em que seus pais,
preocupados com a sobrevivência, trabalham o dia inteiro, ou, muitas vezes, da
ausência total, já que muitos pais estão no crime, ou drogados, até mesmo na
prostituição, também não estão presentes. Ao estabelecerem um diálogo com o
filme, alguns estudantes foram relacionando um tempo ao outro, um filme de 1959
constrói um universo próximo a 2014. O “já dito” de outro tempo, dá-lhe um caráter
universal, afetando-o de modo a valorizar o indivíduo, seu sentimento, sua história.
“todo dizer, na realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação). E é desse jogo que tiram seus sentidos”. (ORLANDI, 1999b, p.33).
A solidão de Doinel se aproxima da de muitos estudantes, que, comovidos,
relataram suas experiências. Essas questões reforçam a pertinência da obra nesse
contexto, permitindo diálogo entre a realidade e a ficção, bem como a reflexão sobre
o comportamento da sociedade diante dos problemas enfrentados por algumas
crianças.
A próxima atividade foi refletir sobre a composição do filme, observando os
aspectos constitutivos e a análise dos planos: como o enquadramento, os tipos de
planos (plano detalhe; close-up, plano médio, plano geral etc.) e seus efeitos de
sentido; os movimentos de câmera (travelling, panorâmica) e a montagem do filme, a
partir da sequência e duração de planos e de como é construída a ideia de
passagem de tempo – o raccord – como se dá a transição das imagens - os
flashbacks e a elipse. A partir dessas explicações, os estudantes perceberam
aspectos da composição fílmica que, muitas vezes, dentro das experiências
cinematográficas como expectadores, de filmes chamados de clássicos, não as
percebiam. Essa invisibilidade é proposital, o filme torna-se transparente8,
priorizando a narrativa e não a sua construção.
Observamos esses efeitos em outros filmes, no policial Os intocáveis de Brian
de Palma de 1987 e em Kill Bill de Quentin Tarantino, Forrest Gump de Robert
Zemeckis.
Contudo um efeito ficou marcado no filme Os Incompreendidos9, a cena final,
com o longo travelling que acompanha Antonie Doinel na sua fuga até a cena final, o
congelamento da cena num zoom, do plano geral ao close no seu rosto apreensivo,
olhando para um futuro incerto. O final do filme traz/provoca uma angústia na
metáfora do oceano, apresentado num grande plano geral, como um espaço amplo,
infinito, ao mesmo tempo, que, paradoxalmente, o limite, “o fim da linha”, a
impossibilidade em prosseguir, fechando a cena no olhar do protagonista. Esse
paradoxo que se estabelece nessa oposição do espaço amplo x impossibilidade em
prosseguir, revela a angústia diante das incertezas, própria a muitos jovens diante
das escolhas e opressões do mundo.
Mas Antonie Doinel com sua alegrias, atitudes próprias às crianças como as
brincadeiras e ironias na sala de aula, as traquinagens na rua, no parque, no
cinema, cria “táticas”10, para lidar com as dificuldades e opressões impostas a ele
pela família e pela sociedade, encontrando fissuras procurando resolver seus
problemas sozinhos anima os expectadores/estudantes, que torcem por ele. As
“táticas” são necessárias para quem já não tem um “próprio”, um lugar para qual
possa fugir, ou buscar refúgio.
Com esse debate e as informações referentes aos enquadramentos, os
estudantes realizaram exercícios de fotografia na sala de aula, destacando atitudes
comuns através de poses, alguns objetos pessoais e o ambiente da sala de aula.
Nessa atividade os estudantes tiveram a oportunidade de lidar com alguns
mecanismos da máquina fotográfica como o controle do foco e da velocidade.
O trabalho continuou com a análise de três vídeos arte, produzidos por Agnès
Varda, em 1983, para uma série de TV francesa: Une minute pour une image,
através da qual se debateu sobre as suas experiências fotográficas e o sentido que
8 Transparência: o efeito da tela como janela.
9 TRUFFAUT, François – Os Incompreendidos. Filme de 1959.
10 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Editora vozes. 16ª Edição. 2009.
p. 46 e 47.
as fotos produzidas poderiam adquirir no contexto da escola e fora dele, como por
exemplo, no grupo social ao qual pertencem. Discutiu-se dessa forma a importância
do discurso verbalizado como sugestão para outras interpretações, questionando o
ditado popular: “Uma imagem vale mais que mil palavras”. A imagem traz muitas
informações, mas não deixa de ser um recorte da realidade. Seu significado pode ir
além do seu contexto de produção, propiciando múltiplas interpretações:
Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver (SONTAG, 1986, p.13).
A ética como princípio norteador do olhar foi um conceito construído a partir
das imagens e do discurso apresentado por Varda (1983). Ver sem pré-julgar é uma
atitude difícil para os jovens. Contrastar os discursos elaborados por eles com o do
texto da autora gerou reflexões que nortearam a próxima atividade, que foi a
produção de um vídeo a partir de uma imagem trazida por eles.
A próxima etapa foi a análise de vídeos produzidos por adolescentes e
publicados no YouTube. Um dos objetivos dessa análise era de compreender o
processo de produção, mas principalmente o de refletir sobre as intenções das
realizações, já que muitas delas apresentam situações do cotidiano.
Alguns dos vídeos selecionados foram produzidos com o uso do celular e
visava relatar situações ocorridas em escolas como brigas e brincadeiras. Outros
vídeos mostravam a iniciativa de alguns jovens em criar os seus próprios filmes.
Estes, ficcionais, constroem uma narrativa com dados da realidade, mas também
fazendo relações com outras obras. Também foram assistidos vídeos trazidos pelos
alunos. Alguns mostravam danças como o funk, situações bizarras e ainda o stand
up comedy.
O apelo humorístico foi a tônica desse momento do Projeto. Os alunos
gostaram de assistir aos vídeos e participaram com entusiasmo nas discussões.
Quase todos assistem com frequência a esse gênero. Muitos deles assistidos
através dos compartilhamentos nas redes sociais.
A penúltima etapa era a produção do vídeo. Nesse momento gerou-se um
impasse, pois muitos estudantes não queriam fazê-lo. Surgiu então a proposta de
fazermos um vídeo através de uma situação do cotidiano deles que lhes fosse
significativa. Então alguns estudantes sugeriram a análise de uma foto como na
série desenvolvida por Agnès Varda. Produzimos então um Documentário.
Naquela semana, que antecedia o início da Copa do Mundo, houve o
assassinato de um adolescente de 14 anos, morador da Vila Torres – em Curitiba –
e conhecido de alguns estudantes. O menino foi morto pela Polícia Militar, com oito
tiros, dentro do carro que havia roubado com outro rapaz. O acontecimento gerou
vários protestos na comunidade, visto que o menino já estava rendido e, segundo
moradores, familiares e os próprios estudantes, já havia se entregado.
A foto trazida por eles era do protesto, com a queima de móveis e de uma
moto no meio da rua que atravessa a comunidade. Em torno dela, alguns estudantes
foram tecendo comentários. Construímos um roteiro, no qual alguns fariam
perguntas e outros responderiam para conferir sentido à imagem. Todos estavam
comovidos e indignados com a ação dos policiais, diante das circunstâncias que
levaram ao suicídio do menino. Houve, porém, alguns comentários que
questionaram o lugar daquele menino na sociedade. “Ele não deveria estar na
escola?” “Se estivesse na escola não estaria no crime e, agora, morto”. Construiu-se
dessa forma um diálogo, através do qual manifestaram sentimentos advindos não só
daquela situação, mas da realidade em que vivem.
“Nesses documentários, os personagens refletem as ambiguidades e contradições inerentes ao mundo moderno, cujos sujeitos históricos se encontram confusos e incrédulos em meio às adversidades, à efemeridade e à fragmentação das relações sociais.” (SILVA, 2012, p. 98)
Essas contradições, mais que ambiguidades, surgem diante de uma realidade
em que, para muitos, não há possibilidade de escolha. Esse é o discurso
predominante da juventude. A escola está longe de atender as suas expectativas, a
mesma situação ocorre com o mercado de trabalho. Enquanto a mídia apresenta
uma sociedade de consumo como modelo de felicidade, o “funk ostentação” remete
ao mundo do consumo de grandes marcas, o jovem se vê numa situação em que o
salário dos pais e/ou deles mesmos garante apenas a sobrevivência. O choque
entre a realidade e o mundo “assistido” gera angústia, a descrença no futuro e a
revolta.
A construção do documentário vem como uma forma de extravasar opiniões e
sentimentos, de forma confusa, mas como aquilo que:
Certeau aponta para as fissuras das quais o sujeito se vale para subverter essa ordem e imprimir ali sua marca por meio da ação: “ela (a verdade) será resultado de um trabalho – histórico, crítico, econômico. (...) A partir de agora, a identidade depende de uma produção, de uma caminhada
interminável (...) o ser se mede pelo fazer” (RANGEL, 2009)
Esse fazer, ao mesmo tempo em que há resistência, é espontâneo, as falas
surgem em meio a brincadeiras, ao mesmo tempo em que são sérias. Aos poucos
vão se colocando, encontrando “fissuras” no discurso posto pela sociedade, que
condena à morte a quem não teve a chance de se defender. Foi nesse fazer que
eles se tornaram “realizadores”, registrando o real segundo suas impressões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A execução do projeto trouxe muitas reflexões sobre pertinência do ensino do
Cinema enquanto linguagem associado às disciplinas de Língua Portuguesa, Arte e
tecnologias. A interdisciplinaridade é uma prática prevista nas Diretrizes Curriculares
Nacionais, mas ainda precisa ser discutida e planejada para que ocorra de modo
satisfatório. Nesse sentido há muito que se pensar, já que a estrutura escolar
apresenta alguns entraves, como o tempo disponível do professor para dialogar com
os demais docentes das áreas envolvidas e o currículo. O ensino está muito preso a
conteúdos rígidos, aos quais os estudantes já estão habituados. Sair do senso
comum escolar foi uma tarefa difícil e muitos resistiram.
A complexidade do projeto, pelo seu caráter multidisciplinar e pela estrutura
na qual a escola está inserida, foi exposto por alguns professores da Rede Estadual
que participaram do GTR – Grupo de trabalho em Rede. No entanto alguns colegas
relataram experiências semelhantes com o conteúdo do audiovisual. Essa proposta
inspirada no Projeto do cineasta e educador francês Alain Bergala também vem
sendo desenvolvida no Rio de Janeiro pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
no curso de licenciatura em cinema e em projeto voltados para escolas do Estado,
além do projeto nacional, ligado à Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Inventar
com diferença, que, neste ano de 2014, foi desenvolvido em 29 cidades brasileiras
espalhadas em todo território nacional.
Dessa forma, propiciar o estranhamento, sair do senso comum, “subverter”,
fazer a “arte ocorrer” em meio às tradições e a cultura escolar, que muitas vezes
encontra estrutura fibrosa, difícil de penetrar, foi um desafio. No entanto as diversas
atividades foram aos poucos rompendo a resistente estrutura estabelecida, de modo
que, mesmo com resistência, aos poucos o projeto foi caminhando.
A diversidade dos gêneros textuais propiciadas pelo trabalho com o cinema
foi uma experiência muito rica. Esse trabalho gera uma visão ampla sobre o
processo da narrativa, na construção das personagens, no desenvolvimento da
ação, da construção dos diálogos e do cenário. É importante destacar o processo
de montagem como processo fundamental na construção final da história, na qual o
cineasta, já com as imagens realizadas pode dar um acabamento diferente do
previsto.
A análise dos filmes pelo viés da linguagem cinematográfica foi um tanto
complexa. Os alunos não compreendiam o processo de construção de um filme, pois
se colocavam como meros expectadores. Compreender as intenções do cineasta
com as escolhas de determinados planos e não outros, da presença ou não da
música e o que isso significa foi um processo demorado. Para que essa atividade
fosse mais eficiente o projeto deveria estender-se por mais tempo.
Através dos debates gerados pelos filmes propiciou aos alunos
desenvolverem pensamento crítico, fazendo relações com a realidade em que
vivem, com experiências pessoais e com os processos de produção dos filmes.
Através de suas falas foi possível compreender o difícil contexto social em vivem,
não só as das precárias condições econômicas como das afetivas oriundas de uma
desestrutura familiar.
Há muito ainda que se pensar a inclusão do cinema enquanto linguagem no
processo de ensino aprendizagem. Romper com as rígidas estruturas escolares,
compreender a importância do audiovisual como produto cultural carregado de
simbologias e ideologias e da forte influência dele na sociedade atual impregnada
pela imagem é impreterível.
REFERÊNCIAS
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