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Os Dez dias que
abalaramo Mundo Socialista:impacto da crise do socialismosobre as esquerdas no Brasil
Andrey Cordeiro Ferreira
À minha mãe Ilda, sempre cuidadosa ecarinhosa com seu filho; ao meu pai, Jorge,pelas dicas sobre futebol que se demonstraramaplicáveis à filosofia e à política; a minha irmã,Alba, pelo exemplo de empenho e por tudo queme ensinou; e ao mais novo membro dafamília, o pequeno Lucas.
Aos amigos e amigas da Universidade;Augusto, Aldamir, Wanderson (Pequeno),Bruno Leipner, Ubirajara Marques (saudaçõesrubro-negras), Cal, Betinho, Débora, Edílson,Fábio, Francisco, Assis, Débora, Edílson,Valena, Mere, Vívia, Mavá, Alessandra,Juliana, Paula, Geovano, Samuel, MárciaMascarenhas, Carolina, Alessandra, Marcelo,Luís Fabiano, Marcell, Luís André, Alcides,Luiz Fernando, Gustavo (Totó) e todos osoutros que tem o meu carinho e agradecimento.
Aos irmãos; Maycon, Jacaré e Punkinho, queparticiparam de momentos decisivos da minhavida.
Agradecimentos:
Ao professor Daniel Aarão Reis Filho pelas críticas fecundas, pelotempo, paciência, atenção e amizade. O seu muito refinado sensocrítico e seu variado e profundo conhecimento foram uma fontepermanente de inspiração deste trabalho.
Aos professores dos departamentos de Antropologia, Sociologia, eCiência Política com quem tive oportunidade de trabalhar eaprender. Em especial à professora Eliane Cantarino, que muitoapoio me deu durante a minha graduação, e quem muito meinfluenciou.
À Ígor e Luciana, do Partido Comunista Brasileiro.
À Luís Fernandes, porfessor do Departamento de Ciência Políticada UFF e do Partido Comunista do Brasil.
Índice
INTRODUÇÃO 1
PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO: CORPO ESTRANHO EM MUNDONOVO? 10
PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL: NA SAÚDE E NA DOENÇA, NA ALEGRIAE NA TRISTEZA 27
PARTIDO DOS TRABALHADORES: INDEPENDENTE, MAS NEM TANTO 43
CONSEQUÊNCIAS DO ABALO 56
Introdução
A queda do muro de Berlim e a extinção da URSS marcaram o fim de uma experiência histórica que
influenciou vários dos acontecimentos que poderiam ser considerados entre os “mais” importantes do século.
A Revolução de 1917 na Rússia inaugurou uma nova fase da política e da sociedade mundial; após o seu
desenrolar nenhum debate acerca da questão da organização do poder foi iniciado, nenhuma medida de
segurança nacional foi tomada, sem se invocar o seu significado simbólico e prático. A tomada do Palácio de
Inverno serviu como o estopim para a difusão mundial de uma nova forma de se conceber o poder e a política,
que se espalhou rapidamente pelos quatro cantos do mundo, justificando posturas, alianças, programas,
condutas e teorias acerca de como transformar e governar a sociedade.
Durante todo o século XX a mística da Revolução Russa e a realidade do Regime Soviético orientaram
lutas e disputas entre formas de da organização da sociedade, e entre concepções de poder e política. Ainda
durante a década de vinte, na China, se constituiu o Exército Vermelho (camponês) que invocava a
experiência, os símbolos e as teorias fundadas pela Revolução de 17; durante a década de trinta a Revolução
espanhola e a experiência da Frente Popular mantiveram um permanente debate sobre o significado e a
contribuição da Revolução Russa para as revoluções em geral. A Segunda Guerra propiciou ao mundo
conhecer a capacidade de intervenção político-militar da URSS, e marcou o início da “bipolarização” do
mundo em torno de fórmulas de organização do poder e estabelecimento da autoridade política. Nos anos
quarenta, a China se juntou aos países que habitavam o rol principal das revoluções, mantendo relações
diretas com a experiência soviética russa. Durante os anos cinquenta a revolução chegaria ao continente
americano, desembarcando em Sierra Maestra, e também ela, mesmo que tardiamente iria invocar o “espírito
socialista” originário da revolução russa. Durante os anos cinquenta e sessenta, na Ásia e na África, as lutas
de Libertação Nacional se desenrolaram violentamente, e a URSS cumpriu papel fundamental no apoio a
vários países que estavam em luta, tanto na esfera diplomática junto aos fóruns da ONU, quanto na esfera
logístico-militar, auxiliando direta ou indiretamente com armas e/ou treinamento os países insurgentes.
Na década de setenta, foi a vez da Nicarágua fazer sua revolução, auto-intitulada Sandinista, constituindo
um “Governo Revolucionário” onde a presença significativa dos “marxistas-leninistas” assinalava que a
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capacidade de reprodução e difusão de uma “corrente revolucionária” nascida "na e da" Revolução Russa era
ainda expressiva.
E além destas influências (ou interferências), é importante lembrar que a URSS ergueu também uma
outra via para o desenvolvimento, em que a valorização da intervenção do Estado na economia, a
nacionalização da indústria e das atividades financeiras e a centralização da vida política em um Partido único
eram elementos necessários e obrigatórios. Desta forma a Revolução Russa serviu fundamentalmente para
apontar outros caminhos práticos para a gestão da sociedade, apresentando um programa claro e definido de
desenvolvimento para as Nações superarem sua condição de “atraso” econômico e social. Este programa
seduziu vários grupos, não só entre os países de terceiro mundo, mas também entre os países ocidentais de
capitalismo avançado, onde foi encarado como modelo de relativo sucesso e como alerta de que seria
necessário ao ocidente autoreformar-se.
Foi um breve1 porém explosivo século, onde as mais diversas experiências sociais, políticas e militares
estavam marcadas pelo corte profundo que a Revolução Russa imprimiu na sociedade mundial.
Mas a década de oitenta chegou, e se estabeleceu como um período singular de turbulências. As
experiências revolucionárias (URSS e o Leste europeu) que por tanto tempo sustentaram a argumentação
teórico/política de diversas correntes e grupos em escala mundial (que buscavam inspiração para sua
existência na Revolução Russa), que apontavam soluções práticas para diversas questões, tiveram seu
processo de deterioração2 acentuado até o ponto de provocar a implosão de toda a sua estrutura.
Mesmo com todas as controvérsias e críticas que existiam em relação aos “regimes Socialistas”, estes
eram efetivamente paradigmas invocados pelos grupos e partidos mundialmente. Os “Pais” das revoluções
começavam então a deixar órfãos em escala internacional. Em todos os continentes os impactos poderiam ser
sentidos. E a Revolução Russa, que estava por detrás de todas estas experiências, com toda sua significação
prática, teórica e simbólica, que tinha fundado um paradigma societal mundial, estava de certa forma
1 O conceito de "Breve Século XX" é de Erick Hobsbawn. Ele demarca o início do século em 1914, com a eclosão da Iº Guerra Mundial,e seu fim em 1991, com o fim da URSS. Esta delimitação reflete e afirma de forma explícita a importância da URSS e da RevoluçãoRussa neste século; ambos terminariam juntos, sendo impossível assim pensar o século XX sem pensar o socialismo. Ver HOBSBAWM,Erick "A Era dos Extremos - o breve século XX", Companhia das Letras São Paulo 1995 2º Edição2 Na realidade os desgastes acompanharam a experiência soviética em toda a sua trajetória e existência, e poderíamos dizer que mesmodesde a própria Revolução Russa. As fissuras foram aparecendo progressivamente no concreto do edifício comunista, seja emconsequência das lutas e rivalidades instauradas na disputa pela liderança do movimento comunista internacional, seja em função dascríticas ao modelo soviético, que partiam da sociedade pela voz de outras correntes político-ideológicas, a sua conduta na construção do“Socialismo”.
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começando a fazer parte de um passado distante e não mais, como até então, de um presente vivo, encarnado
nas sociedades socialistas.
O edifício da "socialismo real" veio abaixo. E com ele os seus paradigmas; a "crise das ideologias" do
final do século atingiu igualmente a sociedade mundial, não deixando de fora nem mesmo o movimento
socialista. Com a crise dos seus paradigmas houve também, e consequentemente, uma crise da autoridade
reivindicada por estes partidos, uma crise da sua concepção de organização do poder político (Governo
Partido/Estado) e do projeto de gestão da sociedade (Socialista), que defendiam. Alguns se apressaram em
apontar esse fenômeno como sendo o “fim” do Socialismo, o declínio final do “marxismo”, a morte da
“Utopia”, o desaparecimento das “ideologias”.
Estas visões podem não ser tão exatas em relação aos fatos que narram e às conclusões a que chegam,
mas é certo que algo está efetivamente mudando, e há uma crise de identidade entre os que reivindicam a
tradição inaugurada pela Revolução Russa, e isso em escala internacional. Mas poderíamos pensar em pelo
menos três formas de se reagir a uma crise; pode-se simplesmente ignora-la, negando circunstancialmente
mesmo a sua existência; pode-se renegar e eliminar todos vestígios que vinculem a própria figura à tradição
que está sendo afetada pela crise, de forma a se desvencilhar de qualquer ligação e compromisso com ela,
assumindo-se uma “nova postura” ou; pode-se pelo contrário, realizar um processo de auto–afirmarção,
reivindicando toda a tradição, com suas experiências e símbolos, estabelecendo, ao invés do recuo
generalizado, a manutenção e às vezes o resgate de determinadas posições, estabelecendo um processo de
reconstituição identitária.
Na Europa pudemos conhecer vários exemplos de “filhos pródigos”, que logo após o fim da URSS e a
queda do Muro de Berlim - após pegarem suas heranças - renegaram o próprio nome e paternidade. Na
Itália o Partido Comunista mudou seu nome e estrutura para "Partido Democrático de Esquerda", na
Iuguslávia passou de Partido Comunista a "Partido Socialista", na Hungria o Partido Operário Socialista
Húngaro deu origem ao Partido Socialista Húngaro, hegemônico no poder de Estado na ocasião; na Albânia,
na Romênia, na Tchecoelsováquia, na Bulgária, na Alemanha Oriental, em todo o Leste europeu, e em países
como a França onde o PC possuía força significativa, muitos dos antigos membros do “exército vermelho”
desertaram, levando no entanto tudo que puderam levar das suas antigas fileiras, deixando para trás
ortodoxos e ortodoxias quase sem poder e influência no cenário pós-guerra fria que se tornou também "pós-
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socialista". O orgulho que acompanhava o título, os símbolos e as siglas que remetiam aos Regimes
Socialistas, foi substituído por uma pesada carga de conteúdo pejorativo, como uma marca de vergonha, um
sinal de atraso e insucesso, de vinculação a um passado (e um projeto) que deveria ser esquecido a qualquer
custo.
Mas no Brasil, como foi reação, das esquerdas, aos processos ocorridos entre o fim da década de oitenta e
o início da década de noventa? Como elas absorveram a extinção de seus “referenciais concretos” mais
importantes? Será que ocorreu, como na Europa, um processo de rejeição generalizada da tradição que até
pouco defendiam?
Estas questões são apenas algumas das muitas que pretendemos levantar através deste trabalho. Há
realmente uma crise de referenciais teóricos e políticos em escala internacional. Em um período de tempo
relativamente curto, apenas uma década, todo o leste europeu tinha passado de regimes “Socialistas” a
regimes “Capitalistas”.
Em virtude desta transição repentina e até certo ponto surpreendente, muitos debates foram levantados, e
com eles inúmeras controvérsias. Entre as tentativas de se apurar e explicar as razões que teriam levado à
desagregação do Bloco Socialista, vimos surgir também alguns matizes de pensamento que procuravam
explicar os acontecimentos através de uma concepção mecânica de causa-consequência; o fim dos regimes
socialistas teria tido como reflexo o fim do "socialismo".
No entanto, fazer uma associação imediata entre o fim da URSS e uma pretensa crise terminal do
Socialismo é uma consideração um tanto apressada. É preciso tomar em conta, em primeiro lugar, que o
Socialismo nunca foi um bloco monolítico e nem mesmo constituiu um campo unificado; em segundo lugar,
esta não é a primeira crise atravessada pelo Socialismo e suas diversas correntes; em terceiro lugar, não há
como afirmar efetivamente que a crise nas esquerdas, que se desenvolve nas diferentes unidades nacionais, é
um mero “efeito" da desagregação do Bloco Socialista. No caso da América Latina, e no do Brasil
especificamente, as esquerdas enfrentaram uma crise severa durante a década de sessenta que levou à
pulverização da organização mais expressiva, o então Partido Comunista do Brasil (PCB), e que se prolongou
até meados da década de oitenta, e da qual não se recuperaram totalmente. Poderíamos dizer que a crise do
Socialismo em nosso país "começou" pelo menos vinte e cinco anos antes da dissolução do mundo socialista.
Pensar então a atual crise do Socialismo em termos tão lineares pode não ser o melhor caminho para a sua
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compreensão. Cabe então perguntar: “Podemos considerar realmente que a dissolução do Bloco Socialista
teve um efeito desagregador tão profundo sobre o conjunto do Campo Socialista?”
O objetivo deste trabalho é observar como a crise do Socialismo repercutiu sobre o imaginário das
esquerdas no Brasil, e principalmente dos Comunistas. Iremos então tentar capturar a visão e o significado
atribuído pelos Partidos a estes processos, ocorridos entre 1989 e 1991. É uma tentativa de registrar o
testemunho deles sobre a crise.
Distinguir um campo de observação para este estudo diante destas considerações não foi tarefa muito
fácil. Isto porque a "Revolução Russa" foi apropriada por diversas correntes políticas, cada uma delas com
suas especificidades. No caso brasileiro, as esquerdas de maneira geral, tanto a nível intelectual quanto
político, estão vinculadas muito estreitamente aos referenciais socialistas, mas cada uma atribuindo um
sentido diferente ao termo "Socialismo". Comunistas e Socialistas tomam para si Socialismo como projeto,
mas mantém concepções diferentes a respeito dos caminhos que levam à ele.
Para podermos afirmar que o "Socialismo" está em crise temos de saber precisar o que é o
“Socialismo”. Muitas vezes o termo Socialismo e mesmo Comunismo são utilizados para classificar
fenômenos não uniformes, com origens e densidade muito diversas.
Há a necessidade de definirmos o que é que entendemos por “Comunismo e por Socialismo", para
identificarmos quais são os processos sociais que podem ser alinhados sob estes termos. E aí, após este
esclarecimento, poderemos nos arriscar a dizer se o Socialismo passa realmente por uma crise, qual o caráter
dela, e quais os níveis e as escalas em que ela se dá e opera.
Primeiramente é preciso dizer o seguinte; o Socialismo enquanto Modo de Produção (Marx),
Formação Histórico-Social (Castoriadis) ou Forma de Governo (Bobbio) é um fenômeno restrito à Europa do
Leste e alguns países da Ásia e da África. É um fenômeno não só historicamente datado (século XX), mas
também geograficamente localizado. E seguindo a própria definição dos Partidos Comunistas, o regime que
se conheceu nestes países era Socialista, e não Comunista. Quando falamos em crise destes Modos de
Produção, destas Formações Sociais-Históricas ou deste Regimes de Governo, falamos de crise do
Socialismo, apesar de serem os Partidos Comunistas os gestores e mentores destas sociedades, e talvez os
mais intensamente atingidos por ela. Segundo a definição clássica do Movimento Comunista, o Socialismo
corresponde a uma etapa do processo revolucionário, em que o Estado se torna o agente da socialização dos
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meios de produção através da implantação de um sistema político denominado Ditadura do Proletariado. O
Comunismo corresponde a etapa em que, após o desenvolvimento pleno das forças produtivas, se dá a
extinção das classes sociais e do Estado. Há consenso em relação a conclusão de que esta etapa não foi
alcançada por nenhum dos regimes existentes.
O Movimento Comunista também é um fenômeno do século XX. Entendemos por Movimento
Comunista aquele desenvolvido a partir do ambiente cultural marxista, nascido do interior do movimento
internacional da Social-Democracia, no período de efervescência da Revolução de Outubro. Ele marcou uma
cisão importante em relação a todo conjunto do Movimento Socialista, conhecido durante o século XIX,
criando uma estrutura com lógica própria e muito mais centralizada do que qualquer outra corrente. O fato do
Socialismo fazer parte do programa dos Comunistas coloca uma interseção entre ele e os demais membros do
Movimento Socialista, do qual é oriundo, mas em grande parte das vezes a aproximação que advém do uso de
um mesmo termo político esconde nuanças nas suas significações e práticas. Nem sempre estas distinções
aparecem nitidamente. Por isso é preciso ter cuidado ao tratar com o Socialismo, pois ele tem múltiplos
significados, acompanhando assim as variações das diversas tradições políticas. Socialismo e Comunismo
estão umbilicalmente ligados, e por isso quando nos referirmos ao Socialismo e sua crise contemporânea,
estamos considerando que este engloba o Movimento Comunista tal qual foi definido acima, como um de seus
agentes principais.
Há uma outra dimensão do Socialismo que tem um caráter mais difuso. É perceptível que o
Socialismo constituiu um Campo Cultural que gravita em torno de "Escolas de Pensamento3". O sentido que
damos aqui ao termo se caracteriza pelo fato de: 1) a Escola de Pensamento Socialista não constituir
necessariamente, como para Bourdieu, Sistemas de Ensino ou Estruturas Produtivas Materiais de Saber, sendo
perceptíveis assim mais pela influência que exercem na produção de obras culturais do que pela viabilização
destas; 2) a Escola moldar os agentes com que interage segundo um "modelo" que fornece categorias lógicas
através das quais estes vão conceber/perceber o mundo4, gerando assim os termos necessários a um senso
3 O termo aqui referido é o empregado por Bourdieu no seu estudo acerca dos Sistemas de Ensino. Talvez soe - e realmente seja -impróprio utiliza-lo para designar tal caso. Mas a associação entre o Movimento Comunista que se assentou nas estruturas dos PC's emesmo do movimento socialista de forma geral nos parece fundamental. Pois se, como segundo Bourdieu, a Escola fornece um "corpocomum de categorias de pensamento que tornam possível a comunicação", neste sentido ela se aproxima do papel que o Partido pareceexercer; e assim como a primeira, este cria também "comunhão e cumplicidade" entre os que são "escolarizados" ou que sofrem ainfluência direta ou indireta de seu ambiente intelectual e cultural. Ver BOURDIEU, Pierre " A Economia das Trocas Simbólicas"Editora Perspectiva. p. 203 à 2294 Ibdem, pp 217 e 218.
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comum que cria bases de seu consenso cultural, fornecendo os elementos mínimos para que a realidade seja
vivida/percebida tal como ela é.
A trajetória do Socialismo foi marcada pela constituição de um amplo Campo Cultural, no qual as suas
categorias lógicas predominavam, sendo que suas figuras de pensamento e de linguagem, ao se estabelecerem,
modelaram, remodelaram ou pelo menos abalaram de forma significativa o próprio meio social de que faziam
parte. O Socialismo como Escola de Pensamento, apesar de manter intimas relações com o Movimento
Comunista, e em muitas vezes dele derivar ou para ele fornecer quadros, não se confunde com ele e não pode
ser à ele reduzido. Os compromissos estabelecidos em cada uma das esferas são diferentes, e podemos dizer
que o Campo Cultural do Socialismo conseguiu ser mais abrangente que os Movimento Políticos que o
expressavam, em parte por consequência da sua autonomia relativa, em parte pelas suas próprias
características constitutivas, que permitia que sua força de atração fosse maior que a do primeiro (apesar de
sua força de coesão ser menor).
Tomamos então como objeto os Partidos de esquerda, que integram o Movimento Socialista, e são
ligados direta ou indiretamente à tradição da Revolução Russa. Nos deparamos dentro deste campo de
observação – escolher não seria o termo mais adequado – com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o
Partido Comunista do Brasil (PC do B). Além de suas origens remeterem diretamente ao ano de 1917, ambos
os partidos foram a maior expressão do Movimento Comunista no país por um longo período de tempo (1922-
1967). E estes são também os partidos mais diretamente ligados à trajetória da URSS.
O Partido dos Trabalhadores (PT), por sua vez, surgiu em um contexto distinto, num período em que as
esquerdas nacionais ainda não tinham conseguido sair da crise iniciada nos anos sessenta, ou pelo menos se
livrar dos seus efeitos. O PT inaugurou uma série de reflexões acerca dos projetos de sociedade, da concepção
de Socialismo e da própria Revolução Russa, em um momento em que o Movimento Comunista ainda se
encontrava fragilizado. Da mesma forma que o PCB (durante o período final da República Velha e entre o fim
do Estado Novo e o golpe de 1964) e o PC do B durante um período entre o final da década de 60 e meados
da 70 (principalmente durante a Guerrilha do Araguaia), o PT, durante a Nova República, foi o partido de
esquerda que desempenhou o papel socialmente mais expressivo. Apesar de destoar da tradição dos PC’s de
linha soviética, o P.T. também mantém em sua formação e evolução uma relação toda especial com o
processo revolucionário de 1917. A trajetória do PT nos anos 1986/87 é marcada por um profundo diálogo
8
com (e acerca) da Revolução Russa. A capacidade de construir leituras da realidade a partir dos modelos
explicativos surgidos do ambiente intelectual e político derivado da Revolução Russa foi importante também
no conjunto das estratégias adotadas pelo Partido em sua ação, modelos explicativos estes invocados também
como meios de legitimação.
Outros partidos ou grupos de esquerda poderiam e mereceriam ser aqui incluídos, o que não pôde ser
feito pelos limites de extensão do trabalho. Fomos obrigados a selecionar os casos que consideramos como os
mais significativos e representativos.
Os critérios que utilizamos para selecionar o partidos foram assim; 1º) a vinculação à tradição da
Revolução Russa de 1917; 2º)a expressão político-social obtida pelo Partido no cenário e na vida política do
país; 3º) a atuação da organização partidária nas diferentes conjunturas da vida política nacional e
internacional no contexto dos anos 80/90.
Os recortes que utilizamos foram fundamentalmente temáticos e não cronológicos, mas apesar disso,
procuramos utilizar documentos dentro de um determinado limite de tempo. Tomamos como marco o ano de
1980, o que favorece a análise pelo fato de que é a partir desta década que o PCB e o PC do B se
reestruturaram e reconquistaram a legalidade, e por ser também deste período que data a fundação do PT. A
década de oitenta é então um momento de “renascimento” das esquerdas no Brasil.
- resolução de congressos, encontros, conferências e etc. realizadas neste período;
- programas e estatutos vigentes neste período;
- revistas, jornais e materiais de caráter teórico e de formação política que vinculem posições dos Partidos.
Aqui o tratamento das fontes que utilizamos merece uma notificação particular. Estes documentos se
inserem dentro de um conjunto mais amplo de estratagemas e práticas que operaram diretamente na realidades
destes grupos. São, como diz Michel Foucault, "fragmentos de discursos que consigo levam fragmentos de
uma realidade da qual fazem parte(...) Vidas reais foram 'representadas' nestas poucas frases; não quero
dizer com isto que elas aí foram retratadas, mas que, de fato, a sua liberdade, a sua desgraça, por vezes a
sua morte, em todo o caso o seu destino aí foram, pelo menos em parte, decididos. Estes discursos realmente
atravessaram vidas; tais existências foram efetivamente postas em risco e deitadas a perder nestas
9
palavras.5" As fontes documentais aqui analisadas compõem assim o arsenal político de que se valeram (e
valem) os Partidos nas suas disputas e em seus jogos de Poder.
Nos dez anos passados entre o septuagésimo e optuagésimo aniversário da Revolução de Outubro, muita
coisa aconteceu, o cenário internacional se transformou radicalmente. Se em outubro de 1987 se comemorou
os 70 anos de vida da Revolução Russa, em 1997 não se pode render nada além de homenagens póstumas.
Isto implica que, provavelmente, abalos fundamentais ocorreram nas estruturas dos Partidos políticos que se
apoiavam em tais bases. Pretendemos poder dizer que abalos foram estes e refletir sobre eles.
5 Ver FOUCAULT, Michel "O Que é um Autor?" Editora Passagens, 1992.
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Partido Comunista Brasileiro:corpo estranho em mundo novo?
Saindo das trevas do período de chumbo da ditadura militar, de 79 para 80, o PCB passa por um
processo de recomposição, que se iniciara em 1974. Com várias baixas em meio ao Comitê Central -
membros assassinados pelos órgãos de repressão durante a chamada "Operação Radar" -, e também nas
instâncias intermediárias e de base, o Partido começa a receber os dirigentes que tinham se exilado no
exterior. Esta recomposição no entanto não se deu de forma "pacífica". Divergências internas levaram à saída
de Prestes, dirigente histórico, do Partido.
Este processo de reorganização resultou nos anos 80/81, na criação de um movimento de comunistas
pela legalização do Partido. É importante destacar aqui o lançamento de um documento chamado "Teses para
um Debate Nacional de Comunistas pela Legalidade do PCB" (Maio de 1981), aonde era indicada a data de
um Encontro Nacional de Comunistas para discutir a questão da legalização.
Em janeiro de 1984 realizou-se o "Encontro Nacional pela Legalidade do PCB"6, do que resultou a
formulação de "Uma Alternativa Democrática para a Crise Brasileira", documento que orientou a política do
Partido para o processo de redemocratização do país. O que marca a atuação do PCB nos anos 1980-86, é a
sua participação junto as lutas pela redemocratização da sociedade brasileira; no movimento pelas "diretas já",
e nas eleições realizadas em nível municipal. Neste período é perceptível que o Partido dá prioridade à aliança
junto ao MDB (Movimento Democrático Brasileiro), recém convertido em Partido do Movimento
Democrático Brasileiro. Destacamos então o papel que o PCB pretendeu desempenhar na construção de um
novo "Pacto Social", tentando ocupar função de destaque nas articulações institucionais e eleitorais.
Na sua inserção internacional, o PCB continua fiel à URSS e ao Bloco Socialista como um todo.
Apesar das claras dificuldades por quais passavam todos os regimes socialistas, o documento do PCB entende
que houve " o fortalecimento do sistema socialista mundial7".
6 2º Edição, Março de 1984 Editora Novos Rumos.7 Ibdem, p. 44
11
Podemos observar então que, até meados da década de oitenta, as questões internas da agenda do
país tem preeminência, e o Partido se preocupa muito mais em dar respostas a elas. Com relação ao mundo
Socialista, a postura do PCB continua a mesma: de reverência. No período que antecede a crise internacional
do socialismo, o PCB reafirma a sua posição e a sua fidelidade histórica em relação a ele:
"Reconhecendo os problemas existentes, não podemosaceitar que a experiência do socialismo esteja'exaurida' nem, muito menos, que se possa falar de'caducidade', quer do marxismo-leninismo, quer doapelo ideológico das experiências socialistas8".
São nos anos imediatamente posteriores que o PCB vai passar pelos momentos, talvez, os mais
dramáticos de toda a sua história. A partir de 1987, portanto antes da crise final dos regimes socialistas se
iniciar, o Partido começa a ter as suas dissenssões internas agravadas. Neste período de sete anos o Partido
tem quatro Congressos Nacionais (1987, 1990, 1992 e 1993). É visível então que este foi um período de
muitos e intensos debates, de acaloradas discussões.
A conjuntura social e política dentro do país apontava para a finalização do processo de
redemocratização da sociedade e do Estado, com a transição para novas formas institucionais, com a
convocação de um processo constituinte em 1988, e de eleições presidenciais para 1989. A grande questão do
Partido Comunista neste período, diz respeito a sua forma de inserção no processo político e social brasileiro,
à política de alianças, e principalmente, à da identidade do Partido9, que começava a ser colocada em questão,
segundo alguns setores do Partido, pela sua atuação. Há então aqui a crítica da orientação do Partido, como
podemos constatar pela seguinte fala:
" "Na prática, trocou-se a concepção do partido demassas classista e revolucionário, pelo de 'partido doentendimento', do partido da sociedade, partido dademocracia. Sob o pretexto da renovação e damodernização, o caráter do partido tem sidosistematicamente deformado; vem sendo transformadonum partido sem identidade, sem cor, desbotado,pálido."
Este era, de maneira geral, o clima que antecedeu o 8º Congresso do Partido, realizado em dezembro
de 1987. O Congresso tinha de dar respostas a estas questões, mas parece que se limitou a fazer uma avaliação
8 Ibdem, p. 479 Voz da Unidade Nº 332 de 12/02/1987 (José Antonio Segatto, p. 2 do Voz Debate) .
12
do desempenho dos últimos anos, e não se propôs a construir uma nova orientação política. Pelo contrário, foi
considerado que a função do Congresso não era de alterar a orientação geral do Partido definida desde 1984,
mas sim torná-las viável na prática concreta10. Nos anos que imediatamente antecederam a crise do
Socialismo, se foram realmente reafirmadas as teses centrais de "Uma Alternativa Democrática para a Crise
Brasileira", a visão de que o sistema socialista era estável, e de que continuava sendo um referencial essencial
paras as organizações de esquerda, também havia sido reafirmada. E na verdade foi exatamente isto o que
aconteceu.
E é perceptível através do jornal Voz da Unidade que a postura em relação ao Bloco Socialista tinha
permanecido a mesma desde 1984. Havia inclusive colunas no jornal que eram dedicadas à cobertura de todos
os acontecimentos do mundo Socialista, a sua história, e construía o apoio à experiência socialista,
principalmente através da difusão da tese de que os países do bloco socialista eram peças centrais na
manutenção da paz nas relações internacionais11.
A nível interno o fraco desempenho eleitoral do PCB, a sua incipiente inserção nos movimentos
sociais12, inclusive no movimento operário, causava um mal estar cada vez maior. O fato de não ter
conseguido eleger nenhum representante na constituinte também foi elemento que contribuiu para um
descrédito das orientações adotadas perante a maioria dos membros do Partido. Até este momento, são as
questões da orientação política do Partido, do seu desempenho nas tarefas a que se propunha realizar, e da
identidade partidária, que absorveram os debates internos, pelo menos até o ano de 1987.
Quando entra o ano de 1988, o movimento constituinte ganha força, e vemos o PCB se aproximar
cada vez mais do PMDB13 no plano político e institucional. O que acontece então, com a aprovação das teses
do 8º Congresso, é a manutenção das linhas gerais de "Uma Alternativa Democrática para a Crise Brasileira",
por um lado, e por outro, a manutenção da política de ação e alianças14 que vinha criando tanta insatisfação no
interior do Partido. Apesar de graves, os tensionamentos existentes nas relações internas são apenas latentes, e
não se expressam (ainda) em divergências de ordem doutrinária; se restringem apenas ao campo e aos
10 Ver Voz da Unidade Nº 328 de 15/01/198711 Ver Voz da unidade Nº 332 de 13/02/87 - "As mudanças na URSS" (p 4) e "Como a RDA ajuda manter a paz" (p. 14), Nº ... de13/03/87 - "Polônia - Laboratório do Socialismo" (p 15) e Nº ... de 03/04/87 - "Aperfeiçoando o Socialismo" (p 11).12 Para isso ver Voz da Unidade Nº 333 de 20/02/87 "As insuficiências são de nós mesmos" (p. 4) e o Nº ... de 24/04/87- "Dachoradeira a ação efetiva" (p 4).13 O PCB chegou a participar do governo Moreira Franco no Rio de Janeiro depois das eleições de 1988.14 Na Voz da Unidade Nº 328 de 15/01/1987 "Especial congresso do PCB". (Voz Especial) é colocada a orientação política da época "...da unidade e da convergência das forças políticas democráticas numa ampla frente, da qual a Aliança democrática (com seu eixo noPMDB) e o governo Sarney são elementos orgânicos, respaldados numa crescente participação popular..."
13
elementos táticos e conjunturais. O dado mais importante aqui, aquele apontado pelas palavras de Segatto e
de outros militantes, é que a identidade da organização partidária estava comprometida.
Mas é a partir do ano de 1989, após as eleições municipais (realizadas em 1988), que a disputa
presidencial irá canalizar no plano interno (o PCB lançou candidato próprio, Roberto Freire, apesar de boa
parte [talvez a maioria] do Partido querer apoiar Lula) e a crise do Socialismo no plano internacional - que vai
inclusive repercutir na campanha eleitoral - é que constituirão os elementos que irão marcar profundamente a
trajetória do PCB no período. Após este ano se dá o inicio da batalha aberta entre os setores divergentes
dentro do Partido.
As discussões em torno do projeto socialista são colocadas desde o início de 1990. O Semanário
"Voz da Unidade" vai ser palco privilegiado das discussões e proposições fundamentais do período. O
impacto da queda do Muro de Berlim (dezembro de 1989) vai se fazer sentir logo a partir de janeiro do ano
seguinte. Mas é só a partir do ano de 1991 que as contradições do PCB vão precipitar fissuras nos
fundamentos de seu edifício.
Uma consequência fundamental do golpe de Agosto, e do início do processo de desagregação da
URSS, se deu no Brasil imediatamente após os acontecimentos de Moscou. A tentativa de auto-dissolução do
Partido Comunista, o histórico "Partidão", de Astrogildo Pereira, de Luís Carlos Prestes e Giocondo Dias.
Propostas semelhantes só haviam sido cogitadas por ocasião do XX Congresso do PCUS, em 1956, que levou
a uma séria revisão da política dos Comunistas, e consequentemente a dissenssões internas. O mês de agosto
de 1991 iria, no entanto, apresentar uma séria diferença em relação ao ano de 1956. As propostas de
dissolução seriam explicitadas e encaminhadas no interior do Partido no sentido de sua efetiva realização.
Houve desta forma uma iniciativa concreta de dissolução do Partido Comunista Brasileiro, que partiu de seu
interior, sob a argumentação de que o fim da URSS colocava fim ao sentido da existência do Partido, e que
acompanhando o rumo dos acontecimentos, o melhor seria pular fora do barco e deixar que este afundasse
sozinho.
A situação do Partido Comunista Brasileiro no início da década de 90 era de um impasse; seguir
como Comunista, arcando agora com o peso do aparente fracasso de um projeto, que não se sabia ao certo
que tipo de impopularidade poderia gerar a longo prazo?; ou optar por mudar de projeto, tomando novos
14
rumos, buscando se consolidar enquanto mais um Partido (de esquerda e não mais Comunista) dentro do
sistema político brasileiro? As duas alternativas foram colocadas em debate.
Em fins de 1991, a URSS foi oficialmente extinta. A consolidação em Dezembro, do processo
iniciado em Agosto, parece ter convencido os defensores da dissolução do PCB de que a sua proposta era
viável, e de que chegara o momento de tomar medidas concretas neste sentido.
No entanto esta posição não era consensual, e sequer majoritária dentro do Partido Comunista
Brasileiro15. A proposta de auto-dissolução que fora apresentada no ºIX Congresso do Partido realizado em
Agosto de 1990, foi rechaçada por 95% dos participantes do Congresso, não chegando a obter segundo dados
do próprio Partido, 30 votos16.
Um dado interessante: tal proposta foi apresentada pela maioria dos membros da Direção Nacional,
instância organizativa máxima do Partido. A proposta no entanto não conseguiu angariar muitas simpatias, e
muito menos convencer a maioria dos militantes do Partido.
Feita e frustrada a primeira tentativa, os defensores da proposta de dissolução não tardaram em se
articular no sentido de viabilizá-la. Desta forma, um outro Congresso foi convocado para o ano de 1992. Até
aí a trajetória do PCB poderia ser considerada como uma linha contínua; era um Partido. A partir do ano de
1992 esta trajetória linear sofrerá uma ruptura.
O ºX Congresso realizado em 1992 proclamou a extinção do Partido Comunista Brasileiro,
substituindo-o pelo Partido Popular Socialista (PPS). No entanto a própria legitimidade deste Congresso foi
colocada em questão, tanto pela polêmica decisão, quanto pela forma como foi organizado. Mas, apesar
disso, ele é um marco fundamental, um divisor de águas na história dos Comunistas. Nele se inicia um
movimento de auto-preservação do Partido, em oposição ao movimento de auto-dissolução que até aquele
momento estava levando vantagem. As alternativas iniciais se converteram em posições ideológicas e em
forças políticas que iriam alimentar as disputas internas do PCB.
Para compreender o desenrolar do processo é fundamental retroceder no tempo para nos
contextualizarmos em meio aos fatos. Em 1989, houve a crise na Romênia, milhares de mortos, rebeliões
populares, a derrubada do Governo Ceaulsescu; em 1989 também, a derrubada do Muro de Berlim; em 1990
15 Segundo a versão dos Comunistas que prosseguiram no PCB.16 Ver Resoluções políticas do Xº Congresso do PCB (o encabeçado pelo Movimento de Defesa do PCB). Foram realizados dois XºCongressos, um que extinguiu o Partido fundando o PPS, e outro que não reconheceu o anterior e afirmou a existência do Partido.
15
a Hungria se preparava para as eleições, e o Partido Socialista Húngaro - cisão do POSH - pelas previsões
conquistaria 20% dos votos, enquanto o POSH (Partido Operário Socialista Húngaro) - o ex-Partido/Estado,
apenas 10%. Em 1990 também surge - de dentro do Comitê Central - a proposta do Partido Comunista
Italiano, um dos dois maiores PC's do Ocidente, de mudar seu nome, sigla, símbolos e estrutura. Havia então
todo um clima que apontava para uma iminente desintegração do bloco socialista, e que se expressava em
mudança na orientação histórica dos Partidos e Lideranças Comunistas em escala mundial. Toda esta
conjuntura já repercutia dentro do Partido Comunista Brasileiro, e de forma decisiva. Aqui é necessário uma
primeira observação; desde o início de 1990 pelo menos era possível perceber no PCB que a crise do
socialismo já era reconhecida, e que em função dela começa a se estruturar dentro do Partido dois tipos de
forças políticas, que a princípio timidamente, mas depois declaradamente, vão defender posturas muito
distintas em relação aos acontecimentos.
O que acontece é que a crise do Socialismo apresenta-se dentro do PCB como arma para a disputa
interna de hegemonia entre duas correntes distintas. A crise do Socialismo provocou esta disputa ou apenas
acirrou e elevou a patamares inimagináveis disputas antes existentes? Provavelmente as duas proposições são
acertadas. A crise do Socialismo criou um "novo" marco para as disputas internas; o que antes era disputa de
Comunistas para ver quem tinha um Comunismo melhor, se tornou a disputa entre os que eram a favor da
reestrutração dos referenciais centrais do Partido e da esquerda e os que até aceitavam mudanças, mas não
aceitavam renunciar à sua condição de Comunistas. Por outro lado, desde meados da década de oitenta,
quando da recomposição e legalização do Partido, já havia disputas internas em relação às orientações a tomar
(o que inclusive, como já mencionamos, precipitou a saída de Prestes do PCB). A crise do socialismo veio se
somar às disputas internas, e com elas formar uma nova base de instabilidade.
Fica evidente, ao analisar o então semanário "Voz da Unidade", principal órgão de propaganda
política do PCB nas décadas de 80/90, que a posição oficial do Partido (definida pela Direção Nacional) em
relação aos acontecimentos na URSS, principalmente depois de 89, era de entusiasmo. As mudanças no
campo Socialista eram vistas como o desenvolvimento do socialismo no sentido de uma renovação necessária.
Gorbachev, era saudado como o agente que encarnava a nova postura a ser tomada. Uma postura que
reconsiderava todo o processo de construção do Socialismo, apontando erros, falhas e equívocos.
16
Há um permanente diálogo com as transformações ocorridas no Leste europeu e com as mudanças
políticas em curso na URSS, a partir das políticas implementadas por Mikhail Gorbachev. Há uma expressa
simpatia pela mudança do "modelo" de Partido Único para o Pluripartidarismo, pelo abandono da noção de
Ditadura do Proletariado em favor da de Democracia de Massas moderna, e de modo geral pela ascensão dos
partidos que divergiam declaradamente da linha dos PC's no Leste europeu (Hungria, Romênia, Polônia,
Tchecoeslováquia). Isto pode ser verificado pelas publicações que vão de janeiro de 1990 a abril de 1991,
como no seguinte trecho:
" É generalizada a sensação de que o socialismo podeacabar (...) Não existe alternativa que não seja arenovação do socialismo real. E ela depende dosucesso na mudança dos Partidos Comunistas, dainfluência de antigas tendências socialistas que forammarginalizadas e perseguidas e do surgimento denovas forças socialistas, num quadro de pluralismoonde existirão portanto diferentes alternativas derenovação socialista em cada país (...) Para fundir anova teoria ao que há de moderno no movimentossociais, criando uma força política em condições deimpulsionar o novo socialismo, o Partido continuasendo indispensável. No caso um Partido Comunistade novo tipo - marxista, democrático, criativo,vanguarda de movimentos sociais e com densidadeeleitoral. Esse partido, surgido da renovação do PCB,não pode prescindir da militância comunista, de suapresença marcante na cena brasileira e sua história delutas sociais e políticas." 17(p2)
Este trecho demonstra que os desdobramentos possíveis da crise do socialismo ocorridos em 1990 e
1991 já eram devidamente considerados, por um lado, e por outro, que as mudanças ocorridas no Leste
europeu e na URSS até então começam a servir de inspiração e meio de legitimação para a proposta que
começa a se delinear mais claramente: a de que do então PCB, devia partir uma iniciativa no sentido de, a
exemplo do que acontecia na URSS e no Leste europeu, construir um Partido Comunista de "Novo Tipo".
Não se define o que se entende por novo e nem que "tipo" de Partido deveria se construir, só se fala do que
deve ser abandonado. Aqui no entanto, ainda se reserva ao Partido a concepção Comunista. Mas de toda
forma, a idéia de que a substância do modelo político defendido pelos Comunistas deveria ser alterada, e de
que novos postulados deveriam ser incorporados, já estava presente.
O º VII Congresso realizado em 1982 e que elaborou a tese denominada "Uma Alternativa
Democrática para a Crise Brasileira", havia definido as novas tarefas do Partido para a década de oitenta, e
17
mantinha o referencial, não só da URSS, mas de todo o Leste europeu, e invocava estas experiências como
socialistas, e as advogava ainda contra os ataques dos críticos . Entre o ºVII e o ºVIII Congresso (1987) estas
posições vão ser reafirmadas, e a eleição de uma nova Direção Nacional, tendo na sua presidência Salomão
Malina, e na vice-presidência Roberto Freire, parece expressar uma linha de continuidade em relação à gestão
da Direção Nacional anterior, de Giocondo Dias. A questão de "ser ou não ser" comunista só vai entrar em
debate após 1989. Esta mudança de posição, aparentemente "brusca", foi precedida de condicionantes
históricos; diferentes concepções do socialismo coexistiram no interior do Partido, e foram aos poucos
transformando o seu caráter. Mesmo notando que a posição da Direção Nacional do PCB nos anos de 89/91
transitou entre dois extremos opostos (da defesa dos postulados do Socialismo até sua recusa e denúncia
pública), não se pode ignorar que houve um processo de gestação destas idéias e práticas no interior do
próprio Partido, criando condições para que uma mudança de tal porte se verificasse. A crise do socialismo foi
a ocasião mais propícia para o "salto final", mas as razões e o caráter deste salto foram lentamente produzidos,
pela própria lógica e história do PCB.
No entanto, desde antes de 1987, ano do 8º Congresso, já haviam debates 18internos em relação aos
rumos do Partido e suas concepções. Há uma crise latente, entre as posições da Direção Nacional, sob o
comando de Giocondo Dias, e a posição da maioria da militância do Partido. Já era apontado que o partido
"caminhava" em direção a "social democracia19".
As lutas internas se processavam então muito antes do agravamento da crise do socialismo no Leste
europeu e na URSS. Após o 8º Congresso, a Direção Nacional dá continuidade a linha política anterior, com a
característica de que radicaliza a idéia de aprofundamento do compromisso do Partido com a democracia de
massas. Sob a gestão Salomão Malina, eleito presidente do PCB, e Roberto Freire/vice-presidente, a crise
interna vai ganhar contornos mais graves. Entre 1988 e 1991, o Partido praticamente se dividirá em dois: a
dos majoritários na Direção Nacional, e os críticos à ela, majoritários no Partido. Na Voz da Unidade Nº 480
de 25/01/90 (p2), o editorial intitulado "O Partido Novo" aborda a problemática de um partido de vanguarda
17Voz da Unidade Nº 478 de 11/01/1990, p. 2
18 Era "norma" dentro do Partido realizar sempre uma Conferência antes de cada Congresso. A Conferência preparatória ao ºVIIICongresso, a ser realizada em 1986 foi cancelada, o que gerou uma avalanche de críticas contra Direção Nacional. Fica explícito nesteepisódio, que há realmente um descontentamento muito grande em relação às posições da DN, e isto desde os anos 85/86.19 Na Voz da Unidade, edição Nº 478 de 11/01/1990 há um texto de Dirceu Lindoso, intitulado "Idéias sobre a Violência" (p 11), queanalisa o debate entre Lenin e Kaustky, declarando simpatias pela social-democracia e criticando firmemente o bolchevismo. Na ediçãoNº 333 de 19/02/1987 no artigo "Reconstruir o PCB´ (Armando Aranha, Voz Debate p. 2) afirma que " é inegável que o PCB está nocaminho da Social Democracia."
18
nos moldes leninistas e de um partido de massas/democrático. Denuncia a existência de duas tendências no
interior do Partido (de massas X de vanguarda) e a existência de dois estatutos (um para os filiados e outro
para os militantes).
Quando entra o ano de 1990, as disputas internas que já se delineavam desde 85/86 em torno das
ações do Partido, de seu programa e das suas alianças, somadas à crise do bloco socialista que vai se
converter em crise do Socialismo, inegável após 1989, definem o quadro da realidade do PCB. Uma crise
generalizada, que coloca em questão a estrutura organizacional, os postulados ideológicos e a sua própria
existência enquanto organização.
Vão se opor neste quadro uma linha que quer, pelo seu entendimento, a "democratização do
Partido", como é dito em um documento20 intitulado "Novos Rumos," que contém as resoluções de um
Seminário de Organização realizado no período, e em que há a defesa de uma "Perestroika" interna, inspirada
no processo inaugurado por Gorbachev na URSS, e uma outra, que também reconhece e absorve a
importância das reformas em curso na URSS mas que se recusa à abrir mão dos símbolos e posições
históricas dos Comunistas.
A linha da Direção Nacional pretendeu fazer uma revisão crítica das posturas assumidas nos 38 anos
de clandestinidade do Partido (47-85), atribuindo às concepções marxistas leninistas (estalinistas) que,
segundo ela, vigoraram no período, o caráter de deturpadoras do projeto socialista, o que justificaria a
"renovação" do projeto/programa do Partido e da sua própria estrutura. A grande oposição se daria entre uma
perspectiva vanguardista (partido de quadros) que segundo os críticos havia vigorado nos anos de
clandestinidade e a perspectiva de socialismo democrático (partido de massas).
A discussão em torno do processo de crise do Socialismo vai levar a uma linha de interpretação que
termina por questionar a própria forma de organização do Partido, o seu programa (questiona-se a aliança
operário camponesa em favor de uma aliança mais ampla, de camadas mais "qualificadas do operariado" com
o "mundo da cultura"), gerando assim a própria idéia de um Congresso aberto à participação, com direito a
voz e voto, de não filiados - ditos representantes de "fóruns socialistas", que trariam representantes dos
movimentos sociais e lideranças comunitárias para a discussão acerca da formação de um Partido de "Novo
Tipo".
19
Há entretanto um consenso entre as duas tendências do partido (a renovadora e a auto/afirmadora) de
que a auto-reforma do regime soviético tinha um caráter revolucionário. Porém os primeiros postulavam o
abandono dos referenciais comunistas, e os segundos a sua preservação no processo de mudanças e
aperfeiçoamentos. Ambas as correntes defendem a perspectiva de um partido de massas; fazem auto-crítica da
postura do PCB nos anos de clandestinidade mas concordam que a opção pela luta pacífica (ºVI Congresso,
1967) foi a acertada, ou seja, ambos condenam a luta armada; ambos valorizam o processo de
"democratização" da sociedade, sendo que para os primeiros a Democracia de Massas21 Moderna é o sistema
político mais adequado ao projeto socialista, enquanto que para os segundos ela é um instrumento
fundamental na construção da ordem socialista, mas não se confunde com ela.
As dissenssões internas vão dar um salto significativo: de questões de aliança política, vão passar a
ser divergências de ordem doutrinária, de concepção e de organização. E é nesta passagem de questões
particulares para questões doutrinárias que se pode compreender os acontecimentos posteriores. E só quando
se coloca em questão a própria sustentação ideológica do Partido, que os dois campos se definem. A crise do
socialismo vai propiciar dentro do PCB o questionamento dos postulados fundamentais do Partido Comunista,
como fica evidente na seguinte passagem22:
"A divulgação, para milhões de brasileiros, deopiniões sobre os últimos acontecimentosinternacionais e outros assuntos de maior relevânciaantes da reunião da Direção Nacional convocada parao debate e a deliberação sobre tais temas, contrariafrontalmente as normas que regem a vida partidária(...)Ao fazer a incoerente apologia da democracia formal,o programa perdeu a oportunidade de se alongar sobreo conteúdo revolucionário da perestroika - a qual deveconfirmar os comunistas brasileiros e contar com seudecidido apoio (...) Mas ao mesmo tempo é necessáriorevelar a grande apreensão dos comunistas quanto aoavanço das concepções anti-socialistas naquelespaíses, ao enfraquecimento da propriedade social, àperda do papel dirigente dos PC's, ao abandono dateoria marxista-leninista, do centralismo democrático(...)
Armando Sampaio, Flávio Araújo, Geraldo Rodrigues, Ivan Pinheiro, Juliano Siqueira e Zuleide Faria.
20 Ver "Voz da Unidade" no suplemento Voz Especial, edição nº 481 de 01/02/1990. O Seminário contou inclusive com a participação deHélio Jaguaribe, do PSDB.21 Ë perceptível que mesmo entre os opositores da linha da Direção Nacional há a defesa da idéia de uma democracia de massas rumo aosocialismo. Ver Voz da Unidade Nº 332 12/02/1987 -"Por um Partido Comunista Brasileiro" (Humberto Cavalcanti, RS).22 Ver Voz da Unidade Nº 482 de 08/02/1990 (p. 8)
20
É no entanto, no mesmo Congresso em que foi definida a extinção do PCB, o décimo, realizado em
1992, que surge entre os militantes o movimento de auto-afirmação e preservação do nome e símbolos
históricos do Partido. Este processo resultou no Movimento de Defesa do PCB, que surgiu como uma
organização informal que buscava recuperar a sigla e reconstruir a organização do Partido.
Do confronto entre as duas tendências no interior do PCB resultou: 1) a extinção efetiva da
organização partidária no ano de 1991; 2) um movimento de luta pela reconstituição do Partido Comunista
Brasileiro, que resultou no ano de 1993 em um Congresso, pela contagem destes militantes o décimo, que
deliberou pelo não reconhecimento do Congresso anterior e consequentemente pela não extinção do PCB.
Destacamos o seguinte: para o PCB atual e os congressitas que deliberaram pela manutenção do PCB, o que
houve no ano de 1992 foi um "racha". Consideramos que esta caracterização não contempla a complexidade
do processo. Isto porque, na verdade o que ocorreu foi um questionamento muito mais profundo da
organização e da ideologia comunistas, e além disso, obscurece o fato de que, mesmo que o Congresso tenha
sido realizado segundo regras que permitiram o voto de não filiados (o que teria permitido a fabricação da
maioria necessária à votação da extinção), a estrutura do próprio Partido permitia que a Direção Nacional
delimitasse as regras congressuais em determinado nível.
De um lado os que queriam a auto-dissolução do Partido - e que deliberaram pela sua extinção e
formação de um novo Partido, o PPS (Partido Popular Socialista) - acusavam os membros da outra corrente -
a auto-afirmadora, de intransigência e sectarismo, por estarem pretensamente obstruindo a comunicação do
Partido com os movimentos sociais. Por outro lado, os membros da corrente auto-afirmadora acusavam os
outros de "liquidacionistas" e de forma mais grave, de estarem burlando e fraudando os processos internos do
Partido para viabilizar sua proposta de destruição da organização partidária. Se é verdade que os membros do
grupo que veio a constituir o PPS eram tão entusiastas em manter estreitas relações entre
Partido/Movimentos Sociais através de "Fóruns Socialistas", caberia pesquisar se o PPS vem funcionando
desde o período (1992) através desta estrutura, ou se realmente o grupo dirigente só propôs este tipo de
relação democrática Partido/Movimento Social por ocasião do Congresso que deliberou pela extinção do PCB
e após conseguir isso, esfriou os ânimos.
Mas não é interessante no entanto tratar a questão em termos de legitimidade/ilegitimidade. Seria
mais produtivo nos afastarmos do momento histórico e da localidade específica (observando não o PCB, mas
21
os Partidos Comunistas, e não naquele momento, mas em sua evolução histórica global) e identificar como se
articulam as "formas de produção de legitimidade", detectando o tipo de relação de poder que está implicada
no discurso e nas práticas que atravessam a dinâmica do Partido enquanto tal e que podem acionar a
legitimidade/ilegitimidade de determinada prática dependendo do contexto. Visto que há inúmeros casos
reincidentes de questionamento da legitimidade das "Direções", e que referência a tais práticas - muito
similares com a realizada pelo grupo que fundou o PPS - são uma constante dentro da história dos PC's.
Constatamos acusações similares em 62 nos debates que levaram à bifurcação do PCB - Partido Comunista
do Brasil - em PCB, Partido Comunista Brasileiro e Partido Comunista do Brasil, PC do B - em 67, na cisão
que originou a Ação Libertadora Nacional (ALN), em 79-82 durante a saída de Prestes. E isto para citar
somente os questionamentos vindos de dentro e de caráter coletivo; restam ainda os individuais e os de fora,
que quase nunca receberam muita atenção. Parece haver assim uma tensão na relação da "Direção" com o
conjunto do Partido, e a legitimidade parece ser mais um elemento componente das relações de poder do que
um requisito para o seu exercício.
No período posterior ao processo, o relato do PCB sobre o período da crise interna (87-93) vai
argumentar que ele foi marcado pela ausência de reconhecimento e identificação da militância para com as
instâncias diretivas do Partido e consequentemente todos os órgãos e atividades por elas controlados. Há o
que se poderia chamar de perda de "credibilidade e legitimidade" da Direção Nacional diante do conjunto da
militância partidária, o afastamento dos órgãos diretivos do Partido das suas bases, que ao invés de
controlarem o Partido, passaram cada vez mais a ser controladas por ele por meio de sua Direção que fez
confundir suas posições com as do conjunto do Partido e vice-versa. Há de ser dito que, esta argumentação da
linha auto-afrimadora do PCB encontra amparo em documentos públicos, o que pode ser verificado nos
debates internos veiuculados pela imprensa partidária, inclusive nos descritos pela própria Direção Nacional.
A acusação de que faltava representatividade e reconhecimento por parte do conjunto das bases
partidárias à Direção Nacional é observável no próprio semanário Voz da Unidade, que trazia muitas das
polêmicas, e várias contestações às posições defendidas pela Direção Nacional. Os militantes criticavam
inclusive o próprio jornal, como por exemplo na seguinte passagem:
22
"A Voz da Unidade muito tem contribuído para adesinformação e para a não formação, e inclusive parao afastamento de militantes."23
Há um outro depoimento que ilustra o estado de espírito do conjunto da militância diante dos rumos
que o Partido estava tomando desde fins da década de oitenta, mas precisamente de janeiro de 90. Miguel
Ribeiro, do movimento estudantil, relata que em sua base no Rio de Janeiro "muita gente acha que Gorbachev
está destruindo o socialismo". Manoel Ribeiro, ex-camponês de São Bernardo disse que "tudo não passa de
uma campanha anti-comunista da imprensa burguesa (...) Não acredito na crise do socialismo. A crise que
conheço é a miséria e a fome"24.
Mas o fato é que o Partido foi realmente extinto num determinado sentido25; não ocorreu como em
outros momentos, a exclusão ou auto-exclusão de determinados setores do Partido, que a partir disto,
formaram outras organizações. O processo que se desenvolveu foi outro, completamente diferente do que se
convencionou chamar de "racha". De outro modo, esta visão desconsidera o próprio processo de luta e auto-
afirmação ideológica desenvolvida pelos militantes do Partido de que resultou o Movimento de Defesa do
PCB, que tanta carga simbólica tem diante de tal contexto, e que conseguiu por fim recuperar o direito de usar
a sigla PCB, depois de intensas batalhas judiciais.
E qualquer que tenha sido a forma pela qual o processo de extinção tenha se dado, ele aconteceu, e se
aconteceu é porque houve condições originadas da própria dinâmica da organização partidária que permitiram
isso. Por este motivo temos que reconhecer que este "processo" - de auto-dissolução - realmente existiu, para
podermos melhor compreender os seus condicionantes e efeitos.
O desdobramento final, da crise interna do PCB nesta conjuntura, se dá então no ano de 1993 . Com
o Xº Congresso, realizado nos dias 25 a 28 de Março26. Marco fundamental para o desdobramento deste
período de crise, e mesmo para a própria esquerda brasileira como um todo, o Congresso do PCB foi a prova
viva da capacidade dos grupos desenvolverem estratégias de sobrevivência nos contextos mais adversos,
23 Ver Voz da Unidade Nº 332 12/02/1987 (p. 1 do Voz Debate)
24 Ver Voz da Unidade Nº 481 de 01/02/1990 (Voz Especial, p A)25 Lembremos o seguinte; os que defenderam a manutenção do PCB só conseguiram reaver o direito de usarem a sigla em uma batalhajudicial 3 anos depois; seria fácil olhar para o passado agora como se esta vitória estivesse previamente garantida, mas não estava. Assim,se o PCB ainda existe hoje, é graças a ação de seus militantes . E isso serve para comprovar que o Partido deixou de existir para oSistema Político brasileiro durante certo período, e esta inexistência era relevante para os Comunistas, senão como explicar a batalha pelodireito de usar a sigla por investidura deste mesmo Sistema Político? Era importante para os militantes serem formalmente reconhecidoscomo PCB.26 Data, comemorativa da fundação do Partido, escolhida deliberadamente pelo seu peso simbólico. O Congresso se realizou naAssembléia Legislativa do Rio de Janeiro.
23
contrariando os prognósticos mais fatalistas. O PCB foi profundamente questionado com a crise do
socialismo, mas sobreviveu à ela; por muito tempo? O fato é que a esta conjuntura o Partido sobreviveu. E foi
se reestrutrando.
Nos anos que vão de 1994 à 1999, o PCB enfrentou um desafio que pensava ter superado: o da
obtenção do registro legal do Partido. Nas eleições de 1994 o Partido não pôde lançar candidatos próprios
porque não tinha o registro eleitoral. Neste momento, imediatamente após a crise, as questões internas voltam
a tomar a atenção da vida partidária. O primeiro Governo de Fernando Henrique Cardoso, o plano de
estabilização econômica, e o prevalecimento do modelo liberal (ou neo-liberal) no Brasil vão fazer destes
momentos, um período ainda de adversidade para as esquerdas. Se por um lado o socialismo aparentava ter
fracassado, naquele momento o projeto liberal aparentava ser capaz de oferecer o sucesso que os outros
modelos não conseguiam. Pelo menos este era o discurso dos mentores do projeto.
No plano internacional, começam a se esboçar, principalmente na América Latina, a ascensão de
movimentos de esquerda, que vão ser incorporados no imaginário dos partidos que então careciam de
referências, mas como modelos que vão levar a novas tensões e questionamentos. Os marcos do período são a
Insurreição Indígena em Chiapas (1994) México, e a ascensão no cenário internacional das FARC (Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia). Quer dizer, as esquerdas que estão em ascensão no mundo pós-
socialista não seguem os modelos clássicos defendidos pela esquerda internacional, e isto tanto pelas
especificidades nacionais das duas organizações (FARC e EZLN), quanto por seus projetos27. Imaginemos o
caso do PCB que havia se definido historicamente pela luta de massas em oposição a "via guerrilheira28",
diante do aparente sucesso de movimentos que seguem exatamente a via que o Partido havia descartado e
condenado. Além disso, as esquerdas "institucionais" em geral sofrem um pesado golpe a nível interno com as
derrotas nas eleições presidenciais (em 1994 e 1998) ambas no primeiro turno, e a nível externo com os
desastres eleitorais da esquerda na Europa Ocidental e nos Países da América Latina (Argentina, Uruguai,
27 No caso do EZLN ainda é mais significativo, pois ele define como ponto essencial do seu projeto a destruição do Sistema dePartido/Estado Mexicano, e faz severas críticas ao modelo socialista que havia derrocado. Raul Reyes, representante das FARC, ementrevista ao Jornal Estado de São Paulo, falou que "Temos de lutar por um governo socialista na Colômbia, mas não pode ser umsocialismo como esse que foi derrubado na URSS nem como o que existe hoje em e Cuba ou no Vietnã". O Estado de São Paulo.28 "A experiência histórica brasileira, também ela, vem demonstrando que somente a luta de massas pode abrir o caminho para derrotar oregime. A vida, deste modo, comprova o acerto da posição assumida pelos comunistas desde 1964..."(p. 22) - e - "Nas condições atuaisdo mundo e do Brasil existe a possibilidade real de o processo revolucionário brasileiro atingir seus objetivos por caminhos que excluama luta aramada, a insurreição e a guerra civil." (p. 160) in Uma Alternativa Democrática para a Crise Brasileira. 2º Edição Março de1984
24
Equador, Peru), que só começaram esboçar reações bem ao final da década (como na vitória da oposição na
Argentina, com De La Rua).
A emergência das FARC e do EZLN tiveram um sabor docemente amargoso: se eram provas de que
as esquerdas ainda estavam vivas, eram provas também de que as vias de ação com eficiência prática não se
reduziam às tradicionalmente adotadas. E mais um detalhe. Tanto o EZLN quanto as FARC são, além de
movimentos guerrilheiros, inegavelmente amplos movimentos de massa. Exatamente no momento em que um
dos grandes paradoxos das esquerdas é a insuficiência da sua base social e eleitoral, como elas próprias
costumam afirmar.
O PCB vai sair do período, debilitado, mas em processo de recomposição. Em 1995 realiza uma
conferência política nacional, preparatória ao XIº Congresso, a ser realizado em 1996. Este congresso é que
marca o processo final de reorganização do Partido Comunista Brasileiro, e definiu a linha a ser seguida até o
final da década de 90. Aqui, confirma-se então que, muito para longe da crise do socialismo ter implicado na
liquidação de um dos mais tradicionais representantes do Movimento Comunista do Brasil, o que
presenciamos foi um processo de reconstituição identitária e auto-afirmação ideológica. Isto é visível pelo
próprio texto de apresentação das resoluções do XIº Congresso:
"A realização do XI Congresso do PCB , nos dias 21 a25 de Março de 1996, veio aprofundar a estrutura deorganização do Partido, avançar e consolidar asposições revolucionárias, que desde meados de 1991,vinham se opondo, no interior do PCB, as tentativasliquidacionistas e de direita da antiga Direção(...) O XICongresso consagrou a busca de um entendimentogeral entre as forças de esquerda consequentes, deforma a desenvolver um trabalho político não só emdefesa da construção de uma sociedade socialista noPaís...29"
Estes documentos, de resoluções dos Congressos (Xº e XIº), vão consagrar no Programa do Partido,
não só os postulados históricos como o socialismo, mas também vão dar o juízo do histórico do Partido
sobre os processos ocorridos na ex-URSS e no Leste europeu. Aqui podemos observar o resgate da
experiência socialista como um todo, pelo próprio caráter do veredicto:
"O movimento socialista sofre grave crise cujasconsequências futuras ainda são imprevisíveis. Odesmantelamento da antiga União Soviética marca o
29 "Resoluções do XI Congresso", Apresentação de Zuleide Faria, Edição PCB-1996.
25
refluxo do movimento revolucionário e o avanço dasforças de direita30".
A derrocada dos regimes socialistas é tida desta maneira como um marco do "avanço das forças de
direita", do "refluxo do movimento revolucionário", um peso contra a ação dos Partidos Comunistas e
revolucionários. Um elemento que não pode deixar de ser mencionado, no entanto, é que, apesar de manter-
se fiel à experiência de construção do socialismo como um todo, o PCB vai reconhecer que houve falhas e
contradições no socialismo, ao invés de, como antes, compreender as críticas como meras "campanhas anti-
soviéticas da burguesia." Isto vai fazer introduzir no programa do Partido uma reflexão interessante sobre a
democracia:
"Lição a tirar do desmantelamento da experiênciahistórica do socialismo real é a da importância do fatordemocrático. Não o fator democrático limitado aoestreito horizonte dos mesquinhos interesses daburguesia. Mas o fator democrático que possibilita aefetiva participação dos trabalhadores na gestão diáriada sociedade..."31
A crise do socialismo vai impactar profundamente sobre a realidade do PCB, fazendo com que as
polêmicas existentes convertam-se em questionamentos das estruturas do Partido, da sua forma de
organização e do seu programa. Se observarmos as discussões, veremos que houve um debate no estilo Lenin
X Martov de 1903: é membro do Partido quem aceita seu programa ou quem está dentro de uma de suas
instâncias organizativas?32 Foi dentre outros fatores, uma discussão similar a esta, de caráter fundamental, que
possibilitou a extinção do Partido em 1991. No momento em que a então Direção Nacional definiu que não
era necessário fazer parte das organizações do Partido para votar no seu Congresso, abriu-se espaço para que
os filiados não militantes e mesmo não filiados pudessem assumir papel decisivo nos acontecimentos.
A crise final do bloco socialista impôs o reconhecimento de que a experiência socialista como um
todo era passível de crítica, e que o Partido deveria enfrentar esta realidade. Mas ele soube extrair também
lições positivas. Não entraremos no mérito deste "reconhecimento", se ele é só um reconhecimento formal e
ritual de uma realidade que se impõe e que por isso não pode ser negada, sem implicar no entanto na
30 X Congresso do PCB, Resoluções Políticas (p. 6). Edição PCB 1993.31 Ibdem, pp. 9-10.32 E.H. Carr narra os debates entre Lenin e Martov acerca dos Estatutos do Partido Bolchevique, em seu livro "A revolução Bolcheviquevolume 1 - História da Rússia Soviética " Editora Afrontamento, Porto 1977 (p. 43).
26
renovação das práticas e das lógicas organizativas, ou se realmente ocorreram transformações deste tipo. Esta
tarefa demandaria um outro tipo de pesquisa.
Partido Comunista do Brasil:na saúde e na doença, na alegria e na tristeza
O Partido Comunista do Brasil tem uma trajetória muito interessante dentro do movimento
comunista brasileiro. É o Partido que por meio de uma "subordinação voluntária" mais aderiu ao "governo das
tradições recebidas" da história da URSS. É importante lembrar que a própria origem do PC do B faz parte de
um processo de recusa à determinadas "críticas" feitas a esta história, por um lado, e por outro, da recusa ao
abandono da denominação histórica de "Partido Comunista do Brasil" (que foi denominação da sigla PCB
entre 1922 e 1961). Por ocasião do º V Congresso (1960) foi definido que à Direção Nacional poderia tomar
todas às medidas necessárias à legalização. Valendo-se deste fato, o Comitê Central do Partido deliberou
pela alteração do nome partido em 1961 - em favor da denominação de "Partido Comunista Brasileiro".
Houve então a movimentação dos descontentes em meio à membros do Comitê Central, e da base partidária,
no sentido de recuperá-la. O importante a assinalar nestes processos é que a luta pela sigla, por mais que possa
parecer, não é um fenômeno fortuito; ela indica exatamente duas opções. A de um "Comunismo" mais
nacionalizado, de "raízes e compromissos locais", ou seja, Brasileiro, e a de um Comunismo do Brasil, ou
seja, que pensava e representava a si próprio como uma seção local de um Movimento Comunista de caráter
internacional. Mas por enquanto, tratemos da percepção do Partido no entendimento da crise do Socialismo.
Não consideramos aqui o PC do B como um racha de cúpula do "verdadeiro PCB", título que alguns
atribuem ao Partido Comunista Brasileiro de Prestes. Como o PC do B conserva a si próprio, assim como o
PCB, este título, o mais sensato é considerar que em determinado momento houve uma bifurcação do
Movimento Comunista, e que cada um tem a seu modo uma parte da verdade. Esta idéia da bifurcação
encontra respaldo em alguns fatos; ambos os Partidos tomam como data de sua fundação o 25 de março de
1922 e reivindicam as mesmas figuras do evento; cada um ficou com um "pedaço" do PCB original; um com
a sigla (PCB) e o outro com o nome por extenso (Partido Comunista do Brasil). O PC do B e o PCB se
percebem enquanto continuadores genuínos do PCB fundado em 1922, e assim os consideramos.
O PC do B reunia condições melhores para escapar à crise do Socialismo, sem sofrer as dimensões
mais destrutivas do seu impacto, que o PCB. Isto se deve a sua relativa independência em relação à URSS. O
28
PC do B, diferentemente do PCB, subordinou-se simbolicamente à URSS, mas manteve sua autonomia
política, enquanto que o PCB instituiu uma autonomia simbólica, que era resultado exatamente da sua relativa
subordinação política - dizendo de outra maneira, o PCB manteve autonomia simbólica em relação ao
conjunto de representações que apresentavam os PC's como parte integrante de uma estrutura do movimento
comunista internacional (como a Internacional Comunista e o COMINFORM), e somente neste sentido; mas
manteve relações políticas e diplomáticas estreitas com o PCUS. Enquanto isso o PC do B foi resgatar a
memória do período Stálin como "verdadeiro período Socialista", mas não conseguiu manter relações
políticas estreitas com o PCUS, e se aproximou cada vez mais do PC da China e das teses Maoístas, mas
mantendo sua autonomia. Desta forma enquanto a URSS (dos anos 1917-1953) para o PC do B reorganizado
em 1962 tinha mais o caráter de Centro Exemplar que de uma central política, a URSS de todos os seus dias e
de todas as posições tinha para o PCB, o caráter de um Centro Dirigente33.
O PC do B emergiu do período mais crítico da Ditadura Militar (70-80) com muitas baixas em seus
quadros de militantes. A Chacina da Lapa de 1976, em que dois membros do Comitê Central do PC do B
(Ângelo Arroyo e Pedro Pomar) foram mortos pelos órgãos de repressão e tendo sido presos outros
dirigentes, abalou profundamente o Partido Somou-se isto ao desmantelamento da guerrilha do Araguaia,
ocorrido pouco antes, em 1974. Os dois episódios constituem momentos que marcam profundamente a
trajetória do Partido. Com a anistia e o início da redemocratização, militantes voltam do exílio, incluindo o
mais antigo dirigente do PC do B, João Amazonas, que se exilara na Albânia.
Em 1983 o PC do B realizou o seu 6º Congresso, o primeiro evento organizativo de peso desde a
Conferência de Reorganização que acontecera em 1962. Durante a primeira metade da década de oitenta, o
PC do B se lançou à tarefas de reconstrução de suas bases políticas e reconquista da legalidade, de luta pela
redemocratização, atuando junto ao movimento estudantil (aonde conseguiu hegemonizar a diretoria da UNE
- União Nacional dos Estudantes) e ao movimento sindical.
O VIIº Congresso do Partido Comunista do Brasil se deu em Maio de 1988 em São Paulo. Apenas
três anos após a reconquista da legalidade (1985), e com o Partido contando com mais de cem mil filiados em
33 O sentido do conceito de Centro Exemplar é utilizado aqui a partir da definição dada por Clifford Geertz. No entanto, a noção deCentro Exemplar não está em oposição a de Centro Dirigente, sendo a oposição mesma desprovida de sentido se tomada de forma rígida.Na verdade, no caso do Movimento Comunista, o Centro Dirigente tem de ser necessariamente um Centro Exemplar. Mas esta oposiçãoserve para mostrar que o tipo de relacionamento político com a URSS e suas implicações, no caso do PCB e PC do B, eram muitodiferentes. Ver GEERTZ, Clifford "Negara - o Estado Teatro no século XIX".
29
todo o país34. Este Congresso demarca a retomada das discussões de caráter nacional dentro do Partido, que
não aconteciam desde 1983. Aqui apresentaram-se as linhas de interpretação do Partido acerca da realidade
nacional e internacional. E diferentemente do PCB e do PT, o PC do B esteve sempre atento aos processos
ocorridos no bloco socialista, e foi entre os três Partidos o que mais se preocupou em construir uma
argumentação acerca (e contra) as transformações na URSS e no Leste europeu.
Há também uma outra diferença do PC do B em relação aos outros dois Partidos. É perceptível a
tentativa de equilibrar as discussões e o empenho do Partido entre as tarefas relacionadas ao sistema político e
à conjuntura nacional, e a compreensão do contexto internacional. Enquanto parece que o PT e o PCB até
aquele período se dedicavam mais enfaticamente às questões da política nacional - e se relacionavam
diferentemente com as mudanças no sistema socialista internacional -, o PC do B já se preparava para
enfrentar uma campanha "anticomunista", e definia esta como uma de suas frentes de luta ideológica.
As questões internas que canalizam a atuação do PC do B são o processo constituinte, a luta por
eleições diretas em 88, e a campanha de oposição ao Governo Sarney, sintetizada na palavra de ordem que
iria se consagrar na década seguinte - com outras campanhas de oposição, a Collor e FHC -: "Fora Sarney". A
situação diagnosticada apontava para "uma crise do sistema capitalista internacional, e para uma crise política
de caráter estrutural no Brasil, que se refletia no anacronismo de suas instituições". O Brasil estava, segundo
os congressistas, "numa encruzilhada histórica": (...) o Brasil passa por situação muito difícil. Atravessa uma
crise não apenas econômica e financeira, mas também política, social e moral."35
A atuação do Partido na constituinte recebe destaque nos informes do Congresso. É feita a menção
inclusive de que a própria idéia de Constituinte faz parte tradicionalmente das propostas comunistas. Para
ilustrar essa afirmação, fala-se da atuação do Partido Operário Social-Democrático Russo, e de como a
corrente bolchevique e Lenin defenderam uma constituinte "soberana e democrática" fora da tutela do regime
autocrático (no caso, o Tzarista), desde 1905. Rememora-se o fato de que o PC do B em 66 (por ocasião da
6º Conferência) e em 75, durante o regime militar, propôs a convocação de uma Constituinte livremente
eleita. A outra questão de ordem especificamente nacional que envolve o conjunto da vida partidária é a
"sucessão presidencial", que segundo os dizeres do Partido, "transforma-se na batalha política mais
34 Ver "A Política Revolucionária do PC do B - informes ao 7º Congresso", Editora Anita Garibaldi 1989, p. 7.35 Ibdem, p.18.
30
importante da atualidade"36. Assim, o PC do B estava amarrado às mesmas grandes questões que amarravam
os demais partidos de esquerda na época.
Com respeito ao contexto internacional, o Partido diagnostica que as potências do capitalismo
internacional se encontram em momento de estagnação, e não conseguem superar o momento ou o ciclo de
crise para um novo ciclo de acumulação. "Amplia-se a fase da depressão e reduz-se a fase da reanimação e
auge da produção37".
Mas é na compreensão explicitada acerca do bloco socialista que a orientação do PC do B se mostra
ainda mais diferenciada. A sua postura em relação ao sistema socialista é crítica, e sua previsões não são nem
um pouco animadoras:
"As crises atingem igualmente os países menosdesenvolvidos, sobretudo os que recorreram a projetosindustriais baseados no capital estrangeiro, e a UniãoSoviética que anteriormente fora socialista. Em 1985,Gorbachev declarou no Comitê central do PCUS que opaís estava diante da crise"38.
Se a crise do Socialismo era negada pela política do PCB durante os anos de 1980 à 1987, e
praticamente ignorada pelo PT antes de 1988, ela já era objeto de avaliação e interpretação dentro do Partido
Comunista do Brasil, pelo menos desde o VIIº Congresso. E essa antecipação vai ser fundamental nos
próprios efeitos que a crise do socialismo irá provocar.
A descrição que o PC do B faz acerca da ascensão da política de Gorbachev não deixa dúvidas sobre
a compreensão do Partido a respeito do significado da Perestroika e da Glasnost:
"Os Estados Unidos e a União Soviética revisionistajuntam-se no combate ao socialismo e à revolução. Portoda a parte, desenvolve-se intensa campanha anti-comunista, visando ao descrédito das nobres idéias dosocialismo e do comunismo.39"
Segundo ainda as palavras do Partido nunca "como nos dias atuais gastou-se tantos recursos e
convocou-se tantos mercenários de pena para atacar o comunismo e desacreditar a teoria revolucionária da
classe operária." 40 Para o Partido, já estava em curso uma ampla campanha internacional, de caráter político,
ideológico e moral contra o socialismo e o comunismo.
36 Ibdem, p.3037 Ibdem, p. 9.38 Ibdem, p. 9.39 Ibdem, p. 8.40 Ibdem pp. 13 e 14.
31
E a URSS do período, era entendida enquanto uma das peças componentes do sistema capitalista
internacional. O sistema socialista internacional na verdade, e já há algum tempo, havia se desviado do
caminho socialista. A URSS, encabeçada por Gorbachev e os revisionistas, lideravam o processo de
destruição da obra socialista em todo o mundo, subsidiando assim a campanha internacional anti-comunista, e
preparando o caminho da restauração capitalista:
"A URSS necessita de trégua objetivando reorganizarde forma capitalista sua economia, a fim de garantir-lhe competitividade no mercado mundial; os EstadosUnidos precisam de uma paz armada, temporária, parapôr ordem na casa em sérias dificuldades financeiras, epara esmagar os movimentos progressistas emqualquer parte." 41
O resumo do quadro internacional apresentado pelo PC do B aponta para a convergência de
interesses dos Estados Unidos e da União Soviética -, que, através do processo da Perestroika e da Glasnost,
preparava o caminho da sua reinserção no sistema capitalista internacional. E esta reestruturação política e
econômica da URSS expressava na verdade a disposição dos russos no sentido de estabelecer um novo pacto
internacional de partilha do mundo em áreas de influência soviético-norteamericanas.
O PC do B desta maneira já vinha se preparando para o que as esquerdas como um todo
considerariam como uma surpresa. À campanha anticomunista organizada pela "burguesia e pelos
revisionistas", o PC do B pretendia opor o desenvolvimento de uma forte propaganda de caráter socialista, ao
mesmo tempo de denúncia e de proposição. O Partido define como principal tarefa para a "Frente Ideológica"
no período subsequente o seguinte:
"Prosseguir na luta em defesa do marxismo-leninismocontestando a propaganda contra-revolucionária e acampanha anti-comunista em curso. Responder àtempo aos ataques à doutrina de Marx, Engels, Lenin eStálin. Questionar reformismo, o revisionismo, asocial-democracia com suas particularidades no Brasil.Atenção especial merece o desmascaramento da novaversão revisionista-capitalista contida no livroPERESTROIKA, divulgado pelos norte-americanosobjetivando corromper a consciência dos trabalhadorescom a pregação do socialismo burguês."42
O processo representado pela Perestroika expressa uma nova fase da luta do capitalismo e da ideologia
burguesa contra o comunismo, um novo estágio da contra-revolução em escala internacional. Este processo,
que entre 1956 e 1980 tinha se dado de forma tímida e disfarçada sob um manto "marxista" agora começava a
32
se "desnudar". "O capitalismo semicamuflado dá lugar ao capitalismo às escâncaras. PERESTROIKA é a
condenação global das leis próprias do socialismo e a exaltação das leis objetivas do sistema capitalista
reintroduzido na URSS"43.
Encerrando a análise do Partido a respeito dos processos em curso no sistema socialista
internacional, as resoluções dizem que a crise pela qual passa a sociedade da URSS não poderia se dar em
uma sociedade verdadeiramente socialista, pois as crises até existiriam, mas não neste nível e profundidade.
Crises no sistema socialista, só ocorreriam momentaneamente. A crise soviética era uma crise do
"revisionismo" e não de uma economia socialista, uma crise de uma economia semi-capitalista. "A causa
atual da estagnação e do atraso atual está no abandono do socialismo, na volta ao capitalismo. Os
fenômenos referidos têm a ver com o sistema burguês. Vêm da época de Krushev, justamente do 20º do PCUS
que trocou o regime econômico-social da União Soviética." 44
A crise do Socialismo dos anos 89/91, já estava previamente interpretada pelas resoluções do VIIº
Congresso, que pretendiam preparar o Partido para possíveis contestações, criando inclusive a cômoda
interpretação de que na verdade não era o socialismo que estava em crise, tal qual definido por Marx e Lenin,
mas sim o revisionismo. Porém, a crise conseguiu romper a barreira de isolamento que o PC do B tentou
erguer em torno de si. Até mesmo a Albânia , baluarte do socialismo para o PC do B, caiu diante da "onda
contra-revolucionária."
Após o VIIº Congresso, e a frustração das expectativas de vitória da esquerda nas eleições
presidenciais de 89 (na Frente Brasil Popular, que congregou no segundo turno PT, PCB, PC do B, PDT e
outros), o PC do B vai cumprir um certo papel em um momento importante da vida política nacional.
Por ocasião da crise do Governo Collor, em 1992, o Partido vai ganhar destaque na cena política
nacional, pois desempenha a função de articulador na organização da campanha "Fora Collor", que somada a
outros fatores - mais importantes inclusive - de ordem política e institucional, resultou no impeachment do
então presidente. A marca do período são as grandes manifestações estudantis organizadas e capitalizadas
pela União Nacional dos Estudantes (UNE), o que não se via desde a década de 60, e que chegou mesmo a
despertar um certo saudosismo em relação ao movimento estudantil do período da Ditadura. O então
41 Ibdem pp. 15 e 16.42 Ibdem, p. 38.43 Ibdem, p. 48.44 Ibdem, p. 49.
33
presidente da UNE, Lindberg Farias, do PC do B ganhou projeção nacional, e com ele o Partido, no bojo do
marketing feito através da figura dos "cara pintadas".
É neste contexto de ascensão do Partido no cenário nacional que, em 1992, se dá a realização do 8º
Congresso do Partido, tendo significativo título de "O Socialismo Vive", como uma forma de resposta a
todos os acontecimentos que tinham acabado de se suceder no Leste europeu e na URSS, e ao que,
principalmente, começava a se apresentar como efeitos desorientadores do movimento comunista
internacional. "Pode-se dizer que este encontro teve importância equivalente ao seu Congresso de fundação,
em 25 de março de 1922. Isto porque, enfrentando a avalanche anti-comunista, que nega todos os valores da
revolução, o PC do B não só mantém firme a rota como eleva a sua compreensão da luta pelo socialismo e
encontra explicações científicas para o processo de luta ideológica na construção da nova sociedade assim
como na vida do Partido45".
Na abertura do Congresso, em um ato revestido de simbolismo, Lênin - "o grande teórico marxista,
dirigente da Revolução de Outubro e da construção do socialismo na URSS46" - é eleito seu patrono, com os
congressistas "conscientes de que essa atitude é uma reafirmação das referências básicas do PC do B47". O
evento é assim uma forma de dar resposta à crise internacional do sistema socialista, que chegara ao fim, e a
dos Partido Comunistas. É um ato de recusa total à "campanha anti-comunista" engendrada
internacionalmente.
Este Congresso fora inclusive antecipado - estatutariamente deveria ser realizado em 1993,
cumprindo o intervalo de 5 anos - coincidindo assim com o aniversário de 70 anos do Partido. O que
demonstra como aquelas questões exigiam urgência em serem discutidas. Assim é narrado o processo:
"A debacle do socialismo na União Soviética, no Lesteeuropeu e também na Albânia com a destruição detudo o que lembrava o comunismo, acentuou a crisedo socialismo. Acoplada com a campanha anti-comunista da burguesia reacionária, multiplicam-se osataques revisionistas e oportunistas ao partido daclasse operária e ao marxismo-leninismo48".
Assim, a crise do socialismo não era um fenômeno restrito aos países do bloco socialista, era um momento de
contestação global aos próprios fundamentos dos Partidos Comunistas enquanto tal. Ela questionava
45 Ver "O Socialismo Vive - resoluções do 8º Congresso" Editora Anita Garibaldi.46 Ibdem, p. 9.47 Idem.48 Ibdem, p.15.
34
diretamente a credibilidade dos PC's em particular, e das esquerdas em geral. Esta credibilidade dos Partidos
Comunistas é profundamente abalada, mesmo nos países em que eles não se extinguem. As dificuldades
impostas pela ascensão do (neo) liberalismo e pela ampla campanha que é então feita em alusão à
"democratização" do lado leste do mundo, parece colocar questões que os comunistas e os esquerdistas em
geral não esperavam, e para as quais não tinham respostas, pelo menos não imediatamente. Daí a urgência que
eles próprios viram em discutir estas questões, na tentativa de estabilizar o seu próprio campo.
Mas se a crise é tão intensa e virulenta, ela não vai afetar o Partido enquanto uma instituição
componente de um sistema partidário. E esta talvez seja a razão de um dos grandes equívocos na análise do
processo, que é confundir a crise do socialismo com o enfraquecimento político e eleitoral dos Partidos de
esquerda e comunistas. No Brasil esta equação não se operou. Como podemos ver:
"O Partido Comunista do Brasil, embora os contra-tempos da crise do socialismo, resiste firmemente.Não sofreu perdas maiores. Ao contrário, mantém suabancada na Câmara Federal e aumentou suarepresentação nas Assembléias Legislativas e CâmarasMunicipais. Cresceu, também, a influência direta doPartido nas organizações nacionais de massas. É hojeo único Partido de esquerda no Brasil que defende osocialismo científico e se orienta pela teoriarevolucionária da classe operária."
Se a crise afetou o Partido, como ele próprio reconhece, e como a própria dinâmica da vida do Partido o
demonstra, mas se, por outro lado, isto não implicou em um enfraquecimento político e social do mesmo,
como ocorreu com os Partidos de Esquerda na Europa, em que plano mais exatamente o Partido foi atingido?
Vejamos se conseguimos encontrar no decorrer do trabalho, pelo menos alguns indícios da resposta desta
questão.
Segundo as resoluções do Congresso, o fim do bloco socialista composto pela URSS e pelo Leste
europeu assinalou o processo de "falência" dos revisionistas, assim como, nos países de terceiro mundo os
dias são "muito difíceis" em consequência do prevalecimento do capitalismo49. O fim da URSS causou um
desequilíbrio no sistema de relações internacionais, deixando aos EUA a hegemonia na nova ordem mundial50
e o empobrecimento generalizado das Nações a eles subordinado. Porém, a inevitabilidade do ressurgimento
do socialismo vem do próprio capitalismo, incapaz de sair das suas crises:
49 Ibdem, p. 16.50 Ibdem, p. 22
35
"A força que ostenta o capitalismo em decomposiçãoestá minada por contradições insolúveis, não temfuturo. O socialismo é a grande bandeira libertadoraque os povos terão de reerguer para tornar realidade avitória dos ideais revolucionários, dos explorados eoprimidos.51"
O ressurgir do socialismo será tão inevitável quanto foi o seu "fracasso" sob a condução dos revisionistas.
Deriva de condições objetivas, que escapam ao controle do sistema que as engendra.
A nível da realidade interna dos Estados/Nacionial, a decomposição social (inflação, recessão,
desemprego, falência do patrimônio público), o estado obsoleto das instituições (executivo, legislativo e
judiciário) e a ameaça à soberania nacional - representada pelo "desmonte" das forças armadas brasileiras e
pela "internacionalização do território, ou seja, presença estrangeira no país como na Amazônia- justificam
igualmente a atualidade e a vitalidade da proposta socialista:
"Objetivamente, o que o Brasil necessita é passar aosocialismo, criar um governo socialista, dirigido pelasforças mais avançadas da sociedade, por partido oupartidos, que tenham por base uma teoria científica,revolucionária.(...) Em termos de estratégia política -esse é o objetivo maior que persegue o PartidoComunista do Brasil, PC do B, na atualidade. Somossocialistas e lutamos, desde já, pela vigência dosocialismo científico em nossa pátria. É a única everdadeira solução para os intricados problemas que opaís atravessa52".
Se o socialismo é uma necessidade e um objetivo a ser perseguido, diante dos "contratempos" que o
socialismo então vivia, se tornou necessário justificar, muito para além das necessidades "objetivas" que o
socialismo era ainda um objetivo que merecia ser alcançado.
E é na tentativa de reavivar o poder motivacional do socialismo que o Congresso vai fazer um longo
processo de avaliação da crise do socialismo, passando por balanços das "conquistas de 1917", pela crítica do
período socialista (1917-1956), para terminar finalmente com a análise da crise do socialismo, tida não como
crise do socialismo, mas sim, como crise do revisionismo:
" No curso de 1990/91 o sistema revisionista implodiu.Os povos de diferentes países levantaram-se contra oregime e o governo revisionistas, tidos porém, comosocialistas. Atacaram os governantes e tudo o que serelacionava com a revolução e o comunismo.Instalaram governos abertamente anticomunistas53".
51 Ibdem, p. 24.52 Ibdem, p. 31.53 Ibdem, p. 38.
36
A compreensão do Partido a respeito do que sucedeu nos anos de 89/91, não assinala uma crise do
socialismo, mas sim uma crise do "sistema revisionista", que havia sucedido ao período socialista. Chega-se
assim a uma distinção entre duas épocas na história da URSS. A época socialista (como os leninistas no
poder, entre 1917 e 1956) e uma época revisionista (com os oportunistas no poder, iniciado em 1956 com
Nikita Krushev). A incompreensão deste processo histórico é que estaria levando a uma crise do movimento
socialista, que por não conseguir distinguir os socialistas dos oportunistas, estava imerso na confusão
provocada pela campanha anticomunista:
"Com a debacle do Leste europeu e da URSS asituação se complicou mais ainda devido a que osmales do revisionismo foram atribuídos aocomunismo.54 "
Por este caminho, chegou-se a conclusão de que o socialismo não estava em crise. O que entrou em crise foi
o sistema revisionista. Caberia explicar então como os revisionistas conseguiram se tornar hegemônicos
dentro do sistema socialista a ponto de conseguirem reverter o seu processo de construção e instaurar o
capitalismo. Pois na verdade "O socialismo foi esmagado por corrente que atuava no seio do movimento
operário55".
E é neste momento que se realiza a grande fissura, provocada pela crise do socialismo, na estrutura
do PC do B. Pois esta vai levar a uma auto-crítica do período socialista, ao reconhecimento de insuficiências e
erros, e inclusive, do fato que Stálin teria sido responsável por distorções na construção do socialismo. É
importante lembrar que a questão fundamental, que dentre outras, motivaram a constituição do PC do B, foi
exatamente a negação à realização da crítica do período Stálin e sequer mesmo da cogitação de que este havia
dirigido um processo que levou a distorções na construção do socialismo. A crise de 1991 conseguiu provocar
no PC do B o que nem o relatório do XXº Congresso do PCUS provocara: a fissura na imagem de Stálin e na
do regime construído entre 1917/56. Ao recuar a derrota do socialismo em 35 anos atrás (de 1991 para 1956),
o PC do B pretendia se preservar da crise vivida no aqui e agora (1991), mas teve que, neste mesmo
movimento, inserir no passado antes preservado de qualquer crítica, as razões da derrota do socialismo.
Houve assim um deslocamento do escopo temporal da crise e um deslocamento da sua natureza.
54 Ibdem, p. 40.55 Idem.
37
Descrevendo as razões da derrota dos leninistas para os oportunistas, o Partido vai afirmar que:
"O PCUS mostrava-se ideologicamente enfraquecido.Criara-se um clima de autosatisfação e comodismoque vinha da vitória na segunda grande guerra, doprestígio internacional da URSS, do respeito eveneração por Stálin. Tudo estaria bem,. O socialismoconsolidado, o quem vence a quem resolvido(!) afavor do socialismo, caminhava-se espontaneamentepara o comunismo...Problemas conflitivos limitavam-se à área exterior."56
O processo que possibilitou a vitória do revisionismo remete à própria postura do Partido e de seus principais
dirigentes. A vitória dos revisionistas se tornou possível apenas num quadro em que os dirigentes
revolucionários vacilaram, descuidaram da execução dos preceitos doutrinários do próprio marxismo-
leninismo:
"Tudo isso mostra que o PCUS estava desarmadoideologicamente para defender as idéiasrevolucionárias. Já não respondia às normas leninistasde que o Partido deve submeter-se permanentemente aum processo de autoconstrução ideológica, crítico eautocrítico, superando dialeticamente o que envelhecee abrindo espaço ao novo, revolucionário57."
O cerne da argumentação passa pela idéia de que a derrota d o socialismo só foi possível quando os dirigentes
e o partido abandonaram as "normas leninistas", ou seja, quando pararam de atuar segundo as convicções
normativas e as propostas centrais que se conhece e reconhece sob o termo de leninismo. Um aplicação
inadequada sustentada em uma interpretação equivocada da teoria e da doutrina do socialismo é que teria
possibilitado o declínio do sistema socialista.
Foi então um momento decisivo o da crise do socialismo entre 1989/91; ocorreram reestruturações
muito expressivas nos quadros explicativos que o PC do B até então utilizava. E estas mudanças atingiram um
núcleo constitutivo do Partido: a figura de Stálin. Mas ao sacrificarem em parte a figura de Stálin, não
estariam preservando outras? Cremos que sim. Principalmente se notarmos que Stálin só cometeu erros
quando ficou desatento às "normas leninistas". Foi a não observação das normas de ação do Partido que
provocaram as distorções e não o contrário. Mas o que estaria se tentando preservar? Vejamos antes, nos
trechos a seguir, como foi reelaborada a tese sobre o socialismo:
56 Ibdem, p. 42.57 Ibdem, p. 43.
38
"Stálin, como principal dirigente do PCUS e teóricomarxista-leninista, tem responsabilidade com odesastre sucedido com o socialismo na URSS. "58
E mais adiante:
"Não foi ele quem deixou cair a bandeirarevolucionária. Enquanto dirigiu o Partido e Estado osideais da Revolução de 1917 sempre tiveram lugar dedestaque. Sobre os seus ombros, depois da morte deLênin, recaía boa parte da tarefa histórica de dirigir aconstrução da nova vida. (...) Mas Stálin reveloutambém deficiências, cometeu erros, alguns graves,equivocou-se em questões importantes da luta declasses. Particularmente no fim da vida, exagerou seupapel de dirigente máximo. Caiu no subjetivismo e, decerto modo, no voluntarismo. Permitiu o culto à suapersonalidade que conduzia à subestimação do Partidoenquanto organização de vanguarda. 59"
As críticas atribuídas a Stálin cumprem assim uma dupla função; 1º) elas inserem coerência na forma
explicativa adotada para a interpretação da crise do socialismo. Se a derrota aconteceu em 1956, com o
Partido dizia, com a ascensão de Krushev, era necessário explicar como os revisionistas venceram naquela
ocasião; 2º) individualiza a "culpa", levando a absolvição "coletiva" do Partido no processo de crise do
socialismo. Foi a sobrevalorização da figura de Stálin em detrimento do Partido que o deixou sem condições
de enfrentamento com o revisionismo, e foi somente quando o líder máximo Partido deixou de observar as
suas "regras constitutivas" que a crise e a derrota do socialismo se tornaram possíveis.
Dessa maneira, a crise do socialismo atingiu o que poderia se considerar o núcleo nervoso do PC do
B; mas como então o Partido conseguiu reagir com tanta tranqüilidade e sem maiores traumas? Pois a mesma
questão, a de ser a favor ou contra Stalin, de reconhecer máculas na história da URSS, em outros momentos
da vida Partidária, era questão de vida ou morte. Porque em outro momento esta questão não provocou
nenhuma repercussão, além da "tranqüila" readequação de determinada leitura histórica? Questões que tem
de ser debatidas mais detalhadamente.
No geral, a crise do socialismo não foi vista somente por seus efeitos negativos. Isto por dois
motivos: a crise do socialismo e o fim do sistema revisionista possibilitariam a vários setores do movimento
comunista e do proletariado em geral, readotarem a "linha justa de classe"; a crise vinha a confirmar todas as
58 Ibdem, p. 46.59 Ibdem, pp. 46-47.
39
posições do Partido desde 1962, apontando assim o acerto da sua "linha política". Como podemos ver nos
trechos a seguir:
"O Partido Comunista do Brasil, orgulha-se de tertomado parte, desde a primeira hora, nessa batalha.Em 1963, já denunciava Kruschov e seus parceiroscomo inimigos da revolução e do socialismo.60"
E depois:
"A derrota do revisionismo na União Soviética e noLeste europeu, por incrível que pareça, favorece oacercamento entre as correntes que se pretendempartidárias do socialismo científico. Vários partidosligados ao PCUS, procedem a um exame crítico doque se passou na URSS e no movimento comunista.Na própria União Soviética há esforços por reconstruiras forças fiéis ao marxismo-leninismo." 61
As reações do PC do B à crise do socialismo real, parecem ser as mais firmes, intransigentes mesmo, na
defesa dos postulados comunistas. Por isso afirmam que a crise que se vê não é uma crise do socialismo, mas
sim uma crise do revisionismo que inseriu na URSS as premissas e a lógica do capitalismo. Não há cisões
aparentes apesar dos debates expressivos dentro do Partido em função da crise do socialismo; o projeto
socialista não é questionado em nenhum momento. Porém, na sequência dos acontecimentos, algumas
posições são revistas, não em relação ao socialismo propriamente dito, mas na forma de como lidar com a
história do socialismo.
Assim, a racionalização da crise do Socialismo dentro do Partido, se deu a custa do sacrifício parcial
de um de seus maiores ícones. Mas como em outras circunstâncias, será que sacrificou-se os anéis para não
se perder os dedos? Esta é uma pergunta, que neste contexto, ganha relevo fundamental. Incorporemos ela
então ao conjunto da reflexão como uma pergunta permanente.
Após o ano de 1992, o PC do B realizou ainda sua 8º conferência, em Brasília/agosto de 1995, que
teve a tarefa de reelaborar o programa do Partido e o 9º Congresso, em dezembro de 1997. A 8º Conferência
é revestida de importância especial, pois a alteração do programa do Partido se insere dentro do processo de
reestruturação dos modelos explicativos do PC do B, iniciado no 8º Congresso, em 1992.
Entre os anos de 1992 e 1997, o PC do B vai se dedicar principalmente à campanha de oposição,
sucessivamente, de Collor, Itamar e Fernando Henrique Cardoso. A consolidação do projeto (neo)liberal vai
ser um marco que possibilitará a aproximação (mesmo que inconsciente) da linguagem das esquerdas. A luta
40
contra o neo-liberalismo tem caráter especial para os partidos comunistas, devido ao caráter autoritário e
excludente do primeiro. “... as classes dominantes temerosas da resistência e da luta dos trabalhadores e dos
povos (...) reforçam o aparato autoritário (...) visando excluir da participação política as massas populares e
as correntes avançadas de esquerda que as representam, especialmente os comunistas62”. Em um ambiente
completamente adverso, estabelecido pelo cenário pós-socialista, o Partido ainda se vê como ameaça às elites.
Mas a visão da situação política global não lhe escapa, e o desenho da situação que ele mesmo traça ainda é
sombrio “A ofensiva anti-nacional, anti-social e anti-democrática ocorre nos marcos de uma situação
político ideológica ainda desfavorável as forças revolucionárias em todo mundo.63” A extensão dos efeitos
da crise do socialismo se demonstram perceptíveis ainda no final da década, mesmo com o relativo
crescimento político/eleitoral do Partido.
Mas porquê?
Porque o impacto se deu mais sobre a formação ideológica através da qual, não só a prática política é
realizada, mas a própria existência/instituição do Partido é viabilizada tal como é, na sua forma singular. E a
instituição aqui é entendida no sentido da instituição social histórica, como conjunto de significações
imaginárias que criam, estabilizam e dão coesão à um grupo social. E isto pode ser observado pelo seguinte: o
Partido Comunista do Brasil nos anos posteriores ao fim do bloco socialista, realizou um processo de
reincorporação simbólica de alguns "modelos64" que haviam sido banidos do seu repertório. Cuba volta a
figurar entre os países com o qual o Partido se solidariza, e principalmente, a China, na figura de Deng Xiao
Ping é reabilitada. Isto pode apontar que, após a derrocada dos regimes socialistas, e principalmente do
regime dos Hohxa na Albânia em 90/91, o Partido começa a rever a tese da "traição" revisionista, pelo menos
em alguns casos, atribuindo então aos regimes que até pouco tempo era tidos como "revisionistas" o caráter
de "socialistas". A própria reaproximação do PC do B junto aos comunistas russos só foi possível devido à
60 Ibdem, p. 39.61 Ibdem, p. 55.62 Resoluções do 9º Congresso do PC do B, in Revista Princípios Nov/Dez/Jan de 1997/98 p. 43.63 Idem.64 Daniel Aarão afirma que: "...os modelos internacionais nos textos políticos trata-se de sociedades socialistas construídas, ou seja,vitrines da utopia realizada.(...) A lógica do procedimento reside no fato de que os modelos internacionais legitimam as opções com oselo das experiências vitoriosas." No entanto é preciso ter em mente que a noção de modelo, enquanto fonte autoridade e de legitimação,no que toca a Revolução Russa, aponta para um lado relação. Existe uma relação estrutural entre ela e os Partidos de Esquerda,especialmente os Comunistas, que faz dela mais que um modelo, de modo que não pode ser descartada como os outros à menos que sesacrifique a própria condição de Comunista ou Socialista. Ver AARÃO REIS FILHO, Daniel "A Revolução Faltou ao Encontro - OsComunistas no Brasil". p. 94-96.
41
fragmentação do antigo PCUS, da qual saíram alas que defendem o socialismo nos moldes do que fora
construído no "período de ouro da Revolução".
Esta "reincorporação simbólica" nos revela dois fatos fundamentais; primeiro, que a existência de
modelos (de socialismo), mantém a sua importância para os Partidos de Esquerda brasileiros em algum nível,
desde que estes modelos sejam "adequados" aos requisitos de cada partido; desta forma, a história é
"reescrita" de acordo com as necessidades do presente, e temos a apropriação seletiva da realidade através da
manipulação dos símbolos revolucionários. Um dos elementos mais interessantes é que o fator "tempo" que é
tão enfatizado pelos comunistas para realização das mudanças, e tido como "necessidade imperativa" nas
mudanças que eles comandam, é completamente desconsiderado nestes processos em que a história é
reescrita. Desta forma regimes passam de "revisionistas a socialistas" e de "socialistas a revisionistas" em
períodos de tempo curtíssimos (3, 4 anos as vezes), sem se levar em consideração a ocorrência de mudanças
sociais e institucionais significativas.
O texto dos estatutos do Partido65 é alterado; o nome de Stálin dá lugar a "outros revolucionários
proletários. Há também a reaproximação com os comunistas russos, do PCFR66 (Partido Comunista da
Federação Russa), através do noticiamento e apoio das suas campanhas eleitorais. Ou seja, várias são as
mudanças que acontecem neste período, apesar de uma aparente continuidade. Para percebê-las, é necessário
deslocar o foco das atenções, do desempenho do Partido no sistema político e eleitoral, para a sua lógica
interna de funcionamento.
Estas mudanças podem ter efeitos imprevisíveis; e se, como dissemos, a instituição do grupo se dá
através do seu imaginário, as alterações e as crises que afetam as suas significações estruturantes podem afetar
a estabilidade, a coesão e a própria dimensão do vivido/percebido que é a origem e razão de ser do Partido. E
aí a imagem do "ceder os anéis para perder os dedos" não serve para apresentar fielmente a situação. Pois, no
nosso caso, os anéis compõem o "Ser", não lhe sendo externos. O Rei só é rei com sua coroa e através de sua
coroa , e esta não é uma mera metáfora do poder, ela é um objeto em que as relações poder se "condensam". É
como diz Fernand Saussure: "O símbolo tem como característica não ser jamais completamente arbitrário,
ele não está vazio, existe um rudimento de vínculo natural, entre o significante e o significado. O símbolo da
65 Ver "A Classe Operária" Ano 71 nº1 de 15/01/96.66 Ver "A Classe Operária" Ano 71 nº1 de 15.01.96 e nº6 de 21/07/96 - "Eleições na Rússia", continua a cobertura e o apoio dado aparticipação eleitoral do PCRF.
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justiça não poderia ser substituído por um objeto qualquer, um carro, por exemplo." 67 A mudança de
determinados símbolos pode ser o indício de uma mudança muito expressiva, apesar disso não ser uma
consequência necessária. Mas é preciso tomar isso em conta no conjunto da reflexão sobre a crise do
Socialismo.
67 Ver SAUSSURE, Ferdnand de " Curso de Linguística Geral" Editora Cultrix 20º Edição 1997 São Paulo
Partido dos Trabalhadores:independente, mas nem tanto
O Partido dos Trabalhadores tem uma perspectiva e uma trajetória de ação um tanto distinta daquela
dos Partidos Comunistas existentes no Brasil e aqui analisados, mais um elemento ele guarda de comum; tem
fortes laços de origem com o movimento sindical (no seu caso, o do chamado Novo Sindicalismo), ou seja,
principalmente com aquele movimento gerado a partir do operariado de base industrial. E essa origem senão
comum, pelo menos similar, vai conferir a estruturação do PT um caráter ambíguo, que hora vai colocar o
"operariado" como categoria central da revolução social, e ora vai dar à categoria trabalhador um significado
mais abrangente, sem determinar uma fração mais central que outras em relação ao processo de transformação
social que pretendia desenvolver. Mas o caráter de "classe" do Partido era universalmente aceito.
O PT sempre, desde sua fundação, sempre se quis um Partido diferente dos que existiam; "O Partido
dos Trabalhadores é uma inovação histórica neste país. É uma inovação na vida política e na história da
esquerda também"68. A sua própria formação parte da consideração de que as organizações partidárias
existentes não correspondiam mais às demandas e expectativas populares. Apesar de não precisar em seus
documentos pré-fundacionais, datados de 1979, o caráter do seu Socialismo - caráter este que foi definido
genericamente em 1980, mas que sempre foi objeto de questionamento e de divergências no interior do
Partido - , dificilmente podemos nos referir ao PT e a sua história sem nos remetermos ao socialismo e a sua
história. Mesmo aqueles que consideram que o PT nunca se definiu, de forma convincente69 enquanto
socialista, podem negar o fato de que o PT sempre reverenciou o socialismo enquanto projeto de sociedade, e
que o debateu durante grande parte de sua história, inclusive a mais recente.
Até meados da década de oitenta, Partido dos Trabalhadores realizou quatro Encontros Nacionais
(1981, 1982, 1984 e 1985 - sendo este último extraordinário). Durante estes primeiros cinco anos de vida
68 Discurso de Luís Inácio Lula da Silva, na primeira Convenção Nacional do Partido em 1981. Ver Resoluções de Encontros eCongressos 1979-1998, Editora Perceu Abramo 1º Edição Setembro de 1998 (p. 107)69 O que não chega a ser uma verdade, pois por mais genérico que tenha sido o sentido dado ao socialismo petista, este tinha efetivamenteo socialismo como um valor simbólico. E se nós não reconhecermos este fato, dificilmente iremos compreender as razões das crises doPartido na década de 90, e o seu recente debate em torno da permanência ou exclusão do socialismo no programa do Partido. Além disso,é muito questionável atribuirmos ao socialismo de outras correntes uma definição mais sólida e consistente que a dada pelo PT.
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partidária, o PT foi se construindo enquanto um Partido que se calcava em um Socialismo genericamente
definido, mas que despontava nacionalmente como força política e social.
É no primeiro Encontro do Partido, realizado em agosto de 1980 na assembléia legislativa de São
Paulo que o PT se define enquanto um Partido Socialista, ao aprovar os documentos de Santo André: o
Programa e o discurso do Lula feito na Convenção Nacional em 1980 . Apesar de já haverem indícios de sua
filiação ideológica desde o período de sua formação, há destaque no entanto para a associação fundamental
que o Partido faz do Socialismo com a Democracia. "O PT afirma seu compromisso com a democracia plena,
exercida diretamente pelas massas, pois não há democracia sem socialismo, e nem socialismo sem
democracia. (...) Um partido que almeja a sociedade socialista e democrática, tem que ser ele próprio
democrático nas relações que se estabelecem em seu interior"70. No entanto esta definição não vai ter no
período grande relevância para o debate partidário e nem vai ser objeto de muitas contestações.
A grande preocupação do período girava em torno da luta contra a ditadura militar, e os esforços da
organização partidária se deram no objetivo de potencializar a luta dos movimentos sociais e populares no
sentido da redemocratização do país. A crise de legitimidade da ditadura militar-civil, a estagnação
econômica e a eminência de uma transição para uma nova fase da vida política e institucional do país, fez
com que as forças do Partido fossem quase que completamente direcionadas para as questões internas do
desenvolvimento da vida política e social brasileira.
Na esfera internacional, figurava a estagnação generalizada das economias do bloco socialista, que
enfrentavam dificuldades tanto no plano do sistema de gestão quanto da eficiência e produtividade. Em 1985
surge uma esperança de revitalização do regime, com a assensão de Mikhail Gorbachev, que posteriormente
iria lançar o plano de reestruturação política e econômica da URSS (glasnost e perestroika). Entretanto, as
questões internacionais do bloco socialista tinham ainda pouca repercussão dentro da esquerda em geral -
excetuando-se à troca de reverências - e do PT em particular. Neste período, a luta anti-ditadura e pelas
eleições diretas para presidente absorvia as esquerdas, seja porque esta realidade lhe dizia respeito mais
diretamente, seja porque as dimensões das transformações no sistema socialista internacional e no movimento
comunista ainda não eram consideradas.
70 Carta de Princípios, 01/05/1979, ver Resoluções de Encontros e Congressos 1979-1998, Editora Perceu Abramo 1º Edição Setembro de1998 (p. 54).
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Entre 1987 e 1993, o PT vai ter uma vida de intensos debates e de muita formulação. Neste período o
PT passa por quatro encontros nacionais (1987, 1989, 1990 e 1993) e pelo primeiro Congresso do Partido,
realizado em 1991. É nesta conjuntura que acontecem dois processos que vão marcar profundamente a vida
do Partido, e que vão determinar inclusive a sua evolução subsequente. Uma, no plano interno, é a derrota do
PT nas eleições presidenciais no segundo turno, em que o seu candidato Lula esteve muito próximo da vitória
(Collor obteve 53% dos votos válidos, enquanto Lula obteve 47%71); o outro é a crise do bloco socialista, que
fez com que o PT enfrentasse sérios questionamentos durante a campanha presidencial e após ela, de dentro e
de fora do Partido.
Sendo que 1987 é um marco para a compreensão da trajetória política do PT. É o ano do ºV Encontro
do Partido, que além de discutir as questões específicas da realidade brasileira (o que caracterizou os outros
encontros), se dedicou a tentar precisar o conteúdo do programa do Partido, e através desse processo definir
mais claramente o caráter do Partido. É importante notar aqui o seguinte: pouco depois do PT entender que
definiu mais claramente o conteúdo do seu Socialismo, que mais firmemente se apegou ao Socialismo
enquanto projeto, a estrutura internacional do bloco socialista implodiu, contribuindo assim para colocar o PT
na contra-mão dos acontecimentos.
No Boletim Nacional do PT72, "no texto "O Encontro do Crescimento", Lula diz que demonstrará na
campanha presidencial que o" socialismo não é nenhum bicho". O objetivo estratégico passa a ser então o
socialismo, definido pelo plano político organizativo para 88/89, e que diz ser o "PT um Partido Socialista,
com papel fundamental na construção do socialismo no Brasil, instrumento de educação e aprendizado
político das massas73."
Até o ano de 1987 podemos considerar que a discussão do PT acerca da crise Socialismo era ainda
tímida. Tanto que em seu órgão oficial, o Boletim Nacional, não verificamos muitas referências ao mundo
socialista antes desse período. O PT só vai começar a se voltar com maior interesse para as mudanças que
estavam ocorrendo em todo o Leste europeu e na URSS a partir de meados de 1988, quando começa a dar
mais cobertura jornalística aos processo de reformas implementado por Mikhail Gorbachev, começando a se
posicionar perante eles.
71 Ver "Sistema Eleitoral Brasileiro - Teoria e Prática", Olavo Brasil de Lima Junior (Org.) IUPERJ 1991, Rio Fundo Editora, p. 14.72 Nº 32 de Outubro de 1987.73 Ibdem, palavras de Olívio Dutra, eleito no Encontro, Presidente Nacional do Partido.
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Esta relativa moderação do posicionamento do PT em relação ao "mundo socialista" começa a ser
rompida, e é importante demarcar isso, após o ºV Encontro, aonde o Socialismo é afirmado enquanto objetivo
estratégico do Partido. Se antes de 1987 o PT não fazia muitas menções ao mundo socialista, após este ano o
seu diálogo com as experiências socialistas existentes vai se tornar mais constante e mais significativo. E
apesar do PT recusar o socialismo real enquanto referencial, vai se referir a ele quando fala de socialismo:
"O PT rejeita a concepção burocrática de socialismo.A visão de partido único. É incorreta a idéia de quecada classe social é representada por um único partido,e de que os outros partidos existentes numa sociedadeque emergiu de uma revolução representam interessesdiferentes dos da classe trabalhadora"."A questão do socialismo para nós é seríssima. É algoda vida de cada um. Não há solução para nós, ostrabalhadores, numa sociedade que não seja socialista.Mas o socialismo que queremos não é aquele em que oPartido substitui as entidades do movimento civil, emque o Estado se confunde com o Partido. Asexperiências de socialismo de diferentes países, apesarde erros, são também experiências valiosas".74
As experiências socialistas da URSS e do Leste europeu são incorporadas dentro do PT de forma ambígua.
Tenta-se apresentar críticas e não reconhece-las como modelos,, mas ao mesmo tempo o Partido as toma
como modelos passíveis de críticas. Parece que o PT tenta se livrar sem sucesso da carga de influência
simbólica exercida pelos países do bloco socialista, ora dizendo que o PT não os toma como modelo, e ora os
tomando como modelo para as suas críticas:
"Não basta alguém dizer que quer o socialismo. Agrande pergunta é: qual socialismo? Estamos poracaso obrigados a rezar pela cartilha do primeiroteórico socialista que nos bate a porta? Estamos poracaso obrigados a seguir este ou aquele modelo,adotado neste ou naquele país?"75
Por isto é compreensível a postura que o PT tentou manter diante da crise do socialismo no início dos
anos 90. Como o próprio PT nascera da crítica, e da auto-crítica, da esquerda de linha comunista, reclamando
independência em relação a esta tradição política, era natural que o PT se achasse independente também em
relação à "matriz" destas organizações, e as suas crises. Mas na prática, o Partido não conseguiu se
desvencilhar dos acontecimentos que aconteciam no mundo socialista e nas esquerdas em geral. E há um
74 Boletim Nacional do PT Nº 32 Outubro de 1987, discurso do então eleito presidente do PT, Olívio Dutra. (p. 18).75 Discurso de Lula, na 1º Convenção Nacional 1980, ver Resoluções de Encontros e Congressos 1979-1998, Editora Perceu Abramo 1ºEdição Setembro de 1998 (p. 104).
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outro fato que, apesar de não ser objeto de nossa análise, cabe mencionar; a própria estrutura interna do PT,
distribuída em uma série de tendências, permitia que várias fossem as interpretações e apropriações correntes
da história da URSS, e várias fossem as formas de relacionamento com ela, desde as mais críticas e severas,
às mais simpáticas e condescendentes. Isto levava para o interior do Partido ações práticas e projetos
concretos distintos de reação à crise.
Mas vejamos algumas das resoluções do Vº Encontro, na qual podemos perceber como o PT vai
definir de forma muito mais consistente o caráter do seu objetivo:
"Trata-se para nós, de retomar as mobilizações,acumular forças e, ao nos apresentarmos como umaalternativa socialista e revolucionária, apontar para ostrabalhadores o horizonte de um novo sistemaeconômico, político e social: o socialismo".76
O Encontro vai mais longe, e faz a distinção entre dois momentos da luta pelo socialismo no Brasil:
"Na luta pelo socialismo, é preciso distinguir doismomentos estratégicos que, apesar de sua estreitarelação e continuidade, são de natureza diferente. Oprimeiro diz respeito à tomada do poder político. Osegundo refere-se à construção da sociedade socialistasobre as condições materiais, políticas etc. deixadaspelo capitalismo"77.
O Partido se dedica então muito mais seriamente à discussão, não mais do caráter do Partido, que é
consensualmente tido como socialista, mas ao caráter do socialismo do PT. Já que o PT se reivindicava
diferente dos outros Partidos, era necessário distinguir o socialismo do PT dos de outras correntes e
organizações. A grande questão que parece diferenciar o socialismo petista dos de outros partidos é a forma
como este relaciona-se com estruturalmente com a democracia, seus objetivos assim "apontam no sentido da
construção de um socialismo efetivamente democrático, em que o poder seja exercido pelos próprios
trabalhadores e não em seu nome."78
Ao terminar o ano de 1987, o Partido dos Trabalhadores está organicamente ligado a uma proposta
socialista de contornos e colorações particulares, definidas através das próprias instâncias internas do Partido.
O ano de 1988, da campanha nas eleições municipais, que conheceu um crescimento eleitoral do PT, parecia
indicar que os rumos definidos eram acertados, e que a estratégia e o programa adotados eficiente. O PT saiu
76 Ver Resoluções de Encontros e Congresso, Editora Perceu Abramo 1º Edição 1998 (p. 304), "Resoluções Políticas".77 Ibdem, p. 312.
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dos anos de 87/88 com um objetivo estratégico definido: o socialismo, e com crescimento eleitoral - o Partido
conseguiu eleger 36 prefeitos nas eleições de 88 - o que parecia indicar que um dos passos da estratégia estava
sendo dado: o da tomada do poder de Estado pelos trabalhadores através de seu Partido. Assim, o ano de 1989
parecia ser promissor.
Neste ano, de eleições presidenciais, o PT entrou de cabeça nas discussões acerca das mudanças no
mundo socialista, que então eram impossíveis de ser ignoradas. O Boletim Nacional passa a dar a sua visão do
que acontecia no Leste europeu e na URSS. Na edição Nº 46 de julho de 1989, é feita a condenação ao
chamado "Massacre do Povo Chinês" - o PT chega a romper relações com PC da China - e na edição Nº 48 de
fevereiro de 1990 o artigo "A Leste tudo de Novo" fala sobre a urgência do debate sobre a crise do
socialismo. "Mas além destas certezas, o que domina grande parte da esquerda é um sentimento de
perplexidade profunda, uma crise moral de amplas proporções." E falando sobre a posição do Partido em
meio a tudo aquilo diz que "...ele nasceu e se desenvolveu em certa medida em ruptura com a tradição
socialista que hoje está em crise" 79
O que acontece aí é que, como a ruptura do PT com o "socialismo em crise" só se deu "em certa
medida", e como nem mesmo os petistas sabiam exatamente qual era ela, a crise também abala o PT com
uma profundidade que só se revelaria tempos depois, por outros motivos e em outras circunstâncias. E a
crise do socialismo não foi o único fator a questionar o posicionamento do Partido definido no Vº Encontro e
ratificado no VIº e VIIº, realizados em 1989 e 1990 respectivamente. A derrota do seu candidato nas eleições
presidenciais de 1989 também marcou profundamente as reflexões acerca do socialismo que o Partido iria
desenvolver dali por diante, principalmente por que a crise do socialismo foi um dos artifícios usados no
marketing de campanha ante-PT80.
Nas resoluções do ºVII Encontro o PT faz questão de afirmar sua independência em relação aos
modelos em crise. "Ao mesmo tempo, nosso compromisso estratégico com a democracia, a identidade
democrática do PT levou-nos a refutar os supostos modelos do chamado socialismo real81(...)o PT
identificou-se na maioria das experi6encias do chamado socialismo real uma teoria e uma prática
78 Ibdem, p. 312.79 Boletim Nacional Nº 48 (p 12, Marco Aurélio Garcia).
80 Houve um programa eleitoral anti-PT em que, a imagem de Lula era associada as "mazelas" do Leste europeu como forma de golpearsua credibilidade. Cenas de conflitos e de pessoas pulando o "Muro" foram utilizadas na campanha anti-petista, e isto afetou em algumsentido o Partido.
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incompatíveis com o nosso projeto de socialismo82(...) o PT está convencido de que as mudanças ocorridas
nos países do chamado socialismo real tem um sentido histórico positivo ainda que o processo esteja sendo
hegemonizado por correntes reacionárias, favoráveis a regressão capitalista.
Se evidencia então esta tensão no interior do PT, que quer se ver livre da "crise", mas que
insistentemente se vê emaranhado em meio à ela. Esta tensão vai ser reconhecida por ocasião do I º
Congresso, realizado em 1991. Este é que assumiu a tarefa fundamental de interpretar os recentes
acontecimentos e de tentar elaborar uma resposta convincente para eles. E o Congresso do PT, mesmo
realizando críticas a alguns posicionamentos do Partido nos anos anteriores, definiu-se também pela
afirmação da posição e do caráter socialista do PT. Estas posições de auto-afirmação socialista do PT já eram
claras desde meados de 1990, como na "Declaração de São Paulo83", resolução do Encontro Latinoamericano
de organizações de esquerda, convocado pelo Partido dos Trabalhadores, que discutiu a "Renovação do
Socialismo" e rechaçou a restauração capitalista, definindo uma política anti-imperialista para o continente.
Neste primeiro congresso, a visão "otimista" vai ser contrabalanceada por uma visão que coloca o
desmantelamento do socialismo num quadro mais amplo de retrocesso do movimento socialista como um
todo. O "descompromisso" com a crise e com os "modelos soviéticos" vai se demostrar, pelas próprias
palavras do congressistas:
"O colapso dos regimes do Leste europeu, a crise daURSS e dos demais países que compunham o bloco dochamado campo socialista não se constitui apenas nocrepúsculo do estalinismo, da burocracia e dototalitarismo travestido de socialista. Num certosentido, o que se está vendo é o desmantelamento degrande parte daquilo que o movimento socialistamundial construiu desde a Revolução de outubro de191784.
Colocando esta crise como um abalo ao movimento socialista, o PT reconhece mesmo que
indiretamente, que o significado dela não é estritamente positivo, muito pelo contrário. Ela representa uma
"perda" das conquistas do movimento socialista, e não somente como o declínio do "estalinismo". Esta
perspectiva vai permitir ao Partido reconhecer que, apesar de sempre se afirmar independente, na prática
chegou mesmo a tomar a "defesa" dos regimes socialistas existentes:
81 Resoluções de Encontros e Congressos 1979-1998., p 431..82 Ibdem, p. 432.83Boletim Nacional Nº 52 de Setembro de 1990, (p 10)84 Resoluções de Encontros e Congressos 1979-1998., p 484.
50
"... diversas vezes tomamos a defesa dos regimes dosocialismo real com o argumento de que neles, aomenos, os socialistas tinham conseguido resolver osproblemas sociais aqui não superados. Nossa críticaapontava para a sua essência anti-democrática, masincorporávamos suas experiências por aquilo que,supostamente, haviam superado historicamente. Essacontradição entre nossa vocação democráticaoriginária e a complacência em relação aos regimesburocráticos impediu que nos antecipássemoscriticamente, com todas as consequências decorrentes,em relação às tendências de mudança que hoje severificam85".
A postura do PT se revela ambígua, e ainda mais, pelas próprias palavras do Partido, contraditórias. Pois se a
"complacência" em relação aos regimes que diziam ser "radicalmente opostos ao projeto socialista petista"
atingiu o nível de impossibilitar a análise crítica antecipada dos acontecimentos, é porque a voz de
complacência predominou sobre as vozes críticas do partido. Esta relação de cumplicência não se manteve
no plano exclusivo do "apoio" imparcial sem maiores implicações a nível da organização e dinâmica interna.
As resoluções dizem:
" É preciso reconhecer que no 'petismo real' existem,em quantidade exagerada e perigosa, fenômenos comoo aparelhismo, o sectarismo, as manobras espúrias, afalta de democracia. Sem superar tudo isso , o discursoacerca de um projeto de um socialismo renovadoficará no papel."
Há então o desdobramento no plano político organizativo de uma postura do PT diante dos modelos,
que são, e é bom antecipar, "modelos que moldam a experiência". Estas questões ficariam mais evidentes no
período subsequente, em que os grandes referenciais do PT sofrem derrotas, como com a crise do socialismo
real, e também com a derrota eleitoral da Frente Sandinista em 1990, quando se elegeu presidente a
conservadora Violeta Chamorro. A experiência Sandinista86 constituía-se em referencial para o PT, e sua
derrocada, paralelamente à crise do Leste europeu, é um fato que tem de ser registrado.
Ao final deste curto mais intenso período de turbulências, a questão do socialismo vai ficar latente
dentro do PT. Em 1993, no 8º Encontro Nacional, já se apontam "novos problemas e novas preocupações"
para os quais o Partido vai se voltar. Curiosa a crise do socialismo. Parece um terremoto de baixa intensidade,
85 Ibdem, p. 495.86 Ver Boletim Nacional Nº 50 de Maio de 1990 no artigo "Nicarágua: uma revolução derrotada"., para saber sobre a repercussão da crisedo sandinismo e "Resoluções de Encontro e Congressos"(p. 316) para avaliar a importância do modelo Sandinista para o PT.
51
que balança todos os pilares, coloca tudo em questão, e no entanto depois que passa, permanece tudo no lugar,
e no dia seguinte, já que nada foi aparentemente destruído, é como se nada tivesse acontecido.
Aqui começa (ou recomeça) a marcha do PT em direção à presidência da República. E havia grandes
expectativas em relação à conquista no ano de 94, um clima de confiança muito grande. E mesmo, a vitória
eleitoral era entendida como um meio de demonstrar que o socialismo era ainda uma proposta viável. "A
vitória em 1994 consolidará o PT e sua experiência de governo - como uma referência para o movimento
socialista internacional87."
Eram grandes as ambições do PT naquele momento. E esta associação entre "socialismo" e "sucesso
eleitoral" é muito significativa para uma reflexão crítica sobre o período. A vitória não só seria importante
para demonstrar a atualidade do socialismo, como seria a consequência das suas propostas. Como podemos
ver:
"Mais talvez, que em 1989, temos condições desuperar esse desafio. Há quem não compreenda isso,tomando como defeitos nossas principais virtudes: aradicalidade, a combatividade, a diferença, ocompromisso com o socialismo.88"
No tempo compreendido pelo ano de 94, um novo cenário se configura na política nacional. A
emergência do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), a crise da CUT e do movimento
sindical, o meses finais do Governo do Presidente Itamar Franco - que assumiu após o impeachment - dando
continuidade à política liberalizante de seu antecessor "cassado", Fernando Collor, ilustram a conjuntura
social. Neste momento, o PT se prepara para enfrentar uma nova campanha presidencial tendo novamente
Lula como candidato.
As eleições de 94 são para o PT um momento decisivo, não só pelas chances de vitória em si , mas
também pelo fato desta vitória possibilitar a viabilização de um passo importante no sentido do cumprimento
do objetivo estratégico do partido. "Trata-se de uma batalha onde estão em jogo simultaneamente, as chances
de uma vida digna para a a maioria do povo brasileiro e a possibilidade de colocar num novo patamar a luta
pelo socialismo"89.
87 Resoluções de Encontros e Congressos", p 560.88 Resoluções de Encontros e Congressos", p 561.89 Ibdem, p. 577.
52
A partir daí o Partido vai depositar grandes esforços na campanha eleitoral. "A partir de agora, todas
as energias de nosso Partido, de cada um dos militantes, filiados e simpatizantes, devem concentrar-se na
eleição de Lula presidente...90" Após então o I Congresso, que se deu em plena crise do socialismo, o PT se
lançou de cabeça em um processo em que depositava grandes esperanças, e a derrota nas eleições iria
repercutir seriamente nas posteriores posições do Partido. E uma frase tem, neste momento, importante
significado, "...reafirmamos nosso compromisso com o socialismo e com as reformas democráticas e
populares91".
O 10º Encontro vai realizar a reflexão acerca do período das eleições, avaliar os "porquês" da
derrota, e tentar apontar os meios de corrigir os rumos. Neste contexto, as esquerdas em geral enfrentam uma
situação difícil. E o próprio diagnóstico do Partido que afirma isso. O sucesso do Governo Fernando
Henrique na estabilização monetária, a ampliação das bases sociais do mesmo e a unidade das "forças
conservadoras" - a Aliança Governista [PFL, PSDB e PMDB] tinha mais de 300 deputados e 2/3 do Senado –
ilustram a força dos conservadores. No plano político e social, o movimento sindical sofre duros golpes, como
por ocasião da intervenção das forças armadas na Greve dos Petroleiros. E a política de FHC se demonstrou
incisiva também do ponto de vista social; enquanto cortava direitos sociais nas reformas da constituição, criou
o programa Comunidade Solidária, visando dar assistência flexível às comunidades e grupos carentes. No
entanto a proposta liberal já não passa sem questionamentos; a crise do México colocou várias pulgas atrás da
orelha da sociedade mundial.
O Encontro deste ano de 1995 vai discorrer sobre os golpes políticos que o Partido levara nos últimos
cinco anos (89-94), confirmando a tese de que a crise do socialismo se prolongou durante a década e teve
efeitos muito sutis:
" O PT, mesmo tendo sido duramente atingido peladerrota eleitoral de 1994, e ainda sofrendo o impactoda crise internacional da cultura política de esquerda,teve um papel decisivo na resistência à ofensiva neo-liberal"92.
A partir deste momento, é perceptível uma mudança gradual no discurso do Partido e em algumas de
suas proposições fundamentais. Começa a ganhar relevo a questão nacional, e já pode ser percebido uma certa
90 Idem, p. 577.91 Ibdem, p. 581.92 Idem, p. 617
53
tendência ao "repensamento" de alguns elementos programáticos. "O PT terá que dar um salto de qualidade:
reelaborar sua estratégia de poder, desenvolver um projeto de sociedade e um projeto partidário93" Ou seja,
já aponta-se um processo de reflexão acerca do "que é o Partido", como deve "funcionar" e a que "interesses"
se vincula, e principalmente, que "estratégia" deve adotar para conseguir o Poder. E ainda: "O PT deve
recolocar o debate sobre as grandes questões nacionais, ao invés de priorizar, internamente, os temas
doutrinários94". Começa a ganhar força a idéia de que as ações e discussões do Partido tem de dar prioridade
ao problemas do país, ao invés de aprofundar debates doutrinários. Leia-se: debates sobre o socialismo.
Por outro lado, também esta posição é ambígua. Enquanto determinados trechos das resoluções
afirmam que é necessário priorizar as "questões brasileiras", outros trechos apontam também numa outra
direção - a da reflexão sobre as matrizes do movimento socialista internacional que inspiraram o PT.:
"A derrota de 1994, entre outras lições, convida a umareflexão mais crua sobre nossa imagem na sociedade,sobre o efeito exterior de nossas lutas internas, sobreas ambiguidades políticas e ideológicas que temos,sobre nossas dificuldades em realizar um ajuste decontas mais severo com as heranças socialistas desteséculo: o comunismo e a social-democracia95".
É interessante ver que aqui, é uma questão de ordem "prática" - o resultado eleitoral - o fato a partir do qual se
irá sugerir esta "ida às matrizes de pensamento" para um "ajuste de contas". Assim como, no caso do PCB, foi
a política de alianças eleitoral do Partido que motivou divergências que se tornariam posições ideológicas
conflitantes.
O ano de 1997, do 11º Encontro Nacional, marca o início de mais uma campanha eleitoral do PT,
para o pleito que seria realizado em 98. Já com a aprovação da medida de reeleição, e sabendo que o seu
principal adversário deveria ser novamente Fernando Henrique Cardoso, o PT mantém uma postura otimista,
apesar de mais cautelosa que em relação à de 94. Um novo vocabulário vai começar a se construir nas
propostas do Partido, e o termo socialismo vai ser usado com muito menos frequência, dando lugar à
"revolução democrática", "reformas estruturais", e antigos adversários vão ser reabilitados, como é o caso de
Leonel Brizola, líder histórico do PDT, como parte de fortalecimento de uma política de "Frente Ampla das
Esquerdas". Analisando a conjuntura internacional, o Partido vai ver no fortalecimento do PRD (Partido da
93 Idem, p. 61794 Ibdem p. 62895 Ibdem, p. 629.
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Revolução Democrática) do México e no crescimento eleitoral da FSLN na Nicarágua , indícios de que o PT
poderia se apresentar como uma opção, e com chances reais de vitória.
O Encontro Extraordinário de 1998, vai manter as tendências descritas acima. Com a política de
aliança viabilizada, e a constituição da Frente (PSB, PC do B, PCB e setores do PMDB que faziam oposição à
Fernando Henrique), a oposição montou um esquema para a campanha presidencial com 300 parlamentares,
centenas de prefeitos e milhares de veradores, o que fez com que o PT, através de levantamentos de pesquisa
de opinião (que dizia que o Lula contava com 25% do eleitorado), acreditasse que a disputa no 2º turno já
estava praticamente garantida. E aqui vemos uma afirmação importante, principalmente diante do que se
sucedeu no 2º Congresso, realizado em 99. Esta afirmação diz respeito exatamente ao socialismo:
"A implementação de um programa radical dereformas - por seus efeitos econômicos, mas sobretudopor sua capacidade política de agregar força sociais -contribuirá para a refundação de uma perspectivasocialista no País96".
Por essa ocasião, a associação entre o desenvolvimento da política e do programa de Governo do
Partido - o Modo Petista de Governar - e o Socialismo é muito significativa, pois desde 95 já se presenciava,
mesmo que timidamente, um processo de questionamento do Socialismo e da estratégia socialista no interior
do PT. Mais é importante ver o seguinte , até um ano antes da proposta de saída do Socialismo do programa
ser colocada à público, o Socialismo fazia parte dos planos, e o termo tinha muita expressão dentro do
Partido, tanto que se faziam questão de associa-lo oficialmente ao "Modo Petista de Governar.
Em novembro de 99 realizou-se o II º Congresso, com um grande debate acerca do Socialismo. Nele
veio ser questionado o "caráter socialista" do Partido. Outro fato a destacar; a proposição de retirada do
Socialismo do Programa, foi encaminhada por José Genuíno, uma das figuras mais expressivas do Partido,
membro da Direção e da Comissão Executiva Nacional, membro da "Articulação Unidade na Luta" - ou setor
majoritário. A proposta foi endossada ainda por outras figuras de importância, como José Dirceu, presidente
nacional do PT, Zeca, governador do Mato-Grosso e Cristóvão Buarque, ex-governador de Brasília. Dirceu
chega a dizer que: "O PT não nasceu ortodoxo nem doutrinário. Se a esquerda insistir em apresentar um
programa socialista, não vamos derrotar FHC"97. Opera-se uma completa inversão; durante toda a década de
96 Ibdem, p. 675.97 Ver Revista Veja Edição 1626, ano 32 Nº 48 de 01/12/99, p. 40.
55
90 o Partido atribuiu ao Socialismo ou ao programa socialista a razão do seu sucesso; pela primeira vez
alguns setores – e dos mais importantes – do mesmo associariam “o Socialismo” ao “fracasso”. E aqui não
tem tanta importância o fato da proposta não ter sido aprovada; o interessante é ela ter aparecido e ter vindo
de onde veio. O que por si só pode assinalar um fenômeno interessante. A Direção apontou para o abandono
do Socialismo, mas as bases do Partido votaram contra.
Este foi o desdobramento final da crise do socialismo dentro do Partido. Se, de imediato o PT
rechaçou em bloco a possibilidade de "abandonar" o Socialismo, oito anos após a tomada desta posição,
muita coisa iria mudar; e a proposta de abandonar o programa socialista veio à tona, respaldada em um dos
setores do Partido com maior força social. E temos de levar mais a sério o seguinte fato: assim como sucedeu
no caso do PCB, a proposta de "abandonar o Socialismo" surgiu do principal núcleo político do Partido: a
Direção Nacional. Lembremo-nos desta questão no seguir da nossa reflexão.
O PT não conseguiu passar imune aos anos de 89/91, e poderíamos dizer que foi o PT que sofreu de
forma mais prolongada os efeitos da crise do Socialismo. Esta iria se desdobrar durante toda a década de
noventa, até culminar no grande cisma do ºII Congresso, realizado em 1999.
O modelo de sociedade inspirado na Revolução Russa dentro da história do PT dividiu lugar com os
modelos Latinos (Cuba e Nicarágua), para posteriormente dar lugar a um modelo nacional - nem liberal, nem
nacional-desenvolvimentista, Petista - de gestão da sociedade, voltado para o desenvolvimento econômico do
mercado interno e de uma democracia de massas, em uma composição de mecanismos de estímulo ao
mercado e a regulação do estado. O referencial de 1917 parece ficar cada vez mais distante. Mas, ainda assim,
a simples proposta de abandono do Socialismo fez com que as discussões retornassem ao interior do Partido,
fazendo transformar as tendências em blocos internos, com posições de "Partido", o que se evidenciou ainda
mais no IIº Congresso.
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Consequências do Abalo
A crise do socialismo repercutiu diferentemente dentro de cada um dos Partidos aqui analisados - PT,
PCB e PC do B. Mas pôde observar-se no entanto que, por ocasião da grande comoção dos acontecimentos
dos anos de 89/91, os três partidos passaram por um processo de auto-afirmação de suas identidades,
declarando fidelidade ao projeto Socialista. Cada um manteve no entanto a sua compreensão do que vinha a
ser este projeto , preservando assim, a diferenciação existente na concepção de cada um deles.
No entanto é importante notar que a crise do socialismo teve, em seus efeitos e abalos sobre as
esquerdas brasileiras, aspectos intensivos/sincrônicos e extensivos/diacrônicos. Naquele período contido entre
89 e 91, os aspectos de questionamento intensivo (questionamento da estrutura, da concepção, da legitimidade
e da eficiência) levaram a possibilidade de abandono imediato do projeto socialista, o que, como acima foi
dito, também foi de imediato recusado. É talvez nos aspectos extensivos (que se relacionam indiretamente à
estrutura, à concepção, à legitimidade e à eficiência), e que se distribuem descontinuamente no tempo, que
devemos concentrar nossas atenções. As questões que foram colocadas aos Partidos pelos acontecimentos, no
que diz respeito:1) ao "processo" pelo qual se estabelece - e se estabeleceu - uma sociedade socialista; a sua
legitimidade, a relação custo/benefício entre seus erros e acertos 2) a relação socialismo/democracia 3) a
relação Partido/Sociedade e Partido/Estado, são questões que foram colocadas mas nem de longe respondidas
no período de auge da crise do Socialismo e que, ao se acumularem e se converterem em objeto de conflito,
podem gerar desgastes e mudanças aparentemente imperceptíveis, mas que são capazes de "abalar" a
estrutura dos Partidos. A recusa em abandonar o projeto socialista partia de uma compreensão do socialismo
que era viva até então em meio aos Partidos, mas isso não significa que a crise não tenha conseguido afetar os
significados destas compreensões. Os efeitos e os abalos da crise do Socialismo não devem ser procurados no
imediato da sua ocorrência somente, mas principalmente, nos período subsequentes, em que irá se demonstrar
em meio às esquerdas uma profunda necessidade de atualização de determinados códigos simbólicos.
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Podemos destacar que a crise do socialismo teve como efeitos principais; 1) a geração de debates em
meio às esquerdas, debates estes a princípio caracterizados por uma recusa à reavaliação crítica do projeto
socialista, seguida de críticas parciais à determinados aspectos do processo de formação e desenvolvimento
histórico dos regimes socialistas; 2) o questionamento da forma de organização dos Partidos que se baseavam
nos moldes dos Partidos Comunistas, tanto a sua legitimidade quanto sua eficiência; 3) o questionamento do
programa - Socialista - de cada partido, e da própria capacidade destes partidos em viabilizar qualquer
programa; 4) o questionamento dos modelos de explicação da realidade de cada Partido (que foram na ocasião
parcialmente alterados), obrigando-os a rever posições - inclusive históricas - e a se voltarem para modelos
que haviam abandonado e recriarem um contexto de legitimidade para esta recuperação.
A crise do Socialismo foi interpretada negativamente; considerou-se que a derrocada dos regimes do
Leste europeu marcou um período de recuo de conquistas já consolidadas, e sinalizou a hegemonia de um
projeto contrário ao dos Partidos de esquerda. Viram neste processo também aspectos positivos; seja pela
possibilidade de recuperação de liberdades civis pela sociedade e reincorporação da "democracia como valor"
(PCB e PT), seja porque veio a confirmar posições ideológicas e históricas - dando "autoridade" e
confirmando o "gênio tático" do Partido (PC do B). Mas podemos afirmar com toda segurança, que para elas,
o aspecto negativo sobrepujou o positivo. Deste modo, apesar das múltiplas divergências entre as esquerdas
no tocante a interpretação do significado do Socialismo, estas convergiram na interpretação do significado da
crise do socialismo. Isto demonstra que elas partilhavam de um bem comum, do qual não iriam abrir mão tão
facilmente.
Os três Partidos se querem muito diferentes um dos outros; a "auto-afirmação" e a "identidade" da
organização partidária sempre foi fator fundamental. Mas apesar desta quase que obsessão pela afirmação da
diferença de Parte, pudemos observar, que comparados uns com os outros, os Partidos demonstraram
partilhar um consenso no disenso, para usar os termos de Pierre Bourdieu; parece que eles estão dentro de um
mesmo campo de referenciais culturais. Se há a divergência no que diz respeito as prescrições dadas para
determinadas questões sociais - e isto é controverso - a partir de determinadas considerações, há pelo menos
o consenso de que determinadas questões são as "centrais" do debate ideológico e na atuação do Partido.
A tarefa de interpretação da crise do Socialismo passa necessariamente pelo mapeamento das
oscilações e continuidades dos símbolos e elementos programáticos de cada Partido, se é que nesse caso,
58
cabe fazer uma distinção deste tipo. Principalmente porque, como para eles a questão da "identidade e dos
princípios" é central, a manipulação destas identidades e a sua reelaboração diante de determinados contextos
é também um processo fundamental no que toca à compreensão da sua dinâmica. E é isto talvez que possa
explicar muitos dos acontecimentos ocorridos após a crise no Leste europeu e na URSS As mudanças nos
Partidos, realizadas a partir da compreensão das mudanças nos "centros dirigentes" é sintomática;
principalmente se levarmos em conta a importância que a idéia de centro dirigente tem para o próprio Partido.
Como explicar então a mudança de referenciais identitários (simbólico-culturais) e a continuidade de
"programas" de ação, e inversamente a mudança de "programas" de ação seguida sempre da afirmação que
estas mudanças não implicam no comprometimento da "identidade" da organização partidária? Estas
mudanças, "descotinuidades" e "recuperações" indicam muitas vezes movimentos contraditórios, mas que são
racionalizados pelos Partidos, pelo menos em certo grau e durante certo período. É preciso compreender que
existe uma margem de manobra das "identidades" das organizações partidárias, de como elas podem ser
incorporadas e descartadas de acordo com as demandas que internamente se apresentam e com pressões e
questionamentos externos, que exigem delas novas formulações acerca do mundo.
Um fato de extraordinária importância, que pôde ser observado em todos os três Partidos, é o das
"mudanças bruscas" de uma determinada concepção à outra, mas as mudanças são bruscas somente em um
campo; no dos modelos explicativos. A dificuldade de revisar estes modelos cria um descompasso entre o
"modo de pensamento" do Partido (entendido como um tipo de discurso dominante, produzido a partir de
determinadas relações de poder, e não como o pensamento de todos os seus membros tomados
individualmente) e a sua dinâmica política; enquanto no plano das ações e estratégias políticas são acionadas
diversas formas e lógicas de relacionamento político, a interpretação desta prática fica imobilizada. O
conhecimento e a reflexão acerca da realidade não acompanham necessariamente a própria realidade. Por
exemplo, a Direção Nacional do PCB, do grupo de Salomão Malina e Roberto Freire, atuava de forma
contrária à determinadas concepções do Partido (ou pelo menos sua atuação era assim percebida por outros
componentes e setores) antes de haver uma mudança no seu discurso e postura com relação ao Socialismo
Real, mas eles não tiveram muitos problemas com isso. Ter um modelo explicativo convincente e totalmente
coerente com a "realidade" não é requisito para o exercício do poder e para a prática política.
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Fazendo um breve balanço do que acontece com os Partidos analisados no período compreendido
pelos anos de que vão de 89 à 93, vemos que; o PCB passa por três Congressos, que debatem o Socialismo e
que foram também o palco de profundas disputas políticas, de que se originou um novo Partido - o PPS; o PT
realiza o seu primeiro Congresso, e o Socialismo é um dos pontos de destaque dos debates; o PC do B
antecipa seu 8º Congresso para 1992, com fins de discutir a crise do Socialismo. Há então um visível
contraste entre o impulso dos Partidos em negar a crise, e a sua dinâmica, que é profundamente alterada em
razão dela.
De certa forma, os três Partidos oscilam entre 1) o não reconhecimento da crise; 2) a tentativa de se
isentar de qualquer vinculação com a tradição em crise e/ou se desvincular naquele momento através da
autocrítica; 3) a reestruturação, "em certo grau", de suas concepções. Curiosamente, os que mais passaram
por "revisões" de seus sistemas explicativos (PT e PCB), passaram na sequência de grandes choques políticos
organizativos internamente; o que não foi muito fundo nesta revisão, o PC do B, não conheceu choques deste
tipo.
As posturas adotadas pelos Partidos de esquerda diante da crise parecem indicar que, quanto maior
a crise maiores são as dificuldades em lidar com ela. A crise final dos regimes Socialistas se insere dentro de
um processo mais amplo de crise da concepção Socialista e de seus referenciais. A dificuldade (e mesmo
resistência) em reconhecer a existência da crise do socialismo revela como é complicado para estes Partidos
lidar com a noção de crise. Quanto mais a crise afeta a organização partidária, mais se verifica a revisão de
idéias e práticas e inversamente, quanto menos se verifica os efeitos da crise no plano da organização interna,
menor é o grau de abrangência das revisões críticas. As mudanças em seus modelos explicativos e teorias só
ocorreram em situações limite.
A crise de concepção se dá na dimensão de uma lógica simbólica, e não tem como efeito imediato ou
necessário, uma crise de eficiência política. Os Partidos podem crescer na sua influência política, eleitoral e
social, e simultaneamente acumular desgastes internos de sua própria concepção (as vezes é a própria
eficiência que leva a crise de concepção). E este fato é paradoxal; por mais que tentem escapar à crise
derivada da crítica dos seus "erros" (muitas vezes tentando não reconhecer a existência de erros enquanto
possibilidade) as esquerdas socialistas não escapam daquelas crise oriundas dos seus "acertos". A crise de
concepção derivada da eficácia política dos Partidos vem muitas vezes da tentativa de adicionar (e equilibrar)
60
"novos" enunciados e programas com o programa Socialista. Desta forma nos anos 90, vemos nos programas
dos Partidos aqui analisados uma forte presença da ideologia nacionalista, e a defesa sistemática da
"democracia"; exatamente em um contexto em que a democracia, entendida enquanto expressão dos sistemas
políticos ocidentais se generalizaram como uma espécie de "ideal universal", e também, num momento,
como em nenhum outro da história do país, as esquerdas conseguiram consolidar a sua participação no
sistema político-partidário do Estado brasileiro. Apesar da auto-afirmação do projeto Socialista que
realizaram, este começou a ter que dividir cada vez mais espaço com estes dois outros elementos
programáticos e estas duas ideologias. A inserção dos Partidos nos sistemas partidários é assim uma fonte
possível de origem das crises. Outra, é a dinâmica estrutural dos Partidos, sejam socialistas, sejam
comunistas.
"Socialismos" em Crise
Toda crise gera um certo grau de surpresa. Principalmente quando se passa anteriormente por um
extenso período de prosperidade - e no caso que tratamos, foi uma prosperidade de setenta anos. A eminência
do aparecimento de uma série de problemas que vem contestar verdades há tempos estabelecidas, e de forma
tal que alçam a infalibilidade, faz com que muitos afirmem que o esfacelamento é inexorável e definitivo;
simplesmente irreversível. As verdades inquestionáveis passam a ser tidas como enganos imperdoáveis.
Isto ocorreu de certa forma também com a “crise do Socialismo” nas últimas duas décadas. Quase
ninguém se lembra mais dos seus “grandes feitos”, e muitos dos que ainda se lembram, estão fazendo questão
de tentar esquecer. O fato dos regimes socialistas terem sucumbido de forma tão espantosa, rápida e
“repentina”, sem fazer nenhum aviso prévio, fez com que muitos se colocassem a pergunta: o que será da
esquerda, ou melhor seria dizer das esquerdas, após o “colapso generalizado da Sociedade Socialista”? Como
elas reagiriam? Se manteriam ainda apegados aos seus antigos valores e rendendo homenagens aos seus
antigos líderes?
Mas o que é que está em crise? Será que uma análise da trajetória e do desempenho da esquerda no
Brasil na época contemporânea assinalaria que o fim da URSS cumpriu um papel desestabilizador e
61
desagregador tão profundo? Há claramente certas insuficiências na compreensão do que vem ocorrendo nos
últimos anos no cenário político, nacional e internacional.
Quase que por naturalização, se transmitiu a idéia de que a crise do socialismo foi acompanhada de
um "descenso" das esquerdas enquanto Partidos de expressão dentro dos sistemas políticos que integravam.
Isto talvez seja válido para Europa Ocidental, e mesmo assim, somente em certa medida. No Brasil, a década
de 90 presenciou justamente o contrário. Os Partidos aqui analisados por exemplo, talvez à exceção do PCB98,
cresceram muito. O PT se tornou o 4º maior Partido do País, atrás apenas do PMDB, do PFL e do PSDB.
Convém tomar em conta esta idéia muito veiculada de que o fim da URSS e o desmantelamento do
bloco socialista, impactaram de forma mecânica nas diferentes realidades continentais e nacionais. O tão
referido processo teria se dado como um “efeito dominó”. Por detrás desta idéia se estrutura uma outra mais
importante. A de que os movimentos políticos nacionais, e neste caso os ligados direta ou indiretamente ao
movimento comunista e socialista, são meras peças componentes de um jogo político determinado
unilateralmente pelos "países centrais". E neste sentido vemos reproduzir-se com uma outra roupagem
algumas teses deterministas, que expressam sempre um inconsciente (mas nem tanto) complexo de
inferioridade, que subestima as capacidades dos grupo locais ou “periféricos” e superestima as possibilidades,
a extensão e a eficácia do controle exercido por grupos “centrais”.
A percepção quase generalizada de que o refluxo do movimento socialista e dos Partidos de esquerda
está associado diretamente ao fim dos regimes socialistas (expressa na extinção da URSS e na queda do muro
de Berlim) é um exemplo desta tese. Esta concepção parte do pressuposto de que existe, ou existiu em algum
momento, um sistema político internacional estruturado em função da URSS por ela controlado em todos os
níveis e instâncias.
Os laços existentes entre a política da URSS e demais Partidos de esquerda no resto do mundo no
entanto não devem ser considerados sob este prisma, sob pena de incorrermos em diversos equívocos;
existiram várias tensões entre as orientações de diversos Partidos Comunistas e Socialistas locais e as
orientações de Moscou, e mesmo de frações e correntes dentro dos Partidos locais com outras frações e
correntes para aderir ou não, com estas ou aquelas críticas, ao modelo do socialismo soviético. Desta forma
uma pretensa continuidade harmônica entre a política do PCUS e as dos demais PC’s não passa de uma
98 Em compensação o PPS, foi um partido que cresceu muito, em membros, e em peso eleitoral.
62
interpretação (na melhor das hipóteses) desatenta do processo de desenvolvimento histórica do Movimento
Socialista internacional.
Trata-se de uma visão que atribui um encadeamento rígido a um movimento político de caráter
internacional que possuiu muita fluidez e elasticidade, sendo palco de tensionamentos internos
consideravelmente grandes. Não podemos obviamente incorrer no erro de elaborar e apostar na fórmula
inversa, e tentar explicar, ou melhor, compreender o Movimento Socialista e suas crises sem recorrer ao
sistema e as relações internacionais deste mesmo movimento. Mas é exatamente a partir da interação destas
duas perspectivas - da existência de uma especificidade da atuação dos grupos nacionais, que não coincide
necessariamente com as “determinações” políticas dos “países centrais”, e de um sistema internacional
relativamente autônomo, que na sua lógica e dinâmica de funcionamento cria e recria interesses, e que por
consequência disso mesmo, articula coalizões políticas e artifícios materiais e ideológicos no sentido de
“realizar pressões” para que os grupos locais adotem e sigam sua política - que devemos nos orientar.
Diante dessas considerações, faz-se necessário repensar o processo que testemunhamos nos últimos
anos. Pois se a hipótese que colocamos acima como pressuposto de trabalho for verdadeira, o que importa
saber não é se podemos atribuir ao desmantelamento da URRS e dos regimes socialistas o estatuto de causa e
motivação maior da crise do Socialismo enquanto movimento. Mas sim, ver como esta dissolução se relaciona
com a própria dinâmica estrutural do Movimento Socialista, como este se adaptou ou está se adaptando a uma
nova realidade. Pensamos ser necessário ir buscar em outro lugar, e por outros meios, os elementos que
permitam uma compreensão satisfatória dos momentos que presenciamos em 1989 e 1991, e que se tornaram
talvez os mais dramáticos e significativos deste final de século. Cremos que não poderia ser atribuído ao fim
da URSS a motivação da crise das esquerdas em nosso país, pelo menos não o estatuto de causa exclusiva, e
mesmo de preponderante, sob pena de encontrar uma explicação para tudo antes mesmo de começar a análise.
A conclusão final deste trabalho, e que talvez possa constituir sua modesta contribuição, sugere três
tipos distintos de conceitos ou abordagens acerca da crise do Socialismo. Um, o conceito de Formação
Histórico-Social; outro, o de Campo Cultural; o terceiro e último, o de Movimento Político. É certo que as
Formações Histórico-Sociais conhecidas como Socialistas deixaram de existir. Agora, estender esta conclusão
para as duas outras esferas, a do Campo Cultural e a do Movimento Político é incorrer em um equívoco, e
esperamos que este trabalho tenha contribuído para alertar sobre ele. O Socialismo é um complexo que
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articula estas diferentes dimensões. Obviamente as crises se processam de forma muito variada em cada uma
delas. O "Socialismo" acabou efetivamente; em determinado tempo/espaço e em um determinado sentido;
sobrevive em outros.
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Fontes Primárias
PCB
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- Resoluções Políticas do XI Congresso do PCB, Rio de Janeiro, Março de 1996.
- Imprensa Popular – Jornal do partido Comunista Brasileiro Ano III – Nº 2 Março de 1997(Edição Especial)
- Estatuto do Partido Comunista Brasileiro (Aprovado na Convenção Nacional de21/01/96).
- Jornal “ Voz da Unidade” – Órgão Oficial do Partido Comunista Brasileiro.
PC do B
- A Política revolucionária do PC do B – 7º Congresso do PC do B. Editora AnitaGaribaldi. 2 EDIÇÃO. 1989
- O Socialismo Vive. Resoluções do 8º Congresso do Partido Comunista do Brasil. EditoraAnita Garibaldi. 1992.
- Construindo o Futuro do Brasil Documentos da 8º Conferência Nacional do PC do B.Editora Anita Garibaldi. 1995
- Programa Socialista e Estatuto do partido Comunista do Brasil. Editora Anita Garibaldi.
- Resoluções do 9º Congresso do PC do B, in Revista Princípios, Editora Anitanovembro/dezembro 1997 janeiro de 1998.
- A Classe Operária - órgão central do Partido Comunista do Brasil.
PT
- Resoluções de Encontros e Congressos 1979-1998. Editora Perceu Abramo, São Paulo1998.
- Boletim Nacional do Partido dos Trabalhadores.
- PT Notícias.
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CLAUDÍN, Fernando "A Crise do Movimento Comunista - o apogeu do stalinismo".Vol. 2 Gobal Editora São Paulo 1986
FOUCAULT, Michel "O Que é um Autor?" Editora Passagens, 1992.
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