View
3
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
Os Videoclipes do “Fantástico”1
Guilherme Bryan (Doutor)2
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)
Centro Universitário Belas Artes – São Paulo (SP)
Resumo
O programa dominical da TV Globo, “Fantástico”, é considerado o primeiro espaço de
exibição do videoclipe brasileiro. O fato de essa produção ter sido realizada por profissionais
da própria emissora de televisão faz dessa produção algo diferenciado quando comparado
com o que se realizou na maior parte dos países, principalmente Estados Unidos e Inglaterra,
no mesmo período das décadas de 1970 e 1980. Serão destacadas as principais características
desses videoclipes e dos realizadores dos mesmos.
Palavras-chave: Audiovisual; Televisão; Música; Videoclipe.
Introdução
Não se sabe ao acerto a origem do videoclipe tanto no Brasil, quanto no mundo. O
certo é que ele é resultado de uma série de experimentos realizados desde o surgimento do
cinema, no sentido de relacionar da maneira mais intrínseca música e imagem. Desse modo,
esse formato audiovisual surgido por volta de meados da década de 1970 é considerado o
ápice dessas experiências.
Quando Thomas Edison criou o fonógrafo em 1877, ele sentiu falta principalmente da
imagem, pois, até então, as apresentações musicais aconteciam ao vivo, com a presença do
intérprete da canção. Ao mesmo tempo, as primeiras projeções de “A Chegada do Trem na
Estação”, dos irmãos Auguste e Louis Lumière, em 1895, foram acompanhadas pela execução
de música ao vivo, o que se tornou comum nessa primeira fase do cinema.
Desde então, como mencionado acima, foram realizadas várias experiências de se
relacionar imagem com música, caso de “jazz shorts” (curtas-metragens exibidos antes do
1 Trabalho apresentado no GT 6– História da Mídia Audiovisual e Visual do II Encontro Nordeste de História da Mídia,
Teresina 20 e 21 de junho de 2012. 2 Doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-
USP). Professor do Curso de Rádio e TV do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. E-mail:
guibryan1@gmail.com.
filme principal entre o final da década de 1920 e meados da década de 1940) e dos “soundies”
(pequenos filmes de curta duração projetados numa máquina, chamada Panoram, que
funcionava por meio de moedas, na década de 1940). Mas os “pais” mais próximos dos
videoclipes são os promos. Eles são produções audiovisuais que tem como objetivo a
“visualização” de uma canção em imagens, de modo semelhante aos videoclipes, mas sem
sincronismo labial, realizado em película e sem o financiamento da gravadora do artista.
No Brasil, a trajetória do desenvolvimento da relação entre música e imagem ocorre de
maneira semelhante ao resto do mundo. O primeiro marco é o filme musical “Coisas Nossas”
(1931), dirigido por Wallace Downey e que conta com o Bando de Tangará, formado por
Noel Rosa, João de Barro, Alvinho e Henrique Brito, vestidos de sertanejos e cantando
“Vamos Falá do Norte”. O segundo marco é o curta-metragem “A Velha a Fiar”, de 1964, em
que a letra de uma canção popular, composta por Aldo Taranto e interpretada pelo Trio
Irakitã, é transformada em imagens, de modo literal, pelo diretor Humberto Mauro. Por fim,
há os filmes estrelados por Roberto Carlos e dirigidos por Roberto Farias (de modo
semelhante ao que ocorrera com os Beatles e o diretor Richard Lester na década de 1960 na
Inglaterra) – “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” (1967), “Roberto Carlos e o Diamante
Cor de Rosa” (1969) e “Roberto Carlos a 300 Quilômetros Por Hora” (1971). Esses filmes são
denominados por José Mário Ortiz Ramos como sendo “pré-videoclipes” 3
.
Os festivais da música brasileira4 também representam uma mudança importante na
maneira de se apresentar a música na televisão, como bem explica o jornalista e pesquisador
musical Zuza Homem de Mello:
Os quase sonolentos programas em que um grande cantor ou cantora se
apresentava durante meia hora num cenário de gosto discutível, mesmo com
uma mulher admiravelmente fotogênica como Maysa, chegavam ao fim de
uma era. No novo modelo, havia um outro elemento: o público (...) A partir
do I Festival da Excelsior, programa musical na televisão brasileira seria
outra coisa. Uma coisa única no mundo. E ainda mais: pela primeira vez na
história da televisão brasileira, quem estava em casa tinha um contato direto
com o que acabava de sair do forno, a nova usina de produção da música
popular, a privilegiada geração dos anos 60. Esse público tinha liberdade de
3 RAMOS, José Mario Ortiz. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa. Petrópolis, RJ. Vozes. 1995, p. 230. 4 O “Festival Nacional da Música Brasileira”, da TV Excelsior, foi realizado nos anos de 1965 e 1966; o “Festival de Música
Popular Brasileira”, da TV Record, foi realizado de 1966 a 1969; e o “Festival Internacional da Canção”, da TV Globo, foi
realizado de 1966 a 1972.
avaliar de imediato a nova canção, influenciada ou não pelas platéias.
Liberdade de avaliar era um direito de cada cidadão, num país em que a
liberdade de pensar vinha sendo tolhida pouco a pouco havia quase um ano5.
Há bastante discussão em torno de qual foi o primeiro videoclipe brasileiro e se a
produção realizada como mais uma atração do programa dominical da TV Globo,
“Fantástico”, pode receber de fato essa denominação, o que se procurará demonstrar nesse
artigo. Outras questões-chaves no escopo dessa pesquisa são as principais características, as
produções mais marcantes e os principais realizadores desse modelo.
Surgimento do videoclipe brasileiro
“Gita”, dirigido por Cyro Del Nero, para canção interpretada por Raul Seixas; e
“América do Sul”, com direção de Nilton Travesso para música cantada por Ney Matogrosso,
disputam o posto de qual foi o primeiro videoclipe brasileiro. Os dois diretores, inclusive, já
assumiram publicamente terem sido os autores da façanha. O fato é que ambos foram
realizados por profissionais pertencentes ao quadro de funcionários da TV Globo e para ser
exibido no “Fantástico”, recém-criado programa da emissora exibido nos domingos à noite.
O programa “Fantástico” é até hoje exibido aos domingos, a partir das 20hs, pela TV
Globo, e foi criado em 1973, para ser uma espécie de “revista eletrônica”, com as mais
diferentes atrações. Por esse motivo, era possível que houvesse também atrações musicais.
Por isso, durante praticamente dois anos, muitos artistas foram convidados para ir aos
estúdios da emissora, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro (RJ), para interpretar um sucesso
do momento num número de palco, que poderia contar com a equipe de dançarinos da
emissora, assim como utilizar cenários.
Em 1974, o cenógrafo Cyro Del Nero resolveu desenvolver um número especial para a
canção “Gita”, interpretada por Raul Seixas e composta por ele e Paulo Coelho. Ele havia sido
premiado como melhor cenógrafo nacional na VI Bienal de Artes Plásticas de São Paulo e
vinha ganhando destaque em função de realizar diversas aberturas de telenovelas, como
“Corrida do Ouro”, exibida entre 1 de julho de 1974 a 25 de janeiro de 1975.
5 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais Uma parábola. São Paulo, SP. Editora 34. 2003, p. 74.
A solução encontrada foi colocá-lo com diferentes figurinos, como um traje típico da
Renascença e roupa cor-de-rosa, contracenando com a projeção em chroma-key (técnica de
efeito visual que consiste em colocar uma imagem sobre outra por meio de se anular uma cor
padrão, mais comumente azul ou verde) de obras de artistas plásticos como o catalão
surrealista Salvador Dalí, o suíço Paul Klee, o flamengo Hieronymus Bosch, o pintor e
gravador espanhol Francisco de Goya e o artista gráfico francês Odilon Redon, entre outros.
Cyro Del Nero comenta a importância desse videoclipe:
Augusto César Vannucci (diretor, produtor de televisão e criador de
diversos musicais da TV Globo) me deu para fazer o que se chamava na
época número musical do “Gita”, de Paulo Coelho e Raul Seixas, e os dois
foram bater papo comigo. Eles tinham a ideia de colocar o Raul em cima de
um cavalo para atravessar a avenida Rio Branco (no Rio de Janeiro), mas eu
disse que não e fiz um storyboard. Raul era um anjo e pouco dizia. Quem
falava mais era o Paulo Coelho. Raul só me pediu para ajudá-lo a enfiar a
mão e tirar os óculos de dentro da roupa num determinado momento. E, para
terminar, eu quis alguma coisa que o celebrasse. Por isso, coloquei uma
grande rosa e várias estrelas. É engraçado, porque acho que, entre gravar e
colocar no ar, apenas o Vannucci viu. E foi um grande sucesso. O Boni (José
Bonifácio de Oliveira Sobrinho, então superintendente de produção e
programação da Rede Globo) ficou louco e disse que queria toda vez um
número daqueles no “Fantástico”. Roberto Marinho (fundador e proprietário
da TV Globo) pensou que o Boni havia comprado esse material nos Estados
Unidos. Havia um clima de que tínhamos entrado numa nova era. E não foi
em função da técnica, porque era só chroma-key, com o qual eu já
trabalhava. O que eu acho que comoveu foi uma figura como o Raul e uma
erudição ao redor, o que na televisão era raríssimo. Eu tenho até hoje um
agradecimento escrito por Paulo Coelho, em que ele se refere ao sucesso
comercial de “Gita”, muito graças ao videoclipe.6
“Gita” realmente se diferencia totalmente dos números musicais exibidos até então
pelo “Fantástico” e se aproxima bastante da definição de videoclipe desenvolvida pelo próprio
Cyro Del Nero, num e-mail enviado no grupo de discussões dos docentes e pesquisadores da
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP):
Ao contrário do número musical – em cinema ou televisão – o videoclipe
não é apenas o registro da performance do artista, mas um trabalho criativo
elucidando, comentando, corroborando, ampliando e enaltecendo as
6 BRYAN, Guilherme. A Autoria no Videoclipe Brasileiro: Estudo da obra de Roberto Berliner, Oscar Rodrigues Alves e
Mauricio Eça. Tese de Doutoramento. ECA-USP. 2012, pág. 112.
qualidades do mesmo. É rico, dependendo da cultura empregada, condizente
com o número musical ou como uma ampliação do seu sentido.7
O diretor Nilton Travesso, que trabalhara nos Festivais de MPB, da TV Record,
garante que o primeiro videoclipe foi “América do Sul”, estrelado por Ney Matogrosso e
realizado em 1975. A justificativa é que ele fora realizado em ambiente externo, escapando do
modelo dos números de palco, gravados em estúdio. Também trazia efeitos especiais, como
mudanças de cores; e possuía sincronismo labial, além de maior cuidado com edição.
Em “América do Sul”, Ney Matogrosso aparecia num matagal em Mangaratiba, no
Rio de Janeiro, sendo focalizado dançando sobre uma pedra ou se misturando com a
plantação, como espécie ambígua de homem-mulher, selvagem-civilizado, numa “América
desabitada”, como na época do Descobrimento do Brasil. O cantor também era mostrado
preso a um helicóptero, como se voasse. De acordo com as disponibilidades técnicas da
época, várias vezes as imagens mudavam de cor, entre rosa, azul, vermelho e verde.
O próprio Nilton Travesso explica o ineditismo de sua iniciativa:
O que eu imaginei? Se instalar, num gravador, uma corneta e fizer a música
sair por ela para o cantor ouvir, e, ao mesmo tempo, colocar o microfone de
saída do VT dentro da corneta, como som-guia, eu consigo fazer com que o
cantor duble e depois seja possível sincronizar som e imagem na edição. Foi
o que fiz. Só que, quando apresentei a ideia para a TV Globo, enquanto
alguns consideraram como sendo algo primário, Boni me deixou
experimentar. Foi quando comprei um gravadorzinho e uma corneta, e tive a
ideia de fazer com Ney Matogrosso. Seria filmado no helicóptero e na terra
no meio de um trigal para fazer algo bem primitivo com ele usando uma
roupa meio ratazana. Era praticamente um plano fechado com profundidade,
mostrando um espaço selvagem, dentro da filosofia da música, e com
cornetinha no ouvido dele para que pudesse ouvir e dublar. É claro que
tomamos todos os cuidados para amarrá-lo com cinto de segurança, assim
como o cameraman e eu, que segurava a corneta e um pequeno projetor de
luz, para compensar a luminosidade dentro do helicóptero. Deu tudo certo. A
única coisa que me criou problema muito sério foi que, como o
gravadorzinho era de pilha, a cada 8 ou 10 segundos, ele saía totalmente de
sincronia e, em função disso, precisamos ficar exatamente 22 horas na
edição, eu, Ricardo Leitão, que era o editor do “Fantástico”, e Roberto
Talma (então diretor do programa). Esse videoclipe ganhou até prêmio nos
Estados Unidos.8
7 NERO, Cyro Del. Videoclipe X Nilton Travesso ou A Travessura de um Sofismo NIltoniano, de 25 de maio de 2009. 8 BRYAN, Guilherme. A Autoria no Videoclipe Brasileiro: Estudo da obra de Roberto Berliner, Oscar Rodrigues Alves e
Mauricio Eça. Tese de Doutoramento. ECA-USP. 2012, pág. 113
Independente de qual foi o primeiro videoclipe exibido pelo “Fantástico”, o que
interessa é o fato de que ambos foram realizados como mais uma atração do programa
dominical da TV Globo, usufruindo de seus profissionais e equipamentos – o que resultava
numa produção de custos bastante reduzidos –, mas também como importante instrumento de
marketing de uma canção e de seu artista – outra característica muito importante na
conceituação de videoclipe. Ter esse tipo de produção exibido numa das atrações de maior
audiência da emissora resultava, quase certamente, no aumento considerável das vendas do
disco, no qual estava inserida a canção, que já no dia seguinte passava a ser tocada muito mais
nas rádios também.
Principais características dos videoclipes do “Fantástico”
A cada domingo, o “Fantástico” exibia, em média, quatro novos videoclipes realizados
no Brasil e/ou estrelados por artistas nacionais, que duravam em média quatro minutos cada.
Além de apresentarem uma cara mais gráfica e plástica ao programa da emissora, essas
produções precisavam apresentar uma linguagem adequada à de todas as outras atrações
apresentadas e também ao que ficou conhecido como “padrão Globo de qualidade” e que
pode ser traduzido como bom acabamento, tecnologia de ponta e visualidade agradável.
Portanto, é fácil reconhecer que muitos desses videoclipes se pareciam uns com os outros.
A primeira característica é o fato de que, percebendo o potencial de marketing desses
videoclipes, a Rede Globo resolveu divulgar canções utilizadas e comercializadas por sua
gravadora, Som Livre, e até alterar a música de trabalho que merecia videoclipe e havia sido
sugerida por outras gravadoras. Ao mesmo tempo, a própria emissora precisava garantir a
exibição das principais produções internacionais, de astros de grande popularidade no final
dos anos 1970 e da primeira metade dos anos 1980, caso de Michael Jackson e Madonna,
como modo de aumentar a audiência. Muitas agências de publicidade também notaram que
havia ali mais um importante espaço para a inserção de merchandising de produtos.
Se considerarmos a produção do “Fantástico” como inaugural dos videoclipes
brasileiros, é importante destacar o fato de que ela estava menos associada à indústria
fonográfica, do que em outros países, como Inglaterra e Estados Unidos. É possível que haja
até um ineditismo brasileiro nesse sentido, o que ainda carece de mais investigações. O fato é
que, segundo o depoimento de alguns diretores, após alguns anos, os videoclipes realizados
pelos profissionais da TV Globo passaram a ser oferecidos às gravadoras como artigo de
divulgação dos artistas em troca de subsídios.
O roqueiro Leo Jaime destaca a importância desses videoclipes:
: O “Fantástico” sempre foi um programa de muito Ibope, mas acredito que,
nos anos 1980, atingiu o seu auge. Então, o videoclipe do programa era o
espaço mais nobre para se lançar uma música nova, uma vez que a
repercussão era muito grande. Geralmente, fazia com o Boninho e na maior
camaradagem, porque nos divertíamos fazendo. A gente se reunia e decidia o
que ia fazer. Era a maior liberdade.9
De modo geral, as canções que receberiam videoclipes eram selecionadas na segunda-
feira, em reunião entre representantes das gravadoras e o diretor-geral do programa, José
Itamar de Freitas. Os roteiros eram aprovados às terças-feiras, e a produção era definida entre
quartas e quintas-feiras. As gravações ocorriam entre quintas e sextas-feiras; e as imagens
editadas aos sábados para ir ao ar aos domingos. Todos os videoclipes eram aprovados por
Freitas e pertenciam com exclusividade à Rede Globo, não podendo ser exibidos pelas demais
emissoras.
A segunda característica totalmente ligada à primeira é que, na maioria das vezes,
esses videoclipes trabalhavam com as canções-tema das telenovelas exibidas pela TV Globo,
muitas vezes com cenas das próprias produções ou estrelados por atrizes e/ou atores do elenco
da emissora. A razão é que, desse modo, divulgava-se não apenas as próprias telenovelas, mas
também os fonogramas reunidos em discos comercializados pela gravadora Som Livre. Um
dos videoclipes mais interessantes nessa inter-relação é “Mistérios da Meia-Noite”, dirigido
por Paulo Trevisan para Zé Ramalho, em 1985. A canção era tema do professor Astromar,
interpretado pelo ator Rui Rezende, em “Roque Santeiro”. Se o personagem se transformava
em lobisomem na telenovela, a mesma transformação sofria o cantor no videoclipe, tentando
seduzir a modelo Luiza Brunet, a qual, no final, vira uma espécie de mulher-loba.
A terceira característica importante é o fato de que, mesmo tendo sido dedicados aos
mais diferentes ritmos musicais e artistas, os videoclipes do “Fantástico” tornaram-se um
espaço importante de divulgação das novas bandas de rock, surgidas a partir do início da
9 BRYAN, Guilherme. A Autoria no Videoclipe Brasileiro: Estudo da obra de Roberto Berliner, Oscar Rodrigues Alves e
Mauricio Eça. Tese de Doutoramento. ECA-USP. 2012, pág. 112.
década de 1980. A principal razão é que boa parte delas tinha na imagem algo tão relevante
quanto à música em si, algo que herdaram da própria história do rock. O cantor Elvis Presley,
por exemplo, soube se valer como poucos da imagem para transmitir códigos de
comportamento e rebeldia para seu público.
Portanto, mesmo que alguns artistas e bandas tenham sentido que ficaram
descaracterizados nos videoclipes exibidos pelo programa dominical da TV Globo, caso dos
Paralamas do Sucesso, a imagem utilizada por eles tornou-se uma marca importantíssima para
esses jovens artistas. Um exemplo importante é “Você Não Soube Me Amar”, dirigido por
Eid Walesko para a banda Blitz, em 1982.
Principais realizadores
O diretor Eid Walesko foi considerado como criador de uma estética própria
desenvolvida nos cerca de 300 videoclipes que acredita ter realizado entre 1980 e 1985, e que
seria bastante criticada pelas gerações posteriores de realizadores. Ela é caracterizada pela
mistura de câmeras invertidas com muito gelo seco. É o que acontece, por exemplo, em
“Desculpe o Auê”, dirigido em 1983, para a cantora Rita Lee, e filmado em Campos do
Jordão (SP).
O herdeiro mais direto nos videoclipes do “Fantástico” é Jodele Larcher, que comenta
o trabalho de Eid Walesko:
Eid Walesko usava algumas técnicas que a gente não dominava ainda. Ele
era cameraman e começou a abrir a câmera e deixar a imagem mais brilhante
e com mais contraste. Com luz boa, figurino bom e cenário legal estava ali
um videoclipe. Com a descoberta dessa linguagem, ele se aproximou muito
da publicidade, que é mais minuciosa. O segredo dele era ter uma fotografia
primorosa, com lentes especiais, enquadramentos e a edição do falecido Ivo
Alves, que inventou os inserts de quatro frames.10
Jodele Larcher possui como principais marcas o uso de grafismos e efeitos especiais. É
dele a direção de, entre outros, “Meu Erro”, de 1984, co-dirigido com Carlos Magalhães, em
que os integrantes da banda Paralamas do Sucesso aparecem pilotando motocicletas numa
10
BRYAN, Guilherme. A Autoria no Videoclipe Brasileiro: Estudo da obra de Roberto Berliner, Oscar Rodrigues Alves e
Mauricio Eça. Tese de Doutoramento. ECA-USP. 2012, pág. 122.
pista de motocross e contracenando com a atriz Cláudia Magno; e “Múmias”, de 1985,
estrelado pela banda Biquini Cavadão e que é uma ficção científica com muitos efeitos
especiais, filmada nas escadarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, com
participação da bailarina Cláudia Lecron.
Um dos primeiros diretores de videoclipes do “Fantástico” foi Herbert Richers Jr, que,
entre 1980 e 1990, realizou cerca de 500 videoclipes, que se destacam em função da utilização
de muitos efeitos visuais, mas também por valorizar a dramaticidade e as referências
cinematográficas. Entre eles, destaca-se a ficção científica “Vírus do Amor”, dirigida em 1985
e que mostra a intérprete da canção, Rita Lee, e o guitarrista Roberto de Carvalho, no interior
de um zepelim, simulando uma nave espacial, que desce a Terra para ser totalmente destruída,
com referências ao filme “Blade Runner – O Caçador de Andróides”, dirigido por Ridley
Scott em 1982.
Paulo Trevisan realizou cerca de 400 videoclipes, que se destacaram principalmente
pelo uso intenso de efeitos especiais em números registrados principalmente em estúdio,
valendo-se de muito bom-humor e criatividade. Esse é o caso de “Amante Profissional”,
dirigido em 1985, para a banda de rock Herva Doce, a respeito do universo dos homens
malhados em academias de ginástica. Mas quando partia para as gravações externas, Trevisan
valorizava a imagem do artista, os detalhes dos bastidores e os cartões-postais das cidades que
serviam de locação.
Em meados da década de 1980, o “Fantástico” já dividia a produção de videoclipes no
Brasil com produtoras denominadas independentes que trabalhavam para programas
segmentados das outras emissoras da televisão. Aos poucos, o próprio programa global
passou a inserir o trabalho desses novos realizadores audiovisuais em sua programação. Entre
eles, estavam nomes como o do atual documentarista Roberto Berliner e do jornalista e
cineasta José Emilio Rondeau.
O próprio José Emilio Rondeau descreve a relação com a TV Globo nesse período e
que se assemelha mais ao modelo que seria adotado pela MTV Brasil, a partir de seu
surgimento, em 1990:
Nas produtoras, a gravadora era quem financiava 100% dos videoclipes, que
iam para todos os programas que não eram da TV Globo. Havia a chance de
tentar jogar no “Fantástico”, com a condição de ser exclusivo dele durante
algum tempo e só depois passar em qualquer outro lugar. Mas até ali o
programa ainda era muito autossuficiente11
.
O hoje cineasta Fernando Meirelles, naquele período, era sócio da produtora Olhar
Eletrônico, que também realizou alguns trabalhos para o “Fantástico”, mas se opunha aos
videoclipes realizados pelos profissionais da TV Globo. Ele comenta:
Nunca entramos de fato (no “Fantástico”), porque, enquanto esses diretores
da TV Globo se achavam “reis da cocada”, nós os achávamos muito cafonas,
principalmente o Eid Walesko. Até hoje se brinca, quando vai fazer a câmera
um pouquinho torta: “Faz um Eid Walesko”. Além da câmera torta,
contraluz e fumaça eram os truques (dele). Então, fazíamos coisas para o
Fantástico porque estávamos do lado de fora e, o que é legal, propunhamos
com quem (cantores e bandas) queríamos fazer. Era outra turma mesmo.
Com Roberto (Berliner), nos identificávamos mais porque é um cara que faz
documentários12
.
O fato é que, aos poucos, a TV Globo percebeu que havia gastado dinheiro em algo
que poderia ser financiado pelas próprias gravadoras, como acontecia internacionalmente, e,
assim, direcionar seus profissionais para outras atrações do programa, que, desse modo,
poderiam ser realizadas com mais tempo e dedicação.
O professor e pesquisador Arlindo Machado avalia o trabalho desenvolvido por esses
novos realizadores:
No começo dos anos 1980, uma nova vaga de realizadores vai reorientar a
trajetória do vídeo brasileiro. Trata-se da geração do vídeo independente,
constituída em geral de jovens recém-saídos das universidades, que
buscavam explorar as possibilidades da televisão como um sistema
expressivo, e transformar a imagem eletrônica num fato da cultura de nosso
tempo. O horizonte dessa geração é agora a televisão e não mais o circuito
sofisticado dos museus e galerias de arte. Muito sintomaticamente, essa
outra vaga se opõe à videoarte dos pioneiros pela tendência ao documentário
e à temática social. Com sua entrada barulhenta em cena, o vídeo começa a
sair do gueto especializado e conquista seu primeiro público.13
11
IDEM, pág. 127. 12
IBIDEM, pág. 133. 13
MACHADO, Arlindo (org.). Made In Brasil Três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo, SP. Iluminuras. 2007, p. 18.
Se até ali os videoclipes do “Fantástico” apresentavam o mesmo padrão de qualidade
das outras atrações da programação da TV Globo, ao mesmo tempo em que se adequava a
linguagem internacional, próxima dos comerciais; as realizações das produtoras
independentes estabeleciam um diálogo mais próximo com os artistas com os quais
trabalhavam.
Ao mesmo tempo, os investimentos limitados das gravadoras, que não dedicavam
grandes receitas para algo que muito provavelmente seria exibido uma única vez na televisão,
faziam com que esses videoclipes tivessem um aspecto mais amador, mas também tornasse
um espaço mais aberto a experimentações. É esse aspecto que predomina nas produções
exibidas pelo “Fantástico”, que segue até o início da década de 1900, quando perde a posição
de exclusividade e principal janela de exibição desse formato audiovisual para a MTV Brasil.
Considerações Finais
Procurou-se, por meio deste artigo, demonstrar como a produção realizada para o
“Fantástico”, programa exibido aos domingos pela TV Globo, pode ser considerada iniciante
dos videoclipes brasileiros, uma vez que ela se associa à indústria fonográfica e visa a
divulgação de uma canção e seu artista, valendo-se de uma associação praticamente perfeita
entre música e imagem, com sincronismo labial.
Nesse sentido, pode-se acreditar que o diretor Nilton Travesso afirma que o videoclipe
“América do Sul”, que dirigiu para Ney Matogrosso, em 1975, pode ser considerado o
primeiro do formato realizado no país. Porém, também é fácil reconhecer que a iniciativa de
Cyro Del Nero, com “Gita”, estrelado por Raul Seixas, também representou uma ruptura com
relação a maneira como se transformava uma canção em imagens até então na televisão
brasileira.
Outro objetivo foi identificar as características que fizeram dos videoclipes do
“Fantástico” diferentes das fases subquentes da história do formato no país, assim como da
produção de outros países, principalmente dos Estados Unidos e da Inglaterra. Em função
principalmente por serem realizados pelos profissionais de uma única emissora de televisão
como mais uma atração de um programa de variedades, obedecendo ao padrão de qualidade
das outras atrações e da programação dela como um todo. Mas também por trabalhar com
fonogramas presentes principalmente nas telenovelas e vendidos em coletâneas
comercializadas pela gravadora Som Livre, pertencente a TV Globo.
Apresentamos os principais realizadores e seus videoclipes, ressaltando as
características que os particularizaram. Por esse viés foi possível identificar as diferentes fases
dessa produção no interior do próprio “Fantástico” e de que modo ela trouxe uma passagem
para os videoclipes subsequentes, exibidos principalmente pela MTV Brasil, a partir de 1990.
Curioso é saber que o videoclipe “Flores”, dirigido por Jodele Larcher e Gringo
Cardia, em 1990, para o “Fantástico”, mas que se tornou o primeiro representante brasileiro
no Video Music Awards (VMAs), mais importante premiação mundial dos videoclipes,
realizada pela matriz norte-americana da MTV. Mesmo que, por problemas conceituais, mas
também por desavenças conceituais, a filial brasileira nunca ter exibido esses videoclipes
realizados pela TV Globo.
Referências bibliográficas
BRYAN, Guilherme. A Autoria no Videoclipe Brasileiro: Estudo da obra de Roberto Berliner, Oscar
Rodrigues Alves e Mauricio Eça. Tese de Doutoramento. ECA-USP. 2012
MACHADO, Arlindo (org.). Made In Brasil Três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo, SP:
Iluminuras. 2007
MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais Uma parábola. São Paulo, SP: Editora 34. 2003
NERO, Cyro Del. Videoclipe X Nilton Travesso ou A Travessura de um Sofismo Niltoniano, de 25 de
maio de 2009.
RAMOS, José Mario Ortiz. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa. Petrópolis, RJ: Vozes. 1995.
Recommended