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O livro apresenta uma metodologia discursiva de trabalho com o dicionário que considera a necessidade de utilização crítica desse instrumento linguístico
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1
Um outro olhar sobre o dicionrio
2
S587u Silveira, Verli Ftima Petri da
Um outro olhar sobre o dicionrio : a produo de sentidos / Verli Petri, com a participao de Daiane Siveris, Daiane da Silva Delevati, Nina Rosa Licht Rodrigues. - 1. ed. Santa Maria : UFSM, PPGL-Editores, 2010. 120 p. ISBN 978-85-99527-22-1
1. Lingstica 2. Anlise do discurso 3. Anlise lingustica 4. Sociolingustica 5. Estudos lingusti- cos I. Siveris, Daiane II. Delevati, Daiane da Silva III. Rodrigues, Nina Rosa Licht IV. Ttulo. CDU 801 801:316
Ficha catalogrfica elaborada por Alenir Incio Goularte CRB-10/990 Biblioteca Central da UFSM
Editora PPGL Programa de Ps-Graduao em Letras Universidade Federal de Santa Maria Prdio 16, CE, sala 3222 Bloco A2 Campus Universitrio Camobi 97105-900 Santa Maria, RS Brasil 55 3220 8359 www.ufsm.br/ppgletras Consulte tambm: www.ufsm.br/revistaletras
Impresso na IMPRENSA UNIVERSITRIA UFSM - Santa Maria - RS Agosto de 2010
3
Um outro olhar sobre o dicionrio:
A produo de sentidos
VERLI PETRI
com a participao de
DAIANE SIVERIS
DAIANE DA SILVA DELEVATI NINA ROSA LICHT RODRIGUES
Santa Maria, 2010
1 edio
4
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA FELIPE MARTINS MLLER Reitor EDEMUR CASANOVA Diretor do Centro de Artes e Letras AMANDA ELOINA SCHERER Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Letras Coordenadora Geral do LabCorpus PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS Editora PR-REITORIA DE PS-GRADUAO E PESQUISA Apoio REJANE MARIA ARCE VARGAS Reviso Geral DAIANE SIVERIS DAIANE DA SILVA DELEVATI NINA ROSA LICHT RODRIGUES Reviso JUCIELE PEREIRA DIAS Editorao eletrnica e Capa
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SUMRIO
09 Apresentao
15 Os dicionrios merecem que lutemos por eles
Verli Petri
27 O funcionamento de dicionrios no ensino de Lngua Portuguesa Nina Rosa Licht Rodrigues Verli Petri
39 O dicionrio e a sala de aula: possveis relaes Daiane Siveris Verli Petri
51 O uso do dicionrio na sala de aula: condies para as contradies Daiane da Silva Delevati Verli Petri
71 Sobre as propostas de atividades prticas desenvolvidas com dicionrios
117 Bibliografia
6
7
Dedico este livro aos professores e a todos aqueles que
acreditam que ensinar a lngua trabalhar com o sentido
de pertencimento de um povo que constri uma identidade
prpria reconhecendo-se nas relaes com o outro, pela
alteridade que lhe constitutiva.
8
9
APRESENTAO1
As reflexes sobre lngua e as possibilidades de produo de
efeitos de sentidos surgem de onde menos se espera. Por exemplo,
estamos to acostumados a manusear, em contexto escolar,
dicionrios, gramticas, livros didticos, entre outros, como
instrumentos pedaggicos, que raras vezes paramos para refletir sobre
a constituio, a institucionalizao e o funcionamento dos mesmos.
Eis que ora apresentamos um livro que busca refletir sobre esses
instrumentos pedaggicos, sob uma perspectiva que os toma como
instrumentos lingusticos, objetos discursivos da maior importncia
para a constituio dos sujeitos em relao a sua lngua. A partir de
trabalhos de Iniciao Cientfica desenvolvidos por Nina Rosa Licht
Rodrigues, Daiane Siveris e Daiane da Silva Delevati, sob orientao
da professora Verli Petri, todas vinculadas UFSM, encontramos um
olhar lanado sobre o dicionrio, um instrumento lingustico,
resultado da revoluo tecnolgica da linguagem (Auroux, 1992).
H que se destacar aqui a relevncia da produo de um livro que
revela resultados de pesquisas desenvolvidas no mbito do
1 Adotamos, nesta publicao, a nova ortografia, respeitando, contudo, as grafias originais em citaes e ttulos de obras que precedem o Acordo Ortogrfico [de 1991], vigente desde janeiro de 2009, bem como preservamos a ortografia original nos recortes submetidos anlise. * As referncias bibliogrficas de todos os artigos sero apresentadas ao trmino do livro.
10
Laboratrio Corpus, efetivando relaes entre ensino, pesquisa e
extenso.
As autoras tomam como base a perspectiva discursivista,
concebendo o dicionrio como um objeto histrico, alm de se
constituir em materialidade discursiva; a lngua no mundo com as
maneiras de significar e no com a lngua enquanto sistema fechado.
o dicionrio se abrindo para outras possibilidades de sentidos.
O captulo introdutrio traz toda a histria deste projeto, traz o
referencial terico e metodolgico que sustenta a produo do grupo e
traz, acima de tudo, o desejo de compartilhar com diferentes grupos
de estudiosos da lngua as reflexes empreendidas acerca do
funcionamento do dicionrio e dos processos de produo de
sentidos.
Nos artigos, deparamo-nos com o movimento de desconstruir
sentidos estabilizados, certitudes. E isso ocorre atravs da proposio
de interpretaes outras, nas palavras de Eni Orlandi um lugar de
interpretao no meio dos outros possveis, o que marca tambm um
lugar de constituio identitria.
Nina Rosa Licht Rodrigues e Verli Petri, no artigo intitulado O
funcionamento de dicionrios no ensino de Lngua Portuguesa,
apresentam os resultados obtidos em uma pesquisa que propunha
como objetivo principal conhecer as prticas de utilizao e o
funcionamento de dicionrios no Ensino Fundamental, em duas
realidades educativas diferentes de Santa Maria, o que as motivou a
propor atividades que apresentassem a perspectiva discursiva como
11
uma das possibilidades de trabalho do professor de Lngua
Portuguesa em sala de aula.
Em O dicionrio e a sala de aula: possveis relaes, Daiane
Siveris e Verli Petri estabelecem relaes entre a constituio dos
dicionrios e suas possibilidades de funcionamento dentro e fora da
sala de aula, tomando-o como um importante instrumento no
processo de ensino-aprendizagem e de constituio da identidade do
sujeito na e pela lngua.
Por fim, com o artigo O uso do dicionrio na sala de aula:
condies para as contradies, Daiane da Silva Delevati e Verli Petri
refletem sobre os sentidos, as verdades, os sujeitos e objetos donos
das verdades. Adentram o espao escolar, a aula de Lngua
Portuguesa, para refletir com e sobre o dicionrio, alm de buscar
incentivar o uso desse instrumento lingustico, para que o mesmo
passe a fazer parte do cotidiano das aulas de Lngua Portuguesa de
modo significativo.
Alm dos artigos, este livro apresenta, como diferencial,
sugestes de atividades para sala de aula de lnguas. So, de fato,
sugestes e podem ser desenvolvidas em diferentes grupos, com
diferentes idades; bem como podem ser alteradas, conforme os
objetivos do professor. A proposta um ponto de partida para que a
polissemia seja contemplada em sala de aula de Lngua Portuguesa.
Para finalizar este texto de apresentao, preciso destacar
como este tipo de produo extremamente importante no somente
para a formao acadmica dessas pesquisadoras, designadas como
iniciantes, que caminham junto orientadora; mas, principalmente, da
importncia desta experincia para a constituio identitria dessas
12
pesquisadoras que se tomam pelo desejo da pesquisa e nele se
encontram e por ele se perdem. Retomamos, nestas linhas finais, as
palavras de Amanda Eloina Scherer, em "As inquietudes discursivas
de um orientador", artigo que est reeditado no livro Discurso:
circulao, fragmentao e funcionamento, em 2006,
Porque, para ns, o ato de pesquisar est intimamente ligado ao ato de viver. Pesquisar nos interrogarmos constantemente sobre tudo o que nos rodeia; pesquisar refletir sobre o nosso dia-a-dia. Mas pesquisar no encontra frmulas finitas de explicao fcil do que nos rodeia. Pesquisar empreender, aprender constantemente. E aprender, metaforicamente, navegar, no sentido do poeta (SCHERER, 2006, p. 18).
Fica ento o convite leitura e para que naveguemos sempre!
Mary Neiva Surdi da Luz
Marcia Ione Surdi
Chapec, SC, 05 de maio de 2010.
13
PARTE I
14
OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES
Verli Petri Algumas palavras
Os anos de 2007, 2008 e 2009 foram marcados pelo
desenvolvimento de projetos de pesquisa, ensino e extenso, sob
minha coordenao, que investigaram a constituio, a
institucionalizao e o funcionamento dos dicionrios, enquanto
instrumentos lingusticos da maior importncia. Em decorrncia deste
trabalho, desenvolvido em colaborao com minhas orientandas de
Iniciao Cientfica, surge este livro que cumpre o papel de reunir
nossas reflexes e de colocar em circulao os saberes que
mobilizamos durante as atividades realizadas.
O primeiro projeto, que funcionou como gerador dos demais,
foi intitulado Lngua, sujeito e histria: o gacho no processo de
dicionarizao da Lngua Portuguesa no/do Brasil1, a partir do qual
passamos a investigar trs elementos que so de nosso interesse h
bastante tempo: a constituio do sujeito (gacho ou no), os
instrumentos lingusticos (dicionrios e/ou gramticas), as relaes
entre lngua e histria. Todos estes elementos sendo observados luz
da perspectiva discursivista filiada ao materialismo histrico. Este
1 Que recebeu apoio do FIPE/UFSM nos anos de 2007, 2008 e 2009 bem como do PIBIC/CNPq/UFSM em 2008 e 2009.
VERLI PETRI
16
primeiro projeto restringia-se a uma pesquisa bibliogrfica, o que logo
se tornou consistente e, ao mesmo tempo, insuficiente, pois dava conta
da constituio e da institucionalizao dos dicionrios, mas no
abrangia os modos de funcionamento do instrumento lingustico em
questo. E ver o funcionamento dos dicionrios passou a ser uma
necessidade, vindo a resultar em dois outros projetos que se agregam
ao primeiro: O lugar do dicionrio como instrumento didtico-pedaggico
no ensino da Lngua Portuguesa2 e O dicionrio como instrumento didtico-
pedaggico no ensino da Lngua Portuguesa: da pesquisa prtica de sala de
aula3. Ainda na esteira desta temtica, preparamos o projeto de
pesquisa A constituio de imagens de sujeito gacho na lngua e pela
histria: um estudo dos dicionrios de regionalismos gachos produzidos no
sculo XX, que promoveria a continuidade do primeiro que aborda
dicionrios do final do sculo XIX, enquanto o segundo faz emergir
dicionrios do final do sculo XX (e at do incio do sculo XXI).
O desenvolvimento desses projetos nos conduziu a formar uma
equipe de trabalho que passa a dar conta da investigao da
constituio, da institucionalizao e do funcionamento de
dicionrios, integrando, sob a gide da Iniciao Cientfica, trabalhos
de pesquisa, ensino e extenso. Os textos tericos foram
compartilhados por todas; as relaes com as escolas fizeram parte
das atividades de todas; a preparao e a aplicao de atividades
prticas tambm mobilizaram todo o grupo. Resultados parciais
2 Que recebeu apoio do Prolicen/UFSM nos anos de 2007 e 2008. 3 Que recebeu apoio do FIEX/UFSM em 2008.
OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES
17
desses trabalhos foram sendo apresentados em eventos4 da rea de
Letras pelo pas, bem como foram sendo publicados em anais e
peridicos da rea. Os trabalhos foram orientados nessa direo,
porque a produo e a circulao do conhecimento que nos fazem
avanar; bem como entendemos que pesquisa, ensino e extenso so
indissociveis, guardadas as especificidades de cada uma, so
importantes que as experincias sejam compartilhadas com vistas
formao de jovens pesquisadores, professores e extensionistas.
O livro , portanto, construdo a partir dos resultados obtidos
atravs do desenvolvimento dos projetos supramencionados e rene
artigos escritos em parceria com as bolsistas5 que integraram a equipe
nesses trs anos: Daiane Siveris, Nina Rosa Licht Rodrigues6 e Daiane
da Silva Delevati. importante destacar que nosso interesse
crescente e que muito temos ainda para investigar, nossas pesquisas
seguem a pleno vapor.
A proposta deste livro a de levar nossas reflexes a todos os
que se interessam pelos estudos da linguagem; mas, em especial, aos
acadmicos de graduao e de ps-graduao em Letras, bem como
4 Merecem especial destaque as apresentaes realizadas em Encontro do GPAD - Uberlndia (MG); ABRALIN - Belo Horizonte (MG); GEL So Paulo; JIED Maring (PR); CELSUL e SEAD Porto Alegre (RS), e diversos eventos realizados em Santa Maria nestes ltimos dois anos. 5 Elisabeth da Silveira Gonalves (Bolsista FIEX/2008) e Vanessa Dinifer Lopes Paula (Atualmente acadmica de mestrado e bolsista CAPES/CNPq) participaram da aplicao das atividades nas escolas; bem como, Martina da Silva Schaedler (Bolsista Pibic/CNPq 2009-2010) e Vanessa Bianchi Gatto (Bolsista FIEX/2009) participaram da primeira reviso desse livro. 6 Atualmente acadmicas do Curso de Mestrado em Letras/Estudos Lingusticos (UFSM-PPGL) sob minha orientao.
VERLI PETRI
18
aos professores de Lngua Portuguesa ou estrangeira, que se deparam
com o funcionamento/no funcionamento dos instrumentos
lingusticos na rotina das aulas de lngua. Alm das reflexes que
tentam coadunar teoria e prtica, apresentamos tambm sugestes de
atividades que mobilizam os dicionrios e que promovem o seu
funcionamento enquanto objeto discursivo a partir do qual so
produzidos mltiplos sentidos. E, para finalizar, apresentamos
sugestes de leituras na Bibliografia para aqueles que querem um
aprofundamento sobre as temticas aqui desenvolvidas.
Sobre esse outro olhar e a produo dos sentidos
A realidade de sala de aula dos professores de Lngua
Portuguesa, na maioria das vezes, assolada por uma sobrecarga de
horas-aula, de cadernos e redaes a corrigir, um currculo
ultrapassado, entre outras questes. Entendemos que essa realidade
ofusca muitos sonhos e ideais do professor de lngua, dificultando a
produo de um outro olhar sobre os objetos de que dispem para
ensinar. No caber neste trabalho tratarmos das desiluses do
professor ou da remisso ao discurso das lamentaes, trata-se de
partir de uma realidade inegvel que nos incomoda e nos move na
direo de fazermos o que est a nosso alcance para movimentar um
pouco esse quadro. O livro que ora apresentamos no tem a pretenso
de trazer algo novo aos professores e estudiosos da linguagem, mas
prope que se lance um outro olhar sobre os instrumentos lingusticos,
especialmente sobre os dicionrios. Acreditamos que, ao olhar de
OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES
19
modo diferente os discursos que constituem nossa prtica docente,
poderemos tambm trabalhar com a formao de sujeitos diferentes,
sujeitos que faam da aprendizagem de lngua um caminho para a
constituio de sua identidade e para o exerccio da cidadania.
Se, por um lado, sabemos que a utilizao de dicionrios
(gramticas e livros didticos) uma prtica cotidiana nas aulas de
Lngua Portuguesa (e, s vezes, tambm, de outras disciplinas); por
outro lado, observamos, na prtica, que o funcionamento desses
instrumentos lingusticos fica muito aqum do que eles podem
proporcionar. com o intuito de retirar do estatuto de subutilizao
os dicionrios, que propomos desconstruir a imagem de lugar de
interdito da dvida, ao qual o dicionrio vinculado, j que no se
pode tom-lo apenas como objeto de consulta da ortografia, pois isso
seria reproduzir uma estrutura sem refletir sobre a lngua ali
veiculada. Da mesma forma, entendemos que a busca de sinnimos e
definies para as palavras desconhecidas tambm uma prtica
que no trabalha com a produo de sentidos, pois tenta estabelecer
uma relao direta entre as palavras e as coisas, o que, na vida de um
sujeito falante da lngua, de fato, no ocorre.
Se tomarmos, ento, o dicionrio como uma materialidade
discursiva, na qual possvel observar diferentes formas de nomear e
de definir as coisas do nosso mundo, prevendo mltiplas
possibilidades de funcionamento deste ou daquele sentido,
poderemos explicitar aos olhos de nossos alunos quais e quantas so
as possibilidades de uso de regras que estabelecem o lugar imaginrio
do certo e do errado. Explicitamos esta dicotomia para, justamente,
VERLI PETRI
20
dizer que no trabalhamos com ela; pois, historicamente, ela separa os
sujeitos que sabem dos que no sabem sua lngua, pressupondo,
ento, que s sabe Lngua Portuguesa aquele que capaz de mobilizar
a variedade culta da lngua, excluindo os/as demais7. Essa prtica, em
segunda instncia, promove o aprofundamento de um abismo que se
estabelece entre o sujeito que fala a lngua e os instrumentos
lingusticos apresentados na e pela escola, haja vista a pejorativa
expresso que por muito tempo circulou como definio de dicionrio:
o amansa burros. preciso desmitificar o dicionrio, dando a ele a
visibilidade que de fato passa a ter, enquanto resultado da revoluo
tecnolgica da linguagem (Auroux, 1992).
Partimos do pressuposto de que a humanidade vive em
constante transformao e de que os avanos tecnolgicos no param
de acontecer, mas isso no especificidade das reas mdicas ou
industriais, pois as lnguas tambm sofrem transformaes, via
tecnologia. H dois marcos importantes na histria da humanidade
que dizem respeito especialmente s questes de linguagem: o
primeiro a inveno da escrita e o segundo a gramatizao das
lnguas. O primeiro marca o incio da Histria, enquanto o segundo
explicita as formas de sistematizao das lnguas, enquanto resultado
da Revoluo Tecnolgica. Na esteira desse raciocnio, cabe salientar
que tomamos o dicionrio (e a gramtica) como importante
instrumento lingustico resultante da Revoluo Tecnolgica, da
gramatizao, que, conforme explicita Auroux (1992, p. 65), o
7 Cf. Mariani, 2008.
OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES
21
processo que conduz a descrever e a instrumentar uma lngua na base
de duas tecnologias, que so ainda hoje os pilares do nosso saber
metalingstico: a gramtica e o dicionrio.
Na verdade, nosso objetivo adentrar o espao de
constituio/institucionalizao da Lngua Portuguesa para
questionar as evidncias construdas nos e pelos instrumentos
lingusticos, propondo outras interpretaes, desconstruindo sentidos
estabilizados. Estamos refletindo sobre o lugar do sujeito na
gramatizao da lngua, pois esse sujeito fala, constitui sua identidade
na e pela lngua, esse sujeito constri muitos saberes e uma histria
prpria na e pela lngua. Cabe a ns explicitar, diante de nossos
alunos, como se d o processo de produo de sentidos quando se tem
um sujeito que acredita ser a fonte de seu dizer e que acredita poder
controlar os sentidos do que diz, pela forma dos esquecimentos
nmero 1 e nmero 2 (Pcheux, 1995). O sujeito vive essas duas
iluses para poder ocupar um lugar e falar/escrever; mas, de fato, est
tomando a palavra de um outro lugar (j-l na memria discursiva)
para ressignific-la diante de seus interlocutores. Da mesma forma
que no poder controlar os sentidos sobre a palavra ou expresso que
produziu, pois a lngua est sujeita ao equvoco, e os sentidos podero
ser outros (no previstos por aquele que fala/escreve). porque o
sujeito faz uso de palavras e expresses que j fazem parte de uma
memria coletiva que seus interlocutores o entendem, mas tambm
por no controlar os sentidos sobre suas palavras que o sujeito est
sempre diante da possibilidade de um mal-entendido. a noo de
sujeito, dotado de inconsciente e afetado pela ideologia, que nos
VERLI PETRI
22
proporciona refletir sobre a lngua e a histria - na produo dos
sentidos -, enquanto condies indispensveis para que se estabeleam
relaes de pertencimento entre um sujeito e a nao que representa e
pela qual representado.
De fato, inegvel que a lngua uma questo nacional, e que,
por isso, interessa ao Estado uma homogeneizao pedagogicamente
instituda para que se possa ensinar e aprender a lngua nacional,
apagando-se as diversidades. No entanto, o Dicionrio de Lngua
Portuguesa, designado como instrumento lingustico que oficializa o
uso de uma lngua padro, coexiste com inmeros outros saberes,
tambm oficializados e institudos pelo uso local, regional e especfico.
Dentre esses instrumentos lingusticos, no faremos distino entre os
mais utilizados e conhecidos e aqueles que possam ter um
funcionamento marginal, por estarem ocupando a margem e no o
centro das atenes, j que revelam a heterogeneidade e a gama de
possibilidades de sentidos na e pela lngua. A diversidade lingustico-
cultural nos interessa porque introduz o diferente no interior do
mesmo, e o sujeito se depara com esse novo no interior do velho e, de
diferentes formas, trabalha no movimento entre a manuteno e a
atualizao dos sentidos; o sujeito fica entre o que est contido e o que
no est contido no dicionrio, como sujeito dividido que e como
sujeito que conhece sua lngua muito antes de viver a fase de
escolarizao, de sistematizao do saber sobre a lngua. Enfim, o
sujeito chega escola com sua lngua, o que atesta que o professor
no recebe o aluno como uma pgina em branco sobre a qual seria
possvel delinear aspectos da lngua culta: o aluno chega escola
OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES
23
pleno de sentidos. Eis a importncia do papel do professor de lngua;
ele, em especial, no interior da escola, quem trabalha questes de
identidade e de alteridade, via lngua. pela lngua que o sujeito
passa a compreender as diferenas e as semelhanas entre o eu e o
outro, percebendo que os discursos so produzidos por sujeitos e
que os livros podem/devem ser lidos de forma crtica, pela
incompletude que lhes prpria (nem tudo vai caber neles) e por sua
equivocidade constitutiva (o sentido pode ser outro).
Sendo o dicionrio um objeto discursivo, ele nos suscita
diferentes leituras. preciso ler as materialidades que fazem parte da
rotina de aulas de lngua. No dicionrio temos, por exemplo, a forma
de apresentao, seja pela apresentao de terceiros (editores, crticos,
etc.); seja pelo prefcio produzido pelos prprios autores; e temos a
gama de verbetes, suas definies, descries, sinonmias, etc.. Quem
de ns l o que est no prefcio do dicionrio? Quem de ns reflete
sobre a proposta do(s) autor(es)? Quem de ns se incomoda com as
definies imprecisas ou insuficientes trazidas no dicionrio? Quem
de ns convida os alunos para refletir sobre isso? O levantamento
dessas questes est no princpio de tudo, pois, em geral, no fazemos
isso e nem paramos para pensar sobre isso. A fim de que possamos
lanar um outro olhar sobre o dicionrio e para que possamos
trabalhar, de fato, com a produo de sentidos, precisamos exercer
nosso direito de crtica e defender o direito de nossos alunos de terem
acesso s metforas. O homem que capaz da metfora mais do
que um mero reprodutor de ideias, ele trabalha no espao possvel da
transformao, espao no qual os sentidos podem ser outros.
VERLI PETRI
24
Sobre a lngua e o dicionrio
Acreditamos na importncia de se tomar o dicionrio como
discurso, pois podemos ver como se projeta nele uma representao
concreta da lngua, em que encontramos indcios do modo como
sujeitos como seres histrico-sociais, afetados pelo simblico e pelo
poltico sob o modo do funcionamento da ideologia produzem
linguagem (Orlandi, 2002, p. 105).
J lngua, na perspectiva discursivista qual nos filiamos,
funciona como um observatrio de discursos que nos oferece
diversas possibilidades de visualizao, dentre as quais selecionamos
para este trabalho o ponto de vista que estabelece relaes entre o que
est posto na lngua (o saber do falante) e o que passa a ser
institucionalizado pela lngua (o saber constante no dicionrio). no e
pelo uso que se faz da Lngua Portuguesa que esses dois saberes
entram em relao, revelando contradies, distanciamentos e
aproximaes. J no se pode mais aceitar o dicionrio como um lugar
que abarca verdades absolutas, preciso pensar que a lngua est
viva, em constante movimento e nem tudo apreendido pelo sujeito,
muito menos estar no dicionrio. Como sugerem Collinot e Mazire
(1997), o dicionrio deve ser tomado como um prt parler,
emprico e social.
O dicionrio, embora represente o lugar de certeza e do
interdito da dvida (Oliveira, 2006), deve representar tambm um
instrumento em funcionamento, sujeito a transformaes,
deslocamentos, e at a falhas na produo dos sentidos. Interessamo-
OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES
25
nos, especialmente, por esse lugar marcado pela evidncia de certeza,
pela acumulao do saber sobre, pela seriedade que uma suposta
verdade revelaria. Enfim, o dicionrio marcado pela
responsabilidade de guardar os sentidos das palavras. No entanto,
entendemos que os sentidos so aves, eles migram; so aves
ariscas, no se deixam aprisionar; so aves que cantam, seu canto
ressoa de diferentes maneiras. E, como todas as canes, estas
provocam diferentes reaes nos sujeitos.
Precisamos tomar o dicionrio, enquanto constitutivo do
espao imaginrio de certitude, sustentado pela acumulao e pela
repetio, onde possvel observar os modos de dizer de uma
sociedade e os discursos em circulao em certas conjunturas
histricas (Nunes, 2006, p. 11); mas no podemos ficar nisso, pois os
discursos clamam por sentidos, sentidos que esto em movimento
dentro e fora do dicionrio, como nmades que podem migrar a
qualquer momento para outro lugar. Enfim, tomar o dicionrio como
objeto para anlise implica, conforme Nunes (2006), em conceb-lo
como uma alteridade para o sujeito falante, alteridade que se torna
uma injuno no processo de identificao nacional, de educao e de
divulgao de conhecimentos lingsticos (p. 43).
Sendo assim, os dicionrios ganham outro papel em sala de
aula de lngua, eles passam a estabelecer relaes entre os sujeitos e o
saber, ou seja, h nestes instrumentos lingusticos tambm o
desenvolvimento do processo de interlocuo, de produo de
sentidos. J existem outros trabalhos que tomam o dicionrio como
objeto discursivo, destacamos aqui a experincia da Professora Mariza
VERLI PETRI
26
da Silva (2003) que relata, em artigo, o trabalho realizado em sala de
aula, com alunos de Letras, no qual se props a observar como
funciona essa gesto dos sentidos no interior de uma mesma lngua,
pela seleo, organizao, distribuio e controle das formas
significantes (p. 110). E, nesse trabalho de anlise do discurso, foi
considerada a estruturao dos verbetes e do prprio dicionrio, o que
revelou a evidente construo imaginria de uma unidade que produz
o efeito de apagamento das relaes de incluso/excluso ou de
conflito/confronto, entre outras, inerentes lngua.
Isso nos remete reflexo acerca de duas concepes de lngua
discutidas por Orlandi e Souza (1988)8: lngua fluida e lngua
imaginria. Para as autoras, a histria da primeira feita de fartura e
movimento e nela convivem processos muito diferentes, portanto, a
lngua fluida a que no pode ser contida no arcabouo dos sistemas e
frmulas, o que est vinculado, ento, lngua do uso, do coloquial,
do que suscetvel de erro, da ordem da oralidade. Enquanto a lngua
imaginria a que os analistas fixam na sua sistematizao, enquanto
lngua da norma, do padro, do correto e da escrita (p. 34). Nossa
proposta de estar em movimento entre o que prprio da lngua
fluida e o que prprio da lngua imaginria, deslocando sentidos que
pareciam estagnados, explicitando que essa lngua fluida no est
totalmente separada da lngua imaginria e que o sujeito falante est
no entremeio das duas, colocando em funcionamento lnguas que
trabalham na e para a produo de sentidos e de sujeitos.
8 Cf. tambm Orlandi (2009).
O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA
Nina Rosa Licht Rodrigues1
Verli Petri2 Introduo
O presente artigo revela resultados parciais de um projeto que
teve incio em 2007, quando foi direcionado e desenvolvido em uma
escola pblica do centro da cidade de Santa Maria (RS), numa turma
de oitavo ano. A partir do trabalho desenvolvido, surgiu a
possibilidade de uma segunda aplicao, em outro contexto escolar,
vale dizer, em uma escola na periferia de Santa Maria3, tambm em
uma turma de oitavo ano. O objetivo principal foi o de conhecer as
prticas de utilizao e o funcionamento de dicionrios no Ensino
Fundamental, em duas realidades educativas diferentes de Santa
Maria, o que nos motivou a propor atividades que apresentassem a
perspectiva discursiva como uma das possibilidades de trabalho para
o professor de Lngua Portuguesa em sala de aula. Selecionamos para
1 Bolsista de Iniciao Cientfica Prolicen/2008. Atualmente mestranda em Letras/Estudos Lingusticos (UFSM/PPGL/CNPq), vinculada ao projeto de pesquisa da linha Lngua, Sujeito, Histria. 2 Prof. Dr. Responsvel pelo projeto. 3 Projeto Prolicen/UFSM (2008) intitulado O lugar do dicionrio como instrumento didtico-pedaggico no ensino da Lngua Portuguesa.
NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI
28
este texto a discusso dos resultados do trabalho desenvolvido em
2008.
A escolha do instrumento discursivo-pedaggico: os dicionrios
Estudamos os dicionrios a partir do suporte terico da Anlise
do Discurso (AD) de linha francesa, tal como foi concebida por Michel
Pcheux e como est sendo estudada hoje, no Brasil.
De acordo com os preceitos tericos da Anlise do Discurso, os
sentidos so concebidos em relao a (Orlandi, 2005), isto quer dizer
que o sujeito se constitui a partir do seu contexto social, histrico,
ideolgico e que tudo que diz ou pensa foi concebido anteriormente
por outros dizeres j presentes na sociedade. Nesse sentido, preciso
levar em conta que h um processo de produo de efeitos e sentidos
em pleno funcionamento e que nessas relaes entre lnguas e
sujeitos que o dicionrio se efetiva de fato.
Logo, se a Anlise do Discurso parte do saber de que o sujeito
no a origem de seu dizer, pois ele est sendo afetado a todo instante
pelo exterior, ento, como se constituem os sentidos no interior dos
instrumentos lingustico-educativos como os dicionrios, por
exemplo? Podemos pensar, ser, que os dicionrios so instrumentos
lingusticos abertos, constitudos de outros dizeres, onde os sentidos
no se completam, no se unificam e que eles tambm so passveis de
falhas?
Com isso, levamos alguns questionamentos acerca do corpus de
nossa pesquisa para a sala de aula, a fim de que os alunos pudessem
O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA
29
refletir sobre as atividades4 aplicadas: Quem produz os dicionrios? Esse
sujeito que produz os dicionrios o profissional (lexicgrafo)? um cidado
como qualquer outro? Esse sujeito, que produz os dicionrios, est imune a
fatores externos? Ser que ele se baseou em outras definies de outros
dicionrios para produzir o seu? As definies dos dicionrios so nicas?
No as encontramos em nenhum outro dicionrio? Os sentidos tambm so
nicos? As definies contidas nos dicionrios so completas? possvel
existir completude?
Em vista disso, propomos observar/trabalhar o dicionrio no
como o senso comum da prtica escolar utiliza, isto , como um
instrumento restrito ao domnio frasal ou textual, visto que
entendemos que os sentidos verificados nos dicionrios esto
dispersos, o que nos faz observar, principalmente, que ele no o
detentor da verdade, que ele no abrange todas as palavras da Lngua
Portuguesa e que ele um importante instrumento didtico-
pedaggico para ser trabalhado e questionado na sala de aula quanto
a sua incompletude. por isso que nos apoiamos nas palavras de
Auroux (1992, p. 69): qualquer que seja a minha competncia
lingstica, no domino certamente a grande quantidade de palavras
que figuram nos grandes dicionrios monolnges, e sabemos que
eles no daro conta de tudo o que a lngua pode significar na voz de
seus falantes.
4 As atividades esto descritas na parte final deste livro.
NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI
30
Atividades prticas em sala de aula
Para a escolha da turma, na qual aplicaramos as atividades,
observamos turmas de stimo, oitavo e nono anos. Ao final das
observaes, optamos pelo oitavo ano, pois verificamos ser uma turma
mais questionadora, embora bastante resistente no entendimento
quanto importncia e utilizao de dicionrios para o aprendizado
escolar.
As atividades prticas foram previamente pensadas e
preparadas para serem desenvolvidas em dois encontros com a turma.
Aproveitamos o momento scio-histrico, vale destacar, as eleies
municipais, e exploramos palavras/verbetes bastante recorrentes na
mdia e no cotidiano dos jovens.
Assim, as etapas das duas atividades so as seguintes:
1 encontro:
a) A turma foi distribuda em trs grupos aleatoriamente;
b) Os alunos responderam pergunta: qual a importncia dos
dicionrios?
Nessa etapa, verificamos diferentes respostas5, dentre as quais
destacamos:
5 Optamos por manter a ortografia dos alunos.
O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA
31
... para saber mais o significado das palavras (Aluna A); ... eu acho que importante para decifrar palavras difceis (Aluno G); ... importante para que possamos tirar dvidas, saber as palavras que no conhecemos (Aluna Da); ... eu acho que o dicionrio importante para ns aprendermos melhor as palavras e at aprender a escrever melhor (Aluna V); ... eu no utilizo dicionrio em casa, no colgio sim, s vezes utilizamos (Aluna AP).
De acordo com as respostas, verificamos que h um
direcionamento dos sentidos, apontando para o dicionrio como um
objeto de consulta, de forma que, caso haja dvidas o utilizaremos; no
entanto, se no houver, ficar esquecido, subutilizado. Assim, ele tem
um estatuto de objeto de consulta, e no de aprendizado, pois no
propicia discusses, reflexes, trabalhado apenas imerso nos
sentidos que pode conter em seu interior. E as outras possibilidades de
sentidos no expressas nos dicionrios? Para onde vo? E o que no
est no dicionrio? Onde est? H, ainda, os alunos que, por no
considerarem os dicionrios como instrumentos de aprendizado, uma
vez que deveriam proporcionar esse aprendizado, no o consideram
importante e, por conseguinte, raramente o utilizam.
c) Foi solicitado aos alunos que definissem, por escrito, o que
entendiam por poltico, poltica e partido; coube a cada grupo um
verbete.
Nessa etapa, o grupo do verbete poltica destacou:
NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI
32
... muitos roubos, muitas promessas no cumpridas (Aluna N); ... modo de eleger algum, atravs do povo e das urnas (aluno C); ... muito roubo de dinheiro publico (aluno T); ... poltica uma vergonha, nas pocas de eleio, tem muitos papeis nas ruas. Poltica um lugar onde trabalha os vereadores, prefeitos, governadores, etc. (aluna L).
O grupo do verbete poltico manifestou:
... aquele que promete, promete, mas nunca cumpre. aquele que s pensa em ser votado pelo povo e, muitas vezes, tenta comprar o voto deles (aluna M); ... ser poltico ter responsabilidade com sua cidade, fazer o possvel para melhorar nossa cidade (aluna AP); ... uma pessoa que se elege a vereador, governador, prefeito, deputado, ser poltico ter carter com sua palavra (aluna A); ... poltico ladro, no so honestos a grande maioria, mas tambm tem uns que so muito bons, pois prometem as coisas e cumprem (aluno V).
O grupo do verbete partido escreveu:
... eu acho que vem de dividir e de compartilhar as coisas (aluna V); ... vrios sentidos, partido de poltica, de Igreja (aluna A); ... partido para mim algumas pessoas que se unem para trabalhar (aluna J); ... partido so varias pessoas trabalhando em grupo (aluno De).
O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA
33
Podemos constatar, em primeiro lugar, que um mesmo verbete
pode significar de diferentes maneiras, tanto positivamente, quanto
negativamente, como ocorre, principalmente, nos verbetes poltica e
poltico. Somando a essas variedades de sentidos para os trs verbetes
destacados, esto, tambm, as respostas das entrevistas realizadas
pelos alunos.
d) Os alunos tiveram a tarefa de entrevistar, individualmente,
fora da sala de aula, uma pessoa de suas relaes que falasse sobre o
significado das palavras j trabalhadas (poltico, poltica e partido).
Para o verbete poltica, houve as seguintes definies:
... quando as pessoas de mais gabarito ou sabedoria sentam para discutir coisas sobre nosso pas (A, 53 anos); ... um conjunto de pessoas escolhidas pelo povo, atravs do voto, para representar e escolher o que de melhor para nossa cidade (S, 17 anos); ... um jogo de poder (E, 39 anos);
Para o verbete poltico, os entrevistados disseram:
... aquele que nasce com o dom de saber tudo (A, 53 anos); ... um cidado que se filia a um partido para tentar melhorar nossa cidade (S, 17 anos); ... algum que deveramos confiar para nos representar, levando nossas dificuldades at o poder (E, 39 anos).
NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI
34
Para o verbete partido, os entrevistados destacaram:
... o partido uma sigla que demarca e te adota pra ti chamar eu sou do partido tal (A, 53 anos); ... um grupo que Prefeito, Vereadores so filiados como: PT, PTB, PFL e etc. (S, 17 anos); ... So grupos que seguem suas idias para a melhoria do povo (E, 39 anos).
Tanto nas definies feitas pelos alunos, quanto nas definies
dos entrevistados constatamos que os sentidos escapam; no esto
contidos de modo comportado como no interior do dicionrio. Os
sentidos no so nicos, se complementam. Assim, reiteramos a
necessidade de se questionar acerca das incompletudes, das faltas e
das saturaes dos sentidos contidas nas palavras.
No 2 encontro, trabalhou-se com as respostas que eles
trouxeram, relacionando-as com o que os dicionrios propunham. Tais
respostas foram sendo apresentadas pelos alunos e anotadas no
quadro. As trs palavras foram procuradas pelos respectivos grupos
em dicionrios. Nessa etapa, pedimos que os alunos fossem aos
dicionrios e pesquisassem as definies de seus verbetes, pela razo
de observarmos se possvel haver sentidos outros, alm dos
apresentados.
Desse modo, as definies destacadas dos dicionrios Gama
Kury (2001), Cegalla (2005), Caldas Aulete (2004 ) e Houaiss (2008)
so:
O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA
35
Poltica: habilidade no trato com pessoas humanas, tendo em vista obteno de algo, cortesia, astcia, esperteza. Poltico: quem revela polidez, diplomacia, interesseiro, fino, astuto. Partido: que se partiu; pessoas casadouras, posicionamento, convices ideolgicas.
Na sequncia, realizamos a comparao entre as respostas que
os alunos deram acerca da importncia dos dicionrios [item b], as
entrevistas [item d] e as definies nos dicionrios [ltimo item acima
apresentado]; e foi retomada a pergunta sobre a importncia dos
dicionrios. Respostas dos alunos:
... serve para esclarecer dvidas, mas nem sempre o dicionrio vai dizer o que a gente pensa, cada um tem uma opinio diferentes do que acha das palavras (aluna An); ... Eu acho que o dicionrio s ajuda ns a saber um pouco mais as coisas tipo ajuda ns saber o que quer dizer alguma palavra mas cada coisa tem um sentido nem sempre so iguais a do dicionrio (aluna V); ... A importncia do dicionrio que ele nem sempre diz aquilo que verdade (aluno L); ... na minha opinio, os dicionrios tem que ser mais completo (aluno De); ... importante para a gente descobrir o significado d cada palavra, mesmo que a gente tenha uma opinio e o dicionrio tenha outro (aluno E.); ... a importncia que a gente pode comparar o significado com aquilo que a gente pensa (aluno C).
NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI
36
Nessas anlises que realizamos junto aos educandos, levamos
em conta a interferncia da ideologia nos elementos determinantes nas
relaes sociais entre os interlocutores, unindo-se a ela de modo
especial por meio das condies de produo do discurso, que so
histricas, j que as ideologias no so feitas de idias, mas de
prticas (Pcheux, 1995).
Certamente, propor atividades que envolvam dicionrios via
questionamentos de sentidos deveria exceder os limites de duas
escolas, atingindo todo o sistema educativo. Nossa proposta a de
levar outras possibilidades de trabalho com dicionrios, que viabilize
o aprendizado e no apenas um lugar na prateleira da biblioteca,
enquanto objeto de consulta, para que o ensino no mais se limite s
barreiras gramaticaleiras e memorizveis, como estamos
acostumados a presenciar e/ou a ensinar.
Das expectativas s concluses
Ao trmino das atividades, julgamos que os alunos
compreenderam nossos objetivos e eles prprios chegaram s
concluses esperadas. Entretanto, no podemos afirmar
categoricamente que eles tenham aceitado ou que passem a questionar
junto aos educadores os saberes compreendidos a partir de nosso
trabalho. difcil ou, talvez, impossvel com to pouco tempo (em
torno de trs meses), querer ter a pretenso de desconstruir saberes
desde sempre institucionalizados no s pelo corpo docente como
O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA
37
tambm pelo sistema educacional. Mas a experincia demonstra que
possvel mudar e que isso desperta o interesse dos alunos, pois se
antes eram desatentos e agitados, no momento das atividades por ns
desenvolvidas, mostraram-se interessados e participativos.
Alm disso, com o surgimento das novas tecnologias (os
dicionrios eletrnicos, sites de pesquisas como Google, Wikipdia,
wikcionrio), cada vez mais os alunos deixam de manusear livros
didticos, gramticas, dicionrios, instrumentos lingusticos de papel e
tinta, por vezes pesados e desconfortveis para se apalpar e/ou
carregar, para adentrar o universo virtual, prtico, rpido da internet.
Ento, fica complicado querer propor atividades que envolvam
interesses antigos de uma educao tradicional junto aos alunos
plenos de interesses atuais.
Percebemos que as metodologias maantes e desestimulantes de
alguns professores, que insistem em enxergar os dicionrios apenas
via formalidades lingusticas, desprestigiam essa materialidade
lingustica, afastando os educandos da aprendizagem da Lngua
Portuguesa escrita. possvel perceber a desmotivao dos alunos por
exerccios ortogrficos e de acentuao ou exerccios sobre sinnimos
de palavras. Trabalhar com esse instrumento didtico-pedaggico vai
alm do ensino de regras e excees, pois deve, sobretudo, contribuir
para a formao de um aluno reflexivo, questionador, sabedor de que
o dicionrio pode e deve ser explorado por meio da prtica discursiva
(questionando os diversos sentidos que os verbetes/palavras
NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI
38
possuem) e no mais como um instrumento restrito ao domnio
lexical, frasal ou textual.
Com tudo isso, consideramos que nosso trabalho/pesquisa
tenha superado as expectativas. Isso porque conseguimos fazer com
que os alunos, assim como os professores (re)pensassem o material
didtico com que estavam trabalhando e desconstrussem o saber
aprendido de que esse instrumento lingustico o detentor da
verdade, do sentido nico, absoluto, sem falhas e sem equvocos.
Concordamos, para finalizar esta reflexo, com o que Nunes
(2006, p. 25): aponta como j dito: a elaborao de um dicionrio
consiste em um trabalho sobre o j-dito, um trabalho de seleo,
reformulao, retomada, ruptura. Assim, at mesmo os dicionaristas
esto influenciados por dizeres preconcebidos/definidos na
elaborao de seu instrumento de consulta-aprendizado; portanto,
precisam ser lidos e questionados.
O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES
Daiane Siveris1
Verli Petri2
... tambm se fundam sentidos onde outros sentidos j se instalaram. No h ritual sem falhas, (...) por isso possvel
a ruptura. Instaurao de uma nova ordem de sentidos Eni P. Orlandi (2003, p. 13).
Introduo
O presente trabalho visa a apresentar resultados gerais sobre o
projeto de pesquisa intitulado Lngua, sujeito e histria: o gacho no
processo de dicionarizao da Lngua Portuguesa no/do Brasil. Esse projeto
teve por objetivo investigar a constituio/instituio do instrumento
lingustico dicionrio, observando as especificidades de duas
modalidades, a de cunho geral/nacional e a de cunho
especfico/regional, enquanto constitutivos da Histria das Ideias
Lingusticas no/do Brasil, estabelecendo as devidas relaes entre o
sujeito brasileiro/gacho, a lngua e a histria.
Alm disso, faremos algumas relaes entre a constituio dos
dicionrios e suas possibilidades de funcionamento dentro e fora da
1 Aluna do curso de Letras da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista da Fundao de Incentivo Pesquisa (FIPE UFSM/ 2007-2009). Atualmente, mestranda em Letras/Estudos Lingusticos (UFSM-PPGL) ), vinculada ao projeto de pesquisa da linha Lngua, Sujeito, Histria. 2 Prof. Dr. Responsvel pelo projeto.
DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI
40
sala de aula, tomando-o como um importante instrumento no
processo de ensino-aprendizagem e de constituio da identidade do
sujeito na e pela lngua. E ao encontro disso que vem a epgrafe
acima, ou seja, embora j se tenha sentidos cristalizados, dados como
j ditos, j institudos, no dicionrio; acreditamos que a sala de aula
seja um espao de fundao de novos e outros sentidos possveis,
rompendo, talvez, com o que j est posto, com o que da ordem da
evidncia e da certeza, da ordem do institudo e do dicionarizado.
Sobre como foi feito o trabalho
A metodologia de nossa pesquisa consistiu, inicialmente, no
levantamento e seleo de dicionrios nacionais e regionais
produzidos no sculo XIX que atendiam nossos objetivos de pesquisa.
Em seguida, foi feita a leitura dos textos de
apresentao/prefcio/nota dos autores/nota dos editores, presentes
em cada obra selecionada. Num terceiro momento, passamos anlise
do verbete gacho, o que nos conduziu a analisar tambm os
verbetes homem e brasileiro, estabelecendo as devidas relaes
entre eles, a fim de inferir sentidos sobre o processo de constituio
dos sujeitos.
Nossas anlises e reflexes tm embasamento em textos tericos
referentes Anlise de Discurso, de linha francesa e Histria das
Ideias Lingusticas. a perspectiva histrico-discursivista que norteia
nossas reflexes. A partir das leituras, construmos nosso dispositivo
de anlise, buscando sempre relacionar teoria e prtica. Foram eleitos
O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES
41
para anlise os instrumentos lingusticos nacionais: Dicionrio
Contemporneo da Lngua Portuguesa (1881), de Caldas Aulete; Novo
Diccionrio Universal Portuguez (1891), de Francisco de Almeida; Novo
dicionrio da Lngua Portuguesa (1899), de Cndido de Figueiredo; e
regional Vocabulrio sul-rio-grandense (1964), que uma compilao de
dicionrios do sculo XIX e XX, feita por Walter Spalding.
Compreende os dicionrios Coleo de Vocbulos na Provncia do Rio
Grande do Sul (1852), de Pereira Coruja; Vocabulrio Sul-rio-grandense
(1898), de Romaguera Corra; Vocabulrio Gacho (1926), de Roque
Callage e Vocabulrio Sul-rio-grandense (1935), de Moraes.
As primeiras anlises realizadas foram as dos prefcios, nos
quais observamos a posio do sujeito autor/produtor de cada
dicionrio. Foi possvel observar que h diferenas entre os dicionrios
nacionais e os regionais quanto a esse aspecto. Os dicionrios
nacionais revelam que o sujeito lexicgrafo integrante da Academia
e preocupa-se com a produo do instrumento lingustico, procurando
isentar-se da sua posio de falante da lngua. Nos dicionrios
regionais, o sujeito dicionarista e/ou produtor no tem
necessariamente formao acadmica para elaborar o dicionrio. No
entanto, assim como o sujeito lexicgrafo, o sujeito dicionarista
tambm determinado pela exterioridade e inscreve-se em
determinada formao discursiva (doravante FD), que determina o
que pode ou no ser dito. Essa FD heterognea e sujeita, portanto, a
falhas e equvocos.
Aps analisar os prefcios, partimos para a anlise dos verbetes.
Inicialmente, analisamos o verbete gacho tanto nos dicionrios
DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI
42
nacionais quanto nos regionais. Pudemos observar que, em geral,
definido como o homem gil, de valor, referente ao sujeito habitante
do Rio Grande do Sul e da Regio do Prata. Alm disso, esse sujeito
falante da Lngua Portuguesa; representa, assim, o local/regional, mas
tambm o geral/nacional.
Tendo em vista a presena do termo homem constantemente,
buscamos analisar tambm esse verbete. Ele aparece definido como o
ser distinto das demais espcies, que constitui e constitudo pela
histria, ou seja, na relao que ele estabelece com a lngua e com a
histria que ocorre sua constituio enquanto sujeito.
O verbete brasileiro foi analisado para estabelecermos relao
com o verbete gacho, sendo que um representa o nacional, o geral
e o outro o regional, o local. definido como o sujeito nascido no
Brasil ou o portugus que residiu no Brasil e volta a Portugal com
muitas riquezas da colnia.
Dessa forma, podemos pensar a constituio do dicionrio
como um espao de incompletude, sujeito a falhas, a equvocos, a
deslizes. Ser que brasileiro pode ser definido somente como aquele
que nasceu e/ou que residiu no Brasil? No poderamos ter uma
definio que esteja relacionada ao sujeito falante/aprendiz de Lngua
Portuguesa? Contudo, o sujeito falante/aprendiz de Lngua
Portuguesa busca a unidade lingustica que torna possvel legitimar
O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES
43
essa lngua e apagar, talvez, outra que esteja em funcionamento na
sociedade3.
Refletimos, brevemente, sobre a colonizao europeia no Brasil.
Tomemos como referncia no os portugueses que aqui chegaram,
mas os alemes e os italianos. Quando chegaram, a lngua desses
sujeitos no era a portuguesa. Eram falantes de alemo e de italiano.
Aos poucos, foram tomando a Lngua Portuguesa como sua. Assim,
no decorrer dos anos, das geraes, a lngua que estava em
funcionamento nas regies colonizadas pelos imigrantes foi sendo
silenciada, mas no apagada, para dar espao Lngua Portuguesa, a
qual, para os sujeitos que se estabeleceram no Brasil, era o novo, o
diferente. Isso nos leva a crer que uma lngua interferiu na outra,
promovendo alteraes e constituindo sujeitos outros que no o ideal.
As condies de produo4
Analisar um dicionrio requer o conhecimento de suas
condies de produo, ou seja, ponto indiscutivelmente importante
em qualquer discursividade, porque compreende os sujeitos e a
situao, o sujeito situado na histria e no espao que ocupa nessa
histria. preciso considerar os fatores extralingusticos para que se
efetue a compreenso dos discursos, isto , a formao do objeto
discursivo se d na articulao do lingustico com o histrico. Dessa
3 Estamos nos referindo aqui s lnguas indgenas, africanas e, posteriormente, s lnguas dos imigrantes italianos, alemes, etc. 4 Esta noo ser retomada em outros artigos que compem este livro.
DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI
44
forma, podemos falar em funcionamento discursivo no qual
observamos a relao da lngua com a exterioridade e, por
consequncia, observar a constituio identitria de quem fala essa
lngua que regional e que nacional.
Falar em exterioridade leva-nos a pensar que, segundo Horta
Nunes (2006, p.19), as condies de produo esto relacionadas com
as formaes sociais e os lugares que os sujeitos a ocupam. Tais
lugares funcionam nos processos discursivos como formaes
imaginrias. Isso significa que os sujeitos que falam/escrevem e os
que ouvem/leem, enquanto interlocutores, atribuem a si e ao outro
uma imagem que eles fazem do seu lugar e do lugar do outro. Sendo
assim, a relao entre o sujeito e o real exterior no direta, mas sim
mediada pelas representaes imaginrias. por meio do imaginrio
que os sujeitos significam o real no discurso (Nunes, 2006, p.20).
Pensando no dicionrio, dessa forma, podemos afirmar que as
condies de produo, em sentido estrito, revelam as circunstncias
da enunciao: o contexto imediato. E se as considerarmos em
sentido amplo, as condies de produo incluem o contexto scio-
histrico, ideolgico (Orlandi, 2005, p. 30).
Considerando esses dois sentidos (estrito e amplo), temos, de
acordo com Horta Nunes (2006, p.20), no contexto imediato, as
circunstncias enunciativas relacionadas ao discurso lexicogrfico a
posio do lexicgrafo aparece como aquela que apresenta o
dicionrio a seus leitores em determinadas situaes. No contexto
amplo, temos a conjuntura histrica e ideolgica em que essas
situaes tm lugar. Dessa forma, os dicionrios nacionais do sculo
O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES
45
XIX, objetos de anlise de nossa pesquisa, foram elaborados a partir de
uma FD especfica, que visa instrumentalizao de uma populao
que necessita consultar, principalmente, o lxico da lngua em casos
de dvida sobre a escrita e/ou sobre a pronncia. Pensando no
funcionamento dos dicionrios em sala de aula de Lngua
Portuguesa5, em pleno sculo XXI, deparamo-nos com a reproduo
da estrutura primeira, qual seja: o dicionrio continua sendo tomado
como aquele que contm o saber sobre a lngua. Ainda tratamos o
dicionrio como lugar onde sanamos dvidas de escrita e/ou de
pronncia.
Isso bastante complicado, sobretudo, porque os sujeitos vivem
sob outras circunstncias, so outros os paradigmas que regem a arte
de educar, de ensinar. Quando nos remetemos aos dicionrios do
sculo XIX, estamos levando em conta que foram publicados em
Portugal, pois, no Brasil, nesse perodo que comea a autonomia em
relao aos instrumentos de gramatizao. Enfim, estamos
reproduzindo ainda o eco de um passado de colonizao lingustica.
Os dicionrios regionais, por sua vez, foram compilados tendo
em vista as realidades locais/regionais, apontando as peculiaridades
sociais, culturais e at lingusticas, no nosso caso, gachas. O
funcionamento de tais dicionrios diferenciado, mas pouco
explorado em sala de aula de lngua. Os dizeres regionais j foram
naturalizados em nosso discurso e no entram no espao da lngua
culta ensinada na escola. Este dicionrio vem servir como apoio
5 Referimo-nos s experincias desenvolvidas a partir das atividades descritas neste
DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI
46
para estudos literrios regionalistas, o que nos parece insuficiente, j
que no se discute a questo da diversidade lingustica e as mltiplas
possibilidades de discurso.
O dicionrio enquanto discurso
Conforme nos apresenta Horta Nunes (2006, p. 13), a
Lingstica no sculo XX (...) produziu um silncio em relao aos
dicionrios, considerados como instrumentos normativos, objetos
fossilizados que no correspondiam lngua falada. Contudo,
atualmente, j percebemos que esses instrumentos cumprem um outro
papel, funcionando como lugares eficazes de descrio das lnguas.
O dicionrio j no pode ser visto como um instrumento
lingustico detentor do saber, da certeza, sem espao para dvidas,
pois, numa perspectiva discursivista, colocamos os dicionrios em
questo tomando-os como um discurso, ou seja, estamos afirmando
que o instrumento lingustico em questo tem uma ordem prpria,
que se realiza e se materializa na lngua. Portanto, ele tem uma
histria, constri e atualiza uma memria, reproduz e desloca
sentidos (Nunes, 2006, p. 18). A partir disso, h lugar para falhas e
equvocos, para diferentes interpretaes e sentidos outros.
tambm considerado resultado de prticas sociais e do
processo de gramatizao que est sempre relacionado a uma
transferncia de tecnologia de uma lngua para outras lnguas
(Auroux, 1992, p.74). Alm disso, podemos tomar o dicionrio como
livro.
O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES
47
um instrumento que permite acessar os saberes de outras pocas e
como objeto discursivo que pe em relao lngua, sujeito e histria.
Tudo isso perpassa o trabalho com o dicionrio em sala de aula de
Lngua Portuguesa.
O dicionrio na aula de Lngua Portuguesa
Cada vez mais necessrio pensar/repensar o processo de
ensino/aprendizagem nas escolas, tendo em vista formar cidados e
educar para a vida com liberdade e responsabilidade, princpios
fundamentais encontrados em grande parte dos Projetos Polticos
Pedaggicos (PPP) das escolas da rede pblica de ensino. A Lngua
Portuguesa torna-se necessria e fundamental, levando em conta que
ela traz questes de leitura, interpretao, reflexo e produo,
inerentes s demais disciplinas do currculo.
Para isso, pensando do ponto de vista da Anlise de Discurso,
questionamos a produo de sentidos a partir dos dicionrios, os quais
no devem ser somente institudos e cristalizados, mas, antes de tudo,
devem ser pensados como possveis de interpretao outra. E isso
que foi proposto no desenvolvimento de outro projeto6, cujas
atividades aplicadas em sala de aula podem ser observadas nas
sugestes de atividades que constam neste livro. Quer dizer, ao
propor ao aluno que ele atribua sentidos a uma palavra sem a ajuda
6 O dicionrio como instrumento didtico-pedaggico no ensino de Lngua Portuguesa: da pesquisa prtica de sala de aula.
DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI
48
de um dicionrio, somente a partir de sua memria discursiva,
propomos desconstruir o sentido nico de uma palavra, muitas vezes,
j cristalizado no dicionrio.
A partir do momento em que o aluno atribui sentidos a uma
palavra e, em seguida, vai ao dicionrio para comparar o que est l
j-dito, j posto, ele pode se deparar com sentidos que ele (e seu grupo
social) atribui, mas que no esto presentes ali, no dicionrio, espao
tomado no senso comum como o detentor de todo saber, ou seja, tem-
se a a incompletude que constitutiva da linguagem. Isso nos leva a
pensar numa interpretao outra, pois, segundo Grigoletto e,
conforme a Anlise de Discurso (AD) postula, nenhum dizer capaz
de completar os sentidos de um discurso nem de apontar para a sua
origem, j que os sentidos se constituem sempre na relao do
lingstico com o histrico (1999, p. 68).
Tomando o dicionrio como instrumento lingustico, podemos
dizer que ele pouco tem sido abordado nas salas de aula. Porm,
quando utilizado, tem sido tomado por educadores
predominantemente como um documento da histria tradicional
(Souza, 1995, p. 113), ou seja, nele est contido o saber que deve ser
transmitido aos alunos, como se fosse o lugar nico da certeza, no
qual possvel somente uma interpretao aquilo que est j posto,
j l.
O dicionrio, diferente do Livro Didtico (LD), ainda no tem
seu lugar legitimado nas aulas de LP, apesar de acreditarmos que nele
est depositado um saber a ser decifrado que traz aspectos referentes
a nossa lngua. Coracini (1999) afirma que a legitimao do LD - e
O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES
49
acrescentaramos tambm do dicionrio - se d na escola a partir do
momento em que construdo o imaginrio discursivo da sociedade
que v os valores, interesses e necessidades dos alunos (p. 33-34). No
entanto, no caso do dicionrio, no podemos consider-lo o centro do
ensino-aprendizagem, assim como o LD, pois no vemos, nas salas
de aula, o seu efetivo uso e funcionamento.
Pensar o funcionamento do dicionrio lembrar que
alm de no termos controle sobre os sentidos, eles nos afetam e se representam de muitas maneiras, sendo a dicionarizao um lugar importante onde isto se d, ou seja, lugar em que a trama da linguagem se impe aos sujeitos de um lngua nacional (ORLANDI, 2002, p. 117 - 118).
Com isso, pensemos no papel do professor, como educador, e
no do aluno, como educando/aprendiz, para refletirmos sobre o que
prope Orlandi (2003, p. 11) referente construo dos sentidos.
Segundo a autora, no momento dessa construo, devemos levar em
conta o apagamento dos sentidos pelo j-dito, a resistncia quanto ao
apagamento e tambm quanto produo de outros sentidos, bem
como o retorno de sentidos que haviam sido excludos pelo
apagamento. E dessa forma que pensamos ao adentrar a sala de aula
para desenvolver as atividades propostas sobre o dicionrio. Como
atribuir sentidos sem o dicionrio? Que sentidos so possveis? Quais
os sentidos apagados, esquecidos, cristalizados? Como estes sentidos
entram/no entram no espao do dicionrio?
Desse modo, a partir do desenvolvimento da pesquisa,
observamos as relaes entre lngua nacional e lngua regional, ou
seja, a lngua do gacho e a lngua do brasileiro que tambm a
DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI
50
lngua do gacho, pois ele a toma como sua. nessa relao que o
sujeito se constitui, vale dizer, na relao entre lngua e histria.
atravs da Lngua Portuguesa que o sujeito se significa. na lngua,
no dicionrio, no nosso caso, que temos a materializao do discurso,
cujo sentido sempre pode ser outro, pois no exercemos controle sobre
os sentidos. necessria a incompletude do dicionrio, para que
mobilizemos a nossa memria discursiva, a nossa rede de significados
que nos leva a diferentes interpretaes, mobilizando o dito e o no
dito, o novo e o velho.
Nesse sentido, privar os alunos do dicionrio (e da gramtica),
em prol de uma educao facilitada pelo livro didtico, privar o
falante da lngua de conhecer seus instrumentos lingusticos legtimos
- sempre incompletos e sujeitos a falhas, mas ainda assim legtimos -
pois so resultados do processo de gramatizao da lngua. No se
pode negar a histria de uma lngua, no se pode negar ao sujeito o
direito de conhecer e ajudar a escrever essa histria.
O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES
Daiane da Silva Delevati1
Verli Petri2
... os sentidos no se fecham, no so evidentes, embora paream ser. Alm disso, eles jogam
com ausncia, com os sentidos do no-sentido (Orlandi, 1996, p.9).
Introduo
A epgrafe acima sintetiza, em parte, o modo como olhamos
para os sentidos que esto postos no dicionrio: em cada verbete, em
cada prefcio, a cada apresentao do dicionarista. Alm disso,
tambm se relaciona com os princpios que nortearam nossas prticas
em sala de aula; no modo como decidimos lidar com o dicionrio nas
experincias que relatamos neste livro. Olhar, discutir, questionar: os
sentidos, as verdades, os sujeitos e objetos donos das verdades.
Refletir com e sobre o dicionrio foi nosso propsito ao adentrarmos o
espao da sala de aula de Lngua Portuguesa, alm de buscarmos
incentivar o uso desse importante instrumento lingustico, para que
1 Aluna bolsista do projeto Lngua, sujeito e histria: o gacho no processo de dicionarizao da lngua portuguesa no/do Brasil.
2 Prof. Dr. Responsvel pelo projeto.
DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI
52
esse passe a fazer parte do cotidiano das aulas de Lngua Portuguesa -
especialmente, de forma mais significativa.
Mas por que questionarmos o dicionrio? No nele, pois, que
as palavras so transparentes; o sentido correto, preciso e objetivo,
l onde no h o que interpretar, nem do que duvidar (Silva, 1996,
p. 151)? No trabalho em sala de aula, os alunos participantes da
pesquisa, ao escreverem sobre como percebem o dicionrio,
confirmaram essa aura de um espao de certitude, de um espao
sem falhas, que esse instrumento carrega consigo, como podemos
conferir nos excertos3 abaixo:
1) o dicionrio para mim uma coisa muito importante, pois l sabemos o significado de cada palavra, das mais diferentes, e das mais conhecidas... (T.S).
2) eu costumo usar o dicionrio quando estou com alguma
dvida em alguma palavra... (N.B). 3) para mim o dicionrio um livro cheio de palavras
interessantes que a gente no sabe o significado... (L.H). 4) eu acho que o dicionrio muito importante porque ele
significa sabedoria... (N.S). 5) o dicionrio importante para vrias coisas at mesmo para
procurar nomes difceis... e tambm para saber o significado de cada palavra (L.C.).
3 Resultado do trabalho de pesquisa do programa Fiex: O dicionrio como instrumento didtico-pedaggico no ensino de Lngua Portuguesa: da pesquisa prtica de sala de aula; realizado no ms de setembro de 2008 com alunos de 6 e 7 sries, em escola particular da zona perifrica de Santa Maria.
O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES
53
7) para mim o dicionrio um livro muito importante, pois ali encontramos todos os sinnimos das palavras... (L.R).
Para desconstruir, um pouco, essa aura do dicionrio como o
detentor do saber sobre a lngua, aproximando-o do sujeito falante,
usurio da lngua, nos apoiamos na Anlise de Discurso (AD) de
Linha Francesa, fundada por Michel Pcheux e na Histria das Ideias
Lingusticas, tal como a entende Sylvain Auroux, bem como essas
reas vm sendo desenvolvidas no Brasil atualmente. Dessa forma,
buscamos entender como se deu o processo de gramatizao da
Lngua Portuguesa, atravs de leituras de textos tericos de Jos Horta
Nunes e Mariza Vieira da Silva, pesquisadores brasileiros, que se
interessam pela histria e o prprio funcionamento discursivo do
dicionrio. Para este trabalho, tambm selecionamos outros autores,
que discutem questes sobre lngua e sua relao com os processos de
ensino-aprendizagem, como Francisco da Silva Borba e Carlos Alberto
Faraco.
O dicionrio na aula de Lngua Portuguesa: como tem funcionado essa
prtica e como pode passar a funcionar?
Para Jos Horta Nunes, que investiga a histria e o
funcionamento do dicionrio no Brasil - desde as primeiras listas de
palavras elaboradas pelos jesutas no sculo XVI, at os dicionrios
mais contemporneos -, o dicionrio constitui uma forma de discurso.
E como todo discurso, o dicionrio tem uma histria, ele constri e
DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI
54
atualiza uma memria, reproduz e desloca sentidos, inscrevendo-se
no horizonte dos dizeres historicamente constitudos (2006, p. 18).
Desse modo, aquela suposta neutralidade do dicionrio que envolve
o imaginrio dos sujeitos (usurios do dicionrio) comea a ser
questionada, pois h um processo de construo desse instrumento
que deve ser levado em conta.
Esse processo chama-se, na AD, condies de produo: que esto
relacionadas com as formaes sociais e os lugares que os sujeitos a
ocupam. Nunes, citando Michel Pcheux, continua: Tais lugares
funcionam nos processos discursivos como formaes imaginrias que
designam o lugar que A [produtor] e B [destinatrio] se atribuem
cada um a si e ao outro a imagem que eles se fazem de seu prprio
lugar e do lugar do outro (2006, p.19). Para entendermos melhor esse
conceito, utilizaremos recortes de trs dicionrios4:
a edio desse dicionrio, elaborado por Mestre Aurlio Buarque de Holanda e sua
equipe de assistentes e colaboradores, eleva e justifica um esforo editorial voltado
para a difuso da cultura nacional e da lngua portuguesa em todo mundo
(nota do editor do Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa - Aurlio, edio de
1975)
4 Esses recortes constituem parte do trabalho de pesquisa que resultou na apresentao de Comunicao e Painel no Salo de Iniciao Cientfica da UFRGS, em outubro de 2008, intitulado: Gacho: que identidade essa que os dicionrios revelam no discurso?
O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES
55
... essa a compilao coordenada dos mais valiosos vocabulrios sul-rio-
grandenses de autores consagrados (...) surge agora ste vocabulrio nico,
rico de interpretaes e completado pela coleta mltipla de trmos usados no
Rio Grande do Sul
(prefcio do Vocabulrio Sul-Rio-Grandense, organizado por Walter
Spalding, de 1964)
... um livro despretensioso...
(apresenta apresentao do Minidicionrio da Lngua Portuguesa -
Aurlio, edio de 1977)5
Voltemo-nos, agora, para os excertos transcritos acima, na
introduo, dos alunos participantes da pesquisa. E nos perguntemos:
seriam os alunos, os destinatrios dos discursos recortados dos trs
dicionrios que citamos? Se a resposta positiva, isso, ento, nega a
suposta neutralidade do discurso dicionarstico. Vejamos, como se d
a construo do imaginrio acerca do dicionrio como o lugar da
transparncia, da certitude, da neutralidade, de todos os sentidos
possveis para uma palavra. Prestemos ateno, tambm, nas
formaes imaginrias que designam o lugar que A [produtor] e B
5 Grifos nossos. Cabe ressaltar que, em relao aos recortes dos dicionrios, no nos deteremos nas questes de ortografia vigente na poca, mas to somente ao discurso dicionarstico.
DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI
56
[destinatrio] se atribuem cada um a si e ao outro: um como o dono do
saber (mestres, autores consagrados) e o outro como aquele que no
sabe, que est ali para receber o saber (com ele ns aprendemos
palavras novas). Faamos um contraponto6:
A [produtor]: elaborado por Mestre Aurlio Buarque de Holanda e sua
equipe
B [destinatrio]: eu costumo usar o dicionrio quando estou com
alguma dvida em alguma palavra...
A [produtor]: eleva e justifica um esforo editorial voltado para a
difuso da cultura nacional e da lngua portuguesa em todo mundo
B [destinatrio]: o dicionrio importante para vrias coisas at
mesmo para procurar nomes difceis ...e tambm para saber o
significado de cada palavra
A [produtor]: essa a compilao coordenada dos mais valiosos
vocabulrios sul-rio-grandenses de autores consagrados
B [destinatrio]: eu acho que o dicionrio muito importante porque
ele significa sabedoria...
A [produtor]: ... um livro despretensioso...
... coleta mltipla de trmos usados no Rio Grande do Sul...
6 Toda vez que citamos A [produtor] e B [destinatrio], referimo-nos, respectivamente, s citaes j apresentadas dos dicionrios e s citaes dos alunos participantes das atividades.
O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES
57
B [destinatrio]: o dicionrio para mim uma coisa muito
importante pois l sabemos o significado de cada palavra, das mais
diferentes, e das mais conhecidas...
A [produtor]: surge agora ste vocabulrio nico, rico de
interpretaes...
B [destinatrio]: o dicionrio... muito bom, porque com ele ns
aprendemos palavras novas...
Acompanhamos acima um imaginrio de dicionrio que se
configura enquanto espao de neutralidade - um livro
despretensioso por parte de seu autor, e um espao dotado de
completude, que guarda todos os sentidos - saber o significado de
cada palavra, das mais diferentes, das mais conhecidas- por parte de
seu interlocutor. No entanto, essas imagens no esto divididas de
forma to dogmtica, to absoluta, quanto apresentamos aqui, mas
entrecruzam-se, dialogam entre si; resultam do movimento da histria
e da ideologia, do movimento dos sujeitos e dos sentidos.
Para Francisco da Silva Borba, tambm estudioso de
dicionrios, no existe texto neutro quanto ideologia, ou seja,
quem fala ou escreve pretende sempre colocar [sugerir, propor,
impor, inculcar], mesmo que implicitamente seu modo de ver e sentir
o universo (2003, p. 307). Foi o que verificamos acima, pois temos
discursos de dicionaristas e sobre dicionaristas produzidos h mais de
30 e 40 anos que continuam se impondo sobre o imaginrio dos
DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI
58
leitores/usurios dos dicionrios, nos tempos atuais. Porm, para esse
mesmo autor,
quem recebe o texto pode aceitar ou discutir o que recebe como tambm pode captar totalmente, parcialmente ou mesmo nulamente o que est implcito. Para isso preciso no apenas ter um certo lastro de informaes, mas ainda um certo traquejo em manejar idias e conceitos, ou seja um certo grau de conscincia de cidadania (Id., Ibid, p. 307).
E justamente a isso que nos propomos nas experincias que
realizamos em sala de aula: desestabilizar conceitos, discutir o que
dado como certo ou errado, aproximar o dicionrio do sujeito falante,
pois, como vimos anteriormente, esse instrumento est distante do
usurio/aluno: o dicionrio para mim uma coisa muito importante, pois
l sabemos o significado de cada palavra, das mais diferentes, e das mais
conhecidas (Aluno T. S.). Esse discurso do falante nos mostra o
dicionrio cumprindo um papel ideologicamente determinado,
separando quem sabe (l), de quem no sabe, de quem detm o
saber (o dicionarista/ o mestre) e daquele que deve receber o
saber, no caso da sala de aula de Lngua Portuguesa, o
aluno/educando.
Os sentidos da cidade real versus os sentidos estabilizados: e por que
no os dois?
O uso do dicionrio em sala de aula tem se efetivado de um
modo, um tanto acomodado, que se resume ou a procurar nomes
difceis, ou a busca do significado de cada palavra, como se o
O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES
59
dicionrio pudesse dar conta de todos os sentidos que uma palavra
possa ter; como se pudesse abarcar todas as palavras. Desse modo, a
consulta no dicionrio se realiza sem nenhuma discusso sobre as
outras possibilidades de sentidos que poderiam estar registradas nesse
instrumento e no esto, mas que, no dia a dia, significam para os
usurios da lngua e constituem sentidos. Sobre o modo como o
dicionrio tem sido usado em nossas salas de aula, Mariza Vieira da
Silva, nos chama a ateno:
o trabalho com o dicionrio nas interpretaes de textos na escola e na universidade reflete, quase sempre, uma representao do conhecimento lingstico, enquanto disciplina escolarizvel, quer dizer passvel de ser apreendida e dominada, e marcada pela homogeneidade, pela identificao com a certeza e a verdade, pela naturalizao dos sentidos e pelo estabelecimento de uma relao direta entre as palavras e as coisas (2003, p. 115).
Isso pode ser observado na voz dos alunos que so, antes de
tudo, falantes da lngua: para mim o dicionrio um livro muito
importante, pois ali encontramos todos os sinnimos das palavras.. (Aluno
R. S.).
Nesse caso, deparamo-nos com mais um imaginrio que se
constri no entorno do dicionrio, aquele que estabelece a sinonmia
como espao de completude e de totalidade; ou seja, o falante busca os
sentidos no dicionrio.
Mariza Vieira da Silva nos sugere uma alternativa, para
tornarmos o uso do dicionrio em sala de aula, um tanto mais
dinmico, menos passvel por parte do sujeito falante, para que essa
DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI
60
prtica v alm de uma simples consulta - por algum que no sabe,
no domina, no conhece a lngua - a um livro cheio de sabedoria,
que sabe tudo de tudo, dono da verdade e da neutralidade. Segundo a
autora, necessrio
desenvolver uma prtica de leitura do dicionrio na instncia da formulao do sentido, da produo do imaginrio, trabalhar o logicamente estabilizado de forma a produzir rupturas; situar o sujeito nessa rede discursiva, que produz o efeito de completude, de estabilidade, de imobilidade das lnguas, trabalhar a autoria do sujeito escolarizado (Id., Ibid., p. 114).
Concordamos com a autora e propomos a anlise dos seguintes
fragmentos7:
Poltico uma pessoa que trabalha com a poltica. Ele tem a habilidade de governar e
convencer pessoas que sigam seus ideais e objetivos, sempre visando o bem comum da
maioria, isto , ser um poltico srio, voltado tanto para um estado, municpio ou uma
empresa.
OBS:
Infelizmente no bem isto que acontece em nosso pas devido aos maus polticos que
s querem fazer politicagem8.
Notemos que, na primeira parte da resposta, o que o autor
considera poltico se aproxima muito do que encontraremos nos
7 Resposta de um motorista, de 50 anos, durante entrevista, para a pergunta: O que poltico? Resultado de entrevista que alunos do ensino fundamental realizaram s vsperas das Eleies Municipais de 2008, relativa segunda experincia desenvolvida por ns, vinculada ao projeto Prolicen. 8 Grifo nosso.
O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES
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dicionrios para esse verbete, tomemos como exemplo o verbete
poltico do Mni Houaiss - Dicionrio da Lngua Portuguesa, edio de 2008:
Poltico: 1 relativo a poltica 2 relativo a negcios pblicos privado 3 que exerce
influncia administrativa em nveis federal, estadual, municipal etc. 4 relativo a
cidadania 5 quem trata ou se ocupa da poltica apoltico 6 quem revela polidez,
diplomacia impoltico 7 quem revela diplomacia ou astcia para conduzir
acontecimentos ou pessoas 8 aquele que exerce cargo pblico ou atua indiretamente na
poltica.
No entanto, o entrevistado vai mais alm, coloca uma
observao, abaixo da definio de poltico, afirmando que esse
poltico da definio, no h no Brasil. No dicionrio, conforme
acompanhamos acima, o que poltico diferente, contrrio, ao que
impoltico, ao que apoltico. No dicionrio, uma coisa no pode ser
outra: porque l, no dicionrio, o bom distinto do ruim... as
palavras referem-se, sempre, a uma nica e mesma coisa, todas s
vezes que l vamos buscar informaes e tirar dvidas (Id. 1996, p.
151). E no poderia ser diferente, porque esse instrumento um
mundo construdo pela cincia da linguagem com a prpria
linguagem (Id. , p.151). O dicionrio, no pode, ento, misturar o que
poltico quilo que no poltico.
Mas, a lngua em funcionamento esta que a minha lngua, a
do falante, a do leitor desse texto, a do entrevistado pelo aluno l na
escola -, essa se movimenta, extrapola o que est posto como certo,
como nico, e, ento, as palavras passam a tomar sentidos novos nas
DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI
62
prticas sociais: poltico, no Brasil, para os brasileiros, tem outro
sentido, que no est no dicionrio: politicagem! Um sentido novo, que
se relaciona com corrupo, com falsas promessas, que faz parte da
vida poltica brasileira de forma to explcita, to intrnseca, que
impossvel, para um brasileiro, falar de poltica sem falar de
politicagem. Ento, aquilo que no se relaciona no dicionrio, que
significa o oposto de algo (), justamente o que faz sentido para o
falante da lngua, o que no pode deixar de ser dito, um sentido que
est intimamente significando com outro. Dessa forma, aquilo que no
, que no nomeia, no caracteriza, no significa, que no pode
significar, justamente o que passa a ser, o que passa a significar
quando a lngua entra em funcionamento, em movimento. O sentido
de verdade se perde. Se h poltica, essa poltica do Brasil de outra
natureza, ela pe em falso o que est no dicionrio, indo alm dos
sentidos dicionarizados. O falante da lngua produz os sentidos sob
determinadas condies de produo, ele vive a poca das eleies e
por isso seu dizer historicizado; no h como conter isso na definio
de um verbete de um dicionrio que se pretende atemporal e, s
vezes, a-histrico.
Se entrarmos em sala de aula e no atentarmos para essa lngua
que se movimenta e desestabiliza os conceitos que esto postos como
nicos e imutveis, como o caso dos saberes do dicionrio, se no
atentarmos para os outros discursos que circulam, ento, o fazer
pedaggico perder a graa, para quem aprende e tambm para
quem ensina e, portanto, estaremos apenas cumprindo com o papel
O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES
63
ideolgico da escola, de reproduzir: sentidos, sujeitos e lugares para
esses sujeitos ocuparem...
Orlandi, ao discutir as relaes entre a cidade e a escola, prope
que a escola seja um espao onde se crie condies para as
contradies. Para ela, a escola deve ir para a rua, de modo que
venha fazer o sujeito experimentar os sentidos da cidade real (2002,
p. 255). Esse foi, tambm, o propsito de nosso trabalho em sala de
aula: estabelecer relaes, propor contradies, fazer emergir
contradies, que existem sim, mas so, em geral, apagadas pela
escola, pelo ensino, silenciadas pelos instrumentos de ensino. Eis
algumas contradies que surgiram durante a primeira9 experincia
realizada em sala de aula:
Enunciados dos entrevistados:
Sou idoso porque eu j vivi muita coisa nessa vida. Ser idoso ter a responsabilidade de ser o patriarca da famlia, o mais experiente (A, 68 anos). Sou idoso porque j trabalhei muito e hoje estou aposentado. Idoso ser o conselho e alertar os mais novos (H, 82 anos).
9 Referimo-nos aqui a primeira experincia realizada pelo grupo, no ano de 2007, que motivou as outras duas experincias realizadas em 2008 (Ver relato de atividades1). Nesse espao, as crianas entrevistaram pessoas da comunidade, para depois relacionar os resultados com o que estava posto no dicionrio
DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI
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Enunciados nos dicionrios10:
Sobre idoso: quem tem muitos anos de vida; que tem muita idade; velho. Velho: desusado, antiquado. Desusado: que esta fora de uso, que no aproveitado; antiquado. Antiquado: que esta fora de moda; ultrapassado.
Aps a leitura dos enunciados acima, os alunos, ento, apontam
as diferenas entre o que est institucionalizado no dicionrio e o que
est no social da lngua, ou seja, os sentidos da cidade real:
... depois procuramos no dicionrio, mas na verdade no constava a mesma opinio. Tambm descobrimos que o dicionrio muitas vezes no est certo (C). Eu no concordo e no acho legal o que pensam sobre idosos (M). Eu acho que no esto fora de moda, e desuso, eu acho que muito pejorativo
(H)11.
Para Orlandi, ao ir para a rua, a escola ficaria sensvel
transformao: expor-se-ia ao fora dela. O que torna, segundo a
10 Reproduzindo o efeito palavra puxa palavra, prprio do dicionrio. Esses enunciados referem-se aos minidicionrios que foram util
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