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Treze anos após o primeiro, Madô Martins lança novo livro de poesia: Perdas & Danos, que o editor e escritor Ademir Demarchi considerou sua melhor obra. O lançamento aconteceu em (16/6/2012), na Pinacoteca Benedicto Calixto, quando trechos da obra foram encenados por Célia Faustino e Márcio Barreto dos grupos Percutindo Mundos e Núcleo de Pesquisa do Movimento - Imaginário Coletivo. Publicado pelas Edições Caiçaras, de Márcio Barreto, trata-se de um livro artesanal em que cada exemplar traz uma capa exclusiva, confeccionada com material reciclado. Nele estão poemas que abordam o luto e suas consequências, quando um amor que atravessou décadas termina por força do destino. Versão bilingue (português/francês)
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PERDAS & DANOS
VERSÃO BILÍNGUE PORTUGUÊS / FRANCÊS
A presente edição é inspirada nos trabalhos desenvolvidos na América Latina através de Sereia Ca(n)tadora (São Vicente, Santos – Brasil), Dulcinéia Catadora (São Paulo – Brasil), Eloisa Cartonera (Argentina), Sarita Cartonera (Peru), YiYi-Jambo (Paraguai), Yerba Mala (Bolívia), Animita (Chile) e La Cartonera (México).
Edições Caiçaras é uma realização do Instituto Ocanoa, Projeto Canoa, Percutindo Mundos e Imaginário Coletivo de Arte.
Capa feita a mão com material reciclado.
Contato:
mb-4@ig.com.br
13-9174621213-34674387
PERDAS & DANOSMadô Martins
VERSÃO BILÍNGUE PORTUGUÊS / FRANCÊS
Edições Caiçaras São Vicente /SP
Novembro de 2012
© Madô Martins
Capa, projeto gráfico, diagramação e editoração:Márcio Barreto
Conselho Editorial:Flávio Viegas AmoreiraMarcelo Ariel
Martins, Madô
Perdas & Danos / Madô Martins – São Vicente: Edições Caiçaras, 2012.
72p. 1.Poesia brasileira I. TítuloImpresso no Brasil
Edição bilíngüe: português / francês
2012Edições Caiçaras
Rua Benedito Calixto, 139 / 71 – CentroSão Vicente - SP - 11320-070
www.edicoescaicaras.blogspot.commb-4@ig.com.br
13-34674387 / 13-91746212
Nota da Autora
As cinco fases do luto – negação, raiva, barganha, depressão e aceitação – estão representadas nestes poemas de pranto contido. Luto que imita o fado, em seus diálogos na segunda pessoa, e o tango, em sua dor inconformada, mascarada de fatalismo. Os poemas mesclam as fases, espelhando a confusão própria de quem sofreu grande perda. Ao interrelacionar as páginas, a obra oferece ao leitor vários livros dentro do livro, que podem ser reconstruídos ao gosto pessoal.
Outras notas
É o melhor livro de Madô Martins, pois com esse conjunto de poemas ela atingiu um alto grau de desencanto, de autocrítica e de efeitos de linguagem, ao mesmo tempo simples e direta, que desconcertam o leitor com seu impacto. É a voz de uma experiência que fala, sem buscar consolo, pois ao amor que se perde definitivamente com a morte, somente a memória recupera. A voz poética que sobressai dos poemas é cortante em sua sugestão: os ganhos do amor são sempre falsos e enganosos porque sujeitos a serem engolidos pela voracidade das perdas e danos que advêm quando se esvazia a fantasia em que se sustentam. Assim, se o amor vivido acaba engolido pela sensação impactante da perda e de seus danos, ele só ganhará novo sentido e potência ao se recuperar na linguagem poética, quando ganha nova grandiosidade porque nova experiência se constituiu, agora com a escrita.
Ademir Demarchi – escritor e editor
Um mergulho em noites onde "vestimos a dor pelo avesso", onde o feminino se mostra em suas mais contundentes contradições. Belíssimo livro onde o lirismo da perda, do amor que acaba, mas não finda, faz com que o avesso emudeça o silêncio para não perder a razão, o chão que tão incertamente pisamos quando o mundo parece estar de luto.
Marcio Barreto - editor, escritor, músico e compositor
Madô Martins amarra os poemas de tal forma, que temos a sensação de ler um conto, um romance em versos. As fases de luto interpenetram-se, o que é fortalecido pelas marcações de palavras recorrentes: terra, mãos, amor... e a proposta lúdica nos torna ávidos: voltamos ou viramos páginas para reencontrá-las com novos significados. Entramos no processo do luto, pois o livro nos devora!
Regina Alonso – escritora
Madô Martins conta a historia de uma mulher que tinha a esperança de que seu amado homem um dia a chamasse, ainda que fosse em seus últimos tempos de vida... Coração danificado mas com os sentidos plenos, esta mulher é capaz de imprimir com beleza poética a história de tantas mulheres que seguem a vida com ardor porque o amor jamais se apagará.
Maria Teresa Teixeira Pinto - escritora
Quando Madô, maltrapilha de dor, enverga uma “mortalha por baixo da pele”, expõe à flor da pele o silêncio do incompreendido – a morte não anunciada do grande amor – lenda de décadas. Desnudando-se em poesia, desfiando lembranças e mágoas numa delicada catarse da alma dorida, Madô nos conduz a uma dúvida quântica. Quanto da morte não presenciada representa de fato uma realidade? Realidade que se parece a sonhos. “Será que me pressentes?” Sonhos visitados por lembranças cotidianas inscritas “na memória do corpo”. Brincadeiras de “sol e lua”. Nunca mais o encontro, para sempre as lembranças. Perdas & Danos revela a dor das perdas suscitando com maestria a questão da imortalidade dos grandes amores.
Alice Mesquita - Cantora, pesquisadora e tradutora
A obra traz poemas que, embalados ao som do mar, relatam as hesitações do processo de perda do grande AMOR, único e intransferível. “O amor permanecerá intacto – não haverá outro!” A necessidade de expressar e elaborar essa grande paixão, vivenciada décadas em segredo. A esperança da transcendência. “Ganham dimensão os afetos, as memórias...” Por isso, veio a inspiração para dançá-los, uma forma de compartilhar esse agudo sentimento. Uma dança que celebra a oportunidade de vivenciar a existência do amor! “Será que também tu vives este misto de vontade e medo?”
Célia Faustino - eutonista, bailarina, musicista e pesquisadora
Este livro de Madô Martins é fruto de uma coragem que sabe conferir um sentido poético a essa capacidade típica dos sensíveis de transformar a memória daquilo que foi perdido em arte. Existe
ainda um belo paradoxo, que o término da leitura do livro torna explícito, ao converter a memória da perda em poesia, a poesia passa a conter em si a coisa perdida e este livro parece dizer que aquilo que perdemos, é no fundo a única coisa que realmente temos.
Marcelo Ariel – poeta, dramaturgo e performer
Dialogando com a tristeza do fado e a volúpia do tango, fala da perda, pela morte, de um amado já perdido pela vida. É o livro da amante, e o termo se deve compreender como particípio presente, aquela que ama, ainda que não seja, em absoluto, livro de esposa. É de amante para amado. Amor que se experimentou em doses homeopáticas, avaras, e que ficou na perspectiva do paladar insatisfeito. Dialoga com Neruda e Vinicius sem subordinação a um padrão poético, fala pelo lado oposto. Um livro especular, mas não o espelho narcísico de um lago plácido onde se veja a si mesmo. Amor contemplado pelo signo da alteridade, a ótica da mulher.
Manoel Herzog - escritor
Em 10 de novembro de 2012, o livro Perdas & Danos ganhou poemas em francês, para apresentação de performance na Aliança Francesa de Santos, em noite de autógrafos. O espetáculo contou com a participação de Célia Faustino e Márcio Barreto, no vídeo de dança que interpreta os versos contidos na obra. Imagens foram projetadas em telão e apresentadas canções nos dois idiomas, por Alice Mesquita. Ela também assinou a tradução de algumas poesias. Teresa Teixeira traduziu outras e as interpretou. A professora Sonia Gabilly, da AF de Santos, auxiliou na revisão. A autora leu seus versos em português. O roteiro foi elaborado pelas três, com apoio da AF de Santos, por meio de sua diretora Maria de Lourdes Beco, que cedeu o espaço e estrutura, O cartaz anunciando o evento tem arte de Pablo Basile.
(as páginas citadas no final de cada poema referem-se à localização da versão original dentro do livro)
Perdas e danos
Soube da tua morte
por amigos.
Eu, que há muito
te sepultara,
sete palmos abaixo da memória.
Já não me encantavam
teu sorriso de fauno,
a teia de teus olhos,
tuas mentiras bem montadas.
Agora voltas
para me assombrar.
E sou quem morre
a cada dia,
sabendo que já não existes
nem ao menos
para eu me vingar.
pgs. 14 e 16
1
Quase
Quase viúva,
do mesmo jeito
que fui quase amada,
quase esposa,
quase feliz.
Deixas a obra completa
e, mais uma vez,
sais ileso,
desertando do estrago.
Não te bastou
fazer-me frustrada em vida.
Tinhas que definhar
longe, em segredo,
e morrer
sem me dar qualquer chance.
Tinhas que me deixar
à margem,
pela última vez
e para sempre.
pgs. 8 e 39
2
Lembranças
Vêm à tona
antigas lembranças
que eu julgava felizes.
Só agora compreendo
que eram apenas
a minha versão dos fatos,
sob a luz da paixão.
Éramos dois,
mas não estavam comigo
teu coração e tua mente.
Apenas um corpo
que se dava a intimidades
sem se tornar íntimo.
pgs. 12 e 42
3
Palavras
Minha pequena -
era assim que me chamavas
com jeito de namorado.
E tua fala
me abraçava igual teus braços,
plena de promessa.
Outras duas palavras
me faziam tremer,
por revelar tua entrega.
Mas estas, dizias raramente,
rapidamente,
como se escapassem da boca
à revelia da tua vontade.
pg. 19
4
Voz
Em sonhos,
ainda escuto
tua voz de veludo,
distante
como se falasse
ao telefone.
Com ela vem
teu riso,
cristalino
igual ao de um menino.
Chegam-me
tuas mãos
que nunca perceberam
que machucavam
as minhas,
com tua força de homem.
E a tua indiferença,
esta sim,
próxima e real.
pg. 8
5
Revés
Visto esta dor
pelo avesso
e, mesmo assim,
me sufoca.
Erro botões e casas,
desemparceirados
como fomos nós.
Descosturo
pregas e bainhas,
fazendo-me rota
como aquele amor.
Ando maltrapilha,
desde a tua morte.
Talvez seja mortalha
o que agora uso
por baixo da pele,
por dentro dos olhos,
impregnada de silêncio.
E tudo vai se esfiapando,
até que um dia
estarei nua,
sem nada do que lembrar,
sem nada para amar.
pg. 38
6
Datas
Agosto, mês de cachorro louco.
Agosto, mês dos desastres aéreos.
Agosto, mês de desgosto.
Morreste no último dia de agosto,
numa quarta-feira,
teu dia preferido da semana.
Nascidos no mesmo ano,
agora, só eu continuarei
a aniversariar e envelhecer.
Ficaremos
tu com tua imagem congelada,
eu acumulando senilidade.
Não sei quanto tempo mais
andaremos em paralelas.
Mas até elas
se encontram no infinito.
pgs. 36 e 43
7
Sobras
Assisto à tua
última entrevista,
para ouvir
outra vez
tua voz.
Ali estão tuas mãos,
em gestos generosos
como eu sempre quis.
Repetes ainda
o velho hábito
de tocar a orelha
enquanto falas.
E teus olhos
permanecem atentos
a tudo em volta,
como cabe
a um bom contador de histórias.
Pena que
o relato mais bonito
nunca vais escrever.
Morreu contigo,
entre teus muitos segredos,
nossa lenda de décadas.
E me soa estranho
quando nossos amigos
8
me falam de ti:
“teu ex dizia isso, teu ex fazia aquilo”...
Ao menos morto me pertences.
pgs. 2 e 5
9
Falta
Outro repórter já ocupa
teu espaço na redação
e nas páginas do jornal.
Mas foi só isso.
Devia ser fácil assim
substituir-te em nossas vidas.
No afeto dos amigos,
és único
e deixaste saudades.
Na memória dos colegas,
um modelo a ser seguido.
No coração de tuas mulheres,
tantas,
pulsam amor e ódio,
mas o tempo coará todo rancor
e só o que foi bom ficará.
Para teus filhos,
o lugar de pai
sempre será só teu.
Quanto a mim,
devo a ti
a razão do meu viver
e agora tenho que achar
algum outro motivo
que preencha teu vazio
10
e me faça suportar
a falta que me fazes.
pgs. 34 e 38
11
Desconhecido íntimo
O floral
começa a fazer efeito.
Sonhei que guardava
tuas coisas,
constatando que
nada me servia.
Não me servem
teus óculos,
tuas canetas ponta porosa,
teus tênis macios,
teu casaco de couro,
teus livros em inglês,
tuas chaves.
Nunca soube
a marca do teu sabonete,
da pasta de dentes,
a lâmina de barbear,
com o que te penteavas.
Foste o homem
que eu imaginava
e via uma vez por ano.
A única certeza,
único bem compartilhado,
era que te amava.
pgs. 3 e 37 12
Vândalo
Amor-bônus,
foi isto
o que representei
para ti.
Amor disponível,
sem cobrança,
nenhuma queixa,
só sorrisos e beijos.
Pisavas no jardim,
me colhias, despetalavas
e depois partias,
sem olhar para trás.
pgs. 28 e 36
13
Outra
Volta a girar
a engrenagem do tempo.
Sou outra, agora,
menos iludida com as ilusões.
Foste para mim a prova
da existência do amor.
Mas, quando te despediste da vida,
sem contestar,
levaste contigo a esperança
de que a antiga chama
voltasse um dia a arder.
Pensei que partiria
antes de ti,
mas aqui permaneço.
Não soube da tua doença
nem que era incurável
nem da internação
nem da cirurgia.
Não nos despedimos,
eis o fato,
por isso penso que é sonho
tua morte prematura.
És o de sempre,
dentro de mim.
E como não vi teu corpo
14
sem alma,
sou como aquelas
viuvas de desaparecidos:
sigo na dúvida
se aconteceu de verdade
e se fiquei mesmo só,
definitivamente.
pgs. 1 e 16
15
Duas mortes
Triste de quem fica.
Nada mais importa -
horários, obrigações,
aparências...
Ganham dimensão
os afetos,
as memórias.
Cada lembrança
que vem à tona
é bem-vinda
porque reforça
esta morte em vida,
em que
não há respostas.
pgs. 1 e 14
16
Hoje
Hoje consegui dormir
sem pensar em ti
debaixo da terra,
virando terra.
Ouvi tango,
não chorei nem uma vez
e voltei a assobiar
como homem,
para surpresa
de alguns homens.
Hoje não sofro demais.
Li no jornal
um desastre em Buenos Aires,
mas já não tenho
por quem me preocupar.
E há uma mulher
na direção do NY Times,
mas tu não estás lá
para entrevistá-la
nem aqui,
para comentar o fato
comigo.
Hoje posso sair
vestida de qualquer jeito:
não corro o risco
17
de te encontrar de repente.
É uma dor amansada,
esta que sinto agora.
É tranquila
a convivência com os mortos.
pg. 21
18
Ontem, hoje, amanhã
Escolhi nadar contra a maré,amando-te e não a outro.Quando chegavamtuas cartas,no ontem dos correios,no hoje dos e-mail,tudo valia a pena:a espera,a frustração,o amanhã incerto.Minha alma de entãonão era pequena.
pg. 4
19
Inveja
Bom dia, amor -
te digo, ao levantar,
constatando que
sobrevivi a mais um dia
e estou a menos um dia
do tempo que falta
para te encontrar.
Calço os sapatos,
visto a máscara
e vou para a vida
que me cobra
o que já não posso dar.
Perco a hora,
adio compromissos -
nada agora tem urgência.
À noite,
deito exausta.
Tiro a máscara que me fere
e penso em ti,
na tua liberdade atual -
como te invejo...
Pgs. 35 e 37
20
Travesseiro
Uma vez, lembras?,
usamos um só travesseiro,
numa cama de solteiro.
E esta manhã
acordei com a impressão
que havia grama e terra
sobre aquele onde durmo.
Grama e terra do interior
onde nasceste
e de onde partiste
para não mais voltar.
Em sonho
me visitaste
e voltaste a dividir comigo
a intimidade.
Como sempre,
não deixaste pistas
da tua presença.
Exististe mesmo,
algum dia?
pgs. 17 e 29
21
Ainda
Mesmo sem querer,
sinto falta de ti,
de teu nariz pequeno
roçando o meu como esquimó,
dos teus pelos
onde eu gostava de me esconder,
do joelho ansioso
abrindo caminho entre minhas pernas,
das mãos que conseguiam ser
fortes e ternas ao mesmo tempo,
dos teus olhos espertos,
cheios de palavras e risos,
do teu dom
de me fazer feliz.
pg. 29
22
Inútil
Tinjo de fogo os cabelos
e distraio a paixão.
Zarpo no barco dos sonhos
para esquecer da solidão.
Em vão.
Mais cedo ou mais tarde,
o cabelo escurece
e volto ao cais da realidade.
Cheia de saudade.
pg. 33
23
Ecos
Neruda tornou
a entrar em minha vida
reacendendo brasas,
arranhando cicatrizes,
e tua falta
é quase insuportável.
Por isso, à noite,
te chamo
entre lençóis
e as páginas do livro.
O pensamento te busca
longe,
com o velho amor de sempre
no envelope da esperança.
Será que me pressentes?
Será que também tu
vives este misto
de vontade e medo?
Será que nossa história
ainda tem capítulos?
O eco do silêncio
não me traz respostas...
Pode ser o outono,
pode ser Neruda,
24
mas estou te amando,
e sei que não devia.
pg. 31
25
Ternamente
Quero um tempo
para a ternura,
sem relógios,
sem culpa,
sem planos.
Um tempo parado
no meio do tempo,
repicando sinos
de comemoração.
Quero gestos lânguidos,
olhos entreabertos,
bocas úmidas de silêncio.
Quero tudo isso
e muito mais,
de bom, de belo, de puro,
para quando estivermos juntos.
Calmamente afagaremos
os minutos,
mansamente colheremos
as lembranças,
docemente trocaremos
26
juras.
Para sempre
e ternamente.
pg. 34
27
Sem resposta
O amor que me preenche
me faz vidro transparente
colorido pelo mel.
Pode quebrar.
Quanto vivem teus parentes?
Quanto tempo ainda temos?
Perguntas que não fizemos.
pg. 36
28
Tato
Na memória do corpo,
cada uma de tuas carícias.
Mãos e palavras entrelaçadas,
certeza do que não sei
mas sempre soube.
O par, o parceiro,
duas cabeças e um só travesseiro.
pgs. 21 e 22
29
Casal
Homem do campo
Mulher do mar
Ele traz
ramos de trigo
o canto da cigarra
duas frutas
Ela
conchas rosadas
o som das ondas
areia de ampulheta
Quando se beijam
cessam os gafanhotos
somem as manchas de óleo
a brisa sopra folhas e espantalhos
a maré embala peixes e barcos
Homem do campo
Mulher do mar
A gerar vales e rios
lagos e pomares
30
pela vida
para além da vida
pgs. 24 e 43
31
Crença
O que há de divino na cama
descobri contigo,
meu anjo pagão.
Toda vez
que trocamos o ar
das bocas entreabertas,
que nos sorrimos
no instante do prazer,
que gememos
em uníssono,
acreditei na velha teoria
de que amantes são deuses
cheios de graças e poderes.
pg. 33
32
Distância
Brincando
de sol e lua
antigos amantes
seguem
pela vida
com passos de saudade
pgs. 23 e 32
33
Sábio coração
Pensar que ele se foi.
Amor
endividado de anos,
gotejando dia após dia
sua vontade e desejo.
De todos os relógios
retirei os ponteiros,
em todos os calendários
misturei os dias
para a espera se confundir
e doer menos.
Mas o coração sabe
que não é assim tão fácil.
Mantém vigilante o olhar,
o pensamento atento a qualquer sinal,
o fogo da paixão sempre aceso,
para a vida poder continuar.
pgs. 10 e 26
34
Salmo
Ah, homem
Que povoa meus sonhos
E noites mal dormidas.
Talvez te assuste,
Como me assusta,
Saber o quanto
Espero por ti.
Estás nas vitrines,
Nas bancas de frutas.
Estás nos perfumes,
Nos sons, nas luzes.
Estás nos poemas
Que não escrevi.
A cada noite me enfeito
Para mais uma espera.
E durmo com tua ausência,
Lembrando, pensando em ti.
pg. 20
35
Rima ruim
Ele não vem.
De que me adianta
este sol todo?
Onde represar
tanto amor
até a próxima vez?
Como dizer à esperança
que o agora é amanhã
ou mesmo, talvez?
Ele não vem.
Há um coração em cacos
para recolher.
Material reciclável.
(agosto
sempre rimou com
desgosto)
pgs. 7, 13, 28 e 40
36
Ainda hoje
fragmentos de um tempo feliz
meus suspiros
tuas reticências
feridos de vida os dois
repletos de certezas
ainda hoje
passo pela igreja
onde nos beijamos
em vez de rezar
pela loja
onde me descobriste
do outro lado da vitrine
pelo café
que era nosso refúgio
tudo continua lá
menos os apaixonados
pgs. 12 e 20
37
Frio
Abro teu perfume
no quarto vazio.
Evoco assim, concreta,
a lembrança mais antiga
de um tempo bom e nosso,
agora tão distante.
Aqui, esse vidro de cheiro,
a cama solitária,
um rosto, um gesto invisível
e toda a dor,
coberta que não agasalha,
saudade-mortalha.
pgs. 6 e 11
38
Sem volta
Lume de lamparina
apagado pelo vento,
frágil momento
que não volta mais.
Vaso quebrado,
mesmo colado,
ainda é trincado.
Sonho perdido,
quando revivido,
é sempre doído.
pg. 2
39
Autodefesa
Para não enlouquecer,
dou-te a importância
que sempre quiseste ter,
pequena, fortuita.
Para não enlouquecer,
faço dormir,
de novo, o desejo
e dispo a ansiedade,
essa roupa apertada.
Para não enlouquecer,
estouro, uma a uma,
as bolhas de sabão
que a esperança soprou
diante de meus olhos.
Para não enlouquecer,
procuro apagar
as luzes das lembranças
e me acostumar, outra vez,
à penumbra da mesmice.
Guardo no baú
a desilusão
40
- quem quer saber? -
e me ocupo
do não-ser.
Para não enlouquecer.
pg. 36
41
Aprendizado
Através do nada,
no vácuo que deixaste,
tento ouvir o que falas sem dizer.
Ensaio uma cumplicidade ainda incipiente
e busco a bula, a bússola, o mapa, o manual
perdidos sob a mesma luz
que te ilumina e me cega.
pg. 3
42
Areal
Areia nos olhos
areia nos poros
o corpo vagando pela praia
sem sono, sem sonhos
Areia nos planos
alguns já tão velhos
quanto esta baía
de mar sempre manso
Areia no tempo
ampulheta partida
horizonte branco
coração vazio
Areia nos passos
que seguem a esmo
sem rumo ou abrigo -
tropeços na mágoa
Areia sem fim
árida, monótona
como a vida que pesa
cá dentro de mim
pg. 7, 30 e 44
43
Ilógico “nem tudo que termina acaba”
Estas são
as últimas linhas
que te escrevo,
um basta, não um fim,
ao que jamais se apagará.
Preciso te calar
dentro de mim
para que a vida
possa continuar.
O amor permanecerá intacto -
não haverá outro.
E ilógico, como sempre:
foste e serás,
até o último dos dias,
minha metade maior.
pg. 43
44
EM FRANÇAIS
Ô toi, homme
qui habite mes rêves
et mes nuits blanches.
Peut-être te fait-il peur
comme à moi,
de savoir à quel point
je t’attends.
Je te trouve dans les vitrines,
sur les étals de fruits.
Tu es dans les parfums,
les sons, les lumières.
Tu es dans les poèmes
que je n’ai pas écrits.
Chaque nuit, je m’embellis
pour encore une attente
et je m’endors avec ton absence,
avec ton souvenir, la pensée à toi.
pg. 35
I
De ta mort, j’ai su
a travers des amis.
Moi, qui t’avais longtemps
enseveli
au fond de la mémoire.
Dèjá, ils ne m’enchantaient plus
ton sourire de faune,
ni la toile attirante de tes yeux
ou tes mensonges bien ourdis.
Et maintenant tu reviens
pour me hanter.
Et c’est moi qui meurs
à chaque jour,
sachant que tu n’existes plus
ni que ce soit au moins
pour me venger.
pg. 1
II
Il ne vient pas.
À quoi
bon ce soleil?
Où retenir
tant d’amour
jusqu’à ce qu’il revienne?
Comment dire à l’espoir
que maintenant est demain
ou même, peut-être?
Il ne vient pas.
Il y a un coeur déchiré .
Des morceaux à ramasser .
Pièces recyclables.
(Août
a toujours rimé avec
dégoût)
pg. 36
III
Dans la mémoire du corps,
chacune de tes caresses.
Mains et mots entrelacés,
la certitude de ce que je ne sais pas
quoique j’ai toujours su.
le partenaire, le compagnon,
deux têtes, un seul oreiller.
pg. 29
IV
Sable dans les yeux
Sable dans la peau
mon corps divague sur la plage
sans sommeil, sans rêves
Sable dans le projets
parfois si vieux!
Comme cette baie
où la mer est toujours douce
Sable sur le temps
le sablier cassé
l’horizon blanc
le coeur vide
Sable dans les pas
qui suivent errants
sans nord, sans toit
trébuchant dans la douleur
Sable sans fin
aride, monotone
comme la vie qui pèse
ici, dans mon coeur
pg. 43V
Je m’habille de cette douleur
à l’envers
et, même ainsi,
ça m’étouffe.
Je me trompe
les boutons et ses boutonnières,
hors de ligne
tel que nous étions.
Je découds
des plis et des ourlets
devenant déchirée
comme cet amour
Je suis en lambeaux
depuis ta mort.
C’est le linceul, peut-être
ce que je porte sous la peau,
au fond des yeux,
imprégnée de silence.
Et tout m’éfaufile
jusqu’au jour
où je diviendrai nue,
sans avoir de quoi me souvenir,
sans avoir rien à aimer.
pg. 6VI
Ce sont les dernières lignes
que je t’écris,
pas pour la fin, mais a peine pour
un arrêt
à ce que jamais perdra la vie.
Il faut te faire taire
au fond de moi
pour que la vie
suit son cours.
L’amour restera toujours le même –
Il n’y aura aucun d’autre.
Et, comme toujours, illogique:
t’es et tu seras,
jusqu’au bout de mes jours,
la plus grande de nos moitiés.
pg. 44VII
SUMÁRIO
Perdas e Danos 1
Quase 2
Lembranças 3
Palavras 4
Voz 5
Revés 6
Datas 7
Sobras 8
Falta 10
Desconhecido íntimo 12
Vândalo 13
Outra 14
Duas mortes 16
Hoje 17
Ontem, hoje, amanhã 19
Inveja 20
Travesseiro 21
Ainda 22
Inútil 23
Ecos 24
Ternamente 26
Sem resposta 28
Tato 29
Casal 30
Crença 32
Distância 33
Sábio coração 34
Salmo 35
Rima ruim 36
Ainda hoje 37
Frio 38
Sem volta 39
Autodefesa 40
Aprendizado 42
Areal 43
Ilógico 44
EN FRANÇAIS
Ô toi, homme I
De ta mort, j’ai su II
Il ne vient pás III
Dans la mémoire du corps IV
Sable dans les yeux V
Je m’habille de cette douleur VI
Ce sont les dernières lignes VII
Madô Martins
Escreve poesia moderna, haicai, conto, crônica e, em 2011, lançou Avesso, seu primeiro romance.Tem dez livros publicados e mais de 70 premiações literárias em concursos nacionais e internacionais (Portugal e EUA). Desde 2000, é cronista do jornal A Tribuna, de Santos/SP, aos domingos, no caderno Galeria. Também assina a coluna Letras Cotidianas no site www.midiativasantos.com e participa do site Cinezen, Facebook e Twitter. Realiza palestras e oficinas literárias.
Obras publicadas: 1999 - Doce Destino (Massao Ohno Editor), poesias2000 - Paixão e Morte (produção independente), contos 2001 - Pensando em Verso (EditorAção), infantil 2004 - O Jacaré da Lagoa (produção independente), primeiro volume de uma série jornalística para crianças2004 - Alfabeto do Vento (produção independente), haicais2006 - Uma vez em 2284 e outras histórias planetárias (Editora Quártica), contos futuristas 2008 - Três meses no Japão (Editora Comunnicar), crônicas de viagem2009 - Voo de Borboleta (Editora Leopoldianum, da Universidade Católica de Santos - Unisantos), crônicas 2011 – Avesso (Clube de Autores), romance2011 – Diário Ínfimo (Sereia Ca(n)tadora), poesias
Contato com a autora pelo e-mail:mado.escritora@gmail.com
EDIÇÕES CAIÇARAS
São Vicente Brasil
A Edições Caiçaras é uma pequena editora independente artesanal inspirada nas cartoneras da América Latina, principalmente na Sereia Cantadora de Santos e na Dulcinéia Catadora de São Paulo. Nasceu pela dificuldade homérica e labiríntica em publicar meus livros em uma editora convencional. É uma forma de reavivar o ideal punk do “faça você mesmo”, incentivando a auto-gestão e o uso da habilidade manual, algo que está se perdendo em nossa sociedade tecnocrata. Assim, de fato, começa a tomar forma a filosofia da Edições Caiçaras, mais do que um caráter social, nos interessa, ousar na forma e no conteúdo. Na forma é um aprimoramento das técnicas das cartoneras - os livros são feitos com capa dura, costurados com sisal e presos com detalhes em bambu, e no conteúdo, priorizamos um diálogo profundo com a Internet e com as literaturas locais do Brasil.
Márcio Barreto
CATÁLOGO
POESIA
O Novo em Folha - Márcio Barreto
Nietszche ou do que é feito o arco dos violinos - Márcio Barreto
Pequena Cartografia da Poesia Brasileira Contemporânea - Marcelo Ariel (Org.)
Perdas & Danos - Madô Martins
Mundocorpo– as aerografias e outros desvios do tempo – Márcio Barreto
Peixe-palavra (poesias caiçaras) – Domingos Santos
DRAMATURGIA
Atro Coração - Márcio Barreto
Ácidos Trópicos – uma livre criação sobre a obra de Gilberto Mendes – Márcio Barreto
ENSAIO
Obras Cadáveres - Arthur Bispo do Rosário, Estamira, Jardelina, Violeta e o Deus do Reino das Coisas Inúteis - Ademir Demarchi
Desaforismos (aforismos) - Flávio Viegas Amoreira
Meu Namoro com o Cinema – André Azenha
ROMANCE
Teatrofantasma: O Doutor Imponderável contra o onirismo groove – Marcelo Ariel
O IMAGINÁRIO COLETIVO
O Imaginário Coletivo de Arte agrega artistas do litoral paulista em suas diferentes linguagens e tem como proposta fortalecer e propagar a “Arte Contemporânea Caiçara”, valorizando nossas raízes e misturando-as à contemporaneidade. Formado em fevereiro de 2011, é resultado de anos de pesquisas desenvolvidas em diferentes áreas que culminaram na busca de uma nova sintaxe através da reflexão sobre os processos criativos na Arte Contemporânea Caiçara.
Seus integrantes convergem da dança, eutonia, teatro, circo, música, literatura, história, jornalismo, filosofia e artes
visuais. Estão diretamente ligados à experimentação através de núcleos de pesquisas desenvolvidos no grupo Percutindo Mundos – música contemporânea caiçara (2008), Núcleo de Pesquisa do Movimento - dança contemporânea (2011), no Espaço de Consciência Corporal Célia Faustino - eutonia (2003), no Projeto Canoa e Instituto Ocanoa – pesquisa da Cultura Caiçara (2007).
Em seu repertório constam “Ácidos Trópicos – uma livre criação sobre a obra de Gilberto Mendes” (teatro), “Atro Coração – uma livre adaptação sobre o amor” (teatro), “Homo Ludens – fluxos, lugares e imprevisibilidades” (dança contemporânea), “Percutindo Mundos – universo em Gentileza” (música) e “Percutindo o samba – história e poesia” (música).
Ao longo do tempo realizou encontros, oficinas e palestras, tais como o "Sarau Caiçara" - Pinacoteca Benedito Calixto - Santos /SP, "Mostra de Arte Contemporânea Caiçara" - Casa da Frontaria Azulejada - Santos/SP, "Itinerâncias - Encontros Caiçaras" - Casa da Cultura de Paraty - Paraty /RJ, "Sarau Filosófico" - SESC Santos - Santos /SP, "Virada Caiçara" - São Vicente /SP e “Vitrine Literária” – SESC Santos – Santos /SP.
Seu trabalho está presente em universidades, escolas públicas e instituições de cultura através de cursos, apresentações e palestras, além de inserir sua proposta artística em espaços públicos.
www.edicoescaicaras.blogspot.com
www.youtube.com/projetocanoa
www.percutindomundos.blogspot.com
www.myspace.com/percutindomundos
Perdas & Danos foi impresso sobre papel reciclado 75g/m² (miolo). A capa foi composta a partir de papelão e sacolas de papel doados pelo Espaço de Consciência Corporal Célia Faustino.
www.espacodeconscienciacorporalceliafaustino.blogspot.com
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