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MSflM A NAOWEEIS At0È SER HQMENAGE ADt): ' '
'dOèíTINPA VIVO" ..•¦ ; "*lO cineasta não quis abandonar os seus trintas .¦
aderir, ainda que simbolicamente, a uma terrível¦WstQ,ria ,dé amor com um crime dé monta, dignodêborrar de medo a sua própria sombra. É estaa história de "Tabu". Entre o presente de Portugale o seu passado colonialista. Entre o presentee o passado .do^çiinema. Um filme das nossas vidas
"TVjHti"I CLJJ U. é um dos mais belos filmes da
história do cinema contemporâneo. Conquistou emBerlim o Prémio Alfred Bauer, dias antes de MiguelGomes completar 40 anos. Filme romântico e sibili-
no, crença pura no poder do cinematógrafo, "Ta-bu" torna Gomes, a par de um Wes Anderson e de
um Apichatpong Weerasethakul, num dos cineas-
tas mais importantes da sua geração. No cinema
português, que agora atravessa horrível período de
estagnação, para esse grupo de cineastas que há dé-
cadas são franco-atiradores, Gomes é dos que maisinveste na pontaria. Certeiro no tiro, é também a
grande esperança, como no título português do fil-
me de John Ford sobre Lincoln. O cinema portu-guês não ganhava um galardão oficial num dos trêsmaiores festivais de cinema do mundo desde o Pré-
mio do Júri (Carmes 1999) atribuído a "A Carta", de
Manoel de Oliveira. Convém, contudo, não cair ago-ra no entusiasmo de levar tudo a reboque de "Ta-bu". É que cem filmes portugueses foram antes fei-
tos sem chegar a este nível. Cem outros provavel-mente se farão até o nível ser de novo atingido.
História de um amor louco em diálogo entre o
presente de Portugal e o seu passado colonialista,"Tabu" gera também uma ponte entre o presentee o passado do cinema. Foi rodado em Lisboa e nodistrito do Gurué, na província da Zambézia, em
Moçambique. A preto e branco, no formato do ci-
nema mudo (1:1,33), em película de 35mm e de
l6mm da Kodak. Numa coprodução que envolveu
Portugal, Alemanha, França e Brasil. E é um filme
apaixonante: começa com o prólogo de um explo-rador, melancólica criatura que, sob chuva e sol
escaldante, percorre a savana antes de dizer adeus
à vida por um desgosto de amor, atirando-se ao
rio, para as mandíbulas de um crocodilo. Vemos
depois o espectro da esposa com o animal aos pés:
foi certamente num crocodilo que o explorador se
transformou. "Tabu" não tarda, portanto, a abrir a
porta aos seus fantasmas.
O filme divide-se em duas partes: "Paraíso Perdi-do" e "Paraíso". Na primeira, em Lisboa, descobri-
mos (numa sala de cinema) uma senhora bondosa,de nome Pilar (Teresa Madruga), a quem o mundo
teima em não retribuir a bondade. Pilar é vizinha e
confidente de Aurora (Lavra Soveral), idosa viciada
no jogo, que vive com Santa (Isabel Cardoso), a sua
empregada africana. Aurora acredita que Santa, queestá a aprender a ler com o "Robinson Crusoe", lhe
fez uma macumba. Na verdade, o que Aurora sente
é o seu fim: morre logo depois, no dia de Ano Novo,com o desejo de ver um homem, Gian-Luca Ventura
(Henrique Espírito Santo). Será Ventura aquele quenos conta a segunda parte do filme. Ana Moreiratoma agora o lugar de Aurora na juventude e Cario-
to Cotta o lugar de Ventura. Descobrimos então a
paixão daqueles dois amantes, numa antiga colónia
portuguesa em África, no início dos anos 60. Uma
paixão maldita que vai longe de mais e coincidirá
com o início do fim de um império. Arranca o "Paraí-so" de um filme que "começa na ressaca e acaba nabebedeira". A história de uma 'África nossa': febril
para os que a viveram, tabu para os que a deixaram.Pilar é a personagem que vê o filme que há dentrodo filme e que lança o prólogo de "Tabu". Qual é a
sua importância? A Pilar tem muitos pontos em
comum com uma pessoa da minha família que melevava ao cinema quando eu era criança. Uma se-
nhora solteira, católica, que um dia me conta umahistória: a de uma vizinha, sua amiga, que se quei-xava da empregada africana que com ela vivia. Avizinha era paranóica: acreditava que a empregadalhe fazia macumbas e a fechava no quarto à noite.
Já a empregada olhava torto para a minha familiar,pois julgava-a intrometida. Achei que aquela dispu-ta entre vizinhas era divertida e muito peculiar. O
argumento de "Tabu" partiu daqui. Mal sabia eu,então, que acabaria por fazer um filme em África.
Pilar só tem presente e é com ela que descobri-mos as duas partes do filme. Já a sua confidente,Aurora, só tem passado. E se o presente de Pilar,
que é cinzento e algo resignado, fosse o presentedo cinema? E se o passado de Aurora, que é apai-xonado e febril, fosse o passado do cinema? O
que interessa saber aqui é de que maneira tenta o
filme operar um diálogo entre estes dois tempos.É interessante falarmos disso, porque acho que aPilar não se vê como uma personagem de cinema,mas é verdade que as ações são determinadas pelo
presente. O que existe é um desejo de passado a queeu poderia chamar um desejo de ficção. Houve umacoisa que pedi à Teresa Madruga sempre que ela
estava a fazer contracena: que olhasse para tudo e
todos como uma espectadora de cinema, com o arpasmado de um espectador que vê algo que não per-tence à ordem da sua realidade. Isso materializa-se
depois na segunda parte do filme. Já à Lavra Sove-
ral pedi que se comportasse como uma antiga diva:
ela está sempre a mudar de roupa, impõe a sua lógi-
ca, é-nos apresentada num monólogo que conta umsonho. Uma das indicações que dava à Lavra eraesta: "Um bocadinho mais de Vincent Price!" Que-ria que ela sentisse o artifício e o gozo da representa-ção e que espantasse a sua vizinha. Mais tarde sabe-
remos que a senilidade da Aurora está ligada a ou-
tra coisa: a um sentimento de culpa. Ela tem sanguenas mãos. E a Pilar lida com a culpa dos outros. Já a
Santa, que é o oposto da Pilar, lê o "Robinson Cru-soe". Manifesta, também ela, um desejo de ficção.Estacionemos nesse desejo: quando é que ele lhe
surgiu? Não sei se isto é importante, mas há ummomento: foi quando vi "Os Salteadores da ArcaPerdida". Tinha 12 anos. Descobri que gostava de
cinema e que os filmes iam passar a fazer parte da
minha vida. No liceu, estava em economia, tinhamás notas, mas continuava a ver filmes. Morava noAreeiro e frequentava o cinema Alfa: uma vizinhatrabalhava lá e guardava-me bilhetes. Era uma al-
tura em que as pessoas iam massivamente ao cine-
ma. Lembro-me de que, à segunda-feira, havia fi-
las no Alfa até à bomba de gasolina da Avenida
Gago Coutinho. Mas nunca fui beato da cinefilia,
que pode ser uma doença. Como aqueles loucos
que gostam de espetar alfinetes em borboletas...
Seguiu-se a Escola de Cinema. Porque a econo-
mia não me dizia nada. Fui parar à Escola de Cine-
ma, que ainda era no Bairro Alto, passei lá três
anos fantásticos, mas de cinema, sinceramente,não aprendi grande coisa. Por culpa minha?, dos
professores? De ambos... A minha descrença nos
modelos pedagógicos foi muito rápida. Tudo o quesaía da boca dos docentes parecia-me aborrecido,funcional e muito pouco sincero. No terceiro ano
já estava 'queimado' na Escola: era visto como umelemento perigoso. Não cheguei a fazer o estágiode fim de curso e, sem diploma, percebi que nãotinha perspetivas de trabalho. Mais tarde, umaamiga convidou-me a experimentar a crítica numnovo semanário, o "Já", que surgiu nos anos 90 e
durou poucos meses. Passei então a escrever no"Público". A crítica foi a minha verdadeira escola:
nem tanto pelo que produzi, mas pela disciplina de
me ver obrigado a pensar e a escrever sobre o quevia. Fui crítico durante quatro anos, entre 1996 e
2000. Saí no momento certo. Já tinha então feito a
minha primeira curta, "Entretanto", cujo subsídio
permitiu o início da atividade da produtora O Som
e a Fúria, com a qual ainda hoje trabalho.Mas a insurreição deu frutos. Pois deu. Permi-tiu-me ser mais generoso com o cinema e pensar
que cada filme deve ser feito como se fosse o primei-ro e o último. Cada filme deve desafiar o anterior.
Permitiu-me admitir um lado inconsciente do cine-
ma, em que a verdade se rege por um princípio do
prazer — a regra das minhas rodagens é essa: "Isto
tem de dar prazer." Tenho a sorte de ter uma equi-
pa estável que acredita nesse princípio. Mesmo queaquilo seja tudo mentira, é preciso acreditar nasmentiras. Na curta seguinte, "Inventário de Natal",filmei animais do presépio e crianças a brincar num
quarto escuro. E aprendi a organizar o caos: crian-
ças e animais são os elementos mais caóticos do
cinema.A partir de "A Cara que Mereces" adotou um pro-cesso de filmes em duas partes, que repetiu em
"Aquele Querido Mês de Agosto" e que "Tabu"volta a usar. Uma vez mais, procurei uma relaçãocinematográfica com o mundo real, inventando
um mundo paralelo que não obedece às mesmasleis. É por isso que tendo outra vez a fazer nascer a
meio do filme outra lógica de funcionamento, comoutras regras.Também o "Tabu" de Murnau, o último filme dele,tinha dois capítulos, "Paraíso" e "Paraíso Perdi-do", que o seu filme inverte. Porquê? Sinto que há
no cinema europeu uma corrente forte ligada ao rea-lismo e, ainda pior, ao naturalismo, que me interessa
muito pouco. Uma das coisas que queria recuperar é
algo que hoje pode ser visto como uma ideia obsole-
ta: oposições binárias. O cinema mudo, em especialo de Murnau, está cheio delas: cidade/campo em
"Aurora"; dia/noite em "Nosferatu"; paraíso/paraísoperdido em "Tabu". E, ao contrário do que fiz em
"Agosto", em que as duas partes rimavam e se com-
plementavam, em "Tabu" segui uma lógica oposta:
passar da velhice para a juventude, da solidão para o
amor. Inverti os episódios e explico porquê: o "Paraí-
so Perdido" da primeira parte é o tempo da culpa
vaga, do desconforto sem causa específica que se ma-terializa no "Paraíso" da segunda parte. Este filme
começa pela ressaca e acaba na bebedeira.
"Tabu" dialoga organicamente com um passadocolonialista português, com o que fomos e o quesomos, numa ligação afetiva e subterrânea. Istotrouxe-lhe dificuldades? "Tabu" é um filme sobre
a passagem do tempo, sobre coisas que desaparece-ram e só podem existir enquanto memórias e fan-
tasmas que o cinema admite. De repente, voltamos
50 anos atrás no tempo para uma sociedade colo-
nialista e para um tempo de excessos e paixõesproibidas que vão longe de mais. O que eu sinto em
relação à ficção portuguesa, seja em que área for, é
que existe ainda um cuidado particular em ficcio-
nar o tempo colonialista. A questão é sensível, está
ainda demasiado próxima de nós. Há cicatrizes
que deixaram marcas na vida de muita gente. Porisso quis escapar-me de uma ficção exemplar e pe-dagógica que só lidasse com arquétipos.Tem alguma relação pessoal com África? Não. Aminha mãe nasceu em Angola, mas veio para Lis-
boa estudar nos anos 60. Eu nasci em 1972, não vivi
o tempo da guerra colonial, e por isso julgo podertratá-lo como um imaginário. É óbvio que eu sei
que, quando chamo "Paraíso" à segunda parte do
filme, numa altura em que a Aurora faz jogging pe-la casa enquanto os criados varrem o chão, estou a
criar uma distância irónica em relação ao colonialis-
mo. E sinto que essa ironia pode conviver com uma
sensação de perda das personagens, que vivem fe-
brilmente, inconscientes do sistema político em
que estão inseridas. Todos os meus filmes lidamcom uma sensação de perda. A minha curta favori-
ta, "31", terminava com uma bandeira portuguesa a
descer da haste e um título muito presente nos dias
que correm: "Silenciosamente, algo se movia sob a
pilha de escombros." É óbvio que para Portugal,nos anos 60, o império colonial estava a prazo. Tão
a prazo como uma história de amor parecida com o
"África Minha". Só que, em "Tabu", a 'minha MerylStreep', Aurora, está 'de balão' e não pode mais dei-
xar de lidar com a realidade. "Tabu" é uma efabula-
ção que não deve nada à realidade histórica mas
que eu acho justa com essa realidade: uma mulherestá grávida, e essa gravidez é uma bomba-relógio.E, no momento mais doloroso para as personagens,
passamos sem transição para o tempo da guerracolonial e para o início do colapso do império.Voltando à ressaca e à bebedeira: alguma vez des-confiou que poderia acabar por chegar a um filmetão romântico como "Tabu"? Bom, há o romantis-
mo dos Nibelungos, pesado e grave, e o do Dia dos
Namorados... A exacerbação dos sentimentos não
me interessa muito, tenho algum pudor. É por isso
que digo que faço filmes afetivos, mas não senti-
mentais. Procuro no cinema um lado emocional
que me permite evocar coisas que não existem na
realidade. O próprio cinema entra aqui em jogo,
porque o que eu tento estabelecer é um pacto de
crença entre uma ficção e um espectador. Até queeste possa admitir, por exemplo, que aquele croco-
dilo, que foi testemunha de tudo desde a origemdos tempos, é uma melancólica criatura. Tentoevocar uma memória do cinema sem citações au-
tossuficientes, sem digestão enciclopédica. O cine-
ma não precisa de ser homenageado: continua vi-
vo. Prefiro antes tentar passar em "Tabu" a sensa-
ção que tive quando vi esses filmes e distribuir essa
memória, de uma forma difusa. As coisas são irre-
petíveis, não podes filmar e dizer: "Eis aqui um
plano de Murnau." Podes, contudo, arriscar fazer
um plano que sabes que vem da sensação do filmedo Murnau que viste e que agora devolves com atua assinatura. Não é possível fazer um filme mu-do em 2012 como se estivéssemos em 1927.Na segunda parte de "Tabu", os diálogos são aboli-dos. Não por um piscar de olho ao cinema mudo,mas por necessidade estrutural: os diálogos vãocontra o tabu do título, ou não? Vão. Porque eu
queria dialogar com o passado a partir de uma ideia
de fim, que não é o fim do cinema, mas o fim de umaideia de cinema: morre uma pessoa, o que existe
dela é uma memória, e a memória vai permitir ao
filme resgatar uma sociedade extinta mas que ainda
recordamos. Também fizemos isto a partir de umamatéria — a película de 35mm a preto e branco — e,
entretanto, a Kodak declarou insolvência. A primei-ra parte do filme é muito dialogada. Na segunda, só
a palavra em offé expressa. Porque a palavra já não
existe, ou, se existe, é enquanto elemento espectral.Como é que dirigiu os atores de uma parte do
filme a outra? Na primeira parte, a palavra é o eixo
central, e a direção de atores foi mais convencional,com ensaios intensivos durante algumas semanas.
Na segunda parte, tudo o que pedi foi à Ana Morei-ra que aprendesse a disparar uma carabina e ao
Carloto Cotta que praticasse bateria. Na segunda
parte, deitei o guião fora. Mais uma vez, não tive
dinheiro para filmar o que estava escrito, com casa-
mentos minhotos em África com cento e tal figuran-tes brancos e uma noiva carregada de ouro em cimade um elefante. Onde filmámos, não havia elefan-
tes. E os poucos brancos que havia restringiam-se
quase aos elementos da equipa. Em Moçambique,formámos um pequeno grupo dentro da equipa a
que chamámos Comité Central: a coargumentistaMariana Ricardo, que tinha acabado de ver o guiãoser rasgado, o Teimo Churro, anotador e montador,o Bruno Lourenço, assistente de realização, e eu.
Tinha o dito comité por missão diária inventar ummenu de cenas possíveis que não estavam desenvol-
vidas para filmar no dia seguinte. Foi um trabalhode escrita sem nada escrito, só ficavam as ideias.
Por vezes, havia cartões pendurados na parede comfrases estranhíssimas que os atores depois liam sem
perceber. Eles foram de uma generosidade extre-
ma. Deixaram-se levar cegamente pelo comité.Inventou-se um PREC... Há sempre um PREC nos
meus filmes, mesmo quando se segue um guião.Mais ou menos revolucionária, há sempre qual-
quer coisa que está em curso.Às vezes, os seus filmes dão a sensação de se-
rem escritos como canções. Quando faço um filme
começo por colecionar coisas que não estão associa-
das a um conceito racional mas que sinto que podemvir a fazer parte da mesma família. Pode ser um espa-
ço, um livro, a ideia de um diálogo, uma canção... Foiassim que descobri, por acaso, o Centro Comercialdo Cacem, onde o Ventura vai contar a história de
Aurora: é um espaço que está coberto de palmeirasde plástico e que materializa o desejo de outro espa-
ço. Vim a descobrir que, naquela zona, instalaram-se
muitos retornados de África depois do 25 de abril.Estas coisas vão-se acumulando e acabam por dar
origem ao arranque de um filme e a uma respostaemocional da minha parte. Que vem, é verdade, mui-
tas vezes da música. Quando era pequeno, a minhamãe sossegava-me com um disco de bossa nova do
João Gilberto: eu ficava quietinho a ouvir.
Impressionou-me muito aquele longo travellingem que os amantes, Aurora e Ventura, caminham
na savana, de mão dada, e depois olham para a
câmara. Gostava que o comentasse. Foi, de facto,
um travelling muito longo, muito maior do que o
que se vê no filme, e um dos últimos planos inventa-
dos pelo comité. Chamámos-lhe teenage love. Na
montagem, não sabia quando é que o iria colocar no
filme. Esse plano é uma tentativa de voltar a acredi-
tar num amor inocente e num território perdido,até ao momento em que eles olham para a câmara.
Pedi aos atores que o fizessem com uma neutralida-de total. Como se estivessem a perguntar ao especta-dor: "Mas vocês ainda acreditam nisto?, nesta cami-
nhada?, neste amor?, ou não?" O meu objetivo é quea resposta seja sim e não. Que eles nos digam: "Não
esqueçam, isto já não é possível, esta história é ape-nas a materialização dos vossos desejos." E que di-
gam também, em simultâneo: "Mas sim, afinal ain-da é possível, ainda nos podemos emocionar, por-
que foi este o pacto que estabelecemos convosco."
Como na canção "Hello Goodbye", dos Beatles?Acho que é mais um goodbye. Mas é um goodbye
que investe tudo o que tem no hello. A
QUEM TOMAAS NUVENSDE ASSALTO?
De "Tabu", não se contará mais nada.
Às vezes é melhor ficarmos por um só
aspeto, obsessão que ficou desde quevimos o filme pela primeira vez: porqueolham Ventura e Aurora para a câmara
(foto acima)? Porquê? Será que Aurora
e Ventura, na segunda parte do filme,
vêem a câmara? Ou esqueceram-sedela e também do que eles são, do que
representam? Aurora, de resto, não
gostava de cinema, diz-nos o filme... 0
que eles são nessa segunda parte,sabemos nós, é um relato em off dito
pelo velho Ventura quando Aurora jáestá morta. De repente, vemo-nos
perante um filme que se atreve a desco-
brir monstruosas figuras nas nuvens e
que vai olhar um passado até à extin-
ção do seu olhar, até à cegueira, ousan-
do construir nesse terreno de trevas os
alicerces de uma ficção. Não se instalam
às tantas os amantes numa casa aban-
donada, olhando o fogo e tentando ler
nele os sinais do destino? Se a segunda
parte de "Tabu" parece estar 'ausente',
quase como se saísse, milagrosamente,do campo da câmara, se essa parteadmite figurar o que foi esquecido e
corre o risco de acreditar em crocodilos
cúpidos (ou no poder do fogo), é porque
Miguel Gomes manifesta aqui um dese-
jo: abandonar a história do cinema para
a reencontrar pela originalidade dos
seus artifícios, Tocar nessa história
como se fosse uma novela de aventu-
ras lida pela primeira vez (como o "Ro-
binson Crusoe", lido por Santa). Ousar
figurar um amor entre o viver e o
morrer que, afinal, só depende do que
mais importa: do investimento de cada
VENTURA E AURORA NA SEGUNDA PARTE DE "TABU": PORQUE OLHAM ELES PARA A CÂMARA?
espectador no filme. Esta é a provoca-
ção maior de "Tabu": inocente e impene-trável. Aurora e Ventura olham para a
câmara, uma, duas vezes, num travel-
ling de dia e num plano fixo de noite,
iluminado por uma fogueira. Olham um
a um para cada espectador da sala, lá
onde estamos, sozinhos, a tentar com-
preender esse fenómeno cinematográfi-co que é a vida. "Tabu" assim permane-cerá. Escondido no mistério das suas
personagens, que nada já podem dizer,
só recordar, e em simultâneo presente
por nós, pelo que testemunhamos
delas, pelo que ficcionamos com elas.
Muito poucos filmes conseguiram cap-tar esta sensação de tempo. E lá para o
fim também nos dirão: "Se a memória
dos homens é limitada, já a do mundo é
eterna e a ela ninguém poderá esca-
par," Uma indicação se deixa a quemdecidir acreditar no seu papel nesta
aventura. Não vem de nós, mas de um
excerto relido por acaso de "Titânia", da
pluma de Cesariny: "Ser fantasma não é
como já vem nos filmes. A coisa é
outra. Mais esquisita. Maior, Para que
venha o fantasma basta abrir uma
porta. Para que passe o fantasma basta
olhar de repente. É um negócio de olhos
e portas. Entra-se para brincar e sai-se
morto. Foi destino? É acaso? As portasé que sabem. Entrai, saí, ficai, fazei
como souberdes; mas saudai com
reverência essa fronteira máxima!" F.F.
TABU
de Miguel Gomes
(Portugal/Alemanha/França/Brasil)
com Ana Moreira, Carloto Cotta,
Lavra Soveral, Teresa Madruga,
Isabel Cardoso, Henrique Espírito Santo
Drama M/12
E O PARAÍSOAQUI TÃO PERTOComo outros filmes de Miguel Gomes,
"Tabu" obedece a uma estrutura bipo-lar que, cortando a ação ao meio, põedois termos em contraste, no caso: o
presente (o tempo perdido do quotidia-no) e o passado (o tempo reencontra-do da memória). Trata-se não de uma
divisão mas de uma dobra do filme
sobre si, onde o segundo termo operacomo espelho distorcido do primeiro,
como o lugar da revelação dos seus
segredos: como se, ao jeito de um
arqueólogo, Gomes escavasse para
expor as camadas de sentido que as
aparências recobrem. Ora, aqui, a se-
quência que assegura o raccord entre
dois mundos traduz bem o alcance
desse gesto arqueológico. Falamos
daquela em que, num centro comercial
de bairro decorado com motivos tropi-cais, Ventura inicia o relato da sua
incursão pela África colonial dos anos
60. Genial pelo modo como faz coexis-
tir o presente e o passado, preparando
a reemergência de uma imagem que a
personagem guardava em silêncio, a
sequência inaugura um processo de
rememoração ficcionada que implica
não o regresso literal a outro tempomas a descoberta no presente de um
passado que a ele fica ancorado (com
uma narração em off que nos remete
sempre para o 'agora')- Mais: esse
tempo reencontrado a que aqui se
chama África é, para Gomes, o próprio
cinema, entendido como uma possibili-dade de regresso criativo a um passa-do que também pode ser o seu. Prova
disso? A segunda vez que vemos Pilar
a ver um filme, olhos marejados de
lágrimas e rosto recortado pelos refle-
xos da luz. O que vê ela? Não sabemos.
Sabemos, sim, é que, nesse momento,ela ouve uma canção que voltaremos a
ouvir adiante, quando a sua persona-
gem tiver já saído de cena. O que
significa que, naquele instante, Pilar
estava já, sem o saber, em pleno paraí-
so, fitando essa memória viva à qual
Gomes tem o hábito de chamar cinema.
Vasco Baptista Marques
ENTRETANTO
LUÍS URBANO (À ESQ.), EM MOÇAMBIQUE, DURANTE A RODAGEM DE "TABU"
No rescaldo do sucesso de "Tabu", Luís
Urbano realinha o futuro de O Som e a
Fúria, a produtora que Sandro Aguilar e
João Figueiras fundaram em 1998 —
aquando da primeira curta de Miguel
Gomes, "Entretanto". O economista, de
43 anos, chegou à O Som e a Fúria em
2005 (com a saída de João Figueiras),
mas o início do seu percurso também
está intimamente ligado ao formato
'curta'. Esteve no início do Festival
Curtas Vila do Conde. Em 1996, fundou
a cooperativa que viria a organizar o
festival em novos moldes e, em 1998,criou a Agência da Curta Metragem.
Agora, com um corte de 100% no
sector (não haverá concursos), com o
Instituto do Cinema e Audiovisual sem
tesouraria para cumprir contratos
firmados com cineastas e produtoras
em anos anteriores (O Som e a Fúria
tem filmes de Sandro Aguilar, Ivo Ferrei-
ra e João Nicolau nessa situação), o
adiamento de uma nova Lei do Cinema
(na semana passada, o secretário de
Estado alargou pela quarta vez o perío-do de discussão), Luís Urbano esperater meios para sobreviver no deserto.
É verdade que "Tabu" já é o filme
português mais vendido de sempre no
mundo (a 18 países, além dos quatro
que coproduzem), mas os valores
obtidos não irão chegar para investir
em novas produções. A ideia é manter
a produtora, vender mais filmes, em
catálogo, nomeadamente a televisões,
para mais tarde intensificar a produção0u... fechar. E é por isso que o formato
da curta se volta a impor. A solução
permitirá que Gomes não fique parado
e que o sucesso de "Tabu" seja rentabi-
lizado através da captação de capitais
no estrangeiro. Outra possibilidade de
continuar a trabalhar virá do Brasil —
onde Manoel de Oliveira voltará a
filmar com O Som e a Fúria. O cineasta
terminou "O Gebo e a Sombra" e prepa-ra-se para avançar para o seu segundofilme com a produtora ("Igreja do Dia-
bo", adaptação de Machado de Assis).
O mais curioso é que a ligação entre
Oliveira e a produtora não foi realizada
através de Portugal, mas por recomen-
dação feita ao cineasta por um produ-tor espanhol. "O que torna equilibrada a
nossa relação com Manoel de Oliveira é
o facto de O Som e a Fúria já ter um
nome antes dele, embora estivesse
obviamente ligada a uma nova geraçãode cineastas portugueses. Depois,
nunca poderíamos dizer não à experiên-cia de produzir Oliveira: se não fosse
ele e a geração dos anos 60, o cinema
português não existia." O filme de
Oliveira será todo rodado no Brasil e só
o nome do cineasta permitirá que
existam atores portugueses ou que a
equipa seja nacional. Neste caso, a
língua não está em causa, será a portu-
guesa, mas se fosse financiado em
França "seria falado em língua france-sa". É por isso que Urbano quer desmis-
tificar as coproduções: "Pode ser uma
solução interessante, mas nunca parafazer um cinema português, feito em
Portugal, falado em português e que
seja o espelho do universo do autor,
como é o caso de Miguel Gomes, que
consegue uma interpretação universa-
lista mas que tem na base uma maté-
ria-prima portuguesa. A ameaça que
pende sobre o cinema é real. 'Tabu' não
seria o mesmo se fosse feito noutro
lugar. O imaginário é português."Cristina Margato
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