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PROCESSOS DE FORMAÇÃO SOBRE UMA ÓTICA DA
PEDAGOGIA DA AFETIVIDADE
Ronan Lobo de Paula1
Arte, Educação e contemporaneidade 9 RESUMO O processo educacional deve acontecer pela via do afeto, onde a liberdade de criação e a pesquisa são seus principais fatores. Este trabalho teve como experiência prática uma apresentação de teatro, um processo que partiu de um modelo matemático de progressão geométrica, e teve como base a relação de afeto entre educador e educando, mostrando que o modelo é apenas um entre muitos e que o indivíduo pode descobrir o saber a partir de uma releitura de sua história e do contato com as histórias dos outros. Tendo um trabalhador de uma empresa de estruturas metálicas como objeto de pesquisa, o trabalho procurou proporcionar a libertação do indivíduo e uma criação coletiva.
Palavras-chave: Processo. Formação. Afeto. Imaginário criativo. Teatro.
RESUMEN El proceso de la educación necesita suceder a través del afecto, donde la libertad de creación y la investigación son sus principales factores. Esto trabajo ha tenido como experiencia practica una presentación de teatro, un proceso que vino de un modelo matemático de progresión geométrica, y se basó en la relación del afecto entre el educador y el estudiante, demonstrando que el modelo es sólo uno entre muchos y que el individuo puede descubrir el conocimiento desde una reiterpretación de su historia y el contacto de otras. Se tomo um empleado de una empresa de estructuras metalicas como sujeto de investigación. El presente trabajo busca proporcionar la libertación del sujeto y una criación colectiva.
1 Ator, Professor, Especialista em Teatro e Dança na Educação (FAV/RJ) e graduado em Teologia (CES/JF). E-mail: ronanluz@yahoo.com.br / blog:ronanlobo.blogspot.com
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Palabras clave: Proceso. Formación. Afecto. Imaginación-creadora. Teatro.
“É possível uma ideia mudar o mundo?”: essa era a pergunta que chamava a atenção na
capa do filme “Pay it Forward”, conhecido no Brasil como “A corrente do Bem” (LEDER,
2000). No filme, o professor propõe um trabalho prático aos alunos para transformar o mundo
em um lugar melhor. Ele, que esperava receber redações, contando como foi ter ajudado um
velhinho atravessar a rua ou como foi ter plantado uma árvore, ficou impressionado com um
modelo matemático criado por Trevor, um menino de oito anos, que cria uma corrente de boas
ações que se expande e toma proporções nacionais. Segundo o garoto, ele deveria ajudar três
pessoas, fazendo algo muito importante, e pedir a cada uma delas que ajudassem outras três,
como agradecimento, fazendo algo que gerasse bondade em retribuição ao bem que receberam.
Assim, cada um que recebesse uma ajuda, faria outras três boas ações e pediria que a ideia
fosse passada para frente. A partir deste filme, comecei a observar o meu processo de trabalho e
a questioná-lo.
Não teríamos, nós, os educadores, a missão de multiplicar afeto? Não seria nossa
responsabilidade possibilitar um processo que faça o ser humano se conhecer melhor, voltar às
suas origens, rever sua história e interpretar o mundo a partir de si? Promover uma criação a
partir de seu tesouro particular? Assim teve início esta busca, que pretende ser um processo de
aprendizado, estabelecendo inter-relações entre professor/diretor e aluno/ator, possibilitando-os
vivenciar, efetivamente e afetivamente, as experiências, comuns ou não, para que partilhem
suas riquezas e descubram, juntos, mundos sempre novos e nunca previstos.
O meu objetivo incide sobre o que acontece com pessoas comuns. Com isso, pretendo
que este processo nos guie até novas encruzilhadas e, a partir daí, elas nos levem sempre a
outras novas. Acredito que essa busca auxilie os processos de criação, proporcionando
momentos em que o ser humano esteja ligado efetivamente ao processo de montagem de uma
peça, ao conhecimento, à arte/vida, fazendo do trabalho cênico algo participativo e não uma
autocracia do diretor. Este trabalho, por sua vez, busca um caminho que valorize o sentimento e
a criatividade, como afirma Adélia Prado (1986, p. 124): “Minha mãe achava estudo a coisa
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mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento”. Assim, pretendi partir
da minha trajetória de formação para pensar a educação, construindo um texto coerente com o
que eu proponho.
Aos dezessete anos, ingressei no Seminário Católico da Diocese de Leopoldina. Lá
conheci o termo “formação” e percebi que era uma ideia fortemente defendida pelo reitor. Ele
acreditava que todos nós deveríamos ser formados: entrar em uma fôrma para adquirirmos
formatos, tornar iguais uns aos outros, para que, ao término do período de “formação”, não
houvesse diferenças. Assim, seríamos programados para um trabalho, uma profissão.
Proponho, então, uma reflexão sobre “formação” diferente da “formatação”, da “fôrma”
e próxima da escultura. Cada um deve se formar, tomar forma, cada um à sua maneira. Então,
eu posso me esculpir, posso ser minha própria escultura e modificá-la quando sentir
necessidade. O formador, então, deveria ser o coreógrafo, o diretor de teatro, o artista, o
professor, que não deve pretender dominar o outro, mas libertá-lo. Kandinsky afirma que a obra
é composta por conteúdo e forma, sendo o conteúdo a “[...] emoção da alma do artista que
possui a capacidade de suscitar uma emoção análoga na alma do expectador” (KANDINSKY,
1996, p. 170). Não deveríamos então despertar este conteúdo em nossos alunos?
Ter uma pedagogia terna proporcionaria a comunicação com o mundo pela via do afeto.
É o que o artista plástico Vik Muniz alcançou, por exemplo, com Tião Santos e seus
companheiros de trabalho no Aterro Sanitário de Jardim Gramacho (Rio de Janeiro). O
documentário “Lixo extraordinário” (2010), partiu das experiências dos catadores de material
reciclado e emocionaram o mundo. Suas obras estão carregadas de sentido, pois são feitas a
partir da realidade e dos sonhos das pessoas que participaram dela. Ele promoveu um processo
que desencadeou vários outros processos nas vidas destas pessoas. Possibilitou-lhes uma
vivência artística que abriu milhares de possibilidades. O lixo que manuseavam era arte e eles
haviam contribuído com cada pedaço de material, como mostra a figura 1, a seguir:
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Figura 1 – Sem título
A busca que pretendo realizar tem como objetivo construir laços, espalhar afeto,
possibilitar uma experiência real de se fazer arte, de se fazer saber que se aproxima ao despertar
social possibilitado pelo fazer artístico no documentário “Lixo Extraordinário”. Tentar fazer
uma busca de saber saborosa, agradável. Uma busca não de um método, fechado, com fôrmas e
receitas. Mas sim, um processo de criação, de conhecimento do mundo e de si.
Essa busca faz do educador um ser parecido com o pequeno Trevor: um propagador de
algo que realmente tem valor; alguém que tem um propósito e pode até ter um modelo
matemático, mas tem como objetivo, a libertação do indivíduo.
Fui convidado, no ano de 2010, para montar uma apresentação de teatro com operários
de uma empresa de estruturas metálicas. A direção solicitou um trabalho que pudesse ser
apresentado na festa de confraternização de fim de ano. Entre os funcionários que participaram
do processo de montagem, estava um que me chamou a atenção - aqui vou me referir a ele
como Antônio, para preservar sua verdadeira identidade. Ele participou de todos os encontros
que fizemos e respondeu ao trabalho proposto de forma impressionante. Busquei aplicar, neste
trabalho, tudo o que será discutido aqui e me surpreendi com o resultado simples e profundo
realizado pelos funcionários.
A prática mostrou que essa é uma experiência que reúne pessoas e agrupa os seres
humanos sem uniformizar. Todos juntos se tornam uma grande paisagem artística, porque cada
um é uma peça única, insubstituível, uma escultura diferente, uma formação diferente com seu
próprio aspecto. Contudo, quando tudo se agrupa, se encaixando ou não, criam-se relações,
criam-se diálogos, nada parece se concluir, nada parece se fechar. Quando se abre a cortina,
começa o espetáculo. É outro jogo, é nova história. Surgem novas dúvidas, há necessidade, há
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falta. É preciso mais e mais arte e sempre mais.
Segundo Lobo (2008, p. 145), “[...] não existe dança quando só temos a estrutura, sem
intenção e sem poesia, como numa simples ginástica, onde se apresentam somente habilidades
físicas”. Como posso chamar de arte um processo que massacra e anula o ser humano para
cumprir metas, datas, valores... “A arte nunca provém apenas do cérebro. Conhecemos grandes
pinturas que nasceram unicamente do coração. Em geral, o equilíbrio entre o cérebro (momento
consciente) e o coração (momento inconsciente, intuição) é uma das leis da criação, uma lei tão
antiga quanto a humanidade” (KANDINSKY, 1996, p. 247). Kandinsky ainda afirma que “Não
se deve, pois, abordar a arte com a razão e a inteligência, mas com a alma, com a existência
vivida.” (1996, p. 167).
Platão e Aristóteles desenvolveram teorias que resultaram em formas diferentes de
pensar a educação. Elas podem ser questionadas, mas auxiliaram a humanidade no processo de
transmissão de conhecimento. O Inatismo de Platão e o Empirismo de Aristóteles inspiraram
métodos que podemos perceber na obra de Cora Coralina:
[...] Uma pataca – trezentos e vinte. Duas patacas – seiscentos e quarenta. Três patacas – novecentos e sessenta. Quatro patacas – mil duzentos e quarenta. Cinco patacas... Não houve jeito de acertar. Números e somas se baralhavam no crivo da parede, na cabeça do Zezinho. Aí entrou a palmatória e entrou rijo. “Chega, meu tio”, gritava o menino... “Chega, meu tio” e a palmatória subindo e descendo no compaço cadenciado da rude punição – um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, ia contando minha tia com o coração em suspenso, com as mãos nos ouvidos e o rosto lavado de lágrimas. Silenciou a palmatória. Cincou seu delator – um bem-te-vi – gritou no alto do coqueiro, Cambraia mugiu na mangueira lambendo a cria novinha. Ficou boiando no ar tranquilo da tarde sertaneja o soluço estertorado da criança assoando o nariz na fralda de camisa e voltando de novo às patacas. (CORALINA, 2001, p.28)
Decorar as capitais dos estados e dos países, a tabuada, as datas comemorativas, a lista
de coletivos, os mandamentos, os pecados capitais, a “Ave-Maria”, o “Pai Nosso”, o texto da
peça de teatro, as marcas e os movimentos de palco... Da necessidade de mudança, surgiu o
pensamento “Construtivista”, que parte do princípio de que o professor é o facilitador do
aprendizado. Segundo o epistemólogo Jean Piaget, o educando tem suas próprias
potencialidades, que precisam de um meio favorável para que se consolidem. Não basta haver
contato com o conhecimento, é preciso agir sobre o objeto de pesquisa e modificá-lo. Há ainda
quem afirme que é preciso uma pedagogia reconstrutivista. O Educador Pedro Demo afirma
categoricamente: “Se a criança é levada a buscar seu material, a fazer sua elaboração, a se
expressar argumentando, a buscar fundamentar o que diz, a fazer uma crítica ao que vê e lê, ela
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vai amanhecendo como sujeito capaz de uma proposta própria.” Pedro Demo defende a
pesquisa como um modo de educar.
É a noção do sujeito autônomo que se emancipa através de sua consciência crítica e da capacidade de fazer propostas próprias. Isso tudo tem por traz a idéia da reconstrução, mas também agrega todo o patrimônio de Paulo Freire e dá “politicidade”, porque nós estamos na educação formando o sujeito capaz de ter história própria, e não história copiada, reproduzida, na sombra dos outros, parasitária. Uma história que permita ao sujeito participar da sociedade. (DEMO, 2000)
Para Spolin (2006, p. 20), “Ensinar/aprender deveria ser uma experiência feliz, alegre,
tão plena de descoberta quanto a superação da criança que sai das limitações do engatinhar para
o primeiro passo – o andar!”. É preciso despertar, na pessoa, o prazer de descobrir sempre
mundos novos. O autor propõe momentos onde o autoritarismo é colocado de lado e uma
vivência libertadora assume o lugar em sala. O professor é convidado a ser um facilitador do
aprendizado. É essa situação que possibilita ao educando ter uma consciência crítica e
desenvolver a capacidade de fazer propostas próprias, como afirma Pedro Demo (2000). “O
educador deve assumir que não sabe tudo e que também será um eterno aprendiz”.
O ser humano não só se alimenta da arte, ele a vive. Arte é vida. Para viver, é preciso
aprender de novo, sair do comodismo e alçar vôos mais altos. “Precisa separar da segurança
dos saberes, dos métodos e das linguagens que ele possui e que o possui” (LARROSA, 2010, p.
7). Precisa fazer calar sua arrogância para deixar-se aventurar na sabedoria. As artes cênicas se
escrevem e acontecem em nossos corpos. “[...] O corpo é sempre e antes de tudo uma entidade
real, uma realidade material, o substrato carnal de cada pessoa [...]” (MARZANO-PARISOLI,
2004, p. 24). A sociedade limita e oprime o corpo. Ela tenta moldá-lo segundo os padrões do
mercado e acaba por excluir os que não se encaixam nessas regras. Segundo Montagu (1988), a
infância de toda pessoa é o primeiro momento de modelagem do corpo. Nesse período, o
adulto, responsável pela criança, deixa suas marcas, que a influenciarão pelo resto de sua vida.
É no corpo que experimentamos as sensações que provêm dos sentidos, que
expressamos os sentimentos e nos comunicamos com o que está ao nosso redor. É através do
corpo que aprendemos e ensinamos, por isso, é necessário libertar o corpo do aluno. A artista
Nazareth Pacheco, levanta a discussão acerca do corpo com sua obra, conforme a figura 2:
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Figura 2 – Sem título
Ela quer mostrar a necessidade do cuidado com o corpo de forma integral e verdadeira e
não uma falsa valorização que dita regras desumanas, reduzindo o corpo a um objeto, muitas
vezes ferido e torturado, preso em uma cultura da beleza a todo custo. Sendo assim, nós,
educadores, precisamos descobrir meios de libertar esse corpo, e um entre outros foi
estruturado por Lenora Lobo e Cássia Navas (2007, p. 75), com base em três eixos
fundamentais: “corpo cênico, movimento estruturado e imaginário criativo”. Eles formam o
triângulo da composição, que estimula, norteia e elabora os processos criativos.
O corpo cênico é matéria que se expressa ao outro. “E o corpo humano é, digamos
assim, o lugar natural da percepção e do conhecimento do mundo” (LARA, 2004, p. 17). É
preciso que o educando tenha contato com seu próprio corpo, para perceber e aguçar seus
sentidos. Conhecendo a si, ele brinca e entende seus mecanismos. Ele adquire consciência de
seus sistemas ósseo, articular e muscular e, também, conhece suas habilidades motoras. Ele
trabalha suas intenções e as expressividades das partes do corpo e do todo, corporificando as
emoções, para construir suas personagens, lançando mão de estímulos internos e externos.
Em um processo de trabalho é preciso levar em conta que o corpo é único e diferente.
Cada um tem suas experiências, seu universo específico, e é importante que estas experiências
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sejam levadas em conta, mas que a prioridade do trabalho seja a libertação desse corpo. “Cada
tipo de arte deve liberar a quem a estuda e não convertê-lo em prosélito [...]” (LARROSA,
2010, p.51). Quando auxilio a libertação do corpo do meu aluno das amarras que lhe foram
impostas, ele passa a ser sujeito de sua história e isso possibilita a arte. Klauss Vianna no livro
“Teatro do Movimento” corrobora esse argumento:
A essência do trabalho corporal que proponho é a busca da sintonia e da harmonia com nosso próprio corpo, o que possibilita chegar à elaboração de uma dança singular, original, diferenciada, e por isso mesmo rica em movimento e expressão. Para ser interprete de minhas emoções, tenho necessariamente que me despojar de uma imagem que me foi de alguma forma imposta para adotar a postura que corresponde à minha trajetória pessoal e à minha existência quotidiana. É o mesmo que apagar um quadro cheio de frases vazias que me foram ditadas, para dar início ao aprendizado de um novo alfabeto, de uma nova linguagem capaz de traduzir aquilo que verdadeiramente sinto e quero expressar. (LOBO, 2007, p. 82)
O “corpo cênico” e o “imaginário criativo” contam com um terceiro elemento para
formar esse Triângulo da Composição: o “movimento estruturado”, que é parte de uma
estrutura organizada pelo coreógrafo Rudolf Laban. Isso permitiu entender o movimento a
partir de cinco pontos importantes: corpo, ação, espaço, relacionamento e dinâmica. Cada um
deles possui desdobramentos que se aprofundam e proporcionam uma experiência rica na busca
do movimento. Mas aqui prefiro ater-me ao “imaginário criativo”, que se constitui como
elemento de minha pesquisa. “Luz da criação” tal como afirmam as mesmas autoras, Lobo e
Navas (2008, p. 31). O imaginário criativo é o terreno onde nossas memórias habitam, é o que
se manifesta na criação, quando o artista toma consciência do que quer expressar.
“No Teatro do Movimento, o vértice do imaginário criativo se propõe a estimular o desenvolvimento da imaginação criativa do artista corporal que é capaz de evocar e recordar imagens percebidas e concebê-las por meio do ato de imaginar, corporificando-as em linguagem não verbal.” (LOBO; NAVAS, 2008, p. 32).
O elemento imaginário criativo busca o estímulo da imaginação criativa da pessoa que,
pela recordação de sua própria vida, corporifica suas impressões, transformando-as em
linguagem. O trabalho didático a partir desse vértice se divide em três momentos:
sensibilização, improvisação e conclusão. O início do trabalho deve dar-se com estímulos à
força criadora, que acontece a partir da percepção, da sensação, do sentimento, das emoções, da
memória, da imaginação e das demais nascentes, tudo isso perpassando pelas propostas
artísticas que estimulam e exercitam todas essas questões. Após os estímulos, a criação segue
os estímulos básicos ao movimento, que são as respostas do corpo por vias sensorial, motora,
vocal, musical e espacial. O terceiro passo seria a improvisação e a investigação, quando
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surgem os temas variados seguidos de perguntas e ideias que culminam em improvisação e em
uma pesquisa que tem como objetivo a investigação dos movimentos. Há, então, a seleção dos
movimentos, por via da percepção e da repetição, que configuram, no corpo, as formas desses
movimentos. A partir daí as cenas são construídas, revistas e analisadas.
A partir das propostas das autoras, deu-se início um processo com os funcionários da
empresa de estruturas metálicas. Primeiramente foram aplicados exercícios voltados para a
formação do grupo, criando uma relação forte entre os participantes, para que houvesse afeto,
uma “liga” entre esses diferentes corpos. Foram aplicados jogos teatrais e dramáticos,
juntamente com exercícios de consciência vocal e corporal. O trabalho procurou desbloquear a
energia criativa de cada um.
Após a sensibilização corporal e o aquecimento, foi pedido a cada um que pensasse em
três momentos de suas vidas. Em seguida, cada um deveria descrever livremente os momentos
escolhidos. Após a descrição, os momentos foram revividos e experimentados no corpo. Eles
escolheram um movimento correspondente a cada momento. Os três movimentos foram
enumerados, criando uma ordem entre eles. Foram experimentados os movimentos com partes
do corpo diferentes e trabalhados os quatro fatores de movimento: tempo, espaço, força e
fluência. Quando os movimentos e as emoções estavam claros para cada participante, foi
proposto que estruturassem uma partitura de movimentos. Antônio, por exemplo, havia
escolhido três momentos de sua vida, sendo: 1º- Pegar seu filho nos braços; 2º- Dançar com seu
filho; 3º- Um dia em que gritou com seu filho. Agora, ele havia experimentado esses três
movimentos de várias formas e deveria escolher os resultados dessa pesquisa. Seu 1º
movimento agora era composto por três outros movimentos, o 1.1, o 1.2 e o 1.3. Assim, com
cada movimento desdobrado em três novos movimentos, eles tinham nove movimentos que
compunham uma partitura e que agora não eram mais apenas três lembranças, eram uma obra
criada por ele. Foram trabalhadas as ligações de um movimento ao outro, não deixando que se
fragmentassem. Antônio tinha um material próprio, de que poderia lançar mão durante as cenas
que seriam marcadas nos próximos encontros.
Quando o movimento número 3 de Antônio sofreu mudanças provocadas por ele
mesmo, esse movimento adquiriu uma nova forma, pois, agora, não era mais uma briga com o
filho, mas uma nova história, ou melhor, três novas histórias. Com o pé, ele havia feito uma
variação do movimento inicial que era feito com a mão: o que antes era um sinal de ordem para
o filho agora, por ser transportado para o pé, era um chute em uma bola de forma
desengonçada, que o fazia quase cair no chão. A partir dessa situação, ele passou a achar graça
e sorrir por ter chutado tão mal. Assim, muitas novas histórias começaram a emergir.
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Chegou, então, o momento de experimentar, na cena, os movimentos do repertório de
cada pessoa. O jogo das cenas não foi imposto, já que eles mesmos jogavam e se propunham a
movimentar-se. O movimento de número 2 havia se transformado em 2.1, 2.2 e 2.3,
propiciando-lhes criar outras situações, pois o movimento 2.1 precisava de ajustes quando era
colocado em cena. Assim, criava-se uma nova subdivisão, o movimento 2.1.1. Essa dinâmica
ocorreu até o momento em que muitos outros movimentos foram surgindo e eles se viram livres
para criar tantos quanto exigiam as cenas. O modelo matemático de Trevor serviu
apropriadamente, representando uma analogia para este contexto.
Segundo Paiva (2010, p. 30), “[...] progressão geométrica (PG) é toda sequência
numérica em que cada termo, a partir do segundo, é igual ao produto do termo anterior por uma
constante q. O número q é chamado de razão da progressão geométrica.” Por exemplo, a
proposta de Trevor, o menino de oito anos do filme “A corrente do bem”, que começa a
praticar o bem para três pessoas e, em seguida, cada uma delas faz, também, uma boa ação para
outras três e, assim, sucessivamente. Ou seja, o modelo matemático é a formação de uma PG,
cuja sequência é: 1, 3, 9, 27, 81, (...). O número 1 representa o garoto Trevor; o 3, as três
pessoas que receberam uma boa ação dele; o 9, são as pessoas que receberam o “bem” proposto
por cada um daqueles que receberam a boa ação de Trevor e, assim, sucessivamente, podendo
ganhar proporções gigantescas quanto ao envolvimento das pessoas. Aqui, a PG é apenas um
modelo, usado para ajudar na criação de movimentos. A intenção deste trabalho é realizar uma
experiência humana, possível a qualquer um. Boal (2009) confirma que:
O nosso trabalho não pode nunca – por mais sucesso que tenha – se reduzir a transformar cidadãos comuns, capacitando-os para representação dentro de um teatro. Fazer isso é apenas dar uma especialidade a essas pessoas, que vão participar de um conjunto ao qual se dá o nome de atores, aos quais, por sua vez, dá-se o nome de elenco. Mas não queremos só transformar o cidadão em ator; queremos tornar pleno o ser humano, desenvolvê-lo. E a única maneira de fazê-lo perceber a realidade naquilo que ela tem de mais profunda é através da arte! Dostoievski dizia: “Só a beleza salvará o mundo”. Isso é verdade! Porque o artista é aquela pessoa que, ao ver o conjunto, não se satisfaz com ele. Sabendo-se único, ele busca a unicidades também. (BOAL, 2009, p. 183)
Antônio descobriu como era sua personagem: o Senhor Scrooge de “Um conto de
Natal” de Charles Dickens, percebeu que entre muitas outras coisas, ele não só tinha um patrão
exigente e muitas vezes nervoso, como ele próprio ficava nervoso com o filho e foi isso que ele
emprestou ao seu personagem. Ele nunca teve um empregado a quem devesse distribuir
funções, mas tem um filho a quem precisa direcionar uma postura impregnada de valores
positivos diante da vida e, para seu filho, muitas vezes disse não ao invés de praticar afeto. O
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Scrooge de Antônio pode ser diferente de qualquer outro Scrooge que foi ou será feito, pois
interpretar esta personagem é algo que se repete todos os anos em vários lugares, mas o
Scrooge de Antônio era só dele, e era espetacular.
Nesse contexto, na educação, podemos, também, praticar o afeto uns com os outros.
Isso faz parte da formação do ser enquanto humano, como bem afirmou Larrosa (2010):
A formação é uma viagem aberta uma viagem que não pode estar antecipada, e uma viagem interior, uma viagem na qual alguém se deixa influenciar a si próprio, se deixa seduzir e solicitar por quem vai ao seu encontro e na qual a questão é esse próprio alguém, a constituição desse próprio alguém, e a prova e desestabilização e eventual transformação desse próprio alguém. Por isso a experiência formativa, da mesma maneira que a experiência estética, é uma chamada que não é transitiva. E, justamente por isso, não suporta o imperativo, não pode nunca intimidar, não pode pretender dominar aquele que aprende, capturá-lo, apoderar-se dele. O que essa relação interior produz não pode nunca estar previsto [...] (LARROSA, 2010, p. 53)
A citação acima confirma que as relações estabelecidas com afeto podem, efetivamente,
transformar, ou até mesmo, romper as atitudes que comprometem negativamente a formação do
sujeito. E “[...]o imaginário criativo é aquilo que pode transformar, pois ele é a energia que
impulsiona para a criação [...]” (LOBO; NAVAS, 2008, p.22).
Vik Muniz e Trevor ajudam no entendimento de que o ser humano deve ser despertado
para sua importância diante da vida. É o que diz a raposa de Exupèry:
Eu me julgava rico por ter uma flor única, e possuo penas uma rosa comum. Uma rosa e três vulcões que não passam do meu joelho, estando um, talvez, extinto para sempre. Isso não faz de mim um príncipe muito poderoso... [...] E foi então que apareceu a raposa. [...] Disse o principezinho: [...] - Que quer dizer "cativar"? - Tu não és daqui - disse a raposa. - que procuras? - Procuro os homens - disse o pequeno príncipe. - Que quer dizer "cativar"? - É algo quase sempre esquecido - disse a raposa. - significa "criar laços"... [...] - Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer. - A gente só conhece bem as coisas que cativou - disse a raposa. [...] Eis o meu segredo. É muito simples: Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. [...] Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão importante. [...] Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela tua rosa... (SAINT-EXUPÉRY, 2006, p. 66)
Uma pedagogia que tenha como base a ternura proporciona ao indivíduo uma
experiência da arte efetiva e afetiva. Ele cria “laços”, “liga”. Há envolvimento da pessoa com o
processo de trabalho. Não se faz por fazer, se faz por prazer. Ao final do processo, o resultado
seria expressão sincera e não uma lista de marcas e movimentos ditados por outra pessoa.
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Este trabalho, pretende auxiliar educadores que queiram desenvolver um projeto
artístico, na prevenção contra uma reprodução mecânica e vazia, vivenciando, assim, uma
experiência artística verdadeira. Dessa forma, trazendo liberdade de pensamento para as
pessoas que estão nesse processo. Como bem afirmou Boal (2009, p. 175): “O pensamento não
pode ser feito no claustro; ele tem que estar sempre na referência da realidade.”
A rosa do Pequeno Príncipe era especial porque tinha uma história, havia uma relação
diferente entre ele e a sua rosa, das outras tantas rosas existentes. Quando assistimos ao
documentário Lixo Extraordinário (2010), percebemos que o mais importante é a vida das
pessoas e o quanto o cotidiano delas nos impressiona. As obras desenvolvidas pelos catadores
de materiais recicláveis juntamente com Vik Muniz são de extrema beleza, mas o processo de
criação é que faz essas obras serem tão especiais. A valorização do indivíduo pode ser a fonte
para a solução de muitos problemas que enfrentamos em sala de aula e na vida.
Uma pedagogia do afeto seria uma pedagogia que leve em consideração o estado
emocional das pessoas que se envolvem em qualquer processo artístico/educacional e
proporcione um bom resultado neste processo. Segundo Ligiéro, o que fazemos é um teatro de
busca, que apresenta mais preocupação com o processo do que com o resultado. “Registramos
o que sentimos em comum, o nosso crescimento como grupo e indivíduo, tentemos despertar
dentro de nós a criação, conhecê-la, cheirá-la, observá-la (deixar que), permitindo que ela
influa beneficamente em nossa vida. Procuramos descobrir o prazer de criar.” (LIGIÉRO, 2009,
p. 19). Essa pedagogia não traz imposições. Ela convida à um criação coletiva.
REFERÊNCIAS
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