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A caixa Produção Cultural no Brasil traz 100 entrevistas com gestores, produtores, agitadores e profissionais da cultura brasileira, criando um panorama fundamental para o pensamento sobre cultura contemporânea. O projeto foi realizado em parceria com o Ministério da Cultura e a Cinemateca Brasileira.
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[ 2010 ]Beco do Azougue editoriAl ltdA.ruA JArdim Botânico, 674 sAlA 605ceP 22461-000 - rio de JAneiro - rJtel/fAx 55_21_2259-7712
www.Azougue.com.Br
Azougue - mAis que umA editorA, um PActo com A culturA
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
P956v.4 Produção cultural, volume 4 / - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010. 5v. ISBN 978-85-7920-049-6 1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Música - Brasil. 3. Intelectuais - Brasil - Entrevistas. I. Cohn, Sergio. II. Maleronka, Fábio.
10-5890. CDD: 869.909 CDU: 821.134.3(81)(091)
11.11.10 18.11.10 022686
coordenAção gerAl do ProJeto e entrevistAs
fABio mAleronkA ferron | BeiJo técnico
coordenAção editoriAl, entrevistAs e edição finAl dos textos
sergio cohn | Azougue editoriAl
ProJeto gráfico e cAPA
cArolinA noury | Azougue editoriAl
PrePArAção de texto
heyk PimentA, ismAr tirelli neto, lArissA Pinho Alves e luAnA mAriA | Azougue editoriAl
revisão
eduArdo coelho, evelyn rochA, letíciA féres e victor heringer
fotogrAfiAs
gABrielA BArreto, leo cAoBelli, PAulo fehlAuer e rodrigo mArcondes | gArAPA multimídiA
PesquisA
georgiA nicolAu, fernAndA versolAtto e lAurA godoy
PArticiPAção esPeciAl em entrevistAs
Aline rABelo, Aloísio milAni, liA rAngel, lucAs Pretti e rodrigo sAvAzoni
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MINISTÉRIO DA CULTURA
João Luiz Silva Ferreira (Juca Ferreira)
Ministro de Estado da Cultura
Alfredo Manevy
Secretário Executivo
José Luiz Herencia
Secretário de Políticas Culturais
Afonso Luz
Diretor de Estudos e Monitoramento de Políticas Culturais
CINEMATECA
Carlos Magalhães
Diretor Executivo
SAC | SOCIEDADE AMIGOS DA CINEMATECA
Maria Dora Genis Mourão
Presidente da Diretoria Executiva
Leopold Nosek
Vice-Presidente da Diretoria Executiva
Os depoimentos reunidos nestes livros – bem como os materiais audiovi-
suais relativos, à disposição de todos, na internet – são esclarecedores e to-
cantes. São testemunhos de como se realiza a arte e a cultura no Brasil, não
apenas nos anos mais recentes, mas ao longo das últimas décadas. A escolha
dos entrevistados reflete esse interesse comparativo e reflete a disposição
de ouvir diferentes gerações, profissionais de múltiplas procedências, com
variada formação, variadas trajetórias e experiências complementares. Essa
diversidade constitui a riqueza desta série, sobretudo quando considerada
em seu conjunto, aliás, sem precedentes na vida cultural brasileira.
Sabemos que o Brasil é um país multifacetado, com particularidades e
disparidades regionais e locais. Um país cuja compreensão exige de nós um
olhar aberto para essas variações. Num projeto como este, este olhar é fun-
damental. Se aquilo que está em questão é tentarmos compreender a com-
plexidade de uma cultura e seus modos de elaboração, isso é impensável
sem um cuidado especial, sem um olhar atento para essa diversidade.
Nesses cinco volumes, todos temos a oportunidade de conhecer melhor
figuras estruturais do sistema artístico e cultural brasileiro. Seus leitores te-
rão também a opotunidade de reencontrar antigos conhecidos – além de
poderem conhecer os “novos”, os que surgiram na cena da nossa produção
cultural mais recente. Desses contrastes e dessas perspectivas faz-se a for-
ça da produção artística e cultural brasileira, de nossos artistas, produtores,
técnicos, pesquisadores e gestores de instituições públicas e privadas.
A política cultural brasileira atingiu um nível inédito de formulação, base
para o surgimento de instrumentos de planejamento e marcos legais que
fortaleçam as instituições culturais brasileiras e tornem os dispositivos de
financiamento à arte e à cultura, bem como o sistema de propriedade inte-
lectual, capazes de enfrentar os desafios do Século XXI.
Nada disso seria possível, contudo, sem o intenso e extenso diálogo que a
série Produção Cultural no Brasil representa, como conquista, sim, de todos
os que estão presentes no projeto, mas também dos milhares de profissio-
nais eventualmente ausentes desse recorte.
Nossos aplausos para todos eles!
José Luiz Herencia
Secretário de Políticas Culturais
Ministério da Cultura
empresários culturais
André Midani
Executivo da indústria fonográfica
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Luiz Calanca
Proprietário da loja de discos Baratos Afins
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Rui Campos
Fundador da Livraria da Travessa
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Mileide Flores
Proprietária da livraria Feira do Livro
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Lucia Riff
Agente literária (Agência Riff)
61
Paulo Mendonça
Diretor do Canal Brasil
75
Adhemar Oliveira
Fundador da rede exibidora Espaço de Cinema
83
Jochen Volz
Curador do Instituto Inhotim
103
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Edu Brandão
Sócio-proprietário da Galeria Vermelho
113
Márcio Botner
Artista plástico e fundador da galeria A Gentil Carioca
125
Maurício de Souza
Empresário e cartunista
135
Toninho Mendes
Editor e criador da Circo Editorial
143
profissionais culturais
Paulo Henriques Britto
Poeta e tradutor
151
Gilda Mattoso
Assessora de imprensa
167
Fátima Toledo
Preparadora de elenco
175
Phillipe Arruda
Produtor executivo da Animaking
183
Geber Ramalho
Membro do Porto Digital e professor de Entretenimento Digital na UFPE
191
9
Florence White
Restauradora de obras de arte
199
Allen Rescoe
Executor de esculturas
207
Vergílio Lima
Luthier
213
Paulo Barros
Carnavalesco
223
Bruna Christofaro
Cenógrafa e diretora de arte
233
Rachel Ribas
Atriz, cenógrafa e aderecista, co-criadora do Grupo Contadores de Estórias
241
Gil Santos
Coordenador técnico do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro
249
Sergipe
Catering de cinema
257
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CULTURAISEMPRESÁRIOS
Adhemar Oliveira Jochen Volz
Edu Brandão Márcio Botner
Maurício de Souza Toninho Mendes
André Midani Luiz Calanca Rui Campos Mileide Flores Lucia Riff Paulo Mendonça
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AndréMidani
Executivo da indústria fonográfica.
Como começou o seu trabalho como empresário de música no Brasil?
Aconteceu meio por acaso. Eu estava na França, comecei a trabalhar
na indústria fonográfica, em postos muito modestos, mas com muito en-
tusiasmo, e veio a guerra da Argélia. Todas as guerras são estúpidas, mas
essa tinha um conteúdo ainda mais estúpido que muitas outras. Como sou
metade árabe, achei incongruente fazer uma guerra contra os árabes, então
desertei. Peguei um navio, pensava em ir para Buenos Aires, mas, quando o
navio entrou na baía de Guanabara, eu achei aquilo a coisa mais bonita que
eu já tinha visto na minha vida e desci. Não conhecia ninguém, não falava a
língua, mas procurei trabalhos em companhias de disco. Já naquela época
tinha muitas companhias, e três ou quatro dias depois comecei a trabalhar.
Durante certo tempo, selecionei o que se chamava “repertório internacional”,
depois comecei a beliscar a confecção de capas de discos brasileiros, porque
naquela época, entre 1955 e 1956, eu achava as capas horrorosas. Paralelo
a isso, entrei em contato com um grupo de jovens músicos. Na verdade, foi
um fotógrafo que me apresentou aos amigos dos seus filhos, dizendo-me
que eles faziam música, que ele não sabia se era boa ou ruim, mas que eram
ótimas pessoas e que eu ia me dar bem com elas. Marcamos um dia para nos
encontrarmos, e entrou Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, Ronaldo Bôscoli,
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Nara Leão, toda essa gente. Eles tocaram e eu achei fantástico! Pouco tempo
depois, por coincidência, eu conheci o Tom Jobim e o João Gilberto, e dali se
formou o que depois seria chamado de bossa nova.
Você mencionou em seu livro que a gravadora não conseguia alcançar o
público com a bossa nova. Como foi essa questão?
O difícil foi se comunicar com a juventude brasileira da época, porque
toda a estrutura de jornais, a televisão, que era incipiente naquela época, a
Rádio Nacional (santa Rádio Nacional, não é?), tudo isso estava organizado
confortavelmente para lidar com as grandes vozes que, já naquela época, eu
chamaria “do passado”. Tem uma história que é até conhecida, mas que talvez
interesse. Poucos dias depois do João Gilberto terminar de gravar o Chega de
saudade, eu fui a São Paulo mostrar essa maravilha, e toquei o acetato para o
gerente comercial da Odeon, o Oswaldo Gurzoni, que era uma pessoa mara-
vilhosa, mas de um outro tipo de cultura, e os vendedores da gravadora, que
ele chamou porque eu tinha dito que ia apresentar uma coisa monumental.
Enfim, toquei o acetato e, quando acabou, o Oswaldo tirou a agulha, pegou o
acetato, jogou no chão e disse: “Isso, meu filho, é música para veado! Nunca
vai tocar! Nunca vai vender!” E ele não fez isso de maldade, foi incapacidade.
Então o que a gente fez foi passar por cima de todas as mídias. Eu não era um
grande patrão ainda; pegava no pesado também. Tanto no Rio quanto em São
Paulo a gente ia para a saída dos colégios e distribuía o Chega de saudade em
78 rotações. Foram várias centenas em São Paulo e várias centenas no Rio, e
tivemos sorte, porque os meninos que tinham ganhado os discos chegavam
em casa, chamavam os amigos e diziam: “Olha isso!”, o que facilitou muito,
porque eles se tornaram os divulgadores, telefonavam para as estações de
rádio, queriam que elas tocassem isso, tocassem aquilo. E a gente organizou
concertos em colégios e faculdades. Aí vocês conhecem o resto da história.
Quem é André Midani na cena musical brasileira?
É um camarada que não era nem músico. Foi um péssimo baterista, ado-
rava a música e trabalhou feito um danado o tempo todo, para ser o melhor
empregado possível a serviço do artista. E quando eu digo “a serviço do artista”
não é de uma forma demagoga. Absolutamente! Eu fui adequado e capaz para
um número substancial de artistas, e tive a sorte de esses artistas se tornarem,
posteriormente, muito conhecidos, mas eu devo ter sido excepcionalmente
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rigoroso, decepcionante e rude com outros artistas com os quais eu não ti-
nha uma afinidade muito grande ou tanta confiança no talento deles. André
Midani é isso, um camarada que trabalhou pra burro.
Eu era considerado uma pessoa moderna, muito moderna. Sem querer
ser moderno, mas é isso. Naquela época, os empresários, meus colegas das
companhias de disco, tinham por missão, ou vocação, fazer com que a fábrica
fosse bem administrada, que os depósitos estivessem bem sortidos, que os
estúdios de gravação fossem rentáveis. Havia esta tradição no mercado de
discos, que o patrão era a pessoa que cuidava dos ativos da companhia. E eu
muito cedo entendi que o melhor ativo que uma companhia de discos pode
ter são os seus artistas, porque se você tiver uma fábrica, muito bem, mas
se não tiver, aluga. Com o estúdio, a mesma coisa: se não tiver, aluga. Agora,
você não vai alugar um artista! E não é uma fábrica que vai te fazer vender
discos, é, outra vez, o artista. O artista e o marketing do artista. Todo mundo
acha essa palavra horrorosa, porque o abuso e uso a tornaram vulgar, mas
marketing é uma coisa indispensável e honrada, se você a utiliza bem. Espero
ter respondido quem é o tal do André Midani.
Sobre essa questão entre o empresário e o produtor. Você se vê como um
empresário da música, não é? O que é isso?
Ser empresário da música é, primeiro, um privilégio, porque é um desafio.
Você tem o lucro de um lado e o artista do outro lado. É a coisa do equilíbrio,
você ter artistas de qualidade e lucro de qualidade. Isso é uma coisa que não
é tão fácil. Você pode ter um lucro formidável com um artista que lhe dá uma
venda fácil, mas tentar dar lucro com um artista que você reconhece que tem
talento e que exige um público mais seletivo, é um pouco difícil. Eu acho um
privilégio quando você tem esse tipo de responsabilidade e, graças ao seu tra-
balho e ao trabalho das pessoas que te cercam, você consegue vender artistas
de boa qualidade e torná-los rentáveis para a sua companhia. Isso é o ideal
para qualquer indústria fonográfica, qualquer companhia cinematográfica,
qualquer empresa jornalística: ter bons colaboradores e ganhar dinheiro.
Na década de 1980, os produtores começaram a falar que iam fabricar o
artista. É possível fabricar um artista?
Não. Não. Não. Quer dizer, é possível fabricar um artista que tenha um
talento, mas a palavra “fabricar’’, nesse caso, não é adequada. Vamos tomar
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como exemplo os Beatles. Quando eles surgiram, todo mundo disse que esta-
vam sendo fabricados, mas tanto não foram fabricados que duraram o tempo
que duraram e, até hoje, vemos as consequências de suas atuações, das suas
performances. Na época, houve quem quisesse lançar seus próprios Beatles.
O mais famoso deles foi os Monkeys, que foram absolutamente fabricados.
Os quatro foram selecionados segundo critérios adequados para a época, as
músicas foram escritas com critérios da época. Meteu muito dinheiro. Foi a
resposta norte-americana à invasão inglesa, mas ninguém sabe mais quem
são os Monkeys. Então você pode botar o dinheiro que você quiser, o artista
vai durar um ano, dois, três. Se durar mais do que isso, é porque esse artista
que você acha que não tem talento, tem. Você é que não viu nos primeiros
passos. A Madonna, por exemplo. Todo mundo diz que ela não tem talento,
mas sem talento como é que ela resiste há 25, 27 anos, e com as pessoas ainda
falando dela? Estou tomando a Madonna como um exemplo. É mais fácil falar
bem e mal dos de fora do que dos daqui.
Mesmo com todas as mudanças tecnológicas, a canção continua com seu
formato de dois minutos e meio a três minutos e meio. Por que isso? É um
formato que se mostrou eficiente, é uma rigidez?
Você tem um pouco de razão. Quando o LP apareceu, certos músicos
perceberam que existia uma praia para tocar de vinte e tantos minutos, que,
consequentemente, te libertavam dessa obrigação de três minutos. Então tem
Pink Floyd, toda essa gente. No resto, eu acredito que ficou em três minutos
simplesmente porque o artista e a gravadora estão preocupados em ter um
formato que agrada as estações de rádio. Quando você chega, ou quando
chegava — porque eu não me meto mais nessa coisa —, nas estações com
uma música de cinco minutos, muitos diretores de estações diziam: “Cinco
minutos! Mas você está louco, rapaz! Como a gente vai tocar cinco minutos!?
Corta!” As pessoas se deixam impressionar por isso, entende? Agora, hoje,
você tem toda a razão em questionar isso, porque você não tem mais nem que
dar satisfação às estações de rádio, existe um leque de meios de comunicação
que escapa ao controle delas e, consequentemente, pode-se dizer: “Por que
as pessoas continuam a fazer canções de três minutos?”
O empresário da música, dentro desse leque, tem de se reinventar agora.
Quais os caminhos que você vê para isso?
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Não tem. A indústria fonográfica foi uma bolha que começou em 1950 e
estourou em 2000. Uma bolha. O executivo de gravadora hoje – com todo meu
carinho, um carinho infinito – é uma pessoa que não tem futuro. A compa-
nhia de disco, tal qual a conhecemos, nesse período de 1950 a 2000, não vai
mais existir. Em 1950, uma companhia fonográfica de disco era uma empresa
que estava tecnologicamente na frente. Todo mundo se surpreendia com a
qualidade de gravação, com as inovações de produção, com os artistas, mas,
hoje em dia, por vários equívocos monumentais dos que dirigem a indústria
fonográfica, ela se destruiu e não tem mais retorno. A única coisa que tenho
a dizer é que vamos apagar tudo, descansar um pouco, ter um ano sabático
e, dali a um belo dia, vamos repensar essa coisa de indústria fonográfica – se
é preciso, se não é preciso, se tem sentido ou não tem sentido.
Eu realmente definiria a indústria fonográfica como uma bolha. Já men-
cionei equívocos extraordinários e realmente acho que isso deveria ser estu-
dado a nível universitário, não pelos estudos de antropologia, porque é muito
recente, mas de marketing, de comunicação. A indústria fonográfica sempre
foi, para o independente e para o multinacional, voltada para a juventude. Os
executivos tinham de ser jovens para poder falar com os artistas jovens, e os
métodos de trabalho tinham de ser jovens porque se falava com a juventude.
Nos anos 1990, quando o mp3 apareceu, junto com o Kazaa e esses programas,
os meninos foram às companhias de disco para formar associações, descobrir
novos métodos de distribuição, e os executivos encararam esses jovens como
inimigos. Quiseram persegui-los na justiça porque os viam como um perigo,
ao invés de serem aliados. Dali então a catástrofe aconteceu. O público jovem
passou a ver a indústria fonográfica como sua inimiga também. Só que se eu
tenho um público que é jovem, um público do qual eu dependo, eu não posso
fazer com que ele me considere um inimigo. Esse é um erro. Um de tantos.
Sobre sua experiência na indústria fonográfica americana, o que era o
Livro Branco?
O Livro Branco é um conjunto de diretrizes que têm a ver com a ética,
mas, evidentemente, como os Estados Unidos são protestantes, o exercício da
ética é bem diferente da ética católica, vamos dizer. Isso não é pejorativo, ok?
Talvez eu seja um pouco impreciso, mas em 1975 houve dois ou três es-
cândalos nos Estados Unidos, algumas companhias foram autuadas por dar
dinheiro por debaixo do pano, mas essas companhias, se me lembro bem,
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tinham a ver com segurança nacional, armas, aviões. Houve muita propina
da parte de quem andou por ali. Quando o SEC, órgão americano que em
princípio monitora isso tudo, descobriu, o Congresso e o governo decidiram
que todos os presidentes de todas as companhias americanas deveriam assi-
nar um Livro Branco, que era um manual de conduta grosso, feito para tentar
evitar que as companhias subornassem as pessoas.
Todos os presidentes de multinacionais, para não carregarem sozinhos essa
responsabilidade, pediram que seus assessores também assinassem o Livro
Branco, e esses assessores, da mesma forma, passaram isso adiante. Agora
todo presidente de multinacional no Brasil, na França ou na Inglaterra, deve
assinar o Livro Branco. Se, por exemplo, a companhia lá souber que alguém
aqui fez alguma coisa que não deveria ter feito, o cara lá vai dizer que passou
o Livro Branco para o subordinado, e esse subordinado também vai dizer que
já passou para outro subordinado, e que a responsabilidade é dele, ele que
vai embora. O Livro Branco era e é isso.
Na indústria fonográfica, as funções foram se delineando. Existia o
empresário, o produtor, o artista, o divulgador. Com a quebra disso, o
artista não fica sobrecarregado por ter de levar em suas costas todas
as posições?
Os artistas já faziam isso há vinte, trinta anos. No Brasil, por exemplo, os
tropicalistas, Gilberto Gil, Caetano Veloso e companhia, já eram pessoas que
viam além da composição, além da gravação dentro do estúdio e do resultado,
a famosa bolacha. Eles sentavam com o João Araújo e sugeriam como e o que
fazer com o disco. Em que direção seguir, com que propósito, com que discur-
so. E esse princípio não se estabeleceu somente no Brasil, com os tropicalistas,
mas se instalou concomitantemente na maior parte da indústria mundial,
a nível independente e não independente. O artista não é mais uma pessoa
como, por exemplo, o Edu Lobo. Magnífico compositor, magnífica pessoa, que
escreve suas músicas e, se alguém se interessar, ótimo. Se não, não é com ele.
O artista da época posterior à do Edu, a quem tomo como um exemplo muito
carinhoso, sabe que além de ser artista é preciso ser um trabalhador. Talvez
um dos melhores protótipos desse novo homem seja o Gilberto Gil. O artista
que antigamente se queixava muito por estar cerceado pelo establishment,
hoje, se ele for inteligente, vai gozar dessa nova liberdade ou desse novo vazio
ao redor dele, e, pouco a pouco, irá dominar todos os meios. As formas de se
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propagar são muito mais favoráveis hoje que antigamente, porque você tem
todas essas novas mídias, que te permitem fazer tudo. Você fica sentadinho em
casa trabalhando e divulgando seu trabalho, não nas mídias convencionais,
já totalmente ultrapassadas, mas nas novas mídias.
Numa entrevista sobre “jabá”, você disse que ele acontecia de diversas
formas, que não era só através do dinheiro, mas de mercadorias. O que
é o jabá? Foi mais um equívoco da indústria, ou não? Ele ainda existe?
Já fui muito enfático ao falar sobre o jabá, mas hoje eu não sei. Suponho
que sim, mas eu não sei. Você pode ver o jabá de diversas formas. Tem a
maneira puritana, ou católica, que diz que é um pecado capital você dar
dinheiro para uma pessoa tocar a sua música. Tem um outro ponto de vista
que considera possível estar a favor do jabá. Tudo depende de para quê você
utiliza. Se você o utiliza para um artista de quinta – seja no sertanejo, no
tropicalismo, na vanguarda –, uma pessoa que você vê que não tem quali-
dade e não tem consistência, então você é um idiota! Se você utiliza um jabá
porque considera que um programador é uma pessoa que não tem gosto
musical e que você tem um artista de valor, então tem que pagar bem. É um
bom investimento! Eu paguei jabá para muita gente. Não paguei na época da
bossa nova, porque ainda não existia, mas paguei para tocar Chico Buarque,
Mutantes, Raul Seixas. Não tenho nenhum pudor com isso, porque talvez – e
isso é uma grande interrogação –, se eu não tivesse pago, eles não tivessem
tido o sucesso que tiveram. E me orgulho muito de ter estado ao lado deles
para que tivessem o sucesso que tiveram.
Como é a relação criativa entre o produtor musical e um artista? Como
é o processo?
Eu nunca tive uma influência artística. Eu não posso dizer que ajudei
artisticamente fulano. O que eu soube fazer foi olhar nos olhos do fulano e
ver o que me diziam, se era um cara ambicioso, se dizia coisas diferentes, se
tinha um ego desmedido, se era narcisista, se era sincero, se era novo, se era
direito, enfim, essas coisas.
Os meus diretores artísticos recebiam muitas solicitações, que eles penei-
ravam, e, em reuniões semanais, cada um chegava com propostas. Então eu
e o departamento artístico, da promoção, escutávamos e dávamos uma opi-
nião. Algumas vezes o artista era unanimidade, então era contratado. Outras
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vezes eu exercia meu direito de patrão. E tinha momentos também em que o
diretor artístico me pedia liberdade para contratar. Depois que o artista estava
dentro, eu ficava muito perto. Ia a shows, almoçava, jantava, gostava de ter
esse momento de tranquilidade, que não era de escritório, para ouvir o que
ele tinha a dizer. Se a companhia estava bem, se não estava, se ele estava bem
com ele mesmo e com seu trabalho. E a partir disso eu podia acompanhá-lo,
saber das suas inquietações e tal.
Uma vez feito isso, eu entrava no estúdio com o diretor artístico e com
o produtor. Ali é uma coisa absolutamente artística e técnica: artística pelo
talento do artista e dos músicos ao redor, e técnica para extrair deles o que
estão querendo expressar. O trabalho do diretor artístico é de ajudar o artista
a encontrar, dentro dos parâmetros do artista, uma maneira mais conveniente
de se expressar, se a maneira que eles estiverem tentando não for adequada.
É isso.
E o que acontecia, por exemplo, quando um artista que merece uma aposta,
entregava um produto que estava abaixo da qualidade que você espera?
Havia uma intervenção?
Claro, claro. Aqui em São Paulo tem um exemplo muito conhecido, que
são os embates entre Rita Lee e eu, uma vez que ela saiu dos Mutantes. Não é
glorioso. Ela apareceu lá com um disco que era muito estranho. Como, aliás,
os Mutantes fizeram logo que se separaram da Rita. E eu tive de dizer para a
Rita que a gente não ia lançar o disco. Então, respondendo sua pergunta, isso
também acontece. A Rita ficou muito contrariada comigo, acho que isso deve
ter acontecido em 1970 e pouquinho, e acho que até um ano atrás ela não
havia me perdoado. Mas, um tempo atrás, para minha grande tranquilidade
interna, ela disse que tinha ouvido esse disco e que queria me encontrar
para me agradecer por eu não ter permitido que ele fosse para o mercado,
naquela época. O Lulu e o Raul Seixas se deram ao luxo de fazer músicas me
esculhambando. No entanto, minha relação com o Lulu é ótima, e no geral
minha relação com o Raul sempre foi ótima, antes e depois. Mas tem de se
admitir que é preciso ter confronto. E, para que ele aconteça, tem que ter sido
estabelecido, anteriormente, um termo de confiança. É como você com sua
mulher, com sua namorada, com seu filho, com sua mãe, com seu amigo. Se
você não tem um porto seguro, que é a confiança, não chega lá.
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As gravadoras trabalhavam um artista, vamos dizer assim, a médio prazo.
Não existia essa perspectiva de curto prazo, não é? Voltando à questão
do artista como empresário: como um artista pode se fazer sem ter uma
produtora que lhe dê o arcabouço financeiro?
Isso acabou. A situação é tão horrorosa que, se o artista não vai na primeira
música e nem na segunda, você vai me desculpar, mas não vai mais. Enquan-
to que na época na qual eu militava era de praxe considerar que o primeiro
disco não se discutia se era um fracasso ou um sucesso. Eu me lembro de ter
dito mil vezes: “Eu não gosto que um artista novo faça sucesso com seu pri-
meiro disco.” Porque a cabeça não aguenta: de repente ele estava comendo
com dificuldade um sanduíche de R$ 1,00 e, um dia depois, limusine. Era
assim: se o primeiro disco fazia sucesso, era um puta azar; se fracassava,
investigava-se o motivo do fracasso e o que tinha de bom nele. No segundo
disco, o artista já tinha amadurecido, entrava no estúdio mais focado. Agora
não, é o contrário. E isso vai ser mais um elemento a prejudicar o futuro da
própria canção profissional.
E o rock da década de 1980, você viu antes?
Não fui eu quem viu. Quem viu foi o Peninha, e, de uma maneira não tão
contundente, vamos dizer assim, o Liminha. Tinha o Peninha e o Liminha,
mas vamos falar do Peninha. Eu o contratei com uma missão. Eu falei para
ele: “Eu acho que os novos movimentos repetem um pouco os movimentos
que vieram anteriormente. Você se sente capacitado para descobrir esses
movimentos no boteco, na rua, onde tiver?” E o Peninha disse sim. Ele sumiu
por um mês, 15 dias, talvez, e acabou me telefonando, pedindo que eu fosse
a São Paulo. E aí, o primeiro grupo que ele me apresentou foi justamente o
Ultraje a Rigor. Dias depois, ele me chama de novo: eram os Titãs. E dali foi
engrenando de um para outro, mas, para mim, não era uma surpresa que
isso existisse.
Na época, participei de uma entrevista, talvez alguém se lembre disso, na
qual o entrevistador me perguntou qual era o futuro da música brasileira, e
eu, muito naturalmente, respondi que o futuro da música brasileira estava no
rock. As pessoas não interpretaram isso de uma maneira muito simpática, e,
naquela época, eu era um estrangeiro. Um tempo depois o Vinícius me disse
que achava aquela uma bela frase, mas que eu nunca podia ter dito uma coisa
daquelas. É verdade, porque já tínhamos os Novos Baianos, os tropicalistas,
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já tínhamos Jorge Ben, Erasmo, estava cheio de roqueiro por aí. De fato, não
é o rock que apareceu nos anos 1980, mas é isso, um dia alguém ia meter a
mão. E foi isso que aconteceu.
Tem um compositor carioca, o Bernardo Vilhena, que diz que a bossa
nova surgiu como resposta à bolerização da música daquela época. E que
o rock também, que a MPB dos anos 1970 tinha envelhecido. Você sentia
isso também?
Entendo o que ele quer dizer, mas tenho tendência a discordar. Eu concor-
do com o fundo, mas eu discordo talvez do caminho, o que não é tão impor-
tante. Não houve uma bolerização, o que houve é que a juventude brasileira,
universitária e de classe média, não podia se apropriar da música que se fazia
naquela época: o Rei da Voz, o Orlando Silva, e mais uns cinquenta lá. Não
dava. Não havia música para a juventude de classe média branca brasileira.
Então não foi uma bolerização, porque a Dolores Duran, que foi uma maravi-
lha de pessoa, o Johny Alf, fizeram uma evolução do bolero para outra coisa.
Os meninos não partiram dali, partiram de um lugar próprio deles. Acho que
isso foi o interessante da bossa nova, como foi interessante com a tropicália,
com Chico Science. É autêntico.
O que é música independente?
O conceito de música independente, no passado, sempre foi interpretado
como sendo músicos com certo talento, mas que ou tinham medo, ou tinham
fracassado na indústria oficial. Então se tornavam independentes, mas era
terrível, porque tinha independência, certamente, mas não tinha grana. E
não houve nunca, nestes quarenta, cinquenta anos, um homem de negócios
que chegasse, colocasse um estúdio, uma fábrica, um depósito, chamasse
todo aquele pessoal independente e dissesse a eles: “Vocês podem continuar
independentes, eu me encarrego da distribuição.” Porque os independentes
não eram distribuídos. O independente, por muitos anos, no Brasil, foi cono-
tação de fracasso, ou então de individualismo. Eles não queriam se submeter
às regras que imperavam naquela época.
O fato é que, hoje, o independente continua sendo o mesmo, mas ele tem
a simpatia do meio e a possibilidade de se virar melhor que antes. Porque
gravar já não custa quase nada, e distribuir não custa nada. Então isso tem
grandes vantagens: qualquer pessoa pode colocar sua linguagem no ar. Mas
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também tem seus inconvenientes, porque tem muita porcaria rolando aí,
todo mundo se diz artista. Para ter uma ideia, hoje eu tive acesso a uns dados
onde se mencionava que há três anos existiam 18 milhões de sites musicais.
Com essa quantidade, como é que você vai buscar músicas novas? São 18
milhões de ofertas.
Então, nesse sentido, o empresário de música era um qualificador e um
filtro?
Você está dizendo o empresário da indústria? A indústria não era o empre-
sário, era o diretor artístico e seus produtores. Era um filtro sim, claro. O filtro
pode ser bom e pode ser ruim, mas isso é humano, não é? Ou eu tenho talento
ou eu não tenho talento. Se eu não tiver talento, o meu feeling vai ser péssimo.
Vai ser necessário encontrar outro filtro para esses 18 milhões? É pos-
sível encontrar outro filtro?
Um dia vai se encontrar alguma coisa, sem dúvida. Tem muitos filtros que
“desfiltraram”, porque não era viável economicamente. Tem muitas empre-
sas que vão indo e se qualificam para colocar o artista no seu site, inclusive
trabalham promocionalmente para esse artista. Só que praticamente todas
elas nascem e morrem. Em um mundo onde tudo vem de graça, é muito
difícil comercializar e tornar viável. É como eu disse no início, é uma bolha.
A gratuidade custa caro?
Talvez não custe caro em termos de dinheiro, mas em termos de carreiras
custa muito caro, porque não vão se construir carreiras como nós conhecemos!
Estou falando isso pensando em Chico Buarque, Led Zeppelin, Michael Jack-
son. Grandes carreiras, tanto brasileiras quanto estrangeiras. Essas eu creio,
formalmente, que não vai haver mais. Até Coldplay, essa turma toda mais
recente, morre, não fisicamente, mas morre no seu ciclo. Estou colocando o
que me parece uma tendência.
O que é o talento?
Eu vou te pedir para me fazer outra pergunta ou para escapar dessa, por-
que é uma das perguntas mais difíceis. Para mim, o talento é intangível. Você
reconhecer o talento é uma coisa, mas o talento como nome abstrato eu não
saberia te dizer, francamente.
25
LuizCalanca
Proprietário da loja de discos Baratos Afins.
Como começou a Baratos Afins?
Nos anos 1970, eu era farmacêutico e nos fins de semana fazia bailinho.
Então, gastava meu salário inteiro em discos. Quando a minha filha nasceu,
eu fiquei apertado de grana. Eu não tinha nada: um jaleco já rasgando, um
sapato furado e muitos discos, ou seja, tudo o que eu poderia vender era os
discos. Falei com um amigo, que me levou num salão de quase cem metros
de profundidade, lá no fundo colocou meus discos em uma balança e falou:
“Dou Cr$ 15 mil.” Mas isso não era nada, e eu acabei gastando Cr$ 8 mil com-
prando outros discos antes de chegar à porta da loja. Aí me deu um estalo e
eu percebi que podia fazer meu próprio negócio. O cara nem olhou os discos,
era vale o quanto pesa, não tinha valor por obras específicas. Eu tinha um
bom acervo e poderia vender meus discos para pessoas que conhecessem de
música. Um cunhado meu tinha falido com uma loja de discos lá na Vila do
Carmo, que se chamava Discão, então ele tinha muito disco em casa e acabou
me dando a discoteca dele para complementar a minha. Eu comecei assim.
Quando fui abrir a loja, o dono do imóvel perguntou se eu tinha algum
do Roberto Carlos. Eu tinha 16 álbuns, era a discografia quase toda, menos
o primeiro disco. Então ele me deu a chave da loja em troca. Eu nem fiz
contrato. Depois de quase um ano, descobri que eu não tinha firma aberta.
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Meu cunhado me sacaneou. Ele fez que abriu a firma, mas era tudo fake,
tudo de mentira. Como começou a dar certo e eu queria fazer um negócio
sério, procurei legalizar a coisa, abrir na junta comercial, abrir uma empresa
direitinho, como devia.
Vocês vendiam discos especialmente de rock?
Na época, era o auge da discoteca, mas eu era moleque, radical, não gos-
tava de nada, era chato, rabugento mesmo. Então eu jogava aqueles discos da
Donna Summer, Lady Zu, Saturday Night Fever, John Travolta, eu jogava no
chão e os roqueiros chegavam e pisavam em cima... Aquilo criou uma marca
para a loja, como um ponto de resistência do rock. Todo mundo queria falar
bem ou mal daquilo, chamava a atenção de certa forma, mas hoje, pensando
bem, acho a discoteca maravilhosa perto dessas músicas eletrônicas que tem
aí. Parece que tiraram o coração da música e botaram um marca-passo. A
discoteca pelo menos era orgânica...
Por que esse nome, Baratos Afins?
Baratos Afins nasceu no dia em que fui vender discos pela primeira vez.
Eu tinha uma tabela de preços que era, se não me engano, do sindicato dos
varejistas de disco de São Paulo. E no final de todo aquele nome tinha escrito
“varejistas e afins”. Eu falei: “Que barato!” Aí já deu aquele estalo. Eu tenho
muito essa coisa de criar, pensar em nomes, e fiquei com essa obsessão na
cabeça. Eu queria aquele nome de qualquer jeito, já estava até falando em
casa que ia abrir a Baratos Afins. A minha mulher achava que eu tinha pirado,
porque queria largar a farmácia para abrir uma loja de discos. A gente quase
se separou. Aliás, por duas vezes, eu quase me separei por causa dos discos.
Quando comecei a invadir a casa com discos, a minha mulher me deu um
ultimato. Falou: “Ou eu ou os discos.” Aí eu comprei o apartamento debaixo
do meu e joguei tudo lá, liberei a cama para ela. Ficou tudo tranquilo.
Colecionar discos e, de certa forma, agitar a produção independente
são coisas que vieram juntas?
No meu tempo de bailinho, eu fazia alguns shows com bandas. Normal-
mente, com bandas undergrounds, de bairro, que tocavam só ali na vila
mesmo. Entre esses shows eu fiz um do Arnaldo Baptista, lá no Tuca. Colei
cartazes, vendi bilhete, recolhi o bilhete na porta e gravei também. Era meio
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assim. Quando o Arnaldo teve aquele incidente, quando caiu do Hospital do
Servidor, teve a lesão cerebral e ficou em coma, ainda não fazia nem um ano
que a gente tinha trabalhado junto. Então a mulher dele na época me procu-
rou para ajudar a terminar um disco, porque ele estava impossibilitado. Eu
peguei o Singin’ alone e terminei. Fiz o corte do acetato. Inclusive eu acho que
estraguei o disco. A gente não tinha experiência nenhuma. Eu ficava falando
para o Osvaldo Martins, que era o cara do corte, que eu queria mais peso, aí ele
ia puxando o baixo. No fim, ficou tudo abafado. E a gente achava que estava
lindo. Foi nosso primeiro álbum. Quando ele saiu em CD, eu falei: “Nossa, é
o primeiro CD que eu vi que o som ficou bem melhor que o disco.” A gente
realmente assassinou aquele disco. Então eu comecei meio por acidente, o
Arnaldo é que acabou me infiltrando nessa coisa de produzir.
E vocês continuaram produzindo outros discos?
Na época, tinha a censura federal, tinha que expor o disco ao departamento
de censura, tinha que ter aquele cadastro de gravação. Era preciso ter uma
empresa, não era qualquer um que ia lá e fazia o disco. Tinha que ter toda
uma documentação para aquilo. A gente superou tudo isso para poder fazer
o disco, aí não tinha mais sentido parar. Logo depois, fiz os discos das bandas
que estavam próximas ao Arnaldo, a Patrulha do Espaço e a Mixto Quente.
Foram o segundo e terceiro discos que fiz. Depois segui com Coqueluche e
Tatá Guarnieri, e aí me envolvi com o pessoal da Praça do Rock. Eram tre-
zentas bandas querendo gravar e não tinham outra produtora: era sempre
a gente. Ou você estava numa gravadora grande ou gravava na Baratos, não
tinha outro caminho.
Aquele foi o momento em que surgiram os primeiros discos independen-
tes, do Premeditando o Breque, do Rumo.
Antes de mim, já tinha o Antônio Adolfo, que produziu independentemente
o Feito em casa, mas acredito que a Baratos foi a primeira loja a fazer disco.
Eu queria ser diferente das outras lojas, porque quando eu comecei na gale-
ria logo veio a concorrência. E aí eu ficava incomodado com aquilo. Eu não
queria ser mais um. Então pensei em fazer edições de coisas raras. Eu já tinha
prometido fazer um disco para o Jorge Mautner, quando era farmacêutico
ainda. Depois, quando tive credibilidade na Polygram, consegui fazer o Loki,
também do Arnaldo Baptista. Aí já era mais para ajudar mesmo, porque ele
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ainda tava em coma e em casa, e não tinha fonte de renda nenhuma. Fiquei
querendo ajudar e acabei reeditando Os Mutantes todos. E os da Rita também,
que eram os discos que ele tinha produzido. Naquele momento, Os Mutantes
ainda eram uma banda muito obscura.
A gente quebrou a cara com Os Mutantes. Lembro que quando tava
vencendo a primeira duplicata eu liguei para o Maurício Kubrusly, que era
editor da revista Som Três, talvez a única publicação no momento que falava
de rock no Brasil. Eu pedi para o Maurício me ajudar, porque eu tinha feito
uma loucura, tinha comprado todos os discos dos Mutantes e não tava con-
seguindo pagar, então eu queria fazer um anúncio na revista, mas que fosse
um anúncio ligado a uma matéria, que desse um impulso para vender. A par-
tir daí, eu consegui um feedback, cheguei a começar a vender para algumas
lojas, mas não foi suficiente para pagar as cinco edições. A gravadora lançou
o disco logo depois no mercado, alegando que tinha vencido o prazo e que
a exclusividade era apenas para São Paulo. Só que estavam errados, eu tinha
pedido uma exclusividade a nível nacional. Revi o contrato e eles tiveram
que recolher do mercado. Eu reclamei que não estava podendo pagar porque
encharcaram o mercado e eu não pude vender. Aí, quando eles recolheram,
eu acabei engolindo o resto do estoque que a Polygram fez, porque não tive-
ram mais interesse em vender e iam derreter, mas derreter era demais, então
acabamos negociando um preço baratinho.
Depois vendeu para o Japão por muitos dólares.
Não, ainda não. Lembro que teve um tributo ao Arnaldo agora nos anos
1990 chamado Sanguinho Novo – Arnaldo Baptista Revisitado, e eu dei para
cada banda que ia fazer o tributo vários álbuns dos Mutantes. Foram quatro
para o Sepultura, quatro para o Fellini. Cada banda tinha quatro ou cinco
elementos, cada um querendo o disco para tirar as músicas do tributo, então
eu dei uns oitenta discos dos Mutantes sem nem me incomodar; estava tudo
encalhado lá. Vendemos o que tinha que vender e paramos ali. Os Mutantes
não tinham esse nome que têm hoje. Quem incensou para valer Os Mutantes
foi o Nirvana. Quando eles vieram para o Brasil, nós demos uma coleção dos
Mutantes para a banda, e o Kurt Cobain disse numa entrevista que era a me-
lhor banda do mundo. Aí tudo quanto é moleque queria saber dos Mutantes.
E aí já era tarde, já tinha vendido um monte.
29
E o Beck?
Não, o Beck não deu muito feedback não. Acho que foi mais o David Byrne,
do Luaka Bop, que chegou a editar o disco dos Mutantes. Aí começou a fazer
sucesso no exterior. A gente vendia muito para gringo. O pessoal vinha para cá
e comprava coleções completas, mas até aí já tinham passado quase vinte anos.
A Rhino Records fez uma coisa parecida com o que você fez. Pegou os
discos que estavam fora de catálogo, que eram os grandes discos deles,
do Love e outras bandas dos anos 1960, e relançou.
Eu me lembro que tinha o selo Stiletto, e eu era meio barômetro de mer-
cado dos caras. O Joy Division tinha uma música chamada “Love will tear us
apart”, que era a mais famosa, o hit. Todo mundo só queria aquela música,
mas a gente queria lançar um álbum e não um single ou coisa assim. Então
eu peguei o Closer, que na minha opinião é o disco mais legal deles, adicionei
a “Love will tear us apart” e tirei trezentas cópias. Cheguei a vender bem, até.
Então o pessoal do Stiletto pediu para que eu fizesse do Bauhaus também.
Era assim: se desse certo, eles lançavam, se não desse, eles ignoravam, mas
os caras eram meio picaretas, então me afastei.
Eu me envolvi num outro caso assim com o U2. Fiz um disco pirata deles
chamado Two Sides Live, mas nós tínhamos autorização do manager da banda.
Na época, a polícia queria me extorquir e eu fiquei birrento, não queria dar
dinheiro para a polícia. Eles diziam que nós éramos piratas, e eu dizia que
não, que estávamos legais. Eu também era barômetro do Aluísio Motta, que
era diretor da Warner. Barômetro não, quase um assessor. Eu ficava indicando
que discos venderiam mais, se era legal lançar ou não. Indiquei 13 títulos e ele
acabou estourando com um do U2 chamado The unforgettable fire. Até aí eu
já tinha ido umas dez vezes para o fórum, para aquelas audiências, aquelas
diligências acompanhando os advogados. Todo dia eu ia com uma camisa
do U2 nova e o juiz me discriminava. Eu queria mostrar que a banda estava
lançando disco e ganhando dinheiro por causa da gente, do disco que a gente
tinha lançado, mas ninguém queria saber disso. Até que o Aluísio me mandou
uma carta agradecendo, dizendo que graças a mim tinha achado um novo
nicho de mercado, tinha vendido oitenta mil cópias do Unforgettable fire. Eu
mostrei a carta ao meu advogado, que anexou nos autos do processo e fez o
juiz encerrar o caso. Eu acabei virando amigo do Aluísio, até auxiliando em
alguns títulos da Warner depois. Só que eu nunca ganhei nada com isso.
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Para quem não viveu isso, conte como era o clima na Galeria do Rock na
década de 1980 e como era o slogan da Baratos Afins.
O slogan? Eu tinha visto uma propaganda da RPM na CBS assim: “RPM,
um milhão de cópias vendidas. CBS se orgulha dos seus artistas”, ou alguma
coisa parecida. Aí eu fiz assim: “Baratos Afins, nem um desses discos vendeu
um milhão de cópias.” É tudo maldito mesmo.
A galeria era uma caverna. Tinha muita loja fechada, não tinha aquelas
caixas de vidro, eram só as grades. Parecia uma cadeia, com umas fendas lá
no meio. O pessoal fazia aquelas bolinhas de papel e jogava lá dentro, mas
ninguém limpava, porque ficava trancado. Não tinha nem como você passar
uma vassoura ali. Então tinha muita loja abandonada. Depois que eu cheguei
ali é que começou a ter concorrência do ramo do disco mesmo. Começou a
crescer bastante. Com o surgimento do CD, a galeria chegou a ter 84 lojas de
disco, mas foi até natural essas lojas fecharem, muita gente abriu porque era
uma novidade, o CD era um mercado promissor. Tava dando um dinheiro bom.
Quando virou Galeria do Rock? Quando foi que apareceu esse nome?
Eu acho que depois do show do SP–Metal começou a dar muito roqueiro lá,
e o pessoal passou a chamar ela assim. Mas ela nem é Galeria do Rock ainda,
é um apelido carinhoso. O nome era Grandes Galerias, depois virou Shopping
Center Grandes Galerias, e tá esse nome até hoje lá. Eles querem mudar para
Galeria do Rock porque é como ela é reconhecida pelos frequentadores, mas
não tem esse nome oficial. Ainda não.
E como é produzir bandas novas? Você continua trabalhando com isso,
produzindo discos?
Tem muita coisa boa e muita coisa ruim, porque agora ficou muito fácil.
Todo mundo que tem um computador em casa faz música. Até eu gravo umas
coisinhas em casa, só que tenho vergonha de mostrar, mas tem gente que é
cara de pau. Tem muita banda ruim no MySpace que é super bem visitada e
que o pessoal baixa bastante, mas tem coisas legais também, muita banda
boa. Eu acho que a internet propiciou bastante isso, é muito fácil fazer. Eu
até brinco dizendo que o Andy Warhol estava errado quando disse que todo
mundo seria famoso por 15 minutos. Hoje em dia, nesses blogs, todo mundo
é famoso para 15 pessoas. O cara posta e tem 15 amigos que escutam e acham
legal. Quando tem 16, aí já tem um que alfineta dizendo que não está tão bom.
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A internet dá essa possibilidade de exposição, da noite para o dia você pode
ser uma revelação. Ou então você vai ficar lá perdido na poeira cósmica da
internet, porque tem muita coisa mesmo, e não dá pra você absorver tudo
isso que tá aí.
Ultimamente, eu tenho feito shows. Faço três bandas por mês no Rock
na Vitrine, da Secretaria da Cultura. Todo segundo sábado de cada mês eu
programo para tocar. Aí eu vou lá e gravo tudo ao vivo, gravo áudio e imagens.
Normalmente, eu dou a imagem para banda, porque eu não tenho muita
paciência nem habilidade para ficar tratando imagem, editando. Cada banda
edita da maneira deles, junta com outros tapes que eles têm e joga no YouTube
e no MySpace. Eu acredito que hoje, se você fizer uma coisa muito caprichada,
tem a possibilidade de atingir um grande público. Às vezes, uma coisa tosca
também é viável. É questão de cair no gosto do público.
Fale um pouco mais sobre essa transformação da indústria fonográfica.
Como vocês sentiram isso dentro da loja e da Associação Brasileira de
Música Independente?
Eu tenho falado muito disso. Geralmente, eu já vou pedindo desculpa an-
tes, porque eu fico empolgado, sou muito falastrão, falo muita bobagem e às
vezes acabo ofendendo algumas pessoas. Eu sou contra downloads gratuitos.
Acho que tinha que ter uma legislação que defendesse os direitos intelectu-
ais, morais, autorais de cada um. Não faz sentido o artista dar a obra dele: é
a única coisa que ele tem para vender. Acho que a internet foi um tiro no pé
da indústria fonográfica. Tudo tem que ser repensado, somos produtores de
matéria-prima, não faz sentido disponibilizar de graça. Eu acreditava que no
futuro teríamos uma continuidade apenas um pouco diferenciada do nosso
tipo de negócio, mas não foi assim. De repente, eu vi lá toda minha obra dis-
ponibilizada de graça, e ninguém mais comprou nada. Na época em que o CD
surgiu, eu também fiquei meio contra, porque é a mesma coisa. Eu tinha lá um
império de vinil, então o CD chega e isso já era. E eu não queria aceitar aquilo
até porque estava jogando toda minha fortuna no lixo, mas eu resolvi fazer as
pazes, eu estava brigando, dando murro em ponta de faca, não resolvia nada.
Aí comecei a investir em CD e a trocar meus CDs pelos vinis das pessoas. Aí
foi a maior guinada econômica da minha vida. Eu ganhei muito dinheiro com
isso. Eu comprei um apartamento só para guardar disco. Eu enchi as minhas
salas de depósito. Minha filha casou, foi morar no apartamento dela, a gente
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fechou a nossa loja que era alugada, deixamos de pagar aluguel, mas aí veio a
internet e frustrou a gente. Eu cheguei a ter site antes de todas as gravadoras.
Eu cheguei a ter uma empresa chamada Sem Fronteira: nós fazíamos sites para
outras bandas, para outros artistas, mas também nunca ganhei nada com isso.
E a questão da volta do vinil que estamos vivendo hoje, como você vê isso?
Eu não acredito em volta do vinil, eu acho é que acabou o glamour do
CD, só isso. Tem até uma fábrica nova no Rio, que é a Polysom. É um pouco
caro porque parece que tem muitas taxas, muitos impostos. O governo até
devia dar uma ajuda, uma isenção. O vinil deles é de qualidade. Eu já tive na
mão alguns títulos, e em alguns casos é melhor do que os importados. Estão
fazendo com uma gramatura boa, de 160g, o papel da capa também é muito
legal, os encartes, tudo bem acabado. É coisa muito fina. Eu acho super bem-
vinda essa coisa, mas eu não vejo uma volta do vinil. Acho legal ter a volta
dessa fábrica no Brasil, porque a Odeon, a Sony, a BMG, todas entregaram
a fábrica, pararam de produzir, o que é lamentável. Mas na Inglaterra, nos
Estados Unidos, no Japão, o vinil nunca deixou de existir. Ele está no merca-
do. As pessoas falam que eu sou saudosista, mas eu não tenho por que ser
saudosista, eu sempre trabalhei com vinil. Acho que eu fui meio visionário
até. Acabei me dando bem naquele momento em que eu comecei a ofertar
CD em troca de vinil. Eu nunca deixei de investir, de comprar coisas novas. A
verdade é que teve esse auê, essa fábrica nova, e todo mundo falou que era a
volta do vinil. No Brasil, OK, pode ser verdade, mas lá fora isso não é verdade.
Se você fosse lançar uma banda nova agora, você lançaria em CD ou em
vinil?
Em CD você não vende mais nada, nem camelô vende mais. Você vai no
camelô e só vê mp3 e filme pornô. Geralmente, as pessoas não se contentam
com o virtual, precisam ter a coisa real, mas acho que isso não acontece com
a música. As pessoas se contentam em ouvir o mp3 ou ouvir streaming, mas
mp3 é cheio de drop, tem gente que fala que não, mas é comum. Acho tudo
muito descartável. Me parece que muitas pessoas passam a noite fazendo
download e perdem metade do dia deletando o monte de lixo que vem.
Sobre essa coisa do vinil, você acha que seria possível fazer uma volta
do vinil na Baratos Afins?
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Eu tenho vontade de lançar em vinil algumas produções que estão para-
das. Eu desisti de fazer CD. Não vende mais de jeito nenhum. É muito raro,
muito pouco. Tem uma banda no Sul que estava comemorando oitenta mil
downloads no site deles. Aí eu pensei em fazer mil cópias em CD, achei que
venderia tranquilo. Vendemos umas trezentas lá na cidade deles, no lança-
mento, e aqui umas trinta só. Parou na loja, mofou, não vai. E a gente fica
dando de brinde para um cliente ou outro que compra um punhado de discos.
“Ó, leva mais este.”
O que é fazer produção cultural no Brasil?
Pergunta difícil. Para mim, sempre foi assim: é legal, bateu, mexeu com o
sentimento da gente, agradou? Vamos fazer! Inclusive eu fiz muita coisa que
é lixo cultural. Ao menos, é o que as pessoas falam para mim. Mas acho que
a grande mídia é bastante culpada. Eles enchem a bola de tudo que é lixo que
vem de fora e os nossos valores vão todos pro ralo. Sempre foi assim, então é
difícil mudar isso. No Rock na Vitrine mesmo, que é um projeto que eu faço, já
tocou tanta banda legal e não tem uma nota em jornal. Aí vem um Zé qualquer
não sei da onde, e os caras dão um puta espaço para ele. Aí esse cara acaba
lotando um desses espetáculos de R$ 200,00, R$ 300,00 o bilhete. Eu acho isso
inacreditável. As coisas culturais no Brasil são muito difíceis. Se não fosse o
SESC ou a própria prefeitura, não teria nada, até porque no rádio não toca mais
coisas legais, e nem na televisão. Todo domingo tem uma revelação, mas você
não escuta falar depois, só dura meio verão. Então nada fica. Normalmente,
as coisas legais funcionam nesse circuito fechado, pequeno, no Itaú Cultural,
nos SESCs, isso quando dá sorte de ser bancado pela prefeitura. Geralmente é
assim, não tem muito espaço para quem pensa em fazer música séria no país.
E quem pensa em vender ou produzir? Dá para sobreviver ainda?
Estamos sobrevivendo por causa da variedade. Temos mais de cem mil tí-
tulos. Eu não tenho nem a metade cadastrado e nem consigo. Não vence, não
para de entrar coisas. E algumas coisas também nem compensam cadastrar.
A gente seleciona, pega uns lotes e, se tem alguma coisa melhorzinha, nós
cadastramos. Tem coisas que você vai deixando para depois, mas cada vez o
volume é maior, fica mais difícil. Não vale a pena contratar mão de obra para
fazer isso, normalmente você lembra quando alguém procura. Apesar dos cem
mil títulos, acho que não atendo 10% do que procuram, até porque o que tem
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circulação mesmo, o que as pessoas desejam, não varia muito. Todo mundo
tem aqueles livros “os mil discos que você tem que ouvir antes de morrer”, “os
duzentos maiores não sei o quê”, “os dez da Billboard”. Então neguinho tem
aquilo na cabeça e só quer comprar essas coisas. Querem ter a discoteca básica,
o Pet sounds do Beach Boys, Sargent Peppers dos Beatles. Não pensam em, sei lá,
Please, please me. É muito raro. Eu tenho um pacotão inteiro de Please, please me.
Sargent Peppers eu não tenho nenhum. Todos que aparecem eu compro, por-
que tenho certeza que vai vender, no estado em que estiver. Led Zeppelin, por
exemplo, eu já vendi uns em estado lamentável. Aquele volume 4, todo riscado,
e o cara todo feliz porque achou. E é peça única. Você vasculha os catálogos na
América, mas também não tem. Não tá disponível nos fornecedores da gente.
Quais são as perspectivas? Quais são os caminhos?
Eu acredito que uma legislação que valorize, que reserve os direitos in-
telectuais, morais, autorais. Eu acho que, no momento em que tiver isso aí,
o mercado pode ter um fôlego novo. Enquanto não tiver, não tem estímulo.
Todo mundo vai continuar fazendo seu disco, colocando na rede, querendo
vender show. Mas as bandas todas passam muito rápido. Feliz é a banda que
é revisitada. Ninguém mais vai ouvir duzentas vezes um álbum como a gente
ouviu Sargent Peppers, por exemplo.
Essa é uma questão também. As bandas não duram porque elas não con-
seguem se sustentar. Elas vivem de voluntarismo por um período, mas
depois elas não aguentam, elas não amadurecem. Você tem um problema
das bandas que não amadureceram.
Mas nem tem como. Não tem incentivo. Muitas vezes o cara vai no diletan-
tismo mesmo, aquele prazer de tocar. Tem muita banda legal aí que faz som
bacana, mas não tem resposta de mercado. Então o cara não vende disco e
também não consegue fazer show porque não é conhecido. Ou quando fazem
não vai ninguém. Você pega um show de hip-hop lá na Vitrine e lota, a rua
fica entupida, mas é o barato deles lá. No rock nem isso acontece. Eu fiz show
de graça, sempre é de graça, ninguém paga nada e nem eu ganho também.
Tocou o Lanny Gordin, o Nobilis Stabilis, uma banda do Ceará chamada Fine
Friends. Quer dizer, a gente põe sempre uma banda conhecida para atrair o
público, pouco público, e duas mais underground. Não vai ninguém, sabe.
Os caras vendem cinco discos lá.
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Então você acha que o caminho é só via legislação?
Eu penso que sim. Um dia na internet tudo vai ter preço, menos música
ruim. E aí as pessoas vão querer oferecer o produto para ficar conhecidas. No
momento em que o público perceber que aquilo tem um valor, vão começar a
pagar algum dinheiro e ninguém vai mais fazer de graça. Tem uma coisa que eu
acho uma babaquice, que é esse pessoal do Radiohead que fala que cada um
paga o que quer, mas cada um paga o que quer porque vazou na internet, se não
isso não seria bem assim. Muita gente acha o Radiohead uma superbanda por
causa disso, mas nem é o melhor disco dos caras. Teve coisas mais relevantes
na carreira deles. Eu penso que tem que regulamentar, porque aí tem o respeito.
Antes, a gente comprava um disco com o dinheirinho suado, mas ouvia com
muito prazer. Hoje, vulgarizou. Tem muitas bandas de graça aí na rede, você
não tem nem tempo para absorver tudo aquilo. Tá tudo na tua mão, o mundo
ficou tão globalizado, mas o indivíduo ficou cada vez mais solitário, mais no
seu mundinho, dentro de uma cápsula ali. Ninguém ouve música mais em
coletivo, na mesma vibe. Você está numa roda, mas um está no hip-hop, outro
no pagode, outro no blues, outro num rock. Cada um está numa onda. Então
não tem mais aquela coisa coletiva. Aquela coisa de comunidade mesmo, de
você estar participando junto. Acho que isso aí morreu e eu acho lamentável.
O que faz você investir em bandas?
Ah, gostar da música. Eu adoro a parte artístico-musical. Artista às vezes
só é legal lá dentro do disco mesmo, quando você tem o controle remoto na
mão e pode apertar o shut up e calar a boca dele. Às vezes, fica muito difícil de
conviver, não são todos com que dá para você ter um relacionamento legal.
Claro que tem exceções, tem muita gente legal. Geralmente, quando começa
a fazer algum sucesso, é que o problema aparece, a desconfiança aparece.
Alguém acha que você está roubando, que você está ganhando muito. Mui-
tas vezes você carrega caixa, desce cinco andares com amplificador pesado,
carrega embaixo de chuva, mas as pessoas não conseguem ver isso. É sempre
assim, não vai ser diferente. A gente faz porque gosta.
Produzir é isso? É carregar peso e ouvir depois?
Não, tem coisas gratificantes. Por exemplo, eu gravei o Ratos de Porão em
24 horas. Foi um disco que eu vendi oito mil cópias, que é uma cifra bem ele-
vada para o meu porte. Eu fiz licença para Portugal, Japão, Espanha, Holanda.
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Ganhamos mais dinheiro de fora do que de dentro. Eu estou super bem com
o Ratos, sou super amigo do Gordo. Outro dia ele foi na galeria, chamaram
ele de traidor do movimento e ele enfiou a cabeça do cara na vitrine. Foi todo
mundo para a delegacia e ninguém pagou meu vidro. Mas o Ratos de Porão
já pagou dez vezes, sabe? E você vê, o disco em que eu menos investi, os ca-
ras ficaram lá fumando maconha, pura diversão. Não deu nem tempo de se
estressar com os caras, já acabou o trabalho. E o disco vendeu, todo mundo
ficou feliz, não encheu o saco. Isso é legal.
Agora teve bandas com quem eu fiquei duzentas horas no estúdio, foi
super-estressante, e o disco não vendeu nada. Era o que eu estava falando: às
vezes você faz uma coisa tosca e ganha dinheiro, outras vezes você faz uma
coisa super caprichada, investe muita grana e ninguém valoriza, mas para
mim tudo foi muito gratificante. Não estou reclamando de nada. Eu só fico
com raiva quando reclamam de mim. As pessoas querem me responsabilizar
pelo nosso fracasso, mas nós fracassamos, todos nós. Eu fracassei, o artista
fracassou. Ninguém decolou. Ninguém deve nada, eu penso assim. Então eu
aprendi. Hoje faço um contrato mais capcioso, para me proteger dessas coisas,
mas eu nunca espero ganhar nada com isso. Para mim, se eu empatar a grana,
está bom. Se não, valeu o barulho também. Eu só não quero que alguém me
responsabilize pelo fracasso da gente. Ultimamente, eu já uso esse argumento
para as bandas e as coisas estão mais tranquilas, mais cômodas. Acho que a
partir dos anos 1990, a coisa ficou muito melhor para mim. Eu me senti muito
mais produtor, tinha mais consciência do que queria. Nos anos 1980, eu era o
único, as pessoas me usavam. Quando percebia, já estava envolvido naquilo
e fazendo as coisas. Muita coisa eu fiz mesmo por pressão, quer dizer, na
verdade não teve pressão pesada, de me forçar a nada, mas é que você ficava
envolvido naquilo, não tinha outra pessoa para fazer. Nos anos 1990 não,
tinha um monte de produtor, um monte de independente, e eu escolhia. Eu
ia lá e falava: “Eu quero gravar teu som”, então os caras topavam ou não. Mas
eu não me arrependo de nada do que eu fiz, sempre gostei de tudo. Alguns
resultados finais não ficaram legais, não demos sorte. Muitas vezes pegamos
o estúdio errado, não tinha o equipamento ideal, a acústica. Fomos infelizes
em algumas produções, mas no fim eu sempre achava legal.
Você acha que a Baratos Afins é uma solução possível para este novo
momento? Quer dizer, você tem uma galáxia, você tem um infinito de
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possibilidades na internet, mas é preciso filtrar, é preciso que haja um
lugar em que você saiba que vai encontrar coisa de boa qualidade. Você
acha que a filtragem, o selo, é uma possibilidade de sobrevivência?
Não, eu acho que quem sempre bancou o selo Baratos Afins foi a loja
Baratos Afins. Foi legal, a gente vendeu bem, deu até lucro, mas no geral, não.
Eu tenho 171 produções ao todo, mas talvez só uns 40%, 50% deram lucro. O
Bocato, por exemplo, tenho seis álbuns do Bocato. Um dia ele foi pra Alema-
nha, começou a tocar aquelas coisas de Acid Jazz lá, aqueles marca-passos
junto com trombone. Aí ele veio para mim com aquilo, mas não tinha nada a
ver comigo. Essa música não tem alma. Aí ele ficou meio chateado e entrou
em outro selo. Ele gravou dez discos fora da Baratos e voltou para fazer o
Hidrogênio. Eu fiquei feliz porque acabou aquilo das pessoas acharem que
ele me chutou ou eu que chutei ele, entendeu, ninguém chutou ninguém.
Eu não queria fazer aquela coisa eletrônica. Se ele fizesse um outro tipo de
trabalho, eu estaria junto. Mas o Bocato é um puta coração bom, está tudo
bem. A gente dá o disco, já que não vende. Mas não tem problema, o disco
é bonito e a gente está feliz de ter feito. Eu acho bacana que o cara voltou,
quer dizer, ele me perdoou por eu não ter gravado o disco eletrônico dele.
Então, legal.
É o prazer no fim, não é?
É, no fim é o prazer. Não dá para gravar coisas nada a ver para ganhar
dinheiro, para vender. Até porque se eu tiver uma coisa que estoure mesmo
na minha mão, eu não vou poder atender todo mundo. É a mesma coisa que
você abrir uma pastelaria com uma lata de óleo para atender mil pessoas.
Não dá. Eu não tenho estrutura para estourar. Se um dia eu crescesse mes-
mo, se acontecesse de eu estourar um produto, eu teria que ceder o disco
para uma grande distribuidora. A Baratos Afins é pequena mesmo. Um disco
paga o fracasso do outro, mas eu acho que se fosse para viver da produtora
eu já teria fechado há muito mais tempo. Quando fizemos 25 anos de loja,
colocamos uma faixa na frente: “Baratos Afins, 25 anos de descompromisso
com o sucesso”...
39
RuiCampos
Fundador da Livraria da Travessa.
Como começou a livraria Muro?
O começo foi por acaso, mas acho que aquele acaso que acontece como
uma coisa predestinada. Eu tinha vinte anos e não tinha noção que teria
alguma paixão ligada ao mundo dos livros. A minha juventude nos anos 1970
foi muito agitada, no sentido de tentar ter uma participação política. Era
uma época muito braba, eu morava em Belo Horizonte e tentava participar
de diversas formas, movimento estudantil, teatro etc. Eu tinha uma paixão e
um fascínio muito forte pelo Rio de Janeiro, acho que todo mineiro tem um
olho no Rio, principalmente naquela época. Era um fascínio pela cidade,
pela geografia da cidade, pelo estilo de vida do carioca, pelas meninas, pelo
sotaque. E era um pouco o símbolo da liberdade, da cidade cosmopolita onde
as coisas acontecem. Esse eterno drama do mineiro, de se sentir enraizado
e ao mesmo tempo ter um sonho de conquistar o mundo, coisa que muitos
mineiros conseguem. O mineiro toma conta, tem sempre um mineiro por
trás, articulando alguma coisa. Então eu tinha um pouco de tudo isso. E o
primo de uma namorada minha tinha uma livraria no Rio, chamada livraria
Carlitos, que era tipo um incrível exército de Brancaleone.
Era um grupo de pessoas ligadas ao cinema que abriu uma livraria para
ganhar dinheiro e fazer filmes. Esse grupo falava, tramava e pensava nesses
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termos. E abriu essa livraria no Leblon, que fez um certo sucesso, em 1973,
e depois mudou para Copacabana. Lá chegou a ter mais sucesso. Eles eram
bastante ambiciosos, a livraria tinha perfil de importadora, ficava perto do
Copacabana Palace, era uma coisa ampla, com livros de todo o mundo,
mas não tinha uma base e estrutura comercial elaborada. E nessa coisa
acelerada que é a cabeça dos jovens cineastas e empreededores da época,
eles abriram uma filial em Ipanema, e me convidaram e convidaram essa
minha namorada, a Marta Luz, pra tomar conta.
Chegamos ao Rio em janeiro de 1975, e um ou dois meses depois a Carlitos
anunciou que ia fechar a filial, porque economicamente o negócio era um
desastre. Mas a livraria era superpretensiosa, no bom sentido. Importavam
livros da França, Inglaterra, eram ousados. Eles tinham em Copacabana um
depósito abarrotado de livros sofisticadíssimos.
E como eles conseguiam? Eles tinham que viajar, importavam via correio?
Tinha essa coisa da viagem, mas com muito menos frequência. A gente
chegou a viajar para fazer contatos. Um dos sócios, o René, era colombiano,
viajava muito, era jornalista, então a gente fez muitos contatos. Recebemos
muitos livros que ficaram no estoque da livraria, não sei exatamente como
a coisa terminou, mas provavelmente não pagaram aqueles livros importa-
dos. Logo depois da minha chegada, para conter esse déficit, que era cada
vez maior, eles resolveram fechar a loja de Ipanema. Eu tinha vinte anos e
não tinha noção nenhuma de administração, mas tinha muito entusiasmo,
eu me dedicava muito e tinha uma vontade muito forte. Então fizemos um
acordo, e eles acabaram vendendo essa loja para a gente por uma pequena
quantia, e aí ficamos com a livraria de Ipanema.
Por que “Muro”? É uma referência à guerra fria, a Sartre, a ditadura
militar?
Não sei por quê, mas a razão social era Muro, Carlitos era o nome fantasia.
Eles fizeram da filial uma empresa separada, autônoma. Eles não lembram,
mas o nome provavelmente deve ser inspirado em Sartre. Quando assumi-
mos o controle da livraria resolvemos deixar o nome Muro, e funcionou.
Nome é uma coisa sempre maluca, eu sempre tenho dúvidas, é um troço
que me assola. Às vezes eu fico pensando no nome “Travessa”, as pessoas
acham sensacional, mas eu tenho dúvidas. Até um tempo atrás, mesmo a
41
Travessa sendo bem conhecida, eu pensava em mudar o nome. Tem uma
frase muito boa sobre nomes: “Nome é um copo vazio.” Se você pega, por
exemplo, Porcão, Casas da Banha, são nomes horríveis, mas é um copo vazio
que você enche devidamente ou não. Eu sofro muito com esse negócio de
nome. Então “Muro” foi um nome que pegou, mas sempre achei estranho,
assim como “Travessa”. “Dazibao”, que foi outra livraria do Rio, também é
estranho, “Azougue”...
Na época da Muro você estava morando com o Tavinho Paes?
Pois é, na época da vinda para o Rio eu era duro. Essa aventura na Muro
foi muito heroica, muito interessante. Eu amava minha namorada, estava
morando na cidade dos meus sonhos, então era uma época de muita feli-
cidade, de muito trabalho, muita dedicação, mas de pouquíssimo dinheiro.
Outro dia, passando na praça General Osório, lembrei que eu juntava grana
para comer pastel lá no Canavial, uma loja de sucos, com caldo de cana. Eu
não podia comer pastel todo dia, era uma extravagância.
O primeiro lugar em que moramos no Rio foi a Tijuca. Dividia apartamen-
to com um amigo muito querido. Nos seis primeiros meses a gente morou
nesse apartamento, na Tijuca, depois começamos a procurar um lugar mais
perto de Ipanema. A ideia era dividir com os amigos, porque saía mais barato,
e foi isso que aconteceu, alugamos um apartamento e procuramos pessoas
para dividir. Eu e Marta ocupamos um quarto, o segundo ficou com Luis
Augusto, que era produtor cultural, e o terceiro quarto não foi o Tavinho que
ocupou, foi o Demétrio, que era muito ligado ao Tavinho. Era uma dupla de
poetas, doidos, performáticos.
Demétrio e Tavinho eram uma entidade: quem levava o Demétrio ga-
nhava de brinde o Tavinho. O Demétrio era bem mais fácil de conviver, era
aquele cara bonito, charmoso, bacana, que as meninas adoravam. Mas era
também mais quieto, mais profundo. Depois, ele se matou. Isso faz parte
daquela época. É curioso, porque, quando a gente fala dos anos 1970, o
pessoal diz “como era alegre, como era legal!”. Mas tinha a repressão, a
gente disfarçava, mas a repressão era braba. E não era só a repressão, era
a depressão também, muita gente não sobreviveu. Não tinha muita graça.
Hoje é muito comum a gente tratar isso como um episódio divertido. Re-
almente a gente tentava fazer com que fosse divertido, mas era difícil viver
sob censura. A gente era muito vigiado, perseguido. O medo da polícia era
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uma coisa constante. As pessoas eram torturadas, desapareciam, eram jo-
gadas de avião. No limite era assim, ninguém sabia exatamente o que tinha
acontecido, mas a pessoa sumia.
Ter uma livraria como a Muro era um risco naquele momento?
Era uma obrigação, você não podia conviver com aquilo sem participar,
você era empurrado para tomar alguma atitude, era fundamental colaborar
com a oposição. Os termos são muito diferentes, oposição hoje é uma coisa,
naquela época era outra. Oposição era todo mundo junto, era um bloco só,
contra a ditadura. Dentro dessa oposição existiam trocentas vertentes, mas
eu, nesse meu início de vida profissional, não fazia muita distinção. Era tão
forte a pressão que era como se todos fossem do mesmo grupo. Tem uma coisa
linda, que acho que foi o Cacaso quem disse, que é como se todos estivessem
escrevendo o mesmo poema. Era um grande poema de geração escrito por
diversas mãos, todas colaborando no mesmo texto. Hoje em dia é muito
menos romântico nesse aspecto, porque é cada um por si.
Acho importante colocar as mudanças no mercado editorial. Como era
o mercado naquela época?
Hoje em dia você tem ferramentas maravilhosas, softwares de geren-
ciamento que permitem você administrar uma livraria de grande porte,
fazer filtragens de estoque, ter velocidade de reposição, e tudo isso de for-
ma maravilhosa. Naquela época era tudo na mão, a gente fazia fichinhas,
tínhamos até a pretensão de manter tudo organizado, de fazer fichamento
de entrada e saída de cada coisa, mas era muito comum perder o controle.
Aí era na intuição mesmo.
A escolha de livro era feita na conversa com o vendedor. Cada editora
tinha o seu representante, seu vendedor, que visitava as livrarias, e você
escolhia. A gente tinha um fichário, mas era difícil manter atualizado. Cada
livro que chegasse você botava “mais 1”, depois vendia e você tinha que dar
baixa, colocar “menos 1”. Exigia um trabalho muito intuitivo, era um talento
que você tinha ou não tinha. E eu descobri que eu tinha um talento incrível
para isso. Até hoje tem determinadas editoras cujo catálogo eu conheço de
cor. Quer dizer, o de dez anos atrás, o atual eu não conheço. Por exemplo,
a editora Perspectiva, eu sou capaz de dizer qual título corresponde ao nú-
mero da coleção Debates. A coleção Estudos, por exemplo, o número 2 é a
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do Mimesis, do Auerbach. É aquela coisa do português do armazém. O seu
Cabral da casa Lidador é meu ídolo. No dia em que eu conheci seu Cabral,
eu falei: “Esse cara é meu ídolo”. Porque ele sabia tudo, controlava tudo de
cabeça. E eu tenho um pouco disso.
E você escolhia os títulos? Já tinha uma ideia de qual seria o perfil da
Muro?
Eu acho que sempre tive talento para fazer esse controle, essa escolha. As
pessoas dizem que são sugestionados pela Travessa, quer dizer, conseguimos
formar uma equipe que de alguma forma consegue isso, consegue perceber
tendências, propor coisas. Uma vez um cliente me perguntou quem escolhia
os livros, minha resposta foi tão espontânea, eu falei: “Você!”. Porque é na
conversa com o cliente, é você sentindo e estando aberto para perceber o
que as pessoas querem, o que está acontecendo de importante, que você
forma suas escolhas.
Qual a sua opinião sobre a Lei Lang, a lei do preço fixo?
Eu sou um defensor. Até hoje ninguém nunca me mostrou porque a Lei
Lang não seria uma solução quase mágica para poder resolver a questão do
livro. Você entra na questão econômica, coloca uma regra ali e isso dá uma
viabilizada, você transforma o mercado numa coisa muito democrática e
com muita possibilidade de atingir a sua verdadeira missão. Isso tem que
ser visto com cuidado, porque as pessoas dizem que o mercado não pode
decidir, que é preciso ter uma liberdade, mas para o mercado cultural isso
não é verdade. Ele não pode ser pensado como uma coisa qualquer, então
essa intervenção e a aplicação da Lei Lang atinge diversos setores de uma
forma positiva. Eu nunca vi um argumento contra essa lei com que eu
concordasse.
95% dos editores franceses defendem a Lei Lang, todos os candidatos
a presidência da República, tirando Le Pen, também se manifestaram
favoráveis. E os livreiros brasileiros, qual a reflexão deles sobre isso?
É muito comum você ouvir falar que a Lei Lang foi feita pra preservar as
pequenas livrarias, mas essa é só uma das vantagens. O maior defensor, que
é o símbolo da Lang, é o Jérôme Lindon, antigo editor da Minuit francesa,
um célebre editor francês, que dedicou a vida dele a defender a Lei Lang.
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Todos os editores franceses são a favor, os livreiros também. A força que a
Lei Lang tem na França vem dos editores. No Brasil eu acho que os pequenos
livreiros são favoráveis, mas as grande livrarias ficam um pouco... não sei
dizer com certeza, mas talvez não sejam favoráveis.
Na França existiu um embate contra o preço Fnac.
Exatamente, a Fnac, na medida em que foi proibida de vender por preço
diferente do preço de capa, conseguiu em troca uma margem de 5%, ela po-
deria vender com 5% de desconto. Mas, por iniciativa própria, ela resolveu
que não faria mais esse desconto. Hoje ela vende pelo preço de capa. Mas
o que me impressiona no Brasil são os grandes editores que combatem e
puxam o tapete de qualquer discussão sobre isso. Não é que eles discutam
e se coloquem contra, eles não discutem. Todas as vezes em que isso foi
proposto, eles fugiam e não participavam, a SNEL principalmente. Eles não
querem discutir, não querem falar sobre isso. Hoje as coisas mudaram um
pouco, diante dos novos mecanismos de distribuição, de vendas na internet,
acho que a lei precisaria se adaptar. É preciso pensar nisso.
As livrarias pequenas no Brasil estão fechando uma atrás da outra,
ao mesmo tempo, outras estão crescendo, como é o caso da Travessa, da
Cultura. Por que está acontecendo isso? Como manter essas livrarias
pequenas abertas?
Faz o maior sentido. O grande benfeitor do mercado é o best-seller. As
pessoas falam do best-seller como se fosse uma coisa, um tipo de livro, mas
qualquer livro pode ser um best-seller. Quem não quer que seu livro se torne
um best-seller? O best-seller tem que ser visto como o livro que vende rápido
e financia o negócio.
Você declarou numa entrevista que 20% dos livros sustentam os ou-
tros 80%.
É, essa lei vale para diversas situações e vale para o mercado de livro
também. Vinte por cento do que é vendido financia os 80%. É a Lei de Pareto.
Claro que a porcentagem é uma coisa aproximada, mas em geral é assim,
porque é a venda desse livro best-seller que vai manter a livraria. Você não
mantém uma livraria vendendo livro de fundo de catálogo. Por exemplo, A
interpretação das culturas, do Clifford Geertz, a Travessa de Ipanema vende
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cinco por ano. Em outro tipo de mercado qualquer, por exemplo, num su-
permercado, um produto que vende cinco a cada ano não vai chegar nem
perto. Numa livraria isso é diferente. Já pensou uma pessoa chegar na livraria
e pedir Sobrados e mocambos, do Gilberto Freyre, e o livreiro dizer que não
tem? Não é possível, não é uma livraria que se preze. E quantos Sobrados e
mocambos você vende por mês? Dois? Mas as pessoas querem e precisam
ir a uma livraria onde elas encontrem essas coisas.
Você defende a bibliodiversidade, o que é isso?
É exatamente isso. É ter desde aquele texto mais sofisticado, aquele livro
que interessa a meia dúzia de pesquisadores, até o cara que escreve para
um nicho que tem um grande público. É você ter toda essa oferta, dar voz a
todo o tipo de pessoa, de manifestação cultural, de transmissão de conheci-
mento que uma civilização precisa. Então se é o best-seller que financia esse
negócio, e ele é vendido a um preço vil, é vendido no supermercado a dois
tostões, enquanto na livraria vai ser vendido pelo preço de capa, você não
vai conseguir financiar aquela livraria. Então a oferta, a bibliodiversidade,
não vai ter onde se manifestar, não vai estar ao alcance do público para o
qual ela teria muita utilidade.
Paris e outras cidades têm muitas livrarias de nichos de interesses.
Isso seria uma bibliodiversidade ainda mais saudável? Você acha que
seria possível ter livrarias temáticas no Brasil?
Seria possível desde que não houvesse esse mercado selvagem, esse
capitalismo selvagem, essa coisa do best-seller ser vendido em qualquer
lugar a preços muito baixos. A Amazon soube usar isso muito bem. Agora, é
sabido que eles não ganham dinheiro com livro. Mas a ideia deles, desde o
começo, não é ganhar dinheiro com livros, é atrair clientes com a venda de
livros a preços baixos para formar um cadastro. A verdadeira livraria, onde
você vai encontrar a bibliodiversidade, fica inviabilizada por esse negócio.
Mas agora tem a internet, que é uma grande novidade, e está rearrumando
tudo. É uma ferramenta muito legal para esse tipo de coisa, você pode pro-
curar, você pode encontrar um texto. Antigamente se falava que a internet
ia servir para vender best-seller, mas a internet tem se mostrado uma grande
ferramenta para famosa cauda longa, para o fundo de catálogo.
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Você abriu filiais em Ipanema, Leblon, Barra. O Brasil tem uma carên-
cia enorme de livrarias. Não vale a pena, como empresário, abrir uma
livraria Travessa em um município onde não tem livraria?
A diferença entre ser um bom negócio ou não é a sua capacidade de ad-
ministrar. Primeiro você tem que ter talento e conhecer o negócio, tem que
ter vocação, até porque livraria não é muito rentável, existem coisas muito
mais rentáveis para quem quer só um negócio. A profissão de livreiro é uma
coisa muito prazerosa para quem gosta, tem suas vantagens, mas ela é de
uma administração quase que torturante. Pegando como exemplo a Travessa
de Ipanema, lá tem oitenta mil livros, cada livro é único, insubstituível, e não
pode faltar. Cada um tem que estar lá, cada um tem um ISBN, são centenas
de editoras diferentes. Então você administrar isso é um troço maluco.
Hoje em dia você tem a consignação, que é um excelente negócio nesse
aspecto, porque em vez do livro estar num estoque da editora, para ser
pedido por uma livraria que decida bancar, pagar e depois torcer para que
venda, o livro vai para o estoque da livraria. O problema é que isso tem que
ser muito bem administrado. Então, no começo, na boa época da Muro, a
nossa capacidade de administrar consignações era muito pequena. A gente
tinha algumas coisas em consignação, mas a maioria era comprada mesmo,
e isso requer um investimento, você tem riscos muito maiores. Então hoje
você consegue fazer crescer, ampliar o número de lojas, de filiais. Essa ex-
pansão que a Travessa teve foi possível por essas facilidades e por essa falta
de obrigação de investimento em estoque. Mas não é fácil.
Uma coisa fundamental numa livraria, e não adianta sonhar diferente,
é perceber o ponto comercial, o lugar onde você vai tentar a instalação da
loja. A livraria que você vai fazer tem que conversar com o público, tem que
ser a livraria que aquele público quer. É preciso ter um público enorme para
viabilizar uma livraria. A Travessa de Ipanema hoje vende mil livros por dia,
é muita coisa! Para você vender mil livros por dia você precisa que entrem na
sua livraria pelo menos duas mil pessoas por dia. Ou seja, tem que ser um
ponto interessante, não adianta achar que não. Hoje, todo shopping antes
de inaugurar pensa que livraria espetacular eles vão colocar, porque livraria
é uma coisa que atrai pessoas, entretém. Várias livrarias são muito boas em
oferecer isso. Tem que ter de tudo, a bibliodiversidade tem que ser espe-
tacular, tem que ter uma arquitetura bacana, o espaço tem que estar bem
iluminado, bem refrigerado, tem que ter um som ambiente que não interfira,
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tem toda uma concepção. Outro dia me perguntaram em qual livraria eu
me inspiro, eu disse Ralph Loren, Casa Lidador, Leonardo da Vinci, ou seja,
qualquer comércio que seja bacana. Porque não é só a questão do livro em
si, é pensar o espaço. Tem que ser um lugar agradável, maravilhoso, a que
as pessoas queiram ir, em que elas possam passar horas legais, se conectar
com o que está sendo lançado no mundo, com o que está sendo publicado
na Europa, ou seja, um lugar integral, com todas essas características. Na
hora de escolher um lugar, você tem que pensar se tem massa crítica, se tem
público suficiente para justificar o investimento, se vai ser viável a venda
de centenas de livros diariamente. Tudo isso você tem que pensar para ter
um modelo de livraria como é a Travessa, a Cultura.
Fale um pouco sobre o que é a profissão de livreiro no Brasil e no
mundo.
Às vezes as pessoas falam que a Travessa está maravilhosa, que parece
até uma livraria de Paris, e eu digo que não, porque em Paris não tem isso.
É curioso, Paris é a Disneylândia do livreiro, do amante do livro, mas lá não
tem livrarias como a Travessa, a Vila, a Cultura. Tem centenas de livrarias
pequenas, especializadas: uma só de jardinagem, uma só de náutica, uma
só de cães, é lindo esse jeito francês. Tem também a Fnac, que é essa grande
loja de departamento, e tem a Gilbert Joseph, que tem livrarias de quatro
andares, mas muito voltada para o público universitário, aquele público
Sorbonne. Essa é a característica europeia. O outro lado é o modelo ame-
ricano, que são essas verdadeiras lojas de departamento, como Barnes and
Nobles, a Borders, que são aquelas big livrarias sem muito charme, mas que
são maravilhosas também. Um modelo não é melhor do que o outro, são
estilos diferentes de atuar, até na questão comercial mesmo. Na França e em
quase toda Europa, tem a Lei Lang, tem o preço fixo; já nos Estados Unidos
é um salve-se quem puder. Na Inglaterra já teve lei do preço fixo também,
depois mudou, foi atrás do modelo americano. Lá eles têm grandes livrarias,
que aliás são maravilhosas, mas agora, sem o preço fixo, eles anunciam
grandes descontos. Eu fico olhando daqui e acho graça, porque os livros das
editoras inglesas vêm com o preço impresso na capa, então você vai numa
dessas lojas de departamento e um livro que tem um preço impresso na
capa de 12,99 é vendido por 7,50. Então você pensa que está ganhando um
desconto, mas não é bem assim. Eu, como importador, deveria comprar os
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livros com 50% de desconto. Mas na verdade um livro com preço de capa de
£12 sai para mim por £4. Aquele preço de capa é só para atender a esse tipo
de marketing. Isso é terrível, porque o preço é inflacionado para atender a
essa política dos descontos.
O preço de capa no Brasil está alto, e muita gente relaciona isso às
tiragens baixas. Quais seriam as políticas possíveis para o preço de
capa abranger um público maior, um público jovem, estudante, que
realmente encontra dificuldades em comprar livro?
Quanto maior a tiragem, menor o preço do livro. E você consegue uma
tiragem maior vendendo mais, mas aí, para você conseguir essa tiragem
maior, é necessária uma rede de livrarias muito maior também. Se em vez
de cinquenta livrarias para as quais você vai vender, existissem quinhen-
tas, esse seria o melhor dos mundos. Se cada cidade do Brasil tivesse uma
livraria porreta, a tiragem ia aumentar e o preço ia baixar, esse é o grande
caminho. A discussão sobre lei do preço fixo é bastante sofisticada e não
é possível abarcar ela toda aqui, mas acho que é essa lei que preserva as
livrarias. Ela não permite que o best-seller, que é o financiador da livraria,
seja vendido a um preço chamariz em outros lugares, e isso faz com que o
lucro desse best-seller fique na livraria, viabilizando ela. Você aí consegue
ter uma rede de livrarias bem maior, e assim consegue ter tiragens maiores
e abaixar o preço.
Existem pessoas que, pela sua localização geográfica e pelo fato de
as livrarias estarem se tornando lojas de luxo, se sentem excluídas.
Quer dizer, a gente sabe que uma pessoa não vai sair da Cidade de Deus
e entrar na Travessa do Leblon, não só pela questão geográfica, mas
porque ela vai se sentir inibida. Você acha que existe um público maior
no Brasil que não está contemplado? Você acha que a leitura poderia
ser maior, ou estamos bem dimensionados entre o público leitor?
Eu acho que você tem que trazer propostas para ampliação desse público,
e, na medida em que elas surgirem, a tendência é ter uma resposta positiva.
É verdade que as periferias da cidade têm tido cada vez menos acesso à cul-
tura, e têm cada vez mais consumido uma cultura de lixo. Então você tem
que oferecer para as pessoas outro tipo de coisa. Por outro lado, eu como
empresário não posso fazer nada que me inviabilize. A gente tem uma von-
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tade danada, tenta democratizar, essa é uma preocupação. Por exemplo, a
Travessa tem aquela cara bacana, mas não é uma coisa para poucos, não é
uma coisa cara, pelo contrário. Você não vai pagar mais caro numa livraria
bacana, seja qual for, do que numa outra livraria. É muito legal ver pessoas
que você sente que não têm muita intimidade com os livros e com esse
ambiente, pegando um livro e achando aquilo maravilhoso. É legal quando
você vê que está conseguindo oferecer isso.
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MileideFlores
Proprietária da livraria Feira do Livro.
Mileide, o que é uma livraria?
Para mim a livraria significa quase a história da minha família, no sentido
emocional. Somos livreiros há 54 anos. A livraria, não só a nossa, é um espaço
onde você faz os seus encontros, e também acontecem os desencontros. É
um caminho para o crescimento, não só profissional, mas humano. Costumo
falar que, se o mundo fosse visto através do binóculo da livraria, ele seria
diferente, porque lá você tem os acervos que fazem observar as coisas de
forma diferente. Para mim a livraria não é só um espaço de venda de livro, é
um espaço em que você harmoniza o seu futuro, talvez a sua vida. Onde você
realmente encara as coisas.
Conte um pouco a história da sua livraria.
A nossa livraria começou na praça do Ferreira, em 1956, como uma banca
de revista que vendia livros mais focados em literatura política. Com as per-
seguições dos anos 1950 e 1960, a livraria sofreu bastante. Meu tio, que foi
o fundador, era comunista de carteirinha, foi perseguido, e junto com ele a
livraria. Passamos por muitas dificuldades e acabamos precisando nos espe-
cializar, na década de 1970, no que chamamos de livro didático. Como o livro
didático não dá prazer, é só um aviamento de receita, eu acredito que ele não
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seja para o livreiro vender. A pessoa chega com uma receita do colégio e faz
o aviamento dela, e termina sendo um diálogo meio frio, muito comercial e
cheio de tensões. Você não está atendendo o cliente leitor daquele livro, está
atendendo um intermediário, os pais. Então sinto que esse momento do livro
didático fez com que a livraria perdesse suas características, apesar de ter sido
uma maneira de mantê-la viva. Hoje não trabalhamos mais com o didático,
paramos de vendê-lo há sete anos, e voltamos um pouco para a origem, não
só em acervo como em tamanho. Não voltamos a ser uma banca de livros,
mas somos uma pequena livraria de bairro na cidade de Fortaleza.
No Brasil existem cidades com apenas uma livraria para cada cinquenta
mil habitantes. É um número de exclusão muito grande em relação ao
livro. Como você vê isso nesse processo, nesses anos de envolvimento?
Apesar do romantismo de livreira, sempre analisei a questão do livro e da
leitura sob uma ótica muito política. Não dar acesso foi, durante muito tempo,
uma opção política no país, certo? Tem uma passagem no livro A conturbada
história das bibliotecas que fala da dinastia Qin e de um dos seus imperado-
res, que dizia que para dominar um povo era preciso mantê-los com fome e
controlar seu impulso intelectual. Então ele matava os escritores e queimava
bibliotecas e plantações de arroz. Então eu sempre analisei a questão sob
essa ótica. A ausência de livrarias no país passa muito por isso. Houve uma
mudança de época, uma mudança de tempo, mas não houve uma mudança
de pensamento. Não distribuir e não fazer o autor ser lido é uma forma de
matá-lo. Então os dois pontos que mais foram achatados no país foram esses,
a livraria e a biblioteca.
Quando o Jack Kerouac explodiu como escritor nos Estados Unidos
da América, nos anos 1950, o Henry Miller escreveu uma carta para ele
falando o seguinte: “Jack, se as pessoas temerem você, irão espancá-lo,
vão matá-lo. Se temerem demais, irão silenciá-lo.” Não distribuir é isso,
é o silenciar.
É calar a voz. Se você for analisar o percurso do livro no Ceará, vai perce-
ber que ele entrou via França e Portugal, em um momento em que 90% da
população eram de analfabetos. Nós estávamos construindo uma biblioteca
que seria inaugurada sem livros, só o espaço, até que perceberam que para
ter uma biblioteca era necessário ter livros, então fizeram uma campanha
53
de doação. Hoje nós temos a Biblioteca Pública do Estado do Ceará com o
terceiro maior acervo nacional em obras raras. Os livros do estado iam para os
três municípios onde moravam as famílias que detinham o poder político. Por
isso, quando as pessoas dizem que a elite brasileira não lê, eu questiono. Ela
lê o que ela quer ler, justamente para poder fazer o domínio da forma que ela
quer. A ida desses livros para esses espaços mantinha tais famílias no poder.
As políticas públicas dos últimos anos do governo foram muito basea-
das na compra de livros para bibliotecas. Quer dizer, no fortalecimento
das editoras a partir de compras públicas, mas visando à biblioteca, não
à cadeia comercial, ao mercado do livro como um todo. A questão é: a
posse de um livro não é um fator de cidadania, um direito do cidadão?
A posse do livro para a recorrência, a intervenção, o manuseio, a troca
com esse livro?
É preciso associar o livro à leitura, e a própria discussão da política do livro
passa pelo discurso da formação do cidadão, mas não consegue definir para
que querem o livro, para que público. Ainda há, dentro dessa política, um
peso muito forte, muito intenso, na questão econômica. As editoras ainda são
muito fortes, até porque é um mercado movimentado principalmente pelo
livro didático. O livro de literatura e o livro de arte ainda são muito escassos.
Apesar de estar aí toda essa campanha de uma biblioteca em cada município,
é preciso ver como esse livro está chegando. Está certo que o Plano Nacional
do Livro e da Leitura já está começando a dar essa atenção, os bibliotecários,
os agentes de leitura já estão preocupados com isso. Mas precisa de muito
mais. Nós temos uma população não leitora, e muita gente que consegue ler
não entende o que está escrito. A gente tem uma dívida social em relação a
isso, à própria constituição de um povo cidadão. A nossa dívida ainda é muito
alta, e passa necessariamente pela leitura.
A biblioteca supre sozinha o acesso ao livro e à leitura, ou a posse do
livro é também necessária, é também um direito?
É um direito. Eu sempre coloco a questão da livraria e da biblioteca como
se elas fossem da mesma origem. A livraria se perdeu ao longo do tempo,
principalmente nos anos 1970, quando o livro didático entrou com força. A
década de 1970 foi quando mais se fechou livraria nesse país, e, a partir daí,
houve um crescimento de dois tipos de livraria: a didática e a religiosa. E essas
54
não precisavam do livreiro. Na didática bastava alguém que soubesse ao me-
nos o alfabeto, para arrumar a prateleira em ordem alfabética de disciplina,
porque não existia nenhuma relação de vínculo, nem com o livro nem com a
pessoa que estava ali adquirindo. Então isso afasta a figura do livreiro e causa
um distanciamento do livro enquanto leitura. Porque, de qualquer forma, o
livreiro era um mediador, e o livro por si só não faz leitor. Não é como uma
bola, por exemplo, que você entrega a qualquer pessoa, analfabeto ou não,
e ela sai jogando, sabe o que fazer com ela. O livro não, ele precisa de algum
conhecimento anterior, e precisa de uma intermediação para que você abra
e processe essa leitura. Esse é o ponto mais crucial dessa questão, é a falta
dessa passagem. Abrir apenas uma biblioteca no interior, na capital, no bairro,
ou abrir uma livraria, sem o livreiro presente, pouco vai adiantar. É preciso
um estímulo, porque o livro não está no dia a dia do consumo do brasileiro.
Ainda são poucos que colocam na sua cesta básica de sobrevivência um livro,
então ele precisa realmente dessa mediação que o apresente.
A maioria das casas brasileiras não possui livros. E as que possuem, em
grande parte são para decoração. Quer dizer, o livro ainda está numa categoria
de elite. Eu tenho o livro, eu possuo o livro, eu sou intelectual. E o outro que
não possui, não pode comprar e nem tem uma biblioteca ao seu lado, se sente
subtraído em relação a isso. Eu gosto da discussão sobre o livro porque ela
passa por todas as discussões de educação cultural, social. Você pode fazer
todas essas transversalidades.
Como você vê o preço do livro no Brasil?
O mercado editorial sempre foi comandado por grandes, e é um merca-
do que nunca se preocupou com o leitor. A grande maioria dos editores não
percebe o livro enquanto leitura, eles estão muito mais centrados na ques-
tão econômica da venda. E como nós temos um governo que adquire uma
porcentagem altíssima do que é vendido no Brasil, então por que o editor
vai se preocupar em formar leitor se já tem a venda garantida? Isso dificulta
a percepção do livro enquanto leitura, enquanto agente social. E o livro se
tornou uma ferramenta de brigas entre o livreiro e o editor.
O editor e o livreiro hoje não se veem mais como parceiros. O editor quer
ser livreiro, e o livreiro quer ser editor. Falta a percepção do que cada um
tem como ação, como função dentro dessa cadeia. A editora tem um poder
econômico maior, e tem o governo comprando e fazendo uma distribuição
55
direta ao leitor, ao consumidor do livro, sem passar pelo meio da livraria. A
livraria passou a não ser mais percebida pela população. Em muitas regiões
a livraria não passa nem como uma casa de consumo de livros, não tem mais
essa percepção social. As pessoas são capazes de reconhecer a necessidade
da sapataria, mas não de uma livraria.
A bienal de livros é uma instituição formadora de público?
Sim, mas também depende do tipo de bienal que é feita. Eu faço parte
da comissão que coordena a Bienal Internacional do Livro do Ceará, que
desde 2000 mudou totalmente o foco. Até 1998 era uma bienal de exposição
de livros. Era uma bienal de editores, mas os grandes nunca apareciam, não
conseguíamos fazer com que se deslocassem e acreditassem que iam vender
livros em Fortaleza, longe do polo produtor. Então mudamos o foco da bienal
em 2000. Começamos a fazer um evento temático, onde geralmente esses
temas dialogam com a questão do livro. A população que frequenta a bienal
do Ceará gira em torno de quinhentas mil pessoas, e esse número só não
aumenta porque não aumentamos o espaço. Muitas delas não vão comprar
livros, mas já percebem que aquilo é um parque de diversões. Então isso faz
com que os alunos das escolas frequentem a bienal.
Nós temos um projeto que se chama Notinha Legal, em que entregamos
ao aluno da escola pública e de escolas comunitárias, de associações, de
ONGs, um valor para que ela possa adquirir um livro. Porque também só a
visitação escolar, sem que a criança tenha o poder de escolher um livro, é um
pouco estranho. Além disso, já há dois anos que conseguimos fazer com que
o governo do estado, dentro da política de formação continuada do professor
leitor, destinasse uma verba para que o professor possa ir à bienal e adquira um
livro de sua escolha, para sua formação profissional ou pessoal. Então a bienal
não é só um espaço de exposição de livros, ela tem um foco muito grande no
debate. Temos um espaço de discussão, um espaço para conhecer o escritor, o
que é muito importante para as pessoas, as crianças, perceberem que o autor
existe de fato, não é só um nome. O estado do Ceará passou por maus lençóis
nos resultados de nível de leitura, na questão da educação, então eu acredito
que tudo isso permitiu que esses projetos, essas ações, fossem feitos. Tanto
que existe uma expectativa muito grande em ver a próxima pesquisa, ver se
realmente todas essas ações conjuntas estão dando resultado.
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Você toca em pontos interessantes, como a questão da escolha pessoal
e do prazer para a formação de leitores...
Justamente. E a criança sai feliz! Como o valor não é muito alto, porque são
muitas crianças, tem professores que juntam as notas das crianças de uma sala
e conversam com elas assim: “Isso aqui dá para comprar bons livros, vamos
juntar a notinha de todo mundo, vamos fazer uma escolha e a gente lê coleti-
vamente.” Então a brincadeira, a criatividade em torno de uma ação dessa é
infinita. Quando o professor é leitor, ele faz muito pela relação professor-aluno.
Como você tem visto a descentralização de uma maior abrangência da
cadeia produtiva do livro?
Eu acho que essa é uma preocupação que já está posta. Eu faço parte do
Fórum da Rede Nordeste do Livro e da Leitura, onde a gente discutia muito a
questão da perda de identidade da população fora de alguns eixos. As caracte-
rísticas das linguagens regionais foram sendo perdidas, porque as linguagens
passaram a ser universais. Por exemplo, as pipas, as pandorgas e os papagaios,
não sei mais qual região chama pipa, qual chama pandorga. Então passamos
a discutir por qual razão isso estava acontecendo e descobrimos que os au-
tores que tinham uma linguagem mais regional não estavam sendo lidos. Os
professores muitas vezes ensinavam usando um best-seller, ou autores de
outras regiões, enquanto o autor local era totalmente desconhecido. Então
juntamos nove estados do Nordeste e, com parceria do Ministério da Cultura,
começamos a fazer esses fóruns, e na última compra da Fundação Biblioteca
Nacional já conseguimos que pedissem catálogos da produção regional. As
bibliotecas passaram a comprar, e dentro da estrutura de compra do estado
para a sua biblioteca já vem um encaminhamento do próprio ministério para
que sejam adquiridos livros de produção local. Isso vai gerar uma qualificação
dessa produção regional. É uma coisa muito recente, não dá pra falar de resul-
tados ainda, mas só em ter conseguido fazer essa mudança no pensamento
do grande comprador de literatura nacional, já consideramos um sucesso.
Então a centralização da produção dos livros didáticos nas regiões
mais desenvolvidas economicamente do Brasil corre o risco de fazer
com que os livros não abarquem o regional dentro deles?
Sem dúvida. Mas o crescimento da população leitora já começa a exigir
determinados retornos. As editoras didáticas já têm algumas dificuldades,
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principalmente no interior, de trabalhar todo o seu catálogo de livro de lite-
ratura, já está se exigindo certa qualidade. Nas escolas, existe uma dificuldade
na entrada de grandes editoras em determinados assuntos, como história,
geografia, porque você passa a ter escritores daquela região produzindo livros
sobre a história regional, do estado, da cidade, muitas vezes através de edi-
toras locais. E os livros de literatura produzidos por autores locais começam
também a ter o seu espaço. No Ceará, nós temos um parque editorial muito
pequeno, muito acanhado, mas nós temos uma produção de qualidade.
É a questão do parque industrial, e da distribuição em território nacio-
nal. Em um país desse tamanho, continental, não faz sentido a produção
ser centralizada em uma região e distribuída para outras, enquanto que
a descentralização desse parque industrial seria uma forma bastante
ativa de fomentar também as outras partes da cadeia produtiva do livro.
Pois é, e também a própria circulação. Em uma livraria como a minha, a
competição com a internet é desumana, principalmente porque eu posso
até querer entregar o livro para o meu cliente da forma mais rápida possível,
mas são 15 dias que me separam de São Paulo. Eu tenho que buscar esse livro,
passar por todo um trâmite, o pedido, a execução do pedido e o envio, o rece-
ber, o processar, até entregar de forma, vamos dizer, mais confortável, entre
12 a 15 dias. Enquanto que, se o consumidor pedir pela internet, vai receber,
muitas vezes, em menos tempo, porque a livraria está mais perto das editoras.
Eu não acredito que a livraria vai desaparecer; o cheiro do livro, o sabor do livro
dentro de uma livraria tem outro gosto. A grande preocupação é com o desa-
parecimento da pequena livraria, porque a pequena livraria tem um conjunto
de ações sociais muito grande. Ela está inserida na rua, geralmente está nos
bairros onde as grandes livrarias não têm interesse em estar. Ela também é uma
formadora de leitores, e talvez seja da melhor forma, da melhor qualidade. Mas
essas livrarias não estão conseguindo se manter nessa competição.
E quais são as políticas possíveis para isso?
A outra questão é a lei do preço fixo, que eu prefiro chamar da lei do fo-
mento do livro e da leitura. Essa lei traria alguns benefícios para o pequeno
livreiro. Muitas vezes o leitor está lá, dentro da livraria, conhecendo o livro,
abrindo, tocando, mas prefere comprar em uma rede de supermercados,
porque lá eles estão dividindo mais, dão mais descontos. Então existe essa
58
briga entre aquele que tem a responsabilidade da leitura e aquele que sim-
plesmente tem o livro como uma jogada de marketing, de propaganda do seu
comércio. E o livro vai estar lá, disposto ao lado do salame, do queijo. E tudo
que ele ganhar, ele pode repassar para o seu cliente, enquanto a livraria de
pequeno porte não pode fazer isso. É um problema sério. A lei do preço fixo
deveria ser mais discutida, tem urgência principalmente na regulamentação.
É um mercado que não tem regulamentação nenhuma.
É pensar a livraria como um aparelho cultural, e não simplesmente um
comércio.
É. No Ceará demos entrada na Associação Nacional de Livrarias, pedindo
uma discussão maior sobre a retirada do Pis e Cofins, por entender que era
um imposto cobrado em cima de um estabelecimento cuja ação social dele
era visível. E o retorno do governo era justamente retirar para que ele pudesse
não pagar em imposto, mas pagar em ação. E isso realmente aconteceu, mas
aconteceu de forma equivocada. Apesar dos editores dizerem que o livro não
aumentou de preço, ainda não conseguiram me convencer dessa conversa.
O livro continua caro. Então temos feito várias ações de negociação com o
governo, e a informação que temos é que vão sair editais para que o pequeno
livreiro possa participar, para que a ação cultural possa acontecer dentro da
pequena livraria. A justificativa é que as grandes redes conseguem parcerias
com o editor, levam o escritor e toda uma ação cultural para dentro da livraria,
sem nenhum custo, mas o pequeno livreiro não consegue. Então estamos
aí na expectativa de que isso realmente se torne possível, para que a gente
possa movimentar não só o escritor que frequenta a livraria no seu dia a dia,
porque normalmente o pequeno livreiro é amigo de vários escritores locais.
Que também outros apareçam e se possa desenvolver realmente uma ação
cultural. Essa é a única forma da livraria se manter, porque se a pequena
livraria fechar, ela não reabre, ela não retorna.
Em relação a políticas para formação de leitor? Quais são os exercícios
possíveis de fomento?
Tem vários. O Brasil está cheio de pequenas ações. Isso ficou muito visível
a partir de 2005, quando se mapeou e se percebeu que o Brasil só não estava
pior nos índices de leitura por conta dessas ações de voluntários. Tem um
projeto no Maranhão que se chama Jegue-Livros, em que as pessoas saem
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lendo, no meio da rua, da praça. São ações como essa, em que você busca
aproximar o livro da população, mostrar que o livro não é algo intocável. Na
bienal você percebia que muitas crianças andavam com o bracinho para trás,
como se não pudessem tocar no livro. Foi a partir daí que desenvolvi o projeto
da Notinha, para diminuir essa distância, acabar com essa ideia de que livro
é algo que você não pode tocar, que não pode rasgar nem molhar de suco,
porque senão você perde o livro. Mas o livro também é para ser perdido, e
para a gente se perder nele!
Uma experiência que me emocionou muito foi um analfabeto ter
passado uma tarde inteira na minha livraria vendo todos os livros de
cabeça para baixo! E aquilo foi me causando uma certa curiosidade. O
que ele estava vendo que estava encantando? E como chegar pra ele e
dizer que estava de cabeça para baixo? Era um adulto! Aí eu falei pra ele:
“Mas tu gosta de ler, né?” E ele respondeu assim: “Eu gosto de livro! Ler eu
ainda não sei, mas eu vou aprender e vou ler livro.” Eu só não chorei porque
não tinha chuveiro, e eu tenho uma mania de dizer que só choro debaixo do
chuveiro. Mas me emocionou muito, porque é o valor simbólico do livro e
da leitura. Para essa população que não lê, essa é, talvez, uma forma que eles
encontram de passar de um estágio social, vamos dizer, para outro. Uma das
coisas de que eu mais fico com raiva é quando você só trabalha a questão da
leitura a partir do texto, porque aí você exclui esse cara.
O Ministro da Educação Fernando Haddad falou em uma entrevista
que ficou muito impressionado em ver que crianças que tinham acesso à
internet acabavam recebendo notas muito melhores em português e em
elaboração de texto, ao contrário de todo o discurso vigente de que a
internet está destruindo a língua. Como você vê esse impacto do digital?
Eu sou pega nessa armadilha o tempo todo, porque para mim ainda é um
bicho meio estranho. Mas é fato que, apesar do truncamento de palavras, dos
“vc”, o computador faz com que uma população que não estava mais escre-
vendo volte a escrever. Eu acho que o computador vai diminuir as distâncias.
Eu não tenho medo, como também não acho que livraria vá fechar e que o
livro vá deixar de existir por causa da existência dessa máquina. Eu acho que
ela é uma ferramenta que, ao ser usada, pode qualificar e aumentar o número
de leitores. E com certeza eles vão terminar no livro impresso depois, que é
muito mais gostoso.
61
LuciaRiff
Agente literária (Agência Riff).
Como surgiu a Agência Riff?
A Agência Riff fará vinte anos em janeiro de 2011. Nós começamos bem pe-
quenininhos, a partir da agência de uma espanhola, que estava sendo fechada.
Antes eu trabalhava na área editorial, trabalhei na Nova Fronteira por muitos
anos, depois na José Olympio. Então essa espanhola, a Carmen Balcells, que
eu já conhecia de longa data através de um grande amigo em comum, ficou
meio desesperada do dia para a noite, sem ter como tocar a agência no Brasil.
A pessoa que era a responsável por essa agência tinha saído, e ela precisava
de alguém de confiança para encerrar o negócio. Ao longo desse ano em que
eu fui contratada, nós chegamos a um acordo para não fechar a agência, e a
transformamos na BMSR, que era uma sociedade dividida em três partes iguais,
entre mim, a minha irmã e a Carmen. Mas desde o início ficou muito claro que
a agência não seria gerida por três pessoas. Minha irmã saiu logo no começo
para fazer um MBA nos Estados Unidos e por lá ficou, e a Carmen tocava os
trabalhos dela na Espanha. Então eu fui administrando sozinha a agência. Os
anos foram passando, meus filhos foram crescendo, estudaram direito e come-
çaram a fazer estágio comigo. Em 2003 eu estava com os dois filhos formados
advogados e querendo assumir a agência junto comigo. Nesse momento a
Carmen já estava aposentada, e eu propus comprar a agência.
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Quais foram os autores que você herdou da Carmen?
Autor nenhum. Na verdade os autores brasileiros todos já tinham saído da
agência, e os que voltaram foram os que me conheciam da Nova Fronteira,
como Lygia Fagundes Telles, Mariana Colassanti, Roberto Da Matta, Sylvia Or-
thof. Eram autores que eu conhecia ou eram amigos de amigos, que voltaram
quando viram que a agência passou a ter uma nova estrutura.
O que faz um agente literário?
O agente administra o trabalho do autor, a obra, a imagem, os direitos
autorais, os contratos. O que a gente faz principalmente é isso, cuidar dos
livros para que sejam bem editados, tenham bons contratos, que o autor
tenha paz para escrever e que se sinta seguro em seu relacionamento com
a editora, que entenda o mercado editorial. E aí é claro, os desdobramentos
disso: o livro virar filme, o autor ser convidado para participar de algum evento,
alguma campanha publicitária, a imagem do autor que vai ser usada. Surgem
pedidos para antologias, para participações variadas; o autor vai escrever um
roteiro, uma peça de teatro, enfim, tudo relacionado ao trabalho do autor, do
escritor. Para o pessoal entender, eu comparo um pouco com o empresário
de um artista: você está cuidando da carreira dele. O meu foco principal é a
carreira do meu autor, para que ele prospere.
Uma coisa é administrar a carreira de autores já consagrados, outra
coisa é ajudar na construção de carreiras. A Agência Riff trabalha com
isso também, pega autores jovens, trabalha a obra deles, tenta construir
uma relação?
Sim. Vários dos meus autores praticamente começaram conosco. Na
verdade a minha maior dificuldade, e acho que a maior dificuldade de
qualquer agência, é saber que você consegue fazer. Porque eu tenho a estru-
tura, sei fazer e gosto de fazer; o que falta é tempo. E essa equação de quantos
autores eu consigo representar é difícil. Quando eu comecei com a agência,
eu pensei que trinta, quarenta nomes era o máximo que uma pessoa, mesmo
tendo um assistente, uma equipe, uma parte financeira, consegue cuidar. Eu
já estou com sessenta autores na agência. A minha grande preocupação é
essa. Surgem propostas, convites, ideias, indicações que eu fico tentadíssima
a assumir, mas o meu medo é não dar conta. Vontade de pegar novos autores
eu tenho, já assumi a responsabilidade de representar várias pessoas que es-
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tavam começando, ou pessoas que já tinham começado e não tinham ainda
muita expressão. Basicamente isso vale até hoje, o que eu busco primeiro são
pessoas com quem eu tenha uma afinidade pessoal muito grande. A pessoa
tem que entender muito bem o que eu estou fazendo e ela tem que gostar do
que a agência pode oferecer. É uma afinidade de proposta.
Como você trabalha um autor?
Conversando um bocado. Tem que haver uma afinidade com o autor e com a
obra do autor. À medida que você gosta muito daquele autor e daquela
obra, você passa a identificar qual o melhor caminho para ele, que
outras coisas poderia estar fazendo, se está bem onde está. Se ele não está em
lugar nenhum, vamos ver qual é o editor bom para aquele autor, porque cada
editor tem o seu perfil. Não apenas a editora, mas também é muito persona-
lizado, é importante entender a personalidade de cada editor. Tem editores
que são mais próximos, outros, mais frios. E tem autores que demandam mais
atenção, outros que são mais objetivos. Enfim, depende da obra. Os autores
de livro infantil e juvenil, por exemplo, não precisam ficar tão apegados a uma
editora só, eles podem ter um bom relacionamento com três, quatro, cinco
editoras. Já se você tem uma obra de um autor consagrado, com aquela obra
grande ali, em geral você busca apenas uma editora principal que vai assumir
aquilo. Então varia, não tem uma receita.
Em 2004, a revista Época publicou o seguinte: «Não exagera quem disse
que ela, Lúcia Riff, possui quase metade da literatura atual do Brasil nas
mãos, é tanta gente, e de tanto peso, que não aceita novos representantes.”
Não é verdade. Não existe nenhuma empresa fechada. É claro que você
aceita novos clientes, novos livros, porque isso faz parte da vida, do barato de
você trabalhar nesse mercado, você descobrir novos autores e aceitar o desafio
de representar um novo grande nome ou uma nova promessa. Há um ano uma
moça me mandou um manuscrito no e-mail, e eu adorei a moça, adorei o e-
mail, adorei o manuscrito, peguei, mandei pra Nova Fronteira, que na época
estava com uma linha boa de infantil. A Nova Fronteira publicou o seu livro
no mesmo ano. É claro que uma história dessas não se repete toda hora, mas
de vez em quando dá certo. E se a gente não tenta, aí que não dá certo nunca.
Então, não é verdade, eu sempre estive aberta para novos autores. A difi-
culdade é a seguinte: eu tenho atualmente mais de quinhentos pedidos de
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representação, eu tenho uma pasta em que eu vou botando os e-mails, de vez
em quando sento ali e respondo vinte, trinta, quarenta, cinquenta e-mails só
de pedidos de representação. E eu só comecei a fazer isso numa pasta sepa-
rada há um ano e pouco. Antes eu ia respondendo na medida do possível. É
muito pedido! Eu não dou conta.
Quando voltei de Bolonha não consegui responder todos os e-mails
relacionados à feira a que tinha acabado de ir! São muitos pedidos, e as
pessoas mandam manuscritos, não dá tempo! E eu não posso contratar
uma pessoa para fazer isso. É delicado você dizer para a pessoa “Não gos-
tei”, é melhor você dizer “Desculpa, não estou com tempo de me envolver
com o seu trabalho”. Às vezes eu não pego a representação, mas eu ajudo,
respondo, dou uma dica.
Também exagera quem diz que tenho metade da literatura atual do Brasil
nas mãos. A produção nacional é evidentemente maior que os sessenta autores
que eu represento, é muito maior do que o dobro dos meus sessenta autores,
por mais fantásticos que eles sejam. E eles são fantásticos!
Uma questão fundamental, e que está crescendo, é a da circulação da li-
teratura brasileira no mundo. Há um tempo uma famosa editora francesa
falou que não temos nenhuma lei que ajude na tradução, na circulação,
na representação. E ela perguntava como podíamos ter tanto descaso
com nossa própria literatura.
Isso é um desastre. Existem algumas tentativas muito tímidas, e o pior
das tentativas tímidas é que a cada ano elas mudam, não existe sequência
nenhuma nas ideias. Em um ano tem um programa de tradução que é dessa
maneira, outro ano que é de outra. Tem um ano em que bolsas de tradução
abrem em março e fecham em abril, outro em que abrem em junho e fecham
em julho, outro ano simplesmente não tem. Na prática nós não temos ne-
nhuma política séria, boa, consistente, como o Instituto Goethe tem com a
literatura germânica, por exemplo, ou os irlandeses, os canadenses, os portu-
gueses, os argentinos têm com as suas literaturas. Não precisa nem ir muito
longe. Os portugueses têm o modelo do Instituto Camões, que é uma beleza,
que ajuda editoras brasileiras a publicar portugueses, e ainda ajudam o autor
português a vir ao Brasil para divulgar o livro. Os irlandeses têm um programa
de treinamento de tradutores: eles pegam os tradutores que se dedicam aos
autores irlandeses espalhados pelo mundo, levam para passar dois ou três
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meses na Irlanda, se reciclando na língua, pegando ali as gírias. É bem bacana,
a gente não tem nada disso, estamos começando ainda.
Quem está fazendo um trabalho muito legal é o Itaú. O Itaú Cultural está
fazendo um mapeamento de quem são os tradutores dedicados ao português.
Não sei se eles estão fazendo uma diferenciação do português de Portugal
e o nosso brasileiro, mas, enfim, tradutores portugueses espalhados pelo
mundo, cursos de português espalhados pelo mundo, nas universidades que
têm departamentos de Português, e editoras que publicam autores brasileiros
espalhadas pelo mundo. Isso é fundamental. A partir daí você sabe com quem
falar, quem são esses tradutores que você tem que trazer para treinar. Achei
utilíssimo o trabalho do Itaú.
Eu fui a Brasília agora para um seminário desses voltados para a língua
portuguesa. Aí tem umas ideias tímidas, ideias de fazer antologias. Eu, sincera-
mente, acho que não é por aí. E o programa de ajuda de tradução da Biblioteca
Nacional, da forma que se encontra, eu realmente acho uma perda de tempo.
Aí tem uma outra questão: uma coisa é fazer uma antologia, e outra é
trabalhar o autor e qualificar lá fora, torná-lo conhecido, fidelizar pú-
blico. Como uma agência literária ajuda nisso? Ela representa em feiras?
Aí que está. As agências e as editoras são fundamentais para isso. Você
vê o modelo norte-americano, que é campeão em vendas de títulos para
fora. Tudo bem, eles partem do inglês, que é mais fácil, todo mundo lê, não
precisa traduzir nada, não precisa preparar nada, e existe toda uma cultura
de venda, quer dizer, todo um movimento de venda da cultura norte-ame-
ricana e inglesa para o mundo, através do cinema, da música, dos shows,
das minisséries. Então você lê aquilo como uma coisa que está na sua casa
todo dia, como os seriados televisivos. Não é o mesmo quando você está
falando de alguma coisa escrita no Brasil, escrita na Polônia ou na Índia, em
que já há uma sensação de ser estrangeiro. Mas aí que está. Se a gente não
leva às feiras e não manda para fora o que a gente tem de melhor, aí que não
vai acontecer nada mesmo. Se eu colocar na ponta do lápis, não só não me
rende nada como eu perco dinheiro com as feiras. Quer dizer, se eu pensar
friamente. Estou pensando só no ponto de vista financeiro. O que eu gastei
para chegar a Frankfurt, eu não recupero. Pagar avião, hotel, home page da
agência, impressão do catálogo, tudo relacionado a expor os meus autores,
traduzir aquilo para o inglês, para estar presente numa reunião de meia hora
66
em que eu vou tentar convencer alguém a prestar atenção no que eu tenho.
Se eu pegar tudo que vendi durante aquele ano, pegar os 10% de comissão
que a gente ganha, não paga mesmo! Mas é uma das coisas mais gostosas
do nosso trabalho. Na verdade, como você administra a obra do autor no
Brasil, uma parte do que eu faço é tentar vender para fora. A esperança é
que isso não continue sendo tão difícil assim para sempre. Por exemplo,
vender para Portugal já está muito gostoso, já é muito mais fácil. O número
de vendas em Portugal aumentou muitíssimo. Eu quero caprichar agora
na América Latina. Daqui a pouco vou para a Feira Internacional do Livro
de Guadalajara. Nos primeiros anos a gente quase que só atendia pedidos,
depois começamos a cavar uma venda ou outra, agora estamos ganhando
uma certa velocidade.
Há uns anos fui ao México e fiquei espantado ao perceber que o mundo
todo vende os mesmos livros, com as mesmas capas até. O mesmo autor,
seja chinês ou nigeriano, que é traduzido no México, é traduzido no
Brasil, em Portugal. Daí você vê o centralismo das feiras nessa seleção
de autores, ao mesmo tempo em que existe a internet, que permitiria um
acesso descentralizado à literatura desses países. Como o meio digital
pode ser usado como instrumento para essa descentralização?
Eu estou usando demais, porque o correio é caríssimo. Mandar um pacote
de 1 kg para a Espanha, para a minha agente, custa R$ 85,00. Havia, no início,
uma resistência, ninguém queria ler nada na tela, mas hoje em dia você manda
um arquivo digital de tudo, e muitos editores têm esses readers, e-books, e
leem os livros com muito mais conforto. Isso facilitou demais!
A feira continua sendo fundamental. Quando o editor está procurando
um autor brasileiro para publicar, ele está interessado e está vendo que tem
um movimento no Brasil. Ele não vai escolher, de tudo que foi publicado
no Brasil, os dois ou três melhores autores brasileiros, ele vai escolher o
que oferecerem para ele. O universo dele é muito menor. Ele às vezes não
tem nem acesso, não sabe o que está sendo bem publicado, quais são os
bons nomes. Ele não tem tempo também para ficar lendo todos os nossos
cadernos literários, as nossas críticas, não sabe a diferença entre uma coisa
e outra. Mas aí chega um editor, um agente no qual ele confia, e recomenda,
diz que é sensacional, que tem a ver com a editora dele, é outra coisa, e ele
acaba aceitando. Na hora em que se está vendendo, você tem que conhecer
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o que tem, quem é o seu autor, e o que o outro publica, claro, para oferecer
o livro certo para a editora certa. Às vezes os resultados são lindos, e você
fica feliz para o resto da feira.
Como se dá o leilão de uma obra? Como foi o leilão da obra do Rubem
Fonseca, por exemplo?
Olha, eu com certeza posso falar o que é um leilão, mas eu não posso fa-
lar sobre esse processo específico. Isso é uma regra básica do agente, há um
sigilo absoluto. Quem pode falar sobre essa negociação é o próprio Rubem
Fonseca ou a editora, ninguém mais. Mas, para escolher uma editora para
publicar um autor, tem que pensar se é um autor estrangeiro ou brasileiro.
Na minha cabeça, quando o autor é estrangeiro, nós normalmente estamos
lidando apenas com o agente do autor, e o objetivo é o melhor negócio
possível no Brasil. Então você manda os arquivos digitais, as resenhas,
avisa que tem determinado livro, e as editoras interessadas se apresen-
tam. Uma faz uma oferta, outra cobre a oferta, e tem todo um mecanismo
para você conduzir aquele leilão de ofertas, até que a melhor oferta vence.
Então é apenas uma questão financeira?
Pois é, a questão é financeira. Existem algumas variações sobre o tema. Às
vezes tem leilão de melhor oferta, cada um faz uma oferta somente e entram
o marketing, royalties. Mas às vezes são rodadas de melhores ofertas mesmo.
Tem outra forma de negociar, que é quando alguém que está especialmente
interessado no livro faz uma oferta antes que tenha qualquer outra oferta na
mesa. Já para o autor brasileiro, a maneira mais gostosa de trabalhar é deixar
ele escolher a editora. Porque, na verdade, os autores, e mesmo os herdeiros,
no caso de um escritor que já morreu, conhecem as editoras. Então eles
dizem se querem uma editora em São Paulo, no Rio, uma editora grande ou
pequena, um editor do qual possa ser amigo ou um muito agressivo, com
marketing poderoso. Se quer uma editora que seja ligada a grupos x ou y, que
possa trazer outras oportunidades, ou uma editora especializada, de nicho,
que vá cuidar especificamente bem disso ou daquilo.
A melhor oferta passa também por todo um trabalho em torno do livro...
Passa pela questão financeira, mas passa muito pela questão editorial
também. É um conjunto de propostas: das capas, do trabalho que vai ser feito
68
com a imprensa, de marketing, de divulgação escolar, vendas para o governo.
Hoje em dia a coisa está super complexa; você tem que pensar no e-book, no
audio book, no pocket book. No caso de uma obra grande como a do Rubem
Fonseca, você tem que pensar numa editora que possa fazer isso tudo. Mas
sempre passa pela escolha pessoal do autor também, e isso ficou claro no
caso do Rubem. Então não é um leilão como os de obras estrangeiras, que,
se na última rodada ficou uma melhor oferta, ninguém cobriu, então pronto.
Sobre os novos veículos literários, como você vê a questão dos readers?
Essa história está dando um trabalho enorme a todo mundo, dá até pena
das editoras, porque do dia para a noite você tem que armar outro departa-
mento para cuidar de uma área que rende muito pouco ainda. Você pode per-
guntar para qualquer um que já está trabalhando com e-book aqui no Brasil,
os números estão realmente mínimos. Mas é uma área estratégica, você não
pode ignorar, tem que entrar. Inicialmente eu pensava que era só colocar o
pdf do livro para vender, mas não é isso. Você tem que bolar mecanismos de
venda, tem que adaptar os contratos.
Quase nenhum contrato previa e-book. Os que previam, colocavam apenas
uma opção para e-book, mas não propriamente a negociação, como seria,
não tem os royalties, os mecanismos de distribuição. Tem uma série de pro-
blemas agora, como a questão dos readers, que é complicadíssima, porque
é uma coisa a que o público geral não está acostumado, e é caro para burro.
Além do mais, ao escolher o reader, você limita sua compra de livros. Não é
qualquer livro que você vai poder comprar para aquele seu reader, o que é
uma limitação absolutamente louca! E a gente sabe que esses aparelhos vão
estar completamente obsoletos em dois ou três anos. Então você não sabe se
poderá passar sua biblioteca para outra máquina. Eu assisti a um seminário
de direito eletrônico em Frankfurt, e tinha um cara que queria saber se podia
deixar a biblioteca de e-books dele para o filho! O conceito é outro, o e-book
não é para deixar pro filho!
Eu lembro que custei a ter coragem de comprar o meu primeiro iPod
porque diziam que a bateria só durava três anos. Eu não vou comprar um
negócio que só dura três anos! Pouco depois eu entendi que em três anos o
iPod já seria o iPhone, ou seria o iPad, ou seria outra coisa, não interessa mais.
A tecnologia anda muito mais rápido.
69
E a questão da pirataria? Assim como aconteceu com o mp3 na indústria
da música, você acha que é possível acontecer no mundo editorial? É uma
questão que assola o mercado?
É uma questão séria. As estatísticas da perda do mercado editorial, fonográ-
fico, o mercado das artes de um modo geral, que é o que nos interessa aqui, são
violentas! É importante você pelo menos oferecer, para quem estiver minima-
mente interessado em ser correto, um caminho certo de baixar aquele livro. Se
houvesse um mecanismo simples, fácil, barato, tranquilo e transparente de com-
prar música há mais tempo, a gente não estaria na situação em que está. Até hoje
não entendo por que não podemos comprar música pelo iTunes, por exemplo.
Então, tem que poder ter o livro disponível na internet, o livro para os readers.
Fale um pouco sobre a mudança do mercado editorial brasileiro nos
últimos vinte anos, a entrada de novas editoras, estética, a qualificação
no meio.
É fantástico. Eu entrei no mercado editorial em 1983. De lá até agora, a
mudança é de tirar o chapéu. Hoje em dia eu chego nas feiras e as pessoas
querem vender para o Brasil, prestam atenção no Brasil. Comprar ainda não
muito, mas vender sim, recebem royalties importantes do mercado brasileiro.
Os números daqui já chamam atenção, a quantidade de livros que a gente
vende não é mais uma coisa tão desprezível. As capas são lindas, de um modo
geral chamam a atenção com projetos gráficos dos mais bonitos que as edi-
toras recebem dos outros países. Os editores são simpáticos, viajam, falam
bem inglês, estão presentes nas feiras, são conhecidos. É um mercado que se
impôs pela competência. E agora os problemas são a exceção, não mais a regra.
Já houve tempo em que havia problemas sérios de pagamento, problemas
sérios de direito autoral. A inflação comia os royalties todos. De vez em quando
dava uma louca no governo, como na vez que proibiram a remessa de dinheiro
para o exterior, e aí não dava para pagar direito autoral nenhum. Havia um
trauma em relação a vender para o Brasil que foi totalmente dissipado. O que
a gente encontra hoje é uma situação totalmente diferente. Isso em relação
ao exterior, mas mesmo aqui no Brasil é muito interessante.
Em 1983, havia um incentivo do governo para editoras que publicavam
autores brasileiros, precisava haver esse incentivo para possibilitar as pu-
blicações, hoje o autor brasileiro é valorizadíssimo. Também porque há um
projeto importante dos últimos governos, desde Fernando Henrique Cardoso,
70
principalmente, e continuando nos governos atuais, de comprar muito livro,
que é fundamental, para a formação de bibliotecas, para as escolas. Isso tam-
bém está dando uma força grande para o mercado brasileiro e para o autor
brasileiro. Mas não é só isso, é o autor que está aqui, que está presente. Tem
toda uma literatura moderna também. Os clássicos são muito valorizados,
mas há uma turma jovem.
E o novo acordo ortográfico? Qual é a sua posição em relação a ele?
Tenho uma posição meio complicada. Não sei se é politicamente correto dar
a minha opinião. Na verdade eu nunca entendi muito. Conversei com várias
pessoas, mas nunca entendi muito a necessidade do acordo da maneira com
que foi feito. Sou completamente leiga, mas pensava que, se o objetivo é ter
uma língua portuguesa oficial, que possa ser tratada na ONU como uma língua
portuguesa oficial, por que nós não poderíamos ter, como o espanhol tem, um
grande vocabulário ortográfico em que todas essas formas variadas de escrever
o português, com acento, sem acento, com “c” mudo, sem “c” mudo, fossem
aceitas como português oficial? Por que impor mudanças para ambos os lados,
mudanças às vezes culturalmente complicadas, se, na verdade, na essência,
no significado das palavras, não há acordo que resolva? Os portugueses vão
continuar usando as palavras no sentido que eles querem dar a essas palavras,
e nós também. Mas correu o acordo, fizeram a assinatura, essas coisas. Agora,
vai conversar com um português para você ver o que é bom para tosse! Não há
acordo em Portugal. Não há oficialmente nenhuma publicação já escrita no
acordo. É uma questão séria lá em Portugal, eles não querem aderir ao acordo.
Os jornais não estão escritos no acordo, os livros não estão escritos no acordo.
A impressão que dá é que estamos “micando” com esse acordo aqui, me dá
uma certa aflição; eu vejo o sofrimento que é para as editoras trocarem todos
os livros correndo. E nós fomos muito rápidos, muito eficientes, se fosse uma
coisa realmente para dar certo, o Brasil estava de parabéns, porque rapidamente
o governo impôs o acordo que assinou, e as editoras acompanharam. Eu não
sei mais escrever português, mas tudo bem. Esses acordos só tem graça se todas
as partes aderirem, não é? Não sei o que vai acontecer.
Sem contar que foi uma imposição que não teve uma contrapartida. Dis-
seram refaçam, revisem e reimprimam, mas quem paga por esses custos?
Os custos foram para a sociedade.
71
E tem autores que não querem que mude, então está dando problema
também.
Quando o autor fala isso, é obrigatório cumprir.
Pois é, mas as editoras estão desesperadas. Eu estava propondo uma
solução maluca, que é a de ter uma edição com o acordo para o governo, e
uma edição sem acordo para a livraria. Uma sandice! Não sei, a impressão
que me dá é que todo mundo gastou um dinheiro enorme de passagens,
de conferências, e foi um dinheiro mal gasto. Será que não dá para a gente
simplesmente aceitar as várias formas da língua portuguesa, já que era só
forma, não era conteúdo?
E já que Saramago vendia tão bem! O que mostra que não existia o impe-
dimento.
Porque na verdade, no que é complicado, que é a compreensão, o sentido,
você não tem dificuldade nenhuma. Você senta com qualquer português, as-
siste a qualquer conferência, lê qualquer livro e não tem problema nenhum. Eu
trabalho muito com Portugal e não tenho problema absolutamente nenhum.
E sobre o mercado de pocket e o preço de capa no Brasil, como é essa
questão?
Essa história do pocket é sensacional, acho super positivo que estejamos
entrando firme agora no mercado de pocket. Mas aqui no Brasil temos uma
característica um pouco diferente. No mercado americano, que é o campeão
de pocket, você tem uma edição cara, e uma edição pocket mais barata. Entre
o preço de capa do livro normal e o preço de capa do pocket, você tem uma
diferença imensa. Aqui no Brasil você não tem essa margem. O preço de
capa de um livro normal vai estar entre R$ 30,00 e R$ 40,00, enquanto o do
pocket vai estar entre R$ 15,00, R$ 18,00. O pocket custa pouco menos do que
a metade do preço normal do livro, ao contrário dos Estados Unidos, onde é
cinco vezes menor. Esse já é um fator de complicação. De qualquer maneira,
o pocket, do jeito que está entrando, bonito, com qualidade, com charme,
diminui a margem da editora, mas aumenta o público, pega um público novo,
que perdeu aquele lançamento lá atrás, ou então pega um público paradi-
dático, o que é super saudável. Eu adoro quando os livros que eu represento
vão também para o pocket.
72
Que políticas o governo poderia fazer para baixar o preço de capa no
Brasil? Você vê políticas nesse sentido?
Tem toda uma discussão, sobre a qual eu não vou saber dar minha opinião
agora, sobre o preço fixo. É uma discussão linda, mas eu não sei qual a solução
boa para ela, tem prós e contras de vários lados. O modelo francês, por exemplo,
soa interessante, tem aqueles seis meses de janela, em que todos os livros têm
que ser vendidos por um preço de capa oficial, que a editora impõe, e depois
podem entrar os descontos. Com isso você fortalece as pequenas livrarias.
Noventa e cinco por cento dos editores franceses apoiam a lei do preço
fixo.
Como consumidora me parece um modelo inteligente. Me dá medo ver
uma Amazon, uma Barnes & Noble, ou nossas grandes daqui, onde tudo o que
interessa são os best-sellers. Tudo bem, os best-sellers vão vender de qualquer
maneira, e os outros? Como a gente trabalha com os outros livros? Se você
matar a pequena livraria, a livraria de bairros, os outros livros venderão onde?
Há um debate muito grande em torno dos direitos autorais em termos de
herdeiros. Você tem visto mudança de comportamento entre os herdeiros,
uma maior consciência deles em relação às obras? Como é esse processo,
tem visto diferenças?
Na verdade, como em qualquer área, tem as pessoas que são razoáveis
e as que não são. As que pensam de uma maneira mais coerente, consistente,
e as que são desvairadas. Acho que não existe uma coisa geral dos herdeiros.
Herdar uma obra é uma coisa difícil! Herdar um apartamento é muito fácil;
mesmo que saia a maior brigalhada na família, um dia você vende o apar-
tamento e divide. Mesmo nas famílias mais complicadas, se forem imóveis,
coisas assim, você um belo dia divide a casa. Quando você herda uma obra,
você tem que cuidar daquela obra até morrer! E aí a obra vai entrar em do-
mínio público totalmente. Mesmo que você contrate alguém, um advogado,
um agente, alguém que possa te ajudar a administrar aquilo, você vai ter que
se envolver. Vai precisar dizer sim ou não para uma série de coisas, colocar
aquilo no seu imposto de renda.
Tem casos ótimos de obras que estão muito bem-sucedidas, em que o
herdeiro tem um trabalho danado, mas tem um rendimento, e tem milha-
res de casos que não. Tem obras aí com 35 sobrinhos! E que vendem muito
73
pouco. É difícil: como você administra um negócio desse? Eu acompanho
várias obras, vários grupos de famílias, e sinto o peso da responsabilidade.
É muito comum o herdeiro se perguntar o que o pai, o avô ou o tio faria,
que decisão ele tomaria. A referência é sempre o que o próprio autor/autora
estaria pensando se estivesse aqui. E são milhares de solicitações. Eu me
lembro da época do centenário de Drummond, em que o Pedro, neto do
autor, me disse que recebeu mais de quarenta pedidos de uso da obra em
apenas um dia. Claro que boa parte dessas coisas ele ia repassando para
mim, mas você tem que ter um tempo da sua vida pra cuidar da obra. Claro
que tem herdeiro que leva isso a um nível de tamanha complicação, que
começam a ver perigo em tudo, então qualquer uso da obra é um abuso, aí
cria uma situação.
Qual é a dica para publicar um livro? Como a gente faz para publicar
um livro?
Olha, hoje em dia a gente tem essa maravilhosa ferramenta que é a publi-
cação na internet. A vantagem da internet é que você não precisa mais ficar
na gaveta, não precisa mais ficar não-lido, amargando cartas de rejeição ou o
silêncio das editoras. Agora, a primeira coisa que o autor que quer ser publica-
do tem que fazer é conhecer o mercado. É saber quem publica o quê. Ter uma
ideia de qualidade, ter senso crítico. O que vai ser publicado é o que é muito
bom ou pelo menos que tenha uma expectativa de ser muito bom. Ou que o
autor tenha alguma força, mesmo que não seja tão bom assim, mas que ele
tenha um carisma pessoal, ou um conhecimento pessoal para ajudar a vender.
Tem muita coisa boa, espetacular, que não vende quinhentos exemplares! E
evidente que tem muita coisa boa que as editoras acabam não lendo, não
prestando atenção ou deixando passar. Mas quem é que tem tempo para ler
tudo também? Então é preciso ser extraordinariamente eficiente nessa busca
por editora, ser simpático, mandar um material que já tenha sido bastante
lido e relido e revisado, que teve seu tempo de gaveta, que tenha consistência
e que tenha a ver com a editora para a qual você está mandando. Porque as
pessoas são muito sem noção, mandam qualquer coisa para qualquer edi-
tora, e depois reclamam que não são publicadas, que não são atendidas. As
pessoas já chegam para mim com toda a raiva do mundo, dizendo que não
vão ser lidas, não vão ser publicadas. Pessoas com esse tipo de atitude, você
quer distância. Então, é preciso saber o que está fazendo, estudar o mercado.
75
Como foi criado o Canal Brasil?
O Canal Brasil é uma joint venture de um grupo de cineastas com a Globo-
sat. Com a criação da Lei do Cabo, surgiu a oportunidade de criar um canal
que fosse exclusivamente de conteúdo brasileiro independente, focado no
cinema. Para isso, foram convidados os principais produtores brasileiros.
E o Grupo Consórcio Brasil acreditou na possibilidade de transformar seu
acervo em negócio. Existia uma grande dúvida. O cinema tentou se organi-
zar diversas vezes. O Glauber Rocha propôs o casamento da televisão com o
cinema, o que seria a alternativa para o cinema brasileiro. Com a Lei do Cabo
surgia a oportunidade de, através de uma legislação, criar um canal com essas
características. Esse grupo se reuniu. Eram seis: Luiz Carlos Barreto, Anibal
Massaini, Zelito Vianna, Roberto Farias, Marco Altberg, a Casablanca, inicial-
mente, hoje representada pelo Patrick Siaretta, e eu. Como tive experiência no
mercado financeiro, organizei esse negócio. Nós iniciamos o canal com 228
títulos. Começamos a negociar com as operadoras, que seriam fundamentais
para a viabilização do negócio, porque não tínhamos dinheiro. Nossa moeda
era uma quantidade de títulos. Precisávamos de um contrato de distribuição
para buscar financiamento. Conversamos com a TVA, e acabou não dando em
nada. Nisso, a Globosat entra em conversação com a Net, com a qual se asso-
PauloMendonça
Diretor do Canal Brasil.
76
cia para a criação do Canal Brasil. O canal foi implantado em 18 de setembro
de 1998 e conduzido pela Globosat até o ano de 2004. A negociação foi dura,
mas conseguimos uma condição bastante favorável, de meio a meio, o que
era inimaginável numa associação desse tipo. Nós tínhamos apenas nosso
acervo como moeda, mas eu não sabia que ele não estava telecinado. Aliás,
na época eu nem sabia o que era telecinagem. Foi aí que teve outra rodada
de negociação, que resultou na entrada da Casablanca. Na época, conversa-
mos com a Arlete Siaretta, que era quem fazia a telecinagem, almoçamos e
saímos associados. A partir de agosto de 1998 a Casablanca telecinou todos
os filmes do acervo.
Qual era missão do Canal Brasil quando ele surgiu, e como é hoje?
Começou como um canal exclusivo de cinema. Quatro anos depois, em
2002, nós vivemos uma crise de gestão, o que gerou um prejuízo brutal. Houve
uma renegociação entre os sócios, e eu acabei sendo convocado patriotica-
mente para assumir essa nova etapa. Feito o primeiro diagnóstico, chegamos
à conclusão de que ser um canal de cinema brasileiro, que se encontrava, no
pacote da TV a cabo, depois dos canais de filmes estrangeiros, não tinha sido
muito proativo para nós. Éramos vistos como o Telecine do cinema brasileiro.
A identidade que procurávamos ter não estava se reproduzindo na leitura que
o canal propiciava. Essa montagem de empacotamento interessava corpora-
tivamente à Globosat, mas não para o Canal. O primeiro movimento que nós
fizemos foi o de desorganizar essa confortável organização dada. Tínhamos
algumas vantagens, tínhamos nos apropriado do nome Brasil, o que permite
uma possibilidade infinda de alternativas, principalmente música. Então
partimos para a ampliação desse leque, de transformar o perfil do canal em
efetivamente cultural.
É claro que o cinema sempre estará no nosso DNA. Hoje, 75% da progra-
mação do canal são filmes. E os outros 25% são de programas que tangenciam
o cinema. A música entrou positivamente, como depois vieram fotografia e
artes plásticas. Alteramos o nosso perfil para nos posicionar como um canal de
cultura, mas visando não ser um canal com cara institucional. Quando come-
çamos, a primeira coisa que pensamos foi que não poderíamos ser parecidos
com televisão pública. Isso era uma brincadeira que acabou virando verdade.
A gente busca a irreverência. Eu trouxe comigo o Paulo César Pereio, a
Ângela Rô Rô, o Selton Mello, Zé Celso Martinez Corrêa, Jorge Mautner, Fer-
77
reira Gullar. Eram nomes de diversas áreas, mas sempre marcados por uma
postura corajosa e irreverente.
Qual foi o conceito que estava por trás da escolha desses nomes?
Inteligência. Ter qualidade, mas sem aquela busca de perfeição, de modelo
de perfeição que a Rede Globo oferecia e que foi incorporada pela TV por
assinatura. Fugir do gosto médio, que é uma pasteurização em busca desse
padrão médio. Como diz o Ariano Suassuna, o mau gosto é melhor do que
o gosto médio, porque o mau gosto pelo menos traz uma possibilidade de
inovação. Para quem tinha um orçamento mínimo, essa era uma proposta
tentadora. Então, a gente procurou pensar em inteligência, desafiar quem es-
tivesse conosco a propor os seus próprios modelos. O nosso formato, o nosso
tamanho, permitia o erro. A gente não saiu da crise, mas ela foi administrada
para conseguir uma sobra de recursos. Com essa sobra, começamos a criar
produtos originais. Ao trazer o Pereio para fazer um programa de entrevistas,
estamos trazendo uma pessoa que agrega inteligência a uma conversa.
Nós não saímos da crise. Ela foi administrada sem dinheiro novo. O que
fizemos foi enxugar despesas, reprogramando algumas coisas, tirando alguns
modelos de programação, como um cinejornal, que era hard news. Se televi-
sões convencionais fazendo hard news já é uma coisa complicada, imagina
hard news de cinema: não acontecia nada, era enfadonho. Direcionamos isso
para um programa semanal que pudesse ser mais analítico. E começamos a
praticar preços comuns de mercado, para conseguir uma sobra no nosso orça-
mento, que possibilitou trazer um olhar novo. O modelo era agregar produção
independente. Cada um começou a trazer as suas propostas, com um nível de
diversidade que era interessante. Eu tinha 25% do meu tempo para praticar
a diversidade, e fizemos isso trazendo para o canal pessoas interessantes.
Qual o orçamento do canal para investir em produção independente?
Por ano, são R$ 3 milhões para compra de filmes e outros R$ 3 milhões para
o fomento da produção. É um canal eminentemente privado. Nunca tivemos
incentivos. O que pretendíamos, e só agora começa a acontecer, cinco anos
depois, é a possibilidade de trazer patrocínios. O conceito do patrocínio co-
meçou a ser interessante, porque nem tudo que nos é proposto nos interessa.
Existe uma grande confusão. Eu até brinco: “Antes de trazer a proposta, dá
uma olhada no canal para saber que tipo de coisa a gente é, que tipo de bicho
78
a gente é.” Mas não conseguimos fazer tudo: o orçamento é limitado. Então,
abrir a possibilidade de programas virem patrocinados para o canal é uma re-
alidade extremamente conveniente para os produtores. Se nós patrocinamos,
eles ficam limitados ao nosso universo orçamentário, que é muito apertado.
Qual é o orçamento médio de um programa?
O custo de um programa do canal fica em torno de R$ 12 mil, R$ 13 mil. A
compra de filmes é tabelada. Existem dois universos de filmes: os de acervo
e os novos. Essa foi uma das primeiras coisas que fizemos para criar transpa-
rência, para evitar subjetividade. Criamos uma tabela que tem o valor fixo de
acordo com o box office dos filmes, agregado a um valor variável, que signifi-
caria a multiplicação de um centavo, ou dois centavos agora, por espectador.
Essa é a compra de um novo título, e é importante termos filmes novos por
estarmos num pacote Premium. Isso é muito prejudicado pelos incentivos
que os canais estrangeiros têm. Quando falamos dos canais estrangeiros, es-
tamos falando dos estúdios, que conseguem os filmes mais competitivos. Não
necessariamente os melhores, mas os de maior atratividade. Agora, o Brasil
é muito marcado pela produção independente. Setenta e dois por cento do
que é produzido hoje no Brasil vem inédito para o Canal Brasil.
O Brasil é um país absolutamente televisivo. Noventa e cinco por cento
da população tem acesso à televisão, mas não tem acesso ao cinema, e nem
à TV a cabo. Hoje, você tem um universo de sete milhões de pessoas com
TV a cabo, mas não com pacote Premium. Como vocês veem esse quadro?
Como uma perversidade. Estou há pelo menos quatro anos numa briga
séria com as operadoras, tentando essa migração para o pacote básico. Mas
não é conveniente para eles. Agora existem novas alternativas. Você tem as
teles entrando com uma proposta de público C e D, que é extremamente
interessante. Mas o Canal Brasil não está em nenhuma dessas propostas,
porque os canais de filmes, que são necessários para fechar uma grade, são
negociados em forma “cartelizada”. Quando os Telecines negociam um canal,
necessariamente negociam os seus seis canais. Para a HBO negociar o seu
canal, essa negociação engloba os seus nove canais. Não sobra espaço para
o Canal Brasil, então a gente está de fora. Por isso a importância do PL29, que
está trazendo um olhar para o conteúdo nacional. Entregar isso para o capital
estrangeiro, para o modelo estrangeiro, tem sido muito perverso.
79
Explica para a gente o que é o PL29.
O projeto de lei 29 é um marco regulatório do setor. O setor de televisão
por assinatura é todo pautado por uma única lei, que é a Lei do Cabo, que
regula as operadoras a cabo. O resto é terra de ninguém, é uma coisa ab-
solutamente selvagem, ocupada exclusivamente pela SKY e onde as teles
começaram a entrar. A PL29 cria um modelo que uniformiza as regras de
operação para todos, define a atividade de controle e cria um modelo de
conteúdo. A polêmica se dá na medida em que os canais estrangeiros vão
se ver obrigados a carregar três horas e trinta minutos de produto nacional
na sua programação semanal – como se isso fosse uma coisa muito perversa
–, e é obrigatório carregar pelo menos dois canais de conteúdo brasileiro
qualificado. Isso configura outra realidade. A providência que estamos
tomando é chegar ao limiar do PL29 aparelhados para sermos um desses
canais, como uma opção de canal para esse novo modelo de negócios. Isso
significa preço e qualidade.
Há quem diga que a TV digital já exista na internet, inclusive os aparelhos
de TV novos já vêm com entrada para internet...
O exercício de produzir conteúdo pela internet é inevitável. Hoje, é um
mal necessário porque eles não conseguiram monetizar essa situação. Passa
por uma discussão de como e onde uma programação em streaming, ou seja,
uma programação concatenada com um canal vai ser remunerada. Não me
interessa em nenhum momento estripar a minha programação. Eu tenho
muita proposta, por exemplo, para ceder conteúdo.
Nós não cedemos conteúdo para a internet, porque só interessa ter essa
negociação com um canal de operação ao custo que for viável. A questão da
internet hoje é a monetização, como é que a gente vai tratar isso como negócio,
porque existe muito investimento por trás. Nós fizemos agora pela primeira
vez uma transmissão ao vivo pela internet, transmitimos o grande prêmio
da Academia, e foi um sucesso. A gente teve, dentro de um universo restrito,
quatro mil e seiscentos internautas acompanhando a programação. Eu acho
o que isso está associado ao fato de termos dois milhões e quatrocentos mil
assinantes olhando pela televisão.
Nós também estamos falando de mudanças de linguagem. Você passou
pelo cinema e veio para a televisão. Agora tem a internet, que possibilita
80
outra coisa, que é a questão da interatividade. Como vocês estão tra-
balhando nisso?
Não estamos. A gente tem que resolver questões mais básicas. Nossos
problemas são primários. A nossa necessidade é de sobreviver num modelo
convencional, do qual a gente está sendo excluído. Isso afeta a nossa sobre-
vivência, o nosso orçamento, o nosso dia a dia. Afeta o modelo de negócio
que a gente propôs. É lógico que temos feito movimentos importantes nesse
sentido. Hoje, o site do Canal Brasil é feito essencialmente de imagens, todos
os programas têm pelo menos três minutos da produção de conteúdo dispo-
nibilizado. O site serve como um aquecimento do próprio canal.
Nós procuramos fazer conteúdos diferenciados para a rede. A internet não
concorre com a TV, ela complementa. A internet ainda não encontrou modelos,
até porque hoje tem uma sucessão de TVs pela internet que estão quebrando,
por acreditar em modelos comerciais ali que não são viáveis. O conteúdo é
commodity, tudo é negócio. O conteúdo tem um efeito importante. A produção
custa caro. Nós, que produzimos no Brasil, sofremos mais do que ninguém.
Comparar-nos com canais estrangeiros é mais um equívoco. Eles trazem o
preço do conteúdo amortizado por uma distribuição mundial. Nós não temos
nada, tudo que exibimos é feito aqui, comprado aqui. Se não houver uma
legislação específica para isso, não vai haver respeito ao conteúdo brasileiro.
Hoje, as operadoras são estrangeiras, há uma concorrência com canais que
entram a preços muito baratos, e que em algumas circunstâncias praticam
o dumping. Eles são liberados por períodos absurdos. Estamos falando de
canais que foram colocados um ano de graça. Se eu imaginar que o Canal
Brasil ficará um mês de graça, estou perdido. Mas eles colocam um ano porque
para eles não é importante esse recurso imediato. O Brasil é um mercado em
crescimento, e eles estão buscando um posicionamento para quando esse
mercado for grande.
Como começou a sua relação com o cinema brasileiro?
Eu fui superintende da ANDIMA, a Associação Nacional das Instituições do
Mercado Aberto, que tinha por função ser um elo entre poupança e produção.
Era uma entidade extremamente progressista, que alavancava sistemas para
fomentos de segmentos. E assim foi com diversos segmentos da economia
real. Era uma grande empresa de custódia de ativos desmaterializados. É o
CETIP, que hoje congrega todos os títulos do setor financeiro e do setor pri-
81
vado. Isso foi em 1990, pouco depois do governo Collor, da grande crise do
setor da cultura. Todo entretenimento, em qualquer lugar do mundo, tem
uma posição muito expressiva, e no Brasil a gente estava vivendo uma dèbâcle
do cinema brasileiro. Não se produzia nada, era uma coisa muito delicada.
Chamei o Roberto Farias e o Luiz Carlos Barreto para mostrar o que era
aquele sistema na ANDIMA. A proposta era colocar um ativo de financiamento
de produção. Eu achava que havia uma oportunidade de, pelo menos, dar
credibilidade a esse papel. Que era o que a CETIP fazia: dar credibilidade ao
que estivesse negociado lá. A gente sabia é que não dava para imaginar uma
postura de mecenato, por isso a renúncia. Se tivesse uma renúncia fiscal,
havia a oportunidade de cursar isso aqui dentro. E foi isso que o Barreto fez:
pegou a ferro e fogo esse negócio, passou um ano em Brasília, negociando
na Câmara dos Deputados. Foi aí que surgiu o Certificado do Audiovisual,
que foi o recrudescimento do cinema no país, do financiamento do cinema
no país. Então, eu fiquei com essa pecha. Eu carregava essa culpa, ou esse
mérito, não sei, de estar organizando essa ação naquele ambiente, que era
dirigido por mim. Depois que eu saí da CETIP foi que me procuraram para
tentar organizar a possibilidade que a Lei do Cabo dava para cinema, ou seja,
a possibilidade que dava para a criação de um canal de cinema brasileiro. E
foi assim que surgiu a história da minha inserção no cinema.
Como o Canal Brasil vê a questão da memória do cinema brasileiro?
Não digo que tenhamos restaurado – não é um processo de restauração
–, mas nós recuperamos cerca de quinhentos e poucos títulos. A quantidade
de títulos que estava absolutamente perdida, procurada pela equipe de aqui-
sição do canal, representa centenas de títulos que estavam absolutamente
perdidos, em péssimo estado, e foram recuperados. Títulos e séries impor-
tantíssimas, como o Vigilante rodoviário. Restauramos aquela série inteira.
São trinta e tantos episódios. A memória afetiva é muito presente no Canal
Brasil. Quem assiste ao Canal Brasil tem um olhar de muito carinho por esse
tipo de coisa. Não é favor, não é coisa nenhuma, faz parte do negócio. Mas é
uma responsabilidade que temos perante essa memória, porque temos um
acervo limitado, vivemos de conteúdo brasileiro. Se não cuidarmos disso,
quem haverá de cuidar?
83
Como começou a sua paixão pelo cinema?
Exatamente pela exibição. Fiz o colegial em Ourinhos, na divisa de São Pau-
lo com o Paraná. Naquela época eu já alugava filmes para passar na quadra de
esportes da escola. Aí vim para São Paulo e entrei nas ciências sociais, na USP.
Lá tinha um cineclube chamado Cineclube Barracos, do qual eu participava
também. Prestei um concurso e entrei no Banco Central do Brasil, que ficava
na avenida Paulista, no antigo prédio da Peixoto Gomide com Paulista, montei
um cineclube lá dentro, passando filmes em 16 mm. E o acaso fez com que
eu, terminando a faculdade, querendo ir embora do país, pedisse demissão
do Banco Central. Era para ir embora mesmo, eu estava com 24 anos, cabeça
feita, sonhando em fazer pós-graduação no México, com o Octávio Paz, ou
qualquer coisa parecida.
Um amigo que tinha montado o Cineclube Bexiga me convidou para dirigi-
lo, porque o cineclube tinha seis meses, estava dando certo, mas as contas
estavam todas bagunçadas. Isso era 1981, e dirigi o cineclube durante um
ano. O Cineclube Bexiga foi o primeiro cineclube no Brasil a trabalhar com o
formato 35 mm. Tinha uma postura independente, não era vinculado à escola,
igreja ou sindicato. Ele existia na rua. Era um cinema, mas com o formato de
cineclube. Eu aprendi ali a projetar e a programar em 35 mm. Fiz o projeto
AdhemarOliveira
Fundador da rede exibidora Espaço de Cinema.
84
Escola no Cinema. Enchi aquela salinha de cinema na 13 de Maio, n.o 124, na
Bela Vista. Aprendi tudo, aí terminou o primeiro ano, eu entreguei as chaves
e falei assim: “Olha, eu vou embora de São Paulo.” E fui para o Rio de Janeiro.
Lá começou, via Federação de Cineclubes, um novo envolvimento. Eu
estava escrevendo, me envolvi com o teatro, ganhei dois prêmios com textos
para teatro, mas sempre olhando os navios para ir embora do país. Com o
tempo, foi diminuindo a ideia de ir embora, envolvi-me na Federação de Ci-
neclubes, com o Cineclube Macunaíma da Associação Brasileira de Imprensa,
fiz a programação de lá durante dois anos e meio, virei um pouco band leader
da turma que juntei, partindo para criar um cineclube maior que o Bexiga. Aí
foi que surgiu o Cineclube Estação Botafogo, em 1983.
Como se faz programação em cinema?
Eu sempre gostei muito de ver filmes. Gostava de ver tudo quanto é tipo
de filme que passava em São Paulo. Ia ao cinema do Sesc, que era no Teatro
Anchieta, onde passavam filmes peruanos e de uma série de outros países;
ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo, que passava filmes brasileiros.
Todos bem baratinhos ou de graça, para estudantes. Eu corria atrás, e via
mais ou menos tudo: ficava acompanhando através de leituras, para saber
das coisas que eu não via.
Quem hoje vive nos grandes centros, como São Paulo e Rio, talvez tenha
menos carência do que nós tínhamos antigamente. As coisas que queríamos
ver não chegavam. Sabia-se pela leitura, mas não tinha como ver. Isso de-
senvolveu em mim um senso: um programador é aquele que conhece, que
viu, que experimentou. Não adianta falar de um programador que não tenha
experimentado. E juntando esse conhecimento com a sociologia, sabendo
apurar, tendo um feeling do gosto das pessoas. Pensando por que um filme
dá certo e outro não. Fui trabalhando isso e desenvolvi um senso bom de
programação. Porque programação é um jogo de sedução. Você pode apostar
todas as fichas em um filme, mas se não olhar com o olhar do espectador estará
programando apenas para você. Normalmente você programa para outro,
então tem que estar sempre se travestindo de espectador para programar. E
isso eu aprendi fazendo, mas primeiro indo ao cinema.
Quando eu levei um filme de 16 mm para a quadra do colégio onde eu
estudava, já estava exercendo uma programação. Se fossem só cinco pessoas,
eu ia pensar que não estava bem antenado. No próprio Banco Central, que
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era uma coisa para os funcionários do prédio, não era nem aberto, era uma
programação. Depois no Bexiga, como era 35 mm, eu passei mais ou menos
seis meses olhando e percebi que 35 mm é um mercado comercial. Os filmes
em 16 mm eram todos off mercado, mas 35 mm é diferente e tem que ser
tratado diferente. Então, no meu caso, eu aprendi na prática.
Como é essa programação? É pensar na formação de grupo, é ouvir o pú-
blico. Mas também é interessante trazer o novo para esse público. Você
induz aqui, coloca algo estranho ali, como fazer esse jogo?
Quando eu programo, por exemplo, falando da minha experiência no Bexiga
e no Cineclube Macunaíma, nas cidades do Rio e de São Paulo, nesse momento
eu não criava plateia. Porque a plateia já existia. O que não existia era inteli-
gência, a sabedoria, o discernimento de quem estava do lado da proposição.
Existia um público para as reprises que não era atendido. Eu lembro que em
1981, no Cineclube Bexiga, nós passamos toda a Nouvelle Vague com um su-
cesso enorme; Bergman também foi um sucesso enorme — e eram reprises.
Tinha um bando de jovens querendo conhecer. Lembro que na época não tinha
nem VHS nem DVD, e, mesmo que tivesse, muitos filmes não chegavam a esses
formatos, só os novos. Então a forma de ver era através de uma tela alternativa
que propusesse a colocar aquilo. Então essa percepção de que já existe uma
plateia formada foi o que deu o tônus para pensarmos que dava para apostar.
Na época, eu não era empresário, não sabia como levantar recursos. Fomos
ver os mecanismos existentes em São Paulo ou no Rio, no trato direto com a
distribuidora. Mas para montar o Estação Botafogo, fomos atrás de patrocínio.
E era uma coisa mínima. Nós pegamos um cinema velho, o nosso patrocínio
foi um empréstimo de cerca de US$ 50 mil – para pagar em um ano, a cada
seis meses – do Banco Nacional. Fizemos a reforma do cinema e inaugura-
mos. E era um lugar para fazer exatamente essa política. Talvez estivéssemos
criando plateia, mas o primeiro ponto – e daí a noção do sucesso da coisa –
foi que nós estávamos atendendo uma demanda que já existia, pessoas que
queriam ver aquilo.
Apenas filmes de reprise?
Não. A continuidade do projeto foi trabalhar para a formação de plateia,
porque eu comecei a ir para o Festival de Cannes há 18, vinte anos. Já que
os cinemas tradicionais não compravam, eu ia lá comprar os direitos dos
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filmes e trazia para o Brasil. Percebi na pele que isso mudou com o tempo,
que agora o mercado evoluiu nesta tendência: chegou um momento em que
lançávamos filmes aqui que não tinham sido lançados ainda em Nova York e
Paris. Filmes da cinematografia mundial. Mas esta foi a evolução: passamos a
usar o apoio de consulados. Em 1985, 1986, 1987, foi uma marcha buscando
aquilo que tinha aqui e tentando descolar coisas novas. Em 1990, foi o marco,
porque começamos a andar não mais como um cineclube e sim como um
cinema, o Payssandu. Um cinema que precisa de produtos. O lema da casa
era “democracia na tela” e fomos correr atrás das diferenças.
Como foi a parceria com o Banco Nacional que aconteceu em São Paulo?
Mais ou menos de 1985 até 1993, o Cineclube Estação Botafogo já tinha
um apoio cultural do Banco Nacional. Então eu retornaria a São Paulo, porque
o Banco Nacional tinha investido em dois cinemas em São Paulo, o próprio
Cineclube Bexiga e a Sala Cinemateca em Pinheiros, e não tinha dado muito
certo. Aí eles me procuraram, dizendo que precisavam de um projeto em São
Paulo. Eu comecei a procurar uma sala. Um dia, estava subindo a rua Augusta e
vi um assalto em um ônibus. Ninguém se mexeu, ninguém fez nada. O ônibus
entrou para a esquerda, o que não é normal, e quando saiu vi uma placa de
“Aluga-se, sala Ademar Gonzaga”, que era o antigo Majestic. Começou assim
a descoberta de que estavam alugando aquele cinema.
Dormi aquela noite em São Paulo para tentar encontrar o proprietário,
e conseguimos. É importante pensar que demorou oito anos para o Banco
Nacional fazer uma nova política e dar seu nome para o cinema, porque a
marca de uma empresa é o seu maior valor. Botar o nome na frente de um
cinema que não era dele – que o cinema não era do banco – e investir US$
1,5 milhão, também, com o risco total que poderia ter... Tinha um maluco do
lado de cá que era eu, que falava que ali ia dar certo. A diretora de marketing
do Banco Nacional veio visitar o local, aí teve que pedir licença para as pros-
titutas para entrar no cinema, porque às seis horas da tarde a prostituição já
estava subindo. E ela falou: “Mas aqui?” É, aqui. E a intenção era a de clarear
aquilo ali, porque a rua estava uma decadência total.
O meu pescoço já estava com uma corda, esperando. Aí inauguramos em
6 de outubro de 1993. Quando foi em janeiro de 1994, na ponta do lápis, feito
por eles, já estava pago, pelo o que voltou de publicidade. Então criou-se um
case, que não serviu só para a gente, porque depois disso é que veio Credicard
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Hall, teatro não sei o quê... Os locais passaram a ter o nome das empresas
patrocinadoras, o que não quer dizer normalmente que aqueles locais são das
empresas, mas foi um case de sucesso que, medido por ele, foram três meses – o
contrato era de cinco anos. O negócio estabeleceu-se, aquilo lá foi maturando.
Nós estamos falando de 1993; em 1995 o Banco Nacional é incorporado pelo
Unibanco, aí muda. O Unibanco estuda, vê o que é aquilo, incorpora o projeto
de cinema também, porque poderíamos ter ido parar no Banco Central. Eu falei:
“Saí do Banco Central e vou voltar para o Banco Central!” [risos] Em termos de
evolução, esse foi um modelo diferente do modelo do Bexiga, e se o Estação
Botafogo era o Bexiga ao quadrado, o Espaço da rua Augusta era o Estação ao
quadrado, então era uma evolução concreta. Por exemplo, no cinema da rua
Augusta foi a primeira vez em que eu tive um projetor novo na mão, o que foi
uma exigência: se íamos montar um cinema, tínhamos que ter tudo novo. Foi
a primeira vez em que eu importei um produto, um projetor latino-americano.
E durante muito tempo, o Espaço da rua Augusta era, sem a menor dúvida, o
melhor cinema de São Paulo! Tecnologicamente ele estava na ponta, em termos
arquitetônicos ele estava apresentando a diferença; uma série de elementos que
vieram da nossa experiência de oito anos, dez anos. E a partir desse cinema, eu
entrei numa indagação – depois de 1998 mais ou menos –, uma indagação de
público de cinema de arte, questionando esse modelo guetizado, de um local
em que só passa filme de arte. E pensei: “Se fosse assim, tinha alguma coisa
errada.” Porque nesse intervalo continuei evoluindo e fazendo salas com o
Unibanco, e fui abrir um cinema numa cidade do interior, Juiz de Fora, e levei
o modelo do guetizado, do cinema de arte, para uma cidade de quinhentos mil
habitantes, quase quebrei a cadeira! O meu Ph.D. eu tirei lá, porque devia existir
um outro modo de apresentação que não esse modelo do Espaço, que servia
somente para as metrópoles, onde tem uma quantidade de gente tamanha,
que se consegue produzir uma plateia somente com aquele perfil de filme. Não
tinha rodinha, não andava. Foi aí, também conjugado com programar o George
Lucas no Espaço Unibanco, dar um soco na cara do espectador, com o Guerra
nas estrelas. Eu levei paulada de todo mundo, e falei: «Tem alguma coisa.» E aí
nasceu um outro conceito – que seria colocar o Espaço ao quadrado, o Arteplex
–, de tentar ir para o mercado. Ganhamos uma força total, porque os agentes
comerciais – leia-se shopping centers – não nos enxergavam. Foi quando a gente
fez a investida no Shopping Frei Caneca, e falou assim: “Está aqui, e isso aqui
funciona assim, nós vamos programar de A a Z e vamos rodar dessa forma...”
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Exibições feitas com projetores top de linha, som e tudo o mais. Subimos um
novo degrau, e começaram a chover propostas, e nos deparamos de forma
capitalista, com a falta de recursos, com a falta de mecanismo, porque em um
modelo de patrocínio, se quiser ficar e permanecer lá, tudo bem, mas não anda
na mesma velocidade. Com o Unibanco a gente fez, mas dentro da política que
interessa ao Unibanco. O Unibanco não é uma empresa exibidora, é um banco
que quer fazer um marketing com o cinema. Então ele não quer fazer uma cadeia
de cinemas. Íamos esbarrando no “Olha, isso aqui dá, isso aqui não dá”. E foi
assim que fizemos em Porto Alegre, Curitiba, Salvador, e se tornou um projeto
fisicamente nacional. Com a mesma política e com esse mesmo aprendizado.
Não era uma questão de querer exibir o filme A ou B, era imposição do meio,
que é uma forma de você botar tubarão, sardinha e pescar no mesmo aquário;
porque se você botar só sardinha não ia aparecer ninguém ali.
O outro lado da história. Se você pegar a Cinemateca do MAM, do
Centro do Rio de Janeiro ou a geração Paysandu, ou mesmo o cineclube
xiita. Eles foram formadores de público e também polos de discussão
sobre cinema, polos de reflexão sobre cinema, polos de formação de
cineastas. Como fomentar isso dentro dessas políticas, como fomentar
o que não será só exibição, mas sim todo um aparelho de encontro, de
discussão, de debate público?
Isso você propõe. E isso de certa forma vem da própria sociedade. Tem alguns
projetos nossos que tem cunho nacional: o Curta Petrobrás às 6. É um projeto
de exibição de curta-metragens às seis horas, com quatro filmes, de graça, uma
hora de projeção. Em uma cidade de Aracaju, teve um ano em que o público
ia lá em cima, aí você vai cutucar, e descobre que tinha um núcleo de curta-
metragistas organizado, agitado, ou coisa parecida, e você lia nos resultados.
Nós temos 38 mil professores no Clube do Professor, somando todas
as cidades: Porto Alegre, São Paulo, Curitiba, Rio, Santos e Juiz de Fora.
Propomos debates, levamos o profissional, mas o movimento mesmo
vem da sociedade. São momentos – e isso de certa forma eu acompanhei
porque foi o fim do cineclubismo –, porque o cineclubismo dos anos 1970
era uma arma política, mais do que uma arma cultural, para se proteger
da ditadura, em termos de falta da liberdade ou coisa parecida, e para ten-
tar criar organizações, já que não se podia fazer as organizações políticas
próprias. Quando vem a reabertura – tem duzentos cineclubes –, não so-
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brou quase nenhum, por quê? As forças, as energias foram encaminhadas
diretamente e ficou pouca energia no cineclube em si, porque era uma
bandeira de defesa. A partir daí, quem sobrou tentou fazer determinados
movimentos, mas não tinha o mesmo apelo de chamada como tinha na época
da ditadura. Nas sessões de cinema, já não tinha mais filme proibido. Todos
os baluartes que eram a propaganda dos cineclubes desapareceram, então
você tinha que fazer pelo cinema mesmo, e foi isso.
Eu acho que essa formação de plateia numa democracia foi o que tivemos
que aprender nessa passagem. Ela passa por sedução, não mais pelo baluarte de
“Ah, vem um punhado de gente porque o filme está proibido”. Não tinha mais
filme proibido. Você tinha que dizer: “Olha, esse filme é bom.” E para reunir as
pessoas para propor o debate. E esse movimento social é percebido historica-
mente, ele tem momentos de refluxo, em que vai quase a zero; aí há momentos
em que começa alguma discussão maior, e ele tende a se agrupar novamente.
Eu acompanho isso há 25 anos e nunca deixei de promover o debate. Agora
mesmo vamos propor um Seminário de Cinefilia, para discutir. Porque acho
que existe uma crise, onde há suportes em discussão, velocidades em discus-
são, tem posturas humanas em discussão e ninguém está explicando. Há uma
crise na área de cinema de arte, que perdeu muito o valor que conhecemos nos
anos 1960, 1970, uma crise dos modelos que praticam esse tipo de cinema mais
pensante. Porque o cinema comercial funciona com a publicidade.
E a questão da reprise, eu lembro... para colocar um caso e a gente falar
sobre isso: o do cinema Paysandu, quando teve que fechar por falta de
público. falaram, então: “Vamos fazer uma série de reprises”. E a fila
virava o quarteirão. Você acha que o DVD realmente matou o cinema de
reprise ou você acha que ainda é uma possibilidade?
Eu falo por experiência própria: eu comprei em Cannes a reprise do Touro
indomável, de Manhattan e de vários outros, e havia um tempo em que essas
reprises davam uma movimentação por quatro semanas no cinema, e lotado.
Hoje tem o suporte DVD, por exemplo, e hoje, mais que o DVD, a internet,
porque a pirataria não acontece só com produto novo. Você entra na internet
e consegue filmes de todas as épocas ou coisa parecida. Ela deu ao espectador
um acesso à informação que nos era obstruído. Desse ponto de vista é mais
democrático. Mas do ponto de vista de formação, o filme é visto em situações
não favoráveis. Assistir a O ano passado em Marienbad em uma tela de com-
90
putador não leva a uma fruição artística do filme; existe somente o contato
com a informação do filme, e isso parece que está bastando para as pessoas. Se
estamos formando seres humanos para os quais isso vai bastar, não sou eu que
vou xingar o gênero humano, que daqui a dez, 15 anos vai se satisfazer olhando
uma telinha e achar que é aquilo que tem que ser feito, perdendo um espetáculo.
Influenciou? Sem sombra de dúvida. O DVD acabou com as reprises. O cinema
tem que tomar cuidado para que o DVD do filme não saia antes, porque isso
também acaba com a proposta. Vide o caso do Tropa de elite, o quanto sofreu
com o vazamento da cópia em DVD, antes da estreia do filme. E não é uma
questão econômica, é uma questão da rapidez da informação. O ser humano
é doido por informação, só que, do lado da fruição do filme, ele pega só o lado
da informação. Não importa como ele assistiu, se o som era isso, se a imagem
era aquilo. Então dessacralizou um pouco. Essa velocidade da informação está
deixando o humano com alguma coisa além que eu particularmente não sei o
que é, e fui buscar respostas no Hobsbaum, no Breve século XX, onde existe a
informação de que há uma mudança na virada desse século, que tem a ver com
a globalização e que tem a ver com um individualismo maior, com essa rapidez
da comunicação, que está mudando parâmetros. Talvez a gente esteja mudando
parâmetros mesmo. O homem de 2050 talvez seja outro totalmente diferente,
porque há essa velocidade, essas tecnologias que se esparramam numa rapidez
muito maior. Quanto tempo demorou para o VHS se esparramar no Brasil? Um
tempão. O DVD, quando chegou, não tinha dois anos e já existia aparelho de
DVD a R$ 100,00, de tudo quanto é tipo. Já está caindo em desuso porque agora
na internet acontece o mesmo. Então vai produzir um outro tipo de humano.
Adhemar, entre a trajetória do Bexiga ao Frei Caneca, que você eleva à
16ª potência pelo seu raciocínio, queria que você falasse um pouco, que
você organizasse um pouco o papel que você vê do dono do cinema, que
pode ser aliado do patrocinador, e também do Estado, que nesse momento,
pelo que você comentou até agora, dessa experiência toda, deixou de ter
uma política para a exibição do filme. Como você avalia atualmente esses
três papéis: o do dono do cinema, do patrocinador e do Estado.
Historicamente eu tive patrocínio com recurso direto do patrocinador, sem
a intervenção de nenhum tipo de lei ou benefício fiscal. Depois nós vivemos
o período que teve a Lei Sarney, depois a Lei Rouanet, que de certa forma é:
“Olha, existe essa lei, corram atrás e se virem.” Então dava três vezes mais
91
trabalho. Tínhamos que fazer uma proposta de financiamento para arrumar
dinheiro para fazer a obra, depois um projeto para girar aquilo e dar recursos
para pagar o financiamento, e esse projeto normalmente estava associado
ao patrocínio. Você trabalhava que nem doido! Teve um breve momento
em que existiu a Lei do Audiovisual, que permitia a construção de salas. O
Arteplex do Rio de Janeiro e o de Salvador tiveram cerca de 25% do seu custo
de instalação advindo dessa lei, depois essa lei foi cortada. E basicamente
foi o que aconteceu nesse período, estou falando de 1981 até este ano, 2010.
Nessa área de construção de salas, tem uma figura que eu considero, que é
um pouco espelhada em mim, ou eu que me espelho nele. Estamos em países
diferentes, na França e aqui. É um cara que começou na França do mesmo
jeito que eu comecei, e dá para acompanhar a sua trajetória através da minha
e vice-versa. E eu olho e falo: “Nossa mãe!”, por falta de trilhos, de suportes.
Mas quem é, conte essa comparação.
O Nathanaël Karmitz, na França, começou a pegar cinemas velhos no Quar-
tier Latin e reposicionar. Hoje ele tem a MK2, que é uma potência na produção,
na distribuição, na exibição, em televisão e tudo mais. Mas ele tem o governo
francês do lado, que pensa mais e melhor, que vê de forma diferente a área de
cultura. Aqui eu tinha que trabalhar três vezes mais a cada projeto. “Ah, existia
a Lei Sarney e depois a Lei Rouanet?” Existia. Elas estavam aí, e o que você tinha
que fazer? Tinha que correr atrás e montar. A política que colocamos em prática
foi a de recuperação de cinema de beira de rua. Recuperar por quê? Porque
urbanisticamente dá uma série de coisas. A primeira lei de São Paulo que deu
consideração a esse cinema de beira de rua foi a do Nabil Bonduki, pelo papel
que ele considera do lado urbanístico. E agora, dia 19 de março, a prefeitura de
São Paulo tirou definitivamente o ISS desses cinemas. Quase todos os cinemas
do Centro já morreram, só sobrou o Marabá. Então, andavámos em compasso
com uma política, e recuperei muito cinema de beira de rua, muitos, muitos,
muitos, e foi uma luta, porque não era uma coisa capitalista, porque ali rendia
pouco e, quando rendia, você tinha muito mais gastos. A insegurança levou para
o buraco muitas experiências no próprio Centro de São Paulo. Acho que isso
advém da insegurança, o maior inimigo do cinema. E a existência do cinema é
uma coisa que recoloca a segurança. O poder público demorou muito a perce-
ber que ele estava atrasado nesse aspecto, tanto os municípios, como às vezes
o governo do estado e também em termos federais. Agora nós estamos tendo
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com a Ancine o compromisso deste ano de ter um fundo setorial do audiovi-
sual, para propiciar aumento de salas. Isso tudo num país onde tínhamos três
mil e quinhentas salas e agora temos novecentas, aí na mão do capital privado
sobe para duas mil atendendo às classes A e B. O Brasil deveria ter de três mil
a cinco mil salas para manter o mesmo patamar que tinha nos anos 1970. O
México e Argentina têm uma relação de população/sala muito menor do que
a nossa. E agora estão tendo mecanismos no fundo setorial, que não são pen-
samentos de patrocínio, mas justamente do que faltava. Você é um produtor
e tem uma ideia, quer recuperar aquela sala de cinema, onde você vai buscar
o financiamento? Na época buscávamos um patrocínio. Podíamos pegar US$
50 mil como financiamento para pagar de alguma forma. Hoje não tem esse
mecanismo. Aí o BNDES criou uma série de mecanismos, que foram postos
em prática nos últimos seis anos, um pouco mais... criando o Departamento
de Cultura. Começaram a enxergar que existe uma economia, existe uma força,
existe uma necessidade não só econômica mas também estratégica de desen-
volver essa área. O Brasil joga milhões para produzir um filme e não bota os
pontos de venda. Qual o problema de botar os pontos de venda? “Ah, porque o
ponto de venda está atrelado somente ao shopping.” Por que está atrelado ao
shopping? Porque lá tem dinheiro, a equação fecha. Como fazer cinema onde a
equação pode não fechar? Mas é uma questão de tempo, porque se não tem o
cinema na cidade a população não tem o hábito de ir. Se ela não tem o hábito
de ir, você vai sofrer, porque vai ter que primeiro criar o hábito e ao mesmo
tempo fazer cinema, numa dessas você quebra economicamente porque não
consegue fechar a equação. Então, o cinema está configurado, há muito tempo,
como uma área vital onde qualquer Estado deveria investir. A França viu isso
e fez. O que define Paris como a capital do cinema é uma política de Estado.
Em 1986 eu fui visitar todos os mecanismos da França a convite do governo
francês e vi que eles ofereciam crédito para reformar todos os cinemas de Paris
a custo zero! Você não tinha juros, não tinha nada, para deixar os cinemas
novos, aqueles que já existem. Tinha leis proibindo multiplex para manter
aquela estrutura, que era a que Paris queria. E a gente aqui era o contrário.
Não estou falando do governo A, B ou C, estou falando de vinte e poucos
anos de trajetória, e a burrice maior desses vinte e poucos anos: o Brasil não
produz projetor, precisa criar mais quatro mil salas e a alfândega é taxada em
60 a 80% no valor do projetor que você traz para abrir um cinema! Não tem
santo que me explique isso! Por que nesses 25 anos – que é o tempo de que
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estou falando, que é da minha experiência, não estou falando para trás nem
nada, a minha experiência empresarial na coisa – o Brasil não tem fábrica de
projetor, um país que precisa construir quatro mil salas? Vai e taxa em 60% a
importação desses equipamentos que só servem para ser usados em cinema.
Não pode nem falar que vai ser levado para “muambar” ou coisa parecida,
porque ele não serve para outra coisa, só serve para sala de cinema. Não é
um equipamento utilizável em outros locais. Esses buracos, essas burrices,
só me dão a certeza de que a área de cultura raramente foi encarada como
prioritária. “Ah, dá um cala-boca para esses meninos pararem de gritar!”
O Estado sempre se portou dessa forma. A lei de incentivo é uma verdadeira
execração quando ela vira essa pílula que joga para o mercado. Os mecanis-
mos, por exemplo, mecanismos de financiamento, formas de fazer que não
estejam vinculadas com essas leis e sim direcionadas para produzir alguma
coisa, acho que só começamos a ter agora, e já falamos disso há algum tempo.
Porque você vê, visita países, roda o mundo e diz: “Tem experiência boa aqui,
tem experiência boa ali”, e vai aprendendo. Todo lugar a que vou fico olhando
e não consigo olhar sem a ótica da transformação: “Aquilo ali poderia ser me-
lhor.” O Imax mesmo, antes de trazer o Imax para cá, eu conversei durante sete
anos e visitei uns dez, que é o top, e mais em cima ainda porque é a primeira
vez em que eu vou conseguir ser o número 1 do mercado, aí é uma disputa
de mercado; que é o Pompeia, que tem o Imax, que há quarenta anos existe
e ninguém trouxe? É um atraso também que não se justifica.
O que é o Imax?
O Imax é um sistema de projeção canadense de grande formato, que existe
desde os anos 1960, e que o Canadá criou quando foi apresentar o país em uma
feira em Tóquio. É uma empresa que hoje já está sediada no mundo, e que de-
senvolveu tecnologia para grandes projeções em grande formato. Em película
que era 15x70, e agora em digital. No começo isso foi associado a museus que
tinham filmes ecológicos, históricos, principalmente programas e espetáculos
para crianças, e uma criança vendo aquilo fica doida, como eu fiquei. A primeira
vez em que eu vi, falei: “Nossa mãe!” São anos de pesquisa, e isso poderia existir
no país há muito tempo. Por exemplo, poderia se produzir filmes sobre a Ama-
zônia, ou Pantanal, nesse formato. Dá mais resultado do que muita grana de
palestrando falando da Amazônia rodando o mundo. Você solta esse filme da
Amazônia e cria um desejo nas pessoas, de conhecer. Eu vi muitos filmes que
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na verdade eram turísticos, mas tratados no formato documental de cinquenta
minutos, que despertam a vontade de viajar, de conhecer. O Imax era só para
isso, depois se juntou ao cinema, e hoje ele serve tanto para o cinema como para
esses produtos documentais. Aqui mesmo você está tendo o Mar de aventuras,
que é um documentário de 52 minutos, e Alice no País das Maravilhas. Estou
cutucando os produtores para ter uma produção brasileira, em Imax.
E por que você acha que os líderes aqui não queriam ser a vanguarda de
trazer o Imax para cá?
Não, nós tivemos lideranças aqui — sem querer falar mal da classe —,
pessoas que eu admiro muito aqui de São Paulo, por exemplo, Paulo Sapinho.
Eu lembro de uma foto dele no Cine República, esse eu conheci quando eu
era moleque. Ele, desse tamanhozinho, e uma tela enorme!
Os exibidores até os anos 1970 tinham prazer de correr atrás e implantar
coisas novas. No final dos anos 1970, o cinema sofre uma queda, e começam a
fechar salas. Também nesse período a sociedade brasileira sofre com a questão
da mudança urbana, da violência, e o país chega na era Collor, na minguante
total, quase chegando a bater o pé no fundo para voltar. Aí volta diferente
porque entra o capital estrangeiro e a mudança do mercado.
E a questão do preço do ingresso? Como trabalhar para que fique aces-
sível para todas as classes sociais?
Com relação ao preço do ingresso do cinema, eu digo o seguinte: se ana-
lisarmos em dólar, veremos uma equação igual no mundo inteiro. Ele tem
um acréscimo de acordo com a inflação do dólar. Tem momentos em que o
nosso câmbio vai para baixo: “Nossa, custa mais caro que Nova York!” Só que
para resolver isso tem duas questões. Primeiro, todos os setores são livres
de comércio, mas o cinema, o show, o teatro não. Qualquer um pode pegar
um papel, ir numa câmera de vereadores e legislar sobre uma coisa que é o
comércio daquele setor. Aí cria-se meia entrada para A, para B, para C... Esses
mecanismos de meia entrada de certa forma são responsáveis, na medida em
que se alastram ou se universalizam, através de novas leis ou por falsificação,
pelo fato de o empresário subir o preço, para trabalhar no patamar que é o
preço justo. Isso é um elemento que provavelmente você não vai ter como
mover, como mudar. Então a tendência do comércio é subir o preço e traba-
lhar na metade. É como se você falasse: “Não, eu acho que o preço justo do
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cinema é R$10,00. Se eu cobrar R$ 10,00, vai vir todo mundo a R$ 5,00. Então
eu boto R$ 20,00, que aí fica em R$ 10,00.” Isso é uma coisa do Brasil. No Brasil
é mais caro do que no México, mas no México não têm essas leis. Esse é um
elemento estrutural. Segundo, há possibilidade de fazer promoções? São feitas.
As promoções são feitas, mas de acordo com o modelo que o Brasil adotou
para reconstruir essas salas, que foi dentro de shoppings. Ele já entrou para
construir salas com um patamar de custo que é muito improvável que baixe.
Quando você entra num contrato desses, precisa ter uma garantia mínima de
pagamento e mais um percentual de bilheteria (dos dois, o maior). Ora, se você
estabeleceu isso nesse patamar de preço, se você baixa, você não vai conseguir
garantir o mínimo. E o modelo da maior parte das salas construídas hoje é
para população que tem dinheiro. Só agora estão começando a despertar para
o fato de que existem regiões com população de classe B, classe C, classe D, e
que é possível ter cinema nesses lugares, como não? Vai mudar o parâmetro;
vai rodar mais com um preço menor, mas vai fazer economia. Se não tiver
conjugado com esse contrato locatício que exige patamares altos, é possível
rodar economicamente. Eu mesmo meti a cabeça em um projeto, com o
Thierry Pierroni, de fazer salas populares no Carrefour, que não é dentro de
shopping.Tem uma relação locatícia que permite baixar no mínimo em 30%
o preço do ingresso. Agora, existe essa possibilidade? Vou ver. O que acontece
é o seguinte: quando o Marabá fez uma reforma para o cinema novo, para
colocar os equipamentos, ele pagou os impostos, pagava o ISS até bem pouco
tempo, pagava igual ao do Iguatemi, o mesmo percentual. Então por que a
empresa vai fazer uma coisa dessas? Por algum cristianismo? A empresa não
é cristã, a empresa anda na economia, e quando ela bota um recurso, esse
dinheiro tem que retornar, senão ela quebra. Fez uma obra bonita e quebra:
“Oh, que bonito!” Aí ninguém dá bola. Eu acho que essa visão a gente linka
na questão do preço, mas também na questão do Estado.
Tem uma série de elementos na exibição que constituem o custo da exibição
no Brasil. A importação, a questão da legislação interferir no preço para dar A,
B, C ou D. A compra do jornal e da revista na banca não tem isso. A compra
de alimentos não tem isso. Por que tem essa interferência no cinema? A rigor,
no estado democrático, se o Estado faz uma interferência, ele tem que repor
a interferência que fez, e de certa forma é isso que a gente vive. Problemas
jurídicos como o ECAD, que é uma discussão de vinte e poucos anos também.
Do capital estrangeiro que vem para cá, muitos desistiram.
96
Eu conversei com muitas empresas que queriam vir para o Brasil. Quando
olharam essa questão do custo, desistiram. E dá para resolver? São penadas.
A questão da exoneração fiscal da importação que está em discussão agora,
finalmente vamos ver se sai, mas é penada. E ela nem precisa durar dez anos.
Isso é falta de visão atrás de falta de visão. Eu vejo que, questões como preço,
atendimento a cidades, populações que não estão sendo atendidas, se con-
tinuarem a depender da marcha do capital, somente daqui a trinta anos vão
ser atendidas, porque o copo vai enchendo aqui e vaza para lá.
O Estado tem que atuar. Os mecanismos que estão para ser divulgados no
fundo setorial vão atuar nisso e, se não forem bons, pelo menos uma coisa vai
acontecer: vai ser a primeira vez, efetivamente, que se está tomando medidas
econômicas para o país inteiro, qualquer região do país, para qualquer agente
que está no mercado.
Adhemar, essas ideias e propostas que você comentou seriam suficientes
para ampliar esse percentual de menos 10% dos municípios com sala de
cinema, pensando nesse modelo fora dos grandes centros? Isso seria
suficiente ou não?
Eu acredito que há uma necessidade de envolvimento dos poderes. Tem
prefeitura hoje, em cidades que não têm cinema, em cuja legislação, o INSS
para cinema é 10%, e não tem cinema nenhum na cidade. A prefeitura não
está interessada: “Ah, a população já está vendo televisão...” Precisa-se de
disponibilidade de terrenos, de correr atrás. Paulínia, que tem dinheiro, cor-
reu atrás e fez, entendeu? Mas ela tem dinheiro. As que não têm, poderiam
buscar dinheiro. A questão não é dinheiro, é ação! O agente, ou a empresa
que vai em uma cidade dessas, tem que ir com um cacife de recurso, para
dar um ou dois anos de aperitivo para essa população, dar até atrair, porque
cinema é hábito. Por exemplo, nós estamos para inaugurar um cinema em
Sulacap. Aprovei no Minc um projeto para ações culturais. Nesse lugar vou
encontrar uma população onde 70% das pessoas não vão ao cinema há muito
tempo. Quero atrair novamente essas pessoas para a sala de cinema... Tenho
que ter mecanismos para dar ingressos para professores, estudantes, para
a população, e é aí que vou usar a Lei Rouanet. Entendo que esse trabalho
possa durar um ano, ou mais. Porque você tem que ter filme, tem que ter
como comunicar, tem que atrair. Pode ter o cinema mais bonito lá, mas se
ficar vazio é um horror.
97
Existe a discussão sobre o fato de estarmos num momento de transição
entre cópia analógica e digital. Aí entram as questões do mercado. Se você
abre um cinema em uma cidade que não tem um número x de espectadores,
você não consegue cópia. É o ovo e a galinha permanentemente.
Você acha que o Vale-Cultura vai ser um instrumento forte para isso?
O Vale-Cultura está com dez anos de atraso. A retomada do cinema no
Brasil teve alguns erros; se analisarmos do ponto de vista histórico, veremos
que todas as pré-estreias eram feitas pelos mesmos! As sessões gratuitas eram
para aqueles que tinham dinheiro. As ações que tinham para dar entrada livre
para a população ou eram posteriores ao lançamento do filme, ou sempre
no sentido de “dar” mesmo e não de trazer novos espectadores para dentro
da sala de cinema.
Acho que o Vale-Cultura é interessante, porque ele não vai dar depois. O filme
estreou hoje e o espectador tem que sentar aqui hoje, ele traz o consumidor
para dentro. E às vezes esse consumidor tem o dinheiro da cerveja, que é o
mesmo dinheiro do cinema, e ele opta pela cerveja e não pelo cinema. Por quê?
Talvez porque quando ele escolhe a cerveja ele se sinta incluído, na mesa com
os amigos, e aqui ele deve estar se sentindo excluído e não se sente bem. Então
eu acho que trazer o novo consumidor é um processo que tem que ser pensado.
Eu mesmo errei esse tempo todo fazendo pré-estreias. Depois me dei
conta que eram sempre as mesmas pessoas. Eram filmes novos e as mesmas
pessoas. Tem alguma coisa errada! Nós estamos fazendo books, mas não
estamos fazendo políticas. Se conseguirmos atrair esse público, o parque
exibidor que temos não dá conta. Os filmes que fazem sucesso já passam
por essa dificuldade, ficam em cartaz durante quatro, cinco, seis, sete, oito
semanas! Em grande parte porque o parque exibidor também não acolhe!
Nos Estados Unidos, em três semanas o filme já acolheu todo mundo, é outro
modelo. No nosso aqui, se você botar num mesmo diapasão, nós vamos ter
um mercado com dois filmes. Às vezes a gente costuma ter 80% do mercado
em dois filmes. Mas não é porque os filmes estão ocupando muitas salas, é
porque o parque exibidor é pequeno, porque um filme ocupa quatrocentas
salas, e nós só temos duas mil. Ah, quatrocentas já pegaram 40%, mas se a
gente tivesse seis mil? Que modelo de grande negócio é esse?
Às vezes vemos um cineasta xingando porque 40% das salas estão com
dois filmes: por que ele não xinga a pouca quantidade de salas, em primeiro
98
lugar? Aí entra a questão do espectador do Vale-Cultura, porque se esse público
tem acesso, conseguimos aumentar o parque de salas, e esse é o melhor dos
mundos, onde teremos inclusão. Hoje as populações que não têm cinema
estão viajando para ir ao cinema. Uma cidade do interior que não tem cinema,
por exemplo. Na região de Campinas, existem várias cidades vizinhas que não
têm cinema, mas todas convergem em Campinas. Então, quando vemos o box
office, «Campinas é a cidade que mais vai ao cinema!», não é necessariamente
Campinas, mas as cidades vizinhas que vão também.
E em relação às exibições e ao Vale-Cultura, você acha que, ao aumentar
o número de salas, aumentar o número de espectadores, ao democratizar
o acesso, haverá a possibilidade de produções de A a Z entrarem natural-
mente no mercado ou há a necessidade de uma política para essa entrada?
Acho que para uma produção de A a Z entrar no mercado teria que ser muito
diferente disso. Porque o mercado funciona muito assim: não importa a cor
do gato, o que importa é que ele cace rato. O filme sendo bom ou não, ganhou
“bola preta” ou não, é brasileiro, americano, russo... se está dando retorno, ele
permanece. Às vezes é duro entrar, mas se ele entra e faz sucesso, ele permanece.
Acho que o que vai acontecer com o “agregar novos consumidores” é que esses
nossos números pífios vão explodir, ou seja, quando o Brasil democratizar-se
economicamente, com a entrada de consumidores que estiveram mais de
cem anos fora, na realidade sempre, porque a sociedade brasileira sempre foi
excludente, e quem está se sentindo incomodado hoje é a classe média.
Eu diria para você o seguinte: a minha visão é a de que vai ter que incluir,
por uma questão econômica, e não por uma questão política. E é vital que se
inclua. Hoje nós temos um parque pequeno e amanhã podemos ter um parque
maior, porque existe uma tendência para isso, o mercado brasileiro é admirado
no mundo inteiro, mas por nós aqui dentro, não, porque só vemos as mazelas,
o que falta, o que tem para ser feito e não é feito, e quem está fora às vezes só
olha o tamanho do mercado: “Aqui tem tantos habitantes.” Mas quantos são
consumidores? Eu conheço capitais do Nordeste que têm dois milhões de
habitantes, mas são tratadas como duzentos mil consumidores. São tratadas
assim! Tem que mudar essa forma de gradação. O comércio faz isso.
Você tem a loja de A até a loja Z. No cinema você não tem isso, porque para fazer a
loja Z você gasta o mesmo que gastou para fazer a loja A, a não ser que você
queira fazer exibição com slide ou coisa parecida.
99
Você comentou, quando estava falando do Imax, que é uma questão de
competição ali também com os líderes, que pela primeira vez vai ser o nú-
mero 1. São poucas salas de cinema, mas a gente sabe que também tem um
monopólio, inclusive, com a entrada do capital estrangeiro. Como você
enxerga esse monopólio que é montado, como são as características de
um impacto desse monopólio no cinema brasileiro?
Não chamaria de monopólio. Na área de exibição, até dez anos atrás só
existiam empresas brasileiras, e entraram capitais estrangeiros, a Roxy, Cine-
mark, UCI... que não têm problema nenhum em termos de operação. Você
deve estar se referindo à questão do produto. Porque 90% do mercado é ocu-
pado pelo produto americano, não só aqui como em vários locais do mundo.
Aí que entra a eficácia das políticas em um mercado livre, sempre pensando
em um mercado livre; não é através de interdições que vamos construir a
economia, e sim incentivando. Temos como exemplo a França, que foi o país
que conseguiu chegar mais longe, que ocupa o mercado com 40% do produto
nacional. Lá o produto americano não tem 98% ou 90% de ocupação. E é uma
briga permanente! O produto que tem vários mercados é mais competitivo
porque ele custa menos, porque ele se repõe rapidamente. Não só criar um
mercado aqui como criar um mercado externo para o produto brasileiro. Para
o produto brasileiro ter que se pagar só aqui, o custo é muito alto, qualquer
que seja o seu valor de produção. Se ele se paga em dez mercados, ele custa
menos. E está se investindo na produção. Talvez esteja faltando uma visão
sistêmica de como fazer esse jogo. Ainda estão fazendo festivais, produção
de filmes, mecanismos para distribuição. Você tem na área entre a produção
e a distribuição vários mecanismos já atuantes, que vieram sendo criados,
porque quando caiu a Embrafilme e toda a política que ela carregava, teve
que se criar novas formas.
E a questão do entorno, a questão dos cinemas de rua. Essas políticas
todas pensam dentro do cinema. O que você acha de uma política pública
com relação às prefeituras e com o poder público para colocar esses
parênteses do cinema na rua de novo, e não só em shoppings ou lugares
fechados?
Eu sou muito desconfiado de falar de poder público, municipal principal-
mente, porque eu já passei por algumas experiências que não são das mais
agradáveis, porque não existe permanência, não tem segurança, e independe
100
das pessoas. Estou falando do relacionamento, da estabilidade, e as empresas
quando vão fazer algum trabalho não gostam de instabilidade. E se vai investir,
quer botar a coisa para funcionar.
A melhor coisa que uma prefeitura que não tenha cinema poderia fazer é
arrumar uma empresa interessada, fazer o comodato de um terreno e sair fora,
porque se ela ficar junto, vai ter coisa ruim. Tem que acreditar e fomentar isso,
esse espírito empreendedor, seja de gente da cidade, seja de gente de fora. Tem
que criar, e não vincular necessariamente, porque aí entra o inimigo do inimigo
que vai querer destruir aquilo, e as empresas não funcionam nesse diapasão.
Essas experiências das quais ouço relatos e algumas que eu tive dessa interre-
lação são ainda muito frágeis, muito problemáticas. Era melhor você lidar com
o particular. “Eu alugo o teu estúdio para fazer um cinema”, o contrato diz isso.
Nós estamos combinados, vamos cumprir o contrato. Com o poder público,
já não é assim. Ali já existem mecanismos, o contrato não é entre iguais, aí não
é interessante. O mais interessante é: faça as políticas públicas claras, trans-
parentes. É como falar assim: “Vamos fazer um cinema de preço mais barato.”
“Vamos.” Quem é que paga a conta? Uma conta existe, ninguém faz um preço
de cabeça. O preço é uma composição oriunda de vários componentes
Para finalizar. Você teve uma larga experiência com o cineclubismo, a
gente falou de todo esse modelo de negócio ao qual você chegou, teve
experiência com distribuidora, com mais filmes... mas queria saber como
você está olhando essa perspectiva futura: digital, 3D agora, momento
de pé no acelerador com algumas políticas, ao mesmo tempo com o freio
de mão puxado em algumas outras. Você falou na história do projetor,
você citou isso... Quero saber o que você vislumbra em relação à exibição
em cinema num futuro próximo.
Nós estamos no melhor dos mundos, apesar de ser essa zorra total. Estamos
caminhando para o acesso das pessoas, o acesso às salas. Com a digitalização
do cinema, o alto custo de fazer uma cópia e transportá-la até o Maranhão
ou Manaus vai desaparecer. É uma questão de pensamento, de reparar esse
parque exibidor. Amanhã, o produtor brasileiro de um filme que considera
de longo alcance vai ter menos custo para colocar esse filme em quinhentas
salas do país com um simples toque no computador. Nesse mundo que se
está anunciando, acho que a película está condenada a deixar de existir. Eco-
logicamente, é até melhor deixar que isso aconteça. Quando uma película é
101
distribuída, ela tem que ter um certificado do IBAMA, porque não pode ser
jogada na natureza. Se ela acabar, muda o mundo.
Não adianta ter cinema sem políticas de ocupação, porque você vai aumen-
tar os cinemas para quem já é dominante. Então tem que fazer os cinemas e
ao mesmo tempo acompanhar as outras esferas que estão mais adiantadas. A
produção e a distribuição já estão com mecanismos que podem se sofisticar,
e o crescimento do parque só vai possibilitar que novos mecanismos surjam.
É raro você ver hoje: “Vou fazer um filme e não quero saber de ninguém, vou
fazer sozinho, não quero lei, não quero isso, não quero aquilo, não quero
ninguém, porque vai dar certo.” E isso com um parque exibido que deu segu-
rança à primeira entrada. Porque o cinema é uma vitrine. A sala de cinema,
mais do que ser economicamente vital, é vital porque é a vitrine. O sucesso
ali determina o sucesso de todas as demais. O fracasso ali normalmente tende
a determinar o fracasso nas demais, então por isso que ela ainda tem essa
aura. Se ela consegue atrair uma pessoa da casa para a sala, ela deu um valor
ao produto que é diferente do que é visto na televisão. Então eu vejo o futuro
com uma boa dose de sentimento prazeroso, que está indo e está andando,
está devagar. A sensação é que está devagar, que poderia estar mais adian-
tado. Mas o casamento das políticas e o amadurecimento político são coisas
que ainda demandam tempo. Tem casamento que se cria, e até a população
amadurecer para a utilização ele já está velho, e aí começa, e a gente é pouco
ágil, principalmente na esfera pública. Mas estão indo na direção certa. Estão
previstas políticas que estão me dando um bom augúrio do que vem por aí.
103
Como é ter um museu de arte contemporânea no meio de uma cidadezinha
pequena do interior do Brasil?
Isso começou como uma iniciativa muito particular. O Bernardo Paz com-
prou uma terra em Brumadinho, a sessenta quilômetros de Belo Horizonte,
ainda nos anos 1980, para construir um sítio de final de semana, uma casa de
campo. E já naquela época ele começou a trabalhar com vários paisagistas,
era amigo do Roberto Burle Marx, e a colecionar arte contemporânea. Através
de conversas com importantes artistas brasileiros da mesma geração que a
dele, como Tunga, Cildo Meireles e Miguel Rio Branco, surgiu a proposta de
que, já que ele estava colecionando arte contemporânea no jardim, por que
não fazer disso um projeto público? Então, a partir de 2000, ele começou a
profissionalizar a ideia da coleção, contratar curadores, profissionais para
trabalhar com isso. Em 2004, um evento muito importante marcou a história
do Inhotim, que foi a abertura da coleção para um público convidado, e a
partir daí começou toda uma reflexão, sobre o porquê de se fazer uma coleção
de arte contemporânea em Inhotim. O que significa mesmo ter um museu,
uma coleção de arte contemporânea em Inhotim, naquele lugar fora dos
grandes centros? O que significa inserir um museu em uma cidade de 12 mil
habitantes, num município de trinta mil habitantes? Quais são as responsabi-
Jochen
Curador do Instituto Inhotim.
Volz
104
lidades de uma instituição nova com a comunidade em torno, o que significa
trabalhar o questionamento da arte, como trazer isso para dentro da escola,
para dentro da vida cotidiana das comunidades? Como formar uma coleção
pública? Como criar um lugar público? E então começamos a trabalhar com
um forte aparato de arte-educação, com visitas escolares, com programas na
comunidade, antes de abrir para o grande público. Isso tudo a partir de 2005,
e só em 2006 o museu seria inaugurado.
O que significa Inhotim?
O nome vem do bairro de Brumadinho. Inho Tim, provavelmente era o
antigo fazendeiro inglês, senhor Tim, que com o jeito mineiro de falar virou
Inhotim. O que nos interessava, desde o início, era como se criar uma insti-
tuição de arte que poderia se diferenciar de outras coleções, o que faz sentido
desenvolver lá, que não faria sentido fazer em outro lugar. Ou também en-
tender o que faz muito mais sentido em outro lugar, e nunca faria sentido em
Inhotim. Esse questionamento curatorial foi muito importante. Nesse mesmo
momento, chegamos á questão do jardim, já que nos anos 1980 tinha essa
preocupação com o paisagismo, essa influência direta ou indireta, talvez, do
Roberto Burle Marx e de outros paisagistas. Pensamos muito que seria inte-
ressante também profissionalizar essa área, contratar botânicos, agrônomos,
curadores. Hoje trabalhamos com um curador botânico, e durante esses anos
criou-se não só um parque, mas realmente uma coleção botânica. Esse con-
junto é importante, porque não é a arte decorando um parque ou o parque
simplesmente como uma cenografia bonita para a coleção de arte. Sempre
foi importante que as duas coisas tivessem o mesmo peso e dialogassem de
uma forma interessante. Isso eu acho essencial de Inhotim.
Fale um pouco sobre os arranjos de flores e a cozinha de Inhotim.
Começar o museu numa região onde há mais de 25 anos não tinha nem
cinema foi uma aventura. Tivemos que inventar muitas coisas. Mesmo em
Belo Horizonte você não conseguia partir de muita experiência profissional.
Passamos um ano procurando parceiros para tocar o restaurante, e todo mun-
do achava uma loucura fazer um museu em Inhotim, Brumadinho. Então nós
resolvemos colocar a cozinheira particular do Bernardo Paz, a Daúde, como
chef do restaurante. E hoje é um restaurante que serve excelentes refeições,
que já virou um destino para um passeio de domingo.
105
Um aspecto interessante é que temos oitenta pessoas trabalhando nesse
conjunto de restaurante, café e lanchonete. Então gerou muitos empregos na
região. Hoje o museu é o maior empregador no município de Brumadinho, e
lá tem a Vale do Rio Doce e a MBR, duas mineradoras enormes, ou seja, tem
mais pessoas trabalhando para o museu do que para as minerações. A mes-
ma coisa vale para o jardim. A maioria dos jardineiros é da região. Tem uma
pessoa que vem de uma comunidade quilombola, que trabalhou primeiro
no jardim e logo mostrou um grande desejo e habilidade em trabalhar com
arranjos de flores. Já faz quatro anos que ele está fazendo isso, cuidando de
todos os arranjos. É uma delícia ver esse jardineiro passando pelo jardim,
com o olhar muito focado. Acompanhar o seu trabalho é quase outra visita.
Ir atrás dele, ver o jardim puramente com o olhar estético.
O Brasil e os artistas brasileiros têm conquistado bastante espaço in-
ternacional nas artes plásticas. Como fazer para que o Brasil se torne
um circuito também de visitação, de turismo de arte?
Essa sempre foi uma preocupação. Até pela trajetória da instituição, de
uma busca até achar o próprio nome. Nessa discussão, sempre pensamos
na ideia de colocar o lugar no mapa. Primeiro, chamamos de Centro de Arte
Contemporânea Inhotim, depois Inhotim Centro de Arte Contemporânea,
depois só Inhotim. Porque Inhotim era um bairro de duas mil pessoas, e para
nós a visitação é muito importante. Ter visitações de fora coloca, claro, Inhotim
no mapa das viagens internacionais, em grupos de museus internacionais,
e também o Brasil.
Há pelo menos seis anos que estou morando no Brasil, e estou percebendo
que o país foi colocado no mapa internacional das artes. No final dos anos
1990, era mais uma curiosidade em achar outros lugares no mundo, visões
eurocentristas, norte-americanas, descobrindo outras regiões que não foram
muito discutidas. Mas agora, a partir de 2000, ficou clara a importância da
arte brasileira no mundo, e não só das artes plásticas. Realmente, virou um
roteiro de viagens.
O que significa criar um destino no interior, inventar um destino? Fazer
com que as pessoas viajem para visitar o museu?
Brumadinho era uma região muito rica culturalmente, mas não necessa-
riamente um destino turístico. O museu já vive essa experiência da viagem
106
desde a escolha do nome até a formação do conceito, do espaço físico que
ele oferece. Ele é um destino, não é um fluxo, não é um lugar de passagem.
Para mim, o modelo oposto seria o British Museum, em Londres, que é um
quarteirão, onde é tudo de graça. Então você pode entrar por um lado e sair
do outro. Em vez de simplesmente dar a volta no quarteirão, você passa por
dentro. É maravilhoso. Mas a nossa realidade é o oposto. Você tem que pla-
nejar sua viagem. Saindo de Belo Horizonte, precisa de uma hora e meia para
chegar lá. Nessa viagem, você passa por uma área industrial, depois por uma
área rural, passa por Brumadinho e depois vai até Inhotim.
Acho bastante interessante essa ideia da chegada, do destino, porque a
pessoa já chega com outro preparo. Você está preparado para agora descobrir
coisas, a chegada até lá é quase uma descoberta. Só recentemente colocaram-
se placas na estrada. Nos últimos anos, vários visitantes se perguntavam, no
caminho, se iam chegar lá e quanto tempo faltava.
Aí tem o museu, que não é um lugar onde se entra no prédio e descobre
tudo de uma vez. Quando começa a visita, não se tem a menor noção do
tanto que dá para conseguir ou não ver nesse dia. Não se sabe que é preciso
subir uma montanha para descobrir uma obra e que demora um tempo, essa
subida; que você vai chegar cansado na obra. Essas obras são colocadas lá
para você ter essa preparação. Tem um exercício físico, e é um momento que
funciona muito bem, estar exausto, e encontrar, você mesmo, uma obra no
meio do mato! Isso é muito especial para o visitante, ele participa realmente,
no sentido ativo, físico. Perder-se no parque é um momento muito importante.
É essa ideia que está sempre presente nas nossas reflexões, sobre o labirinto,
a beleza de se perder. E, mais ainda, encontrar-se de novo, orientar-se. Usar
o jardim e as obras como pontos de orientação da sua vida, do seu caminho,
da sua volta para chegar ao restaurante, para chegar ao centro educativo. É
muito provocador quando uma obra do Hélio Oiticica passa a ser, além de
uma obra a ser visitada, seu ponto de orientação durante um dia. Para nós,
são motivos recorrentes muito produtivos, que dialogam também com outra
noção de tempo e espaço. São experimentações de tempo e espaço que a gente
não conhece tanto na cidade. Leva tempo até chegar a algum lugar, e esse
tempo é próprio do visitante; ele não está preso dentro do trânsito, dentro
do metrô, está realmente se movendo até lá para descobrir uma coisa. Isso é
muito inspirador, muito produtivo.
107
A linha curatorial continuará nesse caminho, tornando tudo ainda
mais complexo?
Esse é um dilema. Todo museu ou instituição trabalha com um dilema, mas
tudo que a gente quer, a princípio, é que as pessoas se percam mais ainda. Hoje
você precisa de ao menos dois dias para visitar o museu. A gente brinca que seria
bom ficar cinco dias. E fica interessante essa impossibilidade de conseguir ver
tudo. Dentro do processo curatorial, esses motivos, essa outra noção de tempo e
espaço, são bastante inspiradores para nós, para o nosso trabalho de pensar no-
vas obras, novos caminhos. O curador normalmente começa pelo limite. Então
você já sabe que tem tantos metros quadrados para ocupar, já sabe o dia que vai
abrir a sua exposição, o custo. No Inhotim é o contrário. Nós começamos nor-
malmente sem um espaço determinado, sem tempo determinado, também sem
recursos determinados. Tudo começa com uma conversa, um convite. Vamos
conversar, vamos pensar, vamos andar nesta terra aqui e pensar se tem algum
assunto, algum contexto interessante. No início o objetivo não é o de realmente
realizar uma obra, é de provocar um diálogo, e a partir daí se dão essas criações.
A maioria dos projetos que foram inaugurados em 2009 teve seus processos ini-
ciados em 2004. São projetos de longuíssimo prazo, o que é um grande privilégio.
O Brasil conquistou espaço no mercado estrangeiro como exportador de
arte, digamos assim. Quais são as dificuldades para transformar o país em
um comprador de arte estrangeira e possibilitar a atualização de nossos
acervos públicos? Quais seriam as possibilidades para esse processo?
Na atual situação, exportar e importar obras de arte é muito complicado.
É muito difícil para uma coleção brasileira, principalmente as públicas, ad-
quirir obras de artistas estrangeiros, e isso prejudica totalmente a discussão
artística no país, até porque os artistas nacionais não querem ser discutidos
apenas dentro da realidade brasileira, querem criar uma relevância mundial,
criar diálogos. Em Inhotim, nós temos uma coleção internacional no Brasil,
e não uma coleção brasileira. Para os artistas com quem trabalhamos, isso
é interessante. Você consegue criar diálogos, por exemplo, entre obras do
Cildo Meireles e do Chris Burden, artista norte-americano. Esse é um diálogo
presente na própria articulação dos dois artistas, na fala deles, e poder ver em
conjunto é maravilhoso. Dá para a obra do Cildo uma outra relevância. Então,
para que a arte brasileira possa ser discutida mundialmente, e também aqui,
o ato de importar e exportar tem que ser ao menos facilitado.
108
No processo de construção de Inhotim, para quem vocês olharam, que
museus serviram de referência?
Para nós, uma das referências interessante é o projeto DIA Art Foundation,
de Nova York, que a princípio tinha uma sede, mas que nos anos 1970 passou
a trabalhar com projetos fora do museu. Eles criaram projetos-chave como
o Land Art. São projetos que até hoje fazem parte do DIA, mas que ficam em
lugares diversos, longe de Nova York. Essa ideia de uma instituição poder
trabalhar com obras na paisagem, produzir isso e colocar como parte do
próprio acervo, da própria atuação, foi bastante interessante. Só que nosso
caso é um pouco diferente, a instituição simplesmente foi para a paisagem.
Outra instituição que foi uma referência foi a Walker Arts Center, em Minne-
apolis, que no início dos anos 1990 descobriu vários programas-chave de como
trabalhar com a comunidade, de iniciação artística dentro da comunidade, do
uso do acervo como veículo para trabalhar com a comunidade. Os programas
educativos deles são também de grande influência para o nosso trabalho.
Alguns jardins de escultura que existem tanto na Europa como nos Estados
Unidos funcionam como referência para nós, mas entendemos sempre que
esses jardins de escultura não são exatamente o que nos interessa, são um
ponto de partida para a reflexão.
Quais são as ações educativas de Inhotim?
Atualmente, nós trabalhamos em três frentes. Na verdade, em quatro, porque
também tem a educação ambiental. Mas eu vou me referir mais à educação
de arte. O primeiro projeto a ser lançado se chama Laboratório, e foi pensado
para jovens do município todo. Esse projeto tem três módulos. No primeiro,
provocamos os jovens a identificar o patrimônio cultural que já existia naquele
local, e eles encontraram, por exemplo, as várias comunidades quilombolas, que
são desconhecidas por muitos da região. No segundo módulo, eles começam a
trabalhar com o acervo. No terceiro, eles têm uma certa formação profissional,
viram agentes culturais. É um programa bastante continuado.
Outro programa é de visitas escolares, que a gente começou a trabalhar
desde 2005, sempre com um forte programa de formação de professores. O
interessante desse programa é que a gente consegue acompanhar, através de
visitas nas escolas, a produção antes e depois da visita a Inhotim. E, a partir
disso, orientar os professores sobre como introduzir a arte contemporânea
no trabalho deles.
109
Outro programa é o da Escola Integrada de Belo Horizonte, que é um
projeto muito interessante da Prefeitura de Belo Horizonte. Eles levam qua-
trocentos alunos por dia para Inhotim, e eles ficam o dia inteiro. É uma visita
especial. Eles almoçam no restaurante. Esse programa tem tanto uma visita
de arte quanto uma visita de meio ambiente.
Atualmente, esses são os programas, tem outros mais pontuais.
Como fomentar o espaço de crítica, a reflexão sobre a arte contempo-
rânea?
Eu acho que tem um problema com a crítica que não é especificamente
brasileiro, é mundial. Talvez tenha a ver com um certo desligamento das artes
plásticas, ou das artes, umas com as outras. Eu sinto um certo desligamento
das artes plásticas com a poesia, com a literatura. A gente não tem essa cul-
tura de escrever sobre a arte, temos esse lado mais jornalístico, que é menos
interessante. Vejo que muitos artistas e curadores têm esse desejo de sair um
pouquinho do lugar, provocar de novo o diálogo com outras formas artísticas,
o que talvez possa dar uma voz e uma escrita de reflexão artística. Atualmente,
a crítica está um pouco em crise, não tem um lugar de fala muito definido.
Muitas vezes vocês constroem o processo em conjunto com o artista. O
museu e o artista construírem juntos é um caminho, é um destino para
a arte contemporânea, no sentido da curadoria como crítica, como
reflexão?
Buscamos sempre uma conversa em torno da obra de arte, do acervo,
da ideia, do questionamento. É uma maneira de trabalhar curadoria, e vejo
também como um caminho de construção. Tem de novo a ver com a noção
de espaço e também de tempo. Em vez de partir do lugar que tem que ser
preenchido, ocupado por obras de arte ou intervenções artísticas, pensa-se
o projeto artístico e ele define o lugar. Isso é um caminho que me interessa.
Esse diálogo me interessa. O projeto define a arquitetura, não é a arquitetura
que define o projeto. Para Inhotim, isso é um caminho. Assim você consegue
uma ligação muito interessante não só para o curador e o artista, mas para a
instituição e o artista. Porque você consegue realmente trabalhar em conjunto
uma ideia. Claro que tem certas orientações que a curadoria faz, mas são mais
ajudas, o curador é mais um parceiro do que aquele que fala para onde ir. É
um facilitador, que provoca o artista para pensar um lugar e fazer com que
110
ele consiga ocupá-lo ou construí-lo. No nosso caso, como são projetos que
demoram às vezes cinco anos, a técnica está totalmente ligada à produção
do artista, e ele pode trabalhar junto com o jardineiro, com o botânico, com a
pessoa que faz o caminho, que faz o entorno da obra dele. Poder estabelecer
essa troca de ideias, essa ligação transdisciplinar, ou interdisciplinar, é muito
interessante.
Inhotim virou uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
– OSCIP, se despersonalizou, se desligou da figura física do Bernardo
Paz. Quais os caminhos para transformá-lo em uma instituição autos-
sustentável, que não necessite tanto de um mecenato?
Nós estamos na busca desses caminhos. Criamos uma pessoa jurídica inde-
pendente da pessoa física, e essa pessoa jurídica é uma instituição que opera o
museu e cuida do acervo. Atualmente, nós estamos num processo de doações
da pessoa física para a figura jurídica, então já se cria um acervo de natureza
privada, mas de interesse público. Com essa transição, oficializa-se o aspecto
público de parte do acervo. Para se tornar sustentável, é um longo processo,
tem que se criar uma consciência na sociedade de que a iniciativa privada é
um momento, mas ela tem um limite. Uma vez que você coloca um patrimônio
desse à disposição de um público tão grande, um acervo de tanta relevância,
vira cargo da sociedade sustentar isso. Claro que tem esses caminhos que nós
conhecemos, leis de incentivo, projetos de proteção, planos de atividade anual.
São caminhos mais comuns. Mas, no caso de Inhotim, nós temos o desejo de
criar uma autossustentabilidade através do próprio lugar. Se ele vira destino
turístico, temos que criar formas para que as pessoas possam aproveitar esse
destino com mais tempo e para que essa estadia possa ser revertida para a
manutenção dos acervos do museu. Temos vontade de criar uma visita que
dure cinco dias, até porque quem fica cinco dias, consome cinco dias. Esse
consumo, de certa forma, é um desejo de participar também. A maioria das
pessoas quer ficar mais tempo no museu, então queremos aproveitar esse
desejo do visitante e reverter em sustentabilidade. Além disso, Inhotim hoje
está virando um jardim botânico reconhecido, com uma das maiores coleções
de plantas do mundo. Provavelmente, a maior coleção de palmeiras. Então já
virou destino de cientistas, biólogos, botânicos, ou seja, isso também pode ser
aproveitável, podem-se criar bolsas de pesquisa. Toda essa reflexão que se cria
em volta de Inhotim pode ser utilizada como forma de manter a instituição.
111
Como você vê a questão do fomento de um circuito de arte brasileira?
Normalmente, quem visita Inhotim já visitou várias outras cidades e
várias outras instituições de arte brasileiras. É interessante perceber que
o trajeto não é mais naturalmente via São Paulo e Rio de Janeiro. Existem
pessoas que visitam Salvador, Inhotim, Porto Alegre e daí vão para Buenos
Aires. Isso, além de diversificar, demonstra que o Brasil é um destino. A gente
sente muito essa vontade de o estrangeiro vir para o Brasil, não só por causa
de praia, mas para conhecer também uma cultura. O Instituto Inhotim está
inserido num circuito local de Minas Gerais: o barroco de Ouro Preto, Sabará
e Congonhas, o modernismo da Pampulha, dos prédios de Oscar Niemeyer,
e o contemporâneo em Inhotim.
Como você está vendo a nova geração das artes plásticas brasileira?
Eu moro e gosto de trabalhar no Brasil, porque vejo que a arte brasileira,
a nova turma, está produzindo coisas incríveis, trazendo questionamentos
superinteressantes. Acho importante ter esse encontro com obras de fora.
Isso fortaleceu a bienal de São Paulo, mas criou uma situação. Ela traz obras
de fora, mas faz com que outros não tragam. Toda experiência com arte
internacional estava sempre ligada à bienal, porque é difícil trazer obras de
outra forma. Então o questionamento é se teríamos outra situação se a bienal
não tivesse tido esse peso. Quer dizer, hoje talvez outras instituições tivessem
criado os acervos internacionais. Isso com certeza teria um impacto bastante
produtivo para jovens artistas. Hoje a quantidade de jovens artistas viajando
para ver o Inhotim é incrível, porque é um lugar onde se pode ver duas obras
em diálogo, como eu falei, a do Chris Burden e a do Cildo, uma ao lado da
outra, permanentemente montadas. É uma escola.
Além da aquisição de obras, há a troca entre os artistas. O Brasil está se
inserindo no circuito internacional de residências artísticas?
Sim. Hoje os programas de residências de artistas estrangeiros no Brasil
são tão importantes quanto os de jovens artistas brasileiros lá fora. Projetos
como o Capacete, no Rio de Janeiro, são tão essenciais porque trazem pessoas
para cá. Não só jovens artistas, mas artistas que querem conhecer a produção
brasileira, são curiosos. Sinto que esse diálogo está acontecendo, está cres-
cendo. E isso é fundamental para a arte.
113
Como surgiu a Galeria Vermelho?
A galeria veio de uma frustração de professores. Na época, eu dava aula
na Fundação Armando Alvares Penteado, a FAAP, e já tinha dado aula de
fotografia no parque Lage, no Rio de Janeiro. Eu via que alguns alunos, que
tinham um trabalho que se desenvolvia na fotografia, no vídeo, e que eram
muito talentosos, ficavam à margem. Eu não sei se o professor tem que se
preocupar com isso, mas eu me preocupei. Eu achava que de alguma forma a
sociedade tinha que receber o que essas pessoas tinham para dizer, porque o
uso da imagem fotográfica, do vídeo e da tecnologia fazia parte do nosso dia a
dia, mas no campo da arte essa reflexão não chegava. Nos cursos de arte, em
uma turma com cinquenta alunos, três ou quatro se tornavam artistas com
carreiras sólidas. E, no meu caso, não: a maioria dos alunos virava diretor
de arte. Eu via que tinha alguma coisa errada. Eu não tinha nenhum conhe-
cimento comercial, mas queria auxiliar no sustento desses artistas. E virar
artista também é criar alguma coisa que entre no mercado. Eu já conhecia
galerias, frequentava e inclusive trabalhava como fotógrafo em algumas delas,
e percebia que o negócio era muito baseado ainda no suporte da pintura. Os
alunos que conseguiam espaço eram os que estavam pintando. Mas não era
isso para que nós, os professores, vínhamos batalhando: a questão da arte era
Sócio-proprietário da Galeria Vermelho.
EduBrandão
114
mais complexa que só uma discussão de pintura. Então a criação da galeria
foi uma reação a isso.
Em que ano a galeria foi criada? Foi um empreendimento que contou com
parceiros financeiros?
Foi em 2002. Vai fazer oito anos agora. A minha parceira é a Eliana Finkels-
tein, que era minha aluna e tentava, há um tempo, me seduzir a abrir uma
galeria. Por ser um péssimo comerciante, a ideia não era muito bem-vinda
por mim. Na época, eu já trabalhava na Folha de S. Paulo há mais de dez
anos, com fotografia, com direção de arte. E ela insistia na ideia da galeria.
Teve um determinado instante em que eu vi a criação da galeria como uma
possibilidade. Antes disso tudo, mantive um lugar junto com alguns amigos de
faculdade, professores, como a Dora Longo Bahia e o Felipe Chaimovich, que
hoje é do MAM. Montamos um espaço num terceiro andar em Barra Funda,
onde a gente reunia, para conversar, a moçada que já tinha se formado, porque
naquele tempo os museus e centros culturais não tinham tanta força, então
a molecada se formava e caía num vácuo. E, na tentativa de preencher esse
vácuo, ocupávamos esse espaço, passando os sábados inteiros conversando
sobre arte. Foi uma experiência muito legal, mas de apenas três anos, porque
quem bancava o aluguel e tudo mais era eu. A moçada tinha acabado de se
formar em artes plásticas, mal conseguia ter dinheiro para pegar o ônibus.
Aquilo foi ficando oneroso pra mim, e eu achei que não era o caso, que tinha
que pensar uma outra forma. Uma das pessoas que frequentava o espaço era
a Eliana, e daí veio a proposta de criar um lugar, uma galeria, que pudesse
vender e, ao mesmo tempo, manter o que se tinha naquele lugar que a gente
chamava de escolinha. Então era proporcionar a troca, mas que fosse autos-
suficiente. Isso fazia sentido.
Por que o nome Vermelho?
Eu não queria pôr o meu sobrenome, como fazem as galerias normalmente.
A assinatura com o sobrenome dá a impressão que se está dando alguma coisa
para a arte, quando é o reverso, quem dá é a arte, e não a gente. Então eu que-
ria algum nome que fizesse referência à arte, e a cor é uma coisa que a gente
trabalha o tempo todo. Eu venho da fotografia, sou um fotógrafo analógico,
e tem um lado meio romântico nisso. No laboratório tem a luz vermelha, e
quando você está revelando a imagem, ela sempre vem vermelha e preta. É
115
estranho falar, mas isso é mágico. Tem uma coisa mágica que dá uma força,
uma curiosidade. Essa busca pela imagem, essa espera, era um momento
muito importante na minha vida, e ela era vermelha. Então achei que podia
trazer essa questão. Isso não tem tanta importância, mas foi daí que saiu.
O Rui Campos, da Livraria da Travessa, falou que o nome é um copo vazio
que você vai preenchendo.
O espaço gera força, e as outras pessoas ficam impregnadas dessa força.
É claro que o vermelho tem varias conotações, tem uma conotação política
até, a questão do comunismo, essa coisa toda. Mas o fascismo também foi
vermelho, um monte de coisas foi vermelho. Algumas pessoas pensaram que
tinha essa intenção política, porque eu batalhava muito pela fotografia. Mas
não, foi mais uma questão romântica do que política. Não que o romântico
não seja político...
Não foi econômico também? Ficar no vermelho? [risos]
Espero que não. A minha experiência no campo do mercado era bem
pouca. Hoje eu já pensaria mais nisso, na época eu pensava pouco.
A galeria começou só com fotografia ou o projeto era abranger os vá-
rios suportes?
Eu não queria uma galeria voltada para um meio específico, como a foto-
grafia, porque isso já não fazia sentido na própria universidade. O campo em
que eu estava era o da fotografia dentro das artes, como a pintura e outros
meios. Eu não queria trabalhar só com fotografia ou com vídeo, queria traba-
lhar com arte contemporânea. E a arte estava ali nascendo com a molecada.
Mas, por outro lado, eu queria uma bandeira, e a fotografia me serviu para
isso. Tivemos um bom casamento, e a fotografia me fez pensar algumas coisas.
Sou representante da fotografia, aquilo me dava uma força, mas nunca quis
ter só fotografia, não fazia sentido.
Como foi o processo de escolha dos jovens artistas?
A maioria tinha sido meus alunos, eu já dava aula há muitos anos. Quan-
do você está acompanhando o sujeito, você vê que ser artista não é só ter as
ideias ou uma cultura, é mais complexo. A situação em sala de aula permite
que você se aproxime, e tinha alguns alunos ali de cujo trabalho eu gostaria
116
de acompanhar o desenvolvimento, porque eu acreditava no que eles estavam
falando e achava que seria bom divulgar. Na minha leitura, quando começo a
entrar e conversar, não com uma obra, mas com uma produção de um artista,
eu vou entendendo o que ele acha do mundo, o que ele tem para dizer do
mundo, e posso concordar com aquilo ou não. Muitas vezes você vê peças
formalmente muito interessantes, bem resolvidas e competentes, mas você
não necessariamente concorda com o que o artista tem para dizer.
Você acompanhou de perto o aumento da presença da produção artística
contemporânea brasileira no exterior. Como você viu esse processo?
A minha vivência foi com curadores da Europa e EUA, vindo e reconhecen-
do que temos um valor. Esse reconhecimento talvez tenha vindo primeiro por
causa dos curadores e depois do mercado, porque o mercado está vindo agora,
e isso, sem dúvida, é incontestável. A minha experiência é que o reconheci-
mento curatorial veio antes. Há uns quatro anos, estávamos envolvidos, de
alguma forma, em mais de quarenta exposições fora do Brasil com presença
de artistas representados pela Vermelho. Eu tenho em torno de 36 artistas.
Esse número é relevante, mas não quer dizer que tivéssemos um mercado
para aquilo naquele momento. Hoje sim.
Quais são as principais feiras e exposições internacionais?
As feiras de Basel e Miami Basel. As duas são muito importantes para
nós. A Miami Basel, por causa da latinidade. Na Europa tem a Frieze, na
Inglaterra, que é muito importante; a FIAC, em Paris, que desapareceu um
tempo e parece que está retomando força, e a Arco, na Espanha, que sempre
foi muito importante para nós, por uma questão cultural. Agora, tem uma
questão importante: a Vermelho, especificamente, porque não posso falar
pelas outras galerias, usa muito as feiras para divulgação dos artistas. É um
momento muito importante em que você encontra curadores, curadores de
instituições, então o objetivo não é apenas fazer dinheiro. Porque eu tenho
uma arte ainda barata, e o movimento é caro. Sair do Brasil é caro, os impostos
são caríssimos, o transporte é caríssimo, toda a papelada é caríssima. Então
você faz uma feira, trabalha, mas não vai fazer dinheiro. A feira rende para a
galeria, rende para o artista, porque curadores do mundo todo veem a obra
e acompanham depois. Aí vem o lucro, porque ter um artista participando
de exposições no Japão, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos é um lucro
117
cultural, institucional e que gera venda a posteriori. Mas a gente ainda está no
investimento. É claro que existe uma arte com um valor mais alto, que você
vende uma peça e paga todo o investimento, mas eu ainda preciso vender
muitas obras. É muito movimento para ter algum lucro, e várias vezes você
volta no zero a zero.
Essa é uma questão. Que políticas precisariam ser pensadas para haver
uma circulação maior de obras no exterior e também uma capacidade
maior de aquisição de obras no Brasil?
Elas são infinitas. A facilidade com que você entra, sai e paga o imposto nos
Estados Unidos é impressionante. Aqui é supercomplicado, o que faz com que
galerias de fora nem entrem aqui. Eles não querem entrar, porque tudo vai
ser mais difícil, a gente não tem uma política cultural para isso. Quando nós
organizamos alguma exposição lá fora, nem pensamos em vender, porque se
formos pensar em lucro, nem fazemos a exposição. O que a gente pensa é que
vai levar uma representação de um artista brasileiro e fazer uma mostra dele
dentro de um cubículo, que é o que a gente pode pagar. É trabalho de Sansão.
Um leilão é uma oportunidade para os compradores e para os artistas.
É uma oportunidade para a galeria também, ou não?
É todo um sistema. Nunca é bom ou ruim só para um lado, é tudo enredado.
Teve agora um leilão dos BRICs – Brasil, Rússia, Índia e China – que foi feito
pela Philips, em Londres. Foi meio desastroso, porque um tanto das obras não
chegaram por causa da questão do vulcão da Islândia. Mas a ideia é que tivesse
arte moderna e contemporânea desses quatro países, de alguns mais, de ou-
tros menos. A galeria foi convidada a colocar umas peças. Depois de algumas
conversas, quatro ou cinco artistas que já tinham mercado lá fora entraram.
Alguns artistas da galeria já estão com obras na Tate, então a gente acreditou
que isso ajudaria. A princípio ficamos na dúvida se seria bom entrar nesse
mercado, mas acabamos resolvendo viver a experiência para ter uma respos-
ta, e não ficar supondo. O que aconteceu é que as obras desses jovens artistas
não chegaram até lá, mas só o fato deles estarem ali com o nome, a fotografia
no catálogo, foi ótimo. Porque é uma distribuição de imagem e de reflexão, é
uma conexão. Estamos muito longe de algumas reflexões, hoje mais perto de
algumas, mas ainda muito distante de outras. Não rendeu nada em relação
a dinheiro, mas curadores que viram a peça através do catálogo telefonaram
118
pedindo para enviar os portfólios dos artistas, e, por causa desse catálogo, já
estamos com exposições de dois artistas que estavam ali. Então esse meio é
muitas vezes tão carente, que qualquer divulgação parece válida. Talvez daqui
a um tempo vamos ver que não, mas agora qualquer divulgação é importante.
Como você vê o papel do galerista agora, depois de oito anos de expe-
riência na Vermelho? Quais são as funções do galerista para o artista?
A gente aprende o tempo todo, mas só faz o que sabe. Eu comecei na
arte como um professor e, hoje, parece que sou um amigo. O que fazemos
é acompanhar a ideia do artista, a produção, a compreensão do que está
acontecendo. Porque eu divulgo, falo da obra desse sujeito não só para um
comprador, mas para um curador, um diretor de museu, uma instituição.
Então eu represento, e tenho que ter um conhecimento profundo daquela
obra. Tento manter também um conhecimento do que está acontecendo nos
diferentes museus, quais são as propostas que os curadores estão trabalhan-
do, para que eu possa oferecer o que eu tenho em mãos. Oferecer obras de
artistas sintonizados com as propostas.
Hoje a minha vida é muito de acompanhar o artista em exposição, muitas
vezes nem dá para ficar na abertura, mas eu fico durante a montagem e tento
criar sistemas que possibilitem essa mostragem. Por exemplo, é difícil tirar
uma escultura do Brasil e colocar na Itália: o transporte é absurdo de caro,
de moroso, então o artista acaba indo produzir a obra lá na Itália. E pensar
como isso pode ser feito e como vai ser feito são estratégias que a gente vai
criando para divulgar a arte daquele artista e fazê-la possível.
O que o galerista faz é apresentar a obra da melhor forma possível, criando
exposições que sejam honestas e sinceras com a intenção do artista, distri-
buindo essas exposições, ou as obras, para outros lugares do Brasil e de fora,
criando relações de vendas, procurando vendas institucionais. O galerista
tem que ficar do lado do artista.
A Vermelho tem a exclusividade dos artistas? Como funciona essa ne-
gociação?
Temos algumas exclusividades, mas eu costumo procurar, inclusive, outras
galerias para eles trabalharem. É bom você ter bons companheiros de trabalho.
Não acho importante só eu vender o sujeito, muito pelo contrário. Na Europa,
é importante ter gente que represente o artista que eu estou trabalhando. É
119
importante usar ao máximo as capacidades dos outros e dividir, representar
alguém aqui que já tenha sido representado, que esteja sendo representado
fora. É bom para o artista ter relações diferentes, deixa ele mais maduro,
e a mim também, como galeria. Tem galerias que chamamos de irmãs, no
México, na Colômbia, na Argentina, na França, em Portugal, e isso nos dá
uma latitude. Você aprende outras formas, vê como eles negociam, um abre
caminho para o outro. Não é essa batalha que as pessoas acham: um ajuda
muito o outro, tem sindicato. Quando um sabe de alguma coisa, repassa para
o outro, porque se o meio está forte todos saem ganhando. Não se vai sozinho
para nenhum lugar, é preciso ter companheiros. É importante ter um sistema,
senão a coisa não cresce.
Agora que você deixou de dar aula, perdeu o contato com esses estudan-
tes, como seleciona e adquire os novos artistas?
É raro uma noite em que eu não esteja em um ateliê. E de um ateliê você
vai pra outro. Acho que tem um cheiro que a gente aprende a farejar. Vou
nas exposições, não só em galeria, mas vou a centro cultural, e vou acom-
panhando o que o sujeito tem a dizer. Há uns três anos eu fiz um projeto
para o Itaú Cultural que se chamava Portifólio, para mostrar trabalhos de
fotografia de quem estava começando. É muito interessante o projeto, para
mim principalmente, porque eu tinha que fazer uma exposição com jovens
artistas, tive a oportunidade de viajar e tinha alguém investindo no meu co-
nhecimento. E quando um artista me interessa, eu fico em contato. Estando
por perto, você fica ciente do que é feito, vê se o sujeito tem fôlego, se tem
capacidade de abranger outras questões, ou se é aquele sujeito que sempre
vai falar a mesma coisa. Ao mesmo tempo, toda vez que entra alguém novo
eu tenho que movimentar a galeria toda, significa muito trabalho, porque eu
tenho uma capacidade de funcionar com alguns artistas e eu estou com essa
capacidade no limite.
Para a produtora cultural Tânia Queiroz, “o curador é uma espécie de
amortecedor entre o artista e a galeria, o curador entende a sensibili-
dade do artista e fala a linguagem do mercado”. O que você acha sobre
essa afirmação?
Primeiro, o curador não está entre a galeria e o artista. É difícil falar o que
é o curador. Acho que o galerista, o curador, todos nós, estamos a serviço da
120
arte. Tudo tem uma função: tenho uma função como curador e outra como
galerista, mas tenho que responder à arte e à questão do artista, porque sem
arte e sem artista não existe nada disso. Não acho que os curadores estejam
entre a galeria e os artistas, está tudo meio junto. O galerista entra, muitas
vezes, como um possibilitador, um desenhista de estratégia, tentando respon-
der às necessidades da obra, da intenção do artista com a obra, e do curador.
E tudo isso em volta é para a sociedade, o que a sociedade está querendo, o
que ela está precisando. Estamos trabalhando para ela. Para mim, foi sempre
importante a porta estar aberta na galeria, ter o horário de funcionamento
maior possível. Só não funciono no domingo porque isso geraria um custo
muito grande, mas sábado é talhado de criança na galeria, de gente. A função
é essa, por isso que eu digo que a gente faz o que sabe fazer. Eu entrava na
sala de aula pasra compartilhar o conhecimento que eu tinha com o outro, e
estar apto a responder as questões. É o que eu faço na galeria, não é diferente:
você abre a porta, tem uma exposição com a questão do artista, o conceito
formalizado do artista, e você disponibiliza isso para a sociedade. Abrir a porta
da galeria e entrar porta adentro na sala de aula para mim é a mesma coisa.
Você está aberto para as críticas, para reflexão, para tudo de bom e tudo de
mau que virá, que é a vida da arte. O que eu quero dizer é que esses desenhos
de curador, galerista, são muito mais nebulosos do que a gente imagina. Um
curador pode fazer até um estrago maior para um artista do que um merca-
do. O curador também é mercado, porque ele está sendo pago, ele tem um
mercado a responder também.
Como você examina a crítica, ou a evolução da crítica, em artes plásti-
cas no Brasil, em relação ao crescimento do mercado e de atenção? Ela
também corre esse risco de ser mercado?
Eu acho que não. Mesmo quando eu falo em curadoria, que é um mercado,
eu não acredito que o mercado seja ruim, não acho que a intenção do curador é
gerar mercado para ele, nem da crítica. Fala-se que temos uma crítica não mui-
to ativa aqui, nos jornais e em publicações. Eu discordo: temos bons críticos,
que acompanham, como curadores. Geralmente, o curador e o crítico estão
meio juntos. Vejo uma ligação entre curadores e artistas, de acompanhamento
de trabalho. Aqui o crítico também acompanha o trabalho do artista. Lá fora
isso não acontece, existe um distanciamento. Em Londres, por exemplo, tem
um dia específico em que sai a crítica no jornal. Aqui é diferente: temos uma
121
coisa que é o jornalismo sobre arte, o que eu acho superinteressante, uma
apresentação da exposição. Duas ou três vezes por semana, sai alguma coisa
sobre arte no jornal, nunca vi isso em outro lugar.
É interessante isso, porque, a princípio, toda a ideia de crítica seria de
afastamento, de idoneidade, não de aproximação.
Eu não acredito nessa neutralidade. Não acredito que o distanciamento
vai me fazer mais idôneo. Quanto mais conhecimento você tiver sobre o que
vai falar, melhor será a reflexão. Sou professor, e quanto mais eu conhecer o
meu aluno, melhor vou poder orientá-lo. Eu trago um livro para um aluno
dependendo do trabalho dele. Se eu der aula de costas, escrevendo na lousa,
sou mais idôneo? A mesma coisa acontece com um crítico. Não acho que ele
tenha que se sentar à mesa com o artista para jantar, mas se ele conhece o
trabalho vai poder criticar melhor, de forma negativa ou positiva.
A reflexão crítica é um trabalho de fôlego, com uma demanda de tempo,
uma demanda profissional. Como fomentar o crescimento do trabalho
crítico?
Quanto mais complexa for a produção do artista, mais complexo precisa
ser o entorno, não só o crítico ou o curador. Aqui as pessoas muitas vezes
são criticadas negativamente por atuarem em diferentes áreas, mas eu acho
que isso é muito saudável. Acho ótimo o crítico que também faz curadoria,
porque ele vai permeando a arte não tendo uma única forma de expressão.
Muitas vezes a relação do crítico com o mercado é vista de forma negativa. Se o
crítico cura uma coleção de uma instituição privada, o meio de arte considera
negativo. Mas eu fico feliz, porque tem alguém com um conhecimento que
age e estimula o colecionismo de uma forma interessante. Essas interseções
são fortes. Se você for ético, não vai deixar de ser só porque atua nos dois
campos. E as pessoas precisam desenvolver mais de uma capacidade, não
são gavetas fechadas e únicas. Quanto mais exercício você fizer, quanto mais
você se colocar à prova, mais complexa será a produção.
No caso, por exemplo, de um artista vender uma obra por US$ 50 mil
para uma instituição e um curador; dez anos depois, a obra pode ser
revendida por US$ 1 milhão, mas o artista não receberá nada por isso. A
questão do direito autoral na revenda é muito complexa. Um curador
122
entrevistado falou que o primeiro passo seria o artista dizer o preço
real dessa obra e da sua venda, o que é uma coisa difícil de ser feita. E
complementou dizendo que há uma reversão hoje, que cada vez mais as
galerias estão se abrindo.
É necessário que, com o amadurecimento do mercado, as instituições
e os artistas abram suas contas. Não tem outro jeito. Fala-se muito desse
mercado, que é um mercado nebuloso. É claro que eu sei que é, mas eu não
vivi esse mercado nebuloso, entende? Eu tenho uma porta aberta ali, e não é
nada nebuloso. Eu pago metade da produção, o artista paga a outra metade,
50% é meu, 50% é do artista. É uma conta razoavelmente fácil. Tudo tem
preço, e paga-se imposto em cima disso. Para ter um mercado tem que ter
preço. Como que a gente não sabe o preço das coisas? Eu não tenho esse
mercado de revenda. Se eu compro a obra de um artista por um preço X, e
vendo isso depois mais caro, até o período de dois anos, eu divido isso com
meu artista. Se eu comprei por US$ 10 mil e vendi por US$ 12 mil, dou US$
1 mil ao artista. O mais próximo que tenho do que estamos falando é isso.
Mas, se eu for vender depois de dois anos, talvez não vá dividir mais com
o artista, porque os custos são altos. Sou eu que pago a reserva técnica, a
manutenção da obra, a restauração da obra, que muitas vezes é necessária.
Então, se eu for dividir com ele, eu não tenho mais esse lucro. É um inves-
timento que eu faço no artista, um investimento da galeria que também é
positivo para ele.
Fala de uma obra que te despertou para o mundo da arte.
Eu não diria que foi uma obra de arte, mas uma convivência. Eu já tinha
estudado arte, mas a convivência com o Leonilson me despertou para isso
que vivo hoje. Uma coisa meio humana, você tem que cuidar daquilo porque
aquilo significa a nossa qualidade de pensamento. O Leonilson chamava muito
a atenção para a função da arte na cultura, e eu fui vendo que aquilo podia ser
um projeto de vida também. Aí foi quando eu comecei a fotografar a arte como
um documento. Isso me seduzia e eu tinha a sensação de estar fazendo algu-
ma coisa importante. Durante muito tempo, minha vida foi fotografar moda,
produto, publicidade. Mas à noite, no final de semana, eu fotografava arte,
porque achava que estava fazendo alguma coisa em prol de um pensamento.
A convivência com o Leonilson foi muito importante para mim. Vê-lo
cuidando da obra, pensando a obra, fez-me achar que eu poderia fazer isso
123
também. Eu acho que mais do que uma obra específica, é essa complexidade
que faz com que você tenha vontade de fazer alguma coisa. Está certo que
eu vendo coisas, mas estou vendendo mais do que coisas. Outro dia foi uma
pessoa na galeria comprar uma obra. Ela estava com o filhinho, e eu achei
legal que o menino fosse ter aquela obra ao lado dele. Para mim, é importante
isto: não vou decorar a casa de ninguém, eu acho que tem uma casa, tem uma
criança, tem um sobrinho, alguém que vai conviver com aquilo. Eu convivi
com arte e foi superimportante para mim, e acredito que pode ser importante
para alguém também, para essa molecada que está aí. Para mim, é mais ou
menos assim. As obras de arte são coisas, mas são carregadas de reflexão. E a
arte é um jeito meio mágico de passar essa reflexão para o outro.
125
Como nasceu A Gentil Carioca?
A Gentil Carioca nasceu no dia 6 de setembro de 2003, razão pela qual a
gente costuma dizer que já nascemos independentes. A galeria é fruto de uma
conversa entre quatro artistas: eu, Ernesto Neto, Laura Lima e, no início, Franklin
Cassaro. Naquele momento, no Rio, não havia nenhum tipo de espaço de arte,
de galeria, que tivesse o olhar do artista por trás. No caso, nós éramos quatro
artistas pensando esse espaço de arte, pensando o que poderíamos trazer de
novo para a cena do Rio. Lembro que foi um ponto interessante, no começo,
pensar como viabilizar a Gentil, de que maneira a Gentil iria sobreviver. Um
pouco antes nós havíamos tido a experiência do Agora Capacete, que foi um
outro projeto que também reunia quatro artistas, mas que não tinham intenção
de formar uma galeria de arte. Apesar de terem feito exposições e tentado, em
umas delas, vender algumas obras, era um projeto mais institucional. O projeto
durou enquanto teve o apoio de uma empresa. Quando acabou esse recurso,
não conseguiu se manter. Isso foi um certo ponto inicial para a gente, porque
começamos a imaginar como poderíamos sobreviver de forma independente,
e aí veio a ideia de colocar a obra de arte no mundo.
A comercialização da obra de arte nos deu a liberdade de ação. De alguma
maneira, não dependeríamos de um diretor de marketing ou de uma ação do
MárcioBotner
Artista plástico e fundador da galeria A Gentil Carioca.
126
governo. Então veio a ideia da Gentil ser um espaço de arte tocado por artistas
que, para sobreviver, comercializaria obras. A comercialização traz também
a possibilidade de se difundir cultura. Uma obra de arte é uma bomba de
cultura. Colocar uma obra em um espaço privado, em uma casa, num museu,
privado ou público, ou na rua, é possibilitar que ela exploda cultura, irradie
cultura onde quer que esteja.
E como surgiu o evento Abre-alas, uma das marcas da Gentil?
O Abre-alas nasceu no término do primeiro ano. Nós nos demos conta
de que tínhamos quase duzentos portfólios de artistas de vários estados
brasileiros. No primeiro ano, a gente chegou a fazer umas 16 exposições, uma
loucura. Então no fim do ano ficamos com esses portfólios e não tínhamos
muita ideia do que fazer com eles. Aí surgiu o Abre-alas, o projeto de abrir
espaço para lançar novos artistas, ser uma espécie de antena e depois uma
espécie de vitrine exibidora de jovens artistas pelo Brasil. Temos a intenção
de ampliar e sair um pouco desse eixo, tão forte, Rio–São Paulo.
Fizemos o primeiro Abre-alas com uns vinte artistas. Com alguns deles
nós começamos a trabalhar depois, outros foram para outras galerias, e
alguns despontaram mais no campo institucional. E percebemos que essa
exposição teve uma força, até pela ausência de salões de arte e de outros ti-
pos de programa de incentivo para o jovem artista. Em março e abril, depois
do primeiro Abre-alas, que acontece sempre junto ao carnaval, daí o nome,
começamos a receber novos portfólios, antes mesmo de pensarmos numa
segunda edição do evento. Aí nos demos conta de que havia uma urgência
dos jovens artistas por esse espaço, e da importância da continuidade, prin-
cipalmente em um país como o Brasil, onde muitas vezes o governo ou as
instituições mudam de direção e interrompem programas que vinham dando
certo, por razões meramente políticas. Então demos continuidade e, a partir do
terceiro Abre-alas, começamos a receber portfólios de artistas internacionais,
o que é extremamente importante para misturar culturas e conhecimentos.
Também começamos a fazer uma publicação, uma espécie de jornal aberto
para a voz do jovem artista, que é uma demanda importante. O artista ganha
espaço com o tempo, mas logo no início, para ele poder falar sobre sua obra,
poder entender o que faz, compreender a sua própria ação, é preciso que se
criem espaços abertos, como o nosso jornal. Uma galeria de arte, um espaço
de arte, por ser mais leve que uma instituição, deve cada vez mais assumir
127
riscos. Ser um espaço de troca, de comercialização, mas também de ideias,
de provocação de novas ideias, de novos riscos, o que, de alguma maneira,
vai trazer riqueza. A maior riqueza possível é a riqueza cultural, e é claro que,
depois disso, as outras riquezas hão de estar juntas.
Como se deu a escolha do espaço? Por que a Gentil foi para a praça Tira-
dentes, no centro do Rio de Janeiro, que naquele momento era um espaço
degradado da cidade?
Talvez por preguiça, não sei. Na verdade, o andar de cima era o meu ate-
liê. Então, de alguma maneira, tinha uma questão de convivência. E tinha
a proximidade do Centro de Artes Hélio Oiticica, que fica na esquina e que
inaugurou em 1995. O espaço existia, e existia uma vontade de transformá-lo
em algo público, algo que provocasse um novo momento de reflexão sobre
o que acontecia na arte contemporânea no Rio. Claro que tinha também o
fato de estar ali, inserido no meio do Saara, que, como eles dizem, é o maior
comércio popular aberto da América Latina. E é um espaço onde os artistas
convivem e vão procurar materiais para estar sempre renovando seus traba-
lhos. Você está no centro histórico do Rio. A praça Tiradentes, que até hoje
tem dois teatros, já foi o centro nervoso da cultura do Rio e do Brasil. Havia
também, nessa escolha, a ponte entre arte contemporânea e história. Desde
o início do século passado, lá existem árabes e judeus convivendo harmonio-
samente, e isso é um exemplo de tudo que a gente acredita, é a possibilidade
de mistura que o Brasil tem. Então é muito importante a localização. Daí o
desenvolvimento que se foi dando.
Como surgiu a exposição Educação, olha!?
Fizemos a exposição em 2005 pela primeira vez e foi um marco para a gente.
Convidamos 64 artistas, das mais variadas gerações, para ocupar o espaço da
galeria a partir do desenho. Lembro que a gente pensou no desenho como
uma espécie de reflexo do primeiro alfabeto do artista, como se o desenho
fosse a passagem mais imediata do pensamento do artista para uma realização
objetual, e foi sensacional essa exposição, em vários aspectos. Um mês antes
a gente tinha feito uma exposição do Alex Hamburger, que foi extremamente
importante para a nossa geração dentro do campo da performance, e então
fomos distribuir os convites da nova exposição em um evento no Hélio Oiti-
cica. O Alex pegou o convite e rasgou em pedaços, na frente de todo mundo.
128
Ficamos sem entender, e ele disse: “Mas como vocês não me chamam para
a exposição?” E aí foi absolutamente sensacional, porque o Ernesto Neto
reagiu de imediato, de um jeito genial e generoso, e falou: “Então está tudo
ótimo, todo mundo aqui, todos os artistas que quiserem, estão convidados,
basta aparecer amanhã com a sua obra, que poderão expor.” Isso era uma
quinta-feira, a exposição inaugurava no sábado. E aí chegaram mais uns trinta
e poucos artistas. No fim, eram mais de cem obras dentro do espaço.
Durante todo nosso processo com a galeria, aprendemos muito o valor
de agregar, da vontade de estar com o outro, de ouvir o outro. Aquela foi uma
maneira de ouvir o Alex, mesmo achando que ele não tinha razão. Ou tinha,
de alguma maneira, porque o que é seleção? O que é estado curatorial, que
escolha é essa?
Foi nesse momento que inauguramos projetos que são muito importantes
para a gente. Um se chama Parede Gentil, que é a ocupação da nossa fachada
lateral, de dez metros, que dá para a rua Luís de Camões. A partir desse dia,
a cada quatro meses a gente convida um artista para fazer um trabalho e
convida um colecionador para apoiar a produção desse trabalho. Foi uma
maneira que a gente encontrou de tentar lidar com mais intensidade com a
vizinhança, com o vizinho, com o outro, com quem está do seu lado. Acredito
profundamente na arte como uma potência interrogatória, difusora de dúvi-
das, questionadora do seu dia a dia, e capaz de transformar a relação com o
outro, com quem está ao seu lado. A ideia de chamar um colecionador era de
aproximá-lo do artista, começar a pensar em como uma coleção de arte pode
se transformar em uma grande ferramenta de educação. Quando o curador
faz as suas escolhas, quando ele faz esse recorte dentro do tempo, ele está
de alguma maneira criando a história. E é a partir da história que a gente vai
aprender, e educar, e ensinar e ter essa troca incessante.
Um outro projeto que temos é o Camisa Educação, que é bem simples.
A ideia é de vestir uma camisa da educação, de pensar como a educação
e a arte podem estar conectadas, e de como a arte também pode ser pro-
vocadora em relação à educação e vice-versa. É um projeto que tem uma
camisa: a gente convida em média um artista por mês para fazer uma ca-
misa com a palavra educação. Falar desses projetos é falar da importância
da continuidade para se criar um programa, e da importância de se ter um
programa para uma galeria, para que possamos pensar a cultura no país a
médio e a longo prazo.
129
As vernissages da Gentil são sempre na rua, com churrasco e cerveja.
Fale um pouco sobre essa abertura para a rua.
Tudo é fruto do que a gente gosta, do que a gente acredita. A ideia de
celebrar arte é algo que sempre permeou o nosso pensamento. O Franklin
Cassaro se afastou logo nos primeiros três ou quatro meses, dizendo que a
gente comemorava muito, fazia muita festa. É um ponto de vista. Evidente
que a gente tem inaugurações silenciosas, que o trabalho exige silêncio e que a
gente respeita esse silêncio. Começamos a abrir a Gentil às 11 horas da manhã
do sábado, com o Saara, com esse centro de comércio popular aberto, cheio
de guarda-chuvas nas portas, e ninguém achava a nossa porta direito no meio
daquela confusão. Depois a gente começou a passar as inaugurações para
as quatro da tarde, porque senão a gente não ia sobreviver. Com 12 horas de
abertura, íamos para o livro Guiness e depois para o hospital, provavelmen-
te. Brinco dizendo que, se o que a gente está fazendo não marcar a história
da cidade, as nossas inaugurações o farão. O filho de um amigo começou a
frequentar a Gentil com 13 anos de idade, e aos 15 lembro que ele me falou
como a Gentil mudou a forma dele de pensar a arte, de ser contaminado pela
arte, de entender o quanto a arte pode transgredir o respeito a uma parede
branca, a um espaço institucionalizado, e criar um campo de contágio com a
vida. Eu me emocionei muito, e ao mesmo tempo pensei que é muita respon-
sabilidade, pensar essa nova geração e o que estamos dizendo ou querendo
dizer. Tem tantos projetos que a gente deseja fazer e ainda não fez. Mas é isso,
muita cerveja na rua, biscoito Globo, celebrar arte de uma forma dionisíaca,
levando ao delírio a possibilidade de se transgredir através da arte.
Há um projeto da Gentil de aprofundar a questão da educação, e de
aproveitar este espaço do Centro para isso. Conte um pouco sobre esse
projeto.
Já faz uns dois ou três anos que a gente vem falando sobre isso, e ficava no
ar o nome “Gentil mente”. Havia a ideia de ter um espaço mais de reflexão,
para uma troca mais crítica sobre o que vem sendo feito hoje, e de colocar
o artista também para ter a sua voz, podendo contaminar os outros artistas.
Ao mesmo tempo, a gente pensava muito em ter uma espécie de biblioteca, e
também um espaço de encontro com uma espécie de bar. A ideia era de fazer
isso no Centro. Estamos ainda dialogando, vendo como realizar isso. Temos
também outras ideias para sair desse espaço arquitetônico de uma galeria e
130
ampliar associações. Fazemos projetos com museus de fora e feiras de arte,
estamos saindo do Centro do Rio para o mundo.
Internacionalizar a arte contemporânea brasileira é uma questão. Ou-
tra é trazer para cá, para os acervos brasileiros, a arte contemporânea
internacional. Como fazer isso?
O Brasil é uma periferia, não tem jeito, mas estamos fazendo um esforço
para melhorar essa inserção. A Gentil faz exposições com jovens artistas
cubanos, chilenos e de outros países da América Latina. Nos importa trazer
um pouco do pensamento e da cultura de outros artistas, de outros países,
para se misturar e até ajudar a compreender a nós mesmos um pouco melhor.
Trazer o artista de fora e embrenhá-lo no meio desse Saara, desse Rio, desse
Brasil. Trazer um artista que possa construir uma obra aqui, a partir do espaço,
a partir da necessidade e da provocação arquitetônica, filosófica, existencial,
é uma maneira de lidar com certas dificuldades de compartilhamento inter-
nacional. E também de importação de obras. Porque é inacreditável o que
acontece no Brasil quando você pensa em trazer uma obra de arte. Enquanto
temos uma grande facilidade na exportação, existe uma grande dificuldade
com importação. É um absurdo! Jogamos a nossa obra para o mundo, ex-
portamos a nossa cultura, mas a gente precisa aprender com o que o outro
está fazendo. Para você ter ideia, hoje a taxa de imposto para importação é
algo em torno de 60% do valor da obra. Isso é um delírio! Tem certos lugares,
como Nova York, que a taxa é de 0%. Aqui é totalmente proibitivo, impede,
inclusive, que importantes galerias do mundo, importantes artistas, impor-
tantes pensamentos cheguem ao Brasil. E isso complica mesmo exposições
institucionais, que não passam pela questão da venda. O seguro é caríssimo
e quase impeditivo para uma exposição forte de um artista internacional.
Há pouco mais de um ano fizemos uma associação nacional de galerias,
onde constam em torno de 23 galerias de várias partes do Brasil. Estamos atu-
ando conjuntamente no sentido de pensar que tipo de apoio o governo – não
importa qual seja – tem que se comprometer a dar, como podemos quebrar
essa barreira de importação, como podemos lidar melhor com a questão
do ICMS dentro dos estados; como podemos valorizar mais a obra de arte,
que é uma mercadoria, sim, mas é um objeto de cultura, e que tem que ser
valorizado como cultura, para que se amplie a difusão até para um campo
educacional. Hoje, para uma obra de arte sair do Brasil, você tem que ter um
131
papel do IPHAN. Quer dizer, por mais que a exportação seja facilitada, ainda
tem esse trâmite. Uma obra de arte contemporânea tem que ir para o mundo!
É claro, está-se pensando numa questão de acervo, numa questão histórica.
Uma obra do Aleijadinho, tudo bem, criam-se critérios de saída, de entrada,
mas a arte contemporânea é global, é do mundo.
Eu vejo muitos avanços, mas ainda há muito a trabalhar no campo da
importação e exportação. Nos últimos dois ou três anos, a Agência Brasileira
de Promoção de Exportação e Investimentos, a APEX, que atua em outras
áreas, como sapatos e alimentos, entrou no campo da cultura, do entrete-
nimento, como eles chamam, e começaram a apoiar a exportação de arte
contemporânea, apoiando as galerias na contratação dos seus stands nas
feiras internacionais. Começa-se a criar, pensar, valorizar as nossas artes, que,
nos últimos 15 anos, vêm ganhando uma dimensão muito grande, não só na
força dos nossos artistas, como também de um amadurecimento do merca-
do. Para ter ideia, na última feira de Miami Basel, nós tínhamos de dez a 12
galerias brasileiras. Na Frieze, nós tínhamos seis galerias, e éramos as únicas
galerias da América Latina. Hoje, no comitê de Miami Basel, composto por
oito ou nove pessoas, temos dois brasileiros. Então você percebe que nossa
arte começa realmente a ganhar um corpo forte pelo mundo.
Como incentivar a continuidade de aquisição de acervos no Brasil e fazer
com que os artistas confiem nas instituições brasileiras e aceitem doar
ou vender suas obras?
Uma coisa me surpreende muito: temos um monte de museus, de institui-
ções, e sempre querem criar mais um. Agora mesmo no Rio tem essa ideia de
se fazer uma Pinacoteca, talvez nos moldes da de São Paulo. O projeto é criar
um espaço de aquisições, evidente, porque a gente não tem instituições fortes
que façam aquisições, com um recorte curatorial consistente, e valorizem
e reforcem a nossa própria história. E aí fica aquela situação da coleção do
Lerner, se fica ou não no Brasil. Se você não tem instituições fortes é evidente
que as obras vão para fora. Eu não vejo como uma coisa ruim as obras irem
para fora, porque elas ganham uma outra dimensão, um outro diálogo, mas
é evidente que elas podem e devem estar aqui e ir para fora. Pensando em
responsabilidade cultural, quando alguém começa a gerir uma instituição
tem a obrigação de continuar um programa, seguir com o que a instituição
tem de bom. Precisamos aprender a valorizar os bons profissionais que te-
132
mos e parar com essa ideia de querer abrir um museu a cada novo governo.
Temos museus incríveis enquanto espaço físico, mas falta reestruturá-los,
falta pensar a reserva técnica, como cuidar da nossa memória, da nossa his-
tória, e como valorizá-lo também através de aquisições. Existem países que
não têm um mercado tão aquecido, como a Espanha, por exemplo, mas que
têm um governo que disponibiliza uma verba para a aquisição de obras, e
eles compram 80% de artistas espanhóis, para valorizar sua própria história,
e 20% de artistas internacionais. No México, onde as instituições públicas já
não têm essa força, tem as instituições privadas que vão se tornando públicas,
criando uma nova forma de contar a história visual. Aqui temos Inhotim, que
é um caso positivo a ser pensado.
Como pensar um turismo de arte no Brasil?
Eu acho que isso vem crescendo muito, mas precisa ser fomentado tam-
bém. Existem órgãos que estão trabalhando nesse sentido. Existem várias
formas de criar essas ações: através das instituições, que, apesar de falhas,
têm ações importantes; por meio da visibilidade dos artistas, porque alguns
dos nossos são estrelas internacionais; e também através da ação das pró-
prias galerias, que estão sedimentando esse mercado e criando essa troca.
Recentemente, fui a uma exposição da Maria Nepomuceno em Londres. Ela
está criando um vínculo com uma galeria importante da cena mundial, o
que fez com que o dono dessa galeria estivesse no Brasil duas vezes nos últi-
mos tempos. São vínculos. São várias formas que deviam atuar juntas, mas
é preciso fazer uma política também, com objetivos a médio e longo prazo.
Uma outra questão que eu acho importante discutir é a relação entre
as diversas linguagens artísticas. Como quebrar essa especialização
crescente que tem acontecido nas artes?
Eu vejo as artes visuais como um polo agregador das artes em geral. Às
vezes, o poeta fica insatisfeito com o limite que aquele retângulo lhe oferece
e vai pensar uma maneira de transgredir esse espaço, então acaba caindo nas
artes visuais e ganhando um apoio dos artistas. A mesma coisa acontece com
o cineasta, que inicialmente tem em mente a sala escura, a ideia de apagar
a luz e começar um filme, com começo, meio e fim, e que depois acaba, de
alguma maneira, associando-se a um espaço que não seja o fechado e escuro,
a uma discussão dentro do campo das artes visuais. O artista hoje, no meu
133
ponto de vista, é um multipensador, conectado a tudo que acontece. Inclu-
sive com a ciência, a matemática, a filosofia. E dentro disso as artes visuais
acabam tendo um pouco esse braço acolhedor.
Como é ser um artista e um galerista ao mesmo tempo? O que tem de bom
e o que tem de ruim nessa relação do Márcio com a Gentil, e da Gentil
com o Márcio?
Eu não consigo imaginar hoje, depois de sete anos da Gentil, um Márcio
que não seja um galerista, que não seja um artista, que não seja, em uma
pequena parcela, um professor, que não atue nesses vários braços das artes
visuais. Não consigo imaginar a minha produção sem isso. Da mesma maneira
que eu acho que não conseguiria tocar a Gentil da maneira como eu toco se eu
não fosse um artista. Não conseguiria dar aula e ouvir o que os jovens artistas
têm a dizer, e poder contribuir ouvindo e falando, se também não fosse esse
galerista, esse artista. Eu não consigo imaginar minha vida sem parcerias,
sem esse diálogo com o outro, seja na Gentil, com o Ernesto Neto e com a
Laura Lima, no meu trabalho de arte, com o Pedro Agilson, ou dando aula,
com o Bob N. Diria que o grande barato da vida são os encontros, as pessoas
e os diálogos, com tudo de ruído e de alegrias e tristezas que isso pode trazer.
135
Maurício
Souzade
Empresário e cartunista.
Maurício, como começou a Turma da Mônica?
A Turma da Mônica começou no momento em que descobri que desenhar
era gostoso. Na casa dos meus pais, eu rabiscava em tudo quanto era lugar:
parede, chão, os cadernos de poesia do meu pai. Toda criança desenha, mas
a maioria para em algum momento. Eu continuei. Aprendi a ler com gibis e
cismei que queria fazer meus próprios personagens. Daí foram nascendo os
personagens mais centrais, como Cebolinha, Mônica, Cascão, Magali. Para
que tivessem humanidade e estruturas psicológicas fortes, baseei meus per-
sonagens em filhos, parentes, amigos, conhecidos... E deu certo! Eu já tinha
algum preparo técnico, conhecia bem a narrativa da história em quadrinhos,
criei os personagens e resolvi viver disso.
Você tem ideia de quantos gibis já vendeu?
Há uns dois ou três anos fizeram um cálculo de que já havíamos ultra-
passado a marca de um bilhão de revistas, tanto no Brasil como no exterior.
Também já estamos em vários países. Deve ser por aí mesmo. As tiragens
mais novas são muito grandes. Boa parte das nossas revistas tem tiragens
mensais de 200 ou 300 mil exemplares. Algumas superam. A Turma da Mô-
nica Jovem, hoje, tem picos de 600 mil exemplares mensais. De fato, são os
136
maiores números que existem hoje em dia no mundo. Mas também, são 50
anos de trabalho.
Como se deu essa escolha pelo público infantil?
Foi o público infantil que me escolheu, não o contrário. Quando comecei
a fazer histórias em quadrinho, eu era jornalista. Fazia tirinhas para jornal
voltada para um público adulto. Porém, eu era bem jovem e tive que buscar
referências na minha própria vivência, especialmente de quando eu era pe-
queno. Peguei um cachorrinho que eu tinha, depois um garoto inspirado em
mim mesmo quando era criança, depois outros garotos inspirados em amigos
que tivera em Mogi das Cruzes. Fui criando personagens infantis que acabei
me dando conta de algo que ainda não havia percebido: criança gosta de ver
criança. Portanto, comecei a atrair leitores pequenos para o jornal. Muito cedo
entendi que estava formando leitores e usava isso como estratégia para vender
meu material a outros jornais do país. “Faça novos leitores! Rejuvenesça!” Foi
assim que fui guindado ao nível de autor infantil: estritamente pelo público.
Isso me parece muito bom, porque escrever para o público infantil é mais
agradável, mais gostoso, mais importante e mais desafiador. Afinal, trata-se
de um público leitor mutante, dinâmico, exigente, esperto. Eles não aceitam
qualquer coisa e criticam quando não gostam. Além disso, aprendi muito
convivendo com meus filhos. Todos eles me orientaram muito bem. Eu os
observava, acompanhava suas vidas, a maneira como se comunicavam. Faço
isso até hoje com meus sobrinhos e netos. Enfim, foi a mistura desses elemen-
tos todos que engendrou a Turma da Mônica. Continuamos fazendo uso dos
mesmo recursos e ferramentas até hoje, inclusive em outros países também.
Você poderia falar um pouco sobre a aceitação de seus personagens em
países estrangeiros?
Existem variações bem curiosas. Nos países nórdicos, por exemplo, o Cebo-
linha era o personagem mais querido. Já no Japão, foi o Horácio. Na Indonésia,
na Itália e na China é a Mônica. Falando em termos gerais, o personagem mais
forte ainda é a Mônica. Mesmo que outros personagens chamem atenção, ela
sempre vem galopando. A mesma coisa aconteceu no Brasil. A Mônica não
foi a primeira da Turma a nascer. A princípio, ela era um personagem secun-
dário. Mas depois ela foi crescendo, crescendo... Não sei bem por quê, mas
ela sempre se torna o carro-chefe. Deve ser a força da mulher independente.
137
Vocês têm planos de inaugurar parques temáticos na Europa?
Os parques são algo à parte da realidade aqui do estúdio. Inclusive, minha
ideia principal era ter parques tercerizados. Gosto da brincadeira, encaro
os parques como uma necessidade, mas não é esse nosso foco principal.
Atualmente, estamos mudando o sistema e formando uma empresa com
investidores internacionais, para que o parque se desenvolva como deve
ser. É um projeto mais comercial, político, industrial. Envolve uma série de
fatores ligados à hotelaria, centros de convenções. O parque de São Paulo
está fechado agora para prepararmos terreno para o novo parque que vem aí.
Agora, porém, com uma empresa independente. Vamos tercerizar e poderei
contar com uma equipe numerosa. Não precisarei me preocupar tanto com
a administração do parque, apenas em alimentá-lo com conteúdo.
Como você encara a preferência do público jovem pelo mangá?
De uns tempos para cá, a infância encolheu visivelmente. Se antigamente
a turminha lia o gibi da Mônica até seus 14 ou 15 anos, agora já acham “coisa
de criança” aos 10 anos e vão para o mangá japonês. Com essa fuga, eu perdia
cinco anos de público leitor. Se eles gostam da Mônica e de Mangá japonês,
por que não fazer, então, histórias da Turma da Mônica com os seus 14, 15 anos
usando essa estética? Naturalmente, seria um mangá brasileiro, um mangá
caboclo. Então, foi isso que fiz há pouco menos de dois anos e foi um sucesso!
Preenchemos um vácuo e agora estamos nos preparando para exportar esse
material. Pegamos o jeito, amadurecemos bem o traço no longo desses dois
anos. Esse progresso no traço é bem visível. Mas continuamos desenhando
para crianças. Não houve decréscimo das revistas propriamente infantis, por
incrível que pareça. Na realidade, aconteceu um fenômeno muito interes-
sante: o adulto se ressentiu do novo visual da Mônica crescida. Ligavam para
mim reclamando, dizendo que eu havia destruído seus sonhos de infância,
suas referências. Portanto, por despeito, os adultos começaram a comprar
de novo a revista infantil. Então, tudo se nivelou, não houve “canibalismo”
entre as revistas e continuamos vendendo milhões de exemplares por mês.
Isso tudo só nos mostra a vontade de ler e conhecer da criança e do brasilei-
ro em geral. De certa maneira estamos “ensinando” o pessoal a ler, levando
a leitura como hábito para a turminha. Depois do gibi, depois da revista, a
criança vai para o livro, coisas mais pesadas e clássicas. Estamos ensinando
a criança a ler usando as armas de que dispomos. Temos livros, produzimos
138
desenhos animados, montamos novos parques. Estamos cercando a criança
com o principal, que é o conteúdo que passamos nas revistas. Nós estamos
convidando a criança a ler, a conhecer, a escrever, a desenhar, a se interessar.
Como é sua relação com a Internet?
Confesso que estou um pouco atrasado. Meu site já está um pouquinho
velho, mas estamos tentando dar uma modernizada. Em breve teremos ga-
mes, além de alguns truquezinhos sobre os quais ainda não posso falar, por
conta da concorrência. A Internet é a grande coisa. É o futuro. E nós somos
o passado, porque estamos atrasados. Não só eu. A maioria das pessoas está
atrasada na utilização da Internet. Ainda não reconheceu plenamente seu
potencial de veículo de informação e formação. Sem dúvida, é o maior que
já existiu. Possibilita-nos conhecer o passado e planejar o futuro. Serve para
tudo. É uma ferramenta maravilhosa.
Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas pela Maurício de
Souza Produções?
Não há um dia igual ao outro. Tampouco há dias de vitória sem algum
tropeço. É preciso encontrar um equilíbrio, para que as vitórias superem
as escorregadas. Essa mentalidade se aplica a qualquer área, mas no setor
artístico-cultural os percalços e dificuldades tendem a ser um pouco maio-
res. Principalmente nos países latinos. A cultura não é material de primeira
necessidade aqui. Nos países latinos, principalmente nos países em desen-
volvimento, a luta pela sobrevivência é muito maior. Às vezes o pão é mais
importante que o livro. Nossa briga é para que haja pão e livro. Mas todas
essas dificuldades são boas para calejar. O negócio é não desanimar. Teimar,
persistir, ter ambição e alguma sorte.
A sensibilidade infantil varia muito conforme o país?
Varia sim, conforme a cultura do lugar, sua religião, sua política. Por
isso que miramos numa história em quadrinhos universal. Temos – eu e
minha equipe – uma listinha de temas a evitar. Assuntos tidos como tabu
em determinadas partes do mundo, que não vão passar na Indonésia, na
Rússia, na China, nos EUA. Está dando certo, por enquanto. Cuido apenas
para que as histórias sejam permeadas de emoções básicas, pois estas
são imutáveis. A raiva, o amor, o ciúme, a ambição: isto não muda. Então,
139
construímos a história com estes elementos e vamos ajustando a moldura
cultural conforme o caso.
Existem BRICs na área de cultura?
Há BRICs em todos os setores, não lhe parece? São apenas mutações de
mercado. Há países que foram geniais no cinema, nos quadrinhos, na tele-
visão e depois decaíram um pouco... Depende muito dos governos. O Japão,
por exemplo, invadiu o mundo com o mangá. O governo investiu muito até
a entrada desse Primeiro Ministro – que acaba de sair – que cortou tudo. Era
um governo que não entendeu as dimensões dessa invasão mundial que se
dava com o mangá, com o anime e tudo o mais. Agora, com a mudança de
governo, espero que isso mude, porque gosto muito do mangá e da cultura
japonesa em geral. O mesmo aconteceu com a Argentina, durante o governo
de Perón. Durante aquela época, a Argentina incentivava muito editoras e
desenhistas. Tanto que se tornou o segundo maior produtor do mercado
de quadrinhos. Depois, com a mudança do governo, isso acabou. No Bra-
sil, começam a pensar em medidas para proteger o artista um pouco mais.
Eu, particularmente, tenho receio de medidas protecionistas legais, porque
às vezes criam uns aleijões no meio do caminho. Apanhei muito nos velhos
tempos, porque brigava por uma lei de nacionalização da HQ. Chamavam-me
de comunista de um lado e de outro de direitista. Desde então, percebi que a
lei que protege a HQ é a lei da oferta e da procura. Com ou sem lei, o que vai
vender é a melhor história, o melhor roteiro, o melhor conteúdo. Mas em
alguns casos, uma lei que nos proteja de reservas de mercado externas é
interessante. Por exemplo, algumas empresas multinacionais no Brasil têm
contrato mundial com alguns produtores externos. Essas multinacionais,
embora trabalhem aqui, não podem usar material nativo. Isso é uma reserva
de material ao contrário, o que é odioso. Esse tipo de atitude merece, sim,
alguma intervenção legislativa. O mundo não tem fronteiras, isso é absurdo.
O artista não pode aceitar mais essa prisão, que nem lei é. São combinações,
contratos profissionais e temos que lutar contra isso.
A indústria de animação está crescendo muito, principalmente com as
universidades. Como você vê isso?
Hoje em dia chove animador. Com a computação, com os recursos tecno-
lógicos, está cada vez mais fácil fazer animação. Porém, está cada vez mais
140
difícil contar uma boa história. Precisamos de escritores, são eles que farão os
bons filmes do futuro. Nos grandes estúdios norte-americanos, por exemplo,
existe uma preocupação muito grande com o roteiro. Em certos casos, chega
a sobrepujar o desenho, a formatação. É por isso que temos que brigar aqui
no Brasil: para que o pessoal não venha só com um bom desenho. Um bom
desenho apenas não se sustenta. Mas com bons escritores, certamente teremos
uma nova era de ouro da animação. Estou me preparando para isso. Montamos
novas equipes, inclusive em parceria com a Digital21 e mais alguns estúdios no
exterior. Estamos fazendo desenho animado na Indía, com Ronaldinho Gaúcho.
Vamos fazer na China e na Argentina desenhos da Turma da Mônica. Vamos
fazer mais filmes aqui também no Brasil. Como falei há pouco, não há fronteiras.
Quanto à mão de obra, é possível provocar a imaginação e formar rotei-
ristas inventivos? Como fazê-lo?
Em primeiro lugar, é preciso mostrar referências para os roteiristas. Tem
que mostrar o que se está fazendo em outros países, nos EUA, na antiga União
Soviética, no Japão, no Canadá. Esse é basicamente meu conselho para todos
que começam a se interessar pelos quadrinhos de maneira profissional: vejam
tudo que há e vejam o que vocês podem criar de seu a partir dessa amálga-
ma cultural que se apresenta. Criar material próprio é algo que só deve vir
depois. Aprenda a usar o computador, procure trabalhar em equipe, esta-
belecer parcerias com o pessoal do som, da música, da técnica, dos efeitos
especiais. Formem grupos, achem investidores e contem histórias bonitas.
Hoje em dia temos um mercado palpável aqui no Brasil, haja vista o fato
de que nossa potência técnica aumentou muito. Não é como antigamente,
quando tínhamos de importar acetato e ninguém tinha computador. Agora,
realmente, vivemos num país que faz parte do global. Formar mão de obra
especializada? Quem puder que vá em frente, porque mercado há. Muitos
países estão pedindo material nosso. Estou galopando para atender essa
demanda. Formar profissionais? Melhor passar pela universidade, primeiro.
Assim a pessoa não adentra o mercado de trabalho vazia, trazendo apenas
seu traço. Tem que chegar com uma cabeça também. Apoio oficial? É bom,
pelo menos até não atrapalharem. Mercado? Devemos empreender parceria
com grupos – estrangeiros inclusive – de edição, ou fazer o nosso próprio.
Existe um mercado, existe demanda e brasileiro aprende fácil. Contanto
que não atrapalhem muito por aqui, contanto que não haja muita pirata-
141
ria – temos que brigar contra a pirataria em todos os níveis, não apenas no
desenho – vejo reais possibilidades de crescimento. O mundo está aberto,
e isso é uma coisa linda!
Como você desenvolveu seu tino comercial?
Não tenho exatamente tino comercial. Gosto de desenhar e quero conti-
nuar desenhando, portanto, preciso montar uma estrutura que me possibilite
continuar fazendo o que gosto. Isso é algo que todos deviam fazer. Todo mundo
devia se preparar para continuar fazendo o que gosta, em termos práticos.
Você lembra de algum roteiro seu que fale sobre cultura e educação?
São tantos! Tenho a preocupação de colocar alguma coisa do currículo
escolar na história, mas preciso fazê-lo com cuidado. Não posso explicitar a
lição, tornar a Turma da Mônica professoral. Temos aqui no Instituto Cultural
uma pedagoga, a Betina, que conhece tudo do currículo. Eu leio bastante e
também proponho temas, mas ela me ajuda apontando temas que estão mais
em evidência. Daí, chamo nossos roteiristas e digo que precisamos bolar uma
historinha secundária. Portanto, se a história principal é uma viagem a Marte,
em algum momento colocaremos algum viés ecológico, ou então falaremos
sobre a interação entre os povos... Com isso, permeamos as historinhas de
lições subliminares de comportamento e cultura. Foi por causa dessas lições,
dessa preocupação com a ética, a informação e os valores, que as autoridades
russas recomendaram a Turma da Mônica para o ensino público. Estamos
atingindo 180 milhões de crianças pela web na China com esse material,
isso sem contar as revistas pára-didáticas que fazemos, como a Saiba Mais.
Quem traduz as histórias da Turma da Mônica em outros países?
Cada país tem um tradutor que conhece tanto o português como a língua
nativa daquela nação. O material vai sempre em português, para que haja o
mínimo de interferência. Outro dia me mandaram um desenho da Turma
dublado em chinês para que eu avaliasse. A dublagem estava ótima, já o que
eles estão falando... Felizmente, temos um pessoal em Pequim que nos orienta.
Maurício, você ainda desenha?
Não, não. Mas um dia eu volto.
143
Toninho, como começou sua relação com a cultura?
Começou na infância. Eu gostava de desenhar e colecionava gibis ob-
sessivamente. Aquela era a grande época do gibis de banca: O Fantasma, O
Cavalheiro Negro, Batman. Eu me mudei pra São Paulo em 1959, com cinco
anos de idade. Eu digo para as pessoas que eu não mudei para São Paulo, mas
para o bairro da Casa Verde. Porque São Paulo são muitas cidades. Se tivesse
mudado para a Mooca, por exemplo, eu teria me tornado outro ser humano.
Eu mudei para a Casa Verde, para as margens do rio Tietê. O meu pai veio pra
São Paulo pra comprar um caminhão e comprou um bar. A minha casa era
interligada com ele, então eu fui criado dentro de um bar. A minha família era
de classe média baixa, e rapidamente eu descobri que não teria dinheiro para
comprar todos os gibis que satisfariam a minha vontade. Naquela época, se
vendia gibi na feira livre, e eu comecei a ajudar o dono da banca a arrumar a
banca. Eu ia lá antes da escola, às seis da manhã, e ajudava ele com as caixas...
Como começou o seu trabalho com diagramação de jornais e revistas?
Na adolescência, eu virei office-boy, e um dia andando na rua vi o Pas-
quim na banca. Aquilo foi uma iluminação. Eu já era amigo do Angeli, que
também morava na Casa Verde e era apenas um ano mais novo. Eu sou o filho
ToninhoMendes
Editor e criador da Circo Editorial.
144
do motorista e ele o filho do funileiro. Nós tivemos uma afinidade imediata.
E, como eu gostava muito de quadrinhos, decidi que queria ser desenhista.
Então fui estudar desenho publicitário, e para me sustentar, um professor
que foi com a minha cara me botou para diagramar as apostilas da escola.
Foi assim que eu aprendi a fazer paste-up, que era a técnica de diagramação
da época, o recorta-e-cola. Com uns cinco meses de curso eu descubro que
todas as pessoas desenham melhor que eu. Só que, ao mesmo tempo, percebi
que nenhuma delas pensava tão bem quanto eu. Eu sabia escrever e organizar
os layouts melhor. E tomei gosto pela coisa. Um dia, vi um anúncio no jornal de
uma editora que precisava de paste-up. Era a Editora Perspectiva. Eu fui con-
tratado, com um salário bom. Tinha uns 16 anos e ganhava em torno de cinco
salários mínimos. Na época, eles tinham um catálogo de peso, com coleções
como a Debates e a Estudos, e eu acessei um mundo que eu não entendia.
Quando aconteceu a sua aproximação com o jornal Versus, do Marcos
Faerman?
Como eu sou louco, casei aos 19 anos e tive uma filha aos 20, a Papoula.
E já estava mexendo com imprensa, havia passado por um estágio na Folha
de São Paulo e estava ligado no que estava acontecendo politicamente. Eu
tinha um amigo na Folha chamado Joca Pereira, e ele me disse que ia sair um
jornal independente do Marcos Faerman. Eu sabia quem ele era, admirava
seu trabalho. Então o Joca Pereira me convidou pra ir na casa do Faerman. Eu
estava meio desempregado e já trabalhava no jornal Movimento, que era uma
dissidência do jornal Opinião comandada pelo Raimundo Pereira. Eu era um
jovem porra-louca, drogado, que estava curtindo todas, e fui parar dentro de
um jornal que era comunista, vigiado na porta pela censura. Lá eu conheci
o Paulo e o Chico Caruso, toda a turma que estava começando a desenhar
história em quadrinhos. Mas o Movimento era um jornal com cabeça de co-
munista, e não conseguia levar a gente a sério. Quando comecei a trabalhar
no Versus, a coisa mudou. O Faerman foi com a minha cara e começou a me
ajudar. Eu fui o primeiro a receber salário lá. O Versus foi o jornal onde eu
cresci como profissional, e de onde começa o meu trabalho que viraria a Circo
Editorial. Estava todo mundo lá: Angeli, Laerte, Luiz Gê...
É verdade que vocês lançaram a Circo Editorial no dia da votação das
eleições diretas?
145
Sim. A gente fez de propósito. Escolhi o dia, a data e a hora. Mas antes da
Circo eu fiz outra editora, a Marco Zero, nome tirado do Oswald de Andrade.
Eu fiz ela em parceria com o Rui Campos, da Livraria Muro, que atualmente
é dono da Livraria Travessa. Editamos só dois ou três livros; o meu de poesias
sobre o rio Tietê e um de quadrinhos do Chico Caruso, o “Natureza Morta”.
Eu fiz essa editora influenciado pela editora Codecri, da turma do Pasquim.
Eles tinham me ensinado que era possível fazer uma editora diferenciada.
A Marco Zero não foi para a frente, mas eu continuei pensando em ter uma
editora. A Circo nasceu de uma noite de cocaína. Eu estava com um amigo em
casa, bebendo vinho e cheirando, e falei para ele que tinha um material ótimo
de quadrinhos, coisas do Angeli, do Laerte e do Chico Caruso, mas que não
tinha dinheiro para abrir uma editora. E ele disse que conseguiria o dinheiro.
Ele tinha negócios de família, e combinou que virava meu sócio e cuidava da
parte econômica. Eu ficava com a parte editorial. Eu abro a editora, com meu
endereço, na minha casa e começo a fazer o livro do Angeli, o clássico Bob
Cuspe, e outro livro do Chico Caruso. O Caio Graco, da editora Brasiliense,
disse que distribuiria os livros para mim. Só que, passados uns quatro meses,
a família do meu sócio se desentende, eles se separam e eu me vejo sozinho
com os livros prontos na mão para serem impressos. Naquela hora eu quase
desisti, mas a Circo é uma coisa mágica. Eu estava lá, sem perspectiva, e fui
desabafar com o Chico Caruso. Ele me perguntou quanto custava para im-
primir os livros, e disse que estava fechando um negócio, que se saísse ele
pagava as impressões para a minha editora existir. E poucos dias depois ele sai
do Jornal do Brasil e é contratado pelo Roberto Marinho recebendo dez vezes
mais. Ele ligou e falou para eu fazer os dois livros. A Circo foi assim do início
ao fim. Na base da magia e muito trabalho, porque não adianta ter a magia,
ter o campo, ter estádio, ter a torcida e não ter time. E time a gente tinha de
sobra, só craques... O lançamento da editora foi sim no dia 30 de abril de 1984,
que era o dia do meu aniversário e também da votação das eleições diretas.
Como foi o salto de editora de livros para editora de revistas?
Os livros fizeram sucesso, foram pra segunda, terceira, quarta edição.
Só que isso não sustenta uma empresa, não sustenta uma família. Então eu
criei um estúdio de design, e dividia a mesma casa de trabalho com o Angeli.
Continuava vivendo de trabalhos para terceiros, mas louco para fazer da
editora uma coisa viável. E, como eu disse, a Circo foi uma coisa mágica. Um
146
homem fez uma editora que chegou a vender 120 mil revistas de quadrinhos
por mês sem nenhum centavo no bolso. E, o que é bem compreensível, saiu
sem nenhum centavo do bolso também. O que aconteceu é que um dia um
amigo, que havia trabalhado comigo na Versus, o Arlindo, me chamou para
participar da equipe de uma revista de moda que ele havia aberto. Um dia, ele
me chamou e disse que precisava de outros produtos para colocar na banca, e
falou para eu apresentar alguma proposta para ele. Eu levei dois projetos: uma
revista só do Angeli, com todos os seus personagens, Bob Cuspe, Rê Bordosa,
que se chamava Chiclete com Banana, e outra chamada Circo, com todos os
outros desenhistas que andavam com a gente. O Arlindo escolheu a Chiclete
com Banana, e começamos a fazer a revista. A gente está falando de 1985. O
Tancredo Neves tinha conseguido morrer antes de assumir, era aquele peso
todo. E sai a Chiclete com Banana, com “Bob Cuspe para prefeito” na capa.
Foi um escracho total. Nós vendemos a tiragem inteira, faltou revistas. No
segundo número, tiragem maior, falta revistas. A revista indo bem, o Arlindo,
nosso chefe, cuidando do dinheiro, eu fazendo o que eu queria, que era arte, o
Angeli só desenhando. Todo mundo ganhava dinheiro suficiente. Mas um dia
o Arlindo me chama, e diz que não dá para continuar publicando a revista. Ele
era um comunista literal, e estava muito incomodado com a repercussão da
revista. Mas, como a Circo era mágica, ele disse que queria passar o negócio
para nós, e que daria um ano de investimento para fazermos a coisa ficar de pé.
E como a revista se sustentava? Ela conseguia anúncio com todas essas
polêmicas?
Não. A Circo Editorial nunca deu dinheiro. Serviu para nos sustentar ra-
zoavelmente na época do auge. Nessa época do auge o Angeli continuava na
Folha, eu continuava diagramando livros para outras editoras, cada um tinha
o seu trabalho. A gente só fazia o que a gente queria porque a gente pagava pra
fazer. A gente se pagava. Ninguém ia pagar para a gente fazer aquilo. Esse foi o
preço que nós pagamos para entrar na história. Era de puro tesão, entendeu?
E é claro que não tinha como sobreviver para sempre.
Qual é a política cultural ideal, o que que precisa ser feito para se re-
verter esse quadro e possibilitar a independência?
A política cultural ideal começa no prato. Porque cultura é tudo. E o fator
mais determinante da cultura é a alimentação. Foi assim que a cultura passou
147
na civilização: foi pelo prato, pela boca, pelo garfo, como matar o boi, como
tira o rabo. Para mim a cultura começa pela boca. É uma coisa categórica,
clássica! A cultura nasce pela boca e pela comida. As pessoas conseguiram
sair das árvores, ficar em pé, de pau duro, botar roupinha, fazer filho, foram
pra dentro de uma casa. Qual a primeira coisa que eles tem que fazer? Comi-
da. Aí nasce a cultura. A origem da cultura é alimentar: se salga, se não salga,
que a amora tinge de vermelho... E a outra coisa da cultura é o fogo, porque
precisa de fogo pra cozinhar, fogo é cultura. Para a formação do conjunto
todo, entendeu? Estou falando do passado para falar do presente. A questão
da cultura é alimentar e não é só no Brasil, é no mundo. Desse ponto de vista
o planeta é deficitário. E como muita gente não come, toda a relação com
a cultura está travada. Porque eles não têm a cultura do alimento, a cultura
do alimento traz o lar. A cultura do lar cria a relação familiar, o respeito, o
pai, a mãe que contou uma história, o avô que desenhava... Porque no lugar
que as pessoas não comem, elas não contam história. Sabe qual é a história
delas? “O que a gente vai comer hoje à noite?” “Que legal, papai hoje trouxe
dois candangos”, “A mamãe deu a maior sorte, achou 2 mandiocas”. Essa é a
cultura dessas pessoas. Aí é que começa a questão cultural.
Mas como reverter isso?
Não é questão de reverter. A política cultural de hoje está nascendo na
roda das coisas. É consequência das outras políticas. É tudo anacrônico, isso
aí. Ou seja: a política cultural que eu vejo é a ultilização do dinheiro público,
das leis de incentivo, para com a força do artista e da arte você criar uma outra
maneira de educar as pessoas.
149
PROFISSIONAISCULTURAIS
Allen Rescoe Vergílio Lima Paulo Barros Bruna Christofaro Rachel Ribas Gil Santos Sergipe
Paulo Henriques Britto Gilda Mattoso Fátima Toledo
Phillipe Arruda Geber Ramalho Florence White
151
Poeta e tradutor.
Paulo
BrittoHenriques
Como começou o seu trabalho de tradução da língua inglesa para a
portuguesa?
Olha, pelo menos até minha época, a tradução não era uma opção
profissional, ninguém decidia ser tradutor na vida, as pessoas viravam tra-
dutoras meio que por acaso. Pegavam um bico e acabavam se descobrindo
tradutoras. Ninguém tinha formação, não havia escola de tradução. Então,
por uma dessas contingências da vida, você virava tradutor. Eu, por exem-
plo, tinha largado a faculdade de matemática, fui para os Estados Unidos
estudar cinema, fiquei um ano e meio estudando na Califórnia, descobri
que não tinha a menor condição de ser cineasta, que eu não tinha nascido
para aquilo, e aí me interessei por linguística, voltei para o Brasil e comecei
a estudar. Para ganhar a vida comecei a dar aula de inglês, primeiro como
professor particular, depois no IBEU. E, para complementar minha renda,
um amigo meu, que era da área de medicina, disse que a editora Imago
estava precisando de tradutor para traduzir uma obra do Freud. Eu entrei
como revisor e quando eu vi já estava traduzindo. Depois da Imago eu fui
para a Brasiliense, para a L&PM e acabei na Companhia das Letras. Houve
uma época na minha vida, entre o final dos anos 1970 e o final dos 80, em
que a tradução era minha principal fonte de renda, minha principal ativi-
152
dade. Nessa época eu já era professor da PUC-Rio, entrei em 1978 para ser
professor de tradução. Então eu passei essa época vivendo basicamente
como tradutor e professor de tradução. De lá para cá as coisas mudaram,
eu entrei para a pós-graduação e hoje em dia, na verdade, a tradução ocupa
um espaço bem menor na minha vida. Eu estou muito mais dedicado à pós-
graduação e à graduação da PUC. Mas eu continuo traduzindo uma média
de uns dois livros por ano, por aí.
O fato de não ter curso, não ter formação em tradução nessa época,
afetava o produto final no Brasil?
Não tenho a menor dúvida de que a qualidade do livro traduzido no Brasil
melhorou muito. Eu comecei a traduzir em 1973, 74, então eu ainda peguei
o finalzinho de uma espécie de pré-história da tradução. Não havia nenhum
tipo de controle de qualidade, a coisa era feita de qualquer jeito, os livros
muitas vezes, quer dizer, sempre, saíam das mãos do tradutor e iam para o
revisor, mas o revisor não tinha contato com o tradutor, então a palavra final
que predominava era a do revisor. Então o que acontecia era que o tradutor
batia o olho e via que aquela primeira solução óbvia não daria certo, fazia
uma pesquisa imensa e encontrava uma solução não óbvia, mas que era no
caso a melhor. Aí o revisor, apressado, sem fazer cotejo nem nada, na mesma
hora batia o olho, riscava aquela solução que o tradutor encontrou a duras
penas e botava aquela óbvia novamente. Não havia um diálogo com o revisor.
Aconteceu muitas vezes de o meu livro passar por dois revisores e ninguém
fazer o trabalho final de compatibilização, então não havia coerência nenhu-
ma. Havia uma ideia de que não se devia investir muito na tradução porque
o que valia mesmo era o título e o autor, que as pessoas iam comprar com
base nisso. O nome do tradutor não tinha o menor destaque, e demorou um
tempo para os editores compreenderem que uma má tradução matava o livro.
Porque um livro mal traduzido o mercado rejeitava, não é? Na área de livros
universitários eu me lembro de muita gente de ciências sociais dizendo: “Max
Weber tem que ler na tradução em espanhol ou inglês, porque a brasileira é
uma porcaria, não dá pra usar”. E agora, há alguns anos, a Companhia das
Letras fez uma tradução decente e evidentemente que matou aquela primeira.
Então houve gerações de estudiosos de ciências sociais no Brasil que liam
o Weber ou em inglês ou na tradução espanhola, provavelmente aquela do
Fundo de Cultura Econômica do México, porque a brasileira simplesmente
153
não era utilizável, era ruim demais. Demorou para o editor brasileiro com-
preender que o mal tradutor mata um livro. Ainda que o nome de um bom
tradutor, por si só, não venda um livro, certamente um trabalho de má tradu-
ção destrói completamente o produto. A partir dessa percepção as editoras
começaram a investir mais no tradutor, dar mais destaque, mais valor. E o
trabalho de revisor passou a ser mais inteligente, com vaivém, contato direto
com o tradutor. O revisor faz a revisão e manda para o tradutor aprovar as
mudanças que foram feitas, tudo é negociado, tudo é discutido. Então hoje
em dia o produto final é muito melhor.
Você já disse que, antes da internet, para pesquisar o nome de uma planta
você tinha que pegar um ônibus e ir à Biblioteca Nacional, agora é só
entrar direto no computador que em trinta segundos aparece a palavra.
Como você vê essa mudança?
O computador e a internet foram duas revoluções. Uma revolução dentro
da revolução. Primeiro foi o computador e depois a internet, que alteraram
drasticamente o trabalho do tradutor, sob todos os aspectos. O aspecto da
pesquisa é o mais óbvio. Todo tradutor tinha o seu caderninho em que ele ia
anotando as dúvidas, e, uma vez por semana, ou por mês, ou no final do livro,
ele ia para a Biblioteca Nacional ou para a biblioteca da sua cidade fazer a
pesquisa dele, compilar, pegar uma pilha de livros, e começar a comparar um
com o outro. Hoje em dia você consulta o Google e elimina quatro ou cinco
horas de trabalho. Na parte de pesquisa, realmente a mudança foi imensa.
Agora, acho importante destacar também essa negociação entre o tradutor e o
revisor, que é fundamental, e isso só se tornou possível por causa da internet.
Eu moro no Rio de Janeiro e quase a vida inteira trabalhei para editoras de
São Paulo, então esse mecanismo de o revisor depois entrar em contato com
o tradutor, para ele aprovar as mudanças feitas, era inviável nos tempos em
que você dependia basicamente de correios, fax e telefone. Hoje em dia, como
a coisa é feita pela internet, eu mando o arquivo eletrônico para lá, o revisor
me manda no Word com aqueles comentários do lado e eu vou aprovando
ou não um por um, justificando por que eu não aprovei essa ou aquela mu-
dança, e devolvo o arquivo para lá. Vai tudo pela internet. É uma troca que
leva um ou dois dias e que se fosse pelo correio ia exigir uma semana. Essa
comunicação entre o revisor e o tradutor – que para mim é uma coisa chave,
uma coisa fundamental – só se tornou viável também por causa da internet.
154
E a formação do tradutor?
Bem, a formação do tradutor é outra grande novidade. Uma é a informá-
tica, computador, internet. E a outra é a criação, digamos assim, dessa nova
profissão liberal que é a profissão de tradutor, já reconhecida pelo MEC. Hoje
em dia você tem um número de instituições que oferecem a formação de
tradutor em nível superior. Isso é, evidentemente, um diferencial grande. É
claro que não é necessário ter diploma de tradutor para ser aceito por uma
editora, mas ajuda. As portas se abrem para você. No sistema com que nós
trabalhamos na PUC, nos dois últimos semestres o aluno já está fazendo
estágio como tradutor. Evidentemente que nós encaminhamos alunos que
têm vocação para tradução literária para a editora, o aluno já chega lá com
o nosso aval, sabendo que o primeiro trabalho dele vai ser revisto, em parte,
pelo professor do curso, e isso já lhe abre portas para o mundo da tradução.
Uma coisa que mudou muito também foi o mercado. Quando eu come-
cei a fazer tradução existiam basicamente três mercados distintos para o
tradutor: o autônomo que trabalha com editora, como eu sou até hoje; o
tradutor técnico, aquele sujeito que trabalhava para uma firma – a Petro-
brás, por exemplo, sempre teve um corpo de tradutores técnicos, que são
seus funcionários –; e por último a figura do tradutor juramentado, que é o
sujeito que faz concurso, como um tabelião, é vitalício, cuja tradução tem
valor legal. Hoje em dia isso mudou completamente, de cada dez alunos
que se formam em tradução, apenas um ou dois acabam em editoras. O
resto é absorvido por dois novos grandes mercados, o de tradução para
legendagem e o de softwares.
O número de filmes que passam nos canais de TV a cabo hoje em dia, ou
seriados ou shows que têm legenda, é enorme. Você não imagina o exército
de tradutores que trabalha dia e noite, sem parar, para manter essas tevês
a cabo funcionando. Antigamente entravam em cartaz dois ou três filmes
no cinema, então dois ou três tradutores davam cabo do mercado. Hoje
em dia, com a TV a cabo e mais os filmes que são produzidos e vão direta-
mente pras locadoras, o volume de tradução que tem que ser feito para a
legendagem é imenso.
O outro mercado enorme é o de tradução de software. A cada momento
estão sendo lançados no mercado vários softwares, todos são desenvolvi-
dos em inglês, sem exceção, e têm que ser traduzidos e adaptados para o
português. Esse mercado tem um nome especial. Não se fala tradutor de
155
software, o termo é localização, o profissional faz trabalho de localização.
Só no Rio de Janeiro existem quatro ou cinco firmas de localização; em São
Paulo, sem dúvida alguma, deve ter mais ainda, e isso absorve um número
imenso de tradutores. Esse tradutor, ao contrário do tradutor de livro e
semelhantemente ao de legendagem, é empregado. Ele trabalha para essa
firma, ele vai lá, tem um equipamento que ele usa que a própria firma dis-
ponibiliza, um software pra traduzir software, e ele estabelece uma relação
de empregado com a firma.
Então o tradutor de livros – ligado a um mercado que eu conheço –, e
que é o que eu formo hoje na PUC, virou a menor parcela do mercado de
tradução. Em matéria de remuneração, o mais mal pago de todos é o tradutor
literário, disso aí eu não tenho a menor dúvida. O tradutor de software e o
tradutor de legendagem são geralmente bem pagos. E evidentemente quem
ganha melhor é o tradutor juramentado. Para você ter uma ideia, durante 24
anos não houve concurso para tradutor juramentado no Rio de Janeiro. Eu
conheço gente que se mudou para São Paulo, e que deu endereço de parentes
em São Paulo, para que quando tivesse um concurso lá ele entrasse. Agora
teve um no Rio. Esse é o que paga melhor. Trabalha com uma lauda peque-
na, reduzida, que tem um preço tabelado, alto. E é um trabalho formulado,
depois de traduzir por alguns anos certificados, diplomas, fica tudo igual, é
como uma forma de bolo.
Então o que ganha menos é o tradutor literário. Agora, com o tempo,
quando a editora descobre que ele está agregando valores ao produto,
se um livro com o nome dele vende mais e não é rejeitado pelo mercado,
evidentemente ele vai sendo atraído por editoras que pagam melhor. As
editoras também vão pagando uma lauda diferenciada para o tradutor que
pega aquele livro que é difícil, que ninguém mais quer pegar. Então com o
tempo ele consegue ter uma remuneração melhor.
Sobre produção literária, a tradução de poesia é um trabalho para
poetas?
Essa é uma pergunta complicada. Eu diria que para traduzir poesia
você tem que dominar um certo artesanato do verso. Eu não sei se quem
domina o artesanato do verso necessariamente é poeta. Aliás, nem todo
poeta domina necessariamente o artesanato do verso. Hoje em dia isso está
tão dissociado... Você pensa no século XIX: qualquer estudante de medicina,
156
qualquer bacharel em direito era capaz de compor um soneto, um mau soneto,
provavelmente, mas ele era capaz de compor. Ou seja, havia um artesanato
mínimo da palavra poética que todo mundo que passava pela faculdade, pela
universidade, dominava. O resultado disso, eu acredito, é que as pessoas
tinham mais formação até para ler poesia. É uma pessoa que sabe escrever
um soneto, que aprendeu o mínimo do rudimento, então ele vai ser capaz
de ser um melhor leitor de poesia e, certamente, ela tem condições de ser um
melhor tradutor de poesia.
Hoje em dia houve um divórcio completo entre as ideias de artesanato e
de educação artística. Eu acho que isso é mau. É bom que todo artista passe
por um artesanato e, sem dúvida alguma, eu acho importante que todo poeta
passe por essa fase do artesanato. Uma das matérias que eu dou na graduação
da PUC, fora o curso de tradução, é a oficina de criação poética. E é um curso
em que nas primeiras três ou quatro semanas as pessoas só fazem contar sí-
laba mesmo. Eu digo: “É para contar sílaba, botar acento, fazer escansão.” Eu
acho que isso é importante. E a pessoa que teve uma certa base de artesanato
poético entende como funcionam os métodos da língua, entende quais são
os mecanismos do ritmo, tanto do português quanto da língua da qual ele
vai traduzir, e está habilitada para traduzir poesia. Se for poeta, melhor ain-
da. Mas o mínimo que se exige é que ele tenha um certo domínio, um certo
artesanato da palavra poética nos dois idiomas, principalmente no idioma
para o qual ele está traduzindo.
E a questão dos livros que se traduzem no Brasil?
Em primeiro lugar, aumentou muitíssimo o volume de tradução de livros.
Hoje em dia você tem muito mais editoras, o mercado aumentou, você tem
mais títulos lançados ao mercado. E o que está havendo, evidentemente,
é uma certa especialização do mercado, que é normal. Você tem um certo
número de editoras que só trabalha com autoajuda. Essas editoras são uma
espécie de formador de público. As pessoas que leem muito pouco são as
pessoas que leem autoajuda. Elas começam a ler com esses livros. E muitos
tradutores, quando começam a carreira, vão justamente para essas editoras,
que têm exigência mínima de legibilidade. Então você tem um mercado
imenso, livros que vendem quantidades industriais. Na outra extremidade,
estão aquelas editoras universitárias, que são editoras que editam títulos
de filosofia, ciências sociais, que têm um público muito reduzido, mas alta-
157
mente exigente. Muitos desses leitores até podem ler o original, mas se sai
em português uma versão boa, respeitada, com notas na língua dele, ele vai
dar preferência a ler a tradução brasileira. E no meio disso, entre o sublime e
o grotesco, digamos assim, a gente tem toda uma gama de editoras atuando
em diferentes áreas.
Há uma diversificação muito grande, e aí você vai ter editoras atuando
em cada nicho, o que é muito interessante também, porque você já pode
direcionar o tradutor para o seu nicho. Você tem um sujeito que possui
uma certa formação em engenharia, e no meio ele bandeia para as letras
e vai fazer tradução. Esse é um candidato perfeito para fazer tradução de
livros de engenharia, de arquitetura. Um outro sujeito tem uma formação
em direito, acontece muito isso, um aluno já de certa idade, que já até atuou
como advogado e vai para o curso de tradução. Ele tem um perfil perfeito
para se tornar um tradutor de livros na área de direito. E eu já vou botar
ele em contato, na hora do estágio, com uma editora que atua nessa área.
Houve essa especialização, editoras que vão mobilizar um certo número
de tradutores, que vão se especializar cada vez mais no nicho delas. É assim
que a coisa funciona. Quando eu comecei a trabalhar era muito diferente.
Você tinha muito menos editoras, e a mesma editora editava livros de uma
gama extraordinária. O tradutor tinha que ser meio pau para toda obra. Eu
lembro que, quando era garoto, a grande editora do Rio, que comprava os
livros todos, era a Civilização Brasileira. Ela editava de tudo, de literatura
ao Capital, de Marx, e alguns best-sellers também.
Era um livro por dia, não era?
Era uma loucura; a Civilização Brasileira não tinha perfil, era uma editora
que editava absolutamente tudo. Hoje em dia não existe mais isso, a maior
editora do Brasil, que é a Record, tem vários selos, e cada selo na verdade
funciona como uma editora especializada, que trabalha com os seus auto-
res e seus tradutores. Há uma especialização dentro dos selos da Record.
O mercado está muito mais setorizado. Isso é bom. E não tem mais aquela
coisa de que falei no começo, do tradutor e revisor trabalharem desfazendo
o trabalho um do outro. Agora há um certo clima de trabalho, um sabe o
que precisa do outro. E há um reconhecimento fundamental da editora de
que quem tem que dar a última palavra é o tradutor. Porque o nome que vai
sair lá como responsável pelo texto é o nome do tradutor. O tradutor tem
158
que brigar, defender as posições dele. Claro que o revisor também tem o
direito de meter o bedelho, mas, em última análise, o tradutor explicando
o ponto de vista dele, o revisor tem que aceitar. Porque a tradução tem que
ter a cara dele; ele que vai assinar o texto.
O Brasil teve, há algumas décadas, um grande debate sobre tradução
de poesia em torno da transcriação, da teoria criada pelos poetas
concretos, e da teoria clássica, onde a tradução tem que manter uma
fidelidade ao original. Qual a sua posição em relação a isso?
Hoje em dia um dos meus projetos de pesquisa na pós-graduação é jus-
tamente a tradução de poesia, e é o projeto que mais me mobiliza e mais
me interessa no momento. A tradução de poesia no Brasil já tem uma certa
tradição, nós somos um país com um nível de tradução poética de excelência
reconhecida, temos um nível de exigência do leitor de poesia que é muito
elevado, e os principais responsáveis por isso foram, sem dúvida alguma,
os poetas concretos. Eles que elevaram o patamar. Já havia bons tradutores
de poesia antes deles, Manuel Bandeira fez coisas excelentes, Guilherme de
Almeida também, mas era muito desigual. Havia esses tradutores, que eram
poetas que faziam tradução, mas o mercado lançava coisas inacreditáveis.
Edições que não eram bilíngues, sem o original, sem o menor cuidado com
a forma, sem nenhum paratexto, sem representação, sem nota, sem nada. A
partir dos concretos começou a surgir um nível de exigência muito maior.
Eles começaram a fazer uma tradução poética de um nível muito elevado, e
com isso aumentou a exigência. Eu considero que a minha grande formação
como tradutor se deu na leitura dos livros, dos paratextos, das traduções.
Principalmente do Augusto de Campos, que foi quem eu mais li, até porque
o Augusto trabalha muito com o inglês, o francês e o espanhol, que são lín-
guas que eu leio, enquanto que o Haroldo de Campos traduzia do alemão,
do grego. A teoria dele me interessava muito, mas a prática eu não tinha
muito como provar.
Em relação às posições teóricas, a única coisa que eu nunca consegui
engolir foi a ideia de que eles fazem transcriação e não tradução. O Haroldo
de Campos chegou a dizer que a tradução dele era transluciferação. Conve-
nhamos, tradução é tradução, não é? As traduções deles são melhores que
as traduções do mercado, eles são, sem dúvida alguma, alguns dos melhores
tradutores de poesia do Brasil, mas o trabalho que eles fazem é tradução,
159
não há porque chamar aquilo de outra coisa. Trabalhamos muito os textos
teóricos e as traduções deles no curso, e uma coisa para a qual eu sempre
chamo a atenção dos alunos é como o trabalho deles é melhor que a retórica.
Por exemplo, o Augusto de Campos mais de uma vez disse que o importante,
na tradução, é o significante, que as pessoas que leem significado são cegas. E
ele cita uma frase do Benjamin que é perigosa: “O contato entre a tradução e o
original, no plano do sentido, é como o ponto em que uma reta tangencia um
círculo.” Se essa afirmação do Benjamin for levada às últimas consequências,
pode ser desastroso. Você não pode se preocupar só com o significante e se
lixar para o significado, a prática não é essa. O Augusto traduziu um poeta
que sempre me pareceu impossível de traduzir, o Hopkins. Quando você lê
essa tradução, e todas as suas grandes traduções, vê que ele é extremamente
cuidadoso tanto no plano do significante quanto no do significado. Mas,
como a poesia concreta é uma poesia que semanticamente tende ao vazio,
que só valoriza a forma, o Augusto de Campos, por questões ideológicas,
costuma falar isso sobre o significante. Mas é uma balela! O trabalho dele
mostra que ele dá pesos iguais, como deve ser. As melhores traduções do
Augusto de Campos mantêm uma fidelidade imensa a todos os níveis. E é
isso que eu trabalho com meus alunos. Em tradução de poesias você precisa
ser fiel ao significado sim, à linguagem figurada, às metáforas e ao plano
do significante, ao ritmo, ao esquema de rimas, ao esquema métrico. Isso
que é o ideal da tradução poética: você pegar todos os níveis do poema e
tentar encontrar, em todos eles, soluções que sejam correspondentes no
português. E é o que eles fazem nas melhores traduções deles. Agora, para
mim, tradução não é “trans”, é tradução mesmo, por que a gente tem que
dar um nome diferente a isso? Tradução é tradução.
E outros tradutores?
Temos muitos bons tradutores de poesia no Brasil. O Jorge Wanderley,
que morreu há alguns anos, fez uma tradução muito boa dos sonetos de
Shakespeare. Infelizmente ele morreu antes de terminar a Divina comédia. A
tradução dele do “Inferno” é primorosa. Não sou um especialista em italiano,
mas tive a oportunidade de falar sobre o Wanderley em uma homenagem a
ele no Rio. E resolvi sentar e pegar um canto inteiro do “Inferno”, fazer um
cotejo rigoroso com o original, e aquilo é uma sucessão de acertos e solu-
ções extremamente felizes. José Paulo Paes também foi um ótimo tradutor,
160
que traduziu poetas muito importantes, como o Konstantino Kaváfis, um
poeta grego que não tinha tradução ainda. Tem muita gente boa fazendo
tradução de poesia.
O José Paulo Paes e o Haroldo de Campos são dois casos de tradutores
que trabalharam com diversas línguas, que se aventuraram por diver-
sas línguas. O José Paulo Paes foi do grego ao francês, ao alemão. E ele
mesmo disse que não é um grande conhecedor dessas línguas.
Isso é uma questão interessante. A rigor, a única coisa que é muito im-
portante para o tradutor é dominar a língua para a qual ele traduz. Pode
parecer paradoxal. Os alunos costumam dizer: “Eu resolvi fazer tradução
de inglês porque eu sou bom em inglês.” Isso não é irrelevante, mas eu vou
dizer que é secundário. O principal é você ser um bom redator de portu-
guês. Então, para você ser um bom tradutor de poesia você tem de ser um
ótimo redator, ser muito bom em português e tem que conhecer muito
bem, como comentei ainda há pouco, aquela parte de artesanato da poesia.
Conhecer a língua estrangeira é o de menos. Você vê o caso da poesia russa
moderna: os irmãos Campos não sabiam russo. Eles sentaram então com o
Boris Schnaiderman, que é russo e explicava o que estava escrito. Com base
naquilo, criavam a poesia em português. É perfeitamente possível um bom
tradutor de poesia traduzir de uma língua que ele nem conhece, desde que
ele tenha acesso, evidentemente, a uma pessoa que seja um informante.
Eu não sei russo, mas tem um cara que é russo e pode me ajudar, então eu
pego uma tradução desse poema russo para o inglês, para o francês ou para
o espanhol, e faço então uma triangulação, uma paralaxe, e posso recriar
esse poema em português. É claro que é muito mais trabalhoso e que o ideal
é você conhecer a outra língua também. Mas a única coisa fundamental é
você dominar a língua para a qual traduz. Então, pessoas como José Paulo
Paes, que não dominava essas línguas todas mas tinha bom senso, bons di-
cionários, bons informantes, e tinha acesso a outras traduções para línguas
que ele dominava, conseguia fazer ótimas traduções para o português. Eu
acho isso perfeitamente válido.
Um tradutor de poesias recebe o direito pelos livros ou pelo trabalho?
Essa história é complicada. Existe uma legislação no Brasil, aprovada nos
anos 1980, se não me engano, que obriga a editora a dar uma certa parcela
161
dos direitos autorais do livro para o tradutor. Uma parte vai para o autor,e
uma outra parte, para o tradutor. Independente de ser prosa, poesia ou o
que for. Na prática as editoras obrigam o tradutor a assinar um contrato no
qual ele abre mão, voluntariamente, da parte que cabe a ele dos direitos
autorais para a editora. Se ele não assinar isso, não vai receber nunca mais
trabalho dessa editora. Eu tenho uma experiência de trabalhar há muitos
anos com a Companhia das Letras, então muitas vezes eles me dão a parte
que me cabe dos direitos autorais. Quando o autor é morto, e já está em
domínio público, normalmente o tradutor recebe toda a parte que iria para
o autor. Isso a Companhia das Letras sempre fez. Se eu traduzo um autor
que já está em domínio público, eu entro como se fosse o autor, e a parte
de direitos autorais que iriam para o autor vai para mim. Então a situação
vai depender muito do tradutor e da sua situação com a editora. Porque por
lei as editoras teriam de pagar, mas na prática você vai assinar um contrato
e é esse contrato que vai estipular o quanto você vai receber, e se você vai
receber alguma coisa. Então fica muito na negociação do poder relativo da
editora e do tradutor individual.
Sobre a fidelidade ao texto inicial, você já afirmou: “É uma discussão
teórica das mais quentes no campo da teoria da tradução. Limito-me a
dizer que, entre a posição tradicional, que estabelece uma diferença
clara entre original e tradução, de um lado, e a postura de autores
associados à desconstrução e ao pós-estruturalismo, que tendem a
relativizar ou mesmo negar essa oposição, de outro, tendo a me posi-
cionar como um tradicionalista.” Comente um pouco sobre isso.
É. Isso é um problema, porque me vejo, muitas vezes, forçado a adotar
uma posição até tradicionalista. O que está acontecendo é que, no mundo
da teoria, a tradução virou, de repente, uma área de pesquisa de ponta. Uma
área que não tem nem trinta anos ainda e que se chama Estudos da Tradução.
É uma área, hoje em dia, de alto envolvimento. Tem muita gente atuando
nessa área, tem editoras especiais que só trabalham com isso, revistas
internacionais de tradução. O que acontece é que muita gente que estuda
tradução são pessoas da minha geração, que tiveram, de uma maneira ou
de outra, a experiência de Maio de 68. Essas pessoas envelheceram, viraram
universitários, e todo o radicalismo que em 68 era canalizado para a vida
política, agora está sendo jogado na teoria. Então saem posições que me
162
parecem ecos tardios de um certo ethos de 1968. Pessoas que, em 68, esta-
vam dizendo “Vamos queimar as bibliotecas”, hoje em dia fazem afirmações
que a meu ver são completamente descabidas. Então, por exemplo, existem
pessoas no mundo dos Estudos da Tradução que dizem que essa diferença
entre o original e a tradução é uma coisa totalmente reificada. Que escrever
a Divina comédia e traduzir a Divina comédia é a mesma coisa, porque se
Dante parte de outros textos, Cavalcanti, poetas provençais, o tradutor tam-
bém parte. Eu acho isso um delírio! Uma coisa é você negar qualquer valor
à tradução, você dizer que a tradução é um trabalho mecânico e burocrá-
tico. Não é. Agora, dizer que traduzir a Divina comédia e escrever a Divina
comédia são a mesma coisa, dizer que escrever uma obra e traduzir uma
obra são a mesma coisa, isso é uma maluquice! É um tipo de radicalismo
que não tem como levar a sério.
Tem um sujeito no mundo acadêmico inglês que diz que Shakespeare se
tornou esse grande clássico por causa do poderio da Inglaterra. Como a In-
glaterra foi um grande poder no mundo, então eles impuseram Shakespeare
ao mundo. Eu fico pensando: já que Portugal e Espanha foram importantes
durante tanto tempo, por que o Camões nunca foi imposto ao mundo como
o Shakespeare? É uma loucura. A Itália, que eu saiba, nunca foi uma grande
potência, então de onde saiu essa centralidade da Divina comédia? Essa
coisa de politizar tudo, de ver tudo em termos de radicalismos dos anos
1960, eu acho que não tem o menor sentido. Então, nos debates nessa área
de tradução, muitas vezes eu tenho que defender posições conservadoras,
porque eu não aguento esse tipo de radicalismo. O cara querer dizer para
mim que o trabalho como tradutor e o trabalho como criador são a mesma
coisa, não dá, não são a mesma coisa. São trabalhos realmente que têm muito
em comum, a gente não pode cair no extremo tradicionalismo também. É
claro que o trabalho de redação, o trabalho de revisão, que é uma coisa que
tem na criação poética e na criação artística, também vai existir no traba-
lho de tradução, mas evidentemente que essa semelhança só vai até um
certo ponto. Você querer anular a diferença da tradução, que é uma criação
puramente ideológica, sinceramente é falta de bom senso. Tem um grupo
de tradutoras feministas no Canadá, em Quebec, que acha que é dever da
tradutora subverter os textos falocêntricos. Então elas fazem traduções de
textos escritos por homens e subvertem o autor. Sinceramente! Se eu quero
ler um autor machista, eu quero ver o machismo dele, até para poder criticar.
163
A questão da ideologia na tradução pode ser mais explícita, como no
caso que você citou, e pode ser menos explícita. Como você vê isso no
Brasil?
A ideologia está sempre presente, não é? Existe uma postura, que é muito
pós-estruturalista, que diz que se é impossível anular uma coisa a gente tem
de maximizá-la. Eu acho esse raciocínio completamente maluco. Alguns
teóricos da tradução dizem que é impossível o tradutor ser completamente
neutro, que ele tem que se colocar ao máximo. Tem um tradutor americano
que diz o seguinte: “Quando eu traduzo um texto do italiano, do século XIX,
eu faço questão de colocar um caco, uma gíria nova-iorquina do século XX no
meio para mostrar que eu estou aqui e que eu sou um americano do século
XX.” Então eu perguntei para ele se ele não assina as traduções, se ele não
faz prefácio, porque o leitor tem de ser muito idiota para comprar um livro
traduzido do italiano e não saber que foi traduzido por um norte-americano.
Mas a ideia dele é que, já que ele não consegue ser neutro, ele tem que se
afirmar o tempo todo. Eu discordo disso, acho que o tradutor tem de tentar
se apagar sim. Quando estou traduzindo o Henry James, por exemplo, fico
tentando imaginar o que o Henry James faria se escrevesse em português.
A forma de me colocar no texto é assinando, é colocar na primeira página
“Tradução de Paulo Henriques Britto”, é fazer uma introdução, colocar no-
tas. Senão é, de novo, esse raciocínio ideológico. Como tradutor, eu estou
tentando recriar, fazer um pastiche do original. Porque eu acho que a boa
tradução é um pastiche, e a gente não deve ter vergonha de dizer isso.
Você já fracassou em uma tradução? Você já teve que dizer: “Este autor
eu não consigo”?
Já! Já aconteceu muitas vezes. Com poesia isso é fatal. Para mim a tradução
é pastiche. E para você conseguir fazer isso com um texto, é preciso ter uma
certa afinidade com ele. Às vezes acho o cara muito bom, mas o pastiche
dele não funciona. As coisas não batem, eu não consigo recriar os efeitos
que o cara faz em inglês. Aí eu deixo de lado. Já aconteceu isso mais de uma
vez. Quando é um texto de prosa a coisa é um pouco mais fácil, de um certo
modo. Claro que há traduções que eu sinto que não ficaram tão boas, então
eu peço para a editora não me passar mais traduções desse autor. Quando eu
pego e dá certo, a própria editora sente que dá certo, então eu vejo que esse
autor eu sei traduzir bem. E aí a tendência é eles me darem mais desse cara.
164
E é possível traduzir um autor com o qual você não estabelece uma re-
lação afetuosa?
Ah, sim! Certamente! Já traduzi coisas de que eu não gosto nem um pou-
quinho, mas trabalho e tudo bem.
E sobre o prazer na tradução?
O ideal é que você pegue um autor de que você goste, que você sente
que sabe imitar o estilo dele, fazer um bom pastiche, e que aquilo lhe dê
prazer. Isso é uma delícia, né? Uns anos atrás a Companhia das Letras me
chamou para fazer O arco-íris da gravidade, do Thomas Pynchon, que é um
grande nome do romance pós-moderno. Eu sempre tive um pé atrás com
essa geração, tentei ler alguns autores contemporâneos ligados a ele, mas
não gostei muito, então eu não queria fazer. Mas a editora insistiu, ninguém
queria fazer, o livro era um abacaxi, um calhamaço de oitocentas e tantas
páginas. Acabei pegando o trabalho e comecei a me empolgar. Adorei o
livro e hoje já traduzi três outros do Pynchon. Virei um Pynchonólogo. Perdi
minha má vontade toda com ele, apesar de ter certas coisas que até hoje me
incomodam um pouco. Mas ele é um escritor realmente magnífico. Ele é o
cara que mais me ajudou até hoje. De todos os autores que eu já traduzi – e
olha, eu já publiquei cem livros –, esse cara foi o que mais me ajudou, que
mais me deu toques. Eu mando listas de dúvidas de quatro páginas e ele
me responde em oito páginas. Explica, ajuda, dá dicas. Ele é um excelente
autor para se traduzir.
O que você acha de livros que são traduzidos não a partir da língua
original?
O ideal é você traduzir diretamente. Esse é o sonho do tradutor. No
Brasil, por exemplo, circularam por muito tempo aquelas edições famosas
do Tolstói e do Dostoiévski, da Aguilar, que todo mundo tem em casa, em
que os textos foram traduzidos do francês. Isso não é o ideal. Nós estamos
saindo já dessa fase em que tudo partia do francês. Esses autores estão sendo
finalmente lançados no Brasil em traduções feitas diretamente do russo. O
Gombrowski, autor polonês de que eu gosto muito, teve as primeiras versões
lançadas nos anos 1960 com tradução do francês, mas agora está sendo
relançado pela Companhia das Letras, todo traduzido do polonês. Isso é a
maturidade do país. Você ter tradutores capazes de traduzir a maior parte das
165
línguas europeias, das línguas orientais. Apesar de que sempre vai haver uma
lacuna. Talvez você não tenha um tradutor de lituano, então paciência. Você
faz aquele esquema de triangular. Mas o ideal num país com uma indústria
editorial evoluída é que você conte com tradutores bons de praticamente
todas as línguas que tenham uma obra importante. Isso é o ideal.
167
Gilda, como você começou a trabalhar com assessoria de imprensa?
Totalmente por acaso. Não sou jornalista. Fiz Letras, mas não concluí, por-
que fui morar fora do Brasil no meio do curso. Lá fora comecei a trabalhar com
produção de show, e comecei a trabalhar com o Franco Fontana, que era um
empresário pioneiro em levar os brasileiros para a Europa. Depois vim para
o Brasil, já casada com o Vinicius de Moraes, e fiquei trabalhando com ele,
pondo um pouco de ordem em seus arquivos, sua biblioteca. A Ariola havia
acabado de ser instalada no Brasil, e Vinicius e Toquinho foram os primeiros
a assinar com a gravadora. Na época era só Ariola, depois é que se juntou
com a BMG, essas fusões e confusões de gravadora. Foi uma gravadora que
entrou no Brasil chutando a porta, inflacionando os passes. Lembro que Chico
Buarque fez um contrato extraordinário. Eles tinham um elenco muito bom.
Depois da morte de Vinicius, fui trabalhar lá. Tenho a impressão de que me
chamaram justamente porque fiquei muito mal, meio desorientada. Eu estava
fora do Brasil havia quase seis anos e não sabia o que ia fazer da minha vida.
Quando fui trabalhar para eles, eu não tinha nem sala, ficava num cantinho
junto ao diretor artístico. Dava palpites, comprava presentinho para artista.
Em seguida, o assessor de imprensa deles foi embora, e me chamaram para
substituí-lo. Eu não sabia nem do que o cargo se tratava, mas eles me explica-
GildaMattoso
Assessora de imprensa.
168
ram o mecanismo. Como eu tinha um texto razoável e muita abertura com
os artistas, até mesmo por conta da minha relação com o Vinicius, acabei me
inventando nesse ramo. Estou nisso há trinta anos. A Ariola eventualmente
foi comprada pela Polygram, onde trabalhei até 1989. Depois saí com meu
sócio e montamos nosso próprio escritório.
Como foi o aprendizado? O que faz, exatamente, uma assessora de im-
prensa?
Eu distribuía discos para a imprensa especializada em música e criava
ganchos para atrair o jornalista para um determinado artista. Cavava espa-
ços, bolava notinhas diárias sobre o elenco da gravadora. Cuidava da agenda
de entrevistas e um pouco da própria imagem do artista. Tratava da lista de
convidados para as estreias. O assessor de imprensa é também alguém que
faz relações públicas.
Você pode falar um pouco sobre os veículos midiáticos daquele período?
Eu só fazia imprensa escrita e telejornalismo. Quando comecei, eram seis
ou sete jornais do Rio e de São Paulo. De semanais, só havia Veja e IstoÉ, não
havia essa quantidade de revistas de celebridades que estão aí hoje. Tinha
ainda Manchete, Fatos & Fotos e algumas poucas outras. A cereja do bolo era
a entrevista com Leda Nagle, aos sábados, no Jornal Hoje. Todos os assesso-
res brigavam para colocar seu artista ali. Naturalmente, nessa época nem se
pensava em Internet.
Qual é o procedimento-padrão quando se sabe de antemão que determi-
nado jornalista é traiçoeiro? Como se proteger?
No mais dos casos, os artistas já sabem quem é quem. Mas se é um artista
novo – ou um artista desatento – eu aviso. Sinto-me na obrigação de dizer,
afinal, quem arma a entrevista sou eu.
Qual é a estratégia de ação quando você trabalha o CD de um artista novo?
Primeiro, incentivo o artista a fazer um show, para mostrar seu trabalho.
Um disco, hoje em dia, qualquer um faz. Basta ter um estúdio no fundo do
quintal. Então aconselho o artista a montar uma banda, pegar dinheiro em-
prestado com sabe-se lá quem e fazer um show. Uma vez que a data é marcada,
procuro levar pessoas interessante ao show. É um trabalho de formiguinha.
169
Se a resposta ao show é boa, começo a botar o nome da pessoa na mídia,
na medida do possível. Começo a contatar jornalistas, sempre procurando
ganchos para tornar o artista mais interessante. Por exemplo, se o vocalista
da banda que estou divulgando também é ator, aviso que ele já trabalhou
com o diretor tal, no filme tal, esse tipo de coisa. Trabalho um pouco com
cinema também. Antigamente, o ramo era mais segmentando. Você sabia
quem trabalharia com esse tipo de produto. A diluição que o ramo sofreu
acabou tornando o processo mais fluido, de modo que, hoje em dia, é possível
colocar todo mundo em quase todo tipo de publicação. Claro, uma banda
nova não vai sair na capa de um grande jornal. Mas se tiver algum charme
especial, ela se amplia.
Você escreveu o livro AssessorA de encrencA. Conte um pouco sobre ele.
E um livro de histórias e casos. Muita gente ficou frustrada, achando que
era um livro “chapa branca”. Naturalmente, esperavam que eu falasse da vida
sexual do Gil ou da Elba. Mas não era essa a intenção. Considero-me uma
contadora de casos. Viajei quinze anos com Caetano pelo mundo e, sempre
que voltávamos, nos reuníamos com uma turma que me pedia para contar
as anedotas. Um dia o próprio Caetano me aconselhou a escrever um livro,
porque dali a pouco esqueceríamos todas as histórias. Então, comecei. Na
redação do livro, contei com a ajuda de um irmão mais velho, exímio contador
de casos. O livro foi preparado em conjunto e bem despretensiosamente. Não
queria ser best-seller, e não fui – esgotei a primeira edição, e parou por aí.
Como surgiu o título do livro?
Esse título foi um presente da minha filha, que contava uns cinco anos na
época. Um dia lhe perguntei o que queria ser quando crescesse, e ela respon-
deu que queria ser como eu, assessora de enquenca. Foi aí que percebi que
havia dado à luz a um gênio, porque a menina descobrira minha verdadeira
profissão. Uma boa assessora tem que ser um pano quente daqueles.
Os releases dos anos 1970 eram bem rebuscados, extensos, continham até
entrevistas. Agora existe uma preocupação com a agilidade da informa-
ção. Como lidar com isso?
Nos anos 1980, quando comecei a trabalhar, fiquei amiga de alguns
jornalistas, incluindo o Xexéo, que era do jornal O Globo. Certa vez ele me
170
disse: “Mattoso, sabe quem vai ler esse release com mais de duas páginas?
Ninguém”. Porque chegam trezentos discos por semana. O dia em que fui à
redação d’O Globo e vi a mesa do crítico de música, quase perdi a coragem
de ligar para lá e ficar perguntando se ele já tinha escutado os discos que eu
lhe mandara. Ele não devia nem saber onde o disco estava. Era uma muralha
com um jornalista ali no meio.
Como furar essa muralha?
Usando do seu charme, do seu conhecimento com a pessoa. Tem que ser
insistente também. Ficar ligando, avisando dos shows. É preciso lançar mão
de todos os recursos para que seu produto se destaque da massa. Quando eu
trabalhava em gravadora, às vezes via a quantidade de material que chegava
para os produtores e diretores artísticos avaliarem, e ficava com pena. De vez
em quando eles não tinham lugar e simplesmente mandavam jogar as fitas
K7s no lixo. E eu ficava me perguntando, e se no meio daquela pilha que ia
para o lixo houvesse um novo Noel Rosa? O problema é que realmente não
tinha como levar aquilo tudo para casa e ficar escutando. Era uma quantidade
assombrosa.
Às vezes, durante as entrevistas que conduzimos, o entrevistado faz
questão de trazer o assessor de imprensa. Por quê? O que faz um assessor
nesse momento?
Pensa no supermercado, na reunião do colégio da filha, enfim. Não faz
muito além de estar lá para dar uma força. A questão é acompanhar o artista,
que provavelmente fará mais entrevistas naquela cidade. Vai-se a tudo com
ele. Nunca me preocupei em preparar o artista, a não ser em casos de extrema
crueza. O assessor faz companhia, nesse caso. E safa o artista de situações
desagradáveis. Por exemplo, pessoas que encurralam o artista, começam a
falar dos projetos dos filhos, pedindo ajuda. Com Caetano, por exemplo, eu
tinha alguns códigos pré-combinados, como “não esqueça aquele negócio
que você precisa resolver lá no hotel”. Assim nós nos livrávamos do aluguel
das pessoas. Com o Gil é diferente, que ele não presta para mentir.
Quão crítico um assessor precisa ser durante a elaboração do release?
É preciso encontrar um equilíbrio. Tenho que vender o peixe com o máximo
de honestidade, mas colocando meu pavão bonito.
171
Os jornalistas costumam reclamar muito dessa mediação realizada
pelos assessores?
Sim. É uma relação profissional, mas não deixa de ter seus pontos de ten-
são. Muitos jornalistas tendem a pensar no assessor como um estorvo, um
obstáculo entre ele e o artista. Na primeira brecha que se apresenta, passam
por cima sem hesitar.
Como se dá a escolha dos veículos? Como você pensa essa estratégia?
Creio que a questão seja priorizar um veículo para determinado produto.
Hoje em dia não faz muito sentido falar em “exclusiva”. Foi-se o tempo em que
ficávamos preocupados com quem ia “furar”. Hoje em dia, quando o jornalista
pensa em escrever algo a respeito de um determinado assunto, já está velho
na Internet. Se o filho do Gil conta no Facebook que o pai compôs uma canção
nova, no dia seguinte aquilo já está no mundo. Hoje em dia, uma “exclusiva”
só serve realmente para uma visão mais aprofundada do trabalho do artista.
No entanto, hoje em dia, a quantidade de assessores de imprensa aumen-
tou enormemente. Por quê?
Bom, muitos jornalistas ficaram desempregados e correram para fazer
assessoria. Com a debandada para a Internet, o número de jornalistas que
trabalham em redação diminuiu um bocado. A importância da imprensa
escrita sofreu uma queda considerável. As pessoas do ramo tiveram que se
reinventar, ir para outro lugar.
Com a queda da imprensa escrita, a estratégia fica mais concentrada no
“boca a boca”? Qual a estratégia para fazer uma pessoa surgir, ou um
produto crescer?
Agora é a Internet. Funciona muito para uma determinada faixa de pes-
soas. Mas há problemas. A Internet é muito efêmera, as coisas surgem e so-
mem numa velocidade incrível. Portanto, temos que criar sempre. Estamos
constantemente desdobrando outros fatos de um mesmo produto ou de um
mesmo artista, no intuito de mantê-lo em alta.
Como lidar com reações negativas da parte de críticos influentes?
Não há como, vivemos numa democracia. Todo mundo pode escrever o
que bem entender acerca de um produto.
172
Não há abordagem possível a crítica negativa?
Pessoalmente, nunca me guio pelo que está escrito. Nunca deixo de ver
um filme porque alguém falou mal. De todo modo, se determinado produto
recebe uma crítica negativa, isso só corrobora a importância do artista no
cenário cultural, pela própria questão do espaço.
E o bonequinho, Gilda?
Pois é, um bonequinho dormindo pode realmente arruinar seu filme.
Naquele veículo, especificamente, não há mais o que fazer. Cabe ao assessor,
então, procurar outros fatos, divulgar opiniões favoráveis em outros veículos.
Encher a bola do filme por outros canais.
Quais são os pontos fundamentais de uma estratégia de comunicação?
Em primeiro lugar, é preciso manter a qualidade em mente. É preciso fazer
um bom trabalho, seja ele qual for: circo, filme, livro. Para tanto, é preciso
fazer uma obra que entretenha e retrate o seu momento. O artista não pode
pensar unicamente em “fazer história”.
A partir disso, como pensar estratégias para achar o seu público?
É uma questão de comunicar aquilo com a verdade daquilo. É um disco
para festa? Para ouvir em casa, na rede, refletindo? É preciso dizer o que as
coisas são. Como assessores, precisamos levar o público onde o artista quer
que ele vá com aquele trabalho.
Você costuma dizer em entrevistas que nunca foi vítima do culto à cele-
bridade. Isso se deu por conta de seu casamento com Vinicius?
Na verdade, foi antes. Quando morei na Inglaterra, trabalhei numa loja
muito sofisticada que vendia papéis de carta, cartões de visita, livros de couro.
Atendia reis, rainhas, artista de cinema. Pessoas que uma menina de Niterói
nunca pensaria ver. A política da loja nos fazia tratar a todos com o máximo
de deferência. Era um ambiente muito formal, muito elegante. Acabei me
acostumando. Além do mais, em Londres, tropeça-se em celebridades o
tempo inteiro. Depois, acabei casando com o maior ídolo que já tive na vida,
Vinicius. Não tenho essa tietagem.
Como vê as celebridades?
173
Acho engraçado. Às vezes, a pessoa nem sabe o nome do artista direito,
mas reconhece de uma novela que ele fez em 2003. Sabe que é famoso, então
quer fazer foto, pedir autógrafo. Caetano detesta dar autógrafos, não entende o
porquê de um pedaço de papel com o nome escrito. Já Gil é de uma paciência
a toda prova. Tira foto com criança, velho, quem quiser. A pessoa vem pedir
um autógrafo e Gil já faz uma entrevista, perguntando de onde é a família
da pessoa. A Flora, sua mulher, chama isso de “momento Mickey”. Mas, de
vez em quando, nem sabem muito bem de quem se trata. Só querem uma
lembrança da pessoa, mesmo sem nenhuma admiração.
Muitos assessores de imprensa “plantam” para um artista ficar famoso,
não?
Sim, claro. Estive recentemente em Cannes para o Festival e fiquei impres-
sionada ao ver uma moça toda de dourados adentrar o hotel onde as estrelas
costumam se hospedar, seguida por três fotógrafos. Uma coisa de pernas finas,
muito botox e um cachorrinho yorkshire de chapéu de palha a tiracolo. Logo
em seguida um dos homens do festival me avisou que ela não era ninguém,
era tudo fake. As malas Louis Vuitton, as joias, tudo aquilo era emprestado,
e os fotógrafos não eram fotógrafos de verdade. Aquilo era só uma estratégia
para atrair a atenção dos fotógrafos de verdade. Afinal, uma mulher vestida
daquele jeito seguida por fotógrafos deve ser alguém. Imagine que loucura,
uma pessoa sair de casa pensando: “Vou para Cannes fingir que sou alguém.”
Como você seleciona hoje em dia os seus projetos?
Bom, estou há trinta anos no mercado. Finalmente, posso me dar esse luxo
de trabalhar quase exclusivamente com produtos que considero bons. Como
já tenho um nome no mercado, os jornalistas já me associam a projetos inte-
ressantes. Foi uma construção longa, mas que me permite certos privilégios.
Como fazer para criar um nome tão forte? Se você fosse dar um conselho
para um jovem assessor de imprensa, o que diria?
Procure fazer as coisas que realmente gosta. Primeiro, para seu próprio
prazer. Trabalhar com pessoas que admiramos dá verdade ao trabalho. Se
a pessoa não puder trabalhar com o que gosta... então, não sei o que dizer.
Sinceramente.
175
Como você virou preparadora de elenco?
A partir do Pixote, o filme do Hector Babenco, no começo da década de
1980. Depois eu fiquei muito tempo sem fazer cinema, porque preparação de
atores não existia. Eu adorei fazer, mas me tiraram o doce rapidinho. Fiquei
dez anos esperando para fazer o próximo, que foi Brincando nos campos do
senhor, novamente com o Hector Babenco. Eu comecei trabalhando como
atriz e dando aula de teatro. Virei preparadora de elenco por causa do Hector
Babenco. Eu não sabia o que era preparação de elenco. Eu trabalhava com
teatro na Febem, era monitora dos garotos. O Hector foi lá para fazer o Pi-
xote, e procurou as pessoas que ali trabalhavam. Então ele separou algumas
pessoas e deu um grupinho de garotos para cada uma. Depois de 15 dias, ele
foi olhar o resultado do trabalho e me escolheu. Ele me disse que eu ia fazer
coach, mas eu não sabia o que era. Aí disse que eu ia preparar a moçada da
Febem para fazer o filme. Eu fui atrás do Stanislávski, Grotowski. Eu estava
apavorada, não sabia o que era isso. Dava aqueles exercícios, mas os meninos
não tinham vitalidade. Eu não conseguia atingir o coração daquelas crianças.
Via que tinha algo errado, não conseguia fazer aquilo. Eu dizia isso para o
Hector, e ele respondia: “Vai, eu confio em você!” Foi impressionante! Eu não
via motivação nas crianças, e não podia dar o roteiro para elas lerem, porque
Toledo
Preparadora de elenco.
Fátima
176
muitos não sabiam ler. O que na verdade foi maravilhoso: até hoje eu evito
dar o roteiro para o ator. Então uma amiga minha deu a ideia de trabalhar
animais, e eu os levei no zoológico. Passei o dia com eles lá, contei a história
do filme, cada um escolheu um animal e foi para frente da jaulinha dele. A
partir disso eu fui construindo uma vivência. Entendi que o meu trabalho seria
ir até eles e voltar com eles para o filme, e não colocá-los de paraquedas no
filme. Comecei a descobrir caminhos diferentes, que não era o “se eu fosse”. Eu
vou até a pessoa e volto com ela para o trabalho. E ela volta inteira. Comecei
a criar um método de trabalho a partir disso – da necessidade, do desespero,
vamos dizer assim. E de repente eu me tornei preparadora.
Por que essa opção de ficar no backstage?
Na verdade eu gostava de trabalhar como atriz, mas eu me apaixonei muito
por trabalhar com o ator e não ser o ator. Faz-me pensar mais no ser humano,
eu gosto disso. Faz-me pesquisar mais, investigar mais. Não sei, me apaixonei.
De Pixote até Cidade de Deus, houve alguma mudança em relação ao reco-
nhecimento da profissão de preparador de elenco?
Não existia reconhecimento. O pessoal de cinema conhecia essa área, mas
não era oficial, não existia no sindicato, nada. Nem sabiam como colocar
nos créditos, se colocavam coach, preparador, treinador. Então, na realidade,
eu trabalhei sem ter um reconhecimento oficial. Só depois de 21 anos, com
Cidade de Deus, é que essa área passou a ser reconhecida no cinema e o pre-
parador de ator passou a existir no Brasil.
O que faz o preparador de elenco?
Tem o casting, que é quem escolhe os atores, e tem o preparador de ator, que
é aquele que prepara o ator para viver aquele universo do filme. Antigamente
eu preparava só um ator, como foi em Central do Brasil, quando preparei só
o garotinho. Agora eu preparo o elenco todo, porque dá uma certa unidade.
Percebemos isso em Cidade de Deus, inclusive.
O preparador faz parte da pré-produção. Dois meses antes da filmagem,
ele começa um trabalho diário com os atores, para ir entrando no universo
do filme. No primeiro momento vou descobrir quem são as pessoas com
quem eu estou trabalhando, o que elas têm para dar. Eu faço um diagnóstico
meio pessoal e alguns exercícios. Tento perceber se a pessoa está resistente
177
ao processo, se está entregue, se ela é agressiva. Enfim, vou fazendo o meu
diagnóstico. Depois eu passo para as relações do filme e num terceiro mo-
mento eu faço o levantamento das cenas. Aí o diretor vem e ajusta dentro da
concepção do filme que ele tem. No Brasil é assim que se trabalha.
Eu trabalhei num filme produzido pelo Sean Connery. Lá fora era diferente.
A Lorraine Bracco, por exemplo, tinha sua própria preparadora, e eu trabalhei
com ela. Os atores normalmente levam os seus coachs. Eu era a coach dos ín-
dios. Esse filme já abriu uma porta quando o diretor percebeu que eu ensaiava
as cenas. Ele começou a pedir isso, e começou a fazer close nos índios, o que
não tinha no projeto do filme. Então isso foi uma interferência da preparação.
Há um tipo de preparação que só acontece no Brasil?
Que eu saiba, sim. Inclusive o Walter Salles me falou isso. Ele nunca viu
uma preparação nesse nível em nenhum lugar.
Você declarou que a falha do “se fosse eu”, do Stanislávski, está na pos-
sibilidade do ator não ser. O que isso quer dizer?
É que o Stanislávski trabalha com o “se”. Então é: “se eu estivesse nessa
situação, eu seria assim”, “se eu estivesse”, “se eu fosse”. E eu trabalho com o
“eu estou”, “eu sou”. É minha grande diferença, inclusive. Porque para mim
não existe personagem. Não para o ator naquele momento. É claro que tem
o personagem que o ator está percorrendo durante o filme, mas eu não faço
o ator construir nada desse personagem para ele não se cercar. O meu traba-
lho é fazer o ator viver a situação do filme, sendo ele mesmo. Ele é ele, ator,
dentro daquela situação. A situação é fictícia, mas ele não, é humano, é real.
Então não tem “se eu fosse”. É “eu sou”. “Neste momento eu sou.”
Como é o seu método de trabalho?
Meu método é ir até o ator, respeitá-lo e voltar com ele para o projeto.
É mais ou menos isso. Uma amiga minha era fonoaudióloga, e no primeiro
trabalho dela levaram um menino autista, que já tinham levado a milhões de
lugares e não dava certo. Ela fez de tudo com aquele menino, era o primeiro
trabalho, então ela estava muito motivada. Ela pulou, ela trouxe brinquedo, e
não conseguia nada. Aí ela sentou e disse: “Eu estou tão cansada.” E ele falou:
“Eu também.” No momento em que você chega na pessoa, há um encontro,
e esse encontro produz um processo de trabalho. O meu método é esse.
178
Quando você pega a primeira ideia de um filme, provavelmente antes do
roteiro, como imagina o que o ator vai ser?
Eu leio o roteiro e consigo imaginar o filme, mas ainda não sei o que vou
fazer. Eu só percebo quando levanto as cenas e vejo os atores. Aí eu começo a
ver as falhas que não tinha percebido na leitura. Quando ele toma vida, come-
ço a perceber que algumas cenas não funcionam, então vou lá para o diretor e
digo que não está funcionando. O próprio filme só começa a existir a partir
da vida que os atores dão. Algumas vezes acho um roteiro muito bom, não
vejo falha, e só quando estou levantando as cenas vejo que não está tão bom
assim, que está com esse ou aquele problema. Antes de começar a trabalhar,
eu não tenho nada, porque parto da vida. Antes só tenho um papel escrito.
Eu sei se é bom ou ruim, se eu quero fazer ou não, se me dá possibilidade
de dar um depoimento como ser humano ou não. Até porque, se ele não me
der essa oportunidade, eu não tenho motivo para fazer. Mas só consigo ver
o filme na medida em que vai existindo através do trabalho dos atores, do
processo em si. Tem momentos em que eu digo: “Ih, gente! O filme chegou!”
Parece que ele veio, é uma entidade. Aí começa a dizer o que funciona, o que
não funciona, quem está indo bem, quem não está. É impressionante! Eu juro
que é isso que acontece.
Como que é trabalhar com a delicadeza?
Do mesmo jeito que você trabalha com a agressividade, procurando dentro
da própria pessoa. Ela tem os opostos, a sombra e a luz. O Capitão Nascimento
é a sombra do Wagner. Trabalhando os opostos, você vai encontrar tanto a
delicadeza como o seu oposto. Então na verdade não tem um personagem, ele
não vai copiar o Nascimento, ele vai buscar no próprio medo a sua sombra. E
em uma hora dessas eu tenho que estar muito atenta, porque ninguém quer
ver sua sombra. É desesperador entender que você pode fazer coisas que so-
cialmente seriam terríveis. Mas que é possível, dependendo de onde você está.
Às vezes tem coisas que o pessoal diz que é violência, mas violência é não
olhar para nós mesmos. Violência é saber que aquele filme existe ali do lado
da sua casa. Eu sinto que as pessoas estão em um transe, e, quando você
trabalha a realidade, elas acham violento. Hoje em dia violência é mostrar a
alma da pessoa. Basta acontecer um tapinha durante o treinamento que vira
um troço! As pessoas dizem que o treinamento é terrível. Mas um tapa não
é nada perante o que a gente está vivendo. E todos os tapas que tomamos
179
diariamente e ninguém percebe? Do mesmo jeito que pode ocorrer um tapa,
dependendo do que está acontecendo ali, pode ocorrer um abraço. Mas o
abraço ninguém vê.
O que fazer para ser um bom preparador?
Ser uma sombra. Ser a sombra do trabalho. Aquele momento é o momento
do ator. Às vezes você vê um professor de teatro dando aula, e ele é o centro.
Nós não podemos ser o centro de nada, nós somos a sombra. Nos meus pri-
meiros filmes eu não me deixava fotografar. Porque eu não estou ali. É quase
um agente invisível que vai fazer o ator percorrer o caminho dele.
O que você trabalha para conseguir chegar ao ator?
Trabalho, por exemplo, mãe, pai, inconsciente coletivo. Está tudo lá nas
pessoas. O que move uma pessoa hoje é o medo. Nós estamos na cultura do
medo. É simples, você não precisa saber do que você tem medo, mas o medo
é presente e muito forte. Está no ar, está em todo mundo, no inconsciente
das pessoas. É óbvio que você vai trabalhar com o que é de todos. Cada um
organiza do seu jeito, mas a jornada é de todos. Por isso que eu posso trabalhar
com índio, com alemães, porque são seres humanos, com seus arquétipos
e as suas jornadas do herói. É que você organiza de acordo com a própria
história. Por isso que uma personagem, que já é um símbolo, você encontra
no próprio homem.
Você participa do casting?
Agora sim. Aqui no Brasil é tudo difícil, demora muito tempo. A produ-
ção de casting aqui no Brasil é muito ruim. As pessoas parecem que não leem
o roteiro. Não temos a tradição do casting norte-americano. E o meu trabalho
fica muito complicado quando há erro de casting. Então alguns diretores es-
tão começando a me chamar na fase de testes, antes da preparação. E assim
a gente já começa a preparação, não tem o problema de ter que mudar ator
durante o processo.
Como é preparar crianças?
Ah, dentro da criança existe alguém, então não precisa falar como se ela
fosse retardada. Eu odeio o jeito como falam com crianças, ou então quando
dão um doce para a criança fazer alguma coisa. A criança sabe a hora de
180
trabalhar e a de brincar. Às vezes eu perguntava se queriam ir ao banheiro,
e quando chegava a hora de rodar elas diziam que queriam. Porque criança
é cruel, elas sentem as nossas falhas, manipulam. Criança para mim é um
ser humanozinho, não tem esse negócio de “criancinha”. Trato com muito
carinho, mas com muita seriedade. A única coisa que eu faço diferente é que
eu ajoelho para poder falar com elas. Falo baixinho, converso na altura delas.
Eu não faço diferenciação. Se fizer diferença, eu me perco.
Você trabalha com uma carga horária grande de atividades?
Sim. Eu uso muito a bioenergética, que dá coragem. Porque não desce
nenhum espírito na gente. A gente tem que estar com o pés no chão e atingir
o céu. A bio dá essa coragem. Trabalho com a bio, trabalho com a Kundalini.
Só de aquecimento, para começar, que é um aquecimento físico-emocional,
são duas horas e pouco. Muita gente vomita, muita gente passa mal, porque
esses aquecimentos mexem muito com a pessoa. Então todos os dias eles
passam por isso. São exercícios físicos, emocionais, onde se coloca os pés plan-
tadinhos no chão, flexiona seus joelhos, solta a sua barriga, solta o seu ânus,
coloca o peso nas plantas dos pés. São vários exercícios nessa postura. Esses
exercícios físicos já trazem toda a relação e o emocional que a gente precisa.
Outro tipo de reação, que deve ser bastante comum, é quando as pessoas
reagem com ironia ou sarcasmo. Como é trabalhar o sarcasmo, às vezes
corporal, não dito?
Ah, eu odeio isso. Tem várias pessoas em que a gente percebe. Antigamente
eu ficava muito brava, hoje eu compreendo e dou um tempo, crio armadilhas
para cair. Cada caso é um caso, mas você vai criando isso, algumas armadilhas.
Você bota a pessoa em um exercício em que isso não é mais possível. Não
adianta, às vezes, falar. Você tem que criar exercícios para conduzir a pessoa
a ver o que ela está fazendo para impedir o processo de acontecer.
O que faz de um ator um ator?
Para mim é um compromisso não com ele só, mas com o lugar em que ele
vive, com a sociedade, com o que ele registra, com o que ele arquiva. É dar um
depoimento, alguém que precisa dar um depoimento através de um filme,
que não está lá por vaidade, que não está lá para fazer sucesso. Ator para mim
é aquele que está disposto a rever a própria vida todos os dias.
181
O que você acha que mudou nos atores desde que você começou até hoje?
Eu enxergo uma evolução, os atores estão menos formalizados. Eles es-
tão mais abertos a experiências, a conhecer novos caminhos. Eu sinto uma
diferença sim. Eu sentia um trabalho muito formalizado antigamente no
cinema. O ator presente, e não a pessoa. Eu acho que alguns atores hoje estão
conseguindo se desvencilhar desse papel de ator para ser uma pessoa durante
a vivência do filme. A pessoa que vive aquele momento.
É preciso uma formação específica para o ator?
Sempre que um ator faz teatro ele tem uma base maior para trabalhar. Eu
acho que todo ator deveria começar e nunca deixar de fazer teatro. Há várias
linguagens, eu acho que uma não anula a outra. Como o teatro dá para o ator
uma base muito boa, eu acredito que os atores devem começar por aí. É como
o cineasta, que deveria começar pelo curta, pelo documentário, que é uma
grande lição, em vez de investir já num primeiro longa-metragem de ficção.
Você trabalha com provocações do tipo “você não vai conseguir”?
Claro. Tem dias que eu encerro um ensaio assim: “Então tá, gente, se é
isso que vocês têm para me dar, obrigada.” No outro dia eu chego e está todo
mundo diferente. Eu me lembro do Babenco, aprendi isso com ele. Quando ele
quer provocar um ator, ele começa a elogiar a pessoa que está contracenando
com o ator. Porque aí a pessoa começa a achar que está péssima, já que não
está ganhando elogio. E aí ele está desestabilizando para chegar onde ele quer.
Às vezes eu mando o ator para casa por três dias. Eles enlouquecem pensando
que vou tirar eles do filme. Aí você lida com a vaidade, com o ego, você vai
quebrando essas coisas e vai trazendo a pessoa mais pura para trabalhar.
Fale sobre celebridades.
Ah, é uma bobagem tão grande. Eu acho uma pena, porque impede as
pessoas de crescerem. Tem muita gente que hoje vai para a minha escola
para fazer um filme e entrar na televisão, não vai para estudar. Não vai para
aprofundar, não vai para pesquisar. Essa coisa de celebridade tornou tudo
mais fácil, no sentido do carisma, da beleza. É só usar uma saia curta na escola
que amanhã vira atriz. É um desrespeito com o profissional, com quem bus-
ca, com quem investiga, com quem trabalha. Celebridade é um desrespeito.
183
O que é a Animaking?
Animaking é uma produtora de São Paulo que há dois anos e meio se
transferiu para Florianópolis. Ela trabalha quase que exclusivamente com
stop motion, que é uma técnica de animação, mas também faz trabalhos em
2D e 3D.
Stop motion é a técnica mais tradicional de animação?
É a mais romântica, vamos dizer. Hoje, há um resgate do stop motion, que é
uma técnica um pouco diferenciada, porque você trabalha com a tecnologia de
captação e com a delicadeza da produção dos bonecos, com o artesão que está
produzindo e com os animadores, que estão dando vida aos bonecos. Então,
você mistura tecnologia com um pouco de humanização. Trabalha com alta
tecnologia ao lado do artesanato. Isso é muito interessante. Estamos traba-
lhando com 24 frames por segundo, que é um padrão de captação de cinema.
Imagine que uma boneca tem que falar “Oi!” no filme. Você precisa fazer uma
foto da boneca parada, aí o animador vai articular a boca, você fará mais uma
foto, daí ele começará a articular a piscada de olho, você fará mais fotos, e assim
por diante. Com 24 quadros por segundo, o “Oi!”, que dá dois segundos, vai ser
feito em 48 quadros, o que dá, mais ou menos, um dia de trabalho.
PhillipeArruda
Produtor executivo da Animaking.
184
O custo do stop motion é maior que o de animação em digital?
É difícil dizer isso. Com stop motion, nós conseguimos animar com a mes-
ma qualidade que os Estados Unidos e a Europa. Quer dizer, nós trabalhamos
no mesmo padrão da Aardman, um dos maiores estúdios. A nossa qualidade
é melhor ou tão boa quanto a deles. Já a animação 3D está em um nível ab-
surdo fora do Brasil, não tem como competir. Por isso, e por ser o início da
Animaking, optamos por nos especializarmos em stop motion. Agora, o tempo
de produção é parecido nas duas técnicas. Vamos finalizar um filme agora,
que durou três anos de filmagem e finalização. Então são três anos, mais um
ano e meio de roteiro. Cinco anos até o lançamento. Esse também é o prazo,
mais ou menos, em que se faz um filme 3D. Quanto ao custo, conseguimos
fazer aqui no Brasil porque é um grupo que abraçou a ideia e está envolvido de
corpo e alma no projeto para poder viabilizá-lo. Estamos fazendo o primeiro
longa-metragem em stop motion da América Latina. Estamos gravando o filme
em inglês, com parceria de finalização com o Canadá, e com um lançamento
conjunto, na América Latina e no Canadá, além de estarmos negociando um
lançamento nos Estados Unidos. É um projeto com padrão internacional.
Captamos uma verba de R$ 10 milhões, que são, a grosso modo, US$ 5 mi-
lhões. Isso dá US$ 1 milhão por ano, o que é muito pouco. Um filme desses
na Inglaterra, ou na Espanha, que é uma grande produtora de stop motion,
custa de US$ 40 a 60 milhões. Nos Estados Unidos, um filme desse custa, no
mínimo, de US$ 80 a 100 milhões.
Nesse ressurgimento do cinema brasileiro, foi um processo demorado
conquistar o público, mostrar ao público que o filme nacional tem qua-
lidade e que vale a pena ir ao cinema assisti-lo. Com uma produção que
demora tanto tempo, como você disse, com um filme saindo a cada quatro
anos, como mostrar para os possíveis espectadores que o Brasil também
é competitivo em animação?
A Animaking, quando estava em São Paulo, produziu um filme de ani-
mação. O sonho deles sempre foi realizar um longa-metragem, só que eles
precisavam demonstrar sua capacidade para os investidores. Então, há
dez anos, eles fizeram o primeiro curta-metragem, de 15 minutos, que é o
Minhocas, já pensando no longa. Esse curta foi premiado no Brasil e fora, o
que abriu as portas, deu visibilidade, e mostrou que tem uma produtora no
Brasil que é capaz de fazer um bom filme de stop motion. Daí partiu-se para
185
o projeto do longa-metragem. O mais difícil foi começar o filme, porque não
tínhamos mão de obra especializada. Então tivemos que qualificar essa mão
de obra para poder fazer. A parte cenotécnica foi toda desenvolvida fora do
país. Não tínhamos condições de comprar equipamentos de captação, de
motion control. Só o motion control custa US$ 500 mil. Então fizemos parceria
com uma universidade e desenvolvemos um motion control aqui no Brasil.
Agora podemos fazer stop motion com movimento de câmera, através de
um equipamento desenvolvido lá em Santa Catarina, ou seja, tivemos que
montar toda a estrutura, todo o equipamento. Para o Minhocas 2, já temos o
roteiro e a equipe já está montada, para não perder exatamente a questão da
continuidade, de que você falou, para não correr o risco de criar um público
e depois perdê-lo. Então, a nossa ideia é justamente finalizar o Minhocas,
descansar por dois ou três meses, e já iniciar o Minhocas 2.
O fato do Carlos Saldanha estar fazendo o desenho animado Rio e do
Brasil estar entrando nesse circuito pode repercutir no trabalho de
vocês?
Acho que sim. Nós estamos começando a ter uma credibilidade, a apresen-
tar um bom produto, e o Brasil se encontra com muita visibilidade no exterior.
Há dez anos o cinema brasileiro ainda estava desacreditado. Hoje já usamos
a mesma tecnologia, os mesmos equipamentos que outros países, o que foi
um facilitador. Nosso cinema também amadureceu bastante, paramos um
pouco de copiar e começamos a fazer aquilo que a gente entende, falar sobre
a nossa história, sobre o nosso cotidiano, que é uma coisa que a Argentina
já faz há muito tempo. É um grande momento, que precisa ser aproveitado.
A Animaking faz parcerias com outras produtoras?
Estamos trabalhando com um produtor americano, com a intenção de
vender a Animaking nos Estados Unidos, fazer coparticipações em produ-
ções, como já acontece aqui, em 3D, e em outros tipos de produções. Somos
terceirizados para fazer parte da produção de filmes americanos, o que nos
ajuda a formar um polo de produção. A Animaking foi para Florianópolis
porque lá existe o Sapiens Parque, uma parceria do governo do estado com
a iniciativa privada, que tem uma área grande, de três milhões de metros
quadrados no norte da ilha, onde está sendo desenvolvido um centro de
tecnologia. Estão sediadas lá várias empresas de jogos eletrônicos, da área
186
de saúde, biotecnologia, prospecção de petróleo. A Petrobras também está
desenvolvendo lá um centro de pesquisa. E existe o projeto de montar um
polo de cinema, de produção, nesse mesmo lugar. Então desenvolvemos
parcerias com as empresas de lá para lançar jogos eletrônicos, conteúdo
para internet e toda a parte de merchandising de produtos para o filme que
estamos fazendo. Estamos tentando colocar nas entradas e saídas do cinema
mesas de jogos eletrônicos, o que é uma coisa inédita no Brasil. É importante
para colocar o público para interagir com o filme. É todo um novo mercado
que antigamente não existia. Antes era só fazer o filme, lançar no cinema e
acabou. Hoje, existe uma rede de produtos.
A China está importando muitos profissionais de excelência na área de
desenho animado, para criar um grande polo de produção lá. Como se
proteger disso e não ficar apenas qualificando mão de obra para expor-
tação, como acontece no futebol? Como estimular a formação de um
polo aqui no Brasil?
Já estamos caminhando para isso. Florianópolis já está plantando a se-
mentinha do polo de cinema. Há vinte anos entrei na universidade para fazer
comunicação e jornalismo, não havia a possibilidade de pensar em viver tra-
balhando com cinema. Só no Rio e em São Paulo que existia curso de cinema,
então não tinha possibilidade de fazer. Hoje, existem duas universidades de
cinema em Florianópolis, e várias de comunicação, entre federal e particu-
lares. Isso numa cidade de quatrocentos mil habitantes, que é o tamanho do
bairro de Pinheiros, em São Paulo. Sem contar o polo de informática, que está
sendo desenvolvido há mais de vinte anos, é pioneiro, e já virou um centro
de excelência. Hoje, trabalhamos com dez produtoras de set, cada animador
tem uma para auxiliar a produção, e todas elas são formadas em cinema.
Um novo mercado começa a surgir. Um dos motivos da Animaking ter ido
para lá é para poder produzir sem a influência de uma grande cidade, com
mais calma, com as parcerias necessárias. E não tem mais aquelas barreiras
que tinha há vinte anos. A distância não é mais barreira, a comunicação e a
informação também não. Não importa onde você esteja, desde que tenha
uma estrutura mínima em volta para desenvolver isso.
A Animaking está conseguindo fazer o filme com R$ 10 milhões porque o
pessoal abraçou o projeto, portanto há algo de voluntário no trabalho,
187
há algo de entrega. Como profissionalizar isso para que os profissionais
criem carreiras?
Todos que estão trabalhando lá estão recebendo um salário de mercado.
Não é o que se queria pagar, mas ninguém é voluntário. Todo mundo está
vendo que o projeto é único e fazer parte dele é uma grande oportunidade,
mas está todo mundo vivendo do cinema. Hoje a equipe está em torno de
quarenta pessoas fixas, são famílias vivendo do cinema, dignamente. Lógico
que poderia ser bem melhor, todo mundo quer ganhar mais dinheiro, mas
esse é um momento do projeto ser abraçado. O primeiro filme tem um peso
maior, é desbravador. E já foi um diferencial conseguir essa verba no Brasil.
Realmente, há uma mobilização grande, há um envolvimento, e há uma crença
de todo mundo de que o projeto é muito bom.
Como você entrou nesse projeto?
Eu caí de paraquedas. Os diretores do filme não tinham fotógrafo, até
que chegaram ao meu nome. Eu participo do filme desde o início. Fiz uma
reunião, numa salinha, com os dois diretores e um pré-produtor, e eles não
sabiam valores, não sabiam nada. Eu saí da reunião e falei: “Estou dentro
do projeto, não sei como que vai ser, não sei quanto eu vou ganhar, não sei
como a gente vai desenvolver isso, mas eu estou no projeto.” A partir daí,
começamos um trabalho penoso, porque não tínhamos informação técni-
ca, não tínhamos conhecimento da captação. O maior problema do stop
motion é que você não pode ter variação de luz nenhuma. Para fazer um
segundo, você leva às vezes três, quatro horas. Então, a luz do início até o
final daquele segundo tem que ser a mesma, é uma luz contínua, sem inter-
ferência. Trabalhamos com vários equipamentos que não davam certo, até
que chegamos a um ponto que deu certo. Apanhamos muito tecnicamente
para desenvolver todas as técnicas necessárias. Estamos competindo com
as grandes companhias que existem no mundo, então tivemos que desen-
volver tudo para chegar lá, e conseguimos. Agora, para fazer o Minhocas
2, é um passo, a estrutura já está toda montada, temos o conhecimento, a
formação, a mão de obra, o processo já está fluindo naturalmente. É muito
mais fácil continuar.
E como fazer o roteiro? A criação de uma narrativa de desenho animado
com a dicção brasileira?
188
A versão original do Minhocas é em inglês, e ele vai ser dublado para o
português, porque a nossa ideia é mercado internacional. O roteiro básico
foi desenvolvido pelo Arthur Nunes e pelo Paolo Conti, e então aconteceu
uma parceria com um roteirista do Canadá, para ter uma visão mais global,
para que todas as pessoas pudessem se identificar. Mas o filme tem um sen-
timento, uma maneira de produzir que é brasileira. Toda hora adaptamos um
pouquinho o roteiro, não existe aquela rigidez europeia, onde não se mexe
no roteiro. É um filme brasileiro, mas a história é universal, porque existe
essa preocupação de fazer um filme que tenha aceitação no mundo inteiro.
E os dubladores, quem são?
A primeira coisa que se faz no stop motion é gravar as vozes. A locução tem
que estar inteirinha pronta, com a interpretação, com atores, como se fosse
a versão final, porque o animador trabalha o boneco em cima do som. Essa
parte foi gravada em um estúdio no Rio de Janeiro, com crianças e atores
norte-americanos, e atores brasileiros que têm domínio total do inglês. Se
conseguirmos mais um apoio, mais uma verba, vamos colocar vozes famosas,
atores conhecidos para fazer a dublagem. A gente ainda não chegou nessa
etapa.
Por que essa estratégia? É para conquistar o mercado brasileiro tam-
bém, demonstrar uma qualidade, uma capacidade? É por uma questão de
mercado, pela questão financeira?
Essencialmente, a tomada de decisão foi fazer um filme que tenha renta-
bilidade, que possa ser visto. Temos condições de fazer benfeito, tanto quanto
os ingleses, os norte-americanos, e acreditando nisso aí, queremos conquistar
um mercado financeiro para viabilizar o filme, porque a produção não é ba-
rata. No segundo filme, devemos ter quatro, cinco vezes o valor de produção.
E, para conseguir isso, só tendo uma parceria com o mercado internacional.
Porque se o filme ficar só no Brasil, não conseguiríamos viabilizar isso de
jeito nenhum.
É possível conseguir uma parte do recurso? Vocês contam com o filme?
A gente conta com a bilheteria que vai entrar, e o valor vai voltar. A Ani-
making, hoje, detém 50% do filme, então é uma coisa que dá uma certa
tranquilidade para a produção. É muito difícil acontecer isso no mercado
189
internacional. Normalmente, fazem-se vários lotes de ações do filme, e são
vendidos para produtores, que acabam dominando o filme. A Animaking
ainda tem esse controle, justamente para poder pensar em fazer o próximo
filme. E estamos investindo, é uma bolsa de valores. Qualquer analista da
bolsa aconselha não tirar o dinheiro por cinco anos, para não perder. A gente
está há cinco anos produzindo o Minhocas, é a nossa bolsa de valores. É um
investimento para poder fazer Minhocas 2, e aí conseguir uma estabilidade
e continuar no projeto, continuar em animação.
E sobre a venda de DVD no Brasil, vocês pensam na possibilidade de ter
um retorno nesse lado?
DVD é uma grande incógnita hoje, porque o mercado pirata domina, não
temos uma estratégia quanto a isso. Provavelmente, não vai ser uma fonte de
renda, de retorno. Os piratas conseguem colocar os filmes a venda antes da
estreia oficial, vendendo a R$ 2,00, R$ 3,00. Então é difícil competir.
E a parceria com a televisão? A produção brasileira até hoje não conse-
guiu uma penetração muito forte na TV aberta.
Nós temos parceria com a Globo Filmes e com a Fox. Isso já está fechado
no projeto e é também um diferencial. Após o lançamento e os prazos normais
de cinema, o filme entrará na televisão, com a distribuição da Globo.
Vocês pensam em criar produtos relacionados ao filme, jogos, brinque-
dos, como forma de ajudar a recuperação do investimento?
Eu estava lendo um dado do cinema norte-americano, que diz que a venda
de pipoca representa 50% do faturamento! Então, é um produtozinho agre-
gado que a gente esquece. Hoje, a McDonald’s é uma das maiores fábricas
de brinquedos do mundo, porque eles fazem promoção casada para criança.
Compra um hambúrguer e leva um brinquedinho. E eles fazem parcerias com
os filmes. A gente já tem contato com uma grande cadeia americana para
desenvolvimento desses bonecos, estamos em fase de negociação. Se você
consegue fechar uma parceria com uma empresa dessa, o filme é sucesso.
A venda dos games dos filmes chega a ser maior que a bilheteria do filme. O
filme entra como o carro-chefe, como o principal, mas você tem que seguir
com esse mercado paralelo de negócios. Isso é uma novidade que o Brasil
precisa aprender a trabalhar.
191
Game é software?
Isso é a mesma coisa que perguntar se poesia é papel. Software é o supor-
te. É um suporte importante, porque permite interatividade. Mas quando
fazemos um jogo para os consoles de última geração, como Playstation 3, ou
Xbox 360, temos de dez a doze artistas por programador. Temos muito mais
conteúdo, porque jogo é conteúdo. O software está ali para dar o suporte. Não
se pode confundir a mídia com o conteúdo.
A arte do game passa não só pela parte gráfica, mas pela questão da
narrativa, da música, do argumento. Como esse processo é elaborado?
No processo de desenvolvimento de jogos, tem a primeira etapa, que
chamamos de game design, que é justamente o conceito do jogo. Nessa fase
definimos sobre o que será o jogo, quais personagens farão parte desse jogo
e o que vamos fazer com esses personagens. Aí se pensa a narrativa: Terá qual
estilo? É um RPG? É um jogo de tiro, que a gente chama de FPS? Eventualmente,
fazemos alguns protótipos para testar o argumento. Essa parte é concebida
pelo o que a gente chama de game designer, que é a pessoa que faz toda essa
narrativa. Uma vez que o conceito do jogo está pronto, aí passamos para
outra fase. A partir daí o trabalho é dividido em duas pernas: a computação,
GeberRamalho
Membro do Porto Digital e professor de Entretenimento Digital da UFPE.
192
que é onde se faz a arquitetura do software, que define tudo o que precisa
ser feito desde o suporte até a implementação, e a arte, que chamamos de
arte conceitual. É ali que se definem as características dos personagens, dos
ambientes etc. Existe todo um conjunto de decisões sobre a arte, que funciona
meio como uma direção de arte. É preciso definir se o personagem será mais
cartunesco ou realístico, e uma série de outras questões. É um trabalho que
envolve diversos artistas. Alguns cuidam somente do ambiente. Se o jogo é
ambientado em um restaurante, é preciso desenhar todos os móveis, o que
mexe com arquitetura. Também é preciso definir as roupas dos personagens,
e é um trabalho que tem a ver com design de moda. E isso é uma coisa inte-
ressante. O que eu acho mais fascinante da área de games – e, certamente,
foi isso que me atraiu, porque eu sempre vivi com um pé na arte e um pé na
tecnologia – é que é uma área que envolve muitos conhecimentos. É um tra-
balho nitidamente multidisciplinar. Envolve conhecimento de narrativa, de
literatura, de história, de arte, de desenho, da parte gráfica e também musical,
de ambientação sonora, de trilha sonora. Tem que desenhar personagem,
desenhar ambiente, desenhar roupa. E o software é a mesma coisa: tem que
ter gente que entenda de engenharia de software, mas também que entenda
de inteligência artificial, que é a minha área de formação.
Qual a função da inteligência artificial nos games?
Nós trabalhamos com os bonecos, que chamamos de NPCs, os Non
Players Characters. Personagens que são guiados pelo computador. Eles têm
que ter autonomia para tomar decisões, fazer coisas que sejam plausíveis.
Mas para fazer isso também temos que ter conhecimento de redes, porque
são muitos jogadores. Existe um monte de problemas técnicos pra resolver.
Todas as áreas da computação estão envolvidas nesse trabalho, assim como
todas as áreas de produção de conteúdo. É uma mídia que demanda muitos
conhecimentos. Produzir um jogo como o Halo 3 que custou US$ 60 milhões,
é como produzir um filme.
O que é o Porto Digital?
O Porto Digital é um parque tecnológico, que chamamos de cluster. É um
arranjo produtivo local. É um espaço onde existe um conjunto de empre-
sas que atuam na área de Tecnologia de Informação e Comunicação Essa
empresas compartilham um território, o que dar maior visibilidade a elas
193
e aumenta a interação entre elas. Hoje, é a referência brasileira na área de
parque tecnológico e de Tecnologia de Informação e Comunicação. Eu sou
conselheiro do Porto Digital. O Porto começou pela constatação do sucesso
de algumas iniciativas em vários lugares do mundo. Entre elas, a do Vale do
Silício. As pessoas começarem a entender que existe todo um trabalho de Eco-
nomia e Administração nessa área. Michael Porter e outros mostraram como
é importante que as pessoas fiquem próximas fisicamente, quando existe
uma determinada cadeia produtiva. Isso gera sinergia, e também gera uma
competição mais saudável. Então, a ideia do cluster já existia, não nasceu aqui.
E a necessidade que tínhamos de estruturar essa questão digital em Recife se
casou com a necessidade que o secretário de Ciência e Tecnologia, Cláudio
Marinho, tinha de repovoar o bairro do Recife, que é o centro da cidade, na
zona portuária. Com a construção do novo porto do sul, Suape, o bairro ficou
meio entregue à zona de prostituição, era um lugar onde ninguém queria ir. O
Cláudio Marinho é um cara que tem o olhar muito atento à nova economia, e
resolveu criar um espaço lá. Isso ao mesmo tempo resolveu parte do proble-
ma urbano de Recife e criou um espaço para as empresas. Isso aconteceu há
pouco mais de dez anos, por iniciativa e apoio direto do governo do estado,
que com a venda da Companhia de Energia Elétrica de Pernambuco investiu
no projeto. E o Porto Digital tem dois monitores principais: Cláudio Marinho,
através do governo, e Sílvio Meira, pelo lado da universidade.
O que é o C.E.S.A.R.?
O C.E.S.A.R. também nasceu no centro de informática, com a ideia de
fazer uma ponte entre a academia e o mercado. O C.E.S.A.R. nos ajudou a
resolver um problema que enfrentávamos em Pernambuco: nós formávamos
os alunos com tecnologias que o mercado local precisava pouco. Então, 70%
dos alunos formados iam trabalhar fora. E com o C.E.S.A.R. conseguimos
inverter a equação. A ideia era sair dos limites dos muros da universidade, e
fazer uma intervenção no mercado, criando uma entidade que não só faria a
ponte como incubaria novas empresas. E que disseminaria uma necessidade
de uma nova qualificação profissional, novas tecnologias.
Qual o aspecto educacional do game, do jogo?
Todo jogo é educacional. Todo jogo ensina alguma coisa. Um jogo de estra-
tégia em tempo real obriga o jogador a fazer cálculos para gerir quantidades.
194
Mas não só é isso, e aí é que está o mais interessante, você tem um conjunto
de decisões a serem tomadas. Chamo isso de extracurricular. O extracurricular
de um jogo é um negócio incrível. As decisões multicritério, por exemplo: na
vida, as decisões complexas são as decisões multicritério. O que é isso? É a
decisão que não é óbvia. Quando se vai comprar um carro, é preciso pensar
no custo, na segurança, na beleza. Há tem um conjunto de critérios que é
preciso balancear na hora de decidir comprar um carro. Tem o lado bom
e o lado ruim, é um risco. Em um jogo, você aprende isso. Você aprende
metacognição, que é a capacidade de ter um conhecimento sobre o seu
conhecimento. Muitos dos problemas que temos existem porque as pessoas
acham que sabem alguma coisa, partem para fazê-la e dá errado. Ou seja,
você precisa saber o que você é capaz de fazer. Isso tudo tem resultado com
os jogos. Está provado que o pessoal que joga tem mais atenção, tem mais
metacognição, tem uma capacidade maior de tomar de decisões. É fantástico
saber trabalhar a decisão estratégica, esse equilíbrio entre qual é o meu ob-
jetivo a longo prazo e o que é que eu tenho que fazer de imediato para gerir
a demanda mais urgente.
Sem falar de qualquer conteúdo educacional, que, claro, pode ser co-
locado dentro do jogo...
A gente tem uma iniciativa inovadora lá em Pernambuco, e agora também
no Rio de Janeiro, que são as Olimpíadas dos Jogos em Educação, que foi
criada para quebrar o hiato entre a lan house e a escola. Na briga da lan house
com a escola, a lan house vence, porque é muito mais interessante do que a
escola. A escola é chatérrima, para dizer a verdade. E os jogos educacionais
também tendem a ser, porque têm o objetivo explícito de educar, e terminam
não tendo o componente sedutor do jogo. O desafio lançado pela Secretaria
de Educação de Pernambuco, foi: “Vamos fazer uma iniciativa que quebre
esse hiato entre a lan house e a escola.” E bolamos um conjunto de jogos,
todos amarrados por um jogo maior, que é uma espécie de RPG, onde tem
um personagem que evolui através de uma série de pequenos desafios. Esses
desafios são compostos por enigmas que fazem referência direta a assuntos
que os alunos estão estudando. Assim, nesses jogos, há uma aprendizagem
colateral e sedutora. O objetivo é divertir; e para divertir, o meio é o conheci-
mento. O conhecimento é o meio, e não o fim. Essa mudança de perspectiva
permite que se tenha, ao mesmo tempo, um jogo gostoso, interessante de se
195
jogar, e que tem uma ligação com o conhecimento. Então, resumidamente,
qualquer que seja o conteúdo de um jogo, ele educa, ele ensina coisas. Além
disso, ele pode ter uma conexão mais explícita com alguns conteúdos didá-
ticos, sem problema nenhum, isso é uma tendência. Outro exemplo disso
são os chamados “jogos sérios”, serious games, que são jogos usados como
simuladores. Hoje, nenhum piloto de avião vai pilotar uma aeronave sem antes
ter passado horas no simulador. A mesma coisa está começando a acontecer
com a gestão de empresa. O estudante pode estudar sobre Administração, e
todas as teorias de Administração, mas quando ele estiver em uma empresa,
de verdade, verá que é um problema diferente. Isso poderia ser adequado, por
exemplo, para produção cultural. Pode-se imaginar um jogo onde se produz
um filme, com todas as dificuldades desse tipo de tarefa.
Desde o Atari, as mães reclamam da violência do game. Como você vê isso?
O game é uma mídia como qualquer outra. Sempre quando as pessoas
falam sobre esse tema, eu digo: “Você deixa seu filho navegar em qualquer
site na internet? Você deixa seu filho ver qualquer filme? Bom, se você deixa,
então, deixa seu filho jogar qualquer coisa.” É preciso ter algum nível de
controle sobre o que é adequado ou não a uma criança ou um adolescente,
seja lá qual for a mídia.
O que é o Museu do Futuro Imaginário?
Havia um ex-reitor da Universidade Federal de Pernambuco que dizia
que teria saudade do que não iria ver. Essa provocação nos levou a juntar
um grupo de profissionais de games, de cinema e outras áreas, para fazer
um museu que trabalhasse com o lúdico. O lúdico tem o poder avassalador
de mudar comportamentos. Em muitas intervenções que são feitas hoje,
nos museu em particular, se gasta muito dinheiro para construir o acervo,
conservá-lo, e o pessoal de escola vai e depois não volta. Então, é muito va-
zio. E aí entra a área dos games, porque ela é uma escola de atratividade. O
game está sempre preocupado com o usuário. A grande diferença do game
é que você não é obrigado a jogar. Você só faz se aquilo lhe acrescentar em
algo. Então os games ensinam muito sobre atratividade, sobre a satisfação
do usuário, e podem ser usados para fidelizar o público de instituições como
museus. Então, pegamos esse problema dos museus, que não eram visitados
pela segunda vez, e pensamos em trabalhar nele a partir das características
196
de um game. No game, há um conceito que é o replay value, a repetitividade.
Que são os mecanismos para fazer que o jogador volte ao jogo mesmo de-
pois de tê-lo acabado. E por que ele volta? Porque chegou a um outro nível
de desafio, desbloqueou uma nova fase, pode fazer algo diferente. Então,
foi criado um conjunto de mecanismos, em game, de design e de narrativa,
para interessar a repetitividade do jogador. O que fizemos foi traduzir isso
para um museu, através de diversas aplicações. Por exemplo, os “objetos se-
cretos”, em que você pega uma câmera de celular e escrutina um ambiente,
e assim pode encontrar certos objetos que não podem ser vistos a olho nu,
porque estão superpostos. Isso é o que chamamos de realidade aumentada.
Você pode capturar esses objetos, colecionar esses objetos, e trocar por itens
interessantes, que você vai dar para o seu avatar. Essa foi uma das ideias: cada
um pode ter uma conta no museu, e um personagem, que nós chamamos de
avatar. Cada vez que se volta ao museu, o avatar pode evoluir, adquirir mais
coisas, ver espaços diferentes. E há uma rede social para trocar as coisas que
você conseguiu no museu. Isso é interessante, porque transforma o museu
num jogo dentro de um espaço físico.
O André Lemos diz que por um período o avatar foi o grande ponto do
mundo virtual, foi a grande questão, o ir ao mundo virtual. E agora, o
mundo virtual voltou para o atual...
Eu estava conversando com o secretário de Ciência e Tecnologia de Reci-
fe, e ele estava falando sobre o museu virtual, e eu disse: “Não faça o museu
virtual, é sem graça. Você vai navegar no museu por cinco minutos, depois
vai arranjar outra coisa para fazer. Você tem que trazer a realidade aumen-
tada, e não mais o virtual, para um lugar de interação.” Nossas instalações
são 100% interativas. É importante criar brincadeiras físicas e colaborativas
onde as pessoas interagem com o ambiente. A gente tem um projeto que
foi aprovado pelo CNPq, que é o Micromuseu. Micromuseu é um museu de
rodapé: colocamos pequenas tags – como se fossem códigos de barra – nos
rodapés, e é possível dirigir um robô, seja por computador, seja fisicamente
no museu, com uma câmera que, quando lê aquele código, acessa conteúdos.
Esse conteúdo pode ser um filme, uma música, um quadro, uma experiência
física. E a pessoa pode estar de fora do museu. Uma das coisas que pensamos
é que é preciso acabar com a fronteira física do museu. A pessoa pode interagir
de fora do museu com o conteúdo de dentro.
197
Depois da campanha do Obama, com toda a questão do uso da Internet,
você vê a chegada dos games nas campanhas políticas?
Nas campanhas políticas... Isso é uma boa provocação. É um mercado
muito interessante. Eu conheço iniciativas de jogos sérios e jogos de estraté-
gia que falam de política, de diplomacia, de coisas do gênero, mas nunca vi
um jogo em que, ao jogar, se pudesse entender mais sobre as propostas de
um político. Para algumas empresas, eu acho que isso é um mercado, é um
filão fantástico. De fato, existe uma categoria de jogos chamada advergames...
O que é isso?
Existem diferentes categorias de jogos. Uma delas são os jogos de publi-
cidade: advertisement; é a fusão entre advertisement e games. A Jynx hoje é a
referência do Brasil nessa área de jogos para publicidade. Hoje é possível lançar
um game junto com o produto de uma empresa, como forma de divulgá-lo.
Além de poder ter inserções publicitárias em jogos. Mas isso é o mais óbvio.
O que tem acontecido é que hoje a vida, inclusive do publicitário, ficou mais
complexa, uma campanha publicitária tem que cobrir uma mídia muito maior.
Uma questão: é possível pensar em dicções locais, para videogame? Dá
para reconhecer se um game é brasileiro?
Eu diria que o Brasil tem uma competência acumulada relevante. Quarenta
e seis por cento do que se produz de game, no Brasil, é exportado. Tem poucos
setores industriais com esse nível de exportação. Não estamos em todas as
áreas, temos grande dificuldade de entrar nas áreas de console, existem mil
problemas. Eu diria que em termos de mercado, não tem uma linguagem
brasileira, não há uma escola, uma coisa que você reconheça como game
brasileiro. Isso não tem ainda. Eu não sei se tem uma escola francesa, uma
escola norte-americana. Os japoneses têm, mas mesmo lá existe um monte
de games que você seria incapaz de dizer que é japonês, porque a linguagem
é muito universal. O Brasil está crescendo, inclusive em termos de políticas de
incentivo. Eu sei que tem uma política sendo gestada, dentro do Ministério da
Cultura, para conteúdos digitais, que inclui games. Isso é muito importante,
poderá fazer uma diferença, inclusive porque fomentará o diálogo de games
com cinema, com animação, com música e todas as áreas da cultura. A gente
tem explorado muito pouco a crossmedia. E falando em termos de mercado,
mas também em termos de arte, as possibilidades são enormes.
199
Como surgiu o seu interesse por restauração?
Eu sempre me interessei por arte. Primeiro, de forma teórica, estudando
bastante a história da arte, e depois me interessando pela pintura. Eu sempre
soube que eu não seria uma artista. Então, quando apareceu o primeiro curso
de restauração em São Paulo, eu falei: “Bom, acho que isso vai dar certo.” Foi
um horror, porque o curso era direcionado para pessoas que já exerciam a
profissão, mas não tinham a formação. Eu insisti bastante e acabei sendo
aceita, mesmo sendo um peixe fora d’água. Eu nunca tinha visto pigmento
na minha vida, nunca tinha segurado pincéis com destreza. Eu me sentia
tão pequena perto dos outros que tinham alguma desenvoltura no assunto.
Empenhei-me muito para poder acompanhar. E daí falei: “É isso o que eu
quero, é disso que eu gosto.” E procurei me especializar cada vez mais.
O conhecimento teórico ajudou no processo?
Ajudou muito. Eu me formei em história e fui professora. Sempre me
interessei por história da arte. E uma equipe completa de restauração inclui
sempre um historiador, um biólogo, um químico, profissionais de diferentes
especialidades, que contribuem para que o trabalho se desenvolva. É um
trabalho multidisciplinar.
FlorenceWhite
Restauradora de obras de arte.
200
Qual a diferença entre conservação e restauração?
A conservação, que chamamos de conservação preventiva, é o conjunto
de medidas que tomamos com relação ao ambiente, não pensando em uma
obra, mas em uma coleção, ou em uma casa com muitas obras de arte. São
medidas ambientais para que as obras não sofram danos. A restauração é
uma intervenção na matéria de uma obra danificada. Existe um princípio:
conservar para não restaurar. A conservação é sempre menos invasiva. Por
exemplo, se uma obra foi danificada por um ataque de cupim no chassi – que
é a madeira que sustenta a tela –, se há troca do chassi, isso é um trabalho de
conservação preventiva; não está agindo na pintura.
Quais os tipos e formas de restauração que existem?
São várias áreas, porque inclui a formação específica do profissional e
também os equipamentos que ele utiliza para fazer restauração. No meu caso,
quando eu trabalhava no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, era
restauradora de pinturas e esculturas. É bem amplo. Esculturas podem abran-
ger diferentes suportes. No meu ateliê, trabalhamos com obras de arte sobre
papel, imaginária sacra e pinturas sobre diferentes suportes, mas existem
especialistas em pedras, metais, vidros, acrílicos, porcelanas, restauradores
de arquitetura, do patrimônio imóvel – no meu caso é patrimônio móvel –,
especialistas de mobiliário. São diferentes especialidades.
Qual foi o cenário de restauração no Brasil que você encontrou?
Quando comecei, há 25 anos, não havia cursos de formação. Existia apenas
o curso de especialização do Centro de Estudos de Conservação e Restauro, o
CECOR, ligado à Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte.
Hoje já tem graduação lá.
O mercado de trabalho de restauração existia, havia uma grande demanda.
Tinha muitas pessoas exercendo a profissão ou por ter aprendido com alguém
ou por exercer a profissão de artista, mas eram pessoas sem formação na área.
Tinha pouquíssimos profissionais trabalhando com formação específica. O
entorno também não era especializado. Na época, havia uma única empresa
privada que transportava obras de arte. Muitas obras precisavam ser restaura-
das porque tinham sido transportadas em um caminhão de mudanças junto
com objetos comuns. As obras sofriam danos com muita frequência, por serem
frágeis. Hoje já existem empresas especializadas no transporte de obras de arte.
201
Fale do equipamento necessário num ateliê de restauração.
São muitos os equipamentos importantes no ateliê. A mesa térmica, por
exemplo: é uma chapa de alumínio com resistências embaixo, que usamos por
exemplo para acrescentar uma outra tela numa pintura, para que a original
tenha maior sustentação, ou para planificar uma obra que ficou abaulada ou
torta por algum motivo. A luz ultravioleta é outro equipamento importante.
É a luz com a qual você consegue identificar repinturas antigas, porque às
vezes é dito que uma obra nunca foi mexida, mas sob a luz ultravioleta você
identifica com perfeição as áreas não originais. Isso é feito nos grandes centros,
os grandes leiloeiros do mundo fazem. A restauração não tem por objetivo
esconder o seu trabalho, mas é bom que se saiba que ele é perfeitamente
identificável em qualquer situação onde existam ferramentas específicas para
isso. Não adianta eu chegar e dizer que “Esta obra é absolutamente original”,
porque se alguém puser sob a luz ultravioleta vai saber que houve intervenção
anterior. Ou a assinatura, que sofreu intervenção, ou verniz muito oxidado;
essas luzes ajudam a identificar. Temos vários outros recursos, mas esses são
absolutamente imprescindíveis.
A restauração ainda não é uma profissão reconhecida? Tem um projeto
de lei que regulamenta e reconhece a existência de restauradores cul-
turais. Como é a luta pelo reconhecimento?
A nossa profissão ainda não é reconhecida. Houve, há uns sete ou oito
anos, um encontro no Ministério do Trabalho, e nesse encontro havia uns
livros que relacionavam todas as profissões no Brasil. A nossa entrava junto
com pedreiro e pintor de parede, ou seja, os profissionais que exerciam a
nossa profissão estavam entre os que reformavam casas, prédios e coisas
desse tipo. Quando fui abrir minha empresa, em 1997, não havia como abrir
empresa de restauração de obras de arte. Então consta no documento inicial
da minha empresa que “conserta geladeira, fogões, quadros” e coisas desse
gênero. [risos] Essa falta de regulamentação causou muitos problemas, porque
pessoas bem-intencionadas, mas sem estudo, sem conhecimento, podem
trabalhar na área. Hoje o número de profissionais está crescendo, e já existe
uma conscientização maior do profissional e do entorno. Artista plástico não
é necessariamente restaurador. Restaurador não é necessariamente artista
plástico. Pode até acontecer, mas não é o comum. O restaurador não cria,
trabalha em cima da obra que alguém criou. E o artista que usa o seu material
202
para fazer pintura não restaura, porque os nossos materiais são diferentes.
Eu não trabalho com os mesmos materiais com que trabalham os artistas.
A entrada do Brasil no mercado tradicional de arte levou a uma maior
cobrança do restauro no Brasil?
O mercado está mais exigente e cuidadoso. Tudo isso valorizou mais a pro-
fissão, as pessoas passaram a procurar profissionais com mais especialização,
a cuidar melhor de suas obras. A obra de arte é um patrimônio seguro e firme.
Quando o restaurador trabalha em instituições ele recebe por insalu-
bridade. Quais são os riscos da profissão?
Nós trabalhamos com produtos químicos agressivos. Existe uma série de
recomendações para o profissional. O restaurador precisa usar equipamen-
tos que o ajudem, e não somente a força física. Existem os produtos que ele
usa e a exposição a que ele se submete. Então, existem produtos que emitem
vapores que podem danificar a visão, os solventes com os quais trabalhamos,
muitos deles têm absorção cutânea, são difíceis de serem expelidos. Você tem
que tomar cuidado para se proteger. Nós cuidamos muito disso e cuidamos
de transmitir os ensinamentos para aqueles que estão de alguma forma tra-
balhando no ambiente de restauração.
Quais os desafios oferecidos pelos novos suportes da arte contempo-
rânea?
Quando se trabalha com uma obra clássica, ou seja, uma tela com base de
preparação, tinta óleo e um verniz, já se sabe, apesar de existirem variantes,
o que está ali e já existe estudo, bibliografia para se ter informações. Sabe-se
perfeitamente com o que se está mexendo. Quais os riscos, cuidados, o que
pode e o que não pode fazer. Agora, a obra contemporânea pode ser de qual-
quer material: cera de abelha, tintas das mais possíveis e impossíveis, spray,
bombril, chocolate. É uma coisa sempre cheia de surpresas, porque qualquer
material é usado como experiência, o artista quer ver o resultado estético de
aplicar aquilo e não pensa na durabilidade e na conservação.
Como conservar no clima tropical, que é quente e úmido?
A bibliografia especializada sobre conservação preventiva e restauração
foi elaborada no hemisfério norte, onde estão os grandes centros de restau-
203
ração. Então eles levam em consideração todo o ambiente deles, que não
corresponde ao nosso. Nós temos aqui todos os fatores de deterioração de
uma obra de arte e muito intensamente. A luminosidade solar danifica muito
a obra de arte, e o nosso sol é extremamente luminoso, com muita irradiação
ultravioleta. Os insetos que proliferam, os fungos, xilófagos, cupins, traças,
baratas, ratos. Tudo que pode atacar e destruir uma obra nós temos em grande
quantidade, inclusive, em função do clima.
O Brasil é conhecido pelo fato de as instituições terem uma má clima-
tização e má conservação. Isso está mudando?
Sem dúvida. Estão cuidando melhor da reserva técnica, se preocupando
mais com essa parte do trabalho. Em termos de equipamento, reservas técni-
cas climatizadas e adequadas, melhorou muitíssimo, inclusive no manuseio
das obras, no envio para o exterior. Diminuiu a imagem internacional de ser-
mos relapsos com o nosso patrimônio, mas ainda falta muito. Falta dinheiro,
é preciso investir mais nesse trabalho.
Como criar uma bibliografia brasileira de conservação?
Nós já temos, agora, muito trabalho publicado que diz respeito ao Brasil.
Nós temos muitos restauradores. O restaurador, na verdade, tem que ter
conhecimento teórico e prático de sua profissão. Então existem aqueles que
mais pesquisam do que põem a mão. Já existe uma bibliografia pequena, mas
nacional, a respeito dos nossos fatores de deterioração. E é necessário que
haja investimento em escolas de formação. O Brasil é muito grande. Quando
falamos de material de arte no Sudeste, há um estágio muito mais avançado
com relação a outras áreas, como Alagoas e Sergipe, que têm um patrimônio
muito grande e não têm ainda políticas de investimento. Precisa de investi-
mento governamental e mudanças na universidade. A universidade tem a
pesquisa e a formação como prioridade. Então há muitos museus dentro de
universidades, mas não é essa a prioridade. Mesmo estando na universidade,
tem de estar captando recursos e patrocínio para um trabalho mais avançado.
E a relação do restaurador com o artista? Não só no restauro e conser-
vação, mas em diálogos prévios, isso ocorre? Para se aprender que tipos
de produtos utilizar, ou como utilizar esses produtos de uma forma
que a obra perdure?
204
Nós aprendemos que não podemos ensinar para o artista. Se ele pergun-
ta, podemos até dar opinião técnica ou conversar a respeito. Hoje em dia os
museus, quando recebem uma obra e o artista é vivo, procuram entrar em
contato e saber quais foram as técnicas, materiais, adesivos que ele utilizou
na obra para evitar todo um trabalho posterior de investigação, de pesquisa
para saber qual o material componente daquela obra. Outra coisa, de ética
profissional, é que o artista é o primeiro a ter direito de restaurar sua própria
obra. Então, de modo geral, se faz essa consulta. A gente até torce para que
isso não aconteça, porque eles interferem muito. Quando um artista começa
a consertar sua própria obra, ele começa até a mudar coisas que acha que não
devia ter feito daquela forma, e acaba aparecendo daí uma obra extremamente
alterada. Mas ele tem o direito de ser consultado. A relação com o artista é
uma relação boa, normalmente. Todas as vezes em que eu preciso de alguma
informação ou alguma coisa eles atendem muitíssimo bem.
E a relação entre o arquiteto e o restaurador?
Aí é uma briga. Ao construir um museu, o edifício deve ser feito para abrigar
obras de arte e tudo deve se reverter em interesse das obras, mas até nesse
aspecto está melhor. Antes, os arquitetos eram muito reativos a alterações
no projeto, a intervenções dos restauradores. Cada vez mais os restauradores
são chamados para dar opinião sobre o que seria viável e o que não é viável.
Em termos de iluminação, é bom mesclar iluminação artificial com natural
numa medida adequada. Nada de luz direta, coisas desse tipo, mas a história
de um arquiteto escutar o restaurador é recente.
Existe a questão da urgência de se preservar obras em estágio avançado
de deterioração, além da questão da formação de técnicos nacionais. Dá
para conciliar as duas?
É urgente fazer investimentos em escolas de formação. Eu não gostaria que
viessem técnicos estrangeiros. Os restauradores brasileiros são extremamente
considerados e muito valorizados no exterior. Como nós temos tão pouco
recursos, consideram que temos habilidades muito bem desenvolvidas e
acuidade visual e de manipulação muito desenvolvidas. São importantes os
restauradores brasileiros no exterior, pelas nossas dificuldades. Não é que
isso seja gratificante não. Eu gostaria de ter mais recursos. Mas, se não tenho
recursos, eu tenho de suprir essa deficiência, não é? Então investir na forma-
205
ção, reconhecimento e disponibilizar recursos são absolutamente prioritários.
Existe patrimônio nacional que está se perdendo a olhos vistos. E é possível
formar um bom profissional em três anos. É possível, com recursos, resolver
essa questão com agilidade.
Fale de uma obra de arte que mexeu com você.
Eu fiz trabalhos maravilhosos, extremamente gratificantes, e é evidente
que você não pode se apegar emocionalmente a um trabalho. Mas houve
um trabalho que me deixou com tanto carinho, mas tanto carinho… Era
uma obra flamenga, e foi trazida por uma família de judeus durante a guer-
ra. Era uma obra grande. Eles andaram com aquilo para cima e para baixo
escondendo de todas as formas possíveis. Chegou a São Paulo e, no fim, o
porão foi inundado e aquilo ficou encharcado. A obra era um manto preto
de fungos e atrás cheirava a podre. E o proprietário falou: “Olha, isso aqui eu
carreguei por tantos anos e de forma tão difícil, e agora acaba por causa de
uma inundação em minha casa. Eu não me conformo.” Então, quando eu
devolvi esse trabalho restaurado para esse homem... até hoje me emociona.
Eu não inventei nada. A obra estava lá. Era tomar cuidado para ver o verso,
secar, aplicar fungicidas, limpar milimetricamente cada pedacinho para que
aparecessem as cores como realmente eram. A minha satisfação de vê-lo tão
emocionado recebendo de volta a obra é grande ainda. E toda a história que
aquilo carregava para ele. Era a vida dele que estava lá.
É a dimensão humana, não é?
Sim. E você tem que restaurar essa obra exatamente como se restaura um
Picasso. Em termos de critérios, de cuidado, de atenção, de tudo. No ateliê,
não fazemos diferença. Nós levamos em consideração o material, o tempo
de trabalho, as dimensões, a dificuldade, mas não entra em consideração o
valor. “Esta obra tem valor, tem assinatura, é um Di Cavalcanti” ou coisa do
gênero. Não! O trabalho é o mesmo. O trabalho do restaurador é utilizar os
melhores materiais, critérios e técnicas possíveis para restaurar a obra que
está na sua frete, porque todo trabalho tem o valor igual. Somos profissionais
e precisamos agir assim.
207
Como foi a construção do ateliê com o Almícar de Castro?
Eu trabalhava com fundição e, por isso, comecei a fazer trabalhos com
ele. Com o passar do tempo, a relação de amizade foi aumentando. Eu fazia
gravura no ateliê da minha esposa, mas fomos misturando as produções.
Não tínhamos dinheiro para terminar as obras: era ateliê com obra, com
construção, com gravura, escultura, tudo no mesmo lugar. Eu que fiz o projeto
do ateliê. Fiz sem mostrar tudo para o Almícar. Disse: “Eu vou fazer, depois
você escolhe.” Eram dois ateliês, um para ele, outro para Thaís, e o direito de
escolher era dele. Ele escolheu o que eu fiz para Thaís. O que ficou para gente,
eu acho mais interessante.
Conte um pouco sobre a história de algumas esculturas com o Amílcar.
Não houve uma grande marca, mas mudanças. Quando eram chapas
mais grossas, processos aparentemente mais difíceis, nós nos preparávamos
tanto que ficavam até mais fáceis. Ficou mais patente a minha relação com
o Amílcar do que com as peças. Uma vez eu fiz uma peça para ele. Quando
chegou, pediu que fizesse outra, pois a peça estava com defeito, torta. E não
estava, mas eu não discuti. Ele saiu, aí eu fiz outra, falei com ele que estava
pronta. Ele chegou e disse: “Você não fez outra. É a mesma e está torta.”
Executor de esculturas.
AllenRescoe
208
Mostrei a peça antiga e levei todos os instrumentos para medirmos, para que
visse que não estava torta, e, realmente, não estava. Ele disse: “É, realmente,
a peça parecia torta, e não está, está até bom.” Em compensação, ele nunca
mais conferiu nada, daí em diante, ele nunca mais olhou. O que me fez ficar
muito mais rigoroso. Como ele não olhava, também me obrigava a aferir
muito mais, porque eu sabia que ele não ia questionar. Acho que tem mais
histórias de ligação com o Amílcar do que propriamente com as peças, porque
os desafios foram aos poucos.
Fale do Nuno Ramos.
Eu fui fazer um trabalho para o Nuno: tinha uma parte metálica que
eu ia executar, e tinha uma parte em mármore, que seria feita em Belo
Horizonte. E comecei a procurar em Belo Horizonte quem pudesse fazer,
mas não achei. Era uma coisa simples, não tinha por quê. Falavam que não
tinham equipamento. E, sem equipamento nenhum, começamos a fazer,
e deu certo. Conseguimos executar sem problemas, porque o artista move,
estimula você a resolver esses problemas. Às vezes ele quer uma coisa, va-
mos tentando achar alguma solução, e, junto do artista, conseguimos fazer,
o que é muito prazeroso.
O desafio é uma expectativa?
Trabalhar com o Nuno é desafio o tempo todo. Em termos de peso, de
resistência, prazo, de preço. É tudo no limite.
Como é trabalhar com pedra?
Minha experiência com pedra, em mármore, foi surpreendente, porque
foi mais simples do que eu imaginava. Nós mesmos desenvolvemos, com o
pequeno recurso que havia, algumas gambiarras para poder fazer os cortes
no mármore. Não tinha como cortar a placa de forma curva e dar o polimen-
to que ele queria. Mas não é nada muito complicado. Havia o problema do
peso, não havia equipamento para transportar as pedras, que eram pesadas.
Fizemos carrinhos para isso, mas depois tivemos que jogá-los fora.
Você participa da escolha do material?
Não, eu nunca participei. Nunca entro na concepção do artista, de ne-
nhum deles.
209
Quando a obra está sendo montada, os artistas aparecem?
Normalmente. O Francis era muito presente, ficava acompanhando a
execução o tempo todo, mas sem incomodar. O Amílcar raramente aparecia
nas execuções. E o Jorge nunca esteve presente. O Nuno não acompanhava
muito, só as montagens.
Como que é a montagem?
Além do aço, tem solda de vidro, breu. A montagem é o artista quem coor-
dena. Geralmente, já no local onde vai ficar a obra. Eu entro como colaborador.
Como você classificaria o seu trabalho?
Eu pensava que era serralheiro. Agora, já virei pedreiro, costureiro, pintor.
Vocês tiveram que inventar uma metodologia. É possível transmiti-la?
Não aproveitamos a maioria dos processos que criamos, porque raramen-
te fazem obras parecidas de novo. Mas arte é como qualquer construção. O
arquiteto pensa, e o executor vai se virar para fazer.
Quando você vai para museus, pensa como a estrutura das obras foi feita?
Não tenha dúvida. Quando vejo alguma coisa pronta, fico imaginando
como é que foi executada e como eu executaria. Tenho curiosidade. Mas
só justifica quando se está com o desafio na frente, porque peças de outros
artistas estão em outro mundo, com outro recurso, com outra escala.
Estudantes de artes plásticas vão até a oficina acompanhar os processos?
Não. Isso me decepciona. Mas é muito simples. Por exemplo, dobrar uma
chapa é muito simples. Eu aqueço com tocha, de acordo com a espessura, eu
vejo a quantidade de tochas que tenho que colocar. Tochas funcionam como
maçaricos de aquecimento. Se eu tenho uma dobra do tamanho de quarenta
centímetros, uso uma tocha; se tenho outra de oitenta centímetros, duas, e
assim por diante. Uso um equipamento para poder pegar a peça e patolar em
cima, quer dizer, segurar uma ponta e puxar a outra. Talvez tenha demorado
a chegar aí.
É isso que eu estou querendo dizer. Isso tem a ver com alguma questão
tecnológica? Essa facilidade desse processo?
210
Não, eu acho que é muito mais pela experiência. Cada artista é um desafio
novo. Não podemos achar que um pensa como o outro. Sempre que traba-
lhamos um tempo com um, temos que apagar o que aprendemos para não
atrapalhar o processo de criação que outro artista exigirá. Ele é que tem que
explicar o que quer. Então, o mais difícil talvez seja escolher com quem quer
trabalhar. Ou ser escolhido.
Como é o começo do processo? Você senta para conversar com o artista?
Depende do estágio do trabalho. Quando começa alguma coisa totalmente
diferente, essa conversa é normalmente mais longa. Por exemplo, se o artista
não sabe se existe material daquele tamanho, ou se é possível fazer daquela
forma, sentamos para conversar. Depois que já passou dessa etapa, não tem
conversa nenhuma: é só fazer o pão; trazem a receita, e fazemos a encomenda.
Nessa fase de definição é que geralmente conversamos mais.
E os processos de corrosão com o tempo? Vocês trabalham com manu-
tenção das obras?
O aço tem o cobre na composição e resiste bem à corrosão atmosférica.
Praticamente, não se perde uma peça. Hoje, no Brasil, o aço que está no
mercado não tem problema nenhum. Tem corrosão química do solo, mas é
pouca coisa.
Como você vê essa relação com as grandes obras, pensando em tamanho?
Quando o tamanho muda, entra o trabalho do consultor. É muito mais
trabalho de execução do que de criação. Nunca vi uma peça crescer e ficar
pior do que pequena, porque, normalmente, o impacto é maior. Talvez seja
até da natureza humana mesmo. Não sei, ou da minha natureza mesmo. Eu
sempre achei a peça maior mais interessante.
Como você vê esse histórico no trabalho de vocês, hoje? Fazendo um
balanço.
Se eu falar que fiquei vinte anos trabalhando com Amílcar, você vê o tanto
que ele foi importante para mim, em todos os sentidos. E não foi só traba-
lhando, porque, no final, a gente tinha uma convivência muito grande. Aí é
um pouco diferente, porque mistura um pouco de trabalho com amizade. Eu
nem sei se consigo separar. Quase todos os artistas, praticamente com todos
211
os artistas com quem trabalhei ou trabalho, sempre ficou uma relação de
amizade muito boa. Eu não sei por que acaba misturando um pouco a relação
de trabalho com amizade. Talvez isso seja tão importante quanto o trabalho,
porque de todos esses que estou falando, gosto de todos, tenho amizade com
todos. Somos amigos mesmo.
O Fernando Faro diz que o que importa é a vida, é a relação que se esta-
belece com as pessoas. É isso aí?
É isso aí. É exatamente isso aí. E é tanto, que são amizades que ficam, e
que a gente trabalha. A minha amizade com a família do Amílcar continua.
Chega num ponto que a gente briga e continua amigo. Acho que é hora de
estar realmente amigo. Igual brigar com o próprio pai, continua como se não
tivesse nada.
213
VergílioLima
Luthier.
Vergílio, como você se tornou luthier?
Na minha adolescência, tive ocasião de morar com um irmão mais velho
nos Estados Unidos, onde fiz um curso de profissionalização em marcenaria
e aprendi a lidar com móveis. Voltando ao Brasil, fui estudar violão clássico.
Logo em seguida, ocorreu-me a possibilidade de juntar as duas coisas: o
conhecimento em madeira e o ramo dos instrumentos. Posto melhor, da
madeira aplicada aos instrumentos. Foi assim que começou.
Você já tinha gosto pelo trabalho manual?
Sim. Desde pequeno praticava o aeromodelismo. Além disso, o ambiente
lá de casa era muito musical. Meu pai estudou violino quando jovem. Minha
mãe, com noventa anos de idade, toca piano até hoje. Havia o gosto pela
música, pelo aeromodelismo e pelos pássaros. Eu e meu pai construíamos
gaiolas de bambu e arapucas.
Como foi optar por trabalhar com a viola, que é um instumento mais
tradicionalmente brasileiro?
Minha formação foi em função do violão clássico, que foi o instrumento
que comecei a estudar. O violão clássico no Brasil sempre teve um viés dife-
214
rente, por conta dessa fusão com a música brasileira. O Brasil sempre produziu
violonistas de reconhecimento mundial, cada um com um estilo próprio e ao
mesmo tempo marcadamente brasileiro. Então, do meu conhecimento inicial
do violão, resolvi derivar para a viola, instrumento que sempre foi relegado
em termos técnicos a segundo plano aqui no Brasil. A própria música de viola
costumava ser referida em termos quase pejorativos: “música caipira”, “músi-
ca do campo”, até que, num dado momento, começou a assumir outra cara.
Lembro muito bem do Renato Andrade, falecido violeiro lá de Minas Gerais,
que foi pioneiro em tirar a viola desse plano secundário e torná-la instrumento
solista. A primeira viola que fiz – o que marcou uma virada importante – foi
em 1986, para um violeiro chamado Roberto Correa, que conheci num festival
de música em Ouro Preto. Até então ele nunca tivera um instrumento que
suprisse suas necessidades técnicas. De lá para cá, dezenas de violeiros de
muito boa qualidade técnica foram surgindo, foram se construindo. E uma
coisa puxa a outra. Um bom músico exige um instrumento de qualidade para
que possa executar o que pretende.
Cada músico pede adaptações pessoais para a viola?
Alguns detalhes. No geral, querem apenas um instrumento que responda
tecnicamente. Quando você é capaz de fazer um instrumento de qualidade,
estimula o músico. Ele vai querer usar os recursos que o instrumento dá. É
uma bola de neve.
A viola devia ter regras de construção tradicionais? Esse tipo de co-
nhecimento existia no Brasil?
Não vejo bem por esse ângulo. O violão clássico, por exemplo, adquiriu
as formas, as dimensões e as especificidades que hoje conhecemos há pou-
co mais de um século, na Europa. No entanto, lá – e nos Estados Unidos – a
variedade de madeira disponível para a fabricação de instrumentos, ou qual-
quer outro objeto, é muito pequena. A Europa tem quatro ou cinco tipos de
madeira. Os Estados Unidos, a mesma coisa. Aqui, só para citar um exemplo,
o Instituto de Pesquisas Tecnológicas da Universidade de São Paulo fez um
levantamento há mais de vinte anos que classificou qualquer coisa em torno
de duas mil espécies de madeira com utilização comercial, ou seja, quando
a técnica da construção dos instrumentos veio para o Brasil e alguns luthiers
começaram a experimentá-la, descobriu-se que as possibilidades são virtu-
215
almente infinitas. Aqui, temos madeiras que sempre foram cobiçadas lá fora.
Temos uma infinidade de espécies que substituem – com vantagem, inclusi-
ve – as madeiras tradicionais. Embora na Europa ainda exista uma tradição
muito forte de construção de instrumentos de orquestra com madeiras locais,
no caso do violão, o fato de terem sido encontradas madeiras excepcionais
no Brasil acabou alterando o cenário internacional. Hoje em dia, se você
vai comprar um violão com o melhor fabricante da Alemanha, ele é feito
com madeira brasileira. A mesma coisa nos Estados Unidos. A viola acabou
“pegando carona” nesse conhecimento, porque seu formato e a maneira de
executar têm muito a ver com violão, embora use cordas duplas e sirva a
repertórios bem diferentes.
Na hora da construção do instrumento, você discute a questão da madei-
ra com o músico? Já existe um “cardápio” pré-estabelecido de madeiras?
Existe um cardápio. Há uma questão-chave na construção dos instrumen-
tos, que é o envelhecimento da madeira. Não há maneira de se conseguir
madeira boa, estável, senão pelo envelhecimento natural. Quem produz
instrumentos precisa fazer uma previsão de cinco anos, no mínimo. A ma-
deira precisa ficar estocada para poder se aclimatar e só está pronta para
uso após esse período. Até para conduzir testes, a madeira precisa ter sido
pré-selecionada por um período de cinco anos.
O Brasil sempre foi criticado por exportar matéria-prima e não tec-
nologia. No caso do luthier, existe algum estímulo para a formação de
mão de obra qualificada, para que o Brasil exporte instrumentos e não
só madeira?
Até onde sei – e trabalho com isso há trinta anos – não existe nenhum estí-
mulo nesse sentido. Na verdade, o artesão que fabrica instrumentos só começou
a existir legalmente a partir de julho do ano passado, com aquela lei que institui
o empreendedor individual. Até então, era uma ginástica para emitir nota, esse
tipo de coisa. A exportação era legalmente impossível. O músico vinha aqui,
comprava o instrumento, que era enviado como presente. O artesão individual
não era contemplado com as mesmas facilidades de uma fábrica.
Como multiplicar esse conhecimento tão artesanal em escala um pouco
maior?
216
Venho articulando cursos desde 2003, por iniciativa pessoal. Em média,
são seis a oito alunos por turma. Já tive muitos alunos nesse intervalo de
tempo, mas existe a questão cultural, um raciocínio colonizado que emperra
o desenvolvimento de vários setores, não só o meu. Alguns músicos ainda se
iludem de que na Espanha encontrarão violões melhores.
Os brasileiros são tão bons quanto os espanhóis?
Melhores, às vezes! Além do que, como já disse, o bom violão que se com-
pra lá fora certamente foi feito com madeira brasileira. Certos músicos não
se prestam nem a analisar o que há de disponível aqui, porque o mero fato
dele trazer um violão de fora lhe dá um status diferenciado.
Você poderia falar um pouco sobre as diferenças entre tipos de viola?
A diferença mais sintomática está mesmo nos repertórios, e no quanto ele
demanda de refinamento técnico. A viola nordestina, por exemplo, é a viola do
repentista. Em regra, ele não entra nos detalhes da afinação do instrumento,
nas regiões mais agudas. Já em Minas Gerais há tipos de viola específicos em
certas regiões. A do Centro-Oeste não soa como a do Norte, e assim vai. Mas,
hoje em dia, com a facilidade de deslocamento e comunicação, as coisas são
muito mais mescladas.
Quanto a essa nova geração de violeiros que surgiu no Brasil, quem são
os músicos que estão inovando a linguagem ou que possuem alto domínio
técnico?
Tem uma turma muito boa que venho acompanhando desde que conheci o
Roberto Correa, o cliente que impulsionou o interesse pela viola, mas é difícil
listar, você acaba esquecendo muita gente. Melhor falar em termos de região.
Curitiba, por exemplo, tem um foco muito forte de viola caipira. O interior de
São Paulo também. Já no Rio de Janeiro há poucos violeiros, talvez por conta
do peso excessivo do samba.
Quanto à exportação: existe interesse pela viola a nível mundial?
Só um interesse pontual. Aqui e ali, encontra-se um interessado.
Curioso, não? Os discos já chegaram lá fora, mas o instrumento em si
ainda não.
217
Pois é, mas a viola que vai para fora é uma viola da competência. São os
caras que tocam Beatles, por exemplo. Já viu Beatles na viola? É um negócio
interessante. Tira-se a viola da sua especificidade de música caipira. E existe
uma música caipira muito boa, mas existe outra que não passa de ficção
comercial, grupos que nem utilizam os instrumentos tradicionais. O cara
aparece lá com a viola e não sabe fazer um acorde. Só serve como efeito visual.
Houve atrito entre os mais tradicionalistas e essa nova geração que
chegou mudando o repertório e as técnicas?
Acho que houve um ciúme. Os violeiros mais tradicionais se ressentiram
um pouco do alcance que os mais jovens conquistaram. Foi coisa de mo-
mento, dessa situação comercial que se criou e acabou ocasionando uma
nova virada da viola.
Existe uma organização de luthiers brasileiros que esteja pensando
políticas e possibilidades de conquistar espaço?
Não, nenhuma. A rigor, a criação de instrumentos é uma coisa muito in-
dividual. Como não existe uma escola formada, não existe uma unidade de
pensamento. As referências são muito recortadas, e há muito conflito de ideias.
Seria possível criar uma escola?
Penso que sim. No caso da viola, que é um instrumento muito especifi-
camente brasileiro, a possibilidade de instituir uma escola nacional é mais
concreta, mas, no que tange a instrumentos de corda em geral, é complicado.
Por exemplo, há pouco tempo fui a uma loja e me deparei, muito para minha
surpresa, com um cavaquinho feito na Coreia! Consegue-se comprar um cava-
quinho feito na Coreia por um preço inferior ao que se fabrica aqui em São Paulo.
Você experimentou tocar?
Não. Falta alma, não é? O instrumento precisa ter uma alma. Aliás, sabia
que os instrumentos da família do violino têm uma peça de madeira chamada
“alma’’? É um bom trocadilho.
Você viaja para conhecer os luthiers e suas técnicas?
Na verdade, os instrumentos vêm até mim. Eu já trabalhava com res-
tauração antes de fabricar, o que me punha em contato com instrumentos
218
fabricados em várias épocas, em diversas partes do mundo. É muito interes-
sante, aprende-se um bocado. Acabamos constatando que as soluções não
são propriedade de ninguém. Você pensa ter descoberto determinada técnica,
depois descobre que ela já foi desenvolvida por outro profissional, alguém
com quem você nunca travou contato. É interessante perceber as soluções
comuns às quais chegamos, em tempos e situações diferentes.
Já que esses saberes são coletivos, há como lhes atribuir uma autoria?
Como passar esse saber adiante, como registrá-lo?
Isto é outra particularidade da técnica: as boas soluções se encaminham
sempre numa mesma direção.Tome-se o violão por exemplo: um instrumento
que se tornou universal e passou a ser fabricado em todas as partes. Existe um
limite para o comprimento das cordas que tem a ver com a mão do músico,
com o máximo de distância que ele pode alcançar. Esse limite tornou-se,
espontaneamente, um padrão internacional.
No caso específico da viola, esses saberes se encaminham para uma exce-
lência também?
Espero que sim, mas ainda não se encontrou um caminho comum para
a viola. Antigamente, focava-se mais na destreza da marchetaria do que na
sonoridade. Num extremo, você tem uma viola adornada, cheia de bordados
e ornamentos. No outro, você tem uma viola limpa, nua, mas com a melhor
afinação e qualidade técnica possíveis. Muitos profissionais pecam por um
ou por outro lado. Afinal, o músico quer uma viola bonita e que soe bem.
Quais são os luthiers de viola que você mais admira?
Eu convivi em Minas com o Zé Coco do Riachão, falecido há uns cinco anos.
Era um sujeito de uma simplicidade fora do comum. Sua técnica também era
bem simples, bem rudimentar, mas impecável. Dizia que tinha começado a
fazer viola escondido, contra a vontade do pai.
A internet muda a relação entre cliente e luthier?
Bom, na minha opinião, o contato direto é insubstituível, e geralmente
resulta em instrumentos melhores, mais afinados ao gosto do cliente. Mas o
Brasil é um continente. Para um sujeito de Florianópolis vir até Belo Horizonte é
difícil. A internet é uma boa maneira de o cliente ter uma prévia do instrumento.
219
Quanto tempo leva a fabricação de uma viola?
Em média, um instrumento leva de 180 a duzentas horas de trabalho para
ser fabricado. Porém, tecnicamente, não há maneira de fazer isso de modo
contínuo. Em determinadas etapas, usa-se cola. É preciso esperar secar até
passar para a próxima etapa. Geralmente, o instrumento não fica pronto em
menos de três ou quatro meses, até porque é antiproducente trabalhar em
um instrumento de cada vez. Sempre pego dois ou três instrumentos e vou
trabalhando paralelamente.
Quantos você entrega por mês?
Consigo produzir, no máximo, 25 ou 26 instrumentos por ano. Isso com a
ajuda da minha filha, que cuida da parte das marchetadas e do verniz!
Os preços são fixos ou variam conforme o tipo de madeira?
Os preços variam em função de diversos fatores. Por exemplo, uma das
madeiras que usamos hoje em dia é o jacarandá, cuja exploração é proibi-
da. Há vários anos uso exclusivamente madeira de demolição. O jacarandá
resiste bravamente a todas as intempéries, é relativamente fácil achar peças
de duzentos anos.
Quanto tempo o jacarandá leva até estar próprio para uso?
Creio que uns cem anos, ou mais. Não é possível pensar numa produção
de jacarandá a curto prazo.
Que outras madeiras funcionam para viola?
A princípio, várias. Por exemplo, o pau-brasil é uma madeira ímpar, de
resistência inigualável. Há o marupá, madeira do Amazonas de crescimento
relativamente rápido. Há o cedro brasileiro, que – dependendo das caracte-
rísticas do solo – dá um corte com seis ou oito anos. Por fim, há as madeiras
mais difíceis de encontrar hoje em dia: canela, imbuia...
Seria preciso um projeto de longo prazo para se conseguir essas madeiras
de lei novamente aptas para a construção de instrumentos?
É muito difícil pensar isso. Eu inclusive fiquei conhecendo em Ara-
cruz, no Espírito Santo, um reflorestamento de pau-brasil que foi feito há
quarenta anos. E agora, quarenta anos depois, descobriram que não dá
220
certo, porque para se obter a árvore de pau-brasil com a retidão que dá
valor de uso à madeira, com a árvore retinha, ela precisa crescer no meio
da floresta, disputando espaço com as outras árvores e buscando a luz
verticalmente. Foi feito um replantio só de pau-brasil, e as árvores cresceram
tortas. A madeira é inútil, por causa do formato dos galhos.
O Brasil possui um trabalho de pesquisa sobre as aplicações de suas
madeiras em instrumentos?
Uma coisa ou outra. Tem uma turma lá no Amazonas que é interessante,
mas há uma história importante sobre isso: quando o presidente Collor tomou
posse, ele extinguiu a Funarte. Naquele período, a Funarte estava levando um
projeto de experimentação de madeiras brasileiras em instrumentos musicais.
Tinha dois maestros na época que encabeçavam isso, se não me engano um era
o Marlos Nobre. Bom, com o fechamento da Funarte o projeto foi abortado. Era
um projeto muito interessante: a Funarte selecionou dezenas de amostras de
madeiras brasileiras, mandou elas para os luthiers Brasil afora, e o nosso com-
promisso era construir instrumentos com essas madeiras e cedê-los para um
teste prático de acústica, com músicos e pesquisadores. Eu me sinto frustrado
até hoje, porque eu fiz os instrumentos e eles nunca foram testados.
Você tem grandes mestres? Quem o ensinou?
Aqui em São Paulo, há trinta anos, trabalhei com Sugyiama, que havia
chegado ao Brasil há pouco. Ele está aí até hoje. Sua especialidade são vio-
lões. É uma pessoa sensacional. Ele é o responsável pela transição do meu
conhecimento de marcenaria para – bom, não existe palavra absoluta para
designar isso, mas geralmente se fala “luteria’’. Foi com ele que aprendi a fazer
instrumentos. Antes só sabia fazer móveis. Outra grande referência foi o senhor
Luciano Rolla, do Rio de Janeiro, expert em restauração falecido em 2005.
A memória desses mestres é preservada aqui no Brasil?
Não. Tornamos àquela mentalidade colonizada à qual aludi há pouco.
Aqui, as referências são sempre estrangeiras. O pessoal ainda não descobriu
que temos os meios para fazer tudo muito benfeito, sem ficar devendo nada
ao exterior.
A demanda aumentou com o blog?
221
Aumentou um pouco, mas nos últimos anos tenho trabalhado com uma
fila de espera de um ano, um ano e meio. Não tenho como atender a demanda.
E o feedback, aumentou com o blog? Há diálogo ou ainda é um trabalho
muito solitário?
A visibilidade aumenta com a atuação na internet, mas acho que o próprio
trabalho ainda é a melhor divulgação. A internet serve para fechar o elo, por
assim dizer. É uma confirmação. Por exemplo, em 2003, a pedido do bando-
linista Hamilton de Holanda, fiz um instrumento que há décadas ninguém
fazia ou tocava, um bandolim de dez cordas. Como o Hamilton se apresenta
no mundo inteiro, o bandolim circulou por França, Itália, Estados Unidos da
América. Esse é o tipo de exposição que, no meu caso, gera mais feedback.
Como você conseguiu fazer? Havia um original para servir de modelo?
Não, começamos do zero. Quer dizer, do oito. O bandolim normalmente
é um instrumento de oito cordas. Acrescemos um par de cordas mais graves.
Como se faz isso?
Com uma média, uma projeção. Na média aritmética, você pega o que
tem, divide por quatro e multiplica por cinco.
Qual é o desafio mais gostoso?
Todos. Sempre que um músico vem procurando uma sonoridade diferente,
uma possibilidade diferente, surge um desafio legal de topar.
Sabemos que o Brasil sempre tentou empregar medidas protecionistas
ao seu mercado, o que acaba emperrando a troca de informações. Como
fazer para mostrar ao público que existe uma luteria brasileira mere-
cedora de estímulo externo e difusão?
A criação de uma escola com mentalidade brasileira, preocupada em
recensear e classificar nossas matérias-primas, seria muito importante. Sem
essa mentalidade colonizada de que o que vem de fora que é o bom. O músico
brasileiro sai daqui, vai lá fora com sua música e é super bem recebido. Por que
ele próprio não acredita nos instrumentos? Seria muito mais interessante se o
músico brasileiro se sentisse orgulhoso de se apresentar com um instrumento
brasileiro. Por isso que o exemplo do Hamilton é tão bom.
223
Carnavalesco.
PauloBarros
O carnaval é uma ópera?
Sem dúvida. É uma ópera porque consideramos um conjunto de segmen-
tos, como a dança, a música, o figurino, o teatro, o cenário.
Como é o trabalho de uma escola de samba durante o ano?
Quando termina um carnaval, você já começa outro, de cara. O primeiro
passo é escolher o enredo, a história que você vai contar. O enredo pode ser
sugerido pela escola, ou ela pode apostar numa ideia do carnavalesco. As
escolas trabalham de forma diferente, algumas dão o poder de escolha do
tema para o carnavalesco, outras não, dependendo da possibilidade de pa-
trocínio, que hoje é uma fonte que ajuda a escola a fazer o carnaval. Então,
as escolas até esperam possíveis patrocínios, propostas ligadas ao enredo,
para construir isso. No meu caso, ainda não fiz enredo patrocinado. Então,
eu escolho o tema e começo a trabalhar nele. Eu sou a primeira pessoa a
trabalhar e a última a sair de lá de dentro. Isso me toma, praticamente, o ano
inteiro. As pessoas acham que a gente faz carnaval em três, quatro meses,
mas é um trabalho integral.
A partir da escolha do tema, como se dá a criação das fantasias, dos car-
ros? Quais são as etapas?
224
Isso eu aprendi fazendo carnaval. Eu sempre me metia dentro de bar-
racão de escola, desde que me conheço por gente. Era muito novo quando
entrei nesse universo e aprendi, nos moldes tradicionais, que se escolhia o
enredo, o tema, e a partir dessa história, se definia o que ia ser a comissão
de frente, o abre-alas, as alas subsequentes, os carros. Só que, com o de-
correr dos anos, percebi que essa maneira de contar a história acabava me
prendendo. Se eu fosse falar sobre a partida da família Real, por exemplo,
a vinda deles para o Brasil, o começo da escola teria que ser a partida, e a
trajetória da viagem. Quer dizer, essa história já está contada, já está pre-
estabelecida. Nesses casos, muitas vezes eu tinha que colocar num carro
alegórico alguma coisa que não era de meu gosto, porque era preciso obe-
decer aquela sequência. Isso começou a me incomodar. Foi aí que tentei
mudar esse conceito. Agora escolho o tema, reúno todas as informações,
escolho o que é bom para alegoria e o que é bom para fantasia, separo isso
tudo, e a partir do conceito, todo separado, dividido, eu vou contar a mi-
nha história. A partir disso, amarro todos aqueles setores, de acordo com
o que eu acho que é bom que o público veja. Depois de escolher o enredo
e desenvolvê-lo, começamos a produzir o figurino e a fazer as peças-piloto
de roupa. Produzimos uma roupa de cada e adequamos o que foi criado no
papel para a realidade. Muitas vezes o que você faz no papel não funciona.
Nesse processo, começamos a fazer também o carro alegórico, a produção
de ferragens, de madeira, luz, acabamento, decoração. Esse processo é longo,
e vai terminar, praticamente, em cima do carnaval.
Um mês antes do carnaval as coisas já estão em finalização?
Depende da administração de cada escola. As escolas de samba hoje são
empresas e precisam ser administradas como tal. Até porque o desfile é feito
dessa maneira. Quer dizer, temos patrocinadores dentro do desfile, então o
horário tem que ser seguido. Antigamente, era uma bagunça, o desfile come-
çava oito horas da noite e ia terminar às duas da tarde do dia seguinte. Hoje,
temos um contrato que diz que o desfile começa às 21h e tem que terminar
às 5h. Então, temos que administrar tudo isso, e o carnaval tem que estar
pronto na hora, não tem jeito. É lógico que muita coisa atrasa, mas temos
que administrar isso, porque não pode haver erro. Dentro de uma escola de
samba, nós temos uma gestão administrativa. Trabalhamos com marketing,
com produção, com produto. Temos que fazer aquela empresa funcionar.
225
A única diferença é que o nosso lucro é alegria. O resultado de reunir toda
aquela gente, as quatro ou cinco mil pessoas que participam de um desfile,
é a alegria.
O que seria dito numa reunião secreta de carnavalescos? Quem é o car-
navalesco? O que é que é um produtor de carnaval?
Eu acho que seria uma utopia existir uma reunião de carnavalescos. Somos
todos amigos e arqui-inimigos. O carnavalesco é a figura que veste, que dá
corpo a essa ópera. Então, a gente se trata muito bem, se conhece, se fala, mas
todos os nossos segredos serão guardados até a última hora. A convivência
é amistosa, porém...
Porque, na verdade, o carnaval é uma indústria que vive do segredo. Ele
é fundamental para o desfile, não é?
É. A Cidade do Samba, hoje, desmistificou um pouco isso, porque o grande
público pode entrar lá, eles têm acesso a uma passarela e conseguem visitar
praticamente todos os barracões. Então, isso abriu um pouco a questão do
que pode se ver, o que não pode. Mas, claro, mesmo que você veja, não sabe o
que vai acontecer na hora do desfile. E, em muitos casos, não consegue nem
identificar o que é. Tem coisas que você não pode falar nem para os elementos
da sua própria escola. Esse ano, pouquíssimas pessoas da comissão de frente
sabiam de tudo o que ia acontecer.
A liberdade de criação é absoluta? Quais são os aparos?
Existe uma questão muito séria, que eu acho que acontece em qualquer
setor, que é o problema de ego. Em criação, sempre haverá pessoas querendo
participar daquilo, e interferir, o que muitas vezes atrapalha. E também tem
a questão do enredo patrocinado. Às vezes o cara tem o produto na mão e
quer vender para o carnaval. Então, essa interferência, para mim, não é boa,
nunca foi.
Fala um pouco sobre a história do carnaval, sobre os dois grandes des-
files do Joãozinho Trinta, que introduz as fantasias e a lantejoula, e
sobre o rAtos e urubus rAsguem A fAntAsiA.
Com a construção do Sambódromo, em torno de 1984, o carnaval tinha
que mudar. E o João foi o primeiro a perceber isso. Era preciso pensar em
226
como construir um desfile de carnaval naquele elefante branco, porque em
1984, o Sambódromo era um elefante branco. Eles construíram arquibancadas
imensas, o que, a princípio, foi um erro, e é um erro até hoje. O último setor
de arquibancadas é um assassinato contra a população. Para ver o desfile
tem que andar de binóculo, de tão afastado que é. Ali foi criada a tal praça
da Apoteose, que foi inutilizada. Hoje, eles colocam cadeiras na pista, para
poder trazer o público mais para perto, mas não deixa de ser um erro. Ao
longo do Sambódromo, existem várias construções temporárias, camarotes
temporários, a infraestrutura é mesmo adaptada para se adequar ao desfile.
O Sambódromo é completamente ultrapassado, tecnicamente falando. E o
João, na época que o Sambódromo foi criado, percebeu isso. Ele viu que não
podia entrar lá com um carro alegórico do tamanho que ele estava acostumado
a fazer. Antigamente eram arquibancadas de madeira, e ainda tinha aquela
decoração na avenida, que fazia um fundo para a escola de samba. Ele foi
genial nessa época, verticalizou o carnaval, criou fantasias com cangalhas nas
costas, com resplendores. E por conta desse novo conceito, ele começou a ser
apedrejado. As pessoas diziam que o carnaval ia acabar, que estava virando
um superespetáculo, que as escolas estavam perdendo as suas raízes. E aí
ele responde com aquela célebre frase: “O povo gosta de luxo. Quem gosta
de miséria é intelectual”, e cria Ratos e urubus, que escandaliza a Marquês de
Sapucaí. Lembro até hoje do momento que cheguei à concentração e olhei para
aquele abre-alas. Eu não sabia se ria, se chorava, se gritava. Era espetacular de
se ver. E as pessoas não entendiam aquilo. O cara que chegou no barracão,
pegou um chassis de carro, botou um cristo no meio e começou a jogar lixo.
Lixo! Todo lixo que se produzia dentro do barracão, ele mandava jogar em cima
do carro. E olhar para aquilo era simplesmente espetacular. Lembro de ficar
dias e dias sentado no barracão, conversando com João na baixa temporada
do carnaval. Ele é um ser humano difícil de entender. Eu entendo porque eu
o conheço. É um sujeito desprendido de qualquer valor comercial e físico,
ele é espiritual.
Como você administra a vaidade dentro das escolas?
Eu não considero um problema. As vaidades existem, e a gente tem que
administrar, não tem como fugir disso. Mas o importante para a gente con-
seguir produzir é exatamente saber como levar essas coisas, ter um bom
relacionamento com todos. Eu trabalho diretamente com 150 pessoas, e
227
indiretamente, talvez, com quatrocentas pessoas, e tenho que ter o cuidado,
preciso ter um bom relacionamento com elas, porque no carnaval, uma só me
destrói. Costumo dizer que temos um grande problema dentro da escola de
samba, que é a bateria. Ela é um conjunto independente. Se eles decidirem que
não vão desfilar, deixam o carnavalesco sozinho, e não desfilam. Então, é preciso
ter um cuidado muito grande com eles. E a interferência deles até na decisão
de uma roupa, de uma fantasia, é muito complicada. É o coração da escola.
Como você convenceu eles a subirem em um carro?
É exatamente isso: você precisa ter uma jeito de chegar. A história do car-
naval diz que você não pode mexer nisso, é um setor muito tradicional. Então
eu queria botar a bateria em cima de um carro alegórico e tinha que chegar e
usar meu poder de convencimento, passar para eles esse comprometimento.
Daí eu chamei o mestre Ciça, que é um cara de visão, e propus a ideia. Ele
topou, reuniu a bateria e convenceu o seu pessoal. Se a ideia tivesse sido
imposta, como uma ordem, provavelmente alguma coisa não ia dar certo.
O que você acha que vai acontecer com o carnaval, com cada vez mais
efeitos tecnológicos?
Acho que as pessoas estão, novamente, com aquele mesmo sentimento dos
anos do João, achando que o carnaval vai acabar, que estamos deixando nossa
cultura de lado. Só que, infelizmente, ou felizmente, o carnaval se transformou
num espetáculo, e ele tem que ser vendido. A Liga Independente das Escolas
de Samba clamava exatamente por essa mudança, porque o espetáculo pre-
cisa continuar, e, ano após ano, aquilo caía em descrédito. Então, é preciso
vender, porque aquele espetáculo tem que ser pago. Mas não acho que ele
vá acabar. A raiz do carnaval, no Rio de Janeiro, é muito forte. Esse conceito
da escola de samba é uma coisa inacreditávelmente forte.
O que é o carnaval?
No sentido de escola de samba, é uma paixão. O carnaval termina em
fevereiro, às vezes em março, e entre fevereiro e outubro, temos a baixa tem-
porada, que é quando os sambas enredos começam a aparecer. Nessa época,
as pessoas ficam órfãs, não têm para onde ir. Hoje, existem alguns eventos em
algumas escolas, mas não são suficientes. E as pessoas começaram a entrar
na Internet, em sites de relacionamento direcionados para o samba. Criou-se
228
um carnaval virtual, escolas de samba virtuais, e ali eles discutem fantasia,
alegoria, dão nota. Então, isso é tão forte, que não vejo como pode chegar a
um final, acabar. A cultura do carnaval é muito grande, muito forte.
Como que é a convivência na Cidade do Samba? Como é trabalhar com
aquela estrutura?
Eu já fiz carnaval debaixo de ponte. E os barracões antigos das escolas de
samba, no Rio, sempre estavam em lugares extremamente difíceis de traba-
lhar, às vezes sem banheiro, sem uma estrutura elétrica compatível. Eram
barracões abandonados, que as escolas invadiam, porque não tinham um
lugar para trabalhar. Quando a prefeitura criou a Cidade do Samba, nos deu
um espaço espetacular, com uma infraestrutura maravilhosa. Hoje, nós temos
condições de realmente fazer um grande espetáculo. Mas as únicas escolas
que fazem carnaval dentro de uma estrutura decente é o grupo especial. As
outras escolas, dos grupos subsequentes, ainda continuam trabalhando em
barracões improvisados.
Como funciona a questão das notas e da competição?
A Liga Independente criou um regulamento extremamente técnico. O
julgador de harmonia e evolução pode tirar dois ou três décimos, se em
alguma ala os componentes não cantarem. Isso obrigou os presidentes das
escolas não vender mais as fantasias, para que o componente tenha esse
comprometimento com a escola. Quer dizer, nós damos a roupa de graça,
e ele se compromete a ir em ao menos um ensaio e aprender o samba. A
Unidos da Tijuca, por exemplo, tem 32 alas, somente seis são comerciais.
Ainda é um risco, porque se der azar e 90% da ala não souber o samba, não
cantar, existe a possibilidade de perder pontos. No julgamento dos desfiles,
as escolas entram com nota dez em todos os quesitos e perdem pontos ao
longo do desfile. O regulamento hoje é muito correto. Quer dizer, existem
erros, mas é difícil achar o modelo perfeito. Essa discussão é muito longa
no carnaval.
Ganhar ou não o carnaval é a discussão mais presente na quadra, durante
o ano? É isso que move?
Ah, sem dúvida, ganhar é tudo. No carnaval, a gente briga pela vitória. Os
carnavalescos se dão muito bem, mas eu costumo brincar que eles estão sem-
229
pre querendo passar a perna no outro. Chegou o dia do desfile, sai da frente.
Mas é diferente do futebol, por exemplo, em que as torcidas se matam, é uma
coisa animal. No carnaval você pode entrar em qualquer quadra, de qualquer
escola, que será bem recebido. Existe uma convivência muito legal entre as
escolas. E dentro da quadra existe um universo extremamente democrático.
Pode-se ver homem, mulher, travesti, homossexual, velho, criança, maluco,
bêbado. E todo mundo se dá muito bem, todo mundo respeita.
Você participa da criação do samba enredo?
O que acontece é que quando eu começo o trabalho, escolho as história e
vou escrever a respeito disso. Então eu pego esse texto, entrego na mão dos
compositores, e eles vão produzir o samba a partir dele. Isso vai para uma
disputa, que acontece no mês de outubro, e o samba escolhido será o da es-
cola. As pessoas acham que o samba vem primeiro, mas ele é consequência
da história. Na verdade, a ópera é exatamente assim, você encomenda todas
as partes. O samba também é encomendado, a partir de uma história. Então,
eu faço a fantasia, alegoria, toda parte artística, independente do samba, que
vem para dar musicalidade ao que a gente vai mostrar. A minha interferência
em relação ao samba depende da escola. O carnavalesco sempre é perguntado
a respeito da coerência, se está dentro do enredo, dentro da proposta que ele
quer mostrar. Mas, em algumas escolas, o carnavalesco tem até direito de voto
na escolha do samba. Em outras, é o presidente que decide. No meu caso, eu
não decido nada, porque não entendo patavina de música. E também não
quero entender, prefiro não interferir.
Por que coreografar uma ala?
A coreografia sempre existiu, não é novidade para ninguém. Só que eu ia
assistir aos desfiles, via os carros e fantasias passando e não entendia nada.
Então criamos a maneira de um componente se comportar dentro de um
carro, ou dentro de uma ala, para ele passar o entendimento para quem está
assistindo. A coreografia é uma ferramenta para que o público e os jurados
entendam o que está acontecendo. Mas eu penso primeiro no público, depois
no jurado.
Fale um pouco isso de a escola sair correndo da avenida para conseguir
terminar o desfile no horário.
230
Nós fazemos uma projeção de tamanho da escola, de todas as alas, todos
os carros. Todos os segmentos da escola são medidos no papel, e fazemos
uma planta baixa, com o espaço que cada ala vai ocupar. E isso é distribuído
dentro de um tempo. Tudo é cronometrado. Algumas escolas não trabalham
dessa maneira, até por falta de conhecimento. Mas esse trabalho é importante
para que a escola não seja despontuada, porque se você entra na avenida com
um andamento e depois mexe, começa a correr, o jurado pode tirar ponto,
alegando que a escola perdeu a evolução, perdeu a harmonia do desfile. Então,
tudo isso tem que ser cuidado.
Esteticamente, como você pensa a composição das alas? Como ordenar
essa ópera?
O que dará a ordem, a princípio, é a história que será contada. Agora,
para saber como a escola vai se comportar de ala pra ala, é preciso fazer uma
projeção dentro do que a gente chama de tapete, que é a palheta de cores
vista de longe. A gente faz essa separação na hora que estamos colorindo
tudo. Podemos trabalhar com contrastes e harmonizações, por exemplo. Isso
depende do conceito de cada setor. Às vezes você tem um setor que é mais
forte, que o tema tem que ser mais forte, ou um que é mais brando. Então,
você tem que partir desses conceitos para poder fazer essa arrumação.
Como se movimentam os carros alegóricos?
É uma pergunta que eu me faço até hoje: como conseguir carregar aquelas
coisas na avenida? Antigamente, era muito problemático, tínhamos muitos
problemas técnicos. Com o crescimento do carnaval e a seriedade do espe-
táculo, a Liga não admite mais que o carro quebre. Então, hoje isso é muito
bem cuidado. Temos estruturas de vigas, chassis de caminhão, tudo muito
bem trabalhado. É óbvio que os profissionais responsáveis por isso podem
falhar, então é preciso ficar em cima deles. Afinal, o grande sucesso do desfile
depende disso. Se um deles falhar, acabou. É preciso ser extremamente cuida-
doso com aquele segmento, que, na verdade, é o que aparece mais. Alegoria,
hoje, é o fundo da cena.
Fale de uma cena que te marcou, de outros carnavais que você fez.
Em 2004, eu projetei o carro do DNA. Eu era um nobre desconhecido, vindo
do grupo de acesso, e comecei a fazer um carro alegórico que era ferro puro.
231
As pessoas olhavam para o carro, olhavam para mim, não me falavam nada,
mas eu percebia a desconfiança. Então eu comecei a ter problemas técnicos
com esse carro, o ferreiro não estava fazendo os moldes que eu queria, e eu
chamei o presidente e pedi que ele tomasse alguma providência, para que a
gente conseguisse mudar a estrutura interior do carro. O presidente chamou
outro ferreiro, e quando ele começou a trabalhar, o carro desabou dentro do
barracão. Então eu disse para o presidente que aquele carro seria a estrela
do carnaval, insisti, e ele falou que tudo bem, podia reconstruir. Quando o
carro chegou na avenida, os empurradores não queriam levar ele. Mas, na
concentração, os jornalistas começaram a se interessar pelo carro, a subir
e descer, e a reação da concentração foi tão boa, que todo mundo passou a
gostar do carro, os empurradores ficaram felizes. Essa foi uma história que
marcou bastante a minha vida, tanto que tatuei o carro no meu corpo.
233
Bruna, como você começou na cenografia?
Eu já fazia alguns cursos de teatro e entrei num curso profissionalizante, um
curso técnico em Belo Horizonte, de formação de ator. Paralelo a ele eu entrei
para a graduação em arquitetura e procurei direcionar nela o meu aprendizado
para o teatro. Já na arquitetura eu desenvolvi uma pesquisa, como bolsista de
graduação, em cenografia. Mas comecei a trabalhar com cenografia mesmo na
peça de formatura que eu fiz – além de atuar, eu fiz o cenário também.
Exitem cursos de cenografia no Brasil?
Existem. Não em Belo Horizonte. Quando eu entrei em arquitetura não
existia graduação em artes cênicas ou em teatro lá. Hoje, os cursos de teatro
em Belo Horizonte tem a matéria de cenografia, o curso de arquitetura tam-
bém tem como optativa a cenografia. Minha formação nessa área foi baseada
– além de em pesquisas – em oficinas de curta curação, como os festivais de
inverno e os festivais de teatro.
Tem uma longa tradição de arquitetos que viram cenógrafos, não é?
Tem. É uma profissão muito próxima. Independentemente de ser teatro ou
uma casa, é um projeto. A diferença é saber que, em vez de moradores, são os
Christófaro
Cenógrafa e diretora de arte.
Bruna
234
atores que estarão lá. Esse processo de pesquisa consiste em saber transmitir
para o espaço essas necessidades. Desenhar, projetar e ir acompanhando a
execução, ou executar.
E como é viver de cenografia?
Eu não trabalho só com teatro. O que eu não faço é trabalhar com coisas
que não tenham a ver, coisas fora da minha área. Eu sou arquiteta e cenó-
grafa, e vivo disso. Trabalho com cenografia de arte para a televisão, que é
um programa com bonecos, é a linguagem do teatro de bonecos, mas é TV. E
paralelamente, faço trabalhos no teatro.
Existem cenógrafos que vivem de cenografia teatral?
Existem, mas em lugares onde têm mais produção teatral. Em São Paulo
e no Rio de Janeiro existe. Em Belo Horizonte quase não existe. Lá tem um
cenógrafo muito importamte, o Raul Belém, ele vive disso. Mas ele é grande,
montou uma escola de formação de cenotécnicos. As pessoas que trabalham
com isso juntam a aula e a produção.
O Antunes Filho fala que em cenografia mais é menos, em relação ao
protagonismo do texto. Qual é a sua concepção estética de cenário?
Eu concordo. Tenho dois exemplos que estão acontecendo agora: um é
a cenografia do Amores surdos, do Grupo Espanca!. Uma cenografia muito
atuante, mas o público não percebe tanto. É uma história de amor de surdos,
em uma família que não se comunica, até acontecer um realismo fantástico,
até acontecer uma coisa muito absurda, que esse povo nunca viu na vida. E
o cenário conversa com essas coisas. É todo branco, o material usa transpa-
rências – dá para ver o que está acontecendo dentro da casa, no palco. Está
explícito e transparente, e ninguém vê os personagens, mas ao mesmo tempo
vê. Essa agonia está presente, e a cenografia possibilita isso. De repente co-
meça a descer lama, e os personagens não veem, e o público vê, ainda mais
uma lama em um cenário branco. Gera uma tensão no público. Tem uns
elementos que têm força própria. O outro caso é um espetáculo que eu es-
tou fazendo, que ainda vai estrear. Ele é superlimpo, plasticamente bonito
e atende tudo da peça, mas não pode aparecer demais, porque já tem muita
informação. Não se pode pensar: “Ah, deixa eu colocar mais coisa aqui para
mostrar que tem cenário!” Temos que saber o que a peça pede. Acho que há a
235
questão do mais é menos por isso: se colocar mais do que é preciso, a própria
peça, com o tempo, vai pedindo para tirar e você vai eliminando.
Isso é diferente para a cenografia de cinema?
No cinema não é possível refazê-la. O cinema tem a pré-produção, im-
portantíssima. Antes da gravação você tem um período de pesquisa, de
projeto, de teste. E na hora de gravar, gravou. Está lá para a eternidade. Toda
a transferência que há no teatro – o crescimento com os ensaios até chegar
o momento da estreia, e depois você ainda poder trabalhar um pouco em
temporada – no cinema se transfere para a pré-produção.
É muito comum um cenógrafo trabalhar em várias áreas ou o normal é
ele se especializar em uma?
O cenógrafo atua no teatro, televisão, cinema, shows, videoclipes, publicida-
de. Por mais que você fale que publicidade é comercial, o que assusta o artista,
tem o fato de ser rápida, ela acontece, você vê se funciona ou não, e depois pode
aplicar de outra forma na sua obra. Além de vitrine, exposição, museus etc. É
importante para o cenógrafo essa diversidade de linguagens.
O José Carlos Serroni fala que “a cenografia não deve ser nem decorativa
nem descritiva, deve sempre buscar poesia. Quanto mais harmônico com
todo o espetáculo, mais adequada será”. O que isso significa?
Por exemplo, uma peça que fale do sertão mineiro. Se eu sair colocando
no cenário inteiro uma juta, é muito literal. Tem-se que encontrar meios de
passar na imagem o que a peça está dizendo, mas não recriar o mundo no
palco. Isso que ele fala da poética, recriação.
E decorativo são penduricalhos?
Ele está também falando um pouco sobre o teatro realista, onde o quarto
é o quarto e está cheio de objetos que tanto para cena quanto para o ator não
acescentam nada.
Como é o processo criativo entre o cenógrafo e o diretor?
Minha formação é de atriz também, sempre me preocupo e fico muito
atenta ao que o ator e o diretor estão propondo ao espetáculo. Acompanho
os ensaios, vejo a direção desses ensaios. Pois quem vai fazer o cenário existir
236
são os atores. Eu posso fazer um cenário – fisicamente montado – e você ver
do que ele é feito, o material, qual o tamanho. Mas para transportar para esse
mundo imaginário, só o ator. Sem o ator, não passa de um painel, um enfeite.
As tecnologias – vídeo, telões – estão criando mudanças sérias na ce-
nografia?
Eu vi um espetáculo num festival fora do Brasil em que pensei: “Nossa, é
a primeira vez que vejo uma projeção integrada ao espetáculo!” Eu acho que
já passou um pouco, mas acontece ainda de se usar tecnologia e ficar pouco
integrada à peça, se tornar apenas um recurso visual bonito. Esse é um risco,
mas as novas possibilidades tecnológicas só acrescentam, aumentam as
possibilidades de atuação para todos.
Existe o Antunes Filho e a ideia de “mais é menos”, e existe a cenografia
do Hélio Eichbauer, da montagem que o Zé Celso Martinez Corrêa fez
de O Rei da Vela, em que é tudo bem expressionista, extremamente forte,
colorido. Há um fluxo do expressionismo para o minimalismo no Brasil?
Eu tenho visto uma tendência mais minimalista. Mas o teatro é tão plural
que fica complicado falar de tendência. No Dango Balango, por exemplo, esse
programa de televisão que eu faço, se tem essa visão: de vez em quando a gente
faz umas coisas mais dramáticas, outras horas mais limpas. É bom experimentar
esses caminhos. Eu não creio que tem que ser imposto um tipo de linguagem.
Como lidar com os orçamentos fechados das leis do incentivo, em con-
traposição à construção do cenário, que tem que se adaptar à peça? Como
libertar a cenografia e, ao mesmo tempo, permitir o incentivo a ela?
Não só no teatro, mas em tudo, na TV, na arquitetura, sempre tem um limite
que direciona para quais materiais você vai escolher. Eu sempre tenho esse
patamar, posso trabalhar até tantos reais. Se tem menos dinheiro, com certeza
vou trabalhar com materiais mais baratos, buscar soluções. A concepção do
espaço vai ser diferente. É complicada essa pergunta, porque não limita o
cenógrafo, apenas o informa. Porque você faz com o que tem.
Com mais dinheiro a cenografia brasileira seria diferente?
Será que se a gente tivesse dinheiro a gente faria igual à Broadway? Com
todo o maquinário? [risos] As escolhas do diretor, da companhia, fazem toda
237
a diferença. Existe também o que se quer transmitir. Cada tipo de espetáculo,
cada linguagem tem suas características e seus custos. Não acho que seja o
orçamento que influencia mais a linguaguem.
O Gianni Ratto, no Antitratado de cenografia, fala que “existe uma ceno-
grafia polivalente, cuja variedade de temas oferecidos termina por
provocar uma pequena tempestade de tentativas, propostas e imposições
para o espetáculo”. Ele está falando da turbulência de linguagens.
Como posicionar a cenografia diante disso?
Essa profusão de maquinário vem do teatro italiano, na história da ce-
nografia. Depois disso não existem mais padrões, como foi o teatro grego, o
medieval, a commedia dell’arte etc. Isso define linguagens, mais com relação a
processos autorais do que uma linguagem histórica. Cada um segue uma linha.
Eu tenho tido um padrão – não sei se é pelo meio, se é pelas pessoas que
eu encontro – de todo mundo pensar mais ou menos numa linha que não
vai para o realismo. E todo mundo fica satisfeito nesse tipo de espetáculo,
nos espetáculos que eu tenho feito. Atualmente, cada espetáculo tem uma
sobreposição de camadas. Não tem mais regra fechada em relação ao texto,
ninguém tem necessariamente que pegar um texto e encená-lo à risca, ele
pode ser criado no processo ou pode ser uma colagem de vários textos. Então
o texto, o cenário, os atores, a iluminação, o figurino, cada uma dessas etapas
tem uma voz própria dentro da peça. Eu tenho visto mais isso. Tece-se um
todo, que é o espetáculo.
Mas existem tendências na cenografia?
Não, eu acho que falar de tendência agora não é o momento, principal-
mente por essas questões. A profusão de estilos e linguagens é muito grande.
E nessa profusão de estilos existem cenógrafos que viram mais autorais
e outros que viram mais funcionais dentro da peça?
É impossível uma cenografia ou uma peça passar por um cenógrafo sem
a sua interpretação. Por mais que se ouçam todos, é impossível não colocar
o que se acredita. Vem da formação, do estudo. Mas tem peças em que se
ousa mais, e outras nas quais se é mais um suporte pra coisa acontecer. Eu já
fiz cenografia para uma peça chamada Sobre nós, que tinha um palco limpo.
Eu usei uma transparência, onde se via o bastidor, uma marca no chão de
238
grama verde e duas luminárias. Pronto. Aí eu vou falar que eu atuei pouco?
Não. Porque até chegar nisso foram os ensaios todos, para vermos que o es-
paço vazio era o melhor para os atores poderem criar seus próprios espaços
e histórias ali – porque eram muitas histórias. Então, qualquer coisa que eu
criasse ia ao encontro da imaginação do público e deles.
Fale um pouco sobre a relação entre cenografia e figurino.
Tem a questão das cores e da linguagem. Não vai adiantar nada eu fazer
uma linguagem mais poética, mais subjetiva para uma peça se o figurino for
completamente literal. Eles têm que casar. Ou na mesma paleta de cores, ou
com cores complementares, esteticamente eles têm que estar casados. As
pessoas muitas vezes conduzem o cenógrafo a fazer o figurino. Eu tenho outra
tendência, eu observo muito a iluminação, mais do que o figurino. Porque o
figurino a gente conversa quase sempre, tem a direção de arte, cuida do cená-
rio, cuida do figurino, cuida da caracterização, para criar uma linguagem que
diga a mesma coisa. Mas a iluminação... eu gosto muito de comprar materiais,
de usar materiais que conversem com a iluminação no sentido de refexão de
luz, ou de aproveitar uma transparência, de aproveitar uma profundidade do
espaço com luz, aproveitar uma marcação ou uma definição de espaço com a
iluminação – o que só funciona se houver um bom diálogo com o iluminador.
Ele pode valorizar muito o que você pensou. Tanto o espaço quanto o material.
E, ao mesmo tempo, se ele não vê coisas que você pensou que poderiam ser
bacanas, aquilo desaparece. Se o iluminador não viu, ninguém vai ver.
Fale sobre dificuldades de produção de uma cenografia, de encontrar
materiais, encontrar profissionais que saibam fazer.
Quando eu penso num material e não o encontro, saio e fico olhando até
achar algum que me satisfaça. O cenotécnico salva a minha vida sempre,
porque eles dão soluções para tudo, às vezes até sobre os materiais. São pes-
soas que têm que conhecer de tudo: serralheria, marcenaria, costura, tecido.
Tudo ao mesmo tempo.
E a mão de obra no Brasil? Existem bons cenotécnicos no Brasil ou pre-
cisaria de formação de cenotécnicos também?
Eu ouço partir deles a reivindicação para que tenha. Existem cursos de
profissionalização começando, mas eles precisam ser muito capacitados.
239
Como o arquiteto e o cenógrafo. Eu não acho que qualquer arquiteto possa
ser cenógrafo: não adianta ele só saber o que está executando. A linguagem,
o uso da dramaticidade, a praticidade que você tem que ter de montagem e
desmontagem, que só a formação de arquitetura não dá. Ou só a formação
de técnico, só a técnica. Eu acho que ele tem que ter uma formação também
de entender o que é uma atuação, por exemplo. A coisa deve ser prática,
bem-feita, e para a finalidade que ela vai ser usada.
Fui montar em Belo Horizonte o espaço de encenação para o Teatro da
Vertigem, na cadeia. Era uma cadeia desativada. Tínhamos que reformar
para o Vertigem passar. Aí chamamos um pedreiro. E era uma coisa, porque
a gente queria fazer as paredes de um jeito, e para o pedreiro aquilo não fazia
sentido. Os atores se arrastavam no chão, onde havia buracos que precisavam
ser tapados. O pedreiro não queria fazer, disse que não ia fazer porque não ia
ficar bom, ia durar muito pouco e não ia ficar bom. Eu perguntei: “Mas muito
pouco quanto?” “Duas semanas”, ele disse. Eu respondi: “Mas duas semanas
é o que precisamos, por favor, faz!” E como ele vai entender que é para ele
tapar um buraco só por duas semanas? [risos] Ele tem que saber dos usos dos
materiais e também do resultado esperado.
Numa ópera, além de tudo, o cenotécnico tem que saber pintura de arte,
não precisa ser um especialista, porque provavelmente vai ter um que vai ser
especialista. Mas tem a pintura de superfície e tem a pintura de arte, que é essa
que imita texturas e tal. Então eu acho que o conhecimento do cenotécnico
tem que ser muito grande.
O que é cenografia?
Eu vejo que entre as palavras “cenário” e “cenografia” existe uma grande
diferença. Porque a cenografia abrange não só o que eu montei, o que eu
usei de material físico para ambientar a peça. Ela envolve também o uso dos
atores, envolve a percepção do público, é um termo mais amplo. Ela envolve
os demais elementos da cena e permite tanto ver melhor o trabalho feito na
encenação, o trabalho dos atores, quanto estimular, dar opção para os atores,
que é o jogo de estar integrado ao espetáculo. E ela traduz imageticamente.
É uma imagem do espetáculo, mas traduz também essa sensação, a poesia
do espetáculo, o que o espetáculo quer dizer tem que estar ali também. É um
suporte para que o público embarque e entenda melhor a história, o texto, o
que está acontecendo ali.
241
Como foi criado o Grupo de Contadores de Estórias?
O Grupo Contadores de Estórias começou em Nova York, em 1971. Nós já
estávamos juntos, e tínhamos ido da Universidade de Brasília para Nova York. A
nossa ideia era estudar, e realmente estudamos. Estudei ilustração, e o Marcos,
teatro e dança. Ele trabalhou com The Open Theater, que era, junto com The
Living Theater, os dois principais grupos de vanguarda de teatro. Quando senti-
mos que nossa formação já estava num ponto legal, fomos à luta. Pensávamos
em fazer uma coisa, só nós dois. A minha contribuição seria no campo das artes
visuais, os personagens que criamos foram bonecos e máscaras. Antes, a gente já
tinha uma vivência de teatro de bonecos. Saíamos de Brasília e íamos para Goiás
Velho, para Pirenópolis, com a ideia de ver qual era a cultura popular daquele
lugar, e como era feito. Nosso primeiro espetáculo, em Nova York, que inaugu-
rou o Grupo Contadores de Estórias, foi uma história de folclore brasileiro. As
máscaras eram feitas com a técnica usada naqueles lugares. As cavalhadas e a
festa do divino foram referências para nós, pelas máscaras de papel machê – pa-
pietagem, na verdade. Apesar de ter nascido em Nova York, o grupo estava bem
enraizado na cultura brasileira. E estamos trabalhando juntos desde essa época.
Você se define como aderecista, cenógrafa ou bonequeira?
RachelRibas
Atriz, cenógrafa e aderecista, co-criadora do Grupo Contadores de Estórias.
242
Eu me defino como bonequeira, cenógrafa e aderecista. Eu tenho uma
formação de cenógrafa, faço os cenários do Grupo Contadores de Estórias.
Figurinos também. Participo em tudo que é visual no trabalho da gente, até
muitas vezes nas artes gráficas. O que me destaca são os bonecos, que são
especiais. É o que faz com que o grupo seja convidado para festivais no mundo
inteiro. Trata-se de um trabalho de grande força visual. Eu costuro, modelo,
mas eles são frutos de um trabalho conjunto. O Marcos é que faz com que
um objeto, que está bem-feito e bonito, vire um objeto cênico com expressão.
Como é o processo de feitura do boneco?
Todos os espetáculos do Grupo Contadores de Estórias são escritos, ro-
teirizados, criados e dirigidos pelo Marcos, com uma visão muito clara da
encenação. Na década de 1970, a gente trabalhava com espetáculos ao ar
livre, com bonecos enormes. Nós pesquisávamos as histórias juntos, e ele
as transformava em espetáculos. Ele falava: “A gente vai fazer isso ao ar livre.
Esses bonecos têm que ser grandes.” Aí eu fazia grande, com um metro. Ele:
“Não. Grande. Grande.” O grande dele era cinco metros de altura. Não tinha
nem como construir esses bonecos na casa em que a gente morava. Porque
numa praça, competindo com os prédios, com viadutos, as árvores, tinha
que ser grande. A divisão é esta: eu sou uma artista e ele é o diretor de arte.
Qual era o material que usavam?
Principalmente papietagem. Fala-se papel machê, mas papel machê é
uma massa de papel. Papietagem são tiras de papel sobrepostas com cola que
cobrem um molde. Depois você tira o molde. Cria-se um papelão na verdade.
Muita gente usa o termo “bonequeiro” para quem manipula o boneco,
e isso não corresponde à realidade. Qual é o nome de quem manipula o
boneco? É o manipulador?
Titereiro é o manipulador de bonecos. Quando eu me chamo de bonequeira,
eu quero dizer fazedora de boneco. O tipo de boneco que usamos não tinha nem
nome. Tem fantoche, tem boneco de vara, tem marionete, mas os nossos foram
inventados. Na década de 1980, o Marcos estava mergulhado na cultura dos ín-
dios brasileiros – chegou a aprender nheengatu –, e queríamos que os espetáculos
fossem sobre índios brasileiros. Estávamos em trânsito, numa viagem de Nova
York ao Brasil por terra, e resolvemos criar um espetáculo que coubesse numa
243
mala. Tínhamos, então, que criar bonecos pequenos, que expressassem a sensu-
alidade do índio brasileiro, que fossem uma coisa muito orgânica. Esses bonecos
que criamos, de mais ou menos cinquenta centímetros, viraram nossa marca
registrada. São poéticos, bonitos, e são os mais associados ao nome do grupo.
Como é trabalhar com o silêncio?
Não usamos texto desde 1980. É uma disparidade, porque o nome do
grupo é Contadores de Estórias. Não trabalhamos para crianças nem usamos
palavras. E é “estórias” em homenagem a Guimarães Rosa. O nome veio do
fato de sempre pesquisarmos histórias de tradição oral. Essas histórias, por
já rolarem há tanto tempo, são completamente essenciais. Foram contadas
tantas vezes que perderam o que tinham de supérfluo. São joias de concisão.
Como o haicai, que é o máximo de síntese em termos de poesia. No tempo
dos bonecos grandes, havia narrativa, muitas vezes não tinha diálogo, mas a
história vinha em forma de palavras. Na passagem para os bonecos menores,
o Marcos percebeu que não precisava da palavra, podíamos contar aquele
pedaço de vida sem usar palavra nenhuma.
O teatro de bonecos está muito ligado à ideia de teatro infantil. Não é
o caso de vocês, certo?
É uma sequência de contramão. O Yan Michalski, que era um crítico super-
conhecido no Rio, falou que éramos um grupo na contramão das tendências.
No tempo da ditadura, que não podia ter aglomerado de gente na rua, a gente
estava fazendo um espetáculo para milhares de pessoas ao ar livre. O mais bada-
lado dos espetáculos dessa época, que se chamava A fabulosa história de Melão
City, era baseada numa lenda do Afeganistão. Era um espetáculo anarquista
e estava sendo apresentado nos piores anos da ditadura no Rio, juntando três
mil, quatro mil pessoas, nos parques. Na época, a Funarte era Serviço Nacional
de Teatro. A sua política era alugar salas de espetáculo, tudo voltado para o
teatrão. Para fazermos esse espetáculo ao ar livre, conseguimos um patrocínio
do Departamento de Parques e Jardins. Passou anos, no Rio, mantendo uma
companhia assim, de dez pessoas, às vezes quatorze, todos remunerados para
fazer espetáculos nas praças. Quando houve a abertura, fazíamos uma coisa
superintimista, para poucos adultos, em teatros pequenininhos. Estamos sem-
pre abrindo portas, o que é a definição de pioneiro. Suor e sangue para abrir
um caminho que depois os outros vão trilhar.
244
Fale como funciona contracenar bonecos com atores.
Historicamente, os bonecos são caricaturas do ser humano, o grotesco do
ser humano. Não queríamos isso, para nós é como se eles fossem gente, nada
grotescos, com movimentação quase humana. Quando misturamos bonecos
com atores ou bailarinos, acontece um exercício de zoom, em que você aproxi-
ma e afasta. Se tiver uma cena acontecendo com movimentação e música, ela
já é dança. Assim, o boneco dança mesmo quando faz uma coisa muito corri-
queira. Uma velhinha que coça o pé no ritmo da música já é uma coreografia.
E muitas vezes a mesma sequência de movimento é feita pelo boneco e pelo
bailarino, às vezes em contraponto. Em um espetáculo em que foi mais presente
a mistura de bonecos e bailarinos, os bonecos eram como vírgulas entre as
cenas coreografadas com bailarinos, como uma vírgula antes da cena seguinte.
E sempre acontece no mesmo espaço?
Sim, a luz está no palco inteiro enquanto as pessoas dançam. De repente,
a luz foca num canto e acontece uma sequência feita por um boneco, depois
volta para as pessoas grandes, tudo contando uma mesma história. É um
mesmo assunto, e numa parte do assunto algo é feito com boneco. Os bonecos
servem como um aposto.
Como é a experiência de gerir o teatro?
Em 1971, criamos o grupo. Em 1981, fomos para Paraty. Moramos fora do
Brasil várias vezes.
Um dia, fomos nos apresentar num festival de teatro de rua em Paraty.
Achamos que era o lugar onde deveríamos morar. Um ano depois, a gente
entrou num circuito de turnês internacionais. Morávamos em Paraty e traba-
lhávamos fora do Brasil. Trazíamos o dinheiro desses festivais, montávamos
outro espetáculo e íamos para fora de novo. Com o dinheiro de três turnês,
compramos uma casa no Centro histórico. Passamos a morar num sobrado e
havia um espaço que era o nosso ateliê. Mas não tinha espaço onde ensaiar e
apresentar. Então, nós compramos um espaço com o intuito de ter um estúdio
para montar os espetáculos.
Teatro e ateliê juntos?
O local de trabalho. Nunca imaginamos que a gente ia se apresentar em
Paraty. Eu não me lembro porque resolvemos apresentar. Estreávamos um
245
espetáculo, íamos mostrar para os amigos antes de trazer para São Paulo, Rio
de Janeiro, usando o espaço. Não passava pela nossa cabeça que funcionaria.
Imagina, numa cidade com seis mil habitantes... Mas sempre trouxemos ou-
tras coisas: grupos de música, dança, eventos. O teatro ficou sendo um centro
cultural. Até que uma vez resolvemos experimentar, e nos apresentamos. Pa-
raty tem uma coisa muito engraçada: a cada semana tem um público novo. O
público é móvel. Estamos em cartaz há quatorze anos, duas vezes por semana,
o ano inteiro, e sempre tem público. Isso garante a sustentabilidade do teatro.
O fato de Paraty ter uma vida cultura ativa, com festivais de literatura
e fotografia, por exemplo, ajuda?
Paraty tem uma cultura local muito forte, que ficou preservada porque
ficou isolada muito tempo. E é um cenário maravilhoso. Todas as festas
religiosas continuam acontecendo. Tem uma quantidade de ateliês de artes
plásticas, artistas que moram lá, ou que têm casa lá, e frequentam as festas há
muitos anos. Fazemos parte desse ecossistema. O que faz Liz Calder chegar
em Paraty, e dizer: “Ah, eu vou montar um festival literário internacional aqui
e vai dar certo”? Ela soube olhar em volta e ver que a cidade tem esse perfil
cultural. E um teatro que funciona o ano inteiro, numa cidade do tamanho
de Paraty, tendo público permanente é muito representativo.
Como é o processo de viabilidade do teatro?
O teatro não depende de patrocínio para sobreviver. Somos dez pessoas
que vivem do teatro. Conseguimos sobreviver da bilheteria. Precisamos de
patrocínio pontualmente, para montar um espetáculo. Em compensação, não
sobra dinheiro para fazer uma reforma ou comprar equipamento novo. Isso
já é querer demais. Sempre digo que a gente tem noventa mil patrocinadores.
Quem tem só um, quando ele dança, o teatro fica órfão. Às vezes acontece
um patrocínio, e a gente faz render o máximo possível, para atender todos os
sonhos, que vão sendo adiados.
Como você aprendeu a fazer bonecos? É possível de ensinar?
Sabe aquela criança que tem jeito para desenho? Então, eu sempre soube
que ia ser artista, que ia trabalhar com as mãos. Eu estou sempre fazendo
alguma coisa. Tenho habilidade manual. Quando faço um boneco, ele já é
um objeto legal, mas para ele ter a força cênica que tem, eu não sei fazer
246
sozinha. Nós fomos descobrindo as coisas juntos, em termos de confecção.
Em Nova York, quando comecei a fazer bonecos, morávamos a uma quadra
do Central Park, e pensamos: “Vamos lá. A gente faz o espetáculo e passa o
chapéu.” Como o elenco eram só duas pessoas, decidimos construir. Tínhamos
o aprendizado do interior de Goiás, então fizemos máscaras, bonecos, com
essa técnica de papel. Botamos tudo num saco e fomos para o parque fazer
o espetáculo. Na primeira apresentação ganhamos uma moedinha de dez
centavos. Veio um menininho, entregou, e disse assim: “Olha, é para dividir
entre vocês dois”, porque ele não tinha duas de cinco centavos. Era início da
primavera. Quando chegou o meio do verão, o público era de trezentas pes-
soas, que sabiam que íamos todo final de semana ao mesmo lugar do parque,
e elas iam acompanhar nosso trabalho. Uma maneira de aumentarmos o
nosso elenco era contar com a participação das crianças. No fim, tinha uma
festa, e todas as crianças vestiam, cada uma, uma máscara. A gente construía
junto esses bonecos. Eu estava aprendendo a fazer teatro, e o Marcos estava
aprendendo a fazer máscaras, a pintar.
A troca de experiência com outros bonequeiros ajuda?
Agora, depois de muitos anos, começamos a frequentar festivais de teatro
de bonecos. As pessoas falam: “Ah, mas vocês não põem cadarço?” Eu não
tinha a menor ideia do que é cadarço. Não conhecemos o jargão do teatro de
bonecos. A gente aprendeu a resolver as questões na prática. Por exemplo, a
gente precisava de um boneco nu, para fazer um índio. Geralmente, os bo-
necos têm varinhas e dobradiças que a roupa esconde. Nesse caso, ele tinha
que ficar nu, e a gente queria que ele tivesse um movimento o mais parecido
com o movimento de uma pessoa. É esse o tipo de problema que temos que
resolver no dia a dia.
Existe uma tradição mundial de teatro de bonecos?
Sim. O teatro de bonecos japonês, o bunraku, anterior ao kabuki. O teatro
com atores se inspirou no teatro de bonecos, no mundo inteiro existe. Mas
o que a gente estava querendo resolver era questão nossa, não tinha nome,
ninguém usava. Agora, no Brasil, muitas companhias usam. Eles chamam
de manipulação direta.
Por que o manipulador aparece nas suas encenações?
247
No fantoche, por exemplo, o manipulador está escondido pela empanada,
aquele palquinho. E na marionete não aparece nem a mão do manipulador.
Isso é uma tradição no teatro de bonecos. No nosso caso – e isso é parte da
linguagem do Marcos, e vem desde sempre, desde os bonecos grandes –, o
ator está sempre presente e visível. O manipulador se veste de preto, com
capuz, mas o fundo é azul. As mãos, volta e meia, aparecem pela frente do
boneco, porque ele segura o boneco direto com a mão. Mas as pessoas estão
tão envolvidas com o que vai acontecer com aquele personagem, que eles não
estão olhando mais o manipulador. Quem está assistindo àquilo opta por ver
só o que quer. Isso é um pensamento nosso, é parte da linguagem do Marcos.
Alguns bonecos devem ter marcado época. Fale de alguns desses perso-
nagens aqui.
Nunca esquecerei, entre os bonecos grandes da década de 1970, o rei dessa
história do Afeganistão, o Rei Melão. Era um rei de cinco metros de altura, e ele
não fazia nada, não falava, a voz era feita por atores de fora, e ele simplesmente
vinha, era carregado por quatro atores, levado como um rei. Ele só andava na
praça, uma coisa muito imponente. A cara desse rei é o símbolo do grupo. Uma
figura muito impressionante, um ícone da nossa história. Na década de 1980,
a gente fez esses bonecos pequenos, e o espetáculo que foi mais marcante
foi o primeiro, que se chamava Mansamente, com os bonecos indígenas. A
figura de um casal de índios, que na última cena da história transava, e era
uma transa muito, muito poética, superbonita, doce, mansamente. Então, eu
diria que esse casal de índios é, mais ou menos, o símbolo desse formato de
teatro com os bonecos pequenos. E um espetáculo que foi feito em 1990, da
fase de trabalhar mais com dança, que foi Rodin, Rodin. Era um espetáculo
com bailarinos e com alguns bonecos, baseado nas esculturas e desenhos de
Rodin, muito lindo. E por causa desse espetáculo a gente acabou fazendo uma
performance que chamava Museu Rodin vivo, quando a exposição do Rodin
estava na Pinacoteca. Tinha 42 intérpretes. Era como se estivesse andando no
museu, e as estátuas eram coreografadas, e os bailarinos faziam coreografias,
passando por todas as esculturas do Rodin, com um teor emocional forte. Foi
bem interessante poder fazer uma superprodução em São Paulo.
249
Como você começou a trabalhar com dança?
Costumo dizer que foi muito ao acaso. Trabalhava na parte adminis-
trativa de um espaço cultural que a Regina Miranda tem em Laranjeiras,
que é também o espaço que ela utiliza para ensaios da sua Companhia de
Dança. Eu contatava pessoas para fazer trabalhos da parte de teatro, luz,
som, contrarregragem, esse tipo de serviço. Chegou um ponto em que eu
comecei a ajudar e acabei me apropriando de algumas funções. A primeira
delas foi a contrarregragem; depois fui mexer com maquinaria, luz, cenários.
Em seguida, comecei a viajar com a companhia e fui me desenvolvendo,
aprendendo mais.
Como era o trabalho com contrarregragem?
É preciso montar, produzir a cena. Ver o que está naquela determinada
cena, tirar os outros objetos, colocar o que falta. E também acompanhar o
andamento da peça. Digamos que alguma coisa caiu: você tem que esperar
o momento certo, o black out, para retirar essa coisa da cena. A contrarre-
gragem exige todo esse acompanhamento e cuidado.
Depois de contrarregra, você fez o quê?
GilSantos
Coordenador técnico do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro.
250
Fui aprendendo a montar a maquinaria. Tem espetáculos em que é pre-
ciso pendurar alguma coisa, ou tem elementos que entram e saem de cena.
Alguém tem que pôr esse funcionamento em ação. Foi exatamente isso que
eu fui aprendendo, na força de vontade mesmo, na necessidade. Eu observava
as pessoas, o fazer de outros, indo ao teatro, e ia aprendendo, sabendo que
um dia aquilo ia ser útil.
O profissional da área cênica hoje em dia tem curso de formação, mas até
pouco tempo era muito o conhecimento passado de um profissional para
outro. Talvez estejamos nesse lugar ainda. Apesar de existirem cursos, esse
contato direto, esse boca a boca ainda é uma prática forte. Eu exercito muito
isso hoje com jovens que trabalham comigo, vou passando o que eu sei. E
também não adianta só o saber teórico. A gente aprende a cada espaço. Em
cada espaço a gente tem uma possibilidade de montagem diferente, de criar
maquinarias diferentes. Você pode ter alguma coisa já predefinida, mas de
repente, se não tiver uma pessoa que faça uma visita técnica antes, pode
ter surpresas. Então, para trabalhar com maquinaria, você precisa saber se
adequar às necessidades, e isso só se aprende na prática.
Depois de maquinista, você começou a trabalhar com o quê?
Depois eu comecei a pensar em construir, em montar cenários. Fiz um tra-
balho montando cenários com o César Sales, que é maquinista, mas também
trabalha com cenários. Ele me convidou para ajudar. Eu gosto desse trabalho
de cenotécnico. Então comecei a mexer com isso e a aprender também. Essa
é uma profissão que a gente não cursou, que entrou de forma forçada, devido
a situações de necessidade.
Hoje em dia, na área cultural, a gente esbarra muito na falta de verba.
Quando as companhias, seja de dança, teatro ou música, inventam de ter um
cenário, elas esbarram no custo. Então procuram pessoas que possam somar,
ajudar, procuram quem já tem alguma experiência, quem já fez alguma coisa.
Isso também dá oportunidade de a gente aprimorar nossos conhecimentos.
O caminho é por aí.
Depois de cenotécnico, você foi trabalhar com luz?
Isso aí já é uma grande paixão. Quando você vê os grandes mestres da
iluminação e o que eles fazem dentro de um espetáculo, o diálogo que eles
conseguem ter com o movimento, entre o espetáculo e a luz, a gente percebe
251
que é algo maravilhoso. E eu me encantei e decidi aprender. Eu tive a opor-
tunidade de trabalhar com grandes mestres, subindo refletor, montando, afi-
nando. E depois passei a desenhar a luz. Um passo de cada vez, bem gradativo
mesmo. Você tem que saber realmente o caminho, e ter o compromisso de
assistir ao espetáculo. Não basta você chegar, botar a luz lá em cima e virar
as costas. É preciso assistir àquilo, ver o que a gente traz com esse olhar. É
muito importante que os jovens que acham interessante trabalhar com luz
assistam aos espetáculos. Porque tem que haver esse compromisso, de ver
se é isso que o espetáculo pede.
Qual a diferença entre um técnico de luz e um iluminador?
Um técnico tem que ter um conhecimento de carga, conhecimento do que
tem nos espaços, os diferentes tipos de refletores. Ele sobe, monta e até opera
a luz. Na verdade todo mundo tem que ter esse conhecimento, não tem jeito.
Se você parar e analisar direitinho, esse conhecimento tem que ser igual tanto
para o técnico quanto para o iluminador. Mas o iluminador tem que ter mais
uma percepção artística, a leitura do trabalho, da linguagem que o trabalho
pede. Tem que estar acompanhando os ensaios, vendo as ideias que o diretor
quer dentro daquele trabalho, para então montar a luz. Eu, por exemplo, crio
luz que outras pessoas operam por mim. Mapeio, passo direitinho as deixas
e a pessoa vai operar. A criação se dá até a montagem, o desenho final, os
ensaios. Depois que você montou o desenho de luz e anotou as deixas, outra
pessoa pode fazer, pode operar. É o que acontece muito comigo.
É comum acontecer de a pessoa que vai operar criar em cima do que você
pensou?
Não pode. Não existe essa possibilidade. A luz está montada, pensada,
construída. Ela é pra ser operada dessa forma, do jeito que está ali.
Qual a diferença da experiência de trabalhar com o teatro e a dança?
Eu trabalhei com dança a maior parte da minha vida. Já trabalhei com
teatro também, mas a dança é muito presente. Como eu falei, eu vim de uma
escola em que a dança era o mais forte. Na dança contemporânea essa coisa
está mais misturada. Tem dança, tem texto, mas o forte mesmo é o movimen-
to. Não é a palavra, é o movimento. O teatro já tem uma forma diferente de
pesquisar: o texto é a linguagem principal. Na dança, o movimento é o mais
252
importante. Você cria a partir dele. O diálogo é com o movimento, mesmo na
dança contemporânea, em que a linguagem é muito forte.
Você está no Centro Coreográfico há quanto tempo?
Eu estou desde o início da obra. Em 2000, o Centro Coreográfico já estava
em obra. Eu já trabalhava com a dona Regina Miranda, que é a diretora. Então
eu fazia visitas ao espaço no desenvolver da obra. Enquanto a obra estava
acontecendo, eu estava indo lá ver, opinando, sugerindo pisos, sugerindo
isso e aquilo para poder ter um funcionamento bacana em todos os aspectos.
Dona Regina é uma pessoa com uma visão muito ampla. Ela pensou desde o
banheiro para portadores de deficiência, ao piso com qualidade para absorver
impacto, um piso pra dança. Ela pensava em tudo, uma coisa incrível aquela
mulher, maravilhosa. Depois quando o espaço foi inaugurado, em 2004, fui
para lá com ela fazer direção técnica, e estou até hoje.
Como vocês lidam com o erro e o improviso?
Quando eu estou na luz, dou um pequeno black out e acho um caminho
para resolver o que não está dando certo. A técnica tem que estar muito ligada
nessa situação. O iluminador ou o operador precisam ser sensíveis a isso. Se
uma pessoa cai, precisa dar aquele BO para que ela possa sair, se arrumar, e
voltar linda novamente. Se fosse teatro, o camarada daria uma improvisada
e seguiria, mas para a dança já é uma coisa que suja muito. E eu sou aquele
cara chato. Fazendo direção de palco, eu olho se está tudo no seu lugar, se tem
algum fio aparecendo, se as pernas estão bem esticadas. Sou chato mesmo.
Não sei se isso é defeito ou se é bom, mas só falo que está ok se tudo isso
estiver realmente pronto, se estiver tudo no seu lugar.
Como é o processo de trabalho com a sua equipe do Centro Coreográfico?
Primeiro, eu tenho que conhecer o espetáculo, saber o que é necessário
para ele acontecer. Tem espetáculo que já chega lá com iluminador, mas de
repente eles precisam de gente para montar, para operar. Então eu pego um
profissional disponível, e se ele souber fazer alguma outra coisa, melhor ainda.
Tem gente que diz: “Só faço isso”. Mas tem outros que querem aprender, então
a gente remaneja. Por exemplo, nós tivemos umas oficinas agora no final de
semana, e o pessoal tinha operador. Aí eu cheguei para o rapaz que ia operar
e falei: “Você quer dar um suporte na oficina que está acontecendo e ficar no
253
som?” É assim que funciona. Se ele fala que não quer, eu não posso fazer nada:
ele vai para casa descansar. Eu não posso forçar ninguém, isso não é legal.
Tem que explorar o que há de melhor dentro de cada um. Eu parto deste
princípio. Mas se ele perceber que isso pode ser importante para a carreira
dele, para o futuro, coloco o camarada para aprender alguma outra coisa
e espero que ele se desenvolva legal, porque dentro do teatro tem sempre
uma tarefa para fazer.
Qual a contrapartida administrativa do teatro?
Essa aí é dura, talvez seja a pior de todas. A pessoa tem que ter um cui-
dado com o bem público. Se um camarada vai fazer um espetáculo que tem
sapateado, e ele quer fazer em cima do linóleo, você como administrador,
como diretor de palco, tem que falar que não. Tem que ter cuidado com as
liberações de Ecad, do Sbat, porque a produção também está em cima. E no
final tudo sobra para a administração. Ver as condições dos espaços, buscar
sempre as melhorias. Se alguma coisa foi danificada na passagem daquela
companhia, o que estiver danificado a gente tem que cobrar dela, porque tem
um contrato que é assinado. Quando a companhia chega ao espaço a gente
entrega o camarim, a luz, tudo certinho, e a administração tem que estar em
cima para ver se nada se quebrou. Isso é muito difícil. Quando queima uma
lâmpada, danifica o linóleo, você tem que cobrar. Cem metros quadrados de
linóleo hoje está uma faixa de uns R$ 5 mil, por exemplo. E quem vai pagar?
Como você lida com os borderôs?
Funciona assim: 15% são retidos para a prefeitura e R$ 0,11 por ticket emitido
ficam retidos para a Ticketronic, que é por onde passa a entrada. Os outros 85%
são repassados para a companhia. Antigamente tinha que fazer o cálculo, mas
com o Ticketronic o borderô já vem montado, já temos o resultado final, você
só paga e repassa. E depois, o que é retido será depositado para a prefeitura.
A tecnologia ajuda em todos esses trabalhos?
Sim, ela é maravilhosa. Talvez seja a coisa mais importante que aconteceu
na técnica. Antigamente, você precisava ficar plugando um monte de coisa.
Você vai, grava a cena, acabou. A mesa de som é a mesma coisa, tudo grava-
do. Então se tornou muito prático. E borderô nem se fala. Praticidade. Isso é
importantíssimo.
254
Fale um pouco sobre a manutenção do espaço.
Todo espaço, em todos em que eu já trabalhei, tem sempre um momento
do ano em que para para fazer revisão de equipamentos. Dá uma olhada na
mesa de luz, manda fazer um check up nela, mesa de som a mesma coisa.
Botar também o grafite nos refletores para que eles funcionem bem, fazer a
limpeza de lentes, esse tipo de coisa. E sempre no teatro, como no Centro
Coreográfico, tem muito equipamento de luz. Então tem bastante trabalho.
É uma vez por ano que a gente com certeza vai dar essa geral para poder estar
funcionando legal.
Comprar é mais difícil. Comprar refletores, não existe essa possibilidade.
É aquilo ali: o refletor é aquele, queimou a lâmpada, a gente repõe e acabou.
Não consigo verba para compra de aparelhos. Aí é o administrador que está
falando, não consigo verba para isso, infelizmente. Queria muito poder con-
seguir, mas um dia a gente chega lá.
Como é trabalhar com coordenação técnica, direção de palco e ao mesmo
tempo com o administrativo do Centro Coreográfico?
O trabalho administrativo é feito de segunda à sexta, até as dezessete ho-
ras. À noite, eu faço o que posso, vejo ensaio e trabalho nessas construções
de luz. E na hora de apresentar, se eu puder ficar para operar, é maravilhoso.
Mas senão, eu mapeio, crio tudo. Até na montagem eu peço para trabalhar
sempre à noite. Eu adoro a noite, é uma coisa maravilhosa. A gente perde a
noção, vai emendando uma coisa na outra, e quando vê, chega na segunda-
feira com aquela olheira enorme. Mas é legal, é bem gostoso. É cansativo, é
uma grande entrega, mas é também muito gratificante ver um trabalho que
você fez funcionando e encantando as pessoas.
Qual a sua relação com os diretores que vão ao centro?
Eu, particularmente, consigo administrar bem essa questão. Eu também
sou do meio, já trabalhei com muita gente de dança, então a maioria me co-
nhece. O centro é um espaço padrão. E isso facilita. Então o diálogo fica bem
melhor. Tudo o que a companhia fala que precisa, eu digo se a gente tem ou
não. Quando chega lá, já vamos trabalhar em cima daquilo que eu tenho. É
só questão de arrumar e escalar a equipe, ver o que é necessário.
Como que você vê a importância da sua profissão?
255
Há um tempo eu achava que trabalhava para sobreviver financeiramente.
Hoje em dia, não. Tenho certeza que faço um trabalho que é exemplo. Estou
dividindo, mostrando e levando jovens a aprender esse tipo de trabalho, tanto
para sobreviver quanto para ter prazer. Como eu tenho, graças a Deus.
No Marias Brasilianas, um espetáculo em que trabalhei e que estava em
cartaz no Teatro do Jockey, eu não ia poder fazer o última dia de espetáculo.
Então no penúltimo dia eles fizeram uma homenagem que até hoje está
ecoando na minha cabeça. Eu não esperava: eles me jogaram no meio de
um teatro lotado, no meio de um monte de gente, e falaram assim: “O que vai
ser de nós sem esse homem na próxima semana?” Porque lá eu desmontava
e montava tudo toda semana. Eu dava soluções desesperadas. Então eles
fizeram essa homenagem, começaram a falar do meu trabalho, o quanto
era importante. E eu só ouvia, de repente tremia, chorava, tremia e chorava.
Nesse dia eu descobri que eu realmente era importante. Precisou de alguns
anos. Quase vinte anos.
257
Sergipe, qual o seu prato preferido?
A primeira comida que eu fiz foi uma carne assada e um frango assado,
mas o meu prato preferido é o filé de frango.
Sergipe, como você começou a trabalhar com cinema?
A primeira comida que eu fiz foi para Bar Esperança, para o Hugo Car-
vana, em 1982, mas a primeira vez que eu trabalhei em cinema mesmo foi
no Idade da Terra, de Glauber Rocha, em 1976, na Bahia. O Cacá Diniz me
contratou para dirigir uma Kombi da produção, mas eu vi que o que eu
gosto de fazer é falar, é ficar no meio de gente. Como eu era guia turístico
na Bahia, carregava o Jece Valadão, a Norma Benguel, e o pessoal gostou
do meu trabalho. Eu me senti em casa e quis continuar trabalhando em
cinema. Percebi a dificuldade para a produção alimentar todo mundo da
equipe. A média de uma equipe nos anos 1970 era de sessenta pessoas. Eu
via Cacá Diniz querendo levar o pessoal para almoçar e o Glauber Rocha,
apaixonado por uma câmera, querendo filmar sempre mais. Aí eu pensei:
no próximo filme, eu vou cozinhar. Eu vou facilitar a vida da produção, vou
ganhar um dinheiro – o que não faz mal para ninguém. No lugar do pessoal
todo ir para um restaurante comer, trarei a comida para eles. Quando ter-
Sergipe
Catering de cinema.
258
minamos de fazer o filme, em 1976, Jece Valadão me convidou para ir para
o Rio trabalhar de motorista.
E como foi essa vinda para o Rio de Janeiro?
Eu vim para o Rio para trabalhar com Jece Valadão, mas quando eu che-
guei aqui, ele já tinha motorista. Eu fui trabalhar no estúdio, fazendo faxina.
De noite, eu ia trabalhar na casa da Vera Gimenez. Eu não sabia ler, e a Vera
Gimenez disse para mim que ia pagar para eu estudar e eu trabalharia para ela
aos sábados, domingos e feriados. E eu fui. Em 1982, Hugo Carvana foi fazer
Bar Esperança; o produtor executivo era Cacá Diniz. E o Cacá disse: “Agora,
Sergipe, pega a sua ideia e bota em prática.” Eu não tinha dinheiro, eu só tinha
Cr$ 25,00 para pagar meu aluguel. Ele disse para eu ir à produtora pegar um
dinheiro. Se o pessoal gostar, você continua; se não gostar, você ganhou um
dinheiro. Eu fiz uma carne assada que ficou assim da minha cor, branquinha,
mas ficou gostosa, ficou bem temperada. Fiz o que deu na minha cabeça: eu
nunca tinha feito comida. Fiz como veio na minha cabeça na hora. É porque
a minha mãe lá na roça fazia uma carne, lagarto plano, que lá na roça a gente
chama de lombo. Eu fiz também um frango assado, e até hoje todo mundo
lembra do meu frango, no cinema, porque o segredo de comida não é você
botar tempero demais, é você saber dosar. Todo mundo sabe que a carne de
frango é leve, pede tempero leve. O que é um tempero leve? Creme de cebola!
Quem quer fazer um bom frango assado, é usar creme de cebola, sal, limão
ou vinagre. Só. E forno, não bota mais nada. E deu certo. Hoje no Rio deve ter
umas vinte pessoas que fazem. Hoje eu faço mais eventos. Eu faço cinema
quando me chamam porque sou apaixonado.
E como você serviu a comida nesse primeiro dia?
Eram 65 pessoas, e eu só tinha vinte pratos. Imagina! Aí eu perdi a noção
do que eu ia fazer. O pessoal do estúdio viu o meu sufoco e começou a lavar
prato. O encarregado do estúdio morava no terceiro andar, foi à casa dele
buscar pratos. Na hora de servir, eu até me perdi. Hoje eu sirvo mil pessoas. No
carnaval chego a servir mil e quinhentas. No Bar Esperança, perdi a noção. Se
fosse para servir sozinho, eu não conseguiria. O arroz ficou empapado. [risos]
Gostoso, mas empapado. Estou sendo sincero. A gente sabe que todo mun-
do precisa de dinheiro para sobreviver. Só que eu não faço só pelo dinheiro.
Quando eu cozinho, é como se estivesse fazendo comida para os meus filhos.
259
Você viu muita mudança daquela experiência do cinema nos anos 1970,
começo dos 1980, com o cinema de agora?
O cinema brasileiro melhorou muito depois que as mulheres tomaram
conta. Vocês da produção, se tirarem as mulheres da organização, o cinema
cai de novo. O cinema hoje é organizado. Eu estranhei, quando, há cinco anos,
voltei a trabalhar com cinema e vi a organização da produção. Todo mundo
com laptop, sem grito. Porque o cinema era feito no grito. E se ele não fosse
bom, não ia para frente.
Você consegue imaginar o Glauber rocha sem gritar?
Era impossível. [risos] Ele fazia tudo no grito. Idade da Terra ele fez no grito.
Era um apaixonado. Nesse filme, teve uma cena que era para ser feita num
museu, e o diretor do museu tinha proibido. O Glauber Rocha falou: “Ninguém
vai me proibir, porque eu estou fazendo cinema, que é cultura.” Ele não era
um que terminava e ia embora. Ele parava onde estava a equipe e falava com
todo mundo antes de ir embora. Não era aquele diretor que filmava, saía,
entrava no carro e ia para casa sem querer ver ninguém. Ele era uma pessoa
muito tranquila. Tanto é que eu fiz o filme em 1976, e, em 1978, quando me
encontrou em Ipanema, ele parou e ficou boquiaberto: “Pô, Sergipe, você aqui
no Rio!” Ele era um diretor que gostava de manter contato com a equipe. Eu
acho que hoje ele não ia conseguir fazer cinema.
Sergipe, como é trabalhar no carnaval carioca?
Sabe o que eu estou fazendo no carnaval do Rio? Estou implantando o que
eu fiz no cinema. No cinema, não existia alimentação na locação até 2000. No
carnaval, o primeiro catering que teve na Marquês de Sapucaí foi há quatro
anos. Fui eu quem montei. Só quem tem é a Portela e Porto da Pedra. Eu faço
a alimentação das equipes que montam os carros alegóricos. Eles chegam às
seis horas da manhã, eu chego uma hora antes. Eu chego às cinco horas, monto
na Marquês de Sapucaí igual ao catering de cinema. Eu quero implantar no
Rio, nas 12 escolas, e depois ir para São Paulo.
Como funciona esse catering?
Eu monto uma mesa. A média da equipe técnica para montar o carnaval é
de duzentas pessoas, que estão por trás dos carros alegóricos. Eu chego lá de
manhã, uma hora antes. Monto uma mesa bacana de café da manhã, sirvo o
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café e uma manutenção o dia inteiro. Meio-dia eu sirvo o almoço para aque-
las duzentas pessoas e, no fim do dia, sirvo um lanche reforçado. Isso para
a equipe técnica, que está montando os carros alegóricos. Aí eles entram na
avenida e quando saem eu sirvo mais um lanche, porque quando os carros
saem da Marques de Sapucaí eles ainda têm mais quatro horas até chegar
na cidade do samba. A mesma ideia que eu tive no cinema e todo mundo
faz hoje eu quero implantar no carnaval, porque eu vejo no evento o sufoco
deles, às vezes comendo comida fria, não tinha café, não tinha água gelada…
Você continua fazendo cinema?
Eu quero ganhar dinheiro, mas cinema eu faço até de graça. Por exemplo,
curta-metragem de garotada de faculdade, eu já fiz um monte de graça. As
compras quem faz é a menina que serve, o resto, a minha mão de obra eu faço
de graça. Até porque quem faz um curta hoje, daqui a um tempo está fazendo
um longa e pode me chamar. O cinema está precisando dar mais apoio para
essa garotada. A Lei Rouanet é boa, mas tem que ser mais fácil captar. Para
pequenas produções, para quem está começando, para garotada da faculdade,
é muito difícil. O governo tem que facilitar. E não é só cinema não, mas para
a cultura de um modo geral.
Como é fazer a alimentação fora das grandes cidades?
Quando alguém me contrata, a responsabilidade é minha, porque a ideia
que eu tive foi para aliviar a produção, que tinha muito trabalho para pro-
duzir a alimentação. Eu tenho uma proposta pronta: me responsabilizo por
entregar em qualquer parte. Está escrito bem assim: “Entrego em qualquer
parte.” Eu tenho fogões maiores, que não saem da cozinha, e tenho outros
menores, que posso transportar. Fornos também, tenho tudo. Monto uma
cozinha no caminhão e vou cozinhar no local. Aí é tudo minha responsabi-
lidade. Contrato uma equipe, e vamos para onde for. Pode ser no Amazonas,
Mato Grosso, Paraná, onde for. Eu chego à cidade onde o filme será gravado,
alugo uma casa, monto lá a cozinha. Já levo a minha equipe, porque lá não
sei que profissionais vou encontrar. Você tem que andar com profissionais.
Eu levo os meus assistentes para evitar problema, porque senão o que roda é
a minha cabeça. E não quero isso, porque foi um sonho que eu tive de entrar
para o cinema, então hoje que faço cinema eu quero é melhorar.
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O que você precisa para melhorar?
Eu vou fazer uma cozinha montada num ônibus. Já tenho o projeto quase
pronto. Comprarei um ônibus e montarei uma cozinha para não ter que alugar
mais casa. Como se fosse um moto-room. A minha ideia é essa. Enquanto
eu não tenho ainda o moto-room, eu levo tudo, alugo casa, monto cozinha.
Os ingredientes, não compensa levar daqui. Eu compro no local, porque o
preço no Brasil é mais ou menos o mesmo. Só é mais difícil quando o lugar é
muito longe, é mais roça. Aí você tem que levar as coisas que podem não ter
lá. A alimentação da gente da cidade é um pouquinho mais elaborada. Mais
para lá para roça a comida é mais simples. Não é que seja ruim, mas é mais
simples. Então eu compro no mercado grande, boto no caminhão e chego
com tudo. Eu fiz Abolição em 1987. Foi uma minissérie do Walter Avancini,
em Rio Preto. E chegando lá, eu fechei a padaria, porque a padaria só dava
para fazer quinhentos pães, e eu comprava todos de manhã. O padeiro teve
que botar mais gente para fazer pão, porque eu comprava todo o pão do dia.
Em cidade pequena, eu já me previno antes para não deixar furo.
Quando você chega a lugares distantes, você aproveita os ingredientes
locais?
Eu corro toda a praça para ver o que tem e eu procuro me adaptar. Quando
chego às cidades, rodo todas as vendas, as quitandas, para ver o que tem que
eu possa aproveitar.
Como você faz quando a pessoa quer fazer um filme e tem pouco dinheiro?
Você faz um cardápio diferente?
Não, faço parceria. Essa é a hora de você entrar com a parceria. Você
não pode gastar mais do que tem, então tem que buscar as pessoas amigas,
porque a tendência é melhorar. Você nunca pode pensar que vai piorar. Se
está ruim, fique feliz. Se está bom, abra o olho para não ficar ruim. Por que
a mulher dá certo? Porque a mulher faz as coisas com muito cuidado, ela só
trabalha com o que tem.
Como foi para você quando fechou a Embrafilme?
A Embrafilme era uma vaca de leite, que todo mundo sabe que era só
mamar na teta. Quando fechou, parou. Eu fui fazer outra coisa, porque eu
não choro leite derramado. Em 1988, quando eu perdi tudo, virei ajudante de
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pedreiro, encarei uma marreta. Parei um tempo e em 1995 voltei. Aí já estava
melhor, mas foi difícil. O tempo do Collor foi difícil, ele fechou o cinema.
Você vê cinema?
Não tenho muito tempo, mas eu gosto. Quando dá tempo, eu vou, mas a
minha vida é mais por trás do cinema. Eu quero dar apoio, fico trabalhando
por trás e aí não tenho muito tempo.
Você já teve alguma ideia que você quis filmar?
Eu tive, sim, uma ideia. Eu tenho uma ideia de fazer um longa-metragem.
Eu sou apaixonado pelo Rio de Janeiro e sou portelense. Já falei para o vice-
presidente da escola de samba que eu tenho a ideia de fazer um filme sobre a
Portela. Eu tive a ideia, mas para fazer cinema é difícil. Tem que arrumar uma
roteirista, tem que ser uma universitária, mas tem que ser recém-formada,
porque aí está com garra para fazer benfeito. Porque para fazer um filme ben-
feito, com efeito, tem que ter dinheiro. E o dinheiro nosso tem que ser para
isso, para fazer um filme com bastante efeito, com bastante carros, que nem
Hollywood faz. Acho que as meninas que fazem cinema agora no Brasil têm
que pensar assim: o Brasil pode, o Brasil tem poder. Acabou esse negócio do
Brasil ser coitadinho. O Brasil deve alguma coisa lá fora? Não deve mais. Se
deve está coberto. Vamos fazer um cinema bacana.
Nós vamos competir com Hollywood?
Eu tenho certeza que os brasileiros têm competência e vão. Agora eu estou
indo para Paulinia, porque eles estão fazendo um polo de cinema lá, uma coisa
bacana, que será de igual para igual com o cinema lá de fora.
Qual seria a política cultural ideal?
Tem que ser mais liberal. A Lei Rouanet é boa, mas ainda acho que os po-
líticos estão segurando muito dinheiro para falcatrua. Estão gastando muito
dinheiro com coisas que não são úteis e deixando a cultura. E um país sem
cultura, um país burro, vai para trás. Se nós chegamos onde chegamos, temos
que ir melhorando. E para isso precisamos do governo.
Eu faço carnaval, é um sufoco. Só continua acontecendo porque a liga é
organizada. Se dependesse do governo, não acontecia. A Lei Rouanet precisa
ser mais aberta. O prefeito do Rio gosta muito de carnaval, mas não adianta
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ir para a avenida para aparecer na televisão, porque o carnaval começa dez
meses antes. O que falta é a Lei Rouanet dar mais apoio.
O que a cultura muda?
A cultura muda tudo. Sem cultura o Brasil não vai para frente. Por exemplo,
vamos falar de alimentação. Um país sem cultura não tem uma boa alimen-
tação. A criança vai ficar magra e barrigudinha, igual eu era na roça. Então a
cultura ensina tudo. Eu mesmo faço os pratos que faço, mas leio muitos livros,
vejo televisão, compro livro de culinária. E mudo para ficar com a minha cara.
Não adianta eu pegar uma receita de Ana Maria Braga e fazer igual. Não, eu
vou mudar, para ficar com a minha cara, porque aí eu falo que a comida tem
a minha assinatura. Eu sou filho de cinema, então eu faço com carinho.
Qual a importância da alimentação para a equipe de produção?
Uma alimentação balanceada para você desenvolver um bom trabalho. Se
você não fizer uma boa alimentação, você vai ter sono, vai perder o pique…
Eu faço questão de estar sempre junto para saber do que a pessoa gosta. A
alimentação tem que ser aquilo a que a pessoa está acostumada, aquilo de
que ela gosta. Se não está acostumado, eu mostro uma coisa nova, mostro
aquilo que eu sei fazer e espero que a pessoa prove e goste. Se não gostar, va-
mos ver o que a gente melhora, porque tem que fazer uma boa alimentação.
Eu não faço comida para mim, é o meu paladar tentando agradar o do outro.
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