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O PESO DO RACISMO SOB A ESTÉTICA DA MULHER NEGRA:
Um paradoxo da isonomia social brasileira.
Isabela Caroline de Aguiar Gama1
Prof. Ramon Olímpio2
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo problematizar os estereótipos acerca da estética da
população negra, questionado a ideia de isonomia social, a fim de denunciar a violação do
direito à identidade da mulher negra. Tal proposta se mostra relevante porque pode
proporcionar um panorama contemporâneo da representação da mulher negra na
sociedade brasileira, evidenciando o problema do racismo e o processo de conquista de
direitos e de valorização de sua identidade. Discute-se sobre a imposição de um padrão
de beleza ideal como mecanismo de desconstrução dos estereótipos negativos
relacionados à mulher negra. Para tanto, pretende-se desenvolver o trabalho a partir da
análise dos depoimentos de mulheres negras que sofrem racismo diariamente devido ao
seu cabelo e outros elementos relacionados à sua estética capilar.
Palavras-chave: Mulheres negras; Estética capilar; Racismo; Identidade; Isonomia.
THE WEIGHT OF RACISM UNDER THE AESTHETICS OF BLACK WOMAN: A paradox of Brazilian social isonomy.
ABSTRACT
This article aims to problematize the stereotypes about the aesthetics of the black
population, questioned the idea of social isonomy, in order to denounce the violation of
the right to the identity of black women. This proposal is relevant because it can provide a
contemporary panorama of the representation of black women in Brazilian society,
highlighting the problem of racism; the process of conquering rights and valuing their
identity, from the discussion on the imposition of an ideal beauty pattern; as a mechanism
of deconstruction of the negative stereotypes related to the black woman. Therefore, we
intend to develop the work from the analysis of the testimonies of black women who suffer
racism daily due to their hair and other elements related to their aesthetic capillary.
Keywords: Black women; Hair aesthetics; Racism; Identity; Isonomy.
1 Graduanda em Direito pela Faculdade Internacional da Paraíba – FPB.
2Professor Orientador. Graduando em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ),
Advogado, Especialista em Direito Tributário e Processual Tributário pela Escola Superior de Advocacia
Flósculo da Nóbrega (ESAPB), Pós-Graduado em Direito Eleitoral e Processual Eleitoral pela Escola
Superior de Advocacia Flósculo da Nóbrega (ESAPB); Mestre em Direito Humanos, Cidadania e Políticas
Públicas pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), Membro da Comissão de Direito Difusos e Relações de Consumo e da Comissão de Biodireiro e
Direito Sanitário da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Paraíba.
2
INTRODUÇÃO
Nos dias atuais acontece um processo de naturalização e de imposição do padrão
estético branco eurocêntrico que nega a outros grupos raciais3, constituintes da
sociedade brasileira, o direito a sua identidade. Um bom exemplo é o da população negra,
que enfrenta uma situação paradoxal: tem os símbolos e elementos que constituem a sua
identidade inferiorizados, estigmatizados e ridicularizados, e ao mesmo tempo, tem que
conviver com o processo de apropriação cultural4 desses elementos, por quem
historicamente foi fundamental para o processo de negativação da sua identidade.
Podemos identificar na nossa sociedade atual um fenômeno comercial que
torna moda os elementos e símbolos da estética5 negra como tendência, desde que
não estejam sendo utilizados pela população negra. No caso da mulher negra, essa
situação paradoxal fica bastante evidente em: se usar turbante e colar de búzios, por
exemplo, ela será identificada, de forma pejorativa, como macumbeira, se a mulher
branca usar os mesmos acessórios, passará a ser sinônimo de elegância e moda.
No caso do cabelo crespo, quando a mulher negra usa tranças, dreadlock ou black
power6, é considerada feia e com aparência de suja, quando a mulher branca usa, passa ser
sinônimo de estilo. Aqui se caracteriza uma contradição da sociedade, que se constitui a partir
da relação entre o racismo e o capitalismo, ou seja, a apropriação dos elementos da estética
3 O conceito de raça neste artigo, não se baseia em princípios biológicos, mas sim, no princípio de raça
como uma construção social e cultural desenvolvido no decorrer do processo histórico. De acordo com a
pesquisa de Nilma Gomes no livro Corpo e Cabelo Como Símbolos da Identidade Negra, o fenótipo de
uma pessoa não pode ser considerado como um simples conjunto de elementos biológicos, porque são
eles que expressam racismo e desigualdade racial (editora Autêntica, 2008).
4 Apropriação Cultural conceitua-se como significados culturais ou religiosos de determinados símbolos,
tratando das relações de privilégios que envolvem raça, classe, etnia e religiosidade. Logo, para prática da
apropriação cultural, é necessário á existência de dois critérios: o esvaziamento de um significado cultural e o
envolvimento de alguma espécie de privilégio de raça, classe, etnia ou religiosidade (ARAÚJO). 5ESTÉTICA – é uma palavra grega que quer dizer sensação, percepção. É, dentro da ciência, um ramo da filosofia cujo objeto é o estudo do belo, do seu inverso que é a ausência da beleza e do sentimento que um ou outro causa em nós. Falar do que é belo ou não é relativo, ou deveria sê-lo, por que quaisquer sociedades acabam criando padrões estéticos (Ramos, 2014).
6 A trajetória do Black Power teve início ainda nos anos 1920, por Marcus Garvey ativista tido como o precursor
do movimento no negro na Jamaica. No entanto, foram ás mulheres as grandes protagonistas dessa histórica.
Entre muitas, Ângela Davis, que surgiu como uma das principais figuras nesta luta. Ativista desde os primeiros
anos de sua juventude, a norte-americana fez parte do Partido Comunista e também do movimento Panteras
Negras. Em pouco tempo Ângela havia se tornado uma das principais referências na luta pelos direitos dos
negros e muito deste respeito vinha de seu afro, que de tão imponente, se tornava como mais uma maneira de
intimidar opressores, não abrindo mão de seu Black Power (VIEIRA).
3
negra pelo mercado da moda não contribui para valorização da beleza da
mulher negra, pelo contrário, reforça a ideia de um padrão branco
eurocêntrico, de uma ralação de afro-conveniência7.
Devemos compreender que afro-conveniência resulta da relação entre o racismo
e o capitalismo, de interesses individuais que possibilita determinações que legitimam,
reforçando os estereótipos negativos relacionados à população negra. E no caso
especifico da mulher negra, resulta também do “nó patriarcado” (SAFFIOTI, 2004, p.115),
da fusão da questão racial e da questão de gênero, perpassando a estrutura social, onde
ocorrem todas as relações sociais, que torna a situação da mulher negra mais complexa.
É interessante perceber que essa mulher pode sofrer o racismo proveniente das
relações advindas desse “nó patriarcado”, tanto de forma direta como de forma indireta.
Podemos ter como exemplo, as relações no mercado de trabalho, mas especificamente
em escritório de negócios, a mulher negra pode sofrer racismo de forma direta: ser
descartada no primeiro momento por entendimento que o perfil estético da mulher negra
não se enquadra no padrão da “boa aparência” para contratação de uma secretária.
Por outro lado, esse racismo também atua de forma indireta, que muitas vezes pode
passar despercebido: ele acontece através da sua hipersexualização, como o escritório que
trabalha com o público masculino, entende que ter uma secretária “mulata” com determinados
“atributos” pode agradar seus clientes. Mostrando que tanto de forma direta ou indireta, o que
prevalece não é sua capacidade profissional e sim, sua condição racial.
O exemplo do racismo indireto apresenta bem como funciona a afro-
conveniência, e como ela, neste caso, ajuda a reforçar o ditado popular do período da
colonização: “preta pra trabalhar, mulata pra fornicar e branca pra casar”. Dentro dessa
análise, a mulher negra pode ser vista como: [...] objetos da satisfação sexual dos
homens, reprodutoras de herdeiros, [...] (de) novas reprodutoras. [...] (Como prestadora)
de serviços sexuais a seus dominadores (SAFFIOTI, 2004, p. 105 com nosso grifo).
Por essas e por outras podemos afirmar que, discutir as questões relacionadas á
situação da mulher negra no Brasil, é necessariamente, abordar dois dos assuntos mais
7 Consiste em afirmar ou negar a raça/etnia de forma bastante conveniente e oportunista. Pode ser identificado
através de dois grupo: O primeiro deles formados por negros e negras que assumem (pelo menos publicamente) sua
negritude “apenas” em detrimento de privilégios. E o segundo grupo, é formado pelos brancos. Por mais que
argumentem que tiveram um bisavô negro ou que a definição deveria ser através de exames de DNA, quando nos
referimos aos brancos levamos em consideração fatores do fenótipo. Ser branco no Brasil garante os privilégios
similares aos que Steve Biko chama de “passaporte”, mas, declarar-se negro permite o acesso a uma parte do bolo
que historicamente foram detentores e agora, veem sendo repartida através dessas ações afirmativas, sendo pessoas
duplamente beneficiadas: por serem brancos e por se autodeclararem negras (OLIVEIRA).
4
delicados nos dias atuais: a questão de gênero e a questão racial, elementos estruturais e
estruturantes das relações culturais, sociais e econômicas da sociedade brasileira.
Assim, o objetivo do presente trabalho é falar um pouco sobre o direito
à identidade que, quando manifestado pelas mulheres negras através do uso
de cortes de cabelos específicos, gera preconceito de cor e gênero. Para tanto,
foi dividido em três tópicos e uma pesquisa de campo.
O primeiro tópico faz uma relação entre o direito à identidade e a estética
da mulher negra, com a realização de um levantamento histórico acerca do
movimento do black power e a questão do empoderamento feminino da mulher
negra através da aceitação e uso de estilos que são naturais ao tipo de cabelo.
No segundo tópico, foi abordado o princípio da igualdade (isonomia) e o paradoxo
que circula esse princípio, no sentido que homens e mulheres devem ser iguais perante a lei,
conforme artigo 5°, inciso II da Constituição, assim como não pode haver nenhum tipo de
preconceito de raça, cor, sexo ou preconceito de qualquer outra natureza. Ocorre, entretanto,
que há um patriarcalismo muito forte no Brasil, ou seja, a mulher fica em situação de
desigualdade, sem falar no preconceito de raça. Assim, a mulher negra se encontra em uma
situação de dupla desvantagem, o que vai de encontro com o suposto princípio da isonomia.
Por fim, o terceiro tópico traz uma pesquisa realizada com o intuito de colher depoimentos
de mulheres negras acerca de situações envolvendo preconceito, principalmente em função do uso
estético de penteados afro. Para tanto, foram levantados mais de 170 questionários, dos quais
foram escolhidos sete como amostra para o presente trabalho. O tópico buscou demonstrar que
mulher negra que opta por assumir sua identidade e manifestá-la através de cortes de cabelos
específicos se encontra em situação de fragilidade ainda maior.
Espera-se que este trabalho possa servir de base para a elaboração de novos projetos,
bem como traga notoriedade ao tema, tendo em vista sua grande relevância social e jurídica.
1 A ESTÉTICA COMO INSTRUMENTO POLÍTICO DA MULHER NEGRA EM
BUSCA DO DIREITO À IDENTIDADE
O cuidado com a estética negra representou a luta para reverter à imagem
negativa da população negra construída socialmente no decorrer do processo histórico
brasileiro. Aconteceu a incorporação de uma representação negativa de si mesmo,
construída pelo outro e por uma condição histórica e social de desigualdade, que fez com
que a população negra tivesse que significar tal representação (MONTES, 2000).
5
É nesse campo de reação e reversão que se localiza várias formas de expressão
da estética como instrumento político, representados nos estilos de penteados black
power, dreadlock e nas mais variadas formas de tranças usados pelos ativistas negros no
continente e na diáspora africana no passado e no presente (GOMES, 2008).
No Brasil esse processo de reação e reversão da representação negativa passou
necessariamente pela positivação não só da origem africano, como também, pela valorização
da cor da pele, da textura do cabelo e dos traços físicos que são características fundamentais
para determinar se um indivíduo pode sofrer mais ou menos racismo na sociedade brasileira.
Entretanto, apesar do preconceito e de um processo de seletividade
existente que envolve raça e gênero, as mulheres seguem no processo de
valorização da estética negra e na reafirmação do cabelo crespo como
principal símbolo de sua identidade, assumindo dessa forma, um lugar muito
determinado como sujeito político, dando magnitude à luta contra o racismo.
Figueiredo (2010) enfatiza que o cabelo é, em alguns casos, um fator mais importante
do que a cor da pele para classificação racial e que por conta dessa importância o movimento
negro brasileiro toma o cabelo natural como símbolo de afirmação da identidade.
O discurso proferido pelo movimento é o de estabelecer uma regra contrária à regra
vigente, e se a regra é alisar o cabelo visando dissimular a sua condição étnica racial, a
contrarregra é afirmar os fenótipos, não alisar o cabelo (Cunha, 1991). Dessa forma:
Ao propor a afirmação do cabelo, o movimento negro não o isola de um conjunto de
roupas e adereços que comporiam uma nova estética (Maués, 1991; Vieira,1989). O
discurso da militância negra em torno do cabeço é basicamente contestatório e
pretende a destruição de imagem dual construída na sociedade ocidental. Nela, o
negro encontra associado à feiura, à burrice, à sujeira, etc., em contraposição ao
branco visto como bom, belo e justo (FIGUEIREDO, 2010, p.7).
Hoje, na contemporaneidade, podemos falar em “beleza negra”, expressão
tomada de empréstimo do movimento black is beautiful, cuja denominação marcou forte
presença nos movimentos na luta da população negra nas décadas de 1960 e 1970. Pois,
se tratando de estética, a mulher negra foi buscar em seus cabelos o meio de mostrar sua
representatividade na sociedade, levando essa temática aos movimentos sociais negros e
feministas, com o intuito de fazer com que a mulher negra se sinta bonita e se enxergue
para além da sua cor de pele e a textura de seus cabelos.
6
Esse empoderamento provém principalmente do protagonismo do
feminismo negro8, que proporcionou um movimento de combate ao alisamento
compassivo dos cabelos das mulheres negras. Um processo denominado de
transição capilar, que consiste em deixar o cabelo crescer para gradualmente ir
cortando toda química restante até deixa-lo definitivamente natural.
Essas mulheres têm utilizado o seu protagonismo para influenciar
outras mulheres a também assumirem seus cabelos naturais e reconhecerem
em seus cabelos crespos sua identidade, libertando-se das amarras históricas
da branquitude, da síndrome de inferioridade constante.
2 O PRECONCEITO DE GÊNERO E DE RAÇA COMO PARADOXO DA ISONOMIA
SOCIAL BRASILEIRA
A mulher negra sofre a partir da fusão do racismo e do preconceito de gênero,
quando analisamos os indicadores socioeconômicos, ela vem atrás do homem
branco, da mulher branca e do homem negro de acordo com a pirâmide social. Tal
hierarquização nos ajuda a problematizar a ideia de isonomia social brasileira. No que
diz respeito à formação desse princípio, Cármen Lúcia Antunes Rocha afirma que:
O princípio jurídico da igualdade é o que a sociedade quer que ele seja. Não é
obra de Deuses, nem de formas heterônomas, nem de forças exógenas que se
impõem a uma sociedade com explicações mistificadas (...). A igualdade no
Direito é arte do homem. Por isto o princípio jurídico da igualdade é tanto mais
legítimo quanto mais próximo estiver seu conteúdo da ideia de Justiça em que
a sociedade acredita na pauta da história e do tempo (ROCHA, 1990, p 28).
No que tange os conhecimentos a cerca desde assunto, sabe-se que o
constitucionalismo brasileiro sempre adotou o Princípio da Igualdade em suas cartas, o que
ora não significa que sempre houve o respeito e acatamento ao mesmo. Quanto ao direito à
identidade da mulher negra, a sua não observância fere os princípios da dignidade da pessoa
humana e o da isonomia, cominando em um processo de hierarquização social que se baseia
8 O Feminismo Negro é um movimento social e um segmento protagonizado por mulheres negras, com o objetivo
de promover e trazer visibilidade às suas pautas e reivindicar seus direitos. No Brasil, seu início se deu no final da
década de 1970. O Movimento Negro tinha sua face sexista, as relações de gênero funcionavam como fortes
repressoras da autonomia feminina e impediam que as ativistas negras ocupassem posições de igualdade junto aos
homens negros; por outro lado, o Movimento Feminista tinha sua face racista, preterindo as discussões de recorte
racial e privilegiando as pautas que contemplavam somente as mulheres brancas. A luta das feministas negras é uma
batalha contínua para nivelar seu lugar ao lugar das mulheres brancas, pois, se há tanto por que as mulheres brancas
precisam lutar, é bastante preocupante o fato de que as mulheres negras nem sequer conquistaram igualdade quando
em comparação com outros indivíduos do seu próprio gênero (ARRAES).
7
no fator de gênero e de racial, conforme prevê a Constituição em seu art. 5°, I ,
senão vejamos:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direito e obrigações, nos termos desta Constituição (BRASIL,1988).
A mulher negra sofre racismo ao ser posicionada em uma escala de
inferioridade e de desigualdade de gênero e de raça, dessa forma fica evidente que o
princípio da isonomia pode ser questionado a partir experiência da mulher negra.
Ademais, o estatuto da igualdade racial formalmente na Lei 12.288/10
define que a desigualdade racial é toda situação injustificada de diferenciação
de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidade nas esferas pública e
privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional e étnica.
Quando falamos de desigualdade de gênero e raça, da luta contra a discriminação
das mulheres negras, expomos um debate sobre as pessoas, que em grande parte, se
encontram em condição de vulnerabilidade social e que historicamente, não tiveram sua
cidadania garantida, e consequentemente, o seu direito á identidade não foi respeitado.
O paradoxo antes mencionado se caracteriza quando analisamos a situação da
mulher negra na sociedade brasileira, uma vez que expõe a fragilidade da ideia igualdade de
direitos nos tempos atuais. Segundo os dados aprestados pela Articulação de Mulheres
Negras Brasileiras (MULHER NEGRA - DADOS ESTÁTISTICOS)9, a remuneração de duas
mulheres negras juntas corresponde ao valor de uma mulher branca, para exemplificar melhor,
o rendimento anual médio de uma mulher negra, na região metropolitana de São Paulo, em
2002, foi de R$ 412,00, já para uma mulher branca foi de R$ 765,00.
Entre a população negra, a taxa de desemprego é maior do que entre a população
branca. Segundo dados do estudo Retrato das desigualdades de gênero e raça, do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), entre as mulheres brancas, o desemprego é de 9,2%,
enquanto entre as mulheres negras, ultrapassa os 12%. Dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) mostram que as mulheres negras, quando comparadas com
9 Segundo dados aprestados pela Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (MULHER NEGRA - DADOS ESTÁTISTICOS), a população brasileira é constituída por 50,79% de mulheres, desse
percentual, 44% são mulheres negras, representado 23% da população brasileira. Esse contingente populacional considerável não significou proporcionalmente representatividade politica que lhes garantissem melhorar os seus indicadores socioeconômicos (INSTITUTO BUZIOS).
8
outros segmentos da população, são as que se sentem mais inseguras em
todos os ambientes, até mesmo em suas próprias casas.
Esse padrão de vulnerabilidade se repete em outros indicadores de violência,
segundo o Ministério da Saúde (2012), a mulher negra representa 62,8% das vitimas de
mortalidade materna e 65,9% das vitimas da violência obstétrica (Caderno de Saúde Pública,
Fiocruz, 2014). As mulheres negras representam, segundo a Central de atendimento à
mulher/2013 (balanço do disque 180), 59,4% das mulheres que sofreram violência domestica.
A taxa de homicídio por agressão apresentado pelo Diagnostico dos Homicídios
no Brasil (Ministério da Justiça, 2015), mostra que 68,8% das mulheres mortas por
agressão são mulheres negras. O estudo mostra que estaticamente, a chance de uma
mulher negra ser assinada é duas vezes maior que uma mulher branca.
O Mapa da Violência (2015), no tópico homicídios das mulheres no Brasil,
mostra que, em 2013, a taxa de homicídio entre as mulheres brancas caiu 9,8% e entre
as mulheres negras subiu 54,2%. O índice de homicídio de mulheres negras segue a
tendência dos índices da população negra em geral, sempre inclinado para cima.
Segundo dados do IBGE e do Ipea (2010), a população negra é vítima de agressão em
maior proporção que a população branca – seja homem ou mulher, jovem ou adulto.
No que diz respeito à educação, segundo o Retrato das Desigualdades de
gênero e raça (IPEA, 2011), podemos perceber a distorção idade-série que no
ensino médio atinge 38,2% das jovens negras, contra 24,1% das mulheres
brancas. Também podemos percebe a discrepância entre as mulheres no ensino
superior, a taxa de escolarização de mulheres brancas no ensino superior é de
23,8%, enquanto, entre as mulheres negras, esta taxa é de apenas 9,9%.
Diante dos dados apresentados, podemos perceber como as relações sociais são
construídas para legitimar a constituição de uma hierarquização, com base no preconceito de
gênero e de raça, que coloca a mulher negra no pior patamar da pirâmide social. Essa
perspectiva nos apresenta à necessidade de observar os estigmas produzidos por uma
sociedade desigual, violenta e, sobretudo, desrespeitosa no seu trato para com a mulher, e em
particular, para com as mulheres negras. Sobre o tema, tem-se o seguinte:
Se todos são socializados para ser machistas, não poderá esta sociedade
mudar, caminhando para a democracia plena? Este processo é lento e
gradual e consiste na luta feminista. Trocar homens por mulheres no
comando daria, com toda certeza, numa outra hierarquia, mas sempre uma
hierarquia geradora de desigualdades. (SAFFIOTI, 2004, p. 94).
9
O que vemos neste cenário é que, apesar das conquistas das mulheres na sociedade
brasileira, as mulheres negras, continuam sem acesso a sua cidadania plena, enfrentado um
jogo desigual na lógica cultural, social e econômica do país. Na maioria das vezes, ocupam os
piores cargos e quando ocupam melhores, recebem salários mais baixos. Desenvolvem uma
luta diária para garantia da assistência básica por parte do Estado, para compensar
minimamente o processo de exclusão pelo qual passou e ainda passa na sociedade brasileira.
Como mostram os dados aqui apresentados, a mulher negra ainda está sendo
subalternizada, sobretudo, inferiorizada pelo gênero masculino, até mesmo, pelos homens
negros, em uma sociedade que ainda guarda o ranço machista e racista da sociedade
patriarcal escravista que compreende a mulher negra como cidadã de segunda categoria:
A mulher negra na sua luta diária durante e após a escravidão no Brasil, foi contemplada como
mão de obra, na maioria das vezes não qualificada. Num país em que só nas últimas décadas
desse século, o trabalho passou a ter o significado dignificante o que não acontecia antes,
devido ao estigma da escravatura, reproduz-se na mulher negra “um destino histórico”. É ela
quem desempenha em sua maioria os serviços domésticos, os serviços em empresas públicas
e privadas recompensadas por baixíssimas remunerações. São de fato empregos onde as
relações de trabalho evocam as mesmas da escravocracia (NASCIMENTO, B., 2007, p. 128).
É inegável que a história deixou marcas no corpo e na mente da mulher negra.
Marcas de papéis sociais que persistem em negar a sua especificidade, construída no decorrer
do processo histórico, minimizando o seu papel na sociedade brasileira a condição do
trabalho, ao um corpo para satisfazer os desejos sexuais dos senhores contemporâneos.
No período da escravidão a mulher negra lutou pela sua dignidade humana, o
fim do período, não lhe garantiu de fato e de direito a sua cidadania plena. De certa
forma, passou da condição de “coisa”, de “objeto”, de “semi-humana” para condição
de cidadã de segunda categoria: O racismo não surgiu de uma hora para outra. Ele é
fruto de um longo processo de amadurecimento, objetivando usar mão-de-obra barata
através da exploração dos povos colonizados (SANT’ANA, 2005, p.42)
Ocupando, ainda, o último lugar na escala social, carregando grandes
desvantagens em um sistema desigual e injusto, de base machista e racista; que
insiste e persiste em conservar, contemporizar e divulgar a suposta inferioridade
da mulher negra; que remete não só ao período escravocrata, mas acima de tudo,
é atualizado em tempos atuais como argumento, para justificar o não
cumprimento, por parte do Estado Brasileiro, dos direitos básicos á mulher negra.
Diante do apresentado e discutido, a partir situação da mulher negra na sociedade
brasileira, podemos questionar o princípio da isonomia social no brasil. A diferença do direito
10
escrito e do direito colocado em prática, ou seja, questionar a seletividade do
direito na sociedade brasileira.
Essa seletividade passa necessariamente pelo perfil social, de gênero e de raça
do público que aciona e que está sendo acionado pela justiça brasileira, e aqui está o
nosso foco, compreender o racismo contra a mulher negra, a partir da estigmatização de
sua estética, principalmente de sua estética capilar, e como esse processo fere o seu
direito de identidade racial e coloca em cheque o principio da isonomia social.
3 DESVALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE DA MULHER NEGRA ATRAVÉS DE SUA
ESTÉTICA CAPILAR
Definido por muitos como “a moldura do rosto”, o cabelo pode dar
informações sobre as origens, pertencimento a grupos sociais e hábitos de
uma pessoa, aproximando ou afastando indivíduos enquanto elementos de
identidade corporal. Eles possuem uma grande capacidade de expressão
simbólica vinculados a um contexto sociocultural (KING, 2015, p. 8).
Na sociedade brasileira foi imposto um padrão de beleza ideal que estigmatiza todo
perfil estético que destoa desse padrão ideal. Dentro dessa perspectiva, a estética branca
passou a ser sinônimo de beleza e a estética negra passou a ser sinônimo de feiura.
A referida premissa atinge diretamente a mulher negra, principalmente no que diz
respeito a sua estética capilar. O seu cabelo crespo sempre foi associado e representado
como algo ruim e inferior, gerando uma pressão social, que impõe a mulher negra, a
necessidade de buscar o padrão da estética capilar branca, para se encaixar nos
parâmetros de beleza eurocêntrica adotada na sociedade brasileira (GOMES, 2008, p.161).
Tais parâmetros são naturalizados e introjetados na mentalidade coletiva
fazendo com que, as mulheres negras e brancas, cresçam educadas para acreditar
nos estigmas que atribuem negatividade ao cabelo crespo, impondo a “ditatura do
alisamento”, “referenciando” o cabelo liso como um dos elementos que
constituem o ideal de beleza superestimado nos dias atuais.
A representação de como a pressão social do padrão estético branco atua
para a construção da identidade da mulher negra, pode ser problematizado a partir
da ilustração da vida real, através do documentário sobre estética e cabelos Afros:
“Espelho, Espelho Meu!” (2011): “Dou prancha sim, quando aliso fica mais bonito,
alisado, vai amansar ele, vai melhorar, os meninos vão olhar mais pra mim”.
11
Soa forte e impactante ouvir tal declaração de uma menina, em uma faixa etária entre 11 á
12 anos, apenas, afirmando com tamanha autonomia que alisa seus cabelos para agradar aos
demais, e que, consequentemente, torna-se dependente deste método agressor, singularmente para
uma criança/adolescente, em uma tentativa de adequar-se a uma sociedade que na verdade deveria
adequar-se a ela. De acordo com os estudos de Nilma Gomes:
Nesse processo de enraizamento, os ciclos da infância e a da adolescência são momentos
significativos. E é durante esse período que a relação negro/cabelo se intensifica. O desejo
manifesto pela criança negra de alterar o “estilo” do seu cabelo
é algo complexo. Ele diz respeito á construção dessa criança conquanto
sujeito em relação à própria imagem e também é resultado de relações
sociais assimétricas, baseadas na imposição de modelos de homem, de
mulher, de adulto, de raça e de etnia (GOMES, 2008, p.176).
O documentário ajuda a destrinchar a formação da identidade das mulheres negras,
principalmente a partir da discussão de sua estética capilar, ou seja, do processo de construção de
uma consciência pautada nos estereótipos negativos, levando a mulher negra abrir mão de forma
compulsiva e paranoica de sua estética natural em detrimento da estética branca, como melhor
forma para ser aceita, de se sentir valorizada e de se sentir bonita ante a sociedade.
Apresenta-se também, esta mesma problematização da mulher negra que vive em
conflito com sua identidade a partir da dramaturgia que encena a vida real, através do
filme/seriado: “Cara Gente Branca” (2014), que retrata a história de cinco jovens negros que
tem suas vidas correlacionadas em uma conceituada Universidade norte-americana para
elites, sentindo na pele como é ser universitário em um ambiente predominado pelo padrão
estético da branquitude. Como, em destaque, a vida da personagem Coco Conners e sua
relação consigo mesma. Uma aspirante a socialite negra, que esconde sua identidade e cabelo
ao usar uma peruca com fios alisados e diz que: “ Ser negra é uma coisa irritante”.
A discussão a partir dessa ilustração da vida real (documentário) como da dramaturgia
que encena a vida real (filme) nos ajuda a materializar o problema da imposição de um padrão
estético branco e de suas consequências para a mulher negra, quando a mesma não consegue
enxergar em si, sua identidade e beleza como mulher, ocasionado pela opressão de um padrão que
sempre afirmou sua inferioridade através do racismo (explícito ou velado).
F10: Porque, assim, o branco tem o liso né. Então o negro tem o cabelo já crespo, ás
vezes chega a ser carapinho mesmo. Mas vem daí a influência do branco sobre o crespo,
eu acho que, quando você não tem noção do que é ser negro, você se cobra muito
aquele cabelo maravilhoso, aquela coisa bonita de passar a mão, de cair, de: “Ai, o meu
cabelo é lindo, maravilhoso.” Quando a gente tem uma noção do que é ser realmente
negro, a gente se aceita com o cabelo que a gente tem. Eu, por
10 F,36 anos, professora, em entrevista para pesquisa de campo sobre a estética negra no livro “SEM PERDER A RAIZ: CORPOR E CABELO COMO SÍMBOLO DA IDENTIDADE NEGRA”, autêntica,2008.
12
exemplo, eu daria tudo para ter o meu cabelo anelado, sabe, eu daria tudo para
ter o meu cabelo anelado. Mas não consigo tê-lo crespo. Não sei te explicar
porque mas não consigo ...Talvez seja, nem seja por mim mesma, seja pela
cobrança ...cê chega num lugar para trabalhar se você ... eles olham. Você
chega num pra se divertir...ás vezes cê tá passando na rua, aí um grita de lá:”
Vamos pentear o cabelo?” Ou então cantam aquela musiquinha, assim, “ Nega
do cabelo duro, qual é o pente que te penteia...” (GOMES, 2004, p.190).
Dessa forma, no que diz respeito á questão racial no Brasil, do direito
e da valorização da identidade da negra, especificamente da mulher negra,
passa necessariamente, de maneira geral, pela discussão da estética da
população negra e de maneira especifica, pela discursão da estética capilar da
mulher negra, atualmente muito expressa e sobretudo, questionada.
3.1 MULHER NEGRA E A DOR DO RACISMO SOB SEUS CABELOS
Nilma Gomes, que em seu papel como autora, tornou-se minha inspiração, afirma em
relação a sua pesquisa de campo que: “Não parto do pressuposto de que esse campo
conflitivo se restringe á construção da identidade negra. Qualquer processo identitário é
conflitivo na medida em que ele serve para me afirmar como um “eu” diante de um “outro”. A
forma como esse “eu” se constrói está intimamente relacionada com a maneira como é visto e
nomeado pelo “outro” (Gomes, 2008). Propondo-me a partir desta afirmativa, um ponto de
partida para exemplificar essa espécie de processo conflitivo, que neste artigo, assim como no
livro da referida autora, também envolve a mulher negra. Com o objetivo de mostrar de uma
forma real, através de minha pesquisa, que o racismo contra o cabelo crespo e outras
características do fenótipo afro, de fato, existe. A pesquisa atingiu, em curto prazo de apenas
duas semanas, um grande índice de depoentes, que me levaram a complexidade de escolher,
entre tantas declarações, apenas algumas para apresentar neste presente trabalho, sob o
critério de escolha os relatos mais impactantes, bem como, declarações que envolvem o ramo
jurídico nas situações de racismo vividas por elas (GAMA, 2017).
A análise desse racismo e suas consequências perante a mulher negra, a partir do
preconceito em torno de sua estética capilar se baseia no estudo que pesquisou11 o ponto de
11A pesquisa encontra-se disponível na íntegra no endereço eletrônico
(https://docs.google.com/forms/d/1W8QfVQ3OtWHkJWoR7EvI6TD8SrRcVY_Y8hAS8kQo/edit?userstoinvite
=isag.gamma@gmail.com&ts=59f9a4e7#responses). Realizada no período de 04 á 15 de setembro de 2017, pelo
coletivo Afrobelas, criado no presente ano para desenvolver estudos sobre a estética e identidade da mulher
negra.
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vista das mulheres negras a respeito do cabelo crespo e dos acessórios de
identificação comuns da cultura negra.
As mulheres que participaram do estudo foram questionadas se já haviam
sofrido preconceito por causa do cabelo ou por conta de outra forma de identificação
comum á cultura negra? Através dos depoimentos, tornou-se evidente as práticas
contínuas de racismo sofridas pelas mulheres negras em consequência da sua
estética/identidade negra. Por identidade, considerem-se os seguintes dizeres:
Por IDENTIDADE podemos entender que seja o aspecto coletivo de um conjunto de
características pelas quais algo ou alguém é definitivamente reconhecível,
conhecido; é um conjunto de elementos que permitem saber quem uma pessoa é.
Pelo próprio processo histórico de colonização e escravização, há uma dificuldade
na definição e no desenho da identidade negra ainda nos dias atuais. Ao tempo da
escravidão, a produção da identidade negra nas Américas deu-se por meio de
processos paralelos; pela via de Desafricanização e pela Racialização. Os africanos
aqui escravizados foram forçados a esquecer suas origens, para assumirem a sua
condição subalterna de “negros” (RAMOS, 2014, p.3)
Podemos perceber um processo de rejeição as características estéticas
relacionadas á população negra: o uso de roupas com estampas africanas,
turbantes, colares e, principalmente, a rejeição ao uso do cabelo estilo black
power, dreadlocks, trançado, entre outros modelos.
O cabelo não faz parte de um componente apenas estético, mas
também cultural, podendo atingir os campos: religioso, étnico, social, político
e das preferências estéticas pessoais.
O tratamento dado ao cabelo pode ser considerado uma das maneiras de
expressar uma tensão. A consciência ou o encobrimento desse conflito, vivido
na estética do corpo negro, marca a vida e trajetória dos sujeitos. Por isso,
para o negro, a intervenção no cabelo e no corpo é mais do que uma questão
de vaidade ou de tratamento estético. É identitária. (GOMES, 2008, p.33).
A construção da identidade capilar para mulheres negras ultrapassa o campo
do ser individual para atingir o coletivo. O cabelo torna-se um símbolo de
representação cultural consciente e inconsciente em diversas sociedades,
consolidando o significado do seu poder, onde embora seja uma característica física
e pessoal, por se tratar de estética, torna-se um símbolo mais público do que privado.
De 176 respostas recebidas no questionário realizado, que por ser virtual, possibilitou
a participação de mulheres negras12 residente de outros Estados, além da Paraíba, como São
Paulo e Rio Grande do Sul. Os dados mostram que deste número de declarantes, 94,3%
12 Por ser tratar de delicadas situações provenientes do racismo, preservaremos o anonimato das mulheres negras que foram declarantes nesta pesquisa.
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sofrem racismo, sendo 75,4% de forma velada e 24,6 de forma explícita.
Segundo as entrevistadas “A” e “B”:
Foram muitas as situações nesses 11 anos que assumi meus cabelos, citarei
uma só para atestar que mesmo estando em destaque na mídia não estamos
livres do preconceito. Ao apresentar um programa de tv, um telespectador
comentou que "queria tacar fogo nos meus cabelos de bombril". Fui ridicularizada na frente dos meus familiares por assumir meu cabelo afro.
Quanto mais me defendia, mais piadas vinham e mais eles riam. Sai correndo
chorando de tanto constrangimento. Fui á delegacia para fazer um B.O. mas, o
delegado foi contra mim e disse que pra ele não tinha acontecido uma injúria
racial. Discuti com ele e expus em detalhes tudo que passei e mesmo assim
tive dificuldades em registrar a queixa. O delegado era branco e acredito que
também era racista, pois todo racista não reconhece situações de racismo.
Estes depoimentos ajudam a perceber como o racismo ainda é muito forte na nossa
sociedade, como uma mulher negra fora do seu “lugar” comum de subalternidade encomenda
no Brasil; também nos mostra que o primeiro alvo dos ataques racistas é a estética da mulher
negra tanto de forma agressiva, como em forma de brincadeiras de mau gosto.
Segundo a entrevistada “C”: “Já disseram que era pra eu alisar o cabelo porque só eu
precisava saber que ele era duro, as outras pessoas não”, como se o cabelo crespo fosse
coisa feia, mal, imoral, uma afronta ao ideal de beleza branca, que deve ser escondido da
sociedade brasileira. A estética negra incomoda de uma forma, ao ponto das pessoas saírem
do seu lugar de privacidade para violar o espaço de privacidade do outro.
Esse incômodo não é só causado pelo cabelo crespo e sim pelo conjunto de
elementos que forma estética negra. Segundo a entrevistada “D”: “[...] Falar que não
tenho cara de engenheira, quando uso turbante [...], ou quando, a entrevistada “E” relata
que: “Sou docente do ensino superior na rede privada de ensino no RS. E ouço com
frequência que as roupas que visto são "casuais e que não pareço docente por isso!”.
A estética negra também é geralmente o primeiro caminho para se manifestar o
racismo institucional, é utilizada como subterfugio para impedir o acesso em determinado
espaço público; para negar determinados direitos; para ser reprovada em uma entrevista
de emprego, ou seja, nas varias instâncias da sociedade brasileira. Como nos relata a
entrevistada “F”: “Tive várias experiências, a mais marcante foi uma gerente de uma loja
afirmar que eu tinha que alisar meu cabelo para conseguir o emprego de vendedora”.
Nos dias atuais existe uma norma ética que leva as pessoas serem politicamente
corretas, mas mesmo assim, nos momentos de muita tensão ou de muita alegria essas
pessoas são levadas a expressar o seu incômodo em relação á estética negra, suas visões
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preconceituosas que atacam de forma direta ou indireta a população negra,
como nos relata a entrevistada “G”:
Na faculdade uma colega de classe interrompeu minha fala onde eu falava da
importância de se desconstruir e o quão foi e é demorado o processo, ela
interrompeu para dizer que minha mãe certamente sempre alisou meus cabelos,
pois, alisados proliferaria menos piolhos, ou seja, ela disse que uma criança com
cabelo afro tem mais propensão a ter piolhos, isso em uma faculdade onde o tema
da aula era o racismo, o vídeo que estávamos discutindo falava de desconstrução.
Foi muito ruim, pois ela trabalha em escola com crianças e ela afirmou na tentativa
de se justificar que um cabelo afro natural tem mais piolhos que de uma criança
com cabelo liso. Segundo ela, tem duas filhas uma do cabelo cacheado e outra liso
por isso ela poderia falar e afirmou, riu e debochou.
Ao analisar os questionários fica evidente que as mulheres negras convivem
com um olhar social construído historicamente que eleva o padrão estético branco como
expectativa, como padrão ideal a ser perseguido. Ao desenvolver essa pressão social, a
sociedade brasileira constrói uma hierarquia em termos sociais, culturais e econômicos,
reforçada a partir da estatização da estética negra, minimizando e desprezando a
identidade da mulher negra por considera-las distantes do padrão do ideal.
Os relatos expõem a problemática da pressão social em torno da estética
negra, em especial da relação entre o cabelo crespo e mulher negra, como fator
que vem causando discussão e conflito na vida da população negra, uma vez que
acontece uma desvalorização da beleza negra, em detrimento da supervalorização
da beleza branca, afirmando e reforçando os estigmas de inferioridade da
população negra, em especial os que cercam a identidade da mulher negra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A problematização dos estereótipos acerca da estética da população negra nos
possibilitou refletir e questionar a ideia de isonomia social presente na Constituição Brasileira,
a partir da experiência da mulher negra, ou seja, do pressuposto do direito a identidade e
consequente, do pressuposto da violação dos seus direitos, que lhes colocam em condições
desfavoráveis na pirâmide social nos dias atuais na sociedade brasileira.
Analisar a ideia de isonomia social a partir da experiência da mulher negra
possibilitou refletir o processo de estigmatização da estética negra, que ocasiona uma
pressão social que contribui para negação da identidade negra, fazendo com que, a
mulher negra negue os seus traços estéticos naturais e culturais em detrimento de
um padrão estético artificial apresentado como um padrão de beleza ideal.
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No que diz respeito ao direito a identidade, passa necessariamente, de
maneira geral pela discussão da estética da população negra e de maneira especifica,
pela discursão da estética capilar da mulher negra nos dias atuais. De maneira geral, a
discussão da estética foi usada politicamente de duas maneiras: para negar o direito à
identidade da população negra, principalmente através da negativação dos elementos
físicos e culturais que caracterizam o fenótipo da população negra e para reivindicar
uma identidade especifica, de origem africana, através do processo de positivação da
estética negra desenvolvido pela própria população negra.
De maneira específica, tem sido utilizada como instrumento politico
principalmente pelas as mulheres negras, no processo de reivindicação do
direito e valorização de sua identidade e contra os estigmas racistas,
construídos ao seu respeito no decorrer do processo histórico do Brasil.
É a partir desse pressuposto que acontece o que poderíamos denominar do
nascimento de uma nova perspectiva da negritude na contemporaneidade, que
confronta o sistema de beleza opressor, obsessivo pelos padrões de beleza europeus,
e ao tempo, proporciona a vivenciar da autoafirmação em um processo de
reivindicação do direito de sua identidade através da valorização da estética negra.
É o advento da formulação de uma proposta de intervenção estética que
postula o direito à beleza para e da população negra; o desenvolvimento de ações que
constroem um discurso afirmativo usando a internet, em destaque, como espaço de
organização e articulação das mulheres negras, que estimula a valorização dos fios
crespos naturais, mostrando diferentes formas de usar o cabelo e como cuidar dele.
Os coletivos dessas mulheres surgem por todo país em escolas,
universidades, nas regiões periféricas e não periféricas, exigindo o respeito às
diferenças e estimulando o uso da estética capilar negra, apresentando o
cabelo crespo como sinônimo da história de resistência da população negra.
Podemos afirmar que temos duas culturas de tratamento distintas, no que diz respeito
à estética negra: uma de negação e outa de afirmação, que historicamente tem influenciado
diretamente na constituição da personalidade da mulher negra, diante da complexidade da sua
situação na sociedade brasileira, possibilitando subsídios para questionar o princípio da
isonomia social no Brasil como um dos pilares da ideologia da democracia racial.
Dessa forma, a relação entre estética negra e o princípio da isonomia social à partir
da mulher negra, apresentou e denunciou a lógica da afro-conveniência. Assim, essa lógica
nega a identidade negra como princípio de organização politica em prol dos direitos da
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população negra, sobre o argumento de que vivemos em uma sociedade miscigenada,
por isto, fica impossível identificar o que é ser negro na sociedade brasileira.
E ao mesmo tempo, é reservado um espaço precarizado para população negra na
sociedade brasileira, no que diz respeito às condições básicas de cidadania, sobre alegação
de que essa realidade só acontece porque ela é a maioria nessa sociedade; justificado o seu
lugar da não educação, do (sub)desemprego, da marginalidade e da violência; mostrando que
por questões de gênero e raça, existem alguns poucos, mais iguais do que a imensa maioria.
Essa realidade tem sido historicamente encoberta e ignorada para justificar a ideologia da
democracia racial, fundamentada no principio da isonomia social brasileira.
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