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PROTUBERÂNCIA
O LIVRO DO BLOGUE
VOLUME III)
(2011)
Joel G. Gomes
Título: Protuberância: O livro do blogue: Volume III
Autor: Joel G. Gomes
Capa: Joel G. Gomes
(C) Joel G. Gomes 2012
ISBN:
Joel G. Gomes 5
TERMINUS 198
UMA DROGA DE ARTIGO
Então? Como foi essa passagem de ano? Agora que come-
çam a acordar e a tomar noção do que fizeram na noite pas-
sada, nada melhor do que um artigo leve para vos deixar bem-
dispostos. Vou só aguardar que lavem a cara. Estão todos
prontos? Aquela senhora também? Peço desculpa, não era uma
senhora. Era o José Castelo Branco. E cá está. A piada sobre o
José Castelo Branco.
Vamos lá então ao nosso artigo. O Instituto da Droga e da
Toxicodependência anda preocupado com uma droga que anda
a fazer estragos por esta Europa fora. Essa droga já matou dois
jovens no Reino Unido e é ilegal em Portugal e em outros 13
países da União Europeia. Se tivermos em conta que a União
Europeia é composta por 27 Estados Membros, basta
convencer um deles a mudar de ideias. Dica: Portugal tem
bons índices de corrupção. Porque não começar por aí?
A droga em questão tem o nome científico de mefedrona. E
vamos ficar pelo nome científico, porque se queremos ter um
artigo sério, ainda que divertido, sobre este tema, não podemos
dizer que o nome de rua desta droga tão nefasta é miau-miau.
Ora bolas! Pronto, 'tá dito, 'tá dito. Mais vale aproveitar e
gozar. Vamos então aos trocadilhos na forma de comentários
ditos por pessoas inventadas por mim.
“Miau miau? Parece uma droga um pouco abichanada.”
Kiko, cronista social de Arronches
“Prefiro ão-ão.”
Bóbi, terrier de Ourique
“Os cartões do Metro não dão pra filtros. É só químicos.”
Jimmy, junkie de Olivais Sul
6 PROTUBERÂNCIA – Volume III
Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um
assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu acho
muito mal que Portugal seja um dos países a considerar esta
droga uma substância legal. Penso que, tal como já se faz em
outros países, nós também devíamos punir, não só quem vende,
mas também quem consome esta droga. Sorte tiveram os dois
bandalhos que morreram no Reino Unido. Se fosse cá, ainda
tinham de pagar uma multa.
O grande problema do miau-miau não tem que ver com o
seu tráfico, o seu consumo ou as suas consequências para a
saúde. Se fosse só por isso, por mim haveriam lojas com vi-
trinas cheias de miau-miau para quem quisesse ir lá comprar.
O problema está precisamente no nome. Inventem-se as razões
que quiserem, a verdade é que esta droga só é legal em
Portugal porque... cá vai: Portugal tem neste momento um
Governo PS que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo
sexo. Como tal, não será este Governo a ilegalizar uma droga
com nome bicha. É tudo política, meus caros.
É verdade que há registo de 37 mortos relacionados com
esta droga. Mas nem todos morreram por causa do consumo.
Os dados não apontam quais as verdadeiras causas, mas su-
ponho que alguém possa ter morrido por levar com uma palete
de miau-miau na mona. Já o meu pai me dizia quando era
miúdo (eu miúdo, não o meu pai): pesa tanto um quilo de
miau-miau, como um quilo de ecstacy, a diferença está mais
no nome.
Portanto, se nunca consumiram esta droga, continuem as-
sim. Entretenham-se com outras drogas que achem interes-
santes. Caso contrário, parem o que estão a fazer e vão já
imediatamente deitar fora todo o vosso stock de miau-miau
pela sanita abaixo. Eh! Esperem lá! Onde é que vão todos?
Calma! O artigo ainda não acabou! Ainda não... Ainda faltava
a piada sobre o...
Feliz 2011.
Joel G. Gomes 7
TERMINUS 199
ANO NOVO, DISCURSO DE SEMPRE
Olá, meus queridos e minhas queridas. Quero começar bem
este ano de 2011 e quero fazê-lo da melhor forma. Como?
Através do discurso de Ano Novo do senhor ainda Presidente
da República. (E muito provavelmente o próximo, mas isso é
outro assunto.) Desculpem? Não estão interessados? Eu sei
que é um assunto um pouco maçudo, mas não pode ser sempre
pândega; há que haver alguma seriedade de vez em quando.
Mais que não seja para fazer contraste. Eu prometo que vou
ser meigo. Ora, vamos lá.
No ano que agora terminou, Portugal foi confrontado
com uma realidade que há muito se desenhava no hori-
zonte.
Começa logo ao ataque o Aníbal. Andava tudo com a ca-
beça no ar e de repente... tau! Eu não me importo de ser con-
frontado com uma realidade que tenha sido desenhada há
pouco. Ser confrontado com uma realidade desenhada há
muito, parece-me distracção a mais. Ninguém escutou os avi-
sos, foi o que foi. “Olha a realidade! Eh pá! Olha a realidade
que se desenha no horizonte! Vês? Levastes com a realidade
no focinho que é por causa das tosses!”
Não iludir a realidade é um sinal positivo e uma atitude
responsável, pois representa o primeiro passo para mudar
de rumo e corrigir a trajectória.
Não iludir a realidade em que sentido? Não me parece que
não escamotear os problemas que existem seja quanto baste
para começar a resolvê-los. Transportando isto para o mundo
do futebol, pensemos no pior guarda-redes do mundo. Sempre
que joga, é frango atrás de frango. No último jogo, entra para
substituir o colega titular e tem de defender um pénalti. No
mundo do futebol é possível este guarda-redes defender este
pénalti. No mundo da política, pelo contrário, não se pode
8 PROTUBERÂNCIA – Volume III
esperar que a solução de muitos dos problemas que nos
afectam, venha de alguém que teve total ou parcial res-
ponsabilidade no surgimento dos mesmos.
O regime republicano encontra-se plenamente consoli-
dado ao fim de 100 anos de existência. Por outro lado, é em
democracia que todos aspiramos viver e ninguém deseja o
regresso aos tempos da ditadura.
Agora vou dar algo que fazer aos historiadores que me
possam estar a ler. A Primeira República teve início em 1910 e
foi interrompida em 1926, com o Golpe Militar de 28 de Maio;
ao todo são dezasseis anos. Seguem-se os quarenta e oito anos
da Ditadura Militar e do Estado Novo. Depois, a partir de 1974
até ao ano passado, são trinta e seis anos. A conta é 16+48+36.
E dá 100. Mas só dá 100 porque estamos a contar os anos da
chamada ditadura. O que não faz muito sentido porque, se foi
uma ditadura, se foi um regime diferente de um
republicanismo democrático, porque é que...? Não sei se estão
a ver onde é que eu quero chegar? Mais valia, se é para
contabilizar regimes que não têm nada a ver, iniciar a
contagem dos anos da República a partir de 1891. É verdade
que nessa altura ainda estávamos em tempo de Monarquia,
mas quem inclui anos de Ditadura em anos de Democracia,
pode muito bem incluir anos de Monarquia. Fica à atenção dos
nossos historiadores.
Por hoje chega. Acreditem que ainda havia muito para es-
mifrar neste discurso do senhor Aníbal, mas o espaço não dá
para mais. Deixo-vos com esta última frase e um xi-coração
bem grande para todos aqueles que lavaram a cara antes de
sair do Renault onde agora residem.
Joel G. Gomes 9
TERMINUS 200
TEMPO DOS MAI PIQUENOS #1
Dois dias depois de vos ter agraciado com uma análise breve
sobre o discurso de Ano Novo do senhor Presidente Cavaco, é
altura de darmos conta das reacções de vários quadrantes do
sector político. A reacção dos principais partidos políticos – PS,
PSD, CDS-PP, PCP e Bloco de Esquerda – já foi escutada;
todos eles tiveram oportunidade de apresentar as suas
apreciações sobre os ditos do senhor Aníbal. Mas... e os par-
tidos pequenos? O que têm o PND, o POUS, o PPM, o MPT,
ou o PNR a dizer sobre os avisos de Cavaco Silva? Chegou a
altura de saber tudo isso e muito mais numa nova rubrica
chamada “Piquenos Analistas”.
PNR – Partido Nacional Restaurador
“Antes de mais, dizer que acho uma vergonha, para não
dizer palhaçada, que não me deixem ser candidato à Presi-
dência da República só porque ficámos a umas mil e seiscen-
tas assinaturas das que eram precisas. Em relação ao discurso
do Presidente da República, é mais uma prova de que este país
carece de um rumo, rumo esse que só pode ser estipulado por
um partido que defenda os valores de uma sociedade justa e
igualitária para todos os portugueses. Uma vez que não somos
esse partido, não temos muito mais a dizer sobre o assunto. Ah!
Dizer também que não somos contra os estrangeiros.
Principalmente aqueles que não vêm para cá.”
José Lebre Salpico
MPT – Movimento Partido de Todos
“O senhor Presidente da República diz-se Presidente de
todos os portugueses, mas não esconde a sua simpatia pelos
quadrantes políticos mais à direita. Assim não pode ser. Já não
bastava cada candidato presidencial ser apoiado pelo seu
10 PROTUBERÂNCIA – Volume III
partido ou por vários ou por nenhum?
Acreditamos que todas as pessoas têm direito ao seu parti-
do, mas que nem todos os partidos têm direito às suas pessoas.
A pluralidade de partidos é sintoma de uma sociedade
fragmentada. Somos pela unidade, pela coesão e pelo empe-
nho num caminho certo e definido."
Pedro Chalaça Quintin
PH – Partido Hidrogeniónico
“A que epiderme aspiramos? Sentimos a secura e a acidez
de uma sociedade pouco dedicada à resolução dos problemas
que todos os dias afligem as peles delicadas. Somos pela hi-
dratação, pela frescura e pela suavidade de uma epiderme
saudável. Buscamos combater esses grandes males cutâneos
que são a psoríase e a hidrosadenite supurativa. Acreditamos
numa sociedade em que as pessoas não mais sejam distingui-
das pela sua pigmentação, e sim pelo seu ph.
Lamentamos com grande pesar que, apesar da gravidade
deste problema, o senhor Presidente da República tenha dedi-
cado o seu discurso a falar dos desempregados e dos pobres e
não tenha feito uma nota, ainda que breve, ao aumento do IVA
nos cremes hidratantes. Enfim, prioridades.”
LF de la Paz
Por agora é tudo. Para a próxima à mais. E sim, a frase
anterior tem um erro. Mas não vou dizer qual é.
Joel G. Gomes 11
TERMINUS 201
AI DOS POBRES!
Antes de mais, dizer que não tenho nada contra os pobres.
Nem contra as pessoas que começam frases com “dizer que”.
Todavia, a proposta a ser lançada brevemente pela revista
CAIS de tornar ilegal a pobreza, parece-me algo mal pensado.
O propósito até pode ser nobre e digno de divulgação. O
problema é que estamos em Portugal. Ainda que o Estado vá
na cantiga de aceitar pagar coimas por não conseguir reduzir o
número de pobres em Portugal, não é isso que vai resolver o
problema da pobreza. Vai resolver o problema CÁ. Se o
objectivo for reduzir o número de pobres em Portugal, basta
enviá-los para o estrangeiro. Em pouco tempo passaríamos a
ter zero pobres no nosso país.
Colocar-se-ia então a questão: onde é que os nossos polí-
ticos iriam fazer as suas demonstrações de solidariedade?
Junto dos cidadãos de classe média baixa? Só se fosse.
Uma outra solução para reduzir o número de pobres no
nosso país, sem que tenhamos de enviá-los para fora, é dimi-
nuir o comprimento da fenda que separa os ricos dos pobres.
Para tal, não é preciso tirar dinheiro aos ricos para dar aos
pobres, basta tornar oficial a noção de que quem tiver 1 euro
por dia passa a pertencer a classe média baixa inferior. Já não é
um cidadão pobre, é um cidadão com fluxo financeiro defi-
citário.
As consequências do incumprimento desta proposta de
projecto de lei, caso seja aprovado, implicam as já referidas
coimas. O Estado português vai ter de pagar multas sempre
que não consiga reduzir o número de pobres de ano para ano.
Resultado: se o número de pobres aumenta, ou mesmo que se
mantenha, de ano para ano, reduz o número de contribuintes
que sustentam o pagamento das coimas. Logo, o Estado co-
meça, ele próprio, a entrar em dívida. A longo prazo ficará
12 PROTUBERÂNCIA – Volume III
também o Estado na condição de pobre. E depois? Quem é que
se vai chegar à frente depois?
Isto de combater a pobreza é muito bonito mas, tal como
tudo na vida, há dois lados nesta questão. Geralmente, tende-
mos a ver o lado da miséria, o lado do desespero. Esse aspecto
vale a pena combater. Gosto de ter um tecto sobre a minha
cabeça, gosto de ter um lar e sei que muitas pessoas que estão
neste momento a dormir na rua porque as circunstâncias da
vida a isso levaram não se importariam de estar no meu lugar.
Porém, convém não esquecer o outro lado da pobreza. Vestir
uns trapos e ir para a porta da Igreja pedir qualquer um faz. Há
os pobres pobres e há os pobres de moral. São diferentes.
Além disso, a erradicação da pobreza é um acto que traz
mais malefícios do que benefícios. Assim como na natureza,
todo o ser vivo tem um papel a cumprir, o mesmo se passa
com os pobres na sociedade. A melhor definição de classes foi
apresentada em 1996 pelo comediante George Carlin. É com
ela que vos deixo.
“As classes altas: ficam com o dinheiro todo, não pagam
impostos. A classe média: paga os impostos, faz todo o traba-
lho. Os pobres estão lá... só para acagaçar o pessoal da classe
média.”
Joel G. Gomes 13
TERMINUS 202
CONTENÇÃO Q. B.
Durão Barroso é da opinião que devemos ter alguma modera-
ção sempre que falarmos da crise. Cavaco Silva considera essa
uma opinião “muito sensata”, na medida em que “palavras de
insulto” poderão levar ao aumento do desemprego. Hum...
Não é por aí. É verdade que chamar nomes feios costuma ter
consequências más, principalmente se for a um credor, mas
não é por aí que o desemprego aumenta. Ou melhor, não é por
não fazermos isso e por oscularmos os glúteos desses sujeitos
que passamos a ter mais emprego. Quer dizer, em alguns casos
até é.
Não obstante alguma irrelevância destas declarações, elas
não são inteiramente desprovidas de sentido. Por um lado, tal
como disse há pouco, porque é falta de educação, por outro
porque, alerta o senhor Aníbal, “há pessoas em Portugal que
parecem não saber que os nossos credores são as companhias
de seguros, os fundos de pensões, os fundos soberanos, os
bancos internacionais e os cidadãos espalhados por esse
mundo”. Ena, tantos! Eu não fazia ideia que tínhamos tanta
gente à perna.
Há umas semanas recebi uma notificação da Direcção-
Geral de Contribuições e Impostos. Devido a uma declaração
não entregue, fui notificado para proceder à regularização da
situação e ao pagamento de uma coima (caso não pudesse re-
gularizar a situação) estimada em 125€. Este valor não era
quanto eu devia, era quanto eles achavam que eu não declarei.
Julgava que só tinha de me preocupar com estes senhores.
Pelos vistos, não.
É graças a esta experiência pessoal que sou capaz de apre-
ciar as palavras de Durão Barroso e de Cavaco Silva por
aquilo que realmente são. Sem a minha experiência da notifi-
cação estas declarações soar-me-iam a demagogia, a hipocrisia
14 PROTUBERÂNCIA – Volume III
política; neste caso, soam-me apenas a demagogia e a hi-
pocrisia política. A diferença a ter em conta nestas duas situa-
ções tão díspares é o facto de eu não ser alheio às consequên-
cias que eles advertem. Já as vivi. Pode não parecer, mas co-
nhecer na prática o que alguns só sabem em teoria, ajuda a
manter uma certa perspectiva das coisas.
A adesão de Cavaco Silva à contenção verbal não é novi-
dade para ninguém. Recorde-se que há bem pouco tempo, o
mesmo Cavaco apelou aos líderes políticos que agissem mais e
falassem menos. É um tipo de padrão expectável de um
Presidente que antes tão pouco falava e agora tão pouco diz.
Não diz, por exemplo, que além de não se dever ofender cre-
dores, não se deve, não se devia, ofender quem é obrigado a
contribuir para saldar essas dívidas. A verdade é inequívoca.
Os políticos podem insultar os credores, mas quem paga a
factura somos nós. Não julguem, porém, que Cavaco Silva
está preocupado connosco. Pelo contrário. A verdade e que,
quer saibamos porquê, quer não, haverá sempre facturas para
pagar. O ideal é não sabermos do quê ou para quem.
Joel G. Gomes 15
TERMINUS 203
PELA ETIQUETA
Um comunicado publicado no site oficial da Direcção Geral de
Saúde, dá conta que “a actividade gripal é moderada, mas
revela tendência, conforme esperado para esta época do ano”.
Ora, muito obrigado meus caros senhores. É disto que eu gosto
nos médicos. São capazes de nos dizer que quando vem o
friozinho, vem o ranhinho também.
Duas perguntas, não para os médicos, mas para quem me lê,
mesmo que não seja médico. A primeira é: a DGS terá uma
quantidade assim tão grande de sites de fãs para que seja
necessário especificar que este comunicado foi publicado no
site oficial? E a segunda: escrever “ranhinho” é fofo ou ja-
vardo?
A gripe pode ser muito perigosa, sem dúvida. Principal-
mente para quem anda à fresca. “A vacinação é o melhor mé-
todo de prevenção”, diz o mesmo comunicado. Assim à pri-
meira vista, os senhores da DGS fazem lembrar os avós. É
possível que alguns deles também o sejam. “Agasalha-te que
'tá frio. Olha que constipas-te.” No entanto, os senhores da
DGS, além dos avisos, são também pela regras de etiqueta,
nomeadamente pelas regras de etiqueta respiratória.
A minha preferida destas regras é aquela que diz que de-
vemos tossir ou espirrar para um lenço descartável ou para o
cotovelo. Pessoalmente, prefiro perder o amor aos 4 cêntimos
que custa um lenço de papel do que manchar de muco a manga
do casaco. Quando eu era pequeno levava nas orelhas por
limpar o ranho à manga. Agora que sou adulto, vêm uns
senhores que não conheço de lado dizer que assim é que é.
No caso das senhoras, as consequências são ainda mais
nefastas. Pensem num casal à antiga. Não vão de mão dada na
rua. Ele dá o braço e ela segura precisamente na zona-alvo.
Haverá cenário mais romântico do que sentir na palma da mão
16 PROTUBERÂNCIA – Volume III
o muco de alguém que se ama? Por acaso, esta ideia não me
fascina muito, mas isso é porque não pertenço a um casal à
antiga. Só por isso.
Outra chamada de atenção que a DGS faz tem a ver com
lavar as mãos com frequência. Se no caso desta DGS, esta re-
comendação tem que ver com questões de germes; no caso da
antiga DGS, lavar as mãos era qualquer coisa como declarar-se
“inserido no regime”. Ou qualquer coisa assim.
Peço desculpa por este pequeno desvio. Foi pouco ético da
minha parte.
Joel G. Gomes 17
TERMINUS 204
QUESTÕES DO FORO PRIVADO
Olá, meus rojõezinhos! E então? Continuam em pulgas pelas
eleições que estão prestes a acontecer, ou já tomaram uma as-
pirina e perceberam que as coisas não vão mudar assim tanto?
Na minha crónica de hoje trago-vos um tema que é sempre tão
bem explorado pelo homem: a menstruação. E atenção que
“explorado” não é um termo utilizado ao acaso.
Parece que na Noruega existe uma empresa em que as tra-
balhadoras são obrigadas a utilizar uma bracelete vermelha
sempre que estiverem com o período. A medida está a ser
fortemente contestada pelos sindicatos, que acusam a empresa
de descriminação. A empresa defende-se, dizendo que, graças
a este sistema, essas funcionárias podem passar mais tempo na
casa de banho.
Em muitos aspectos eu admiro a Noruega, a Suécia, enfim,
esses países nórdicos onde as coisas tendem a funcionar bem.
Este caso não é exemplo disso. Uma medida que permite
menos tempo de trabalho é uma medida contraproducente.
Tenho dificuldade em perceber estes sindicalistas. Em vez de
ficarem contentes porque existe um grupo que passa a traba-
lhar menos, ficam indignados por esse grupo ser obrigado a
utilizar um acessório de modo.
É uma medida que mexe na privacidade nas pessoas? Mais
ou menos. Quem trabalha com mulheres, sabe que elas estão a
par dos ciclos menstruais de todas; quem fica de fora deste
baralho são os homens. Portanto, esta questão da privacidade
só é privada até certo ponto.
Em Portugal ainda ninguém se lembrou de fazer isto. E
ainda bem. A avaliar por alguns casos, certas mulheres ficari-
am com o braço marcado de tanto andar com a bracelete co-
locada. Outras, mais púdicas, ficariam da mesma cor da bra-
celete, tornando-a obsoleta.
18 PROTUBERÂNCIA – Volume III
Quanto aos homens, não se pense que escapam ao crivo
patronal. Se as mulheres são obrigadas a utilizar bracelete, os
homens têm de picar cartão sempre que forem à casa de banho.
Esta medida já não me desagrada, na medida em que me
permitiria contabilizar quanto tempo é que passo na casa de
banho. Seria uma ajuda imprescindível para poder organizar
melhor o meu dia a dia.
Joel G. Gomes 19
TERMINUS 205
VÃO-SE QUOTIZAR TODOS
Olá, meus bezerrinhos. O diminutivo não é por serem fofinhos
e queridos, é por ainda não estarem prontos para o abate. No
artigo de hoje vou falar de um tema que vai fazer as delícias de
todos aqueles envolvidos em fraudes e outros delitos desse
calibre. E o grande tema é: sociedade por quotas. Calma! Não
comecem já a dar pulos de contentamento. Se estiverem em
local público, força; sempre é um espectáculo bonito de se ver.
Se estiverem em casa, façam favor de se comportarem como
os adultos que gostariam de ser.
Foi preciso esperar um bocado, mas em boa hora o Go-
verno decidiu acabar com o capital social mínimo de 5000
euros para constituir empresas. A partir de agora quem quiser
formar uma empresa, pode fazê-lo com mais facilidade e com
muito menos dinheiro, nem que seja só com euro.
Esta medida faz parte do nosso já grande amigalhaço
Simplex, e tem por objectivo “contribuir para reduzir os custos
de contexto” e “promover o empreendedorismo”. Quem sabe o
que isto significa, deixe-se estar caladinho e não interrompa
enquanto eu explico aos que não sabem.
CONTRIBUIR PARA REDUZIR OS CUSTOS DE
CONTEXTO
Exemplo: O senhor Calapito abre um consultório de
Oftalmologia na zona do país com mais cegos por metro quadrado. Como tem de mandar vir clientes de
fora, essa despesa reduz substancialmente a sua
margem de lucro. De modo a compensar esse gasto, o
Governo deixa o senhor Calapito meter mais algum ao
bolso.
20 PROTUBERÂNCIA – Volume III
PROMOVER O EMPREENDEDORISMO
Exemplo: O senhor Calapito abre um consultório de
Oftalmologia na zona do país com mais cegos por
metro quadrado. Por ser uma ideia arrojada, embora de difícil aplicação neste cenário, o senhor Calapito gasta
mais dinheiro do que gostaria. Para compensar esse
gasto, o Governo deixa o senhor Calapito meter mais
algum ao bolso.
Para um leigo na matéria, compreendo que possa parecer
que existe uma ideia comum a estes dois pontos. Asseguro-vos
que o facto de ambos os senhores nestes dois exemplos terem
o mesmo nome, e de ambos terem tido a bela ideia de abrir
consultórios de Oftalmologia em zonas pouco adequadas para
isso, trata-se de uma simples coincidência.
A ideia principal a reter é a possibilidade de “fomentar que
boas ideias se transformem em negócios com facilidade. Um
bom exemplo, de acordo com a Secretária de Estado da
Modernização Administrativa, é a criação de empresas de
serviços informáticos na Internet. Antigamente estes empre-
sários precisavam de um capital social mínimo de 5000 euros;
o que os obrigava a perder muito tempo a quebrar firewalls,
roubar passwords, entrar em contas bancárias, fazer
transferências de 1 ou 2 cêntimos para contas off-shore. Até
conseguirem chegar aos 5000 euros, estão a ver a maçada que
não era. Agora só precisam de furtar 1 ou 2 euros. Não me
admiro se alguns deles, com mais vontade de gastar do que o
normal, for capaz de se chegar à frente com esse guito todo.
Joel G. Gomes 21
TERMINUS 206
MENOS ESTUDOS, MAIS EMPREGO
Um país é como um restaurante que coloca um catrapázio com
a ementa no meio do passeio: ambos tentam destacar algo que
os distinga da concorrência. No caso dos restaurantes temos o
mítico e digno “Á pipis”, no caso dos países funciona de
maneira diferente, mas não muito diferente.
Um bom exemplo português, divulgado no primeiro bole-
tim trimestral do Observatório Europeu de Vagas Profissionais,
é o facto de sermos o país da Europa que oferece mais trabalho
a quem tem menos estudos. De acordo com os números
divulgados, 59% das pessoas que conseguiram trabalho neste
último trimestre de 2010 tinham uma escolaridade muito baixa.
Para quem dizia que este Governo não tinha uma política
de Educação bem definida, faziam melhor em terem ficado
calados para não passar vergonha. Portugal, não só tem uma
boa política de Educação, como garante emprego para quem,
apesar das facilidades, não se conseguir safar.
E não é preciso pensarmos muito para encontrarmos bons
exemplos de facilidades. O mais recente é a transição do 8º
para o 10º ano mediante a realização de um exame. Palpita-me
que não tardará a aparecer o exame para se passar do 7º para a
Licenciatura. Quem não conseguir fazer este exame, pode
depois ir trabalhar para o campo ou para uma tasca ou para
uma repartição de Finanças. Em suma, trabalhos que carecem
de trabalhadores pouco qualificados. Ou, pelo menos, assim
parece.
Nesta altura vejo-me quase que obrigado a lançar uma
questão. Porquê? (Não é esta a questão, embora também seja
uma questão.) Porque é que eu me vejo obrigado a lançar esta
questão? (Também não é esta questão; contudo é uma questão
a ser respondida.) Resposta: porque estou a escrever com um
espelho à minha frente. Não é narcisismo. É mobília. Sobre a
22 PROTUBERÂNCIA – Volume III
relevância da questão, que é o que interessa, a questão a ser
lançada é a seguinte: esquecendo tudo o que eu escrevi nos
parágrafos anteriores, todas as ironias, paródias, etc., este
estatuto é bom ou mau para Portugal?
A grande vantagem que os números nos oferecem é a possi-
bilidade do reverso. Se considerarmos os 59% divulgados pelo
relatório, é muito mau percebermos que da totalidade de
pessoas que trabalha, mais de metade tem baixa escolaridade.
Porém, se considerarmos os restantes 41%, podemos conven-
cer-nos (ainda que não seja verdade) que apenas 41% do nosso
pessoal qualificado não consegue arranjar trabalho. Se
consultarmos os números da Itália e os da Grécia, respectiva-
mente 43% e 37%, e os compararmos com os seus reversos,
percebemos que 57% dos trabalhadores italianos qualificados
e 63% dos trabalhadores gregos qualificados não consegue
arranjar trabalho.
Em suma, a resposta à questão de isto ser bom ou mau para
Portugal está dependente da opinião de cada um. Os números
dizem sempre aquilo que nós queremos que eles digam.
Mesmo que seja um disparate autêntico. É tudo uma questão
de interpretação.
Joel G. Gomes 23
TERMINUS 207
MORRER EM NOVA IORQUE
O artigo que se segue tem como tema principal o recém-fale-
cido cronista Carlos Castro. Antes de mais, tenho que falar do
elefante no quarto. Podem ser de mau gosto todas as piadas
que de imediato começaram a proliferar pela Internet, jornais e
etc., sobre os nomes dos envolvidos nesta situação, mas
percebam duma vez por todas: os nomes em causa e a situação
em si geraram essa possibilidade. Se os envolvidos se
chamassem Zé Manel e João Silva, não teríamos tantas piadas
como temos com Castro e Seabra. Não tem a ver apenas com
as pessoas, tem a ver principalmente com os nomes.
Referido que está o elefante, vamos ao que interessa. Em
primeiro lugar, não vou adiantar teorias sobre o que terá
acontecido naquele quarto de hotel. Não nutro especial inte-
resse por qualquer um dos envolvidos. Não me interessa de
quem foi a culpa, preocupa-me é a falta de respeito. Nomea-
damente, com a indústria hoteleira portuguesa.
De há uns meses para cá, tenho percorrido o país de norte a
sul e passado por muitos bons hotéis. É verdade que Lisboa
não tem o charme de Nova Iorque. Aliás, para sermos rigoro-
sos, não podemos comparar Lisboa a Nova Iorque; quanto
muito Lisboa a Washington, por serem capitais. Nova Iorque
podemos comparar a... talvez ao Porto ou Coimbra ou mesmo
Albufeira. Tenho passado por muito bom hotel cá, dizia eu, e
fiquei desiludido que Carlos Castro tenha decidido ir morrer
para Nova Iorque.
O ex-cronista tem andado na boca de tudo quanto é jorna-
lista e a sua morte está a receber mais destaque do que a morte
de outras figuras de maior relevo falecidas em data aproxi-
mada. É verdade que a violência do crime justifica um certo
sensacionalismo em torno do caso. É uma morte mediática
sem dúvida. Mas é uma morte efémera.
24 PROTUBERÂNCIA – Volume III
Sou leitor ocasional do Correio da Manhã e sou capaz de
folhear uma TV Mais ou uma TV7 Dias se estiver num café e
não houver mais nada para ler. E em todos estes periódicos
onde, com uma certa regularidade, costumava encontrar
“textos” do senhor Carlos Castro, não me consigo lembrar de
nada relevante que ele tenha escrito. Estou certo de que terá
escrito algo importante, mas não estou a ver o quê. Assim
como as entrevistas vazias que fazia a pessoas sem
importância não conferiram a essas pessoas mais relevância do
que aquela que não tinham, aquelas com obra feita que
aceitaram ser entrevistadas por ele, não será isso que as fará
perdurar na memória colectiva, será tudo o resto.
Três dias antes da morte do cronista faleceu o artista mo-
çambicano Malangatana. Perto da Escola Secundária onde
estudei existe um parque com uma obra desse escultor. Daqui
por vários anos as pessoas continuarão a ver essa escultura. Já
as opiniões e críticas de Carlos Castro, embora venham a
desaparecer, não será de uma forma que dê para encher tanto
chouriço.
Joel G. Gomes 25
TERMINUS 208
PARTILHE-SE
Aqui há dias responsáveis da ACAPOR entregaram na Pro-
curadoria-Geral da República mil denúncias de IPs que parti-
lhavam ficheiros ilegais. Como ainda não se ouviu nada de
fontes oficiais sobre isto, achei que era meu dever intervir.
Antes de mais, assuma-se de vez: toda a gente faz down-
loads ilegais. Não há ninguém que não faça. Há quem abuse,
há quem tenha o computador ligado 24/7 sempre a sacar; há
quem saque um filme de vez em quando, mas a verdade é que
toda a gente saca. Incluindo os senhores da ACAPOR.
Meus meninos, não venham cá com histórias porque vocês
não são mais nem menos que nós. Protestar publicamente
contra algo que fazem em privado é apenas hipocrisia da vossa
parte.
A reivindicação principal são os direitos dos artistas. Com
os downloads ilegais, os artistas recebem menos. Não. Os ar-
tistas sempre receberam menos. Comparado ao que recebem as
editoras, as produtoras e todas as partes envolvidas que não os
artistas, são estes os que menos recebem. Era assim antes da
Internet, continua a ser assim hoje em dia. Não por culpa da
Internet, sublinhe-se, mas por culpa duma indústria que não
soube, não quer, acompanhar o evoluir dos tempos.
Dizem-se preocupados com os artistas. Eles estão-se nas
tintas para os artistas. Os produtores estão-se nas tintas para os
artistas. A não ser enquanto gerem lucro. Uma obra, boa ou má,
é produzida por dois motivos: porque gera lucro ou porque é
subsidiada por fundos públicos.
Alguns artistas viram as suas vendas aumentar justamente
com o boom da partilha online. Ao podermos obter de forma
gratuita (ainda que ilegal) uma música, um filme, uma série,
etc., aumenta a probabilidade de obtermos o produto original.
Comigo acontece isso. Compro o que vejo e gosto. Não tanto
26 PROTUBERÂNCIA – Volume III
quanto gostaria porque os preços não o permitem.
Muitas bandas disponibilizam os seus álbuns gratuitamente
nos seus sites pessoais e sobrevivem à conta de publicidade.
Para os fãs, a música é gratuita; para a banda, as receitas de
publicidade cobrem todas as despesas e geram lucro. Quem sai
a perder é quem vive à custa do trabalhos dos outros.
Estes downloads ilegais não estão a suscitar queixas da
parte de quem cria ou de quem produz, e sim de quem vende.
O que não se percebe. Se a propriedade dos produtos parti-
lhados não pertence à ACAPOR, por que raio têm de meter o
bedelho onde não são chamados? Eu não vou apresentar
queixa de carro roubado se o carro não for meu.
Joel G. Gomes 27
TERMINUS 209
DE DEDO EM RISTE
Estou a uma década da idade do dedo. Os homens com mais
de quarenta anos que me estão a ler, sabem do que eu estou a
falar. O famigerado dedo. Durante anos e anos, nós homens
vivemos sob o jugo de profissionais de saúde que ditavam o
nosso destino através da inserção digital numa área que nós
preferíamos que permanecesse inviolável.
Para quem já passou por esta experiência, esta notícia terá
um gosto amargo; para aqueles que, como eu, estão ainda a
uns anos desse evento, poderá ser uma boa nova.
Um estudo britânico concluiu que homens que tenham o
indicador maior que o anelar têm menos probabilidades de vir
a sofrer de cancro da próstrata do que os outros. Vou dar uns
segundos aos homens que me estão a ler para olharem para as
mãos com atenção. Já viram? Não vale dobrar o médio, tem de
ser com os dois esticados. E então? Quem estiver safo, ponha
o dedo no ar. Não o do meio, o maior.
Isto é para quê? Que uma pessoa contraia uma doença por
graça divina ou porque não teve cuidado, por mim tudo bem.
Que se safe por ter os dedos trocados parece-me injusto.
Quando nascemos, contam-nos os dedos. Agora vão passar a
medi-los.
“Parabéns, dona Maria. Tem aqui um belo rapazinho. Co-
mece a prepará-lo já, porque daqui a uns aninhos...”
Há aqui algo de errado. A regra é ter o indicador menor do
que o anelar. Quem não nasce com os dedos bem é que devia
ser castigado para aprender. Mas não. Somos nós, os como
deve de ser, que nos temos de vergar.
Que é o que nos incomoda realmente. O cancro em si é
chato, é mau, mas é quase um alívio comparado com o exame
em si. Estamos no século XXI, senhores! Não há uma máquina
que faça esse exame sem que seja necessário um sujeito de
28 PROTUBERÂNCIA – Volume III
luvas de borracha a mexer onde não deve?
“Tenho um dedo que adivinha.”
Já chega! Espero que daqui a uns anos, quando for a minha
vez, já estejamos evoluídos ao ponto em que só precise de
cuspir para dentro de um tubo e pronto. A máquina diz logo
tudo.Até lá, temos que nos sujeitar.
Aprecie-se, porém, os esforços que o Governo está a fazer
por todos aqueles que irão um dia passar pelo dedo. Para quem
não compreendia a relevância de algumas das medidas de
austeridade anunciadas, julgo que verão essas dúvidas es-
clarecidas dentro em breve. Para as mulheres e para os homens
que têm os dedos trocados, serão um esforço sem razão
aparente. Para nós, candidatos a exame, será uma preparação.
De tanto nos vergarmos pelo bem das contas públicas, quando
formos ao exame, será com relativa facilidade que baixaremos
as calças.
Joel G. Gomes 29
TERMINUS 210
AS REGRAS DA CONVERSÃO
Tenho andado tão ocupado com isto das presidenciais e do
outro que mal tenho tido tempo de prestar atenção às notícias
de facto importantes. O que vem aí não se trata duma notícia,
no sentido em que já não é actual, mas não deixa de ser um
momento bem bonito que partilhar convosco.
Paulo Macedo, o ex-director-geral dos Impostos (vade re-
tro!) e actual quadro do BCP (a moldura que ele tem à sua
volta é linda, só é pena não ser penal), foi ao Tribunal Central
de Instrução Criminal a pedido do colega e amigo, Armando
Vara, testemunhar sobre o carácter irrepreensível do senhor
Armando. Foi um momento que gerou algum riso junto
daqueles que pensavam estar num julgamento a sério; mas
depois passou e a coisa lá seguiu.
O Paulinho do BCP disse que Vara nunca usou a sua in-
fluência para beneficiar Manuel Godinho. O que se lamenta.
Com tanta prenda que o nosso rei da sucata andou a oferecer a
políticos e dirigentes, o mínimo que faziam era oferecerem-lhe
um vale de compras.
Além do Paulinho, foram também chamados senhores da
CGD para ouvir uma escuta. Como os tempos mudam. Anti-
gamente, a malta juntava-se em casa uns dos outros para ouvir
um disco; hoje em dia juntam-se num tribunal para ouvir
escutas. Pode ser implicância minha, porém, não me parece
que tenha a mesma magia.
E o que tinha esta escuta de tão especial?
Ao que parece – dizem, que eu não ouvi – o senhor Godi-
nho falava da capacidade miraculosa do senhor Vara de con-
verter km em euros; neste caso 25 km em 250 mil euros.
Sempre ouvi dizer que tempo é dinheiro, mas distância é a
primeira vez. Onde é que se aprende a fazer uma conversão
deste tipo? Na escola não deve ser. Pelo menos não em ne-
30 PROTUBERÂNCIA – Volume III
nhuma igual àquelas onde eu andei.
Uma última nota sobre Manuel Godinho. Parece que o Iron
Man de Ovar anda com vontade de ir para casa. Diz que a
prisão lhe anda a fazer mal. Faz a todos, meu caro. Mas é bom
para quem se baldou ao exame. O amigo tem que idade? É
aproveitar enquanto está aí que não paga nada. Custa à mesma,
mas é grátis.
Quanto às dores que o afligem, das duas uma. Ou Manuel
Godinho tem excesso de ferro no sangue e faz reacção alérgica
às grades, ou então vem do planeta Portugal e está numa cela
cujas grades são feitas a partir de ferro extraído no seu planeta
natal.
Joel G. Gomes 31
TERMINUS 211
ACESSO AO ÁLCOOL
Antes de começar, uma vez que se trata de um tema delicado,
tenho de fazer um aviso. O óbvio é relativo. Esta foi a primeira
ideia que eu quero que fixem deste meu artigo. A segunda é:
não se deve fazer de quem não percebe o óbvio. Perceberam?
Não se goza. Agora sim, podemos começar.
O senhor António Nunes... Não, não é aquele do Euromi-
lhões, é o da ASAE. Pois, também eu preferia estar num grupo
de folclore transmontano, mas enfim. O senhor António Nunes,
não me interrompam agora, percebeu finalmente que as caixas
de pagamento self-service foram uma óptima invenção para
todo o menor de idade que quer comprar álcool. Não gozem,
não gozem que não é por vocês terem percebido isso à
primeira que o senhor António merece ser achincalhado.
(Achincalhado. Há mais algum sítio onde vocês leiam
“achincalhado e self-service? Há? Então vão pra lá! Mal
agradecidos!)
Para o senhor que ficou, um grande bem haja.
Quando eu era pequeno, ia à taberna ao lado da minha casa
buscar vinho e cerveja. Ia a pedido da minha mãe e não levava
mais do que aquilo que me pediam. Acreditava religiosamente
que se ousasse pedir algo com teor alcoólico para meu
consumo pessoal, usando a desculpa do recado para a mãe,
não só o senhor Dias não me venderia o produto como me
levaria pelas orelhas até junto da minha mãe para apresentar
queixa. Ou, o mais certo, venderia tudo aquilo que eu lhe
pedisse, desde que pagasse, porque o negócio dele era vender
vinho e não combater o alcoolismo.
Esta minha crença em capacidades sobre-humanas do ta-
berneiro da minha rua durou até 1989, ano em que visitei
Évora pela primeira vez. Foi aí que visitei a minha primeira
igreja, onde rezei pela primeira vez. Apesar de desconhecer a
32 PROTUBERÂNCIA – Volume III
maneira correcta de formular um pedido, fiz o melhor que
pude e pedi a Deus que me dessem pelo Natal um conjunto da
LEGO, não me lembro agora qual. Ao não receber nenhum
conjunto da LEGO esse Natal, esvaeceu-se a minha crença no
Senhor invisível e nas capacidades extra-humanas do senhor
Dias.
Desculpe o desvio, senhor Henrique.
Era assim que as coisas funcionavam no meu tempo. Hoje
em dia, como bem sabe é tudo tecnológico. E há mais por
onde escolher. Na taberna da minha rua havia branco e tinto.
Eram estas as marcas. Branco e tinto. Não havia cá Casais
Garcias, Lambruscos, Renguengos, Terras de Xisto. A nossa
escolha era simples. Porque eram simples os tempos.
Pessoalmente, agrada-me mais a ideia de um menor a
comprar vinho numa tasca do que numa grande superfície,
através duma caixa de self-service. Não porque o álcool lhe
faça bem, mas porque perde menos tempo a escolher o vinho
certo e a pagar por ele. Na tasca a escolha é mais simples, mais
rápida, e depressa o jovem sai para a rua. Onde um condutor
alcoolizado lhe espeta com um Fiat em cima. Condutor esse
que comprou o seu vinho numa grande superfície.
É bem feito para o menor que disse à mãe que ia comprar
gomas.
Joel G. Gomes 33
TERMINUS 212
VINICULTURA GERAL
Os franceses são um povo à parte. Não tanto no sentido em
que fazem coisas que mais ninguém no mundo faz, mas no
sentido em que fazem tudo aquilo que os outros fazem, mas
conseguem quase sempre dar-lhe um toque pessoal.
Comparando Portugal e França, enquanto nós andamos
preocupados com a crise financeira e com bancos, na França
está-se a trabalhar na produção de vinho com menos teor
alcoólico. Para combater o alcoolismo? Por favor, não se
embaracem com tanta ingenuidade.
Desconheço sinceramente qual a actual situação financeira
da França. Suponho que seja francamente melhor do que a
nossa, afinal de contas é um país, mas não conheço os por-
menores todos. O que sei, a acreditar no que dizem estes in-
vestigadores, é que, durante os últimos trinta anos, as altera-
ções climáticas têm elevado a concentração de açúcar na uva;
o que, por sua vez, leva ao aumento do teor de álcool.
Há desculpas para tudo. Julgava eu que o problema do ex-
cesso de álcool era porque algumas bestas não sabiam beber.
Achava eu que essas aventesmas bebiam demasiado. Afinal,
não. Afinal essas aves raras bebem o mesmo, ou talvez menos.
A culpa é do clima.
Temos, portanto, duas situações distintas. Em primeiro lu-
gar, qual a razão que levou os franceses a fazerem este estudo?
Obviamente para vender mais vinho. Se o preço da garrafa se
mantiver, mas o teor alcoólico diminuir, em vez de uma, as
pessoas passam a comprar duas ou três. Em nenhum país do
mundo isto resolveria uma crise financeira, contudo, ajudaria
os seus habitantes a esquecerem-se de muitos problemas.
Por cá, lamento dizê-lo, a ideia não resultaria. Nós recusa-
ríamos com veemência o vinho light. Para algumas pessoas,
ainda seria uma hipótese a considerar; para a generalidade da
34 PROTUBERÂNCIA – Volume III
população portuguesa seria algo a vilipendiar. E porquê? Por-
que nós somos um país de tascas, de tabernas, não de tavernas.
Somos um país de estabelecimentos que, mesmo em plena
época DA (Depois da ASAE), continuam a funcionar, apesar
das condições de higiene serem as mesmas do que há cin-
quenta anos. E porquê? Porque somos assim. Não há vergonha
em admiti-lo.
Enquanto uns comem caracóis de faca e garfo e fazem vi-
nho light, nós comemos tripas, dobrada, chispe, língua, fígado,
coração e bebemos vinho carrascão, do mais ácido e acre que
há.
Publico este artigo, ciente do risco em que estou a colocar o
planeta. Pois se em França eles trabalham para reduzir o teor
alcoólico das uvas provocado pelas alterações climáticas, nós
faríamos uma razia a todas as superfícies comerciais em busca
de aerossóis, acreditando que, se esguicharmos spray em
quantidade suficiente, um vinho de 13,5º passaria para uns
simpáticos 19,8º. Seria algo que, mais uma vez, não resolveria
a nossa crise financeira, mas deixar-nos-ia mais bem dispostos
e mais bem cheirosos.
Joel G. Gomes 35
TERMINUS 213
RIDE THE AMBULANCE
2011 começou mal para muita gente e para mim em particular.
Este ano, que promete ser de muitos sacrifícios, é também o
ano em que eu vi-me forçado a abdicar de uma dos meus
hobbies favoritos: andar de ambulância.
Há aqueles que acham que andar de ambulância é como ir
às Finanças; só o fazemos quando não temos escolha e nin-
guém quer ter de fazer essa escolha. Eu discordo desta forma
de ver as coisas. Para mim andar de ambulância, principal-
mente em hora de ponta na Segunda Circular, é garantia de
intensa adrenalina. Pensem na malta que vai a conduzir uma
ambulância; o tempo todo a levar com queixas e gemidos. Se
estivessem no lugar deles, não gostavam, nem que fosse só
uma vez, de ter alguém lá atrás a dizer, “Passa o vermelho!
Passa o vermelho! Eh eh! Vistes a cara do velho? Quase que
lhe ias passando por cima! Muita bom!”
Todos nós temos um lado ruinzinho cá dentro. Não adianta
negar. Não queremos é mostrá-lo muito para não assustar
ninguém. Infelizmente, acabou-se a papinha. Desde o início do
ano que já não ando de ambulância, pelo menos não como
hobbie, mas tenho descoberto o prazer que é andar em varre-
doras (veículos, não senhoras) e em atrelados.
E porque é que eu, que nunca fiz mal a ninguém, deixei de
andar de ambulância? Porque eu ganho mais do que o salário
mínimo. A diferença não é muita, mas é suficiente para que me
passe a ser cobrado o transporte em ambulância. Em caso de
emergência, se precisar de ir algum lado e não tiver um táxi
por perto, ainda pode ser que vá de ambulância. Não só
continua a ser mais rápido como, ainda por cima, não cobram
bagagem. Além disso, se houver um acidente, tenho logo uma
ambulância à mão.
O que me incomoda não é o tanto o passar a pagar – isto da
36 PROTUBERÂNCIA – Volume III
crise toca a todos, menos àqueles que a provocam, e é preciso
fazer sacrifícios pelo bem comum – é mais a distinção que se
faz entre os utilizadores do serviço. Que não se cobre a quem
ganha o salário mínimo, acho justo. O que já não me parece
justo é distinguirem entre doentes urgentes e doentes não
urgentes. Não é por não estar a sangrar dos olhos que tenho
menos urgência em ir para o hospital.
Nada disto teria acontecido se as pessoas não abusassem. É
a velha história de sempre. Por uns pagam os outros. A minha
sorte é que tenho um amigo doutor – é doutorado em Zoo-
logia, mas não importa – que me arranja atestados para andar à
borla e um contabilista a quem pago bem para provar que sou
pobre. Aos olhos do Estado, quem tem dinheiro, pode dizer
que não o tem; quem não tem, paga e não reclama. Senão vai a
pé.
Joel G. Gomes 37
TERMINUS 214
O FENÓMENO BIZARRO
Em tudo no reino animal existe um paralelo que se pode traçar
com o Homem. Em quase tudo, digamos. Há certas coisas
sobre as quais podemos afirmar que existe uma ligação, mas
nada mais que isso. Outras vezes, acontece aquilo que se
convencionou chamar o Fenómeno Bizarro.
Para quem não sabe, Bizarro era uma personagem da DC
Comics, uma espécie de versão – como o nome indica – bi-
zarra do Super-Homem. Era grotesco, era desajeitado com os
seus poderes e não possuía a mesma moralidade sonsinha do
homem de aço. No fim de contas, Bizarro era o inverso de
tudo aquilo que o Super-Homem era.
O uso do nome Bizarro generalizou-se e passou a ser apli-
cado sempre que comparamos algo ou alguém ao seu quase
inverso. Não se trata de um inverso total – no caso do Super-
Homem seria uma mulher africana, gorda, sem poderes, sem
cuecas por cima do pijama – apenas de uma versão equiva-
lente.
Uma das versões mais recentes deste fenómeno surgiu num
estudo escocês, publicado em Novembro passado no Journal
of Evolutionary Biology. Hã? Já estamos em Fevereiro? E
depois? Por acaso sabiam do estudo? Se sabiam, porque é que
não contaram? Agora calei-vos.
O estudo foi coordenado por um cientista português, Mi-
guel Barbosa, biólogo especializado em animais marinhos.
Para quem achava que na Escócia só se estudava uísque e
golfe, não é verdade, também se estudam outras coisas. O
estudo incidiu sobre peixes tropicais de água doce que, depois
de estudados, marcharam para a grelha que foi um instantinho.
As conclusões foram muitas. Guppy com molho à espanhola
não, mas com molho de manteiga fica que é uma delícia.
Sobre o estudo, concluiu-se que “as fêmeas que se reproduzem
38 PROTUBERÂNCIA – Volume III
com vários machos enriquecem as espécies e tornam-nas mais
adaptáveis às mudanças ambientais”.
Que comparações se podem fazer entre estes peixes e a
espécie humana? Para começar, as mulheres que se reprodu-
zem – ou acasalam, é mais isso – com vários homens não en-
riquecem a espécie, mas podem enriquecer a sua conta ban-
cária desde que não cometam nenhum descuido. Já no toca a
ficarem mais adaptáveis mudanças ambientais, verifica-se o
mesmo nas mulheres. Se o golpe der certo mudam-se para um
país tropical, se a coisa descambar fogem para um país sem
acordos de extradição.
Um abraço deste que tanto vos quer. Desde que sejam as-
seadinhos.
Joel G. Gomes 39
TERMINUS 215
QUESTÕES DE SEGURANÇA NOS HIPERMERCADOS
O terrorismo é preocupante. A polícia, regra geral, tem uma
série de procedimentos padrão quando encontra sacos aban-
donados. Sacos e mochilas. Eu, para quem não sabe, costumo
andar com uma mochila. Quem me conhece já se habituou a
ver-me sempre com uma mochila às costas. Muita gente in-
terroga-se sobre o que é que eu levo na mochila. (Imagino que
também se interrogarão porque é que eu escrevi tantas vezes
“mochila” num só parágrafo.) Coincidência ou não, essas
pessoas desapareceram misteriosamente e foram encontradas
mutiladas meses depois.
A razão pela qual eu estou a mencionar a minha mochila é
pelas situações insólitas que ela por vezes provoca. Vou-vos
dar um exemplo, o mais comum aliás.
Nos hipermercados. Não há uma única vez que eu entre
num hipermercado com a mochila às costas e não apareça um
segurança todo sorridente
“Olhe, faz favor, tem de pôr a mochila num saco.”
Desculpe? Pôr a mochila num saco?
É nestas alturas que eu acredito na teoria da sub-evolução
das espécies e que são essas espécies, embora inferiores, que
mandam em nós.
Pensei cá para comigo, deve ser alguma medida de segu-
rança para impedir que as pessoas coloquem produtos nos seus
sacos ou mochilas. Vendo por esse prisma até fazia sentido.
Mas depois reparei: eles nunca dizem nada às mulheres que
entram de mala ao ombro.
Portanto, perdoem a minha ignorância, mas eu não consigo
ver a lógica nesta situação.
Vejam bem:
De um lado um tipo como eu com uma mochila como a
minha, daquelas de fecho. Sem estar dentro do saco, ou da
40 PROTUBERÂNCIA – Volume III
“protecção plástica” como eles lhe chamam. Do outro, uma
mulher com uma bolsa ao ombro, daquelas com fecho de mola
que basta um simples gesto para abrir; ou mesmo daquelas
sem fecho, só um cordelito a enfeitar.
O gajo da mochila se quiser roubar alguma coisa tem de
tirar a mochila, abri-la devagar para o fecho não encravar,
colocar o que quer lá dentro, voltar a fechá-la e colocá-la de
novo nos ombros. Isto sem que o casal à paisana que anda
atrás dele há mais de uma hora dê por isso.
Mas o que eles têm na cabeça? Será que eles pensam que
quem anda com mochila passa os dias em casa a cronometrar o
tempo que demora a tirar a mochila, abri-la, pôr qualquer coisa
lá dentro, fechá-la e pô-la de novo às costas? Será que é isso
que pensam?
As mulheres não precisam de nada. Nem de subtileza. Para
quê? É só escolher. Os seguranças estão todos a vigiar os tipos
com mochila!
(Não sendo este um dos meus melhores artigos, é no en-
tanto o artigo em que eu mais vezes usei o termo “mochila”.
Acho que isso deve contar para qualquer coisa. Ainda não sei
o quê.)
Joel G. Gomes 41
TERMINUS 216
O NOME DE DEUS – Primeira Parte
Olá, pessoas que acreditam e pessoas desconfiadas. O tema de
hoje, como já devem ter percebido pelo título, é dedicado a...
Deus. Desde o meu último artigo sobre religião que muita
gente me perguntou, “Ó Joel, porque é que gozas tanto com a
religião católica? As outras religiões não são gozáveis?” E a
minha resposta foi, “São. Menos aquelas que os queixosos
fazem bum! Além disso, nós só podemos gozar com aquilo
que conhecemos minimamente. Se eu vivesse em Bombaim,
acreditem que não faltariam piadas sobre a raspadinha. Dito
isto, vamos ao tema.
No que toca a nomes de deuses os católicos são do mais
calão que há. Dois mil e tal anos e não tiveram tempo de
pensar num nome? Dá uma má imagem que nem digo. Parece-
me que há duas razões para isso. E nenhuma delas joga a favor
dos católicos.
A primeira parte do princípio “o nosso é o melhor”. Pura
presunção. “O nosso é o melhor, por isso nem vale a pena
pensarmos num nome, porque além de ser o melhor, é também
o único.”
Os romanos tinham um deus para tudo; na Grécia, o mes-
mo; no Egipto, idem; com os Vikings, idem outra vez. U m
deus para cada coisa. Pronto... não era bem para tudo. Para
coser meias não havia nenhum deus designado, tanto quanto
sei, mas para o clima, coisas da vida e da morte, da sorte, do
azar, do amor, etc. havia um Deus apontado para essa tarefa. O
que fazia mais sentido no meu entender. A responsabilidade a
dividir por todos pesa menos e há menos hipóteses de deixar
coisas a meio.
E todos eles tinham nome. Todos. Houve casos de incesto,
fratricídio e infanticídio, é certo. Tudo bem. Eram muitos, só
que não eram bastantes e quando era preciso algum membro
42 PROTUBERÂNCIA – Volume III
novo lá tinha de ir o filho ter com a mãe ou com a irmã.
É simples logística, meus caros. Adão e Eva tiveram dois
filhos homens. Mesmo que tenham tido uma catrefada de
mulheres depois, continua a ser tudo da mesma família. Não
ouvi dizer que Deus tivesse continuado a produzir humanos.
Começámos com dois, hoje somos não sei quantos bilhões.
Pensem nisso.
O melhor local, a nível de nomes de deuses, é sem dúvida o
continente americano. Quetzalcoatl, Tepeyollotl, Huitzilo-
pochtli, Tezcatlipoca... Aquilo é mesmo assim ou o gajo que
ditou os nomes para o colega pôr no livro de registo tinha um
problema na fala? Ou seria o escriba disléxico? Parece que
faltam lá letras. Talvez estivessem a jogar à forca e tiveram de
deixar o jogo a meio. Depois os soldados espanhóis chegaram
lá e passaram aquilo sem ligar aos espaços vazios.
Estes nomes nunca iriam funcionar no cinema. “Tonatiuh e
Tlaloc em... Fim-de-semana em Tlahuixcalpantecuhtli” Du-
vido que fosse aquele blockbuster.
A primeira teoria já está. A segunda já está escrita, mas não
a conto hoje só para vos deixar na expectativa.
Durmam bem e agasalhem-se que é capaz de estar frio na
rua.
Joel G. Gomes 43
TERMINUS 217
O NOME DE DEUS – Segunda Parte
Olá de novo. Bem vindos à segunda parte. Ainda se lembram
do que falámos no artigo anterior ou é preciso fazer um “No
último episódio...”? Não? Óptimo, porque eu já não me lembro
o que escrevi. Ah! É mentira! Já estavam a acreditar!
Antes de começar, só um... Eu não tenho nada contra os
católicos, mas eles pertencem à maior religião do mundo e isso
faz deles um alvo. Não se goza com o pessoal da Igreja
Adventista dos Últimos Sete Dias porque eles são pequenos e
é feio; com os grandes já se pode.
A minha segunda teoria para o facto dos católicos terem
mantido o seu deus sem nome durante tanto tempo é... a pre-
guiça.
Estamos algures em Jerusalém, o ano não sei. Deitado na
cama está um fulano a dormir. Um criativo publicitário.
“Acorda. Tens de pensar num nome para o nosso deus.”
“Agora não, mãe.”
“Olha que depois esqueces-te.”
“Não esqueço.”
Depois chegou à hora e nada.
Chega à reunião.
“Tiveste dois meses para pensar num nome como deve ser
para o nosso deus. Espero que satisfaças as nossas expectati-
vas.”
“Bom, eu...”
“O que foi? Pensaste num nome, não pensaste?”
“Pensei, pensei. Só que isso das expectativas... Ninguém
me falou disso.”
“Vá. Que nome pensaste para o nosso deus?”
“Humm... Exacto.”
“Isaaco? Que raio de nome é esse?”
“Não, não. Exacto.”
44 PROTUBERÂNCIA – Volume III
“Exacto? Continuo sem entender.”
“Não, não. O nome que pensei foi... Deus.”
“Deus? Dois meses de trabalho para isso?”
“É Deus com D grande, calma! E sempre que falarmos dele,
o pronome vem em maiúsculas também.”
“E se alguém quiser saber mesmo um nome? Os tipos lá no
registo são capazes de não aceitar isso assim.”
“Dizemos que o nome verdadeiro de Deus é proibido de
dizer que eles calam-se logo.”
“Assim gosto! Parabéns!”
Há também quem diga que o nome de Deus foi perdido
pelo homem.
Que homem e em que circunstâncias? Tinha o nome escrito
num papel no bolso das calças e ao lavar as calças no rio, o
papel desfez-se? Ou terá apontado o nome à pressa? Tipo
aquelas ideias que um gajo tem às vezes e pensa 'Isto é es-
pectacular!' e aponta à pressa num papel para não esquecer. E
depois vai a ler e não percebe nada. Podia ter decorado o que
escreveu. Não o fez. Porquê?
Presunção, arrogância e mândria.
Eu sou um exemplo de mândria. Mas só em relação a ani-
mais domésticos. Tivemos uma gata durante dois anos e tal.
Que nome lhe demos? Gata. Se era com maiúscula ou minús-
cula, não sei. Era gata. Nós chamávamos e ela vinha. Ou não.
Piriquitos. Ele, o macho; ela, a fémea. Nome para quê? Não
precisavam de ir ao Notário e eram os únicos que tinhamos. O
que eu tenho agora também não tem nome. Porquê? Porque é
o único.
Tive um cão quando era miúdo. Chamava-se Snoopy. E
para mim isso fazia sentido, pois acreditava mais na existência
do Snoopy do que na existência de Deus. Eu via o Snoopy.
Deus...
Joel G. Gomes 45
TERMINUS 218
DISPUTA FAMILIAR
Tenho uma pergunta a fazer. Duas, aliás. A primeira é: que raio
de preocupação é essa que vocês demonstram por mim, que
estou quase um mês ausente, capaz de ter tido um acidente, de
estar acamado no hospital, e vocês nada? Nem um telefonema,
nem um email, nada. Assim se vê. A segunda pergunta é: já se
podem fazer piadas sobre o caso daquela senhora da Rinchoa
que estava morta no apartamento há quase dez anos?
Reparem que eu não disse piadas sobre a senhora, disse
piadas sobre o caso. Porque a senhora, coitada, já lá vai e a
mim sempre me ensinaram que com os mortos não se brinca.
Por causa do cheiro e da decomposição. Experimentem pôr um
morto à baliza. Podem rematar à figura que a bola passa
sempre. Por ele.
Quanto à dona Augusta ,e demais casos que calharam a ser
descobertos nos tempos que se seguiram, eu podia ser uma
pessoa de má índole e fazer piadas do género, “Alguém sabe
qual era o perfume que a dona Augusta usava? É que eu tenho
um amigo que tem um problema de transpiração e aquilo se
calhar era capaz de ajudar.”
Ou então um spot publictário. (Este tem potencial.) Entram
na casa da senhora, descobrem o corpo e notam a ausência de
cheiro. Depois, em fundo negro, aparecia o frasco do perfume,
com o nome, a marca e o locutor a dizer, “Eau de Mort, by
Rinchoa”.
Não será com isto que eu irei gozar. Será com quem me-
rece. Neste caso, os familiares da senhora que, de forma muito
digna, estão em disputa entre si. Pelo quê? Pelas despesas do
enterro? Querem todos pagar e ninguém se entende? Dis-
parate. É por causa do apartamento. A senhora Augusta, por
motivos de morte, contraiu uma dívida junto das Finanças. As
Finanças ficaram com o apartamento. E quem pagar a dívida,
46 PROTUBERÂNCIA – Volume III
fica com o apartamento. Isto é que são uns familiares. Assim,
até dá gosto morrer. Pelo menos não se está a aturar gente
desta. Se for preciso nunca puseram os pés lá. Ela convidava-
os a irem lá lanchar e eles estavam sempre ocupados. Sempre.
Dizendo entre si, “Eu vou lá aturar agora a velha. Poupem-
me.”
Senhores familiares da dona Augusta, espero sinceramente
que resolvam a vossa contenda e que apanhem lêndeas na
língua. Todos.
Joel G. Gomes 47
TERMINUS 219
TEM BICHO, NÃO QUERO!
O gémeo feio do PS, também conhecido por PSD, tem na sua
lista de coisinhas a alterar na Constituição algumas ideias en-
graçadas sobre portadores de doenças contagiosas. Dizem os
laranjinhas que não seria má ideia, em caso de pandemia,
“restringir a liberdade dos doentes para evitar o contágio”.
Penso que é uma boa ideia, mas só se não puserem as pessoas
nos hospitais. Aí não que é só doentes.
Fora de brincadeiras, a medida tem alguns méritos. É pre-
ciso zelar pela saúde dos não contaminados, ao mesmo tempo
que se salvaguarda a dignidade dos contaminados. O problema
é que estamos em Portugal, onde as boas ideias até aparecem,
mas são estraçalhadas de imediato.
Ao que parece, a proposta reune consenso junto de todas as
bancadas parlamentares. Todavia, os deputados avisam que é
preciso ter atenção ao texto desse artigo. Não vá haver gente a
aproveitar-se da situação. Poderá lá ser! Onde é que alguma
vez, os senhores que escrevem as leis iriam alterar a
Constituição em proveito próprio?
Onde isto também até era capaz de ser uma excelente ideia,
era aí no Parlamento. Aí, também há perigo de contágio. Só
que o tipo de infecção que se contrai aí não se resolve com
Tamiflu, tem de ser com injecções de capital financeiro. Esses
senhores também são transmissores de maleitas e não há quem
os enterre, perdão, interne. Vejam lá isso.
É claro que isto só será tema de conversa de café caso a
proposta do PSD seja aceite. Até lá, num gesto de altruísmo
que muito me dignifica, aqui ficam mais duas propostas para o
Pedrito de Portugal e amigos:
1 – Em vez de “causa justa” ou “razão atendível”, sugiro
“descontextualização sofismática”
48 PROTUBERÂNCIA – Volume III
2 – Em vez de dar ao Governo indigitado pelo Presidente
da República autoridade para demitir o Presidente da Repú-
blica, dar essa autoridade a um vendedor de castanhas.
Para já é isto. Se me lembrar de mais alguma coisa, depois
digo.
Joel G. Gomes 49
TERMINUS 220
PROTECÇÃO LEGAL
Se eu fosse pedófilo, gostaria de ser membro da Comissão de
Protecção de Dados. Assim, podia arranjar todos os dados
pessoais das crianças que quisesse que não ia ter chatices ne-
nhumas.
Vamos lá a saber que ideia vem a ser essa do concurso "Um
slogan pela Privacidade"? Fazer anúncios a pedir às cri-
ancinhas para divulgarem o seu número de telemóvel, morada,
endereço de correio electrónico, nickname do messenger,
username do hi5, do Facebook, do Twitter, do Orkut, do Ban-
doo e do outro? Sou eu que sou parvo por ser da geração dos
Deolinda ou é isto que não faz sentido?
Há coisas que não percebo.
No meu tempo, ou seja, quando eu era puto, diziam-me
sempre para não falar com estranhos. Agora são os estranhos
que pedem os contactos e os pais não são tidos nem achados.
Porquê? Porque não são uns badamecos quaisquer a pedir es-
ses dados, são os senhores da Comissão de Protecção de Da-
dos. E nenhum deles é padre que se saiba. É pena. Talvez se
fosse, os pais ficassem mais de pé atrás.
“Queres ser meu amigo, puto?”
“O meu pai disse para não falar com pessoas estranhas.”
“Eu não sou estranho. Sou da Comissão de Protecção de
Dados.”
“Então 'tá bem!”
É a desculpa sonho de qualquer pedófilo.
Ontem vi uma casa de banho pública, com o seguinte avi-
so: “Menores de dez anos devem entrar acompanhados de
adultos”. Não está certo. Estamos claramente na fase do acer-
to.
Antes do escândalo Casa Pia podia sorrir a uma criança,
brincar com ela, às vezes até pegar nela ao colo. Depois, des-
50 PROTUBERÂNCIA – Volume III
cobriu-se que algumas pessoas mais velhas gostavam de outras
pessoas mais novas e nem olhar para um menor era permitido.
Agora, como tudo acabou, voltou-se ao antigamente. Só que
falta fazer o acerto. Agora há contacto a mais.
Não pretendo erguer suspeitas em relação aos senhores da
Comissão de Protecção de Dados, mas o ditado bem diz, “O
caminho para o Inferno é feito de boas intenções.” Ter o con-
tacto de todas as crianças dos 8 aos 17 anos pode parecer uma
boa ideia para avisá-las de algum perigo. Mas é também um
bom catálogo para pessoas menos bem intencionadas.
Principalmente se colocarem lá fotografias. E imagino que, no
descorrer desta gente, não faça sentido ter lá os dados pessoais
todos das crianças dos 8 aos 17 anos e não ter lá fotos. Seria
uma ideia estúpida.
Joel G. Gomes 51
TERMINUS 221
UMA HISTÓRIA ASSIM A MODOS QUE
Entrei no café/snack-bar/restaurante sem saber bem ao que ia.
Talvez almoçar, talvez petiscar. Eram quase três da tarde.
Qualquer hipótese era válida. As mesas estavam todas ocupa-
das. Fumantes e não fumantes. Aproximei-me do balcão.
Perscrutei o cenário, tentando encontrar uma mesa, aquela tal
mesa que há sempre de clientes que só estão lá a pastar. Com
relativa facilidade, aliada a alguma paciência, encontrei-a e, ao
fazê-lo, resolvi aproximar-me.
Os empatas – não gosto de começar logo a insultar – bebi-
am café. Conversavam sobre a sua mais velha que era doutora.
Ou a mais velha que tinha ido à doutora. Ou a sua doutora que
era mais velha que outra pessoa. Com ar irritado, apontei para
o meu pulso, onde se encontrava um relógio hipotético, e fiz-
lhes ver que era tempo de se fazerem à estrada.
Nunca escondendo a minha indignação, dei meia volta e
regressei até ao balcão e encetei conversa com o empregado.
Pedi-lhe um copo de água. Ele fez a piada do costume, não a
sua, mas a da classe. Ri-me com gosto, pois gosto muito de ser
atendido por um especialista em gramática. Contei-lhe a piada
sobre o licenciado em gestão que me estava a atender. Não
achou graça. Fiz-lhe uma festinha no queixo, pedi-lhe
desculpa e fizemos as pazes. Foi um momento bonito.
De amizade reconciliada, apontei para a mesa onde me
havia dirigido e fiz um comentário eloquente e pertinente so-
bre o actual estado das contas públicas. Olhando para os fre-
gueses sentados à mesa, ele abanou a cabeça e fez um ar de
reprovação. A sua reacção não era dirigida a ninguém em
particular, muito menos àquelas pessoas, mas elas não sabiam
disso. E ainda bem.
Regressei à mesa. Continuavam a beber café e a conversar
sobre uma porcaria qualquer. Escolhi o meu alvo com a devida
52 PROTUBERÂNCIA – Volume III
cautela. Era o mais franzino do grupo. Mas não foi por isso
que o escolhi. Foi por ser o que estava mais a jeito. Tirei-lhe a
chávena da mão e bebi de pénalti o café já frio. Ignorando o ar
de espanto dele e demais convivas, pousei a chávena no pires
com a típica calma de quem está no domínio da situação. O
principal cuidado a ter é manter o personagem até ao fim. Fiz
sinal ao empregado e gritei, bem alto: “Este já não 'tá
queimado! Foi só os outros!”
Pedi desculpa à mesa e também às pessoas sentadas à sua
volta e sai do café/snack-bar/restaurante sem dizer mais nada.
Achei que era melhor ir comer a outro sítio.
Joel G. Gomes 53
TERMINUS 222
TERAPIA DO ACASO
Segundo uma notícia publicada em diário de tiragem nacional,
os políticos portugueses recorrem cada vez mais a terapia da
fala. Sendo a voz um instrumento essencial da actividade
política – é com ela que pedem e fazem favores uns aos outros
–, é natural que exista alguma manutenção. No entanto, penso
que há um dado que é preciso ter em conta.
Para quem tem andado por outra dimensão, no mês passado
realizou-se mais uma Cerimónia de Entrega dos Óscares e O
Discurso do Rei ganhou o prémio de Melhor Filme. O filme,
protagonizado pelo também oscarizado Colin Firth, conta a
história de um rei que sofre de gaguez e decide ter aulas com
um terapeuta para corrigir esse problema.
Se esta notícia tivesse saído noutro país que não Portugal,
eu acharia uma mera notícia de circunstância. Quiçá uma
coincidência. Mas conhecendo a nossa classe política como
conheço, sei que a voz não é o instrumento de trabalho mais
utilizado por eles, é o pulso. Os discursos até os partilham; os
despachos, cada um assina o seu. Isto não me soa nada como
políticos a zelarem pelo bom funcionamento da sua máquina.
Recordo-me de quando estava na chamada idade parva,
entre os 14 e os 17, e ia ao cinema ver um filme que tivesse
cenas de luta. Saia de lá, sempre de peito inchado, convencido
que era capaz de reproduzir na perfeição os golpes executados
pelo herói do filme e defender-me de qualquer meliante que
ousasse meter-se comigo. É claro que a parte sensata da minha
personalidade, preferia que não fosse necessário eu colocar em
prática aquilo que tinha visto no filme.
No caso dos nossos políticos é um bocado isto que se
passa. Parece que foram todos ao cinema ver o mesmo filme.
Por acaso, foi O Discurso do Rei. Calhou não ter sido O
Cisne Negro. Teria sido engraçado. Em vez de notícias sobre
54 PROTUBERÂNCIA – Volume III
políticos a recorrerem a terapia da fala, agora teríamos notícias
sobre políticos a frequentarem aulas de ballet. Apesar da visão
de figuras proeminentes da vida política portuguesa vestidas
de maillots e tutus poder constituir um agradável momento de
comicidade, preferia que optassem por atitudes mais
adequadas à classe. Assim, em nome da adequação, re-
comendo aos nossos políticos o filme Inteligência Artificial.
Joel G. Gomes 55
TERMINUS 223
PARTIDO A MEIO
Olá. Bem-dispostos? Eu estou. Sabem porquê? Porque
o Santana Lopes admite formar um novo partido. Quem é que fez “yupi”? Calma! Não comecem já com as
vossas manifestações de alegria porque ainda não é certo que Santana vá mesmo para a frente com esta
ideia. É melhor esperarem um pouco. O que ele disse foi “"Há tempos que admito e considero
que é muito provável que apareçam outras realidades no cen-
tro-direita de Portugal. A ver vamos e eu estou num processo
de pensamento sobre isso.” Portanto, ele ainda só está a pensar
se avança ou não.
Para dizer a verdade, é bem provável que ele avance. O
Santana é homem para isso. Lembrem-se que ele já foi Se-
cretário de Estado da Cultura do Governo de Cavaco Silva,
Presidente do Sporting, Presidente da Câmara Municipal da
Figueira da Foz, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,
Primeiro-Ministro de Portugal, comentador político e Mr.
Camisa de Seda Molhada Lux 2001. É, portanto, um homem
que não recusa um bom desafio.
Por outro lado, é também provável que a criação deste
novo partido fique a meio. O Santana é capaz de definir esta-
tutos, é capaz até de elaborar um programa, mas quando for a
altura de ir fazer o registo da patente, o mais certo é ele lem-
brar-se que tem o leite ao lume e ir-se embora. E é isto que eu
gosto no Santana Lopes. Neste aspecto, Santana é um
autêntico Seinfeld da política.
Jerry Seinfeld, co-autor dessa mítica sitcom, recusou um
balúrdio de dinheiro para fazer uma décima temporada. Apesar
do graveto oferecido, ele recusou a oferta, dizendo que, “A
melhor altura para parar é esta, enquanto estamos no topo.
Continuar até o público se cansar de nós, seria um disparate.”
56 PROTUBERÂNCIA – Volume III
Muitos políticos levam o seu mandato até ao fim, achando
que, ao fazer isso, estão a respeitar a vontade dos cidadãos que
os elegeram. Um mandato político devia ser como um filme ou
um livro: ao fim de dez minutos ou dez páginas, já sabemos se
aquilo tem ou não interesse. No caso de um Governo, a coisa
podia-se fazer até aos doze meses. Ao fim de doze meses se a
história não nos interessasse, vinham outros. Ficção por ficção,
ao menos que seja uma história interessante.
Santana Lopes é dos poucos políticos que entende não ser
o cumprimento mandatário aquilo que as eleitores procuram.
Apesar de poderem escolhê-lo para determinado cargo, ele tem
a consciência certa de quando deve sair. Pode não sair em
gramde, mas sai sempre a meio. E esse é um tipo de coerência
que eu aprecio.
Joel G. Gomes 57
TERMINUS 224
MICROCRISE DE FUNÇÕES
Há pessoas muita ingratas, pá! Palavra de honra! Então não é
que o Muhammad Yunus, aquele que ganhou em 2006 o Pré-
mio Nobel da Paz com a invenção do microcrédito, foi expulso
do Grameen Bank? O banco que ele fundou, pá! E ainda por
cima foi o próprio presidente do banco que o mandou pôr-se
na alheta! Isto deixa-me cá com uns nervos! E também com a
garganta seca.
Tenho de ir beber água. Com licença.
Pronto. Assim está melhor. Já molhei o bico e aproveitei
também para pôr um pouco de creme anti-bronco. Vocês
também! Um tipo a escrever à bronco e vocês nada, pá! Peço
desculpa, foi aqui uma zona onde o creme ficou mal espalha-
do... Já está.
Perguntam vocês que se interessam pelo que eu tenho para
dizer: ó Joel, as razões que levaram o Banco Central do
Bangladesh a exonerar Muhammad Yunus das suas funções de
director-geral do Grameen Bank são justificáveis? A verdade é
que, desde que ganhou o Nobel da Paz que Yunus e o Governo
nunca se deram bem. A questão é saber quem é que tem razão.
Os senhores do Banco Central do Bangladesh consideram
que Yunus já atingiu a idade da reforma e, por essa razão, não
pode continuar a exercer funções. Cá está uma sociedade
completamente diferente da nossa e, ao mesmo tempo, tão
igual. O nosso ex-Vice-Procurador Geral da República, Mário
Gomes Dias, por exemplo, atingiu o limite de idade para
exercer funções, mas como houve tanta gente a pedir “só mais
um!”, ele lá aceitou continuar.
Já o Yunus foi acusado pelo seu Governo de “sugar o san-
gue dos pobres”. Coitado. Mas a culpa também é dele. Com
tanto dinheiro que ganhou à conta do microcrédito e nem um
espelho foi capaz de comprar para oferecer aos senhores do
58 PROTUBERÂNCIA – Volume III
Governo.
Para mim, o problema não estava na idade de Yunus, estava
no nome do banco. Grameen Bank é demasiado parecido com
Banco de Gramíneas e a gramínea é uma planta que foi feita
para ser pisada.
Joel G. Gomes 59
TERMINUS 225
TIPO SALADA RUSSA
Ainda a semana vai a meio e já tivemos manifestações, para-
lisações e reduções.
Comecemos pela Manifestação da Geração À Rasca. Im-
pressionante do ponto de vista de aglomeração, mas tão rele-
vante como um Rock In Rio. Não descurando a grande adesão
que teve, não só junto de jovens mas de pessoas de todas as
idades e cores (políticas), ficou um pouco aquém das ex-
pectativas. Em Lisboa mostraram que conseguiram encher a
Praça do Rossio. E?
Não estive presente na manifestação, apesar de me dizer
respeito, não porque não me apetecesse, apenas porque outros
assuntos exigiam a minha atenção. Todavia, mesmo que eu e
tantos outros que ficaram em casa, mesmo que todos os
descontentes e prejudicados e injustiçados tivessem saído à rua
e fizessem o que aqueles que foram fizeram, o que teria
mudado? Nada. Praticamente nada. Porque aquilo que os ma-
nifestantes fizeram, não foi mais do que ir lá. Isso é importante,
sem dúvida, é o princípio da coisa, mas só isso não chega.
Vê-se com frequência, em obras de norte a sul do país, um
ou dois a trabalhar, outros dois a dar palpites e mais três a ver.
Estão lá todos, mas é preciso mais do que estar lá. É preciso
que exista alguma acção. Ir do Marquês de Pombal até à Praça
do Rossio faço eu e muita gente quase todos os dias. Não sinto,
não tenho a pretensão sequer de pensar, que o país vá mudar
por causa disso.
O que deveria ter sido feito? Várias coisas. Talvez mani-
festarem-se num dia de semana. Em dia de plenário na As-
sembleia. Invadir a Assembleia e pregar um cagaço nos de-
putados. Tanta coisa. Nenhuma revolução acontece apenas
porque as pessoas resolvem sair de casa; isso é algo que fazem
todos os dias.
60 PROTUBERÂNCIA – Volume III
Sobre a paralisação dos camionistas, é a história de sempre.
Quem quisesse, podia circular à vontade; só estava sujeito a
levar com um tijolo atirado dum viaduto. Coisa pouca. É quase
como um mosquito ir contra o vidro dianteiro.
Pararam dois dias por causa do aumento do preço dos
combustíveis. Compreensível. Toca a todos. Tanto quanto sei,
chegaram a acordo. Óptimo para eles.
Não sei se alguém já fez as contas, mas seria interessante
saber quanto é que a Galp, a BP e restantes companhias fac-
turaram antes do início da paralisação. É uma das leis mais
eficazes do comércio. Se um produto vende pouco, ou se
querem vender mais desse produto, basta anunciarem um au-
mento do preço ou uma ruptura de stock iminente que as pes-
soas vão logo a correr gastar o dinheiro que não têm para
comprar aquilo que (às vezes não) precisam. Somos criaturas
previsíveis e no combustível então... Os camiões cisterna vão
parar, os postos de abastecimento vão ficar sem combustível.
Pânico! Como se isto fosse durar mais do que dois, três dias!
Enfim...
No campo das reduções – e a palavra “campo” não foi
usada por acaso – é bom saber que ainda existem prioridades
neste Governo. Não sou da cor do senhor engenheiro, mas
reconheço um serviço bem feito quando ele existe. Posso ser
tendencioso e mal fundamentado, mas sou honesto.
E o que foi que o Governo do engenheiro Sócrates fez que
me deixou tão radiante? Nada mais, nada menos, do que re-
duzir o IVA do golfe de 23% para 6%. Não foi o carro, como
mostrou uma reportagem da RTP, foi o, digamos, desporto. E
em boa hora o fez. Porque era uma injustiça aquilo que estava
a acontecer no mundo do golfe! Isto tem de ser dito! Estamos
a falar de pessoas que pouco mais têm na vida do que a prática
de golfe. E o golfe que é um desporto tão nobre, tão cheio de
significado!
Mentira. É uma actividade parva, nem sequer é desporto,
praticada por gente idiota e snob. Golfe é dar uma tacada
Joel G. Gomes 61
numa bola, passar meia hora à procura da bala, e dar outra ta-
cada. Pra quê? Encontram a bola, acaba o jogo! Querem
acertar no buraco? Ponham a bola mais perto do buraco!
62 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 226
TRANSPORTES #1 – CARRIS
Hoje vou falar de transportes públicos. Pronto! Já sabia. Fala-
se em transportes públicos e vocês ficam logo... Eh pá!
Comportem-se, por favor.
Meus estimados, antes de começar, e antecipando algum
queixume da vossa parte, eu moro na Moita (Margem Sul,
yeah!), por isso os únicos transportes públicos dos quais posso
falar são os TCB, CP, TST, Metro, Soflusa e Carris. Se não
residem em zona afecta a estas empresas, temos pena. Não se
pode chegar a todos.
Comecemos pela Carris. Ora cá vai.
As recentes alterações de carreiras de autocarros na Carris
levarão, segundo estimativa da empresa, a uma poupança de
cerca de três milhões de euros por ano. Numa altura em que se
fala tanto de crise é bom saber que ainda existem empresas
capazes de facturar. Dizer que é à custa dos utentes pode ser
verdade, mas parece-me mesquinho.
Estive a olhar para o novo mapa de carreiras – eu gosto de
falar fundamentado – e, ao todo, são cinco carreiras que ficam
com percurso reduzido, duas que passam a funcionar apenas
durante a semana e seis que desaparecem por completo. Um
dado curioso a destacar é a não saída de motoristas. Pergunta:
com menos autocarros a fazer menos carreiras em percursos
mais curtos, será que os autocarros da Carris vão passar a ter
motorista e co-motorista?
O bilhete de bordo, esse, não deve tardar a ser aumentado.
Fazer alterações implica tempo para pensar e tempo é dinheiro.
Preparem-se. Não julguem que é por reduzir na qualidade do
serviço, que os preços vão-se manter como estão. Não se
esqueçam da crise. Reparem que Carris só tem uma letra a
mais que crise e que apenas o a e o e é que diferem. No grande
conjunto contextual, pode não significar nada, mas é um facto
Joel G. Gomes 63
que não pode ser ignorado.
Este anúncio foi feito no passado dia 3 deste mês. Dois dias
antes, saiu uma outra notícia que dava conta que na Carris as
medidas de austeridade não seriam aplicadas. Segundo o
Governo, não se podem pagar prémios de desempenho aos
funcionários públicos. No caso da Carris, os seus responsáveis
entendem que não há qualquer problema em conferir uma
remuneração variável àqueles funcionários que “cumprem o
conjunto de pressupostos de desempenho excepcional”. O meu
azar foi ter tido má nota na cadeira de Chico-Espertice II,
senão ainda topava que havia aqui marosca.
Em suma, os funcionários recebem prémios de desempenho,
os gestores recebem ainda mais e os utentes, que antes
demoravam quarenta minutos no autocarro, passam a demorar
apenas quinze: os restantes são feitos a pé. Dizem que o
Governo e as empresas só se preocupam com números, que
não olham para as pessoas. Eis uma empresa que se preocupa
com a saúde dos seus utentes, ao ponto de obrigá-los a fazer
saudáveis caminhadas.
64 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 227
OS CONTOS DE FADAS
Quando eu era pequeno, os contos de fadas começavam sem-
pre da mesma forma. Era sempre “era uma vez...”, “há muito,
muito tempo, num reino muito, muito distante”, etc. Sempre
assim. Não tinham originalidade. Só que hoje em dia o que
falta por aí são pessoas sem originalidade a venderem bem.
Não sei o que vocês acham, mas eu sinto-me muito triste com
isto.
Comecemos pelo “Era uma vez...”
Se era uma vez então é porque já foi. O que significa que,
mesmo que a história acabe bem, é mais que óbvio que, mais
tarde ou mais cedo, acabam por morrer todos. Maus e bons.
Depois temos a outra: “Há muito, muito tempo, num reino
muito, muito distante...”
Dizer isto é a mesma coisa que dizer “Nem penses que isto
algum dia vai acontecer a alguém como tu”
E isto é apenas o princípio, literalmente falando. Depois
vêm as próprias histórias. E os temas. E que temas! Mortes,
traições, comida envenenada, maldições, roubo, racismo, ex-
ploração de trabalho, até mesmo canibalismo.
Quantas velhinhas, vendedoras de maçãs, é que perderam o
seu emprego por causa da história da Branca de Neve?
Quantos lobos foram abatidos por caçadores que leram “O
Capuchinho Vermelho” na sua infância? “Ai sacana do lobo!
Queres comer a menina? Então toma!”
Há tanta coisa, tanto exemplo nos chamados, entre aspas,
contos para fazer sonhar. E o pior é quando isto se reflecte na
idade adulta e temos assassinos, ladrões, traficantes. Tudo
pessoal inspirado nos contos de fadas. Vão atrás dos exemplos
que leram quando eram crianças e vão ver o que vos acontece.
“Se fizeres isto és bom.”, dizem eles. Dito isto, qualquer
pessoa poderá pensar “Vou fazer isto e vou ser bom.” Pumba!
Joel G. Gomes 65
Cadeia.
Se nós analisarmos isto de outro prisma, e lermos para
além do que está escrito, o que temos é o seguinte: “Se fizeres
isto, sem seres apanhado, és bom. Se não, és uma merda.”
Assim faz mais sentido.
66 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 228
AUGUINHA
No Centro Hospitalar de Gaia/Espinho a água engarrafada
passou a ser substituída por água da torneira, vulgo el cano. A
medida está a ser aplicada desde Junho e já significa uma
poupança de 12 mil euros. Outras reduções e cortes na despesa,
nomeadamente no consumo de papel, no uso das impressoras,
na aquisição de jornais e na renegociação de contratos com
empresas externas, levaram a uma redução de custos de cerca
de 1,33 milhões de euros.
Gostaram da notícia? Agora vem a parte má.
Eu não resido na zona que serve o Centro Hospitalar de
Gaia/Espinho, por isso acredito que nem seja um mar de rosas.
No entanto, a ideia de poupar recursos é boa e deve ser
estimulada, dentro dos limites do bom senso. Eu sempre bebi
água da torneira e nunca morri. É verdade que, nos últimos
meses, tenho passado por locais cujo água mal inspira o toque
com segurança, quanto mais a ingestão.
Seja como for, esta ideia da água parece-me de louvar. É
uma ideia que ajuda o bolso e também o ambiente. Em teoria,
seria uma ideia capaz de colher aprovação junto dos vários
quadrantes da sociedade, certo? Bom, quase todos. Os se-
nhores do Conselho de Administração da Assembleia da Re-
pública recusaram a proposta de substituir as garrafas de água
mineral por jarros com água da torneira.
Porquê?
Em primeiro lugar, por questões de higiene.
Em segundo lugar, por não haver pessoal suficiente para
encher, substituir, lavar e secar os jarros individuais.
Em terceiro lugar, por haver contratos assinados com em-
presas fornecedoras das máquinas dispensadoras de água.
Analisemos cada uma destas razões separadamente.
Questões de higiene? Mas vocês são deputados ou são ratos?
Joel G. Gomes 67
'Tão com medo de contrair o quê? Não sabem que a imunidade
parlamentar vos protege de todos os vírus e bactérias
conhecidas do homem? Não sejam mariquinhas pá!
Não há pessoal para quê? Para lavar e encher o jarro do
menino deputado? O menino deputado quando vai à casa de
banho leva alguém para lhe limpar o rabinho ou fica ali com o
produto a fazer compostagem? É de admirar como é que as
comissões e plenários duram tanto tempo. Alguns devem fazer
para dentro; outros nota-se naquilo que dizem.
E por fim, contratos. Existem contratos assinados com
empresas fornecedoras das máquinas dispensadoras de água.
Mas não estávamos a falar de garrafas de água? De onde apa-
receram as máquinas dispensadoras de água? Meus lindos, um
contrato não é eterno. Seja ele feito com a Luso, com a
Penacova ou com a Vitalis.
Reparem no número: 2535. Sabem o que é? Em euros, é
quanto a Assembleia da República gasta por mês em garrafas
de 33cl, a fazer as contas a 0,65€ a garrafa. Quase 2600€ que
gasta à vossa pala. Mas calma! Não estou a dizer para come-
çarem a beber refrigerantes. Não façam isso. Porque esses,
além de serem mais caros, fazem pior à vossa saúde e depois
quem é que gozava com a nossa cara?
Costuma-se dizer, faz como eu digo, não faças como eu
faço. Outra que também se costuma dizer é, nunca digas desta
água nunca beberei. Os nossos deputados tendem mais para o
segundo ditado.
A minha sugestão para a Assembleia da República é a se-
guinte: compram uma garrafa por deputado, escrevem o nome
de cada um no rótulo e distribuem-nas. Cada deputado passa a
ter a sua garrafinha e quando acaba, em vez de deitar a garrafa
fora e ir comprar outra, vai à casa de banho e enche. Pessoas
mais sensíveis estarão com o dedo a tentar conter o vómito,
mas paciência. É o tipo de coisa que fazem aqueles que muitas
vezes não têm água em casa, à conta das ideias que os
deputados têm quando bebem água engarrafada.
68 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 229
SEQUELAS & PREQUELAS
Daqui por algumas horas discutir-se-á no Parlamento a
votação do PEC 4. Se passar, Sócrates continua; senão, adeusinho, a gente vê-se por aí. Que impacto terá cada
um destes possíveis resultados? Para nós, contribuintes permanentes, o que for recusado agora será implantado
pelo próximo Governo, seja para não ofender os
mercados, seja porque é preciso mostrar a Bruxelas que Portugal está determinado em avançar num esforço
concreto. Enfim, tretas. Mas são tretas que divertem e sem as quais eu não estaria a
escrever isto. Reparem, tecer cenários do que poderá acontecer
é um exercício puramente especulativo. E eu assumo isso. Não
faço como muitos comentadores, analistas e, pior, políticos. A
política mexe com a vida das pessoas e não se pode resumir a
olhar para números e antecipar cenários e elaborar decisões
com base nisso. Os antigos olhavam para as tripas de um
porco, hoje olha-se para dados estatísticos falseados e
extrapola-se. A futurologia não devia entrar aqui, mas entra.
Tenho muitas questões sobre este PEC 4. A primeira delas
é: até que ponto vai continuar a saga? É que isto já parece o
Sexta-feira 13 (mas mais assustador): o primeiro foi bom, o
segundo aguentou-se, o terceiro... e do quarto em diante foi
um descambar. Para bem da saga e das pessoas nela envolvi-
das, pensem bem no que estão a fazer. A existência do quarto
filme da saga Alien é negado por muitos dos fãs. Querem que
aconteça o mesmo com o PEC 4? Não querem, pois não?
Uma prequela também não serve. A última grande prequela
que houve foi o Star Wars e, que eu saiba, o Governo não tem
nenhum Jar Jar Binks para entreter as crianças. Mariano
Gago? Não digam isso. O homem está lá no seu cantinho,
quase que não se dá por ele. Estão a implicar com ele porquê?
Joel G. Gomes 69
Há quem não considere a saga PEC uma saga de terror, mas
sim uma saga de comédia. Não se sintam chocados e
ofendidos com a atitude destas pessoas. O PEC pode ser con-
siderado tanto uma saga de comédia, como uma saga de terror.
Tudo depende do ponto de vista.
Os mais ricos olham para o PEC como uma comédia, a
classe média como um filme de terror, os mais pobres como
um filme português dos anos 40, o Governo como um docu-
mentário e a oposição como um mau filme de ficção científico.
Eu prefiro olhar para o PEC como uma mistura de vários
géneros. Porque o PEC É uma comédia e É um filme de terror,
só que é também um filme de fantasia e um musical. E esse é o
grande problema desta saga. Não só lhe falta um enredo que
convença, como também não assume duma vez por todas em
que género cinematográfico se insere.
Façam-me um favor. Quando forem lançar o PEC 5. O
quê? Ninguém me contou. Fui ao IMDB ver a filmografia do
Governo e estava lá em pre-produção. Escutem-me, mudem o
nome do filme. PEC não. O pessoal já conhece. Não tentem
fazer como o Saw, não conseguem. Assustar conseguem, só
que o enredo já não convence ninguém. É apenas violência
gratuita e isso é mau cinema. Em vez de PEC, porque não
experimentam o IAB?
O IAB, ou, na sua forma extensa, o Ir Ao Bolso, seria uma
saga ainda mais assustadora. As situações causadoras de
incómodo e pânico seriam as mesmas, embora mais intensas, e
o enredo seria mais realista. As pessoas sairiam da sala de
cinema, temendo que algo assim lhes pudesse acontecer. E
desejariam adormecer e acordar dentro da saga Pesadelo em
Elm Street ou Halloween e serem rapidamente trucidados.
Uma morte violenta e sangrenta, mas rápida, seria quase uma
benesse para quem se sente a morrer devagar dia a dia.
70 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 230
TRANSPORTES #2 – TST
Hoje vou vos falar da minha experiência como passageiro de
caminete, que é como quem diz a Rodoviária, ou ainda TST.
Os TST são uma empresa espectacular! A gente paga um ba-
lúrdio e percebe que há um claro investimento feito com o
nosso dinheiro. Só que é na casa dos gestores e accionistas da
empresa. Se formos visitar a casa do director dos TST, deve
estar lá muito módulo e muita viagem Barreiro-Alcochete. Nos
autocarros é que esquece lá.
Pensando melhor, não me apetece falar dos TST. Vou antes
aproveitar este espaço para vos contar um sonho que tive. A
maior parte dos sonhos que tenho desaparecem assim que abro
os olhos. Este foi daqueles que resistiu, por isso só pode ser
bom.
Eu no sonho era um burro. Não um animal, apenas alguém
de discernimento reduzido. E o burro precisava de ir da Baixa
da Banheira para a Moita. Em tempos idos, essa era uma
viagem que o burro fazia com frequência. Vinha a carroça
guiada por uma besta e o burro lá ia, na companhia de outros
burros.
Um dia, este burro zangou-se com um das bestas porque
esta tinha dito ao burro que o título de transporte do burro não
era válido para aquela zona. O título dizia Baixa da Banheira-
Moita e o burro morava na Baixa da Banheira, mas a besta
insistia que o burro tinha de comprar o título Lavradio-Moita
ou ir apanhar a carroça a Alhos Vedros. O burro fez o
manguito à besta e durante muito tempo não andou de carroça.
O tempo passou e o burro começou a ir para outros sítios,
noutras carroças. Até que um dia, o burro viu-se na necessi-
dade de ter de apanhar a mesma carroça de outros tempos.
Sabia que isso lhe traria más recordações, todavia era algo que
ele precisava fazer e assim fez.
Joel G. Gomes 71
O burro foi para a paragem e aguardou a habitual horinha
pela chegada da carroça. Quando a carroça chegou, o burro
entrou e pagou os 2,05€ que a besta indicava como custo do
bilhete Baixa da Banheira-Moita. O burro, apesar de burro,
percebeu que o bilhete estava mais caro. Porém, percebeu
também que a carroça estava diferente.
Para começar, o seu bilhete indicava um número de lugar
para se sentar. O burro procurou pelo lugar que lhe pertencia e
sentou-se num confortável sofá de cabedal. Ao seu dispor
tinha um leitor de Blu-Ray portátil e uns headphones. Para
assegurar o máximo conforto, tinha também um mini-bar com
bebidas e snacks, de consumo gratuito, sistema de ar
condicionado, uma manta para o frio, uma luz de leitura e uma
gueixa.
O burro percebeu que tinha dado o seu dinheiro por bem
empregue e seguiu viagem até à Moita, feliz por viajar naquela
carroça.
E cá está. Viram como se desanca numa empresa assim às
claras, duma maneira que toda a gente percebe mas que não se
pode provar em tribunal? Inventei a trreta do sonho e assim
pude falar à vontade. Aprendam que eu não duro sempre.
72 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 231
ABUSO DE MENORES
Sou a favor das regras, quando aplicadas devidamente. O "é
assim porque é" não resulta comigo. Sou contra qualquer tipo
de imposições. Porque o respeito conquista-se, não se impõe.
Este artigo é dedicado a algo que está sempre na moda. Infe-
lizmente. Falo do abuso de menores. Sei que não é um tema
fácil de endereçar, mas tem de ser.
Não vou falar da pequena Joana, da pequena Esmeralda,
das vítimas da Casa Pia, ou de qualquer outro caso já esmi-
frado em praça pública. Vou antes falar de algo mais pernicio-
so e ignorado. Algo que acontece todos os dias sem que nin-
guém faça nada.
Falo dos "Malucos e Filhos, das duas versões dos "Bata-
netes", dois programas que, felizmente, já saíram do ar, mas
deixaram a sua marca. Aliás, vou aproveitar para ir mais longe:
todas as séries de televisão que existem agora, todas, feitas por
ou para crianças deviam ser consideradas perigosas. Estão a
tornar os putos estúpidos. Há uma diferença grande entre
programas não violentos e programas que não deixem as
crianças pensar por elas próprias. Pensem nos Morangos com
Açúcar e nos outros exemplos televisivos que dei, olhem para
os vossos filhos, e tirem daí as vossas conclusões.
E eu sei que muitos de vocês vêem os Morangos com
Açúcar. Ainda mais grave que ver, sei que muitos de você até
gostam. Deixem-me que vos diga uma coisa. Os Morangos
com Açúcar são apenas uma nova versão dos "Riscos". Lem-
bram-se dos "Riscos"? Aquela série magnífica em que havia
um bacano que os amigos queriam internar numa clínica de
desintoxicação por ter fumado um cigarro? Não foi um charro,
foi um cigarro!
Foi mais ou menos a partir daí que eu deixei de ver a série.
A cena da gaja que pensava estar grávida porque o namorado
Joel G. Gomes 73
pôs-lhe a mão nas cuecas ainda deixei passar, mas esta do
cigarro...
É disto que eu falo! Realidade! Pais, abram os olhos!
Se suspeitarem que o vosso filho de dezasseis anos anda a
fumar... Alerta! Ele já fuma desde os treze. Ele não começou a
fumar uma semana antes de vocês descobrirem.
Abram os olhos!
Eles podem não ser inteligentes, mas são espertos. Mais do
que vocês querem acreditar.
A televisão é feita para entreter, não para educar. Os pais
culpam a televisão por não corresponderem às suas expecta-
tivas. E é aí que está o erro.
Pais, preparem as crianças para a vida – não as sentem em
frente da televisão à espera que corra tudo bem. Não vai correr.
Vai haver merda. E a culpa vai ser toda vossa. Só vou dizer
uma vez, por isso prestem atenção: prevenção. Pensem nisso.
E não pensem que lá por não dizerem palavrões em casa à
frente dos vossos filhos, que eles não os vão aprender. Se for
preciso, eles até vos ensinam palavras novas. É que não te-
nham dúvidas. Pior do que dizer asneiras, é dizê-las de forma
errada.
74 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 232
ANTES DAS ELEIÇÕES #1: INÊS DE MEDEIROS
José Sócrates surpreendeu-me. A recusa do PEC 4 já era ex-
pectável, mas José Sócrates ter cumprido a sua promessa de
sair, não. Pelo menos essa promessa ele cumpriu, há que re-
conhecer. No início do debate, quando ele saiu porta fora,
apenas um “boa tarde” fugido aos jornalistas, fiquei à espera
que ele regressasse, já com o PEC 4 votado e recusado, e dis-
sesse “Vejam lá este aqui. Pensavam que já não me viam, não
é? Ah! Ah! Ainda vão ter de gramar comigo mais uns tempos!”
Não sou contra o afastamento de José Sócrates. Também
não sou a favor da aproximação de Passos Coelho. É um bo-
cado como mudar de Pepsi para Coca-Cola: são ambas bebidas
gaseificadas com cafeína, de sabor a caramelo. O que me
estorva é eu ter uma boa quantidade de matérias a abordar
sobre a actual legislatura e, em vez de tratá-las com calma, sou
obrigado a fazê-lo em modo “aviar frangos.” Isso chateia-me,
mas que remédio tenho eu? E o primeiro frango, salvo seja, é:
Inês de Medeiros.
Na primeira e última vez que falei sobre a deputada Inês de
Medeiros estavam em foco as suas viagens de Paris para
Lisboa. O assunto gerou muitos comentários e alguma polé-
mica. Sobre a vontade de Inês querer viver com a família, é
perfeitamente natural e compreensível. O que não é compre-
ensível é querer viver com a família, trabalhar em Portugal e
sermos nós a pagar os custos de deslocação. Não sei em que
ponto está esta situação, se continuamos a pagar e não
sabemos, se é ela que paga, não sei. O que posso aqui
(re)afirmar é o seguinte: o comum contribuinte, quando vai
para o trabalho, seja de transporte próprio ou público, paga a
deslocação do seu bolso. Há quem gaste mais de dez por cento
do seu vencimento em transportes; há quem ganhe dois mil
euros ou mais por mês e tenha tudo pago. Detalhes para alguns,
Joel G. Gomes 75
mas não para muitos.
Regresso ao tema Inês de Medeiros a propósito de uma
entrevista concedida ao Jornal de Notícias. Entre referências a
uma versão portuguesa do Canal Odisseia e à resistência do
cinema português, Inês de Medeiros opina sobre a sua activi-
dade política e sobre a política em geral. Pela sua voz, perce-
bemos que nós, povo, olhamos para a política como algo d'
“Eles”. E de que outro modo poderia ser? É verdade que não
se pode pôr tudo no mesmo saco, mas é tão difícil distinguir.
Insiste-se na partilha de responsabilidade entre todos os
elementos da sociedade, quando a nossa única responsabili-
dade é escolher quem vai continuar a fazer o mesmo ou pior.
Que alternativas temos? É nosso dever e direito cívico esco-
lher os nossos representantes. E os deveres dos nossos repre-
sentantes quais são?
Acredito que muitos políticos, e Inês Medeiros é um ex-
emplo disso, têm ideias boas e promovem iniciativas úteis – no
caso dela as alterações á Lei 4/2008 sobre o regime laboral e
de segurança social dos profissionais do espectáculo e
audiovisual dizem-me particular respeito – só que pecam
quando não assumem as falhas da classe. Ovelhas negras
existem em toda a parte. Não é vergonhoso admiti-lo, mas é
escondê-lo.
Nós não menosprezamos a instituição Parlamento, menos-
prezamos as pessoas que lá estão e que o tornam menospre-
zável. O que ninguém quer admitir é que o político não é mais
do que um tuga aprumado. Eles fazem o que que qualquer um
de nós faz, apenas em escala maior. Podemos mesmo criticá-
los? Podemos, porém, nunca esquecendo que eles são nossos
representantes. Os políticos são tão bons quanto a sociedade
que os elege. Concluam a partir daqui.
76 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 233
OS MAL LEMBRADOS
(VERSÃO CONDENSADA)
Há quem faça pouco dos ditados populares, que olhe
para eles com desdém; eu sigo-os como uma doutrina
que resiste a qualquer mudança de regime e de sociedade. Entre os muitos, existem três que eu gostaria
de destacar por motivos que farei óbvios. O primeiro desses ditados é: Devagar se vai ao longe. É
verdade que depressa também se chega lá, mas se formos de-
vagar apreciamos mais a viagem. E, no fim de contas, não é a
viagem tão ou mais importante que o destino? Se forem de-
vagar para o trabalho, não apreciam mais o tempo antes de
chegar lá? Depois chegam atrasados, mas isso são outros qui-
nhentos.
Em segundo lugar temos: Quem tudo quer, tudo perde. O
que é querer ter TUDO? Como é que alguém pode querer
TUDO? TUDO não é só o bom, é o mau também. Não são só
as gajas, o dinheiro, a fama, o poder, são também as doenças
venéreas, a sodomia, a esclerose-múltipla e um Governo Por-
tuguês. E assim se percebe melhor a segunda parte do ditado.
Quem tudo tem, não perde tudo, apenas se “esquece” de tudo
em algum lado, vem alguém e leva.
E por fim, um dos meus favoritos: O dinheiro não traz a
felicidade. Nada mais verdadeiro. Reparem no meu caso: tra-
balho quase todos os dias, ganho pouco mais que o salário
mínimo e ainda não tenho casa própria. Por outro lado, um
sem-abrigo residente na Gare do Oriente, que não trabalha o
que eu trabalho (mas que talvez até aufira mais do que eu), é
dado como residente na Torre São Rafael. Vêem como o di-
nheiro não traz a felicidade? Ou, melhor, como a aparência de
pobreza a traz? A felicidade, entenda-se.
Joel G. Gomes 77
Releiam o primeiro ditado. Aposto que muitos sem-abrigos
nem sequer desejavam serem inquilinos nas Torres São Rafael
e São Gabriel. Ficaram parados na Gare do Oriente. E o que é
estar parado, senão andar devagar muito lentamente? Não
queriam ir devagar, não queriam ir depressa, e assim
conseguiram ir até onde muitos desejavam.
E o que é um sem-abrigo senão alguém que perdeu tudo o
que tinha? Alguns até perderam o que não tinham e assim re-
cebem os seus dividendos da sociedade. A mesma sociedade
que apenas lhe dá abrigo e comida por alturas festivas, é
aquela que os coloca a residir em apartamentos de luxo. É
apenas no papel, é verdade, mas não é hipocrisia. Longe disso.
O verdadeiro sem-abrigo aprecia a liberdade de um espaço a
céu aberto. Prefere a visão do firmamento à prisão de um tecto
branco. Ao colocá-los numa falsa residência, estamos a
cumprir o nosso propósito enquanto sociedade e a respeitar os
seus desejos e tradições.
78 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 233
OS MAL LEMBRADOS (VERSÃO EXTENSA)
O saber dos Antigos continua a surpreender-me. Há
quem faça pouco dos ditados populares, que olhe para
eles com desdém; eu sigo-os como uma doutrina, a única doutrina que resiste a qualquer mudança de
regime e de sociedade. Entre os muitos, existem três que eu gostaria de destacar por motivos que farei óbvios.
O primeiro desses ditados é: Devagar se vai ao longe. É
verdade que depressa também se chega lá, mas se formos de-
vagar apreciamos mais a viagem. E, no fim de contas, não é a
viagem tão ou mais importante que o destino? Se forem de-
vagar para o trabalho, não apreciam mais o tempo antes de
chegar lá? Depois chegam atrasados, mas isso são outros qui-
nhentos.
Em segundo lugar temos: Quem tudo quer, tudo perde. Não
é uma lei escrita na pedra, é apenas probabilidades. Para
alguém perder tudo, é porque em algum momento teve tudo. É
um ditado que fala da ambição, mas também da força de
vontade e do azar que toca a todos sem discriminação. E o que
é querer ter TUDO? Como é que alguém pode querer TUDO?
TUDO não é só o bom, é o mau também. Não são só as gajas,
o dinheiro, a fama, o poder, são também as doenças venéreas,
a sodomia, a esclerose-múltipla e um Governo Português. E
assim se percebe melhor a segunda parte do ditado. Quem tudo
tem, não perde tudo, apenas se “esquece” de tudo em algum
lado, vem alguém e leva.
E por fim, um dos meus favoritos: O dinheiro não traz a
felicidade. Nada mais verdadeiro. Reparem no meu caso: tra-
balho quase todos os dias, ganho o salário mínimo e ainda não
tenho casa própria. Por outro lado, um sem-abrigo residente na
Joel G. Gomes 79
Gare do Oriente, que não trabalha o que eu trabalho (mas que
talvez até aufira mais do que eu), é considerado residente na
Torre São Rafael. Vêem como o dinheiro não traz a felicidade?
Ou, melhor, como a aparência de pobreza a traz? A felicidade,
entenda-se.
Este caso dos Censos tem incomodado muita gente. Como
cidadão informado e maduro, estes tumultos passam-me ao
lado porque percebo aqui toda a sapiência popular. E não é só
neste último ditado, é nos outros dois que referi e em tantos
outros que não mencionei.
Olhem de novo para o primeiro ditado. Aposto que muitos
sem-abrigos nem sequer desejavam serem inquilinos nas Tor-
res São Rafael e São Gabriel. Ficaram parados na Gare do
Oriente. E o que é estar parado, senão andar devagar muito
lentamente? Não queriam ir devagar, não queriam ir depressa,
e assim conseguiram ir até onde muitos desejavam.
E o que é um sem-abrigo senão alguém que perdeu tudo o
que tinha? Alguns até perderam o que não tinham e assim re-
cebem os seus dividendos da sociedade. A mesma sociedade
que apenas lhe dá abrigo e comida por alturas festivas, é
aquela que os coloca a residir em apartamentos de luxo. É
apenas no papel, é verdade, mas não é hipocrisia. Longe disso.
O verdadeiro sem-abrigo aprecia a liberdade de um espaço a
céu aberto. Prefere a visão do firmamento à prisão de um tecto
branco. Ao colocá-los numa falsa residência, estamos a
cumprir o nosso propósito enquanto sociedade e a respeitar os
seus desejos e tradições.
80 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 234
UM EXEMPLO A (PER)SEGUIR
A TVI prepara-se para estrear um reality show intitulado
“Mulheres Ricas”. O título só não é “Ricas Mulheres”, porque,
a julgar pelas declarações de certas convidadas, a única coisa
que se aproveita desta gente é mesmo o dinheiro. Uma dessas
aves raras, que dá pelo nome de Lili Caneças, considera que
este reality show pode ser uma ajuda para telespectadores
“fartos da miséria.” Até aqui eu dou-lhe a razão. Sou da
opinião que a televisão não deve apenas informar e educar,
deve também entreter, fazer a pessoa imaginar-se numa vida
diferente e melhor. Servindo este propósito, nada teria a obstar
às declarações da senhora, caso ela não tivesse continuado.
À observação prática seguiu-se a asneira. “Se virem pes-
soas que vivem bem, podem pensar que, se trabalharem, tam-
bém podem ter uma vida assim”. Pois... E de que tipo de tra-
balho é que estamos a falar? Nem todos querem ou conseguem
se curvar dessa maneira, minha senhora. E mesmo que fosse
assim tão fácil alcançar a vida das figuras do nosso jet set,
será que desejaríamos isso? O que têm elas para nos oferecer
senão aparências sem conteúdo?
O nosso problema, diz ela, é nós sermos tão acomodados
quanto invejosos. E o problema dela é não ter quem lhe ex-
plique o que essas palavras querem dizer. “Na Índia não há
inveja; os pobres aceitam que foi Deus que os fez assim e não
invejam os ricos... Caso contrário, aquela imensidão de gente
matava os marajá todos.” Lili, não dês ideias, olha que nós
somos invejosos. E um invejoso tende a mover-se até alcançar
o seu objectivo. Por outro lado, somos também acomodados e
poderemos optar por aguardar que esse objectivo venha até
nós. Pessoalmente, estou indeciso entre queimar fogo ao jet set
todo ou deixar-me ficar acomodado enquanto o jet set entra em
combustão espontânea.
Joel G. Gomes 81
A Lili diz que as fantasias de luxo são como uma espécie
de cenoura à frente dos olhos. Fico contente por saber que
existem várias espécies de cenoura, embora não indique a qual
delas se refere, mas convém não esquecer quem na história vai
atrás da cenoura. Lili Caneças pode não ter inteligência para
muita coisa, mas sabe que quem vai atrás da cenoura são os
burros. Pode ter todos os defeitos e mais alguns, mas ninguém
a pode acusar de não conhecer o seu público.
82 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 235
O EGAS E O BECAS
É inegável a importância que “A Rua Sésamo”, na sua versão
portuguesa, teve junto da minha geração. Foi a série que nos
deu a conhecer grandes actores como o Monstro das Bolachas,
o Gualter, o Poupas e o Ferrão. Os humanos não estavam mal,
mas captava mais naturalidade das figuras de esponja e lã do
que de alguns actores. Os bonecos tinham um comportamento
mais próximo do meu. Exemplo: via-me a imitar o Monstro
das Bolachas, comendo desaldamente um pacote de línguas de
gato; todavia, não me imaginava a imitar um humano a
repreender o Monstro das Bolachas por não ter preceitos à
mesa.
Esta naturalidade de comportamentos que os bonecos de-
monstravam tornavam-nos mais humanos que os próprios
humanos e davam a conhecer ao seu público infantil realidades
desconhecidas. Enquanto crianças, somos, em simultâneo, os
mais malvados e os mais inocentes. Malvados porque dizemos
tudo sem pudor, inocentes porque não vemos mal nenhum
nisso. Era o caso do Ferrão, que vivia num caixote do lixo e
passava o tempo a reclamar de tudo. Não entendia então
porquê. Entendi depois: ele vivia num caixote de lixo. Havia
de estar contente com o quê? Era o caso do Monstro das
Bolachas, que alertava para os perigos da diabetes e da
obsidade mórbida. E era o caso do Egas e do Becas.
Há pouco tempo descobri acerca das teorias que conside-
ram Egas e Becas um casal gay. No episódio “The Outing” da
série Seinfeld, considerou-se como gay, alguém nos seus trinta,
solteiro, sempre organizado e aprumado. Era um estereótipo
assumido para brincar com o estereótipo em si. Egas e Becas
inserem-se em algum estereótipo? Vejamos.
Egas e do Becas eram dois bonecos que viviam no mesmo
apartamento e que concordavam e discordavam um do outro.
Joel G. Gomes 83
Não me recordo se a sua casa era exemplo de boa decoração
de interiores. Também não me parece que as suas roupas fos-
sem um bom exemplo de guarda-roupa gay, mas assumo a
minha ignorância nessa matéria. Era óbvio que existia uma
relação próxima entre si. Mas seriam mesmo mais do que
simples amigos? Porque não primos? Ou irmãos? Por não se
conhecer outro cenário das suas vidas que não aquele, teori-
zou-se algo que pode não ser verdade.
Não me incomoda que o Egas e o Becas sejam um casal
gay, não me incomoda que o Poupas seja um agarrado aos
ácidos ou que o Ferrão seja o traficante lá da rua. São maus
comportamentos humanos, mas é nisso que a Rua Sésamo se
distingue. Não nos mostra apenas o lado bom da sociedade.
Mostra também o mau. Ainda que não o assuma.
84 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 236
SPIDER-BONER-MAN
Vocês nem imaginam o grato que eu fico quando certas des-
cobertas da Humanidade não coincidem com certas criações
da humanidade. Segundo um estudo publicado por um grupo
de cientistas do Medical College, do estado da Geórgia, a pi-
cada da aranha Armadeira pode provocar uma erecção de
quatro horas. E eu suspiro de alívio. Não pela descoberta em si
que, felizmente, não me é necessária, mas por Stan Lee ter
criado o Homem-Aranha nos anos 60.
Eu adoro o Homem-Aranha, é um dos meus personagens
de Comics preferidos. No entanto, sou o primeiro a admitir
que o senhor Stan Lee deve ter fumado umas cenas bem loucas
para criar aqueles personagens todos. Estávamos nos anos 60
afinal de contas.
Imaginem a criação do Hulk. Um choninhas que leva com
uma bomba em cima e depois quando se zanga, fica bué
grande e forte e verde. Que tempero andamos a pôr na salada,
senhor Lee?
O quarteto fantástico era outra: três homens e uma mulher
que vão numa nave e a nave é bombardeada com radiação
cósmica e um fica com pele de pedra, o outro estica-se até
mais não, o terceiro fica em chamas e a gaja deixa-se de ver.
Detecto aqui algum problema com mulheres?
A origem do Homem-Aranha está numa visita de estudo
que o seu alter-ego, Peter Parker, faz a um museu ou labora-
tório (conforme a versão que conheçam), onde é picado por
uma aranha radioactiva. Pouco tempo depois, Peter apercebe-
se que possui as mesmas faculdades da aranha. Imaginem lá se
tivesse sido picado pela tal aranha Armadeira.
“Uau Peter! Não sabia que estavas assim tão interessado
em mim!”
Joel G. Gomes 85
“Desculpa, Mary Jane. É o meu sensor de perigo. Alguém
está a assaltar um banco neste momento.”
Ou então,
“Parado facínora! Deixa já essa pobre idosa em paz antes
que te parta a boca toda!”
O facínora, assustado, foge a sete pés. O Homem-Aranha
aproxima-se para ver se a senhora está bem e ela, ao ver a
“tenda”, agride-o com a sua compacta mas pesada bolsa.
“Desavergonhado! Sem vergonha! Acudam! Malandros!
Querem-me violar!”
Não seria o mesmo herói com que eu cresci. No entanto,
não me sai da cabeça que, mais dia menos dia, a Marvel estará
a publicar uma nova reformulação da origem do herói. E a
essa outras se seguirão.
86 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 237
MENDIGOS E RECIBOS
No sentido de resolver o problema do défice e, ao mesmo
tempo, acabar com a pobreza, eis o meu contributo. Conto
convosco para que isto chegue ao conhecimento das autori-
dades competentes.
1 – Todos os mendigos (mesmo os que residem em apar-
tamentos de luxo) deverão ter um cartão de identificação que
comprove o seu estatuto social. Os impressos terão desconto
entre 1,50€ e 2,75€ (descontos para residentes em caixas de ar
condicionado FNAC). Todos os mendigos de origem não-
portuguesa terão de pagar um acréscimo de 0,50€ sobre o va-
lor do impresso, valor esse que poderá triplicar caso sejam
mendigos ilegais.
2- Este documento comprovativo poderá variar de caso
para caso, consoante o grau de pobreza da pessoa em causa, e
será sujeito a um sistema de cotas mensal, cujo valor será de-
finido em sede parlamentar.
3 – Todos os mendigos serão obrigados a ter o seu cartão de
identificação sempre visível. Caso não esteja, poderão
continuar a beneficiar da chamada “esmola”, a não ser que o
cidadão benemérito peça um comprovativo de situação, seja
para certificação do estatuto, para verificação da validade do
documento ou para efeitos de IRS.
4 – Todos os mendigos que aderirem a esta medida deverão
dirigir-se à repartição de Finanças da sua área de pedinchice e
requisitar uma senha para poder emitir recibos electrónicos.
5 – Por cada esmola recebida, o Estado cobrará 10% sobre
o valor total.
6 – Todos os mendigos que não cumprirem estas normas
serão considerados ilegais e, como tal, proibidos de receber
qualquer tipo de esmola. Todos aqueles que, ainda que sem
conhecimento, derem esmola a mendigos ilegais poderão ser
Joel G. Gomes 87
considerados cúmplices de crime de burla.
7 – As penalizações relativas à violação das directrizes aqui
propostas serão aplicadas conforme a legislação a ser aprovada
na Assembleia da República.
(Agora é esperar que ninguém leve isto a sério.)
88 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 238
ANTES DAS ELEIÇÕES #2 - QUANTO DEVO AFINAL?
A dívida pública não pára de aumentar. É um crescimento que
não se aguenta. Ao todo, a Administração Central já deve mais
de 154,6 mil milhões de euros. O que dá à volta de 15 mil
euros por português. Woo! Woo! (que onamatopeia mais
estúpida esta!, e também a mais apropriada) Nunca imaginei
que tivesse tanto dinheiro no bolso! Deixa cá ver quanto é que
ainda tenho e...
Ah...! Devo tê-lo gasto todo no meu T-1 (lê-se “menos 1”)
e em gomas. Ou será que não? Não me lembro de ter
emprestado 15 mil euros a ninguém. Será que assinei alguma
coisa que não devia? Vai na volta, fui fiador de alguém sem o
saber. Ou então trocaram os números lá na Repartição.
Também já tem acontecido.
Eu sei que o acto eleitoral não serve só para escolher os
nossos representantes: serve também para dizer “É este que eu
quero que gaste o meu dinheiro à parva. A gente depois paga.”
Mas não deve ser daí que vem a dívida, espero eu. Porque,
parecendo que não, ainda é um númerozinho simpático.
Era giro era saber quem é que abriu esta conta. Se for ainda
do tempo da outra senhora, eu não pago. Uma coisa são
dívidas contraídas quando eu já era contribuínte, outra coisa
são dívidas contraídas quando eu nem sequer era projecto de
gente.
A dívida dos Caminhos de Ferro, contraída no século XIX,
só foi saldada no início deste milénio. Quanto à dívida actual,
as opiniões dividem-se sobre se o FMI deve vir para cá ou não.
Eu não tenho nada contra os senhores do FMI virem para cá.
Desde que venham como turistas e que sejam tratados assim.
Desvio por Queluz, Sintra, Massamá, no trajecto Portela-Ritz;
IVA a 157% em todos os produtos que adquiram cá, etc.
Tragam cá o FMI todo e levem-nos a conhecer os sítios que
Joel G. Gomes 89
dão prejuízo. Façam-nos gastar dinheiro aí. É uma aposta no
turismo e pode ser que resolva o problema das contas públicas.
Essa malta do FMI irrita-me. A lata deles a dizerem-nos
onde é que podemos gastar o nosso dinheiro. Era a mesma
coisa que chamarmos um tio contabilista para gerir o nosso
dinheiro. Podemos estar endividados até aos ossos, mas ainda
temos o nosso orgulho. E sabemos que as pessoas que nos
conduziram a esta situação, com um pouco de amor e
compreensão, serão capazes de nos tirar dela. Infelizmente,
também sabemos que não vai ser para melhor.
Uma última nota: nunca empreguei tantas vezes o verbo
“contraír”. Julgo que seja um sinal dos tempos. Ou então um
mero acaso. Tirem as vossas ilações.
90 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 239
ANTES DAS ELEIÇÕES 3: ESTAMO AQUI
Uma notícia publicada recentemente dava conta que o
Ministério das Finanças, com o propósito de aumentar a
receita do Estado, andou a vender imóveis públicos a várias
entidades. Ao todo, o Estado encaixou 355 milhões de euros
por 466 imóveis. Nada mau! A notícia não teria nada de
relevante, não fosse o facto de apenas 24 imóveis terem sido
vendidos a entidades privadas. Os restantes 442 foram todos
vendidos à Estamo, empresa pública do grupo Sagestamo.
Para quem está distraído com o pequeno-almoço ou com o
semáforo que ficou verde (eu já não disse que ler o jornal no
trânsito não é o mesmo que ouvir rádio?), aqui vai uma
explicação mais simples. Imaginem que tenho duas canetas e
que só me faz falta uma. E que preciso de dinheiro para
comprar papel. Como tenho duas canetas, vendo uma. A
quem? Sucede que tenho um porquinho mealheiro, com
dinheiro meu. Parto o porquinho e tiro de lá o dinheiro para
pagar a caneta e comprar o papel. Virtualmente, fico com
papel e uma caneta, na realidade, fico com papel e duas
canetas. Ora, eu não quero apontar o dedo a ninguém, nem tão
pouco chamar nomes feios, mas... qual é a diferença entre isto
e fraude?
A resposta é: azul. E azul porquê? Não sei. Mas é uma
resposta que faz quase tanto sentido quanto este enredo. E o
azul é uma cor que alguns autarcas gostam tanto. Está tudo
ligado. Na verdade, não é que a situação me incomode ou me
surpreenda muito. Os subterfúgios político-financeiros a que
um Governo se presta já só surpreendem os mais incautos.
Incomoda-me um pouco, mas é aquele tipo de incómodo que
mais vale ignorar. A razão principal deste artigo tem a ver com
empenho. Leu bem: empenho.
Joel G. Gomes 91
Estamos em Abril de 2011 e a notícia são os 355 milhões
que o Estado pagou ao Estado. Em 2008 houve outro negócio
igual, no qual o Estado encaixou (apenas) 147 milhões. Em
três anos, o Estado conseguiu duplicar o valor da sua receita.
Se isto não é empenho, não sei o que seja.
Dos 355 milhões de euros “lucrados”, apenas 7 milhões são
reais, isto é, facturados a privados e não ao próprio Estado. O
que significa que o Estado pagou-se 348 milhões. Tanto
quanto sei o Estado não tem dupla personalidade. Uma coisa é
o Primeiro-Ministro dizer cá dentro que está tudo bem e
depois ir lá para fora dizer que está tudo mal; outra coisa são
estes negócios.
O elemento semi-oculto nesta engrenagem é o défice. Vale
tudo para reduzir o défice e a receita obtida (real e fictícia)
neste negócio vai contribuir para isso. É uma maneira tão boa
como qualquer outra de resolver o problema. O único senão é
que não resolve nada. Vemos situações parecidas no CSI,
quando criminosos tentam lavar o sangue das mãos, apenas
para descobrirem que apenas disfarçaram, não resolveram
nada. Aqui passa-se o mesmo. Estamos a embelezar os
números. E quando o efeito do creme passar é que vamos
penar.
92 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 240
MEMÓRIAS DE INFÂNCIA #2: FERNANDO NOBRE
Quando eu era pequeno, tinha um casaco que era um dois em
um. Não me recordo das cores, lembro-me que podia usá-lo do
avesso, ou melhor, não podia, porque ele não tinha avesso.
Este meu casaco de infância era das peças de roupa que eu
mais apreciava e que estava arredado da minha mente
consciente.
Até hoje.
Fernando Nobre, ex-candidato independente (sponsorado
por alguns socialistas) à Presidência da República, foi
convidado por Pedro Passos Coelho para ser o cabeça de lista
por Lisboa e candidato a Presidente da Assembleia da
República. O senhor da AMI aceitou o convite e depressa
vieram as críticas. Houve até quem o chamasse “vira-casacas”.
E foi aí que me lembrei do meu casaco.
Pronto, a parte da memória de infância já está. Vamos à
parte actual.
Fernando Nobre aceitou ser candidato pelo PSD. E depois?
É preciso enervar o homem ao ponto de ele se sentir obrigado
a encerrar a sua página no Facebook? (Será que ninguém o
ensinou a apagar comentários?). Na sua anterior candidatura,
Fernando Nobre era apoiado por alguns históricos socialistas.
É assim tão diferente de ser apoiado pelo PSD? Não me
parece.
O que ninguém quer admitir é isto: ao aceitar o convite de
Passos Coelho, Nobre demonstrou ter a postura de alguém que
não se dá bem apenas com um nicho. Nobre já esteve ao lado
dos Monárquicos, do PS, do BE, do PSD. É verdade que
ignora muitos dos aspectos dos cargos a que se candidata. É o
primeiro candidato a Presidente da Assembleia da República a
apresentar um programa; imagino-o no seu primeiro dia de
Joel G. Gomes 93
trabalho: “Onde é que eu me sento? E agora, que faço?”
Apesar de tudo isto, ninguém o pode acusar de não ser um
candidato de todos os portugueses. Pelo contrário: Nobre não
tem o problema de estar associado a um único partido, tem o
problema exactamente oposto.
Por isso, não concordo que lhe chamem “vira-casacas”. Eu
era um “vira-casacas”, casacos melhor dizendo, porque tinha
um casaco que permitia isso. Não creio que Fernando Nobre
tenha um desses casacos. Como tal, o termo pejorativo
correcto a aplicar a senhor é “troca-casacos”. Perceberam?
94 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 241
FUI AO JARDIM DACELESTE...
Esta semana, um agente da PSP foi louvado pelo director
nacional da PSP, pelos 18 anos de serviço prestados nas
instalações da Direcção Nacional da Polícia, em Lisboa. Esta
breve notícia, apresentada na última página do mais popular
dos jornais de café, teria passado despercebida, não fosse o
insólito dos motivos do louvor.
Perguntam vocês, os que não leram a notícia, por que razão
foi condecorado este agente?
Pelo seu elevado zelo profissional, trato com os colegas e
sentido de responsabilidade cívica?
Não.
Pelo número de casos que ajudou a encerrar?
Também não.
Pela celeridade com que preenchia os seus relatórios e o
grau de objectividade que impunha nos mesmos?
Também não.
Pela sua bonita caligrafia?
Podia ser. Mas não foi.
Foi por algo muito mais bonito e bem cheiroso: flores. Este
agente foi louvado pelo director nacional da PSP “pela forma
hábil como fazia centros de mesa, usando flores e verduras
colhidas nestas mesmas instalações”.
Os colegas souberam que um deles ia ser louvado, só não
se sabia quem, e começaram logo a fazer apostas. A cara com
que devem ter ficado ao chegar à cerimónia, todos ansiosos
por ouvir o seu nome pronunciado, e...
“Então, mas eu farto-me de trabalhar, fico até às tantas a
fazer relatórios, a mulher deixou-me, não tiro férias há três
anos e o Jardim da Celeste é que é louvado?”
Joel G. Gomes 95
Não está certo.
Não contesto o empenho que este agente dedica aos seus
trabalhos mas, do ponto de vista de relações públicas, não me
sinto mais seguro por ter uma Polícia de Segurança Pública
que distingue agentes por arranjos de flores e centros de mesa,
por muito bonitos que sejam.
Outra coisa que me faz confusão nesta história. O agente
fazia os seus trabalhos com flores e verduras colhidas naquelas
instalações. Desde quando é que a Direcção Nacional da
Polícia fica numa horta? Talvez a palavra correcta não fosse
“colhidas” e sim “obtidas”. Continua a não fazer muito
sentido. A Direcção Nacional da Polícia não fica num mercado
municipal nem numa florista.
O único local, dentro da instituição, onde este agente pode
ter obtido o seu material só pode ter sido na sala onde guardam
as provas apreendidas. Se os tais centros de mesa foram feitos
à base de papoilas, erva seca para dar um toquezinho e uma
velinha para enfeitar, já não me choca ele ter sido louvado.
Choca-me ter sido o único.
96 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 242
JESUS, COMO O QUEREMOS?
Um estudo publicado no International Journal of Obesity
(Revista Internacional da Obesidade, aka Gordo's Digest), fez
saber que a comida representada em imagens da Última Ceia
quase que duplicou de proporção no último milénio. As
imagens de Jesus e de outras figuras bíblicas sempre foram
adaptadas à época em que eram criadas. Antigamente havia
escassez de alimentos, hoje há abundância (ou, pelo menos,
ideia de); é natural que o Jesus antigo comparado com o nosso
seja um lingrinhas. A questão é: será que estas representações
limitam-se a acompanhar a evolução dos tempos?
Desenhar muita comida na mesa da Última Ceia é a última
etapa antes de começar a representar Jesus gordo. Depois disso
surgirão as dúvidas: como é que o colocaram lá em cima na
cruz?, será que fizeram como os egípcios?. Mas não é isso que
me incomoda, melhor dizendo, não é isso que vos devia
incomodar. O que vos devia incomodar são os pecados.
A gula, por exemplo. Representar daquela maneira Jesus na
sua última refeição, com um farto banquete à frente, é fazer
Dele, passe a expressão, um javardo à mesa. O Homem tem de
aspirar a ser como Ele, não rebaixá-Lo até Ele ficar ao nível do
Homem.
Outro pecado: o orgulho. Ter um Jesus orgulhoso da
companhia e do catering e da música ambiente e dos cocktails
não se coaduna com a imagem do Jesus humilde e simples que
nos foi dado a conhecer.
Por fim, se os pecados não vos convencem, que tal um
pouco de moral e bom senso?
As imagens de comida, por muito reais que pareçam, não
matam fome. Mas podem influenciar pessoas a comer. Se a
imagem estiver a ser vista por alguém com problemas de peso,
Joel G. Gomes 97
apenas servirá para que a pessoa fique ainda mais gorda; se,
pelo contrário, estiver a ser vista por alguém que não tem nada
para comer, apenas será interpretada como um gesto de
pirraça.
Jesus foi aquela figura, real ou mítica não interessa, que
votava o abandono dos bens materiais em prol da
solidariedade. É aquela figura que suscita esperança nas
pessoas porque o que é divino Nele é a Sua proximidade com
o Homem comum. Jesus era pobre, não era rico, não comia
pão de sementes, nem bolos de cenoura, nem enguias, nem
porco. O tipo era judeu! Um judeu a comer carne de porco? Já
agora punham lá coelho e caranguejo também! Se é para
contradizer, contradigam a sério!
O que estas imagens nos transmitem é um afastamento
daquilo que era a mensagem de Jesus e uma aproximação
àquilo que é a mensagem da Igreja Católica. Já falei nisto
antes e torno a falar: se Jesus votava o abandono dos bens
materiais, por que razão é que o seu representante máximo na
Terra anda com roupas de seda, debruadas com fios de ouro,
sapatos italianos do mais caro que há, mora num palácio e tem
um ceptro de ouro a imitar o Gandalf?
98 PROTUBERÂNCIA – Volume III
ESPECIAL
PONTE SALAZAR
Esta semana dei por mim a visitar o site Salazar, o Obreiro da
Pátria. A razão da minha visita a esta site é facilmente
explicável: cliquei num link para aceder a um site de bom
cinema e em vez da Kate Frost ou da Lisa Ann, o que me
apareceu foi o “Botas”.
A minha visita a este site, apesar de acidental, não foi em
vão. Serviu para relembrar a existência de uma petição para
renomear a Ponte 25 de Abril para Ponte Salazar. Antes de
desbaratarmos a questão, é preciso tomarmos em consideração
os argumentos apresentados. O que é que os defensores desta
petição defendem? Muito sucintamente, defendem quatro
pontos que todos nós podemos apreciar, ainda que possamos
não concordar com eles quando aplicados a este contexto.
Vejamos o texto da petição:
VAMOS REPÔR O NOME À PONTE SALAZAR
Meus amigos, vai sendo tempo de dizermos! É urgente que as gerações não cresçam sobre a mentira; Se para si a verdade histórica é importante; Se o nome dos nossos maiores tem alguma importância histórica; Se a justiça é elemento importante e determinante; Se a verdade deve fazer parte de um Estado de Direito; Então, lute pela verdade!
O primeiro aspecto que salta à vista é a existência de duas
verdades: uma histórica e outra que talvez seja futurista. Sobre
um facto podem existir várias opiniões, mas a informação
Joel G. Gomes 99
objectiva é apenas uma. Exemplo: Portugal faz parte da União
Europeia. Existem várias opiniões quanto a esta matéria, mas a
verdade é apenas uma. Esclareçam lá isso, está bem?
O segundo aspecto a observar é este: Sidónio Pais foi
ditador, Hintze Ribeiro queria ser ditador. E no entanto, temos
toponímia e pontes (tínhamos) nomeadas por eles. Já escrevi
sobre isto num artigo antigo: nós adoramos as pessoas da terra,
nem que sejam o Hitler. É gente da terra, a malta gosta.
Salazar ter uma ponte com o seu nome... pode ser. Mas na
terra dele. É verdade que temos uma tendência para nos
esquecermos de algumas figuras importantes da nossa história.
E uma das razões pelas quais isso acontece é porque o passado
é escamoteado e o ensino da História é sujeito ao crivo de
quem está no poder. O ditado assim o afirma, “Dos fracos não
reza a História.” A não ser quando têm algum amigo defensor
no poder.
Por fim, justiça. É verdade que nem tudo foi mau durante
os anos do Estado Novo. Assim como nem tudo foi mau nos
últimos anos da Monarquia ou bom nos 16 anos da I
República. Qualquer regime está sujeito a falhas; o problema é
quando está fechado em si mesmo. Uma democracia que
funciona mal, seja com Rei ou Presidente, é sempre preferível
a uma ditadura que funciona bem.
As pessoas dizem que antigamente é que se estava bem,
não havia nada destas poucas vergonhas. O “Ballett Rose”,
para quem não sabe, não aconteceu a semana passada. O mal
humano sempre existiu. Talvez não existisse tanto no tempo do
senhor Oliveira Salazar e seu sucessor Marcelo porque o relato
dos factos era condicionado. Quem diz que antigamente se
vivia melhor, só pode ser porque conhecia pouco do mundo à
sua volta. Hoje em dia, sabemos tudo. E só acreditamos que as
coisas eram melhores naquela altura se formos ingénuos. Eram
diferentes, ponto.
Em resumo, não concordo com esta petição. Todavia, não é
tanto pelos argumentos que acabei de refutar. É por um motivo
100 PROTUBERÂNCIA – Volume III
bem mais simples. Este ano não se vai assinalar o dia 25 de
Abril na Assembleia da República. Parece que a realização da
habitual sessão solene viola qualquer coisa na constituição,
porque o Parlamento está dissolvido. Enfim, eles lá sabem.
Para mim, a ponte sobre o Tejo deve continuar a ser Ponte 25
de Abril, mais que não seja para não corrermos o risco de a
única referência à Revolução dos Cravos ser uma data no
calendário.
Joel G. Gomes 101
TERMINUS 244
O JOGO DAS APARÊNCIAS
Não gosto de subentendidos na vida real. Também não gosto
de excesso de exposição. Tal como em tudo na vida, aprecio o
equilíbrio. Não dizemos o que pensamos, tentamos não
transparecer aquilo que não estamos mas queríamos dizer.
As mulheres, por exemplo. Não só mulheres, homens
também. Quando alguém vos diz, num tom casual, “Não é
querer ser indiscreto”, vocês não notam a ansiedade na voz,
como se vos estivessem a perguntar, “Conta! Conta! Vá lá!”?
Ou por exemplo, “Tás a olhar pra onde?” E aquela verruga
enorme no nariz da qual vocês não conseguem desviar os
olhos. Não é o mesmo que dizer, “Sim, sou feio! E depois?”
Nós humanos, somos superficiais. Elogiamos sempre o
interior da pessoa. Dizemos que o que está dentro é que conta.
Costuma-se dizer "quem vê caras, não vê corações". Óbvio.
Quando olho para a cara de alguém espero ver uma cara e não
um órgão interno. Mesmo quando falamos daquelas pessoas
com as chamadas faces de glúteos (não é assim que se chama,
mas vocês perceberam onde eu quis chegar e não foi preciso
baixar o nível), mesmo nessas alturas, é apenas uma
expressão. Não passa daí. Nós somos assim: superficiais. Não
há como negar.
Gastam-se rios de dinheiro em cosmética – a fabricar, a
divulgar e a consumir. E é um investimento supérfluo.
Ninguém morre se não usar creme hidratante. É o luxo. A
preocupação em parecer o que não somos. Quem é feio, é feio.
Ponto final. Não há nada a fazer.
Irrita-me esta preocupação estúpida com o aspecto. Porque
há pessoas com doenças de pele mais graves do que pele
oleosa e o argumento para a falta de tratamento é o pouco
número de casos existentes. No entanto, são gastos rios de
102 PROTUBERÂNCIA – Volume III
dinheiro na investigação de novos hidratantes e cremes anti-
rugas. Fingimos que somos sensíveis a estes problemas,
dizemos "que horror", mas a verdade é que só nos
preocupamos com o aspecto físico. Só.
Todos os dias surgem produtos novos. E a cosmética
chegou a um novo extremo que... Eu espero que fiquemos por
aqui. A sério. Acho que não vale a pena continuarmos mais.
Vejam o caso dos transplantes de cara. Transplantes de cara! Já
se fazem. Fizeram o primeiro em França há uns anos atrás.
Dizem que correu bem, com a excepção da senhora parecer
uma mistura de monstro de Frankenstein com poodle.
Resultados faciais à parte, isto preocupa-me bastante. E é
engraçado quando pensamos nisto da evolução. Vejam bem:
antigamente, não se gostava do nariz, fazia-se uma operação
plástica; a cor dos olhos não agrada, põem-se lentes de
contacto coloridas; os lábios eram muito finos, vai de botox
pras beiças. E a coisa mudava. Agora pode-se mudar a cara
toda.
Quem é que tem a ganhar com isto? Consigo pensar em
dois óptimos clientes: pessoal com dívidas ao fisco e
criminosos.
Há um assalto, a polícia investiga e vai ter à casa do
suspeito.
"Você foi visto a assaltar uma loja. Temos aqui uma foto
como prova."
E o gajo: "Esse não sou eu. Não se vê logo pela cara?"
"Tem toda a razão. Peço imenso desculpa."
Por fim, uma pergunta pertinente: Será que isto da beleza
também acontece com os orgãos internos? Será possível, um
sujeito ir ao médico e dizer, "Doutor, o meu intestino é
demasiado delgado. Não dá pra arranjar um assim mais
esguio?"
Joel G. Gomes 103
TERMINUS 245
UMA NOVA OPORTUNIDADE
Passos Coelho disse que a Iniciativa Novas Oportunidades é
“paga a peso de ouro (…) para passar certificados à
ignorância”. Ui!, o que ele foi dizer! Não podes dizer isso,
Pedrito. Dizer a verdade é só para os outros meninos que vão
para profissões honradas, não é para os políticos. Os políticos
têm de dizer aquilo que as pessoas querem ouvir, o que não
implica que isso seja verdadeiro.
Ainda agora aqui chegaste e já te achas capaz de mudar isto
tudo? Desengana-te, meu menino. Não podes ir pelo bom
senso ou por aquilo que as pessoas te dizem na rua. Por muito
que o digam, as pessoas não esperam honestidade e
sinceridade dum político. Ninguém gosta de ouvir as verdades.
Só as verdades boas. As más, ninguém quer saber. Tu disseste
uma verdade má e foste criticado por isso. Se tivesses dito que
as Novas Oportunidades não conferem o grau de saber
necessário para o desempenho de certos cargos, ainda vá. Ou
que as Novas Oportunidades são a oportunidade que muita
gente não teve, pronto.
Agora, nem pensar em dizer que a maioria dos
frequentadores das Novas Oportunidades vai para lá porque
senão cortam-lhe o subsídio de desemprego, ou que os
formadores desistem de dar formação porque o critério com
que são avaliados é apenas o número de formandos que
certificam, ou ainda (este nem pensar!) que basta fazer um
Powerpoint ou um vídeo com as fotos da família, dos
cãezinhos e das férias e está o 12º feito. Isso está fora de
questão. Isso e dizeres, por exemplo, que esses Powerpoint e
esses vídeos, na sua maioria são feitos pelos filhos ou por
pessoas que sabem mexer em computadores.
Muita gente sabe que o problema é a ilusão que esta
104 PROTUBERÂNCIA – Volume III
qualificação confere. Para aquelas pessoas já empregadas, que
fazem o curso por meras razões protocolares, com a finalidade
de manterem o emprego, está tudo bem. O pior é para aquelas
que não têm trabalho ou aquelas que tendo, dum momento
para o outro, deixam de ter. Uma director de Recursos
Humanos numa empresa de vendas tem três currículos para
avaliar. Um deles tem o 12º normal na Área Comercial; o
segundo tem o 12º de Humanidades, mas já trabalhou em
vendas e tem muita experiência na área; o terceiro sabe fazer
Powerpoints e gosta de passear e de estar com a família.
Ninguém quer saber disto. É preferível a ilusão.
Houve quem te criticasse por estas afirmações, e tu sabes
que eu já te critiquei por outros motivos, mas quem criticou
sabe que isto é verdade. Devo dizer, porém, que estás errado
em alguns aspectos. As Novas Oportunidades não passam
“certificados à ignorância”: elas ensinam-nos o
chicoespertismo, essa habilidade tão necessária para singrar na
vida política. Ou já te esqueceste como já chegaste onde estás?
Joel G. Gomes 105
TERMINUS 246
MEMÓRIAS DE INFÂNCIA #3: UM ANIMAL DE ESTIMAÇÃO
Desde tenra idade que sempre quis ter um cão. O problema
era que não tinha espaço para ter um cão em casa. Conclui, por
isso, que era melhor arranjar um aquário e comprar um peixe.
Mas, por muito que tentasse, eu não me conseguia habituar ao
peixe. Não é que eu não gostasse do peixe, que gostava, mas
continuava a querer ter um cão. Olhava para o aquário e
pensava em tudo o que poderia fazer com um cão e que nunca
iria conseguir fazer com aquele peixe. Em primeiro lugar, não
lhe podia chamar Bóbi ou Snoopy. Se esses nomes, apesar de
cliché, são habituais em cães, são também exclusivo da
espécie canina. Não que isso me tenha impedido...
Sim. É isso mesmo que estão a pensar. O meu peixe
chamava-se Bidu. E não fiquei por aí. Se tivesse sido só o
nome, ainda vá. Eu queria ter um cão e era isso que ia ter. De
tal modo que cheguei mesmo a experimentar tratar o peixe
como se fosse um cão, mas o resultado não foi dos melhores.
Primeiro tirei–o do aquário. Ele começou aos saltos, devia
ser de estar cá fora pela primeira vez. Estava contente, o
malandro. Até dava gosto ver aqueles olhinhos todos
esbugalhados de alegria. Às tantas o bicho não parava quieto e
eu vi–me obrigado a usar da minha autoridade de dono e
mandei–o parar. Por fim, ele lá se acalmou e comecei a pedir–
lhe para dar a pata ou, neste caso, a barbatana.
“Dá a barbatana, Bidu! Bidu, dá a barbatana!”
Foi então que descobri, com alguma desilusão, que o Bidu
tinha adormecido e não queria brincar mais comigo.
Aborrecido, voltei a pô-lo no aquário. Foi aí que eu me
apercebi: se calhar o que ele precisa era de espaço. Com esta
nova suposição em mente, resolvi levar o Bidu a passear ao
parque. Pus–lhe um fio de costura à volta da zona do pescoço
106 PROTUBERÂNCIA – Volume III
para que ele não fugisse e atirei um pau para ele ir buscar.
Era escusado. Sacana do peixe mal se esforçava para
compreender o meu ponto de vista. De repente, apareceu um
gato. E eu pensei cá para comigo:
“É agora.”
Peguei no peixe, abanei–o bem e disse–lhe:
“Olha o gato! Olha o gato! Vai ao gato! Vai!”
Percebendo que o meu Bidu não teria pujança para dar
cabo do gato apenas pelos seus próprios meios, peguei na
minha fisga, coloquei o peixe lá, apontei e... zás! O meu Bidu
foi lançado em direcção ao gato e eu fiquei a ver, esperando
que a Natureza fizesse o seu dever.
Pois sabem o que é que aconteceu depois?
O gato comeu–me o peixe. Fiquei todo lixado, até que me
apercebi duma coisa: se calhar, um gato era capaz de aprender
a ser um cão melhor do que um peixe. E resultou. Hoje em dia,
o meu Piloto pode cuspir uma bola de pelo de vez em quando,
mas levanta a patinha sempre que precisa de ir à casa de
banho.
Joel G. Gomes 107
TERMINUS 247
DO PREÇO CERTO AO SEXO RADIOFÓNICO
Porque é que o Preço Certo em Euros ainda está no ar? Anda
tudo a falar do FMI e do Bin Laden e dos pintelhos do outro e
ninguém fala do que realmente interessa. É assim tão difícil
fazer um concurso a sério? Aqui há uns anos houve um
programa de televisão que terminou um pouco antes do
previsto por causa de um incêndio no estúdio. Não interessa o
nome do programa, o canal que o exibiu, se foi um bom ou
mau programa, interessa a ideia: o incêndio.
Pode não parecer mas isto, pelo menos para mim, é um
incentivo. É possível acabar com a má televisão em Portugal.
Só precisamos duma caixa de fósforos. Pensava que tinha de
ganhar o Euromilhões, para poder comprar o canal e mandar
cortar o sinal. Pelos vistos estava enganado.
Atenção! Há coisas que eu gosto no Preço Certo em Euros.
As assistentes, por exemplo. Hão de reparar que, em qualquer
concurso televisivo, sempre que oferecem electrodomésticos
ou qualquer outro produto, há sempre uma gaja boa por perto.
Pode ser um carro, mas pode ser também a porcaria mais inútil
do mundo, como um descascador de azeitonas; ao lado está
sempre uma gaja boa.
E o que eu não gosto no Preço Certo é isto! Não gosto de
ser confundido. O que é que eles estão a oferecer afinal? Será
que estão a mostrar que a gaja fica bem com a máquina de
lavar, do género, “veja que bem que ficará a sua esposa com
esta máquina ao lado!”, ou será o contrário? É que muitos
homens não têm mulheres daquelas.
Da minha parte, estou safo. Tenho máquina de lavar e a
minha mulher põe aquelas a um canto. Mas continua-me a
fazer a confusão. Será que deixam os concorrentes escolher a
gaja? De certeza que a alguns dava mais jeito.
108 PROTUBERÂNCIA – Volume III
Isto claro, partindo do princípio que ela não via
telenovelas. Era o que faltava. O senhor Amílcar Almiro
levava a gaja boa para casa e depois ela passa o tempo todo a
ver telenovelas. Nada contra as telenovelas... antigas. O
“Roque Santeiro”, o “Sassaricando”, a “Tieta”, essas eram
para ver; as de agora, vão-me desculpar, mas... Não valem um
chavo. Apesar de serem antigas, nos três exemplos que dei, as
histórias duravam o tempo que tinham que durar, não é como
agora.
Seria melhor se ouvisse rádio. Só que hoje em dia a rádio
também já não é o que era. Não vale a pena dizer que não.
Perdeu o seu brilho, o carisma dos tempos antigos. É preciso
inovar. Eu tenho algumas ideias.
A primeira é: sexo radiofónico. O pessoal gosta de sexo,
não ouve rádio, o que é que se faz? Uma radionovela para
adultos, como se fazia antigamente; só que faz-se a cena
codificada – por causa dos putos.
E a cena até era capaz de pegar. Não tenho dúvidas que há
pessoal capaz de estar horas e horas a ouvir estática a ver se
percebe alguma coisa. Assim tipo o pessoal que vê os canais
de sexo e a SporTv codificados. Os amigos olham pra ele:
"Eh pá, larga isso!"
E o gajo: "Shiu!"
"Deixa de ser parvo."
"Acho que a gaja tá a gemer agora, meu. Man, esta cena..."
Outra ideia, também para uma radionovela: uma
radionovela muda. Para quê?
Pensem naquelas pessoas assim um bocado burras que
perdem facilmente o rumo da história. O que é que se faz?
Acaba-se com a história. Não é novidade. Basta ver algumas
telenovelas para vermos que história é coisa que não existe.
E então seria assim: entra a música do genérico. Hum....
Precisamos dum nome. Já sei! Podia-se chamar "Jacinta,
Tulipa e Noz-Moscada"! Que tal? 3, 5 minutos de silêncio.
Punha-se uma música nas cenas com maior carga emocional
Joel G. Gomes 109
para o pessoal não se perder. E no fim: créditos finais.
"Não perca amanhã, mais um episódio de "Jacinta, Tulipa e
Noz-Moscada"
No dia seguinte era ouvir o pessoal a falar do episódio
anterior.
"Então e aquela parte assim?"
[silêncio prolongado]
"Tcham!!!"
"Iá! E curtiste daquela em que se só ouve...?
[silêncio ainda mais prolongado]
"Ouve, eu arrepiei-me todo com essa cena, meu."
110 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 248
A TROIKA E O DESEMPREGO
Quando tudo parece mau, quando olhamos à nossa volta e
nada do que vemos nos anima, é sempre bom receber
mensagens tranquilizadoras de pessoas de séria referência.
Estou a um mês de fazer parte das estatísticas do desemprego
e, tendo em conta a actual situação do país e as dificuldades
crescentes para conseguir trabalho (já nem digo emprego),
teria todas as razões para entrar em pânico. Felizmente para o
meu espírito, a ministra do Trabalho, Helena André, assegurou
publicamente que o acordo com a troika aumenta a protecção
aos trabalhadores. Posso ficar descansado. Vindo de quem
vem.
Ouvindo isto e olhando para o documento, a coisa até
promete. O problema é que... Recuemos cento e dois anos.
Enquanto não passava duma força clandestina, o Partido
Republicano Português prometia Educação para todos, fossem
ricos ou pobres. Chegados ao poder, tentaram dar início a esse
projecto. Pode-se dizer que cometeram um retrocesso ao
acabar com as escolas dos jesuítas, mas isso é outra história.
O ponto a considerar aqui é a diferença entre aquilo que os
republicanos intentavam fazer e aquilo que conseguiram
realmente fazer. Como em tudo na vida, há que fazer a
necessária separação entre aquilo que não se faz porque não se
pode ou não se consegue fazer e aquilo que não se faz porque
não se quer fazer.
Graças à lei de 30 de Março de 1911, o ensino público
passava a ser gratuito. No entanto, como saber ler ou escrever
não mata a fome, muitas famílias continuavam a enviar os seus
filhos trabalhar. Este cenário não é assim tão antigo. Quem não
o viveu, de certeza que conhece alguém que passou por isto.
No fundo, o que eu pretendo dizer com isto é que, pode
Joel G. Gomes 111
haver um fundo de verdade e de boas intenções no que diz a
ministra Helena André. Só depende do ponto de vista. Do
ponto de vista de alguém que pertence a um governo
demissionário e que pretende salvaguardar o seu cargo, seja no
Governo ou numa empresa associada, faz todo o sentido
positivar as medidas da troika para que o PS seja reeleito. Do
meu ponto de vista, como alguém que está prestes a ficar sem
trabalho, só consigo ler aquela parte relativa à facilitação do
despedimento individual. É a velha história do copo meio
vazio ou meio cheio, com a diferença de muitos já não terem
copo sequer.
112 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 249
PURA E SIMPLES IMPLICÂNCIA
A pouco tempo do final da campanha para as Legislativas
2011, vale a pena olhar para o novato e troçar das suas
propostas e das suas declarações. Pedrito, não é nada contra ti
meu querido. Acredita que se o Louçã ou o Jerónimo ou o
Paulinho ou o Zé fossem os estreantes, eu troçaria deles da
mesma maneira que vou troçar de ti. E repara também como
eu digo troçar e não gozar, prova de que embora faça uma
crítica mordaz, ela é também inteligente ao invés de idiota.
Pronto, a primeira lição foi grátes. Não vás directo ao
assunto. Enrola. Queimas tempo. Vamos às declarações? 'Bora.
“A esperança vai vencer o medo”, frase dita a 25 de Maio
na Guarda. Diz-me uma coisa, Pedrito. Qual foi o partido que
chumbou o PEC IV por ser exigente demais e que no dia
seguinte afirmou que tinha vetado esse documento por ser
exigente de menos? Isso também assusta as pessoas. Entre os
que saem e os que querem entrar, só muda a cor adicional.
O Governo quer “lançar o medo” porque não consegue
fazer a “mudança”? E que mudança é essa, meu estimado líder
dum partido que, tal como o partido do Governo, concordou
com as medidas da troika? Mais uma vez, falho em ver essa tal
mudança.
Ainda no mesmo dia, e no mesmo local, Passos Coelho
prometeu criar um site para tornar públicas todas as
nomeações. Não terás querido dizer, criar um site para tornar
todas as nomeações públicas? Ou, porventura, um site para
todas as nomeações, mas só as públicas? É muito bonito
quereres nomear as pessoas apenas com base no mérito e na
competências, mas lembra-te que precisas de pessoas para
trabalhar. Se te orientares apenas por esses critérios, como é
que vai ser a tua vida?
Joel G. Gomes 113
Outra coisa. Quando puderes, sem pressa, explicas aos
portugueses a diferença entre ser nomeado, indicado ou
apontado para um cargo. Aqui vai uma dica para te poupar o
trabalho. O Ricardo (nome fictício) é nomeado, o Troll é
indicado e aquele é apontado.
Antes de passar na Guarda, Passos Coelho esteve em
Gouveia onde disse que não está “pensado” nenhum
agravamento dos impostos sobre os combustíveis. O que me
tranquiliza tanto como “não estão em causa os
despedimentos.” Não. Atenção à frase: Há cafés para toda a
gente? Sim. Os cafés não estão em causa. Agora troca os cafés
por despedimentos. Vês?
Mas a frase em concreto foi sobre os combustíveis e há
algo nela que revela um descuido preocupante. No caso de não
saberes, existe uma diferença entre dizer que não se vai fazer e
não se pensou em fazer. Nota que, apesar de sabermos que é
peta, a primeira dá-nos mais segurança porque é uma
afirmação – não se vai fazer – enquanto que a segunda suscita
algumas dúvidas. Quando alguém diz que ainda não pensou
em fazer algo, isso significa que ou vai pensar em fazer ou vai
fazer sem pensar.
Em que é que ficamos?
114 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 250
DA CAMPANHA E DOUTRAS COISAS
Existe uma pergunta que grasa pela cabeça de muitos
portugueses: para quê uma campanha eleitoral? Eu sei que
estamos em época de eleições, mas o que é que isso tem a ver?
Não, não tem nada a ver com aquela história de ganharem
sempre os mesmos. Passo a explicar.
Numa qualquer campanha temos os vários partidos
políticos a apresentarem os seus diferentes (ou não assim tão
diferentes) programas eleitorais. Os portugueses fazem a sua
escolha e o partido com mais votos (ou melhores condições) é
convidado pelo Presidente da República a formar Governo.
Duma forma simples (talvez simplista) é isto que acontece.
Na prática, não há grandes diferenças entre ganhar o senhor
licenciado ao Domingo e o senhor licenciado aos 37. O
problema é aquele papelito que anda por aí a circular. Sejamos
sinceros. O memorando da troika pode não ser um programa
de Governo, mas anda lá perto. Imaginem que, em vez do
memorando, a troika entregava-nos uma série de ingredientes
– legumes, ovos, leite, carne, peixe, açúcar, etc. - e mandava-
nos fazer um bolo de chocolate. Há várias maneiras de fazer
um bolo de chocolate, mas são poucas as hipóteses de divergir
do memorando.
Tenho andado a pensar nisto e estou indeciso quanto à sua
aplicação. Não recuso a necessidade de maior rigo e controlo
do erário público, embora não me pareça que sejam os
funcionários que levam canetas para casa ou aqueles que tiram
fotocópias no serviço os grandes responsáveis. Até aceito que
algumas das medidas sejam tomadas porque não há outra
hipótese. O que me incomoda é a falta de consequências. Eu
aceitaria que o processo de despedimento individual fosse
facilitado, se o Estado desse o exemplo e, a começar por si,
Joel G. Gomes 115
acabasse com os falsos recibos verdes. Por exemplo.
O PS, o PSD e o CDS ora divergem, ora convergem em
relação às medidas previstas no memorando. Consoante os
dividendos que daí possam tirar, a coisa é boa ou má e eu acho
isso bonito. Acho bonito que José Sócrates antes gostasse de
dançar com Passos Coelho e agora quase que não se podem
ver. Paulo Portas, que em tempos fartou-se de dizer a José
Sócrates para se demitir, é elogiado pelo próprio José Sócrates
pela sua postura. Falta contexto aqui, eu sei. Azar. Também
falta muito contexto na campanha e não é isso que os pára.
A conivência entre estre trio faz-me sentir uma sardinha.
Cada um discute que parte do meu corpo quer, mas todos
querem ferrar o dente. Posso fazer a observação de outra
maneira: o CDS já esteve coligado com o PS e com o PSD.
Haverão assim tão grandes diferenças entre estes três partidos?
É uma resposta que não é fácil.
O Governo que nos calhar (ou já calhou, conforme o dia e a
hora em que leia isto), concorde ou não com o acordo, terá que
respeitá-lo. No fundo é um empréstimo como qualquer outro.
Com a diferença que fomos apontados como fiadores sem
termos tido voto na matéria. A verdade é esta. As eleições são
uma mera formalidade.
Uma nota final: Gabriela Canavilhas não aprovou as verbas
destinadas ao FICA por estar em governo de gestão. Eis o que
deviam ter dito a José Sócrates antes de ele ter chamado o
FMI. E assim já se teria justificado a campanha.
116 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 251
VAI UMA SALADINHA?
Ontem ao jantar comi uma salada de pepino e continuo aqui.
Por acaso até foi frango, mas tenho quase a certeza que o
resultado seria o mesmo. Vamos lá a saber: que raio de
mariquinhas são vocês para deixarem de comprar legumes
portugueses? Desde que começou esta história da bactéria que
os produtores nacionais se queixam da falta de vendas.
Quinhentas toneladas de legumes são deitadas fora todos os
dias porque ficou tudo com o rabinho apertado. Porquê?
Pensem um pouco antes de entrarem em pânico! Os
alemães começaram por dizer que a culpa era dos pepinos
espanhóis e a coisa pegou bem. Até se descobrir que a maioria
dos infectados era alemão, tinha estado na Alemanha ou
consumira produtos de origem alemã. Espanha e Alemanha.
Quem é que falou em Portugal? Foram tantos anos a ouvir
dizer que Portugal era uma província de Espanha que até já
nem sabem em que país estão?
A Ministra da Agricultura espanhola vai exigir uma
indemnização à Alemanha pelos danos causados. Não seria
mal pensado nós fazermos o mesmo. Afinal de contas, também
estamos a ter prejuízo com esta história. O problema é que, ao
contrário de Espanha, nós só estamos a ter prejuízo porque
temos uns media que exarcebam e um povo que reage sem
pensar. Sim, foi isso mesmo que leram. Insultei-vos, para ver
se abrem os olhos.
Não ponho de parte a hipótese de isto ser o último
estratagema do governo Sócrates para reduzir o valor da dívida
da troika, nomeadamente a parte que os alemães emprestaram.
Se o argumento utlizado for qualquer coisa como “Espanha e
Portugal são como gémeos siameses, o que afecta um afecta o
outro”, pode ser que a coisa pegue. Tenho as minhas dúvidas.
Joel G. Gomes 117
Por outro lado, seja a propagação do problema feita por
alemães ou portugueses, é inegável que o problema existe. E
isso remete-me para a próxima questão: de onde surgiu o
problema? Não é preciso pensar muito para descobrir.
Quais são as medidas recomendadas para evitar
contaminação? Lavar muito bem os legumes e lavar muito
bem as mãos antes e depois de manusear os legumes. E
quando se diz lavar muito bem as mãos não se está a falar de
água e sabão apenas. Lembram-se do desinfectante para as
mãos que foi vendido o ano passado por causa da constipação
dos porcos? Vendeu-se muito, não foi? Pois, mas parece que
não se vendeu tanto quanto se esperava. Muitas lojas,
farmácias e grandes superfícies ficaram com stocks enormes
de desinfectante para as mãos e não foi só em Portugal. Era
mais do que certo que não tardaria a aparecer o próximo surto.
Respiremos de alívio por ter sido a bactéria do pepino e não a
febre das borboletas.
118 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 252
QUANDO O EXEMPLO VEM DE FORA
Embora faça parte daquela geração dos anos 80 e 90 para
quem ir fazer compras a Espanha era todo um ritual revestido
de secretismo e perigos, tenho de confessar que nunca viajei
ao nosso país vizinho em modo clandestino. Para o bem e para
o mal sou um tenrinho da época Schengen. Quer isto dizer que
já fui a Espanha sim, mas não fui obrigado a viajar no porta-
bagagem ou memorizar sequências infinitas de senha e contra-
senha.
Estou só a repetir aquilo que o bêbado da rua me contou.
Se alguma coisa não corresponder à verdade é a ele que se têm
de queixar. Só não o façam se ele estiver com a camisola verde
e o chapéu de alumínio.
Seja como for, hoje em dia, não só atravessamos a Europa
quase duma ponta à outra apenas com o B.I, ou o Cartão de
Cidadão para os mais modernos (sempre conseguiram votar no
dia 5?), como podemos comprar tudo o que quiseremos sem
levantar o rabo do sofá. O mundo está à distância dum clique e
isso facilitou muita coisa, embora nem todas sejam boas.
Há dois anos foi noticiada a descoberta duma base da ETA
na zona das Caldas da Rainha. Apesar das evidências, a notícia
foi desmentida pelas autoridades portuguesas. Em muitos
casos é indiscutível que as nossas autoridades procederam
mal: este não é um deles. Sim, estava lá material para fazer
explosivos, bastante dinheiro, telemóveis, armas e munição.
Para as autoridades espanholas era uma base da ETA, para as
autoridades portuguesas, e para mim, era uma arrecadação.
Sucede que, é raro mas acontece, eu estava errado e a ETA
tem mesmo uma base em território português. Tomemos uns
instantes para nos congratularmos pelo trabalho que fizemos
Podemos ser maus em muita coisa, mas somos óptimos
Joel G. Gomes 119
anfitriãos. É pena a coisa só ter sido descoberta agora, mas
mais vale tarde que nunca.
Ao que parece, em Setembro de 2009, portanto, ao mesmo
tempo que as autoridades portuguesas negavam a presença da
ETA em Portugal, um membro dessa organização servia-se
duma identidade falsa para ir à repartição das Finanças de
Chaves e tratar do cartão de contribuinte. Isto é vergonhoso!
Receber lições de moral de estrangeiros já é mau, recebê-las
de terroristas é inqualificável. É quase o mesmo que a Elsa
Raposo a dar conselhos sobre promiscuidade.
Perante este exemplo que moral temos nós para fugir aos
impostos se os terroristas fazem tudo para ter a sua situação
fiscal regularizada? Qual era o português que de livre vontade
iria tratar do cartão de contribuinte? Tomara muitos não o
terem. Se fosse um português, quanto muito falsificava um
Master Card ou um Visa. O pessoal da ETA não vai por aí. São
terroristas, fazem bombas, matam pessoas, só que sabem bem
que tudo isso é desvalorizado quando comparado com a fuga
aos impostos. Lembrem-se como é que apanharam o Al
Capone. Eles são bascos, mas não são parvos.
120 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 253
SEGREDOS DO NEGÓCIO
Ser um mau exemplo, seja no que for, quando tantos deram tão
bons contributos para o correcto desempenho de determinada
actividade é algo que devia fazer corar de vergonha muita
gente. Tolera-se a má televisão, a má educação, o mau
desempenho, o péssimo empenho, mas há coisas que não se
toleram. Ou não se deviam tolerar. Há limites!
Quando não há bons exemplos a seguir, é diferente.
Estamos num campo novo, não sabemos o que andamos fazer,
tudo bem. Mas há sectores onde é indesculpável qualquer
prestação menos que perfeita. Um exemplo claro disso está no
sector da lavagem de roupa, onde figuras como o actor Paulo
Matos, ou a jornalista Manuela Moura Guedes conferiam a
devida credibilidade a um sector tão competitivo.
Mas onde o escândalo é maior é no igualmente competitivo
sector da lavagem de dinheiro. Aqui, é impossível não referir
Oliveira e Costa, Dias Loureiro, João Rendeiro, Vale e
Azevedo e tantos outros. Exemplos não faltam. Como é
possível, então, termos tão má imagem lá fora no que concerne
à lavagem de dinheiro que se faz por cá? Que homenagem
estamos a prestar ao trabalho que estas pessoas fizeram?
Lembram-se das idas de Dias Loureiro e de Oliveira e
Costa à comissão de inquérito (vulgo enrolanço) convocada a
propósito do BPN? Houve quem achasse que esses senhores
não se lembravam ou não tinham certeza ou ainda que não
podiam afirmar de forma exacta porque estavam a tentar
esconder o que tinham feito. Eu concordo que eles até estavam
a tentar esconder qualquer coisa, mas não acho que fosse nada
criminoso, e sim vergonha. Vergonha não do que fizeram, mas
de verem os seus segredos de profissão escrutinados e
dissecados de forma impiedosa, sem qualquer consideração
pelos danos que isso poderia causar.
Joel G. Gomes 121
Recordo um programa que a SIC transmitiu aqui há
tempos, em que vários truques de ilusionismo eram
descontruídos até ao ponto em que um analfabeto funcional ou
mesmo um assessor de secretário de Estado seria capaz de
rivalizar com o Luís de Matos. O programa gerou alguma
controvérsia junto da comunidade dos ilusionistas (deve haver,
não sei) que se queixou dos problemas que poderiam advir
para o sector a partir do momento em que pessoas não
qualificadas começassem a praticar magia.
Revendo as imagens de Dias Loureiro e de Oliveira e Costa
no Parlamento, já não consigo ver dois senhores com vergonha
de terem sido apanhados. Nem tão pouco consigo ver dois
senhores com vergonha de estarem a revelar algo muito
íntimo. Apenas vejo dois homens tristes por saberem que
aquilo que estão a contar vai ser utilizado por pessoas
despreparadas, pessoas que vão dar mau nome a uma
actividade tão franca. E isso deixa-me também triste.
122 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 254
MARAVILHAS DE ANDAR DE TRANSPORTES PÚBLICOS
Sempre que viajo em transportes públicos tenho por hábito
ouvir conversas alheias. Não é que eu goste, ou que eu queira,
mas as pessoas falam tão alto que não tenho outro remédio
senão ouvir. No outro dia vinham duas mulheres à minha
frente a conversar. O assunto era o seguinte:
“As pessoas hoje em dia falam tanto da vida umas das
outras...”
“Sim, são todas umas cuscas. Até fazem impressão.”
Até aqui nada de especial, estavam-me a atrapalhar a
leitura, mas isso não era nada que não fosse normal. Até que
houve uma delas que disse uma coisa que mudou por completo
o rumo da conversa; algo que me ficou na memória. Ela disse
e eu cito na íntegra:
“Eu acho que isto devia estar dividido por secções. Devia
haver uma secção para as pessoas que gostam de conversar e
outra para as pessoas que gostam de ler.”
E a outra respondeu:
“Sim, tem toda a razão.”
E eu disse “Então não seria mau pensado porem-se a andar
daqui para fora.”
Não acharam piada, chamaram-me mal-educado e foram-se
embora.
„Ganhei‟, pensei eu.
Mas estas não são as piores. As piores são aquelas que vão
quietas, com o telemóvel nas mãos, sempre a olhar para o
telemóvel. Depois recebem um toque. E ficam a olhar feitas
parvas. Aquela porcaria a tocar e elas a olhar. Dá vontade dum
gajo levantar-se e gritar “Atende essa porcaria!”
E depois quando atendem, das duas uma, ou é engano e
voltam ao mesmo ou ficam a conversar a viagem toda. É
Joel G. Gomes 123
nessas alturas que me apetece partir a janela e saltar dali pra
fora.
Raios parta os toques. Porque é que quando ouvimos o
telemóvel tocar nunca atendemos à primeira? Nunca sabemos
se aquele toque, o mais estúpido que já se ouviu, se é mesmo o
nosso.
“O toque é igual ao meu, mas será que é mesmo?”
E quando finalmente resolvemos atender, a pessoa ao nosso
lado atende. É frustrante. Porque mais uma vez vamos ter que
percorrer a lista de toques do princípio ao fim em busca de um
toque que ninguém use. Acho que é por isso que existem
tantos toques estúpidos hoje em dia.
Mas isto era antes. Agora temos algo muito pior: música.
Música em transportes públicos. Ou música em sítios públicos
em geral. Mas agora fiquemos pelos transportes.
Quem anda neles, sabe do que eu estou a falar. Aquela
musiquinha parva que não se percebe nada. Só a escolha é
cinco estrelas e depois vem a qualidade do som. Lembram-se
quando costumávamos ver os velhos na rua a ouvir o relato da
bola? Aquele som todo fanhoso que não se percebia nada? A
música nos transportes públicos é isto: uma estação mal
sintonizada num aparelho de rádio desses antigos e a coluna
apontada para um megafone ligado ao amplificador. Bela
ideia, sim senhor. Não chegava ter de ouvir conversas parvas à
nossa volta. Agora é mais esta.
E daqui partimos para música nos telemóveis. Quero dizer
isto: EU NÃO QUERO OUVIR A VOSSA MÚSICA
QUANDO VOU NA RUA! E não é por não gostar da música
em si. É porque não se percebe nada. Eu gosto de música. E se
há uma coisa em que eu acredito é que a Soraia Chaves só de
pantufinhas fica um mimo. A outra é que música é para se
ouvir com boa qualidade. Não é assim.
A minha vontade era pegar no sujeito que resolveu juntar as
duas coisas, telemóveis e música, e enfiar-lhe um piano de
cauda e um telefone dos antigos pelo esfíncter adentro.
124 PROTUBERÂNCIA – Volume III
“Eh pá! Isso não que suja o telefone todo!”
“Pois é! Ainda por cima há pessoas com toques muito
giros.”
Deve haver. Eu próprio já ouvi. Mas são tão poucas! E cada
vez menos...
Onde é que andam os toques simples? O que foi que lhes
aconteceu? É raro nos dias de hoje o toque de telemóvel que
não é uma música. São as boomboxs do século XXI. Portanto,
temos a rádio do velho sintonizada na Renascença, dezenas de
pessoas a ouvir música do telemóvel e... E querem que o
pessoal ande mais de transportes públicos? Deve ser...
Joel G. Gomes 125
TERMINUS 255
O QUE (AINDA) NÃO SABEMOS
Por esta altura pouco ou nada se sabe sobre o novo governo
PSD/CDS-PP.
Sabe-se que conseguiram ultrapassar a sua primeira
contenda, que tinha que ver com a estrutura do executivo. Era
uma questão delicada e que foi resolvida atempadamente,
embora nem tudo tenha ficado explicado. Passos queria 10
ministros e Portas queria 12 ministérios. O primeiro elemento
de clivagem é óbvio: depois do que se passou com os
sobreiros, Portas quer dois ministérios sem ministros para
assim não haver ninguém para acusar de qualquer eventual
irregularidade. É uma medida sábia, mas que Passos não
gostou.
Outra coisa que já se sabe, o próximo ministro vai ser um
independente, sem qualquer ligação partidária, que esteja a par
do programa do PSD e que tenha representado o partido nas
“negociações” com a troika (a assinatura era para ter sido feita
com uma caneta Parker de ponta fina azul, mas este senhor
conseguiu fazer prevalecer a sua opção de assinar com uma
caneta Molin de cor preta) e que, para os que ainda não
adivinharam, utilize a forma popular de pronunciar “pelos
púbicos”. Ou então Vitor Bento.
Sabe-se também que Passos vai continuar a apoiar
Fernando Nobre. Tivemos a confirmação desse apoio ainda
ontem, durante a visita dos representantes dos partidos com
assento parlamentar ao Palácio de Belém, quando Passos
Coelho disse, “É uma matéria do foro parlamentar, não cabe
ao futuro Governo estar a envolver-se na escolha do presidente
da AR.”
Aqueles que apontam a inexperiência de Passos Coelho
como um forte handicap governamental, têm aqui um grande
argumento. Uma coisa é cumprir promessas eleitorais, outra
126 PROTUBERÂNCIA – Volume III
coisa é apoiar Fernando Nobre para presidente da Assembleia
da República. Pode parecer, analisando as suas declarações de
forma superficial, que Passos Coelho se está a descartar do
apoio ao senhor da AMI; cabe a mim fazer a tão necessária
análise mais aprofundada. É tão simples como isto: Passos
Coelho é o presidente de qual partido? Qual foi o partido que
conquistou mais votos e, em consequência, maior
representatividade parlamentar? Quer isto dizer que Fernando
Nobre vai mesmo ser eleito presidente da Assembleia da
República, segunda figura do Estado, capaz(?) de
desempenhar funções de Presidente da República caso o
senhor de Boliqueime dê um jeito às costas ao mudar a
lâmpada da sua marquise? Esperemos que não. Esperemos que
a inexperiência de Passos não ofusce a experiência dos demais
deputados.
E daí... até pode ser interessante ter o senhor Fernando
Nobre a dirigir o hemiciclo. Relembrando o caso do protocolo
com Valter Lemos, seria engraçado ver situação idêntica ou
semelhante a acontecer em sentido inverso. “Não, senhor
presidente. Primeiro tem de me dar a palavra e só depois é que
me manda calar. Não é antes.”
Agora que penso bem, ter Fernando Nobre como presidente
da Assembleia da República é o primeiro passo para conseguir
a tão discutida (sempre que há eleições) redução do número de
deputados. Com Mota Amaral e Jaime Gama havia muitos
deputados a dormir e o trabalho aparecia feito. Passos quer que
a Assembleia seja presidida por alguém capaz de adormecer
todo o parlamento e verificar se as coisas continuam a
funcionar ou não. É uma medida arriscada, principalmente
porque pode resultar.
Joel G. Gomes 127
TERMINUS 256
O PORQUÊ DO EMPRÉSTIMO AOS BANCOS
Quando se discutiu o último Orçamento de Estado, houve
quem achasse suspeito os encontros que os presidentes dos
principais bancos privados portugueses tiveram, à vez, com
José Sócrates e Passos Coelho. Quando ainda não falava da
vinda do FMI para Portugal, muitos questionaram as tomadas
de posição dos senhores dos bancos de não terem capacidade
de ajudar o Estado português, após terem anunciado um forte
crescimento dos seus lucros. Quando se negociava o acordo
com a troika e estes senhores foram beneficiados com 12 mil
dos 78 mil milhões de euros de empréstimo, muitos
questionaram a justiça de tal medida. Durante muito tempo,
estas questões têm permanecido sem resposta. Até hoje.
Consideremos, em primeiro lugar, o porquê do empréstimo
aos bancos. A lógica dita que, para emprestarem dinheiro, os
bancos precisam de o ter primeiro. Ora, como os lucros dos
principais bancos portugueses cresceram muito no último ano,
é mais que evidente a falta de capital financeiro de que
dispõem. Portanto, como deixaram de ganhar alguns milhões
para passar a ganhar muitos milhões, as troikas acharam que
era preciso ajudar estas carentes entidades empresariais e
resolveram dar-lhes alguns milhõezitos para se governarem.
Atendido o problema da falta de dinheiro dos bancos
portugueses, estes ficaram em condições de fazer empréstimos
a quem pedisse. O problema é que o banco para fazer um
empréstimo precisa de ter garantias mínimas de retorno; caso
contrário, não é um empréstimo, é uma oferta. Uma vez que se
prevê o congelamento do salário mínimo, o aumento do IVA, o
aumento do custo de vida, a facilitação do despedimento e o
crescimento do desemprego, tenho algumas dúvidas que sobre
muita gente com capacidade financeira de contrair um
128 PROTUBERÂNCIA – Volume III
empréstimo. O que acontecerá a esse dinheiro então?
Não existem dúvidas de quem vai pagar os juros do
empréstimo feito pela troika, seja da parte que foi para o
Estado, seja da parte que foi para os bancos: é o mesmo otário
que vai pagar ainda mais juros caso consiga contrair um
empréstimo bancário. Também não existem dúvidas quanto à
injustiça desta medida, bem como à necessidade de aplicação
da mesma.
Segundo notícias publicadas esta semana, o Banco de
Portugal emitiu uma nota de recomendação para que os bancos
passassem a carregar os multibancos com menos dinheiro. Diz
a nota que é para combater os constantes assaltos, mas não é
só disso que se trata.
Já estive muitas vezes na fila para levantar dinheiro no
multibanco e ter no início da fila uma daquelas bestas que leva
para lá uma repartição de pagamentos. Sou daqueles
retrógados que acha que uma hora a pôr cartão, marcar código,
fazer operação, verificar talão, verificar saldo, verificar
movimentos de conta, trocar cartão, marcar código e repetir
operação durante mais de uma hora é um bocadinho
demasiado. Por vezes, passa-me pela cabeça a ideia de
abandonar a fila e me dirigir ao balcão de atendimento que
está vazio para efectuar aí o levantamento. Porém, antes de
fazer isso, resolvo fazer uma trepanação e a ideia deixa de
fazer sentido. Pagar para levantar dinheiro? Não me parece.
Menos dinheiro nos multibancos significa que as caixas
vão ficar vazias mais depressa. Significa também que haverá
quem opte por fazer levantamentos mais avultados e outros
por ter a carteira a criar bicho. Os primeiros serão fáceis de
identificar, uma vez que terão um ar desconfiado de tudo e de
todos; os segundos, em maior número, correrão menos riscos
de serem assaltados. Houve quem falasse que o empréstimo
aos bancos era uma vergonhosa rapinagem quando, na
verdade, era uma eficaz medida de combate ao crime.
As pessoas andarão com (ainda) menos dinheiro no bolso e
Joel G. Gomes 129
não haverá razão para serem assaltadas. Os bancos terão
dinheiro ao seu dispor para investir nas empresas de que são
accionistas e assim aumentar um pouco mais os seus lucros, de
modo a que na eventualidade dum próximo empréstimo
internacional estejam em condições de beneficiar de mais um
pouco da caridade internacional.
130 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 257
CENAS DE CAFÉ
Uma coisa engraçada sobre as gorjetas é o facto de as únicas
pessoas que têm direito a ela serem aquelas que nos servem
café ou as que nos carregam as malas. Existem muitas
profissões que deviam ter direito a receber gorjeta, mas, por
razões desconhecidas, não é isso que acontece.
Se estivermos num hospital, algures entre a vida e a morte,
à espera duma transfusão quase impossível de obter porque o
nosso tipo de sangue só existe numa em cada dez pessoas, nós
não damos uma gorjeta se o médico nos salvar a vida; nem tão
pouco agradecemos ao tipo que nos deu o sangue dele. Essa
pessoa é-nos completamente desconhecida mas, mesmo que
fosse conhecida, não teria mais importância que um
empregado de mesa ou um taxista.
Dito isto, já repararam na cara dos empregados quando
vamos pagar o café e só temos uma nota de 50 euros? Um café
custa em média 55 cêntimos. E nós só temos 50 euros. E
depois? Qual é o problema?
Eu acho que não é nenhum. Mas para eles não. Eles ficam
sempre a olhar com uma cara que até parece que estamos a
fazer alguma coisa de mal. Nós estamos a pagar! É isso que
estamos a fazer! A pagar! Isso é errado? Há pessoas que
pedem desculpa! Quando vão para pagar o café e não têm
dinheiro certo, quase que se ajoelham.
“Peço imensa desculpa. Só tenho esta nota. Não posso
gastar mais que este dinheiro. Por favor, perdoe-me. É só hoje.
Não volta a acontecer. Prometo. Por favor, não me flagele.”
O que é isto?! Por acaso, pensam que estão a tirar dinheiro?
Não estão! O dinheiro do troco é vosso! Vosso! Não é deles!
Outra situação que também acontece quando pedimos um
café é a seguinte. Vamos supor que o café custa 50 cêntimos,
Joel G. Gomes 131
só para o exemplo funcionar. O café vem, eu bebo o café,
tranquilo da vida. Acabo de beber o café, tiro uma moeda de
50 cêntimos do bolso e coloco-a em cima do balcão.
O que é que o empregado diz?
“É pra pagar o café?”
O que é que eu respondo?
“Não. 'Tou só a pôr a moeda em contacto com o ar. É pra
ver se ela cresce. 'Tou à espera que se transforme numa nota de
50 euros.
Depois abano a moeda.
“'Tá quase. Já faltou mais.”
Há outros, mais inteligentes, que ainda perguntam:
“É só pra pagar o café?”
Eu não sei o que é que se passa lá nos bastidores, mas eu
quando vou a algum estabelecimento comercial e dou dinheiro
certo para pagar um produto, é porque não quero pagar mais
nada além disso.
132 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 258
PELA REVISÃO DOS DITADOS POPULARES
O mal de Portugal são os ditados populares. Influenciados por
esses saberes antigos, planeamos e agimos de forma errada.
Quão diferentes seriam as nossas vidas, o nosso país, se em
vez de ditados como Devagar se vai ao longe ou A pressa é
inimiga da perfeição, tivéssemos, por exemplo, Quem chega
no fim come restos ou Vem devagar e depois queixa-te que és o
último?
Vem isto a propósito do Cartão do Cidadão. De acordo com
testes realizados na Faculdade de Ciências e Tecnologia da
Universidade de Coimbra, chegou-se à conclusão que esse
moderno e prático documento não confere ao seu titular a
segurança que é exigida a um documento do género. Não se
trata de duplicar o cartão fisicamente (essa parte, até ver, está
salvaguardada), trata-se da possibilidade de clonar os seus
dados por via electrónica.
Ou seja. O Cartão do Cidadão dispõe de dois tipos de
informação: a que está registada no plástico, como o nome,
data de nascimento, etc. e a que está registada no chip, cuja
leitura só pode ser feita através de um aparelho de custo
acessível que todos os serviços dispõem. O portador do Cartão
do Cidadão pode ainda aceder aos sites dos organismos
públicos e tratar do que tiver a tratar a partir de casa.
Qual é o problema? Parece que os sites estão protegidos e o
cartão também, mas se o computador estiver vulnerável a
viroses, aí é que é o bom e o bonito. Se o nosso Magalhães não
tiver as vacinas em dia, corremos o risco de alguém copiar o
nosso PIN ou a nossa assinatura electrónica e fazer-se passar
por nós. Pessoalmente, não me preocupo muito com isso, uma
vez que há dias em que eu próprio não quero ser eu e não
estou a ver qual é o fétiche de alguém se passar por mim. No
Joel G. Gomes 133
entanto, há muita gente em risco e é preciso encontrar uma
forma de proteger melhor os dados registados no chip.
Francisco Rente, o investigador da Faculdade de Ciências e
Tecnologia da Universidade de Coimbra que apurou estas
falhas de segurança, diz que já alertou a Agência para a
Modernização Administrativa, durante um seminário técnico
sobre o cartão do cidadão. O alerta foi dado em 2007, estamos
em 2011, e nada foi feito para resolver o problema.
Concordo com Francisco Rente em tudo o que ele apontou
sobre esta matéria, mas discordo dele num aspecto em
particular. Diz ele que é necessário e urgente resolver este
problema. Necessário sim, urgente discordo. Estamos a falar
dum problema que afecta muitas pessoas e muitas famílias; é
para fazer com calma, não é às três pancadas. Quatro anos mal
chega para fazer um estudo sobre a matéria, analisar os dados,
efectuar um inquérito para apurar responsabilidades e traçar
uma metodologia que permita verificar as incompatibilidades
existentes nas diversas plataformas de acesso, quanto mais
fazer alguma coisa que se veja.
Porque é que eu digo que o mal de Portugal são os ditados
populares? É que tanto eu, como eles, insistimos no
prolongamento do problema. A diferença é que eu faço isso
como recurso e eles fazem-no porque é isso que determinam.
Fosse a tradição outra, fossem os ditados outros, e não só
estaria Francisco Rente mais compatível com os padrões de
estar e agir do português, como já estaria o problema
resolvido.
134 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 259
CHAMADAS PARA AS URGÊNCIAS
Para começar, duas questões. Primeira: as chamadas de
emergência são pagas? Não sei. O 0800 eu tenho a certeza que
é grátis, o 112 não sei. Sei que dá para fazermos uma chamada
quando não temos saldo, mas quem me diz que o dinheiro
dessa chamada não é descontado assim que fazemos um
carregamento? Outra: o que é uma urgência? Quando uma
mulher está com seis meses de gravidez e às quatro da manhã
apetece-lhe gelado de rúcula, como é que o homem se
desenrasca? Isso é urgência, mas para eles não.
Estou-me a desviar do tema. Já volto a isto. Primeiro o
preço. Não interessa se é grátis ou não. O mais certo é ser a
pagar. Isto porque a pensar no novo sistema de filtragem de
chamadas que estão a instalar, ou que já instalaram, vão
precisar de pessoal para analisar a dialéctica, a metafísica, a
síntaxe, etc. E isso sai caro.
Inquéritos para avaliar veracidade e estabelecer prioridades.
É o que se quer fazer e em parte é pelo que eu escrevi há
pouco. Nunca tive que ligar por causa de desejos de uma
mulher grávida, isso cada um que se desenrasque, mas já
liguei para pedir uma grade de minis. Pumba! Queixa crime
em cima! Não é urgência. Não é urgência?! Sete gajos lá em
casa para ver o jogo e só havia uma grade e estava tudo
fechado e não é urgência? O quê? É só para os aleijados?
Um polígrafo por telefone. Fazia mais falta isso. Quantas
vezes é que um operador do 112 terá pensado, “Este tipo 'tá-
me a querer dar a tanga e eu a ver.” Mas ficava-se pelas
pragas. Não tinha como saber quem mentia. Até agora.
“Mas eu já lhe disse! O meu marido caiu e não consegue
respirar!”
“Pois, já disse. E como é que eu sei que isso é verdade?”
Joel G. Gomes 135
“Eu juro por tudo o que é mais sagrado--”
“Bom, leve lá o telefone até ele para eu ouvir a respiração.”
(...)
“Ó minha senhora, eu assim não oiço nada. Importa-se de
parar com esse arfar?”
“É o meu marido!”
“Então diga a ele para parar! Assim não oiço nada!”
“O meu marido não consegue respirar!”
“E ela a dar-lhe com o marido! Oiça lá, esse telemóvel tem
câmara?”
“Isto não é telemóvel, é telefone.”
“Mais essa. Não tem ninguém que tenha telemóvel com
câmara?”
“O meu mais novo tem, mas ele mora longe.”
“Não tem importância, eu espero. Vai ter com ele, pede-lhe
o telemóvel emprestado e filma o seu marido a estrebuchar.
Envia o vídeo por MMS e nós enviamos a ambulância.
“Mas isso assim fica muito caro!”
“Então é porque não é uma coisa assim tão urgente!
Apanhei-a!”
“Mas apanhou o quê? Você é que está apanhado! O meu
marido está prestes a morrer e você está aí com parvoíces?”
“Se é assim deixe-me avisá-la que, caso o seu marido
morra mesmo, agradecia que me ligasse novamente a cancelar
o pedido de ambulância. Agora com as Urgências, as
Maternidades e os SAPs, tudo a fechar, há muita gente à
espera de uma ambulância. Muito obrigado e tenha um resto
de dia bem passado.”
CLIC!
136 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 260
TERCEIRA IDADE DE TERCEIRA
Um estudo concluiu que a generalidade da população prefere
ser trancada numa jaula com gralhas do que andar num
autocarro cheio de velhas eufóricas, acabadinhas de sair dum
concerto do Marco Paulo. Não percebo a viabilidade deste
estudo. Qual é a diferença entre uma situação e outra? Tirando
o facto das gralhas serem bichos mais sossegados, não sei.
Para mim, os velhos que viajam no autocarro, no banco
atrás de nós, são a nossa voz da consciência. Quando os oiço
fico sempre consciente que ainda falta muito para o fim da
viagem.
O pior é que um dia eu também me vou sentar ali. Eu vou-
me sentar no banco de trás. Eu vou ser a voz da consciência de
alguém. É o momento pelo qual todos ansiamos: a reforma!
Ah! Que ansiedade! Deixamos de trabalhar e podemos gozar
os últimos anos de vida!
Mas quais últimos anos? São dias, semanas, no máximo
meses! Não são anos! A não ser que sejamos políticos. Bastam
dois mandatos, dez anos no máximo e lá vem uma reforma
cheia de regalias. Quem trabalha a sério é que sabe. E... "gozar
a reforma"?
Que gozo se pode ter com 60 e tal anos, quase 70? O que se
vê mais por aí são velhos no engate, a andar atrás de gajas;
velhos na má vida, por assim dizer. Os adolescentes passam
por eles e abanam a cabeça.
"Vão mas é trabalhar. Estes velhos só sabem é gozar a
vida."
A reforma não é para os reformados, para os verdadeiros
reformados, aqueles que trabalharam, não é para eles gozarem
a vida; é o último gozo do Estado. Goza com o pessoal
enquanto trabalha e quando o pessoal está com os pés prá
cova, manda-os embora e diz: "Vá, vão curtir a vida!"
Joel G. Gomes 137
Os políticos reformam-se mais cedo. Têm direito à reforma
antecipada. Será que existe uma reforma atrasada? Há pessoas
que começam a trabalhar antes da idade legal; porque não
reformarem-se depois? Porque as há. Há pessoas que não
conseguem largar o trabalho. Podem obrigá-las, podem
processá-las; não adianta, elas continuam.
"Eu ainda consigo."
Não desistem por muito que seja altura de o fazerem.
Eu não tenho que me preocupar com isto. Felizmente.
Ainda sou um rapaz novo, mas hei-de chegar a velho. Tenho
até um pequeno desejo, um último desejo que é viver até aos
100 anos. Não é por nada. É só para ver se a Segurança Social
está preparada para uma situação destas. É que, normalmente,
as pessoas reformam-se entre os 65 e os 70, vivem mais um ou
dois anos e depois morrem.
Quando conseguem chegar aos 70, é um caso raro. Aos 80,
o caso começa a tornar-se preocupante, são feitos os primeiros
contactos com assassinos particulares. Aos 90, começa a haver
escassez de fundos, é feito um orçamento. E aos 100?
Aos 100, imagino-me internado num hospital, ligado a uma
máquina. Algures num gabinete secreto, um membro do
governo dá ordem para avançar. Horas depois, uma equipa de
ninjas, vinda de helicóptero, invade o meu quarto pela janela e
corta-me às fatias com as suas katanas. Zás! Ou isso ou
enfermeiras subornadas injectam-me uma dose tripla de
morfina. Qualquer coisa para aliviar a sobrecarga da
Segurança Social.
138 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 261
INCONGRUÊNCIAS ETNOGEOGRÁFICAS
Jesus era monhê. O que era normal naquela zona. E era normal
também o pessoal consumir a sua ervazinha aromática. Não
admira que vissem tantos milagres naquela época. Imagino
Jesus e os seus apóstolos, tudo ali numa rodinha e Jesus a fazer
o milagre do pão.
"Ena man, tanto pão!"
"Este Jesus é uma moca!"
"Tá-se bem..."
Até aposto que houve um, pelo menos um, apóstolo que
chegou junto de Jesus quando este estava crucificado, para lhe
cravar mortalhas. E Jesus, cheio de mágoa, ainda dorido dos
ferimentos que lhe haviam sido infligidos, terá respondido,
"Vê-me aí no bolso de trás."
O pior que Jesus terá sofrido durante a crucificação deve
ter sido as moscas. Porque ele não se conseguia coçar. E quem
já esteve crucificado, com moscas no nariz, sabe que é uma
tortura dos diabos. Ou, neste caso, dos romanos. E morreu ao
sol, o que sugere que não terá posto protector solar. Assim é
claro que ia morrer. Estava à espera do quê? De um milagre?
Ainda assim, Jesus ser monhé não é grave. Desde que a
Igreja não o admita. O que faltava aí eram padres na rua a
vender flores. Se bem que seria mais estranho se Jesus fosse
dread e os padres tivessem que falar na mensagem divina em
modo freestyle. Imaginem como seria nas missas. Em vez do
padre, haveria um DJ. A marcha nupcial seria feita ao som de
beatbox.
Apesar das evidências, a Igreja não reconhece as origens
etnogeográficas de Jesus. O que é estranho, uma vez que a
figura de Jesus teve várias interpretações ao longo dos séculos.
Os nazis, por exemplo, acreditavam na existência de um Jesus
Joel G. Gomes 139
loiro e de olhos azuis. Era assim que eles o viam, o que não
abona muito a favor do ensino da Geografia na Alemanha. Até
existem alguns quadros de séculos anteriores que retratam
Jesus com esse aspecto. Era a imagem do homem perfeito:
alto, loiro, de olhos azuis. Todos os que não fossem assim,
eram impuros e deviam ser mortos. Principalmente os judeus.
Os nazis, como toda a gente sabe, eram liderados por um
senhor chamado Adolfo, Hitler para os historiadores, que não
era judeu, mas também não era exactamente alto, loiro e de
olhos azuis. Deve ter sido por isso que ele se matou.
No dia do seu aniversário, a Eva Braun, não confundir com
as depiladoras nem com as batedeiras, chega-se ao pé dele e
diz, "Tens a cara cheia de pontos negros. Vou-te oferecer um
creme para pores nisso."
E ele, que era o líder do Terceiro Reich, disse, "Não.
Homem que é homem não usa creme."
"Então, vou-te oferecer um espelho."
E assim foi. Eva ofereceu-lhe um espelho e a primeira vez
que Hitler se viu ao espelho percebeu que não era loiro e...
bang!
140 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 262
OS ANOS PASSAM E...
NETOS E AVÓS
Não importa a idade que temos, para os avós, um neto tem
sempre dois anos. Não passa daí. Pode já ser casado. Ser
doutorado em engenharia astrofísica. Os avós continuam
sempre a tratá-lo como se fosse um atrasado mental. E, por
causa disso, continuam a causar embaraços nas piores
situações.
Um homem feito, no fim da licenciatura, que viva com os
avós, leva a namorada a casa para conhecer os pais e a avó
aparece com um par de cuecas sujas a perguntar, “Estas cuecas
são tuas?”
Fica logo tudo estragado. Não interessa se as cuecas são ou
não são dele. Se forem é mau. E mesmo que não sejam, é mau
na mesma. Porque não há como voltar atrás. E não há nada
que se possa dizer.
Imaginem que ele está numa situação delicada. Mas qual?
Não existem situações indelicadas para uma avó. As avós são
como os MIB. Entram em todo o lado. Atrevam-se a dizer
“Não pode entrar” a uma avó e vão ver a sorte que vos calha.
Pode acontecer por exemplo, como já deve acontecido a
muita gente, a avó entrar no quarto, quando se está a tentar
aumentar a taxa de natalidade no nosso país, e dizer:
“Não te esqueças da televisão acesa como é teu hábito.
Olha que eu tenho mais que fazer do que vir aqui às quatro da
manhã para apagar a apagar a televisão.”
Tenta-se manter a calma, só que não há muito por onde
escolher. Porque, se não lhe respondem, ela começa logo,
“Não me ouves a falar contigo?”
Por outro lado, se lhe respondem, aí é que tá tudo
Joel G. Gomes 141
estragado. Basta dizerem uma coisinha simples como, “Avó,
importa-se? Eu e a minha mulher estamos a tentar fazer um
filho.”
“Pronto. Não posso dizer nada que fica todo enxonfrado!”
E depois sai. Mas continua-se a ouvir em toda a casa.
AS IDOSAS DE SATÃ
Irritam-me aquelas velhas beatas que me aparecem à frente
para impigir a porcaria do Sentinela. Detesto. Nada contra a
religião, nada contra a revista, mas os fiéis... Custa muito tirar
um curso de técnica de vendas? Eu acho que não. E por
enquanto são só essas. Eu quero ver se isto alastra a outros
credos. Tipo, pessoal satânico. Aquilo não é só malta nova.
Também há velhos lá. O pessoal que é marado para entrar lá,
fica lá pra sempre; não se cura assim muito facilmente.
Tenho medo do dia em que me apareça uma velha à frente
com uma t-shirt de Cradle a dizer: "O sangue! O sangue!"
Mais uma vez, cá temos o problema da técnica de venda.
E esta da roupa é outra. Habitualmente, eu visto-me de
preto. Quantas vezes é que não há um palhaço qualquer que se
chega ao pé de mim e pergunta: "És satânico?" ou “És
gótico?” É sempre! E no entanto, nunca vi ninguém a
perguntar isso a uma dessas velhas que se vestem de preto.
Porquê?
Sabem o que é que respondo quando me perguntam porque
é que me visto de preto? É porque não se notam tanto as
manchas de sangue.
Se eu me vestisse de branco, será que me interpelariam
com dúvidas do género, "Doutor, não me estou a sentir bem.
Será que me podia passar qualquer coisa?"
Roupa é apenas roupa. Eu sempre que vejo um gajo de
calças pretas e camisa branca, não me aproximo dele e peço
um café e um copo de água, só porque parece um empregado
142 PROTUBERÂNCIA – Volume III
de café. Pode não ser. Roupa é apenas roupa.
Joel G. Gomes 143
TERMINUS 263
ANDAR A PÉ
Porque é que dizemos "eu, pessoalmente" quando estamos a
falar de nós próprios? Será que o facto de se estar a falar na
primeira pessoa não chega para se perceber que é uma opinião
pessoal? Não se diz "ele, pessoalmente" ou "tu, pessoalmente".
O "pessoalmente" é sempre eu. E eu pessoalmente acho isto
estúpido.
Como é que eu lido com isto? Praticando desporto. Ou
melhor, andando a pé. Não é um desporto, mas também cansa.
E parece fácil, só que não é. Tirar a carta e andar de carro
daqui para ali, qualquer um faz, agora andar a pé... é preciso
saber. Vê-se só por isto: um gajo demora quase um ano para
aprender a andar a pé. Quanto tempo é que demora para
aprender a andar de carro?
E andar a pé não cria vícios. Eu vejo o que acontece aos
condutores quando ficam proibidos de conduzir. Geralmente
são aqueles que viajam nos lugares da frente dos autocarros e
vão a viagem toda a pedir ao motorista.
"Deixe-me conduzir só um bocadinho, vá lá! Eu sei o
caminho!"
É a ressaca. A malta que anda a pé não sofre disso. Outra
coisa boa de andar a pé: costuma ser grátis, não quer dizer que
seja sempre. Há quem goste de pagar 25 euros para subir e
descer degraus ao som de música ritmada. “Desde que
comecei que me sinto muito mais leve,” diz o cachalote que
vai do segundo andar para o rés-do-chão de elevador e depois
de cada aula repõe as calorias perdidas com uma injecção de
calda de açúcar.
Quem foi a alminha que chamou ao step desporto? Aquilo é
subir e descer um degrau. Mais nada. Passadeira rolantes.
Andar devagar, andar depressa. É preciso gastar dinheiro
nisso?
144 PROTUBERÂNCIA – Volume III
O tempo que uma pessoa gasta de casa até ao ginásio, a
subir e descer as escadas, quando finalmente chega lá já não
precisa de treinar mais.
Eu vejo as coisas da seguinte forma: se for possível
organizar um campeonato, é desporto; senão é perda de tempo
e dinheiro. Imagino como será um campeonato de step. Nem
ponho a hipótese de não existir. É uma ideia estúpida, logo
existe. O que é que avaliam? São pessoas a andar. Categorias:
coxos, mutilados e pessoal com duas pernas. Seria uma
competição interessante de se ver. Bizarra, mas interessante.
Joel G. Gomes 145
TERMINUS 264
CHAVÕES DE MORTE E REENCARNAÇÃO
Bom dia, senhora algo forte que está a beber o cafezinho com
adoçante depois de ter emborcado um mil folhas e uma bola de
berlim. Os outros também são bonitos, mas precisam de cortar
os pelos do nariz. Vamos falar de morte? Vamos!
Há expressões que dá gosto ouvir sempre que alguém
morre. Uma delas é “Tinha uma saúde de ferro.” É gira,
porque quem a costuma ouvir mais são as pessoas que nunca
vão ao médico. Não é porque não precisem, é porque não
querem. Não querem, não vão e as pessoas todas pensam que é
uma pessoa muito saudável. E tem um tumor do tamanho do
pâncreas a lixá-lo todo por dentro.
Mas faz bem em não ir ao médico. Se for ao médico, o que
é que acontece? “O senhor está muito doente! Tem de ficar
acamado, a tomar estes vinte e sete comprimidos, dos quais só
três fazem falta, e ficar assim até morrer daqui a dois meses!”
Não indo ao médico, talvez morra num mês, talvez dois, talvez
três. Mas ao menos curte a vida. E é isso que interessa.
Outra expressão muito comum e também muita gira é esta:
“Coitado. Ao menos morreu depressa.” Quantas vezes é que
ouviram isto? O que é que significa? Nada. Morreu depressa.
Há aqueles que morrem devagar. Aquele morreu depressa. Foi
de quê? Jacto? TGV?
Faz-me confusão isto. A morte não é rápida, não é lenta. É.
A pessoa está viva e depois está morta. Não há meio termo.
“Tem a ver com o tempo que demoramos a morrer.”
Nós começamos a morrer a partir do momento em que
nascemos. Vejam a comparação. Um recém-nascido é jogado
para o lixo, morre à fome ao fim de um dia, talvez dois. Um
velho de 97 anos leva um balázio na cabeça e tem morte quase
imediata. Qual deles é que teve uma morte lenta?
146 PROTUBERÂNCIA – Volume III
Há quem diga que, depois da morte, vem a reencarnação.
Segundo algumas culturas, a espécie em que nós reencarnamos
depende dos actos que fizemos na vida anterior. Se formos
ladrões, poderemos reencarnar como políticos. Se formos
mulheres, na próxima vida provavelmente seremos um creme
hidratante à base de extractos naturais de plantas.
Voltando ao exemplo de há pouco, o que é que acontecerá
quando se morre à nascença? Será que reencarnamos num
órgão interno? Num germe?
Há quem diga que nestes casos, já que a pessoa não fez
nada de mal, é considerada uma pessoa pura e vai para o
Paraíso. Eu digo que esta apatia aos problemas da sociedade
faz deles uns parasitas sociais. Se eles são puros por não
fazerem nada na vida, o que é que podemos dizer das centenas
de pessoas que vivem à custa do trabalho dos outros? São os
nossos anjos da guarda? Pessoalmente prefiro a reencarnação à
ressurreição. Sempre dá para fugir ao Fisco.
Joel G. Gomes 147
TERMINUS 265
A OPÇÃO E A INDECISÃO
Como não militante ou simpatizante socialista possuo as
valências necessárias para comentar a luta (renhida?) que
decorre entre os dois candidatos principais, António José
Seguro e Francisco Assis, ao cargo de secretário-geral do PS.
Declaro aqui publicamente a minha não-militância e a minha
não-simpatia, para que não me acusem de denegrir um
candidato em relação ao outro. A minha intenção é denegrir os
dois. Comecemos por Francisco Assis.
Uma coisa que me irrita na política e nos políticos não é
tanto o que eles fazem ou dizem, mas o que utilizam para
justificar essas acções. Francisco Assis fez parte do governo
que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O
diploma, de acordo com as partes interessadas, ficou
incompleto, porque não abordou a questão da adopção.
Enquanto governante, a opinião de Assis era a opinião do
Governo, ou vice-versa; enquanto candidato, já pensa de
maneira diferente. Diz ele que “Durante muito tempo tive
dúvidas [sobre a adopção de crianças por casais do mesmo
sexo], mas neste momento sou favorável, porque percebi que
essas dúvidas se alicerçavam no mais puro preconceito.”
Naturalmente que Assis tem todo o direito de mudar de
opinião. A questão é... porque é que muda? Será uma mudança
genuína ou será calculada? A causa gay, chamemos-lhe assim,
era um dos galões do Bloco de Esquerda e o PS apoderou-se
disso. Tirou ao Bloco uma das suas causas e fez aquilo que
tinha poder para fazer. Não fez tudo. Preferiu deixar um pouco
para mais tarde.
A pergunta que eu faço é: se os skinheads estivessem em
maior número na nossa sociedade, será que Francisco Assis
estaria a dizer “Essa escória da estrangeirada, se fosse eu a
148 PROTUBERÂNCIA – Volume III
mandar, era tudo corrido lá pra terra deles.” Até que ponto ele
expressa a sua opinião, até que ponto ele joga com simpatias
alheias?
Sobre António José Seguro, estou à espera que se decida,
duma vez por todas, se a regionalização é uma prioridade ou
não. Parece que, em algumas terras, ao almoço, é um
compromisso inadiável; noutras, ao jantar, deixa de ser uma
prioridade. Dava-me jeito saber em que é que ficamos.
É fácil escrever um artigo tendo por base uma mudança de
opinião de um político. Contudo, se o político for António José
Seguro, corre-se o risco de ele mudar de opinião entretanto. Se
a mudança ocorrer a meio do artigo é menos grave. Pode ser
que, chegando ao fim, ele tenha retornado à opinião anterior.
Ao contrário de Assis que assume as reinvidicações duma
classe como sendo as suas, Seguro anda de terra em terra,
como um verdadeiro arauto das suas exigências regionais.
“Vocês aqui são contra ou favor da regionalização?”, dirá num
discurso hipotético. E as pessoas, pensando que é uma
pergunta de retórica, do género “Vocês estão aqui?”,
respondem “Sim!”. Ou não, se forem contra. Seguro fica
seguro da posição popular e opina em conformidade.
Joel G. Gomes 149
TERMINUS 266
A CARTA
Quando algo fora do comum é noticiado, é habitual as pessoas
mais perto do acontecimento, mesmo não fazendo parte dele,
manifestarem-se publicamente com expressões do calibre de
“Eu já estava mesmo ver.”, “Ainda no outro dia lhe disse.” ou
“Já cá andava desconfiado.” Esta emissão de opinião que não
diz nada em concreto faz parte do ser humano e, acima de
tudo, do ser português. O fenómeno torna-se tão ou mais
curioso quando aplicado a algo que... não constitui qualquer
surpresa.
Na minha formação básica de jornalista, aprendi que
noticiar é relatar os factos, tal e qual eles acontecem. Há, no
entanto, alguns critérios essenciais a serem seguidos, tais
como a proximidade, a actualidade e a relevância. Na época
que se avizinha, estou certo de que não faltarão notícias em
que nenhum destes critérios é observado.
Dou-vos exemplos. Uma mulher cair do sexto andar e
morrer não é notícia. Seria notícia ela cair do sexto andar e
sobreviver sem ferimentos. Ou cair do sexto andar e a meio da
queda abrir-se um portal e ela passar para outra dimensão. Ou
levantar voo. Isto seria notícia, a causa conhecida procedida
por um efeito inesperado.
Um outro exemplo tem que ver com uma carta divulgada
publicamente. A carta, assinada por notáveis socialistas,
incluíndo ex-ministros do governo de Sócrates, faz saber das
coisas que correram mal no governo que ocuparam.
Naturalmente que isto não é notícia porque já toda a gente
sabia que as coisas não estavam a correr bem.
É uma atitude que, por princípio não lhes fica bem, mas faz
parte de ser político. Quando era secretário-geral, estava tudo
bem, estavam todos bem com ele; assim que sai, começam
150 PROTUBERÂNCIA – Volume III
logo a falar mal. É um pouco mesquinho, talvez. Todavia,
consigo entender a posição destes ex-governantes e apoiantes
socráticos. É difícil estar no centro dos acontecimentos e
descrevê-los de forma objectiva; mais difícil ainda se torna
quando somos parte interveniente nos mesmos. O ex-ministro
da Economia, Vieira da Silva, ou a ex-ministra do Trabalho,
Helena André, por exemplo, estavam demasiado próximos
para pensar e falar livremente.
Tempo e distância. Por vezes é tudo o que precisamos para
pôr as coisas em perspectiva. É o que nos permite falar dos
acontecimentos com descontração, avaliar o que fizemos bem
e o que fizemos mal.É o que nos permite fazer um balanço
apurado e isento de especulação.
Mas admito que teria sido bem mais interessante, quiçá,
mais produtivo, esta missiva ter sido escrita e divulgada há
mais tempo. Porventura, antes disto tudo ter descambado da
maneira como descambou. No tempo do conde D. Henrique,
por exemplo.
Joel G. Gomes 151
TERMINUS 267
O NOME DIZ TUDO
Embora seja uma cidade que aprecio muito e que conheço
relativamente bem, não sou lisboeta. Como tal, apesar de não
ficar alheio às mudanças que ocorrem na cidade, as mesmas
não me deixam tão afectado como deixam aos seus residentes.
Destas mudanças, aquelas que incomodam mais as pessoas
não são aquelas inesperadas, são aquelas que, apesar de
expectáveis, se acredita nunca virem a acontecer.
No programa do governo, perdão, no memorando da
Troika, a redução do número de freguesias era uma das
medidas mais polémicas. Assim como praticamente tudo o
resto no memorando, esta é mais uma que se sabia inevitável,
embora houvesse a esperança de que não passasse do papel.
Não foi o caso.
A operação de junção, reformulação e eliminação já
começou e Lisboa parece ter sido o concelho escolhido para os
primeiros ensaios. De 53 passará ter 24 freguesias. Menos de
metade. Será criada uma freguesia nova chamada Parque das
Nações. Alguém quer adivinhar onde será? As doze freguesias
da Baixa Lisboeta juntam-se na freguesia de Santa Maria
Maior. E as marchas, senhores? E as marchas? A Mouraria e
Alfama no mesmo desfile? Vai haver porrada na certa.
Esta opção de agrupar freguesias e atribuir um novo nome,
sem ter em conta as suas diferenças culturais e territoriais é
insuficiente. Na minha opinião, faria mais sentido agrupar, não
só a freguesia, mas também o nome. Por exemplo, no concelho
da Moita, onde resido, mantinha-se a freguesia sede de
concelho e juntavam-se as restantes. Passar-se-ia então a ter
Sarilhos do Gaio-Rosário e Vale de Alhos da Banheira. No
Barreiro, terra que me viu nascer, o mesmo princípio.
Mantinha-se a sede de concelho e agrupavam-se as restantes
152 PROTUBERÂNCIA – Volume III
freguesias, ficando com Alto de Coina do Lavradio, Verderena
de Santo André da Charneca de Palhais.
Outra opção, em vez de nomes compostos, seria recorrer à
junção. Recorrerei de novo aos concelhos da Moita e Barreiro
para exemplificar. Na Moita teríamos as freguesias de Moita,
Saráiorio e Valhoseira; no Barreiro, o Barreiro, Altoinadio e
Versanecalhais. Com o tempo as pessoa habituar-se-iam e
daqui a tempos estaríamos a ouvir frases do género, “Sou
versanecalhaiense com muito gosto!” E o senhor Bento? Mora
na Valhoseira desde pequeno e todos os dias vai trabalhar para
Altoinadio.
Seria um processo capaz de suscitar tumultos, mas que
daria nomes bem mais interessantes do que aqueles que
resultaram da reunião camarária em Lisboa. O PCP votou
contra, o PSD e o CDS-PP abstiveram-se. Há quem diga que
foi por discordarem da medida. Eu digo que foi por causa dos
nomes. Morar em Santa Maria Maior é um pouco parvo, morar
em Alfamaria já é um pouco menos.
Joel G. Gomes 153
TERMINUS 268
MÉRITO E COPIANÇO
Depois dos juízes foi agora a vez dos pretendentes a
advogados serem apanhados a copiar em exames. Este tipo de
situação demonstra bem o estado do ensino em Portugal.
Estamos a falar de pessoas com, pelo menos, quinze anos de
estudos. Quinze anos! E ainda não aprenderam a copiar sem
serem apanhados? Isto deixa-me seriamente preocupado.
Como cidadão não me interessa saber se determinado juiz ou
advogado cabularam para chegarem onde chegarão. Prefiro
não saber. Prefiro acreditar que sabem o que estão ali a fazer,
que chegaram ali por mérito próprio. Se foram apanhados em
falta, castigue-se. Se não, aprove-se.
Estenda-se isto a outras profissões. Quando vamos ao
médico queremos acreditar que estamos a ser atendidos por
alguém que trabalhou para chegar ali. Saber que o sujeito de
branco que nos está a cobrar 60€ pela consulta desconhece a
diferença entre a omoplata e a tíbia é coisa para nos deixar
inquietos.
Mas existe um outro aspecto que me inquieta ainda mais no
caso da justiça e seus elementos. Em Portugal pode não existir
– tanto quanto sei – a figura do precedente jurídico, mas isso
não impede que seja aqui criado um precedente. Já foi a vez
dos juízes e dos advogados; pelo andar da carruagem, a seguir
será a vez dos réus. Todos nós somos inocentes, até prova em
contrário, logo todos nós somos passíveis de sermos acusados.
Como tal, é preciso estar à altura das expectativas.
Como se sentiriam os advogados e o juiz se soubessem que
o réu que está a ser julgado cabulou para chegar ali? Estou
certo de que não iriam gostar. Para evitar esse tipo de
constrangimentos, resolvi enunciar algumas dicas ao futuros
candidatos a exame da Ordem dos Réus.
1 – Não ser apanhado a copiar. Se for, dar uma carga de
154 PROTUBERÂNCIA – Volume III
porrada ao examinador, habilitando-se assim à primeira
acusação por agressão.
2 – Tentar desviar as atenções do examinador para outra
situação. Uma bomba de pequena alcance colocada
previamente num contentor de lixo fora da sala costuma
chegar.
3 – Quando não souber uma resposta, aposte com o
examinador em como ele também não sabe. Aposte também
em como é capaz de fazer o exame sem copiar se ele
abandonar a sala durante vinte minutos.
Enfim, são dicas básicas, aplicáveis a qualquer exame.
Espero que vos sirvam de alguma coisa.
Joel G. Gomes 155
TERMINUS 269
PRESUNÇÃO DE CULPABILIDADE
A vida às vezes surpreende-nos. Tão habituados estamos a que
a classe política não faça nada que ficamos sem reacção
perante certas situações. Em Oliveira do Bairro um vereador
resolveu suspender o seu mandato e pediu para ser constituído
arguido. Foi isso mesmo que leu. Um autarca foi acusado de
falta de transparência na atribuição de fundos e a autarquia
resolveu não avançar com queixa criminal. E o que é que este
senhor fez? Demonstrou o maior desrespeito pelo
funcionamento das instituições e democráticas e pediu para ser
ser julgado! Não se compreende esta atitude. E além de não se
compreender não é aceitável.
Quando um vereador é acusado de desviar fundos, a atitude
correcta é negar. Eu sei que esta não é a opção mais certa do
ponto de vista legal ou moral, mas é sem dúvida o melhor a
fazer em termos sociais. Fomos tão habituados a falcatruas e a
negociatas que é impossível prever o efeito que a idoneidade
teria nas nossas psiques.
Não me entendam mal. Eu não sou contra a condenação do
peculato. Há, todavia, valores mais altos a serem respeitados.
A começar pela difamação. Vamos supor que este vereador,
acusado anonimamente de desviar fundos, vai a julgamento e é
dado como inocente de todas as acusações. A sua inocência é
demonstrada de forma tão efectiva que até o procurador
acredita nele. Pensem na pessoa mais céptica que conheçam;
até ela acreditará na inocência deste vereador.
Isto é tudo muito bonito na ficção. Na realidade há outras
problemáticas a ter em consideração. O que é que resta aos
populares para falarem na praça pública? Não vão, certamente,
falar da inocência do senhor. Nós, povo, precisamos da
suspeita, da calúnia. Queremos algo que sustente o acto de
falar mal. Não que isto seja um elemento imprescindível,
156 PROTUBERÂNCIA – Volume III
atenção.
Este caso é localizado, mas temo que se possa alastrar ao
país. E se isso acontecer, o que será de nós? O que será das
Fátimas, dos Isaltinos, dos Avelinos, dos Valentins e de tantos
outros exemplos menos conhecidos? Porque o problema não
seria só ficarmos sem alvos para caluniar, seria ficarmos
também sem bodes expiatórios. Podemos não assumi-lo, mas é
impossível negarmos que a classe política sustenta as nossas
próprias prevaricações.
Fugimos aos impostos porque eles também o fazem,
cometemos algumas infracções porque eles também o fazem.
Criticamo-los publicamente por fazerem em grande escala
aquilo que nós fazemos numa escala mais pequena. Quem é
que nunca levou uma caneta da empresa para casa, por
exemplo? Quem é que nunca tirou fotocópias no escritório de
graça? A classe política serve para nos absolver a consciência
desses irregularidades. É o que nos permite dizer, “Fiquei a
dever 2€ no café, mas aquele lá outro lá não sei donde ficou a
dever 2 milhões.” (Não referi nomes, nem lugares, para não ter
chatices.) Se os políticos começam a ser honestos, estaremos à
altura de seguir-lhes o exemplo?
Joel G. Gomes 157
TERMINUS 270
MENOS TRANSPARÊNCIA, POR FAVOR
Um motorista da Secretaria de Estado da Cultura recebe 1866
euros mensais. Um especialista no Ministério do Ambiente
recebe 3069 euros mensais. Um adjunto desse mesmo
especialista recebe o mesmo valor. Uma adjunta, novamente
na Secretaria de Estado da Cultura, recebe 4724 euros
mensais.
Estas informações foram retiradas do site criado pelo
governo de Passos Coelho para tornar o mais transparente
possível as nomeações feitas pelo executivo. Em ocasiões
prévias abordei o problema da idoneidade política. Escrevi
então que a desonestidade de alguns elementos da classe
política é o que nos inibe a consciência das pequenas infrações
que cometemos. Por outras palavras, não nos sentimos
culpados por não declarar cem euros às Finanças, porque de
certeza que há um político que meteu cem mil ao bolso.
No caso das nomeações, a situação torna-se bastante mais
grave. É, por assim dizer, o fim dum sonho. Mais trágico ainda
que descobrir que não existe Pai Natal, coelho da Páscoa, fada
dos dentes ou senhores invisíveis no céu é perceber que não
vale a pena estudar para ser doutor quando se ganha mais em
ser chauffeur.
Felizmente, temos também os especialistas. O especialista
está para a política como o trolha está para a obra. Um
especialista está apto a desempenhar funções muito
específicas, ou seja, nenhumas. Qualquer pessoa é especialista
na sua profissão. Pode fazer bem ou mal, mas é especialista
nisso. A diferença entre essa pessoa e um especialista é que a
primeira não precisa de referir isso, enquanto que a segunda
refere para que fique bem claro que “a sua especialidade não é
aquela”.
Outra coisa que também me alivia é saber que há limites
158 PROTUBERÂNCIA – Volume III
para toda esta transparência. No site das nomeações estão lá
todos os nomeados e seus vencimentos. Com algumas
excepções, claro. No Gabinete do Secretário de Estado da
Solidariedade e Segurança Social sabemos que existe um
assessor técnico que recebe o mesmo que recebia no seu cargo
anterior nos CTT. Não sabemos é quanto. A mesma coisa para
o Chefe de Gabinete do Ministério da Solidariedade e
Segurança Social. Sabemos que recebe o mesmo que recebia
na empresa HS – Consultores de Gestão, as. Falta saber é
quanto. De certeza que há mais casos além destes e ainda bem.
Pior que não acabarem com o despesismo é não o esconderem.
Joel G. Gomes 159
TERMINUS 271
NOTÍCIAS DE AGOSTO
Agosto é e será sempre a época das notícias parvas. Vamos a
elas.
Numa entrevista à revista da Ordem dos Advogados, D.
José Policarpo afirmou que não existe impedimento teológico
à ordenação das mulheres. Em audiência com o secretário de
Estado do Vaticano, D. Policarpo esclareceu que, quando falou
em ordenar as mulheres, referia-se a ordená-las por ordem
alfabética e não por ordem de idade, como havia sido
divulgado previamente.
Já está a funcionar no Dubai o primeiro spa automóvel. Por
apenas onze mil euros, Ferraris, Lamborghinis e outros
calhambeques recebem uma lavagem em condições. O tempo
para cada lavagem ronda uma semana e serve-se dos mais
recentes avanços na área da nanotecnologia. O serviço vem ao
encontro das necessidades de todos aqueles que se queixavam
da sujidade ao nível subatómico.
Prevê-se também para breve a abertura do primeiro salão
de massagem para automóveis, em vez do tradicional bate-
chapas. Um serviço que vem ao encontro de todos aqueles que
consideram a existência de atrito prejudicial à durabilidade do
veículo.
Continuando a falar de gente pobre, uma garrafa de vinho
branco de duzentos anos foi vendido por 85 453,50€, entrando
assim para o livro do Guiness. Christian Vanneque pediu
desculpa pelo nome e disse estar ansioso por abrir a garrafa.
“O último que comprei, gastei só trinta mil euros e era uma
zurrapa autêntica. A ver se este é melhor.”
Ainda nas antiguidades, depois de ter sido mãe aos 66, a
romena Adriana Iliescu quer repetir a proeza aos 72. Diz que
se sente “como uma jovem”. Nos seus projectos futuros inclui-
se fumar um charro, ir a um concerto dos Bon Jovi ou pedir
160 PROTUBERÂNCIA – Volume III
um crédito à habitação.
Espaço agora para a justiça.
Os guardas prisionais da cadeia de Sintra passaram a
dormir nos carros porque a camarata não possui condições.
Parte do telhado tem telhas de amianto, não existe ventilação
no quarto e a casa de banho está completamente degradada. Já
chegaram a aparecer pulgas na sala onde os guardas tomam as
suas refeições, mas nem isso foi suficiente para se mandar
fazer uma desinfesta--
As minhas desculpas. Parece que peguei numa notícia de
finais do século XIX por engano. Passemos à ciência.
Um estudo publicado no Journal of Thoracic Oncology
afirma que muitos fumadores de longa duração conseguem
deixar de fumar com facilidade antes de lhes ser
diagonosticado cancro do pulmão. Fica assim provado que o
tabaco ajuda a prever o futuro. O estudo não quantifica
quantos fumadores conseguem desistir depois de lhes ser
diagonosticada essa doença.
De acordo com um inquérito da construtora de pneus
Goodyear sobre comportamentos impróprios ao volante,
descobriu-se que 43% dos condutores portugueses falam ao
telemóvel, 63% mexem no rádio, 45% ajustam a temperatura e
56% afirmam nunca teerem ingerido álcool antes de conduzir.
Ainda de acordo com este estudo, descobriu-se que 57% dos
condutores portugueses não possuem telemóvel, 37% não sabe
mexer no rádio, 55% não sabe regular a temperatura e 44%
está neste momento a beber enquanto conduz.
Num outro estudo, cientistas descobriram que, nos últimos
trinta mil anos, o cérebro encolheu cerca de 10%, passando de
1600 para 1359 centímetros cúbicos.
Terminamos as notícias de hoje com os parabéns à menina
Silly Season, que comemora a bonita idade de trinta mil anos,
e algumas sugestões de leitura para aqueles que têm tempo
para isso.
Joel G. Gomes 161
1. NOVO ESTUDO PARA PONTE CASAL DO MARCO-MOSCAVIDE
2. PORTUGAL PRECISA DE MAIS SUBMARINOS! 3. TUDO O QUE PRECISA SABER SOBRE TUDO 4. APRENDA A NÃO FICAR HISTÉRICO À TOA 5. EXERCÍCIOS PARA FAZER DEITADO NO SOFÁ 6. MIL E UMA DICAS PARA A BISCA LAMBIDA 7. CANTIGAS DE EMBALAR PRISIONEIROS NO
CORREDOR DA MORTE 8. À VOLTA DO MUNDO EM PÉ COXINHO 9. DEUS PRECISA DE DINHEIRO 10. CARTOONS DE MAOMÉ QUE NÃO OFENDEM
NINGUÉM 11. COMO ENRIQUECER URÂNIO NA SUA CAVE 12. O MEU ESCROTO É BONITO DE SE VER: MEMÓRIAS
DE UM EXIBICIONISTA 13. ANFETAMINAS: FAÇA VOCÊ MESMO 14. PEIXE BOM PARA COMER CRUDE BUCHAS E
ANILHAS: UMA INTRODUÇÃO AO COMÉRCIO DE FERRAGENS
15. LEITURA PARA TANSOS 16. O QUE FOI FEITO DE MIM? : A HISTÓRIA DE UM
MECÂNICO AUTOMÓVEL CONTADA NA SEGUNDA PESSOA
162 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 272
ADOECER EM PÚBLICO
Um médico oftalmologista foi despedido do Hospital Sousa
Martins. O Conselho de Administração do referido hospital
acusou o médico de faltas injustificadas e obrigou-o a repor
todos os salários recebidos desde o início da sua baixa médica,
em Junho de 2010. Como justificação serviu-se do argumento
“se está doente para trabalhar no público, também tem de estar
doente para trabalhar no privado”. É caso para perguntar: mas
que porcaria é esta?! Sempre a falar que nunca se faz nada,
que somos uma cambada de calões. Este senhor está doente e,
mesmo assim, vai trabalhar. E o que é que lhe fazem?
Castigam-no. Belo exemplo. Reparem que não estamos a falar
dum profissional que recebe pouco por mês. Um médico
recebe bem o suficiente para poder ficar em casa sem fazer
nada. Além disso, é qualificado para saber até que ponto ir
trabalhar pode ser prejudicial para a sua saúde. Fazê-lo,
mesmo ciente destas condições, é um exemplo de integridade.
Com um percurso profissional equilibrado entre o público e
o privado estou em condições de defender este senhor.
Acredito que muitos não saibam, e que mais ainda me
critiquem por revelar isto, mas a verdade é que ficar doente no
público não tem nada a ver com ficar doente no privado.
Um funcionário público entra em depressão. Fala com os
seus superiores. É feita uma avaliação do seu estado
psicológico e decidem que o melhor a fazer é ir para casa até
ficar bom. O tempo de permanência é equivalente ao cargo
que ocupe ou ao número de anos de militância do partido em
maioria. Um funcionário privado entra em depressão. Deixa-se
estar calado. Ou fala com os seus superiores. E quando fala, é
feita uma avaliação ao seu desempenho para se perceber até
Joel G. Gomes 163
que ponto aquele funcionário é indispensável. Pode acontecer,
também, fingirem que não se passa nada, e deixar o
funcionário entrar em colapso até ao ponto em que seja
justificado despedi-lo.
Este médico da Guarda adoeceu no público, mas continuou
a trabalhar no privado por isto. Não foi por dinheiro. Foi por
receio. Vamos a um consulta do médico de família no Centro
de Saúde e ele não aparece porque teve uma emergência
familiar. Partimos para o seu consultório privado e lá está ele a
atender um sujeito que, a julgar pelo tamanho, deve comer que
nem uma família inteira.
Durante um ano este médico esteve doente e, mesmo
assim, ia todos os dias trabalhar. Admire-se o sacrifício e tire-
se daqui uma lição. Se não fosse pelo sacrifício destes
funcionários públicos, o sector privado seria uma miséria.
164 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 273
QUINZE MINUTOS
Quando tinha 15, 16 anos costumava gravar rábulas com
amigos e colegas de escola. Cada um de nós fazia figura de
parvo, fosse através do que dizia ou do que vestia para dar
corpo aos personagens a que dávamos vida. Compreendo, por
isso, o fascínio que os jovens de hoje em dia têm com a
Internet e com o Youtube em particular. Tal como eu há quinze
anos, também eles hoje fazem figura de parvo e gravam isso
para a posteridade. O que distingue uma geração de outra, no
entanto, é a partilha. Nós gravávamos para nós, para o grupo e
amigos próximos do grupo; eles gravam para o mundo.
Naquele tempo não havia Internet como há hoje. Eram
tempos em que um download de 50 megas era coisa para levar
seis meses ou mais. Mas só não ajuda a explicar a propagação
do fenómeno. Podia não haver partilha online, mas partilha
offline sempre houve. Quantos de nós é que não levavam o
vídeo para a casa de amigos para gravar filmes do clube de
vídeo? Quantos de nós não gravávamos vinis para cassete e
depois fazíamos uma cópia num deck duplo? A partilha
sempre existiu. A razão de ser é que mudou.
O nosso processo era elaborado, baseava-se num guião e
havia preparação, o dos jovens de hoje é espontâneo. Pegam
numa câmara e vão, por assim dizer (ou mesmo literalmente),
para a estrada. Nós procurávamos a diversão e tentávamos
manter a coisa em privado. Não queríamos gente de fora a ver.
Os jovens de hoje apenas procuram a fama temporária, mesmo
que isso lhes custe a vida. Existem excepções, claro. Tal como
no meu tempo, também hoje existem jovens que procuram
gravar vídeos de humor de forma mais ou menos séria.
Infelizmente, não são esses que fazem manchete.
Jovens a morrer enquanto executam façanhas para as quais
Joel G. Gomes 165
não estão minimamente preparados sempre houve. Sempre
haverá. O problema é que muitos dos jovens de hoje cometem
esses actos motivados pela popularidade que a Internet gera. E
eu não aprecio isso. Parece-me injusto acusar a Internet de ser
responsável quando situações semelhantes sempre ocorreram.
A busca pela fama faz parte do ser humano, o bom senso de
cada um é que deve estabelecer uma linha.
Uma vez contaram-me a história de um fotógrafo famoso
que resolveu saltar dum prédio e fotografar a sua própria
queda. Ele não sobreviveu, mas a foto ficou para a História
como símbolo de determinação. No caso dele não era o risco
que o motivava, era o registo dum momento único. Ele sabia
que ia morrer e estava disposto a isso. A sua última fotografia
é mundialmente famosa, mas daqui por uns anos quem se
lembrará dos jovens que entopem o Youtube com vídeos que
os deixaram marcados para a vida?
166 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 274
BOM PORTUGUÊS
Sou só eu que ando lixado com o “Bom Português”? Até há
coisa de meses atrás, antes de se começarem a preocupar com
o Acordo Ortográfico, era uma rubrica interessante. Não só
dava a conhecer palavras pouco utilizadas da nossa língua,
como denunciava erros comuns do dia a dia. Sendo o
Português, tal como a Matemática, uma das disciplinas base da
aprendizagem escolar – e também uma das mais maltratadas –
qualquer programa que se prestasse à correcção da ortografia e
da gramática seria bem vindo. Tudo estava bem... até
descambar.
De rubrica didáctica e curiosa, o “Bom Português” passou a
manual do enfado. Eu percebo a necessidade de explicar às
pessoas como é que o Acordo Ortográfico funciona. Não que
isso as vá ensinar a escrever bem, mas enfim... Compreendo a
intenção e apoio-a. Mas é preciso ir tanto ao pormenor? Posso
não concordar com o Acordo Ortográfico, mas percebo as suas
regras principais. Palavras com consoante muda (óptimo,
director, Egipto) passam a ser escritas sem essa letra (ótimo,
diretor, Egito). Para quem passou a sua infância e boa parte da
sua juventude a ler banda desenhada brasileira, esta grafia não
me incomoda nada. Outra regra: palavras como egípcio,
factual ou opção escrevem-se tal como se dizem. Depois
temos os acentos, que ora se colocam, ora se tiram. Com maior
ou menor dificuldade, explicando bem a regra, basta um ou
dois exemplos para a coisa encaixar.
O que me irrita no “Bom Português”, contudo, é a
insistência. Parece que querem dar todos os exemplos
possíveis para cada regra. Aceito que é preciso insistir para
que as regras peguem. O problema é quando as regras não
fazem sentido. Quando as palavras têm dupla grafia, por
Joel G. Gomes 167
exemplo. Aí todos acertam. Não sabem se estão a responder
bem ou mal porque ambas as respostas estão certas. O que é
que se aprende com isto? Nada.
Ou, pior, quando ninguém acerta e a jornalista vê-se
forçada a perguntar “Tem a certeza? Veja lá bem...” Só falta
dizer, “Vá, repita comigo.” Ditam as regras que a rubrica
encerre com um cidadão a enunciar a forma correcta de
escrever ou dizer certa palavra ou expressão. Graças às regras
algo estranhas e contraditórias do Acordo Ortográfico, boa
parte dos entrevistados adivinha à sorte; os restantes têm de
ser ensinados até acertarem.
O propósito continua a ser bom, apesar da parvoíce que o
circunda, mas penso que não se deveria limitar ao Português.
Seria bom, ainda para mais agora que temos um Matemático
como Ministro da Educação, que o “Bom Português” ganhasse
uma irmã sexy chamada “Matemática Boazuda”.
Começaríamos pela base. “2+2=?” e depois iríamos para a
tabuada. A criatividade não está apenas nas palavras, está
também nos números. As estatísticas do sucesso escolar assim
o demonstram.
168 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 275
BIPOLARISMO POLÍTICO
Alguém me sabe dizer qual é o partido com que o CDS-PP
está coligado no Governo? Por acaso tem alguma coisa a ver
com o partido que está no poder do Governo Regional da
Madeira há mais de trinta anos? Reparem que eu não sou por
um ou por outro; só estou a perguntar.
O Paulinho das feiras deu um saltinho à Madeira para
comparar Alberto João Jardim a José Sócrates. Acho estranho
que ele tenha lá ido fazer um discurso de cinco minutos para
depois regressar logo ao continente. Sempre julguei que o
zapping desse até meia hora.
Ora bem, à primeira vista diria que não há com que
comparar Alberto João Jardim e José Sócrates. Mas basta
olharmos com alguma atenção para percebermos as
semelhanças. Para começar, ambos são políticos e ambos têm
PSD como matriz ideológica. Se os observarmos com ainda
mais atenção, percebemos um comportamento padrão. Quando
acusados de algo, é costume tentarem desviar as atenções
dizendo que os seus acusadores estão a acusá-los para tentar
desviar as atenções. A chamada campanha negra. É
complicado, mas isto da política não é para todos.
Paulo Portas acusou Alberto João Jardim de ser despesista
como Sócrates. Por outras palavras, o PSD Madeira é igual ao
PS do continente. O problema, quer queiramos quer não, é que
o PSD Madeira faz parte do PSD do continente. O que é o
mesmo que dizer que o PSD do continente é o mesmo que o
PS do continente e eu não acho que seja correcto comparar
Pedro Passos Coelho a António José Seguro. É verdade que
ambos começaram nas Jotas dos seus partidos, é verdade que
Seguro, tal como Passos Coelho quando estava na oposição,
tem o hábito de mudar de opinião a cada almoço que realiza,
Joel G. Gomes 169
mas só isso não chega.
Faz-me confusão, embora não tenha nada a ver com isso, o
nível de esquizofrenia com que os líderes políticos
estabelecem e desfazem alianças. Que o adversário de ontem
seja um aliado hoje contra um adversário mais perigoso, como
costuma acontecer nas Presidenciais, entende-se. É uma
aliança temporária para evitar um mal maior. Custa-me a
perceber, no entanto, que o adversário de hoje seja também o
aliado de hoje. Talvez seja bipolarismo político.
E no fim de contas isto resulta no quê? Em nada. Basta ver
quem ganhou as eleições no passado Domingo.
170 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 276
CRITÉRIO SEGURO
Numa intervenção recente o secretário-geral do PS, António
José Seguro, afirmou não aceitar a redução do número de
freguesias no Interior do País com base no critério do número
de habitantes. Acho bem. Vindo de quem vem, provavelmente
terá dito o contrário ao jantar, mas concordo com as razões
desta sua recusa.
Extinguir freguesias, anexando rivalidades e ódios
históricos só por causa dos números é um erro crasso. Qual é o
mal de ter freguesias com 150 habitantes ou menos? Para mim,
que andei a percorrer Portugal de lés a lés e vi como é que o
País (não) funciona, não vejo qualquer problema nisso.
Consideremos, por exemplo, a freguesia de Fajão na
Pampilhosa da Serra. De acordo com os Censos de 2001, esta
freguesia tem 295 habitantes. Será isso razão suficiente para
anexá-la à freguesia do Macchio (146 habitantes) e à freguesia
do Vidual (93 habitantes)? Se a iniciativa partir dos habitantes
e todos estiverem de acordo que é o melhor a fazer, não tenho
nada contra. Mas não obriguem as pessoas a isso.
Principalmente com base no critério dos números.
Se tiverem que utilizar algum critério, podem dizer que a
redução do número de freguesias e concelhos é uma das
contrapartidas do empréstimo que fizemos à troika. Podemos
não concordar com isso, mas não podemos dizer que é uma
desculpa não-existente.
A certa altura utilizou-se o argumento “A estas pessoas já
tiraram o professor, o médico. Não lhes deixem tirar o
presidente da Junta.” Porque não? Em que medida é que
perder um presidente da Junta é o mesmo que perder um
médico ou um professor? Se alguém ficar doente ou
analfabeto, não é um presidente da Junta que vai ajudar. A não
Joel G. Gomes 171
ser que seja médico ou professor.
Sejamos honestos, praticamente todos nós somos a favor da
união ou extinção de freguesias e concelhos. Quando
apresentada a ideia, até somos capazes de dizer “Hum... Juntar
freguesias com número reduzido de habitantes para poupar
recursos? Não está mal pensado, não senhor.” No entanto, a
conversa muda de figura assim que percebemos que a nossa
freguesia, o nosso concelho, é um dos visados pela medida. “O
quê? Nem pensar! Nunca na vida os habitantes de Boi Coxo se
juntarão com esses atrasados mentais de Cabra Manca!
E a identidade histórica destas pessoas? Alguém pensa
nisso? António José Seguro pensa. Ele sabe que uma forma
segura de conquistar apoios é apelar ao bairrismo de cada um.
Tanto faz que seja no Interior ou no Litoral. As ideias são
sempre todas boas... desde que sejam para os outros.
172 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 277
HISTÓRIAS DE (DES)ENCANTAR
Era uma vez um menino chamado Pedrito. O Pedrito era muito
traquinas, mas era um bom menino. Cumprimentava as
pessoas e dizia “por favor” e “obrigado”. Durante o dia,
enquanto os pais estavam a trabalhar, o Pedrito ia para uma
Creche muito bonita e colorida. O Pedrito tinha muitos
coleguinhas nessa Creche, com os quais brincava o dia todo.
Todos os dias, ao final da tarde, o pai ou a mãe do Pedrito
iam buscá-lo à Creche. Depois duma boa banhoca e dum
delicioso jantar, o Pedrito ia para a cama fazer óó. Antes de
adormecer, o Pedrito gostava sempre de ouvir uma história de
encantar. O pai ou a mãe diziam-lhe então para ele escolher
que história ele queria ouvir.
O Pedrito tinha um quarto muito grande, com muitos e
muitos livros. O Pedrito gostava de todos os livros que tinha.
Mas só havia um que ele gostava de ouvir antes de fazer óó.
Apesar de já saber a história de cor e salteado, o Pedrito não
escolhia outro livro senão aquele e os pais não insistiam.
Apoiavam o filho nessa escolha e sentavam-se ao seu lado
para contar essa tal história.
E a história dizia assim:
Há muito, muito tempo, numa ilha muito distante, vivia um
rei que se gostava de vestir de Carmen Miranda e de Pipa (de
vinho, não diminutivo de Filipa, embora quem se vista de
Carmen também se possa vestir de Filipa). Nessa ilha viviam
muitas pessoas, muitos animais e também o rei. A ilha era
muito bonita e as pessoas gostavam de viver lá, mas o rei
nunca estava satisfeito.
De vez em quando as pessoas tinham de dizer se gostavam
daquele rei ou se queriam outro. Como a ilha era muito
grande, o rei enviava carroças a casa de todas as pessoas que
Joel G. Gomes 173
moravam longe. Àquelas que ficavam satisfeitas com este
gesto de boa vontade do rei dizendo que queriam que ele fosse
rei por mais quatro anos, o rei dava-lhes boleia de volta para
casa. As outras iam a pé.
A cada convocação, as pessoas apareciam para dizer que
queriam que o rei ficasse. E todas podiam voltar para casa,
manter os empregos, não perder pensões ou subsídios ou não
cair, sem querer, duma ravina abaixo.
As pessoas voltavam às suas vidas e o rei sentava-se no
trono porque ele era bom para as pessoas e as pessoas eram
boas para ele.
Quando acabava a história, o Pedrito já dormia
profundamente. Com muito cuidado, o pai ou a mãe pousava o
livro na estante e saía do quarto de mansinho. Na sala
encontrava-se com a sua cara metade e suspirava:
“Porra que já não posso mais com esta história! Ainda
gostava de saber quem foi a besta que decidiu escrever um
livro infantil com base nas eleições na Madeira.”
174 PROTUBERÂNCIA – Volume III
TERMINUS 278
CULTURA, SUBSÍDIOS E OUTRAS CENAS
Há uns meses atrás resolvi concorrer ao Programa de Apoio
à Escrita de Argumentos para Longas Metragens de Ficção
promovido pelo ICA. Foi a primeira vez que concorri a tal
concurso e, embora não tenha sido contemplado com nada, a
experiência não foi tão má quanto isso.
Não muito tempo depois de apresentar a minha
candidatura, recebi (eu e os restantes candidatos) as avaliações
do júri. Tendo tempo para as contestar, não o fiz. Com base
nos critérios de avaliação e nas suas notas, a avaliação que
faziam do meu trabalho era justa.
Dos que venceram, apenas conheço o trabalho de um deles
e já o congratulei por isso; dos restantes, há um em particular
que merece um olhar mais aprofundado: João Canijo.
João Canijo irá receber 9500€ para escrever um guião para o
seu próximo filme intitulado "Fátima". À partida, esta
informação parece ficar por aqui. Ele candidatou-se a um
subsídio para escrever um argumento, recebeu o subsídio e
agora vai escrever o argumento.
O João Canijo tem um filme nas salas de cinema ("Sangue
do Meu Sangue") de que toda a gente anda a falar. Confesso
que me estou a mentalizar para o ir ver mas, por enquanto,
ainda não consegui ultrapassar a inovação da narrativa que é
aquele trailer com a Rita Blanco.
Rita Blanco, numa entrevista recente ao Jornal I, falou
deste filme, como decorreram as filmagens, o modo de
trabalhar do realizador, a forma como desenvolveu a
personagem e o processo de criação da história. Foquemos-nos
nos últimos aspectos que são aqueles que me dizem mais
respeito.
Em primeiro lugar, não cabe à actriz desenvolver a
personagem, cabe ao argumentista. Dito de outra forma, a
Joel G. Gomes 175
actriz pode trabalhar no perfil e características que o
argumentista apresenta, pode apresentar sugestões, melhorar
alguns aspectos, corrigir outros, eliminar outros, etc. O que
não pode acontecer, como é mencionado na entrevista é isto:
O seu papel é o da Márcia, a mãe. A
personagem foi criada por si?
O João Canijo disse-me para inventar uma
situação em que pudéssemos ir ao encontro do que
queríamos. Inventei e, até certa altura, ele não
percebia porque é que eu queria esta história.
Discutimos muito, mas lá nos explicámos e
percebemos que fazia sentido para os dois. E para
todos os outros actores. As personagens foram
entrando e, cada uma, adaptando-se às histórias.
O filme construiu-se neste puzzle.
Não é actriz que cria a personagem! É o argumentista! A
actriz deve-se "limitar" a dar corpo à figura que vem no papel.
Depois temos o processo de criação. Um filme, seja ele curto
ou longo, é feito, deve ser feito, com base num guião. Guião
esse que habitualmente é escrito antes do filme ser realizado.
Em 2007 João Canijo foi contemplado com um subsídio do
ICA no valor de 10.000€ para escrever o argumento para este
filme. Um argumento, para quem não sabe, deve ter a história
do filme, desconstruída cena a cena, com os respectivos
diálogos. Ora, como se poderá ler pela já mencionada
entrevista à protagonista do filme, o filme foi feito com
ensaios e improvisos, não com um guião. Aos actores não era
dado um perfil para trabalharem, era-lhes dito "Tu hoje vais
ser um gajo de óculos!", ou "Agora faz de conta que 'tás
constipado!".
Onde é que eu quero chegar com isto? Pretendo contestar a
decisão do ICA de atribuir um subsídio de apoio à escrita de
um guião a quem depois não escreve nada? Não exactamente.
Apenas pretendo perceber o que se passou.
176 PROTUBERÂNCIA – Volume III
Uma das cláusulas impostas aos vencedores é a
obrigatoriedade de apresentar um guião, sob pena de lhes ser
retirado o subsídio. Considerando isto e o que é mencionado
na entrevista, temos três hipóteses à escolha. A primeira é:
João Canijo não escreveu o argumento contratualizado e teve
de devolver o dinheiro; a segunda: João Canijo escreveu o
argumento contratualizado, mas ficou tão mau que resolveu
fazer o filme sem ele; terceira: João Canijo não escreveu o
argumento contratualizado e não teve de devolver o dinheiro.
Recapitulando, em 2007 João Canijo recebeu 10.000€ do
ICA para escrever um guião para o filme "Sangue do Meu
Sangue". De acordo com Rita Blanco, a protagonista do filme,
este foi feito sem guião. Em Junho de 2011, o ICA decidiu
atribuir 9.500€ a João Canijo para escrever o argumento para o
seu próximo filme, "Fátima."
Conclusões? É melhor não. Mas posso deixar aqui um
"cheirinho" daquilo que me parece que vai ser este argumento.
FÁTIMA
Um filme de João Canijo
Cena 1 – Filmar peregrinos
Cena 2 – Falar com peregrinos
Cena 3 – Filmar Santinhas
Cena 4 – Filmar velinhas
Cena 5 – Pôr música sacra na banda-sonora
Cena 6 – Pedir a outra pessoa que escreva o
guião
Joel G. Gomes 177
TERMINUS 279
CONFIANÇA
Quando se está afastado algum tempo é sempre difícil
encontrar o tema certo para abordar num artigo de análise.
Felizmente temos o Expresso, esse jornal grande, onde se
encontra sempre qualquer coisa.
No site do Expresso (são oito da manhã, está a chover
como o caraças, ainda não saí de casa e não vou sair só para ir
comprar o jornal) vinha hoje (dia 9 de Novembro) uma
pequena... peça informativa sobre a relação de confiança que
nós temos com as instituições conotadas com o Governo.
O artigo, apesar de pequeno (tem apenas três parágrafos),
possui uma complexidade de ideias tão bizarras que quase que
parece que é sério. Tão sério que me atrevo a dizer que se isto
fosse um estudo elaborado por algum instituto público, o mais
certo era fechar portas depois. Como é só uma opinião, o
máximo que conseguimos é colocar alguém a fazer transfusões
de sangue sob a vigília de Leonor Beleza. Já lá vamos, calma.
Diz então o sociólogo José Manuel Mendes que nós
desconfiamos, ou temos pouca confiança nas instituições
ligadas ao Governo. Excepção feita àquelas ligadas à
protecção e socorro. Subscrevo mais ou menos. Basta pensar
nas inundações que acontecem todos os anos assim que
começa a chover, ou nos incêndios que arrasam o país, ou no
quizz a que é preciso responder sempre que se chama uma
ambulância para nos apercebermos que a nossa confiança
nestas instituições é um bocado como dar dinheiro a um
arrumador para que não nos risquem o carro.
No entanto, apesar destas falhas, depositamos mais
confiança nas instituições ligadas à protecção e ao socorro do
que nas outras. Porquê? O Instituto Português do Livro e da
Biblioteca, o organismo que tutela as bibliotecas públicas, tem
178 PROTUBERÂNCIA – Volume III
feito um bom trabalho. Talvez não tenha sido perfeito para
todos, mas se nos lembrarmos como eram as bibliotecas há
vinte, ou mesmo dez anos, e como são agora, a diferença é...
colossal.
O que é que nos faz confiar nesta gente? Diz José Manuel
Mendes que em Portugal "não houve nenhum episódio que
desconstruísse a confiança das pessoas" como aconteceu
noutros países da Europa, com o sangue contaminado.
A resposta de José Manuel Mendes é simples e elucidativa.
O complemento que se segue à citação é que não sei se
pertence ao próprio ou se foi alguém que não estava cá nos
anos 80 que acrescentou.
Caro José Manuel Mendes, ou outra pessoa que diz
basearmos a nossa confiança nas instituições públicas de
protecção e socorro no facto de, em Portugal, não ter havido
nenhum caso de sangue contaminado, só vos digo isto: vão ao
Google e pesquisem por “hemofílicos + Leonor Beleza”. Não
se resolveu, apenas prescreveu. Como é tradição. E nem
sempre as tradições são de confiança.
Joel G. Gomes 179
TERMINUS 280
QUANTAS VEZES?
Quantas vezes é que, na estação de Metro do Marquês de
Pombal, na Linha Azul, é proferido o seguinte aviso: “Atenção
ao intervalo entre o cais e o comboio”? Antes de responder a
esta questão, importa analisar o aviso e as circunstâncias em
que o mesmo é dito.
Em primeiro lugar, a distância que vai do cais ao comboio
nesta estação é igual a todas as outras. Não andei a medir, mas
quer me parecer que a necessidade de um aviso de segurança
só seria justificável se estivéssemos a falar de diferenças
verificáveis a olho nu. Milímetros, parafraseando o outro, são
pintelhos.
Temos depois a questão das circunstâncias. O aviso é dito
apenas numa estação e, dentro dessa estação, apenas na Linha
Azul. Se não é possível identificar as razões por detrás disto, é
possível apontar as consequências.
Por norma, o aviso deveria ser feito em todas as situações –
neste caso, em todas as estações – ou, em alternativa, na
presença duma série de critérios, facilmente observáveis, que o
justifiquem. A exclusividade deve ser, por isso, apenas
aplicada quando há uma distinção inequívoca entre o caso ou
casos em questão e todos os demais.
Implantar uma diferença ou sugerir uma cautela numa
estação, numa linha, em deterimento de todas as outras, é
influenciar as pessoas a que só tomem cuidado naquele caso
em especial e se desleixem nos restantes.
Ainda por cima estamos a falar duma distância que para
cair lá para dentro é preciso ser-se subnutrido ou, mais magro
ainda, uma top-model. Pessoas normais não caem ali. Podem
tropeçar, mas tropeçam mais vezes devido aos empurrões nas
entradas e saidas do que àquele espacinho entre o cais e o
comboio.
180 PROTUBERÂNCIA – Volume III
A solução? Dar o aviso em todas as estações e em todas as
linhas. Ou não avisar em nenhuma e colocar autocolantes nas
portas. O aviso para não forçar as portas é accionado pelo
condutor da composição apenas quando este decide. Na
maioria das vezes, o autocolante é aviso suficiente.
Na estação do Marquês de Pombal, como se não bastasse
avisar uma vez, avisam quatro, cinco e seis. O metro já vai na
Pontinha e ainda estão avisar os passageiros que saíram e
entraram no Marquês de Pombal para terem cuidado.
A resposta à pergunta inicial, “Quantas vezes é que, na
estação de Metro do Marquês de Pombal, na Linha Azul, é
proferido o seguinte aviso: “Atenção ao intervalo entre o cais e
o comboio”?” só pode ser, portanto: DEMASIADAS.
Joel G. Gomes 181
TERMINUS 281
UMA (ENGRAÇADA) IDA ÀS FINANÇAS
Gosto de ir às Finanças. Muita gente detesta ter de ir às
Finanças, mas eu não. Eu gosto mesmo de ir lá. E gosto
particularmente quando tenho de ir lá sem razão. Há alturas
em que preciso ir lá, há outras em que vou lá só para dar um
“olá” e depois vou à minha vida. Mas as alturas que eu gosto
mesmo mesmo de ir é quando não deveria ter de ir.
Nomeadamente, quando recebo a cartinha em casa com uma
coima choruda para pagar.
Já tenho recebido dessas cartinhas em casa – quem não
recebeu? – e é com um grande sorriso que vou à Repartição
mais próxima efectuar o pagamento. Poderia ir a um
Multibanco, ou pagar via Internet, mas o estar à espera para
dizer que se quer fazer o pagamento e depois esperar
novamente para pagar de facto é outra alegria. Principalmente
quando sou atendido por alguém carrancudo. Acredito que a
minha boa-disposição ao sair dali terá contribuído para
melhorar o estado de espírito de quem me atendeu.
Sempre que recebo uma cartinha das Finanças em casa sou
logo tomado duma grande ansiedade. A maior parte das vezes
são cobranças justificadas – tipo não assinalar a alínea c) do
número 17 do impresso 24, que refere o desejo de não ser
cobrado indevidamente – e, por isso, sem surpresa. De vez em
quando, a surpresa surge e sou intimado a pagar dívidas
contraídas por pessoas com nomes parecidos ou iguais aos
meus.
Já vos aconteceu isto? É tão bom, não é? Ao menos não nos
trocaram o nome todo, foi só uma parte. A bem da verdade,
confesso que tal situação nunca me aconteceu. Com grande
pena minha. Só me leva a crer que a minha combinação de
nomes e apelidos encontra poucos exemplares no nosso país.
Imagino que seja uma situação povoada de momentos de
182 PROTUBERÂNCIA – Volume III
grande comicidade. O senhor Arlindo Batata recebe uma
notificação das Finanças para efectuar o pagamento duma
coima de 300 euros. No dia seguinte outra notificação, desta
vez relativa a uma coima de 413 euros. E por aí fora. Ao fim
de cinco dias consecutivos de coimas, o senhor Arlindo Batata
começa a achar que aquilo não é normal e resolve ir às
Finanças.
O senhor Batata vai para lá logo de manhã e, após esperar
três horas na fila errada, lá tira a senha certa e consegue ser a
terceira pessoa a ser atendida depois de almoço. O simpático
funcionário limita-se a dizer que ali não podem fazer nada,
apenas cobrar. Se o senhor Arlindo não pagar a dívida, o seu
ordenado será penhorado.
O senhor Arlindo Batata esclarece que as notificações
foram enviadas para o contribuinte errado, um tal Arlindo
Batata-Doce, mas esse esclarecimento cai em saco roto. Ou
paga ou fica sem ordenado. O senhor Arlindo Batata decide
então perguntar se as Finanças lhe irão providenciar trabalho,
na medida em que ele está desempregado e não dispõe de
ordenado para ser penhorado.
As Finanças riem-se.
Joel G. Gomes 183
TERMINUS 282
O TERCEIRO F
Dos três grandes Fs que compõem a nossa identidade nacional
– Fátima, Futebol e Fado – havia um que, embora não
esquecido, era o menos divulgado dos três. Essa lacuna chegou
finalmente ao fim com a eleição do Fado como património
imaterial da humanidade. E assim como o futebol e Fátima nos
têm proporcionado momentos de grande relevância
informativa – os directos de Centros de Estágio da Selecção
onde um repórter tenta adivinhar a equipa e a táctica que o
seleccionador vai usar, as perguntas aos peregrinos a caminho
do santuário, “Vai porque tem fé, não é?”, “Não, vou porque
não tenho carro.” - não tardou muito para que o mesmo
acontecesse com o Fado.
Eu previ, embora não se possa dizer que tenha sido uma
grande previsão, que com esta vitória não tardariam a surgir
reportagens e programas especiais sobre Fado. Já para não
falar de todos aqueles que, dum dia para o outro, passaram a
adorar o fado. (Pessoalmente, não gosto nem desgosto. Não
sou de géneros, sou de músicas. Se gostar da música, não me
interessa que seja fado, trance, pimba, ou rock.)
Um dos primeiros programas a comprovar a minha teoria
do ridículo foi uma entrevista a Celeste Rodrigues, emitida no
passado Domingo na RTP 1. De forma a demonstrar o justo
agradecimento aos fadistas que mais têm trabalhado nos
últimos anos, não apenas por esta candidatura recém-
vencedora, mas pela divulgação do fado a nível internacional e
pela sua expansão a novas linguagens musicais – entre outros,
Carlos do Carmo, Mariza e Camané – a RTP decidiu
entrevistar a fadista Celeste Rodrigues. O erro de casting,
chamemos assim, não tem que ver com a escolha da
entrevistada. Celeste Rodrigues é uma fadista com uma longa
184 PROTUBERÂNCIA – Volume III
carreira e, embora não seja tão mediática como os fadistas já
referidos, certamente que tem algo a dizer sobre este
reconhecimento do fado. No entanto, o canal de todos os
portugueses não quer saber da opinião da pessoa viva e com
carreira que está no estúdio.
A entrevista começou bem, com a entrevistadora a dar as
boas noites à entrevistada. A partir daí, descambou. “Celeste,
se a irmã fosse viva o que diria ela acerca disto?”
Não obstante a falta de respeito demonstrada para com que
todos aqueles que desempenharam um trabalho imenso nestes
últimos anos pelo crescimento do fado, e naquele momento em
particular por Celeste Rodrigues, há que perceber isto duma
vez por todas: a Amália morreu aos 79 anos. E num mundo
real, a partir do momento em que as pessoas morrem, a
relevância informativa deste tipo de perguntas é zero.
Mas para fins de exercício especulativo, façamos uma
excepção. Se a Amália fosse viva teria hoje 91 anos e, sabendo
a tendência que muitos fadistas têm pela copofonia, não sei se
iríamos escutar uma opinião muito lúcida. Porque, quer
queiramos quer não, os ídolos caem, extinguem-se.
Principalmente quando puxamos muito por eles. Amália tem e
terá sempre o seu valor, mas no presente, na realidade, seria
melhor que guardássemos estas indagações para quando
fôssemos à bruxa. O Fado é um dos três Fs, mas não o
tratemos como o Futebol ou Fátima. Tratemo-lo com mais
respeito.
FIM DO VOLUME III
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