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RELAÇÃO SUJEITO E COTIDIANO EM GEOGRAFIA
Rhafael da Costa Borges
Pós-graduando em Geografia FCT/UNESP
Resumo
O artigo aborda a temática do cotidiano a partir de uma Geografia pautada no(s)
sujeito(s) destacando a relevância de uma análise a partir do cotidiano na compreensão
da espacialidade humana. A metodologia proposta para o alcance deste objetivo é
pautada no estudo e análise associativa de textos e considerações referentes à temática
do papel da ação e das representações do(s) sujeito(s) em Geografia, com destaque para
bibliografias selecionadas de Doreen Massey e Brenno Werlen, e da temática sobre o
cotidiano, pautada principalmente em estudos de Agnes Heller e Michel de Certeau. Os
resultados das discussões apontaram para uma considerável associação entre sujeito e
cotidiano, como sendo categoriais com dimensões espaço-temporais de analise. E para
uma importância relevante de se considerar o cotidiano em estudos de uma Geografia
que possui o(s) sujeito(s) como objeto.
Introdução
O caráter milenar e diverso do conhecimento geográfico e a dimensão
plural dos processos e fenômenos investigados pela ciência geográfica fazem
com que este campo do conhecimento se utilize de um compósito heterogêneo
de olhares, visões, interpretações, técnicas, metodologias e métodos de pesquisas
na busca de seus resultados.
No que concerne a Geografia como disciplina científica sistematizada, a
figura do paradigma positivista, sustentado pela concepção de Ciência Moderna,
como único método capaz de garantir legitimidade ao conhecimento cientifico
produzido, ainda perpassa muito do que é produzido sob o estatuto da Geografia.
No entanto, movimentos de rompimento com tal paradigma, que ganham força e
destaque na Geografia principalmente a partir do advento das correntes de pensamento
critica e radical, conseguem ainda sustentar narrativas e investigações que alimentam
uma maior diversidade de modos de se fazer e produzir conhecimento em Geografia.
A própria noção de objeto científico, onde cada campo do conhecimento
delimita, instrumentaliza e persegue respostas entorno do objeto do conhecimento
demarcado, é resultância de propositivas da Ciência Moderna em seu processo de
sistematização.
O objeto da Geografia no cerne do paradigma científico positivista, onde o
então paradoxo da Geografia Física e Humana não contribuía para delimitar objeto
tangível a tal campo do conhecimento, conferindo, naquele contexto, status científico
questionável à Geografia, resultou em uma delimitação de objeto de caráter até
então classificado como dual: relação homem-meio.
Outra dificuldade para a Geografia se estabelecer como campo científico, em
meio a tal período de sistematização de Ciência Moderna, foi a dificuldade de um
campo de conhecimento que exalta as diferenças e diversidades conseguir perseguir
similitudes e formular leis e/ou teorias, pressuposto básicos, neste contexto, para os
campos do conhecimento que almejam o título de ciência.
Os postulados disseminados pelo Círculo de Viena, ao lançarem os princípios do
Positivismo Lógico, desencadeiam uma ampla reforma científica e acabam por refletir
numa reformulação dos princípios da ciência geográfica. As diretrizes que mantinham a
unicidade do método na busca do conhecimento científico, no entanto que passam a
ressaltar valorização da experiência dos dados, a valorização da
probabilidades/estatísticas na explicação do empírico, o prezar pelo método hipotético-
dedutivo, a colaboração da comprovação de hipóteses na sustentação de leis e teorias, o
conhecimento estimulado em sua concepção utilitarista servindo de auxilio no
planejamento e reconstrução de Estados no pós Segunda Guerra Mundial, contribuíram
para que no âmago do Positivismo Lógico a Geografia remarcasse seu objeto como
sendo a organização espacial.
As contínuas buscas da Geografia em estabelecer leis e teorias, visando o
estabelecimento desta disciplina, no interior dos pressupostos do conhecimento
científico estipulados pelo Positivismo Lógico, fizeram a Geografia procurar em
outras áreas do conhecimento cientifico leis e teorias para formular hipóteses e
sustentar suas investigações. Um exemplo disto são algumas teorias econômicas,
físicas e biológicas (Teorias do Estado Isolado, Teorias das Localidades
Centrais, Teorias Centro-Periferia, Teorias dos Pólos de Crescimento, Teoria
Geral dos Sistemas, etc) que serviram de suporte e sustentação das pesquisas e
estudos geográficos, no contexto da corrente Neopositivista.
Esse movimento de “encaixar” a Geografia, bem como as ciências
humanas e sociais, em bases científicas, em nome da cientificidade, é mitigado,
segundo Thompson (1998), nas décadas de 1970 e 80, período em que a ciência
como um todo passa a sofrer uma crise (ideológica, política, de valores) de
identidade e paradigmas (ciências tradicionais) que afetaria todas as áreas da
ciência, principalmente as humanas e sociais. Este movimento de refletido
caráter social é marcado pelo repúdio as noções de verdade absoluta e
objetividade e vem associado de importantes críticas ao positivismo, em suas
distintas correntes, e ao estruturalismo (que apreende a realidade social como um
conjunto formal de relações), evidenciando uma valorização das subjetividades,
de descrições realista do comportamento humano e dando voz aos sujeitos.
Influenciada por um movimento mais amplo de reafirmação dos ideais
metodológicos dialéticos e materialistas históricos, bem como pela Filosofia da
Ação, que sugere que não basta contemplarmos o mundo, precisamos
transformá-lo, a Geografia passa dar maior relevância as contradições sociais, a
dinâmica das relações e forças produtivas, as relações e as divisões do trabalho,
e deste modo, a considerar o trabalho como o diferencial responsável pela
reprodução da existência humana e também o incumbido pela transformação da
primeira natureza em segunda natureza, sendo que, enquanto a primeira natureza
(aquela em condição natural) seria objeto de estudo das ciências exatas e
naturais, os processos de transformação da primeira em segunda natureza
(através do trabalho humano) seria objeto de estudo das ciências humanas e
sociais. Nesta perspectiva, contrapondo aos parâmetros científicos do
(Neo)Positivismo, a Geografia, em sua corrente Critica e Radical, passa a
contemplar como seu objeto de estudo o espaço produzido.
O movimento de contestação dos paradigmas científicos clássicos não apenas
contribuíram para o desenvolvimento de uma Geografia Critica e Radical, este
movimento contribui com o desenvolvimento de uma Geografia de feição humanista,
onde o existencialismo, a fenomenologia e a psicologia humanista tiveram importante
papel indutor. Essa Geografia, também em contraponto aos pressupostos
(Neo)Positivistas passa a privilegiar o sujeito do conhecimento, e deste modo a
considerar as experiências, as representações das realidades e construção de significados
e sentidos pelos sujeitos sobre o espaço vivido. Esta Geografia passa a delinear seu
objeto de pesquisa em função da espacialidade humana, a partir da experiência
do(s) sujeito(s).
No atual de contexto, que alguns autores, a exemplo de Harvey (1996),
consideram como sendo um período Pós-Estruturalista ou Pós-Moderno, se verifica a
emergência de um novo paradigma científico, este vem acompanhado, assim como
afirma Foucault (2002), de importantes críticas e movimentos de desconstrução de
metalinguagens, metanarrativas e metadiscursos, a fim de revisitar e recondicionar leis e
teorias até então encobertas por uma relação de incipiente diálogo com os autores tido
como “os grandes teóricos”.
A conjuntura atual privilegia uma Geografia pautada em múltiplas interpretações
da realidade, que também é fruto da expressão espacial das diferenças, das identidades,
das territorialidades no mundo globalizado. A complexidade das relações e processos
entorno das sociedades humanas, proporcionam na atualidade, a coexistência de
distintos modos de se pesquisar e produzir conhecimento em Geografia. As Geografias
a partir da perspectivas dos atores e dos agentes coexistem com as Geografias do espaço
e dos sujeitos. A diversidade dos métodos, metodologias, ferramentas, técnicas e
referências fazem dos distintos modos de se fazer pesquisa, apenas caminhos que nos
levam a diferentes olhares sobre as múltiplas Geografias.
A Geografia da espacialidade humana, ou a Geografia que possui como objeto
o(s) sujeito(s), recebe destaque neste artigo ao buscarmos considerar o significado e a
relevância da concepção de cotidiano para uma Geografia concebida a partir da ação e
das representações dos sujeitos.
Nesta direção partimos das seguintes indagações: qual a importância da
concepção de cotidiano (das ciências humanas e sociais) para a uma Geografia que
possui seu objeto pautado na ação e no(s) sujeito(s)? Em que dimensão a análise do
cotidiano pode contribuir para uma Geografia da espacialidade humana?
A metodologia proposta para o alcance deste objetivo é pautada no estudo e
análise associativa de textos e considerações referentes à temática do papel da ação e
das representações do(s) sujeito(s) em Geografia, com destaque para bibliografias
selecionadas de Doreen Massey (2004) e Brenno Werlen (2000), e da temática sobre o
cotidiano, pautada principalmente em estudos de Agnes Heller (2008) e Michel de
Certeau (1994; 1996).
Sujeito e cotidiano: dimensões espaço-temporais.
Werlen (2000) é um dos teóricos da ciência geográfica que sustenta seu discurso
entorno da Geografia que considera o(s) sujeito(s) como objeto de estudo. Ao promover
tal raciocínio ele defende a Geografia como uma ciência social, onde o papel da “ação”
deve substituir o “espaço”, tornando a Geografia social uma interpretação conveniente
da “espacialidade humana”.
Nesta direção, considera-se que o mundo social é produzido e reproduzido por
ações sociais, isso significa que são essas ações sociais, e não o espaço, que são
constitutivos desse mundo. Sendo assim, a Geografia Humana deve ser entendida como
uma ciência humana da espacialidade humana (Werlen, 2000).
O autor conclama, neste sentido, que o espaço não existe como objeto material,
pois não há uma coisa chamada espaço, sendo assim, espaço não é um conceito
empírico, porque não se refere a um conceito especifico de objetos materiais e sim a um
quadro formal de referências. Tais referências só se evidenciam, e até nos permite
verificar uma ordem especifica de objetos materiais (que não são espaço) a partir da
ação humana. Deste modo, apenas o sujeito é espacial e “espacializa” o mundo através
do seu modo de ser.
Ao destacar Husserl e Schutz, Werlen (2000, p.11) em suas narrativas considera
a hipótese de que “o que os geógrafos consideram como problemas espaciais são na
verdade problemas de determinados tipos de ações, ações com envolvimento somático e
nas quais as coisas materiais são partes constitutivas”.
A partir deste entendimento, a escala do sujeito, a partir do “corpo” como
indutor de movimento produtivo, pode ser visto, como uma ligação funcional entre
processos internos e movimentos dirigidos para o mundo exterior, estando a dimensão
espacial intermediada e incorporada via o “corpo”, tendo por função a mediação entre a
duração e o mundo espaço-temporalmente, pois é ele quem afeta a natureza das
experiências puras, através da ação (WERLEN, 2000).
O corpo a partir de sua ação é tratado como escala espacial, também a partir da
perspectiva de Smith (2000), se apresentando assim, como local primário da identidade
pessoal socialmente construída. O sujeito corpóreo é, neste contexto, o local que marca
a fronteira entre o eu e o outro, em um sentido físico e social, envolvendo assim, a
construção de um “espaço pessoal” capaz de imputar relações com outras escalas
geográficas (casa, comunidade, cidade, região, nação, globo) e promover a ação social
na produção de espacialidades humanas. Deste modo, o foco central em análise
geográfica são as distintas escalas geográficas de ação humana, do corpo ao globo, e
não o espaço de modo isolado. Neste caso, as ações devem ser explicadas através dos
sujeitos, pois o espaço e até mesmo a materialidade podem condicionar fatos sociais,
mas não possuem um significado de imputá-los em si.
A partir desta perspectiva, esta Geografia deve ter como centro e objeto de seu
interesse o sujeito que conhece e age. “Isso leva a Geografia de uma ciência do espacial
e do regional para uma ciência das implicações regionalizantes dos sujeitos
conhecedores e agentes” (WERLEN, 2000, p. 13).
Massey (2004), nesta mesma direção, propõem uma revisão de conceitualizações
espaciais em termos do essencialismo newtoniano, pois para ela, esta forma de
conceitualizar a espacialidade pode se tornar um bloqueio para uma forma de superação
dos essencialismos geográficos. Ao invés disso, ela propõe que possamos defender um
entendimento da identidade do lugar como sendo construída a partir das relações sociais
que impulsionam a ação humana.
Werlen (2000) sinaliza nesta mesma direção ao advertir que, se os geógrafos não
considerarem uma alternância do foco de pesquisa do ‘espaço’ para a ‘ação’, eles serão
incapazes de apreender as novas Geografias do dia-a-dia nas próximas décadas.
Porém, cabe ressaltar, que a teoria da espacialidade humana a partir da ação é
depositária de criticas, entre elas as tecidas por Löw (2013), ao sustentar a negligência
deste tipo de teoria ao não considerar a dimensão potencial da materialidade espacial em
induzir e gerar ações nos sujeitos. No entanto, por não constituir objetivo deste texto,
tais elementos não serão aqui considerados de modo aprofundado.
Já a relação de uma Geografia da ação, a partir dos sujeitos, com a
dimensão do cotidiano adquirem associação a partir do processo de
conceitualização desta perspectiva analítica. Pois, do mesmo modo que a noção
de(s) sujeito(s) como objeto de estudo passou um caminho sinuoso para se
firmar e ser reconhecido no campo do conhecimento cientifico geográfico, a
noção do cotidiano também assim enfrenta duros obstáculos frente a noções
cientificistas resultantes de alguns paradigmas da ciência moderna.
Um exemplo disso esta na concepção que o senso comum carrega sobre o
cotidiano. A primeira ideia que o senso comum apresenta ao referirmos ao termo
cotidiano é a de hábito, de duração, de repetição. Tanto que ao consultarmos o
Dicionário Aurélio poderemos encontrar a seguinte definição: cotidiano: adjetivo – de
todos os dias; que sucede e se pratica habitualmente; substantivo masculino – aquilo que
se faz todos os dias; o que sucede e se pratica habitualmente.
E é justamente esta ideia de hábito e de duração entorno do termo cotidiano que
faz com que o associemos a outros vocábulos que fogem da essência do termo, pois a
ideia de hábito está quase que diretamente relacionada, também de maneira
reducionista, a ideia de rotina (no sentido pejorativo), de monotonia, de banalidade, de
enfadonho, de entediante, de comum, de ausência de prazer, de sonho, de imaginação,
de esperança, de aspirações.
Esse reducionismo em torno do cotidiano também possui um forte apelo por
parte do modelo de “ciência moderna” que nos acompanhou nos últimos séculos, onde
esta, para ser “construída”, teve a necessidade de considerar os conhecimentos
cotidianos como “senso comum” a serem “superados” pelos conhecimentos científicos.
Isso significou, na história das ciências, entendê-los como menores e mesmo
equivocados, sem compreender os múltiplos sentidos e usos que tinham para os
praticantes dos cotidianos (CERTEAU, 1994).
Porém o conceito de cotidiano, conforme Certeau (1994), pode e deve
acompanhar a significativa construção do conhecimento em seu entorno e se
desvincular do locus da prática repetitiva, monótona e banal e incorporar o locus da
atenção, onde essa categoria de espaço e tempo passa a ter um importância significativa
na construção da sociedade, podendo fazer dos espaços e dos tempos cotidianos,
espacialidades e temporalidades conscientes, inovadores e transformadores.
Na perspectiva de Lefebvre (1991), o cotidiano pode ser tratado como uma soma
de insignificâncias, não de insignificantes. A banalidade é importante na vida, o
levantar, abrir a janela, apreciar o tempo, sentir os sons e os cheiros do dia ao
amanhecer. É o banal do dia a dia que faz a nossa vida ter significado nesse mundo.
O cotidiano também é ou pode vir a ser o foco da observação atenta de nós
mesmos, do grupo ou grupos aos quais nos ligamos, das ações que executamos, do
conteúdo e da diversidade de nossos pensamentos do dia a dia, dos territórios cotidianos
em que habitamos. E é esta a observação atenta que contém a potencialidade de ser a
inovação ou a transformação no cotidiano (MESQUITA, 1995).
É no cotidiano que nos tornamos observadores de nós mesmos e do
próximo, isto vale dizer: do outro, dos outros e do mundo, portanto, do
território. Quem se auto-observa e simultaneamente observa os outros e
os eventos em que se está envolvido, põe sua atenção sobre como e
onde isso ocorre, portanto no território. (MESQUITA, 1995, p. 19)
De maneira direta, o cotidiano se associa não apenas ao território, mas também
ao lugar, sendo estes, categorias espaciais de fundamental importância em estudos de
Geografia. Para Barcellos (1995), território e cotidiano são conceitos-chaves numa
busca da compreensão do lugar e da natureza da sociabilidade contemporânea.
O cotidiano poderá assim, segundo Certeau (1994), ser identificado como
“território”. Configura-se assim um “lugar”: espaço e tempo construídos. Como
resultado de um processo de socialização em que uma forma específica de interação que
relaciona o “indivíduo” ao “grupo” ocorre, engendrando personalidades, capacidades e
comportamentos que se misturam em disputa pela escolha dos traços identitários,
formando-se ali uma marca que transforma o “espaço” (geométrico) em “lugar”
(simbólico).
Assim, o território ganha dimensão no cotidiano ao expressar a cooperação, a
noção de conjunto, a comunhão de grupos e pessoas, e também os confrontos e
conflitos, baseados no choque entre os interesses individuais e coletivos. Já o lugar se
representa no cotidiano ao expressar as relações de afetividade espacial e interpessoal,
extrapolando assim, neste caso, a dimensão de espaço físico.
Nesses territórios e lugares do cotidiano, nos deparamos com essa dialética
constante, onde a ação do indivíduo (a individualidade) contendo tanto a particularidade
quanto o humano-genérico, funciona consciente e inconscientemente no homem sendo o
indivíduo um ser singular que se encontra com sua própria individualidade particular e
com sua própria genericidade humana e nele, tornam-se conscientes, através de ambos
os elementos (HELLER, 2008).
Territórios esses que, para Santos (2004), associados ao papel que a informação
e a comunicação alcançaram em todos os aspectos da vida social, fizeram com que o
cotidiano de todas as pessoas se enriquecesse com novas dimensões, entra elas uma
representativa dimensão espacial, despertando assim, um significativo conteúdo
geográfico do cotidiano, onde o geógrafo passa a contribuir para o necessário
entendimento (e talvez, teorização) dessa relação entre espaço e os movimentos da
sociedade, enxergando na materialidade, esse componente imprescindível do espaço
geográfico, o cotidiano, que é, ao mesmo tempo, condição para a ação; uma estrutura de
controle, um limite à ação; um convite à ação.
Tais conceituações inserem o cotidiano como uma dimensão espacial e temporal
da realidade. Sendo que, do mesmo modo, o sujeito em sua espacialidade possui a
mesma dimensão espaço-temporal.
Massey (2004) sustenta tal afirmativa ao ratificar que o espaço é um produto de
inter-relações, sendo sempre feito e aberto, desde o início a construção relacional das
subjetividades políticas (identidades e coisas). Nesta concepção, um pré-requisito para a
possibilidade da política só poder ser pauta na concepção do espaço e do tempo (futuro)
como “abertos”.
Somente o tempo pode impedir que tudo seja dado imediatamente, mas para
existir tempo, pelo menos mais de uma coisa deve ser dada imediatamente, em outras
palavras, para existir tempo deve existir interação, para existir interação deve haver
multiplicidade, para existir multiplicidade deve haver espaço. Para existir tempo deve
existir espaço (Massey, 2004).
O espaço e o tempo esta sempre num processo de devir, nunca sendo um sistema
fechado, encontrando-se sempre em processo, num fazer-se, nunca esta acabado,
Massey (2004), considera que ambos sempre contêm um grau de inesperado, de
imprevisível, um elemento de “caos”, o espaço não é uma superfície e o tempo não é a
história. Assim sendo, o mais importante a se considerar é o fim da separação entre
espaço e tempo, pois só assim possibilitaremos que se estes se tornem parte integral do
político.
Partindo da concepção aristotélica do homem como um único animal político,
sendo a vida política, vida humana por excelência, podemos considerar que o(s)
sujeito(s) e o cotidiano, em seu movimento de espacialização, adquirem papel central no
não apenas no estudo do espaço, como no estudo do tempo.
A importância do estudo do cotidiano para uma Geografia do sujeito.
O espaço, conforme Certeau (1994) é um lugar praticado, assim, a rua
geometricamente definida por um urbanista só é transformada em espaço pelos
pedestres. É só através deste modo que saímos de uma Geografia preestabelecida para
nos estendermos aos relatos cotidianos que contam aquilo que, a apesar de tudo, se pode
no espaço, fabricar e fazer. São feituras do espaço.
Nesta concepção, uma Geografia da ação humana passa pelo estudo
representativo dos relatos, narrativas e cotidianos dos sujeitos no processo de
construção da espacialidade humana. O papel da experiência dos sujeitos na construção
da espacialidade é determinante, e não dá pra considerar a experiência humana sem
considerarmos a dimensão do cotidiano.
Merleau-Ponty, segundo Certeau (1994, p.202), destaca a relevância da
experiência na compreensão do processo constitutivo da espacialidade ao distinguir que:
um espaço “geométrico” (“espacialidade homogênea e isótropa”,
análoga do nosso lugar) de uma outra “espacialidade’ que denominava
“espaço antropológico”. Essa distinção tinha a ver com uma
problemática diferente, que visava separar da univocidade “geométrica”
a experiência de um “fora” dado sob a forma do espaço e para o qual “o
espaço é existencial” e “a existência é espacial”. Essa experiência é
relação com o mundo; no sonho e na percepção, e por assim dizer
anterior à sua diferenciação, ela exprime “a mesma estrutura essencial
do nosso ser como ser situado em relação com um meio” – um ser
situado por um desejo, indissociável de uma “direção de existência” e
plantado no espaço de uma paisagem. Deste ponto de vista, “existem
tantos espaços quantas experiências espaciais distintas”.
Ao também destacar operações de demarcação que conferem sentido
euclidiano ao espaço e acabam por imprimir-lhes fronteiras, Certeau (1994),
imputa a tais visões uma representação de uma parte ínfima do que vem a ser a
Geografia. A narração oral que não cessa, trabalho interminável, de compor
espaços, verificar, confrontar e deslocar suas fronteiras, fazem, dos
“comportamentos” de relato, um campo muito mais rico à análise da
espacialidade.
Assim, um exemplo importante do papel da ação por parte do sujeito na
produção de espacialidade humana esta nas narrativas, e quase sempre nas
narrativas do cotidiano. Segundo Certeau (1994), nessa organização espacial, o
relato tem papel decisivo. Sem dúvida, “descreve”. Mas “toda descrição é mais
que uma fixação” é “ um ato culturalmente criador”. Ela tem até poder
distributivo e força performativa (ela realiza o que diz) quando se tem um certo
conjunto de circunstancias. Assim, a descrição, através do relato, é então
fundadora de espaços. Eis aí precisamente o papel do relato. Ele abre um teatro
de legitimidade a ações efetivas. Cria um campo que autoriza práticas sociais e não
cessa de efetuar novas operações de demarcações.
Assim, deixando de lado a morfologia situada numa perspectiva pragmática, e
partindo para uma síntese determinante de uma série de práticas pelas quais a gente se
apropria do espaço, podemos tomar como ponto de partida a definição de Miller e
Johnson-Laird, citados por Certeau (1994, p. 212), conquanto “para a unidade de base
que eles denominavam a ‘região’. Aonde a ‘região” vem a ser, portanto, o espaço criado
por uma interação. Daí se segue que, num mesmo lugar, há tantas “regiões” quantas
interações, práticas ou encontro entre programas”.
Nesta direção, em caráter associativo as interações, práticas e encontros que
produzem a espacialidade, no sentido da ação humana, encontra se o cotidiano, como
sendo:
aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos
pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do
presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o
peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra
condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que
nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-
caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se
deve esquecer este “mundo memória”, segundo a expressão de Péguy. É
um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos
lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos
prazeres. Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio
desta história “irracional”, ou desta não história”, como o diz ainda A.
Dupront. O que interessa [...] do cotidiano é o invisível... (CERTEAU,
1996, p. 31).
Com este entendimento temos que a espacialidade não se furta ao cotidiano, pois
esta é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja
seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico. O homem já nasce inserido no
cotidiano. O amadurecimento do homem significa, em qualquer sociedade, que o
individuo adquire todas as habilidades imprescindíveis para a vida e o cotidiano da
sociedade (camada social) em questão. É adulto quem é capaz de viver por si mesmo 0
seu cotidiano (HELLER, 2008).
E apesar da vida no cotidiano ser a vida do individuo, o individuo é sempre,
simultaneamente, ser particular e ser genérico. (HELLER, 2008).
Enquanto individuo, portanto, é o homem um ser genérico, já que é
produto e expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do
desenvolvimento humano; mas o representante do humano-genérico não
é jamais um homem sozinho, mas sempre a integração (tribo, demos,
estamento, classe, nação, humanidade) – bem como, frequentemente,
várias integrações – cuja parte consciente é o homem e na qual se forma
sua “consciência de nós” (HELLER, 2008, p. 36).
Em nenhuma esfera da atividade humana é possível traçar uma linha
divisória rigorosa e rígida entre o comportamento cotidiano e não cotidiano. Até
mesmo a escolha e a paixão, convertidos em costume e talvez mesmo em rotina,
pode fazer o amor “dissolver-se” no cotidiano. Nem mesmo a ciência e a arte
estão separadas da vida do pensamento cotidianos por limites rígidos, como
podemos ver vários aspectos, até as obra mais significativa volta ao cotidiano e
seu efeito sobrevive no cotidiano dos outros (HELLER, 2008).
A espontaneidade também é característica dominante do cotidiano. A
espontaneidade é a tendência de toda e qualquer forma de atividade cotidiana. A
espontaneidade caracteriza tanto as motivações particulares, quanto as atividades
humano-genéricas que nela tem lugar. O ritmo fixo, a repetição, a rigorosa
regularidade do cotidiano não estão em absolutamente em contradição com a
espontaneidade, ao contrário, elas implicam-se mutuamente. Pois até mesmo a
assimilação do comportamento consuetudinário, das exigências sociais e até dos
modismos é uma assimilação não tematizada, e que exige para sua efetivação a
espontaneidade (HELLER, 2008).
É neste sentido, que podemos considerar a possibilidade de se conceber uma
análise da construção da espacialidade e temporalidade humana, a partir dos sujeitos,
considerando os relatos, as narrativas, as representações, a espontaneidade, a
particularidade e o humano-genérico, edificados no cotidiano, que ao mesmo tempo nos
oprime e nos anima.
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