View
214
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
LITERATURA EM LIBRAS: UM OLHAR PARA OS PARATEXTOS
Juliana de Oliveira Pokorski – UFRGS
Janete Inês Müller – UFRGS
RESUMO Vinculado ao campo dos Estudos Culturais em Educação, por entender a cultura como
campo de luta em torno de significação social; e aos Estudos Surdos, por conceber a
cultura surda como espaço de contestação e de constituição de identidades e diferenças
que determinam a vida de indivíduos e de populações, neste texto, objetiva-se investigar
o papel da literatura em língua de sinais, tendo em vista os discursos que circulam em
produções culturais dos alunos do Curso de Graduação em Letras-Libras. A partir de
investigações realizadas no projeto de pesquisa Produção, Circulação e Consumo da
Cultura Surda Brasileira, são analisados os paratextos de narrativas e de poemas
produzidos pelos acadêmicos na disciplina de Literatura Surda. O corpus empírico deste
trabalho é constituído de treze (13) artefatos culturais em vídeo, com a sinalização em
Língua Brasileira de Sinais (Libras), de variados gêneros textuais (poesias, fábulas, piadas
e contos). Na análise discursiva dos paratextos que integram essas produções literárias,
destaca-se a importância da literatura em língua de sinais como meio de afirmação
identitária e cultural; além disso, como recurso e difusão entre sujeitos ouvintes,
possibilita reivindicar status para a Libras, na luta pelo reconhecimento linguístico e
direito à acessibilidade. Através dos processos de tradução, é possível aos surdos
acessarem e consumirem a literatura universal, predominantemente produzida em línguas
orais. Para isso, há que se observar a qualidade técnica e linguística das produções,
adaptações e traduções em Libras, pois contar histórias requer prática, interesse,
habilidade e fluência na língua. Tornar a literatura em Libras atraente aos seus
interlocutores influencia no consumo da produção e, consequentemente, na difusão da
cultura surda e no empoderamento das comunidades surdas.
Palavras-chave: Libras. Literatura surda. Estudos Culturais em Educação.
Territórios e caminhos investigativos
Traduzir experiências surdas através das várias gerações dos povos surdos,
rememorando vitórias, dificuldades, desafios, práticas familiares, escolares e sociais,
constitui-se em uma prática no campo da literatura, de modo que integrantes das
comunidades surdas produzem e oportunizam a circulação e o consumo cultural. A
cultura abarca “uma variedade de modos de ver a conduta humana e pode ser usada para
uma gama de propósitos” (BARKER; GALASINSKI, 2001, p. 3). “Trata-se de uma rede
de práticas e de representações implantadas (textos, imagens, conversas, códigos de
comportamento e as estruturas narrativas que os organizam), que influencia cada aspecto
da vida social” (FROW; MORRIS, 2006, p. 316). Assim, a cultura produz significados
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302612
em textos que nos interpelam e são intercambiados entre os membros de uma sociedade
ou grupo, organizando e regulando a conduta de uns em relação aos outros.
E é nessa esfera cultural que se dá a luta pela significação social. A cultura, nessa
perspectiva, tem sido discutida no campo dos Estudos Culturais, que podem ser
entendidos como um conjunto de formações instáveis e descentradas, de
problematizações e de reflexões situadas na confluência de vários campos já
estabelecidos, de modo que rompem com certas lógicas cristalizadas e hibridizam
concepções consagradas. Não sendo capturados pelas cartografias consagradas que têm
ordenado a produção do pensamento humano, na articulação dos Estudos Culturais ao
campo da Educação, são discutidas temáticas relacionadas a gênero e sexualidade;
nacionalidade; raça e etnia; cultura popular, local e global; discurso e textualidade; grupos
minoritários, entre outras.
Na discussão sobre grupos minoritários, os Estudos Surdos aproximam-se dos
Estudos Culturais em Educação, porque problematizam justamente as representações
hegemônicas, dominantes e ouvintistas sobre a surdez e a identidade dos surdos. Como
um território de investigação educacional e de proposições políticas, em que as
identidades, as línguas, os projetos educacionais, a história, a arte, as comunidades e a
cultura surda são focalizados e entendidos a partir do reconhecimento político da
diferença surda, os Estudos Surdos possibilitam o tensionamento de discursos sobre a
surdez e o mundo dos surdos. Desse modo, há o deslocamento do olhar sobre os surdos e
surdez: de uma visão clínica, de falta e de deficiência, para o viés da diferença cultural,
isto é, os surdos são vistos como indivíduos que vivenciam uma experiência visual, o que
possibilita outros modos de se comunicar e de se relacionar com o mundo.
Assim, o ‘ser surdo’ é aqui entendido como “um sujeito possuidor de uma língua,
de uma cultura e de identidades múltiplas, um sujeito social e politicamente construído,
diferente” (MORAIS; LUNARDI-LAZZARIN, 2009, p. 25). Falar de surdo é também
pensá-lo como sujeito plural, multifacetado, cuja experiência de ser, de estar no mundo,
que é coletiva no encontro com outros surdos, é sentida de maneiras singulares. Ainda,
‘ser surdo’ implica pensar em uma das possíveis posições que um sujeito pode ocupar e,
por isso, não a única. De forma geral, “os surdos, entendidos como povo ou grupo que
se nomeia como tal, estão inscritos na ordem do acontecimento cultural, ou seja, na ordem
da luta permanente do tornar-se, do vir a ser, frente a outro(s) grupo(s)” (LOPES; VEIGA-
NETO, 2010, p. 127-128).
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302613
Nesse sentido, desde as últimas décadas, no Brasil, as comunidades surdas têm se
movimentado para marcar a diferença linguística e cultural, cujas discussões possibilitam
mudanças políticas. As comunidades surdas, organizadas em associações e representadas
pela FENEIS, além de regionalmente articuladas às escolas e universidades, têm
mostrado sua força, potencializando a militância e as conquistas surdas. Assim, a Língua
Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida em nosso País através da Lei Federal 10.436,
de 24 de abril de 2002. Após, por meio do Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005,
que regulamenta a Lei nº 10.436, outras mudanças aconteceram; entre elas, a criação do
Curso de Graduação em Letras-Libras.
O Curso de Graduação em Letras-Libras, organizado pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), na modalidade presencial e a distância, envolvendo
habilitações de Licenciatura e de Bacharelado, objetiva a formação de professores e de
instrutores de língua de sinais, além de intérpretes de Libras-Língua Portuguesa. Com
uma organização curricular que contempla a linguística da Libras, a escrita de sinais, a
história, a literatura e a didática na educação de surdos, no curso, os surdos podem acessar
a todas as informações de modo bilíngue, em português ou diretamente na língua de
sinais, inclusive podem também ser avaliados em Libras. Assim, o Curso de Letras-Libras
pode ser considerado um marco importante no histórico das lutas surdas, inclusive em um
cenário de ressignificação, de potencialização e de empoderamento dos movimentos e da
comunidade surda.
Nesse âmbito, através do projeto de pesquisa Produção, Circulação e Consumo da
Cultura Surda Brasileira, foi realizada a coleta de cento e oitenta e três (183) produções
culturais de alunos do Curso de Letras-Libras, as quais foram apresentadas na disciplina
de Literatura Surda. Com o propósito de organizar os materiais empíricos, sem com isso
objetivar categorizações, estes foram tabulados em planilha, instrumento este que
contempla informações como: título, sinopse, autoria, tipologia textual, tempo, suporte
de texto, público-alvo, recursos de produção, uso das línguas, entre outras observações.
Além disso, essas produções em vídeo estão sistematizados em um banco de dados do
projeto, possibilitando análises como esta e outras possíveis, em que se observam os
direitos autorias dos acadêmicos e o termo de autorização de uso dos materiais para
pesquisa.
Os acadêmicos desse Curso, de forma individual ou em grupos, construíram
narrativas e poemas registrados em suporte digital (vídeos), potencializando a cultura
surda através de artefatos que emergem de diferentes polos e regiões brasileiras:
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302614
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade do Estado do Paraná
(UEPA), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Instituto Federal de Educação
e Tecnologia de Goiás (IFET-GO), Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD),
Universidade de Brasília (UnB), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
e Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN).
Para este texto, entretanto, foram selecionados treze (13) vídeos com sinalização
em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), de variados gêneros textuais (poesias, fábulas,
piadas e contos). A construção desse corpus empírico é justificada com base nos seguintes
descritores: análise da qualidade técnica dos vídeos, de modo que não se comprometesse
o entendimento da produção; identificação de materiais com personagens surdos ou
marcas da cultura surda, tais como a língua de sinais e a experiência visual; e atenção às
produções que, para além dos textos literários, apresentam paratextos que discutem o ‘ser
surdo’.
Essas produções, entretanto, não se caracterizam como “um campo passivo de
mero registro ou de expressão de significados existentes” (HALL, 1997, p. 47). Esses
significados são construídos historicamente, principalmente por membros das
comunidades surdas, inseridos em um campo discursivo do nosso tempo. Experienciar o
universo ficcional, linguístico e cultural das histórias de vida, dos romances, das fábulas,
das lendas, dos contos, dos poemas, das piadas, das crônicas, das histórias em quadrinhos,
dos mitos, dos jogos de linguagem e de outras produções possibilita sentir, envolver-se e
exercitar o humor, o prazer estético, a tradução cultural, as lutas, as movimentações.
Nessa esteira de pensamento, neste texto, objetiva-se investigar o papel da
literatura em língua de sinais, tendo em vista os discursos que circulam em paratextos das
produções literárias de alunos do Curso de Letras-Libras. Nesta investigação, busca-se
mostrar que, embora as produções culturais em geral ensinem alguma coisa aos leitores,
intencionalmente ou não, os paratextos elaborados buscam explicitar propósitos e
concepções dos autores, evidenciando que não se trata apenas do cumprimento de uma
tarefa da disciplina de Literatura Surda. Antes da análise discursiva desses materiais, na
próxima seção, importa discutir o que se entende por literatura surda, campo em se que
produzem os materiais aqui analisados.
Paratextos na Literatura Surda
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302615
Desde a década de noventa (90), observa-se um crescimento significativo de
produções culturais surdas, o que está relacionado às pesquisas no campo da Linguística
e da Educação, bem como às lutas e aos movimentos surdos que tensionaram mudanças
políticas e sociais. Além disso, tendo em vista os processos de globalização e avanços
tecnológicos, os trabalhos virtuais crescem consideravelmente a partir do uso da internet.
Nesse sentido, cabe ressaltar que as produções culturais aqui analisadas, assim como
outras, circulam significativamente em ambientes virtuais e são consumidas por membros
de comunidades surdas, atravessando fronteiras culturais.
No reconhecimento e valorização da cultura surda, importa dar visibilidade a esses
trabalhos e observar também os discursos produzidos na comunidade surda acadêmica,
considerando o Curso de Letras-Libras como um espaço de potencial de cultura surda. A
cultura surda assemelha-se a algo que penetra na pele de quem participa das comunidades
surdas, que compartilha um conjunto de normas, valores e comportamentos; também
possibilita ao “sujeito surdo construir sua subjetividade, de forma a assegurar sua
sobrevivência e a ter seu status quo diante das múltiplas culturas, múltiplas identidades”
(PERLIN, 2004, p. 78). Busca-se, assim, o reconhecimento e a produção de outras
imagens e sentidos daqueles até então existentes ou determinados; a “cultura é
alimentada, criada, reproduzida, reforçada e, por vezes, subvertida, largamente, pelas
narrativas com protagonistas pontuais, em circunstâncias e lugares datados” (SILVEIRA,
2005, p. 199).
E, nesse processo, a literatura surda pode ser entendida como um artefato cultural,
um recurso para os surdos, uma possibilidade de reivindicação da diferença e de marcação
da identidade no espaço público. Utiliza-se a expressão ‘literatura surda’ para histórias e
textos poéticos que têm presentes a língua de sinais, a identidade e da cultura surda
(KARNOPP, 2006, p. 102). Para as crianças surdas, a literatura surda é um meio de
referência, de aproximação com a própria cultura, de aquisição de sua primeira língua, de
construção da sua identidade surda. Além disso, sua produção e circulação vêm se
expandindo também nas escolas, em razão da comprovação de sua importância quando
utilizada na educação de crianças e jovens surdos (ROSA; KLEIN, 2011).
Ao discutirem a literatura que circula de forma impressa em língua portuguesa,
Silveira, Bonin e Ripoll (2010) chamam atenção para a funcionalidade dos paratextos.
Estes são entendidos como conjuntos de fragmentos verbais que acompanham o texto
propriamente dito, isto é, unidades amplas, como prefácios, textos da capa, ou unidades
reduzidas, como título, assinatura, data, intertítulo, rubrica, comentários. Também
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302616
constituem invólucro sedutor para a escolha e leitura de livros, apontando uma para
definição da própria obra e para a forma preferencial e ‘adequada’ de lê-la. Em geral,
antecipam descrições e percepções da obra, que, subjetivamente, conduzem os leitores.
Essas características, em geral, aplicam-se também às produções literárias que
circulam em Libras, em formato de vídeos. Nesse sentido, de modo recorrente, os
paratextos dos vídeos aqui analisados são utilizados em introduções ou em comentários
ao final das narrativas, nos quais, algumas vezes, os produtores argumentam sobre
escolhas feitas na elaboração da narrativa; em outras, são estabelecidas relações com
situações para além da história, ou seja, produzindo possíveis interpretações para os
textos, articulando-os com outros saberes, bem como direcionando o olhar sobre a
narrativa e sobre as condutas vinculadas às temáticas abordadas. Dado o seu caráter
persuasivo, pedagógico e direto em reforçar ideias e conceitos, os paratextos são
apresentados com clareza, inclusive quanto aos objetivos dos produtores das narrativas.
Os discursos dos paratextos proliferam-se, recrutam os sujeitos, legitimam
significados, constituem verdades, ainda mais contando a ‘aprovação’ de quem
experiência a surdez, de quem tem autoridade para, numa relação de saber-poder,
significar o ‘ser surdo’ e sua cultura. Cabe observar que os discursos não são aqui
entendidos apenas como “conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a
conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os
objetos de que falam (FOUCAULT, 2005).
Diante das lentes investigativas aqui utilizadas, evidencia-se uma recorrência
discursiva nos materiais aqui analisados: o importante papel da sinalização em Libras,
seja na produção, na tradução ou na adaptação de produções culturais surdas, artefatos
esses que constituem a literatura surda.
Literatura em Libras: acesso à língua e à cultura
A análise das produções culturais dos alunos do Curso de Letras-Libras evidencia,
de modo geral, a demarcação de um espaço de resistência aos modos de narrar os surdos
a partir da falta e da deficiência; denunciam-se práticas excludentes, dando ênfase ao
papel da comunidade e da língua de sinais para a constituição do sujeito surdo como
culturalmente diferente. Além disso, valoriza-se o registro das produções culturais em
Libras, sobretudo como uma estratégia e possibilidade de empoderamento da cultura
surda, oportunizando aos surdos dizerem sobre si e sobre suas relações com os diferentes.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302617
Nesse sentido, a diferença surda é marcada perante a reivindicação de uma
mudança de status para a língua de sinais, sobretudo a partir de seus usos na literatura.
Os usos que se faz da língua de sinais produzem significados sobre ela. Assim, quando
ela é utilizada no ambiente escolar, mas não no ambiente familiar e possui pouca
visibilidade nas demais esferas sociais e nos veículos de informação, é possível que seja
atribuído a ela um status inferior. Ampliar os usos dessa língua na literatura pode, em
certa medida, modificar esse cenário. Percebe-se que, desse modo, as produções culturais
surdas são posicionadas como recurso (YÚDICE, 2006) para afirmação identitária e para
a luta por acessibilidade e reconhecimento linguístico.
Tal questão abre espaço para o direito de comunicação, expressão e informação
de um modo mais amplo, em espaços tais como na internet e a televisão, que, em geral,
priorizam, em nível nacional, o português como língua padrão. A língua de sinais é
representada, portanto, como a língua mais acessível para o sujeito surdo e eixo central
da constituição de sua identidade. Em vários paratextos analisados, percebe-se o papel da
literatura produzida ou traduzida para a língua de sinais não somente como uma
possibilidade, mas como um direito de afirmar-se linguisticamente diferente.
Também é possível observar uma exaltação da língua de sinais para além do valor
comunicativo, isto é, como um meio de produção e de registro cultural, assim
constituindo-se uma fonte profícua para a mudança de olhar sobre os sujeitos surdos. O
excerto a seguir corrobora essa afirmação, apresentando a literatura, neste caso traduzida
para a Libras, como um veículo de produção e de consumo cultural, principalmente de
significativa importância na educação de crianças, para que se identifiquem com a cultura
surda.
O grupo pesquisou a literatura surda, pensando em como trabalhar com as crianças, pois as crianças
precisam ter consciência de como funciona a vida em geral [...]. Também é importante essa tradução
para a Libras, para que se sintam surdos, na cultura surda. (Vídeo 18 - A barriga e os membros)
Os paratextos sinalizados em Libras evidenciam que há interesse de possibilitar a
outros o acesso à literatura diretamente em língua de sinais, o que não era possível há
poucas décadas, tanto pela falta de reconhecimento desta língua quanto pela ausência, ou
difícil acesso às tecnologias que possibilitassem esse registro. Esse movimento não
implica, no entanto, o abandono da literatura escrita, pois esta integra as narrativas através
de legendas, textos intercalados à sinalização e também ao referenciar-se a fonte original
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302618
que deu base à tradução. Trata-se muito mais de uma questão de direito à educação
bilíngue, para que ambas línguas sejam entendidas como produtivas e acessíveis. Isso
possibilita à criança, como mencionado no excerto anterior, o conhecimento sobre o
funcionamento da vida em geral.
Nessa perspectiva de intercâmbio linguístico e cultural, no material analisado, é
evidenciada a importância de se possibilitar aos ouvintes o acesso à língua de sinais, de
modo a partilhar e socializar o seu uso. Na tentativa de se desmistificar a concepção de
que a Libras seria de uso restrito na comunidade surda, em um processo de intercâmbio
linguístico e cultural, as produções em vídeo aqui analisadas buscam tornar a língua de
sinais atrativa para os ouvintes, difundindo ainda mais o seu uso. A partir disso, vinculado
aos processos de tradução para a língua de sinais, as possibilidades de acesso dos surdos
a textos em Libras, e não somente de literatura, são ampliadas. Nessa direção, as línguas
orais e de sinais são acessíveis para surdos e ouvintes, reduzindo-se barreiras na
comunicação ou no acesso à informação e à cultura.
Outro ponto de reflexão está relacionado aos significados atribuídos às diferentes
produções literárias em língua de sinais (produções, adaptações e traduções). No caso das
produções e adaptações de narrativas e poemas, que envolvem um processo de recriação,
há uma preocupação de não somente a língua de sinais estar presente nesses textos.
Entretanto, deseja-se que o surdo possa ser identificado e se identificar com essas
produções culturais. Afinal, à medida que os sujeitos se fazem presentes na literatura,
também se tornam mais visíveis na sociedade.
Em se tratando de traduções de textos para a Libras, percebe-se, nos paratextos, o
destaque para o resgate de conhecimentos que circulam culturalmente, além do prazer
literário em primeira língua. Nos discursos, principalmente apresentados após as
narrativas e poemas, afirma-se que a escolha de traduzir uma fábula ou um conto bíblico
para a língua de sinais objetiva que os surdos tenham acesso a ‘toda’ a literatura. Embora
a totalidade literária seja um ideal utópico, há o desejo de que outras pessoas produzam
traduções, já que os materiais que têm circulado atualmente são restritos.
No excerto a seguir apresentado, além da importância atribuída para a visualidade
da Libras e da comunicação entre ouvintes e surdos, fica evidente que a tradução
possibilita acessar e consumir a literatura universal, predominantemente produzida em
línguas orais. Também aponta-se para a qualidade da história escolhida, O corvo e a
raposa, que é engraçada e divertida, como se observa:
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302619
Nós escolhemos a história pois a adoramos por ser engraçada, clara. É importante contar para crianças
surdas e ouvintes, para que conheçam a visualidade da Libras e aprendam a se comunicar com os surdos.
Traduzir a literatura é importante para que os surdos possam acessar a toda literatura infantil e adulta.
(Vídeo 19 – O corvo e a raposa)
Um último ponto discutido pelos paratextos é relativo à qualidade técnica e
linguística das traduções. Assim como acontece nas traduções em geral - e o mesmo
acontece com a tradução para as línguas de sinais –, a apropriação temática e linguística
do tradutor, em ambas as línguas em que trabalha, faz diferença no resultado final. O
paratexto a seguir apresentado chama atenção para o valor de uma história que circula em
língua de sinais, mas atenta para a necessidade de se utilizarem variados recursos da
Libras, de modo a torná-la mais envolvente, mais atrativa, sobretudo com o uso de
classificadores, expressões corporais e faciais, o uso dos espaços etc. Nesse exemplo,
percebe-se que os integrantes do grupo, ao localizarem uma história sinalizada em DVD
e anexa a um livro impresso, buscam melhores estratégias para a realização de sua
tradução.
[...] Nós vimos o livro e achamos muito legal que houvesse Libras, para divulgar essa língua . Mas nós
achamos muito estranho que o livro era legal, os desenhos perfeitos, mas o DVD era ‘mais ou menos’.
Havia a língua de sinais, mas a sinalização da mulher era ‘mais ou menos’, estranha. Isso é porque a
mulher que conta a história é ouvinte, faltou expressão facial, classificadores, expressão corporal. Por
que não foi uma pessoa surda sinalizar? Os surdos têm mais contato com a língua de sinais, por que não
um surdo? Também pegamos a história dos três porquinhos no Youtube e era visualmente perfeita, o
plano de fundo também era perfeito. É complicado divulgar pelo Brasil um livro como esse com defeitos;
é preciso ter cuidado, melhorar. Parabéns pela divulgação, mas é preciso estimular a Libras mais perfeita.
Podiam usar outra estratégia como um grupo de teatro, utilizar materiais, como a casa dos porquinhos,
palha, madeira, tijolos, enfim, usar a criatividade. (Vídeo 36 – Os três porquinhos)
O paratexto ainda aponta para o surdo como um sujeito que sinaliza de ‘modo
mais perfeito’ em Libras, como aquele que melhor saberia utilizá-la em detrimento aos
ouvintes. De fato, os surdos utilizam a língua de sinais com muito mais frequência e,
assim, adquirem uma fluência melhor se comparados a alguns ouvintes que aprendem e
utilizam a língua apenas em cursos de idiomas e possuem pouco contato com a
comunidade surda. Essa não é, portanto, uma regra, pois há ouvintes – e acrescentam-se
aqui os tradutores e intérpretes de Libras – que têm participação em cursos de formação,
convivem diariamente com familiares, cônjuges, amigos e colegas de trabalho surdos; e,
desse modo, sinalizam muito bem.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302620
Além disso, a arte de contar histórias ultrapassa o saber linguístico, é uma
habilidade a ser desenvolvida. Ao se contar uma história em português, por exemplo, é
necessário ter conhecimento do texto e da língua utilizada, bem como é preciso saber
utilizar diferentes entonações de voz e outras estratégias para captar a atenção e o
interesse dos interlocutores. E, de modo semelhante, dá-se o processo em língua de sinais,
ou seja, contar histórias é uma questão que envolve prática, interesse, habilidade e
fluência na Libras.
Amarrações finais
Neste estudo, buscou-se discutir o papel da Libras nas produções culturais surdas,
principalmente os discursos que circulam em paratextos de narrativas e poemas que
compõem a literatura surda, aqui entendida como recurso de difusão da língua de sinais
e da cultura surda. Percebe-se que, através da literatura, reivindica-se o acesso ao
conhecimento e às informações difundidas geralmente através da escrita. A partir dos
paratextos, ao se apresentar a língua de sinais como bela e produtiva e, dessa forma,
desejável para além da comunidade surda, intenta-se para a equalização do status de
línguas em contato (português e Libras), bem como discute-se a potencialidade de uma
educação bilíngue para surdos e ouvintes.
Nesse movimento, cabe destacar o importante advento das tecnologias, que
possibilitaram o registro e a difusão de imagens e de textos sinalizados, proporcionando
segurança e empoderamento às comunidades surdas, além de favorecer o atravessamento
de fronteiras linguístico-culturais em diferentes espaços e tempos. Em consonância a isso,
cabe ainda salientar a importância dos movimentos impulsionados pela Lei de Libras, a
qual, de certo modo, é aplicada atualmente nas Universidades, em alguns eventos e
espaços sociais, seja pela presença mais significativa de intérpretes, seja pela imersão dos
surdos diferentes instâncias do mercado de trabalho e ambientes de escolarização.
Tal movimentação também potencializa a literatura surda, que, nas últimas duas
décadas, ampliou consideravelmente o número de produções sobre a temática surda, com
a autoria surda, ou com a presença da língua de sinais. Tendo a literatura como um artefato
a ser consumido culturalmente, cabe torná-la atraente aos seus interlocutores, tal como
acontece na literatura escrita, em que, para além do texto escrito, cada vez mais se investe
nas imagens, na qualidade gráfica, entre outros recursos. Assim acontece – ou a menos
poderia –, no campo da literatura em Libras, considerando-se a qualidade da sinalização,
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302621
das técnicas e dos recursos utilizados, o que interfere consideravelmente no consumo da
produção.
Esta investigação não pretendeu abranger a totalidade do corpus empírico
analisado, muito menos contemplar as diversas e complexas discussões que têm se dado
no campo dos Estudos Culturais em Educação, principalmente ao se discutir a literatura
surda como um artefato cultural, que produz sujeitos surdos culturalmente diferentes e,
portanto, olhados sob ‘lentes’ dos Estudos Surdos. Talvez tenha se encaminhado muito
mais pela intenção de plantar sementes, esperando que o leitor, ao refletir, faça elas
germinarem e florirem em outras produções.
Referências
BARKER, Chris; GALASINSKI, Dariusz. Cultural Studies and Discourse Analysis: a
dialogue on language and identity. London: Thousand Oaks; New Delhi: Sage, 2001.
FOUCAUL, Michel. Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005.
FROW, John; MORRIS, Meaghan. Estudos Culturais. In: DENZIN, Norman K.;
LINCOLN, Yvonna S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens.
Porto Alegre, RS: Artmed, 2006.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso
tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46. jul./dez. 1997.
KARNOPP, Lodenir Becker. Literatura Surda. EDT: Educação Temática Digital.
Publicação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. v. 7, n. 2,
p. 98-109, jun. 2006.
LOPES, Maura Corcini; VEIGA-NETO, Alfredo. Marcadores culturais surdos. In:
VIEIRA-MACHADO, Lucyenne Matos da Costa; LOPES, Maura Corcini (Orgs.).
Educação de surdos: políticas, língua de sinais, comunidade e cultura surda. Santa Cruz
do Sul: EDUNISC, 2010. p. 116-137.
MORAIS, Mônica Zavacki de; LUNARDI-LAZZARIN, Márcia Lise. Pedagogia e
diferença: capturas e resistências nos discursos curriculares da educação de surdos. In:
THOMA, Adriana da Silva; KLEIN, Madalena (Orgs.) Currículo & Avaliação: a
diferença surda na escola. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2009. p. 16-31
PERLIN, Gladis Teresinha Taschetto. O lugar da cultura surda. In: LOPES, Maura
Corcini; THOMA, Adriana da Silva. (Orgs.). A invenção da surdez: cultura, alteridade,
identidade e diferença no campo da educação. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302622
ROSA, Fabiano Souto; KLEIN, Madalena. O que sinalizam os professores surdos sobre
a literatura surda em livros digitais. In: KARNOPP, Lodenir Becker; KLEIN, Madalena;
LUNARDI-LAZZARIN, Márcia Lise (orgs). Cultura surda na contemporaneidade:
negociações, intercorrências e provocações. Canoas, RS: Editora da Ulbra, 2011.
SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. Discurso, escola e cultura: breve roteiro para pensar
narrativas que circundam e constituem a educação. In: SILVEIRA, Rosa Maria Hessel.
(Org.) Cultura, poder e educação: um debate sobre os Estudos Culturais em Educação.
Canoas: Editora da ULBRA, 2005.
SILVEIRA, Rosa Maria Hessel; BONIN, Iara Tatiana; RIPOLL, Daniela. Ensinando
sobre a diferença na literatura para crianças: paratextos, discurso científico e discurso
multicultural. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 15, n.43, jan./abr., 2010.
p. 98-108.
YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2006.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302623
Recommended