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Revista do CONAPRA - Conselho Nacional de Praticagem - Edição especial
índice indexCONAPRA – Conselho Nacional de Praticagem
Av. Rio Branco, 89/1502 – Centro Rio de Janeiro – RJ – CEP 20040-004Tel.: 55 (21) 2516-4479conapra@conapra.org.brwww.conapra.org.br
diretor-presidente Ricardo Augusto Leite Falcão
diretoresAlexandre Koji TakimotoCarlos Alberto de Souza FilhoLauri Rui RamosLinésio Gomes Barbosa Junior
diretor / vice-presidente sênior da IMPAOtavio Fragoso planejamento Otavio Fragoso / Flávia Pires / Claudio Davanzo
edição e redação Maria Amélia Parente (jornalista responsável) MTb/RJ 26.601
revisão Maria Helena Torres
tradução Celimar de OliveiraRoberto James Ramsay Paola Gómez Salvador
projeto gráfico e designKatia Piranda
pré-impressão / impressãoDVZ/Davanzzo Soluções Gráficas
fotosFábio Moreira Salles
As informações e opiniões veiculadas nesta publicação são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Não exprimem, necessariamente, pontos de vista do CONAPRA.
5Ricardo FalcãoApresentação
Os trabalhadores no desenvolvimento da atividade marítima e portuária 9Severino Almeida
Praticagem: atividade essencial e de interesse público. O paradigma internacional, a importância da regulação social e econômica 14
Michael R. Watson
Uma visão geral das orientações da IMO incluindo a Resolução A.960 e as regras Solas relativas à praticagem
21Gurpreet Singhota
Avaliação e expectativas da Intertanko em relação ao serviço de praticagem
26Joseph Angelo
Gerenciamento de risco nas atividades do prático 32Siegberto Rodolfo Schenk Jr.
A regulação inadequada e suas consequências: o exemplo do Reino Unido 40John Pearn
Comparação do modelo brasileiro com modelos de praticagem de outros países: a praticagem nos Estados Unidos 47
Paul Kirchner
Comparação do modelo brasileiro com modelos de praticagem de outros países: a praticagem na Europa
54Hans-Herman Lückert
Características econômicas da praticagem, competitividade e regulação econômica
59Ronaldo Fiani
As consequências da concorrência no serviço de praticagem: o exemplo da Argentina
62Pablo Pineda
Infraestrutura portuária e aquaviária: dragagem e levantamento batimétrico _
parâmetros e planejamento65Edson Mesquita
A simulação como ferramenta para o desenvolvimento de terminais e vias de acesso
69Eduardo Tannuri
A evolução tecnológica da navegação marítima: e-navigation e VTMIS. O prático será substituído pela tecnologia?
75Simon Pelletier
Aspectos Jurídicos do serviço de praticagem: o armador estrangeiro, suas representatividade e responsabilidades 87
Eliane Octaviano
A necessidade da estabilidade institucional, jurídica, operacional e econômica para a eficiência do serviço de praticagem
93Jaime Machado
Qualidade e eficiência no serviço de praticagem 79Jean-Philippe Casanova
Palavras Iniciais da autoridade marítima brasileira 7Vice-alte. Claudio Portugal de Viveiros
Encerramento 101Ricardo Falcão
4IntroduçãoPraticagem, a eficiência em benefício do interesse público
Praticagem, a eficiência em benefício do interesse público
Práticos não estão diretamente vinculados à atividade portuária; afinal, o exercício desses profissionais aquaviários se comple-ta exatamente com a atracação do navio no porto, momento a partir do qual a atividade portuária efetivamente tem início.
Entretanto, o debate que tem como palco principal o Congresso Nacional, em torno da revisão do marco regulatório do sistema portuário, popularizado pela intensa cobertura da imprensa, tem incluído com frequência o serviço de praticagem entre os setores da infraestrutura portuária que precisam ser "modernizados" visando garantir a eficiência logística necessária para fazer frente à previsão do crescimento do comércio marítimo nos próximos anos.
Visão equivocada, gerada principalmente pela falta de informação sobre a atividade, mesmo entre aqueles que, não sendo usuários diretos do serviço, são beneficiados por sua boa qualidade e serão prejudicados se essa qualidade for comprometida.
De fato, mesmo não sendo os práticos portuários, sua atuação é fundamental para a utilização segura e eficiente dos portos e de suas vias de acesso. Os práticos, entretanto, não são a pedra no caminho para a eficiência do comércio exterior brasileiro. Ao contrário, da mesma forma que evitar as pedras e outros perigos submersos e garantir o tráfego seguro das embarcações na costa brasileira constituem sua atividade diuturna, a busca da eficiência tem sido a marca do desenvolvimento desses profissionais desde que, em 1808, em seguida à abertura dos portos às nações amigas, D. João VI regulamentou o exercício da profissão.
Nada mais oportuno, no momento em que o foco da discussão é a eficiência, do que apresentar ao público o padrão que caracteriza o serviço de praticagem nas nações marítimas tidas como referências internacionais de qualidade, padrão ao qual a praticagem brasileira nada fica a dever.
Com essa finalidade o Conselho Nacional de Praticagem realizou nos dias 9 e 10 de maio, no Rio de Janeiro, o seminário "O serviço de praticagem no Brasil e a experiência internacional", reunindo profissionais e especialistas de diversos países.
A intenção foi mostrar a realidade nos diferentes países em que esses profissionais atuam, bem como evidenciar as qualidades do modelo brasileiro, cujas características e resultado são comparáveis aos dos melhores exemplos internacionais.
Desde 1808 o serviço de praticagem foi provido ou regulado pela Marinha do Brasil, que responde pela segurança da navegação em nossas águas. Recentemente foi incorporada à estrutura de regulação a Comissão Nacional de Assuntos de Praticagem − CNAP, com representantes de outros setores do governo federal e com a finalidade de assessorar a autoridade marítima brasileira na coordenação dessa atividade estratégica para o interesse nacional.
Mais uma boa razão para a realização desse seminário que pôde proporcionar aos membros do CNAP − a maioria iniciando seu aprendizado nas questões relacionadas com a atividade de praticagem − um panorama extenso e detalhado da organização do serviço.
Os primeiros registros do serviço de praticagem remontam a tempos babilônicos. Conhecemos a importante função social de nossa atividade e a responsabilidade de garantir a movimentação segura e sem regime de preferências dos navios e, por consequência, a livre circulação de mercadorias. Estamos convictos da necessidade de aprimorar cada vez mais os serviços e oferecer nossa contribuição ao desenvolvimento sustentado do país. Esperamos, em contrapartida, que nossos legisladores e governantes tenham iguais responsabilidade e visão pública na elaboração da legislação pertinente e na gestão do serviço.
Nesta edição da Rumos Práticos o leitor terá acesso a todo o conteúdo do seminário realizado pelo CONAPRA, em maio, no Rio de Janeiro. Divulgamos a seguir os discursos e as palestras do evento a fim de que fique registrado em nosso periódico esse importante momento da praticagem brasileira, quando especialistas brasileiros e estrangeiros se debruçaram sobre uma profissão tão importante quanto silenciosa. Uma profissão que faz jus à máxima britânica “No news is good news”.
Ricardo Falcão
4 5
É com imensa satisfação que dou as boas-vindas a todos!
O seminário “O serviço de praticagem no Brasil e a experiência
internacional” é evento histórico, e muito nos honra estarem aqui
reunidos distinguidos profissionais e especialistas de diversos
países para abordar, com amplitude, serenidade e isenção, este
tema tão em pauta e, infelizmente, tão distorcido no Brasil: o
serviço de praticagem.
A competitividade do Brasil é tema recorrente na mídia, e essa
discussão sempre nos remete à história da formação do país e a
dois questionamentos: por que não nos tornamos um país desen-
volvido, como a quase totalidade das nações da Europa ocidental e
da América do Norte, com os quais compartilhamos forte herança
sociocultural? E por que com um parque industrial amplo e diversi-
ficado, nossa vantagem comparativa sempre se concentrou em
matérias-primas e manufaturados de baixa tecnologia? Há diversas
teses que pretendem explicar essa diferença, que não é condição
apenas do Brasil, mas da maioria dos países latino-americanos.
Não pretendemos responder a essas questões nem nos prolongar
nessa discussão. Queremos registrar apenas que os brasileiros
Diretor-presidente do CONAPRA
Ricardo Falcão
nada tiveram de graça e que, pelo esforço de alguns setores
destacados da economia, fomos capazes de transformar muitas
das desvantagens iniciais em poderosos trunfos, à custa de muito
trabalho, dedicação e inventividade. A praticagem brasileira é
parte ativa desse processo de desenvolvimento há 205 anos.
Permanentemente disponível, estruturada com profissionais habi-
litados e qualificados, sempre teve como característica principal a
capacidade de superar desafios. Na verdade a praticagem foi mais
e além, assumindo inúmeras funções típicas de uma autoridade
portuária e substituindo com tecnologia e atuação próprias as
lacunas de levantamento hidrográfico e balizamento. A busca de
excelência na prestação do serviço tem permitido que a praticagem
brasileira se mantenha na linha de frente do contínuo desenvolvi-
mento de nosso país, muito adiante dos investimentos nos portos
e suas vias de acesso.
A importância da praticagem para a competitividade nacional
passa pela presença qualitativa e quantitativamente destacada do
serviço nos portos, rios e demais vias navegáveis, bem como pelo
papel fundamental no crescimento dos navios que frequentam
nossos portos e no volume de cargas transportadas sem que inves-
timentos proporcionais em infraestrutura tenham sido feitos. Os
maiores navios do mundo, sejam petroleiros da classe ULCC,
graneleiros valemax, navios de passageiros como o impressio-
nante Queen Mary II, enfim navios aceitos em pouquíssimos portos
do mundo, frequentam os nossos, com práticos sempre prontos a
garantir segurança e eficiência. Não estamos falando a respeito de
um projeto de futuro, pois praticagem de primeiro nível, de
excelência, é a realidade já disponível em nosso país. Não fossem
a proatividade, os investimentos próprios em estrutura e trei-
namento, a integração e, sobretudo, a capacitação e a perícia dos
práticos brasileiros, que a regulação atual tem possibilitado, o
Porto de Santos, por exemplo, não teria condições de receber
Silêncio: o som da segurança
6
navios com 330 metros de comprimento, praticamente o dobro do
que sua estrutura permite. No Porto de Manaus, o terminal cons-
truído em 1907 e projetado para navios de até 35 mil toneladas
não estaria operando com embarcações três vezes maiores.
O Porto de Itaqui não estaria recebendo, com total segurança,
navios com capacidade para transportar 400 mil toneladas de
minério de ferro.
A praticagem brasileira é referência
mundial! Nosso maior problema é a
falta de manchetes anunciando o quanto
somos eficientes e eficazes. As senho-
ras e os senhores jamais lerão alguma
manchete anunciando a não ocorrência
de acidentes: o som da segurança é
o silêncio.
Reitero a importância histórica deste
seminário!
Nestes dois dias, reconhecidos
profissionais marítimos, cientistas e
intelectuais do mar, renomados juristas
e outros peritos, do Brasil e do
exterior, compartilharão uma parcela
de sua experiência e de seu conhecimento, lançando muita
luz sobre o assunto.
Como já manifestei publicamente em outras ocasiões, a criação da
Comissão Nacional para Assuntos de Praticagem, da qual vários
membros se encontram presentes, foi muito bem recebida pela
praticagem brasileira.
Ela representa uma nova oportunidade de desmitificar a profissão,
consolidando tudo de positivo que foi desenvolvido por mais de
200 anos de atuação regulamentada e aprimorando pequenas
imperfeições que porventura ainda subsistam.
Senhoras e senhores, um de nossos práticos é o vice-presidente
sênior da International Maritime Pilots Association − IMPA, o
segundo maior cargo na associação mundial dos práticos.
No final do ano passado, durante o Congresso Mundial da catego-
ria, ocorrido em Londres, a organização da praticagem brasileira foi
apresentada com seu atual modelo regulatório e reconhecida como
padrão de eficiência, de qualidade de prestação de serviço e prin-
cipalmente pelo baixíssimo nível de acidentes: na faixa de poucos
milésimos porcento, tal como o dos Estados Unidos, a despeito das
restrições de infraestrutura e da precária qualidade e quantidade
de ferramentas de apoio aqui existentes.
Assim, a grande questão é: “o que e
como deve ser mudado?”
O último estudo abrangente sobre a
praticagem nos Estados Unidos ocupou
170 verdadeiros especialistas durante
um ano e meio, gerando relatório final
de 500 páginas. Na Europa outros tan-
tos especialistas se debruçaram sobre a
questão durante dois anos, para uma
conclusão de 400 páginas. Ambos os
estudos, contando sempre com a par-
ticipação das praticagens nacionais,
recomendaram a manutenção do para-
digma mundial de organização da ativi-
dade, o mesmo adotado no Brasil.
Senhoras e senhores, qualquer manobra com embarcações de
grande porte em águas restritas envolve riscos enormes.
As discussões sobre o serviço de praticagem estão muito incipientes
e contaminadas por meias verdades. Nem de longe houve tempo
suficiente para alcançar o aprofundamento necessário à produção de
alterações significativas nessa área extremamente sensível.
O interesse público deve prevalecer acima de tudo.
Daí, a relevância de um evento desse porte.
Sejamos receptivos! Mantenhamos nossas mentes abertas!
Participemos dos debates! E, sobretudo, busquemos a resposta
a uma só questão: que serviço de praticagem queremos para
o Brasil?
Muito obrigado!
7
Ilmo Sr. Ricardo Falcão, diretor-presidente do CONAPRA – Conselho
Nacional de Praticagem; oficiais da MB e representantes da CNAP;
Ilmo Sr. Michael Watson, vice-presidente do International Maritime
Pilots Association; Ilmo Sr. Severino Almeida, presidente do
Sindicato Nacional de Oficiais da Marinha Mercante; IImo Sr.
Gurpreet Singhota, representante da Organização Marítima
Internacional; Ilmos Srs. presidentes das associações e empresas
de praticagem; Ilmos Srs. práticos brasileiros e práticos repre-
sentantes de associações e entidades de outras nações; Ilmos
Srs. representantes de empresas, associações, sindicatos e arma-
dores; Ilmos Srs. professores; Ilmos Srs. palestrantes; bom dia!
Neste seminário e encontro com os práticos, de que participo pela
primeira vez como diretor de Portos e Costas, gostaria de inicial-
mente transmitir-lhes a minha satisfação em poder dirigir-me aos
senhores, proferindo estas breves palavras.
Agradeço a gentileza do convite do Sr. Ricardo Falcão, diretor-
presidente do CONAPRA, e quero parabenizá-lo pela idealização
deste evento, que se reveste de especial significado ao reunir tão
seleto grupo de palestrantes para abordar o serviço de praticagem
no Brasil, incluindo neste debate a valiosa experiência internacio-
Diretor de Portos e Costas
Vice-alte. Claudio Portugal de Viveiros
nal. Considero importante ressaltar a grandeza do nosso país, com
a diversidade de portos, rios e canais, segmentados em 22 zonas
de praticagem (ZP), que agrupam práticos trabalhando em cenários
distintos, e que neste evento terão a oportunidade de compartilhar
suas vivências, aprimorando ainda mais a expertise desses compe-
tentes profissionais.
O serviço de praticagem, desde sua criação oficial em 1808, com o
primeiro decreto imperial regulamentador, tem merecido especial
atenção da Marinha do Brasil, por sua vinculação direta com a
segurança da navegação, prestando assessoria essencial aos coman-
dantes das embarcações quando navegando em águas restritas.
A atividade de praticagem envolve também aspectos importantes de
cunho econômico, social e ambiental, como o comércio exterior, as
relações com o Estado e com os tomadores de serviço, a proteção do
meio ambiente, a salvaguarda da vida humana, o custo do seguro e
muitos outros que deixarei de elencar, mas que integram essa
dinâmica atuação em prol dos componentes do Poder Marítimo.
Historicamente, são incontestáveis as excelentes referências sobre
a qualidade, o profissionalismo e a sólida formação dos nossos
práticos, e acredito que a principal contribuição de todos os
agentes que atuam como representantes da autoridade marítima
para a manutenção dessa capacitação técnica é buscar,
diuturnamente: o aperfeiçoamento das Normas da Autoridade
Marítima para o Serviço de Praticagem (Normam-12); manter
em alto nível o processo seletivo e os programas de qualificação
e habilitação dos praticantes de prático; com o apoio do
Conselho Nacional de Praticagem (CONAPRA), realizar os
Cursos de Atualização de Práticos (ATPR) e, enfim, como
previsto em diplomas legais, regular o serviço de praticagem
com o máximo empenho, aliás, como tem sido conduzido desde
Palavras iniciais da autoridade marítima brasileira
8
o reinado de D. João VI até a entrada, em 1997, da Lei 9.537,
comumente conhecida como Lesta.
A época para a realização deste seminário é também oportuna,
haja vista que se encontra em andamento a adoção de várias
medidas e ações governamentais para o setor atinente ao tema,
ensejando relevantes modificações que geram expectativas
otimistas no meio marítimo e que, certamente, contribuirão para
melhorar a eficiência de nossos portos, de forma a dar conta
da crescente movimentação de cargas e do incremento das
atividades marítimas e fluviais.
Para não me alongar na abertura deste seminário, de forma que
os senhores possam tirar o máximo proveito dos ensinamentos
que certamente aqui serão trazidos, quero concluir com a seguinte
mensagem: que a DPC e seu diretor manterão o relacionamento
franco e profícuo com o CONAPRA, com as associações de práticos
e com os práticos de forma geral. Ressalto que a expressão
máxima de um serviço de praticagem, seja em nível nacional ou
internacional, é atingida quando essa atividade se desenvolve
com maturidade e consciência profissional, de modo a que a
autoridade marítima, competente para exercer a supervisão e
o controle, possa estar tranquila e convicta, sabedora de que
a segurança da navegação, a salvaguarda da vida humana e a
prevenção da poluição ambiental no mar e nas hidrovias
interiores estão asseguradas.
Por fim, desejo-lhes para estes dois dias um produtivo seminário.
Muito obrigado!
Bacharel em ciências náuticas. Presidente do Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante – Sindmar.
Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aquaviário e Aéreo, na Pesca e nos Portos – Conttmaf.
Vice-presidente da International Transport Workers Federation – ITF.
Severino Almeida
9
Bom dia a todos e a todas. Para não nominar cada um, saúdo todos
os palestrantes presentes na pessoa do presidente do CONAPRA,
companheiro Ricardo Falcão, e os demais presentes neste semi-
nário na pessoa do almirante Viveiros, atual diretor de Portos e
Costas, representante da autoridade marítima brasileira. Além de
satisfação imensa em dirigir a palavra a vocês, fiquei um pouco
surpreso com o convite. Pediu-me o CONAPRA que apresentasse
uma visão de nossa organização, o que poderia significar o que
seria desenvolvimento na nossa atividade. Então vou-me permitir
expressar-me muito mais como presidente de confederação do que
como presidente do Sindicato dos Oficiais da Marinha Mercante.
A questão básica que se apresenta diante do desafio que me colo-
caram é como a representação dos trabalhadores do setor maríti-
mo e portuário expressa o que seus representados entendem
como desenvolvimento na atividade. Aparentemente simples, essa
questão é extremamente complexa dependendo dos interesses,
das perspectivas do que é desenvolvimento. Vou expressar nossa
visão, a do trabalhador do setor. Só faz sentido para nós dizer que
alcançamos desenvolvimento em determinada atividade quando
desenvolvimento implica aumento de eficiência, sem exclusão
social, justa distribuição de riqueza produzida, com valorização do
trabalho e contribuição para um país mais rico e justo.
Infelizmente essa visão não é consensual nem no Brasil, nem,
provavelmente, em nenhuma região do mundo, independente da
ideologia reinante. Ainda mais na relação capital/trabalho, no
sistema capitalista. O próprio sistema busca o lucro, seu objetivo
maior. Pode até haver alguma sensibilidade social ou compromisso
de distribuição de riqueza, mas fato é que há prioridade muito clara
na acumulação de riqueza, através do lucro. Assim é o sistema.
Nosso país, neste momento, nos desafia a fazê-lo crescer.
Não nos esquecendo de que o compromisso maior não
deve ser com a concentração dessas riquezas, mas com
sua distribuição.
Assim como cada um de vocês, eu gostaria que nosso crescimento
fosse maior do que o ocorrido nos dois últimos anos. Estamos
crescendo, é verdade. Mas a alegria maior é o fato de que estamos
conseguindo distribuir melhor nossa riqueza. Nosso setor é
extremamente estratégico para o país. O que eu vou dizer todos
vocês sabem; provavelmente todos lembram, mas a sociedade
brasileira de um modo geral nem sequer se lembra disso. Ao sair
de casa, ao tomar seu café da manhã – aqueles que podem – nem
sequer se lembram de que o trigo passou num porão de navio. Ao
vestir a roupa não passa pela cabeça do cidadão brasileiro que
aquele material passou efetivamente por um navio. Ao tomar um
ônibus, um táxi, não lhe passa pela cabeça que o combustível
passou pelo nosso setor.
É absolutamente impossível uma sociedade moderna se organizar
e existir sem a nossa participação. Costumo dizer que enquanto
não inventarem uma máquina que transporte uma mercadoria de
um ponto A para um ponto B através de um sistema que lhe
garanta desaparecer do ponto A e aparecer repentinamente no
ponto B, a nossa continuará sendo uma das atividades mais
Os trabalhadores no desenvolvimento da atividade marítima e portuária
10
estratégicas do mundo. Podemos comprar e vender mercadorias
pela internet, dispensar a ida física a estabelecimentos bancários,
fazer negociações usando meios eletrônicos; muita coisa pode-se
fazer neste mundo de hoje sem necessariamente a presença física.
Mas ainda não inventaram uma forma de concretizar todas essas
negociações e trocas necessárias para que uma sociedade
moderna possa existir sem que nós estejamos presentes.
Isso nos faz muito especiais e responsáveis; exige que todos nós,
em nosso setor, tenhamos plena consciência do nosso papel
nesse processo. Não podemos nem devemos permitir que o
desenvolvimento nessa atividade venha favorecer grupos
específicos ou possa deixar nosso país dependente de controle
externo. O capital estrangeiro neste país − pelo menos é assim que
os trabalhadores pensam − é muito bem-vindo. Mas temos
que aceitá-lo mantendo nossa soberania e sabendo utilizá-lo da
forma que nos interessa, dando contrapartida àquele que investe.
Desde os anos 90 é evidente em nosso país o esforço de
armadores e operadores portuários em responsabilizar os
trabalhadores marítimos e portuários pelos altos custos e
ineficiência operacionais do setor. A mídia em regra amplifica
esse entendimento formando opinião nesse sentido.
Desafio qualquer um que viva em nosso país a afirmar desconhecer
que o tripulante brasileiro é extremamente caro, que o sistema
portuário é um problema grave porque, além de ineficiente, atra-
vanca especialmente através de sua organização sindical o desen-
volvimento portuário brasileiro. Duvido que alguém aqui não saiba
através da mídia que o serviço de praticagem é abusivo, extrema-
mente caro, realizado de forma absurda porque não se justifica. É
assim que nós que fazemos esse setor no Brasil somos conhecidos.
Talvez pelo fato de nossa sociedade só ver navios quando está na
praia; até o acesso a nossos portos para contato maior com
homens e mulheres desse setor é quase impossível de ser alcan-
çado pela sociedade organizada.
Ao contrário de diversos países − em mais de 14 anos de exercício
profissional como marinheiro, testemunhei no exterior que a visita-
ção a navios é até estimulada e que o trabalho desses homens
e mulheres merece reverência da sociedade. Em alguns países e
cidades portuárias muitos são os monumentos em honra a esses
trabalhadores. Aqui de um modo geral a sociedade brasileira não
nos vê, não nos conhece e tem uma ideia equivocada em relação a
nós. Vou-me ater a alguns tópicos para reflexão de todos vocês,
pois é claro que me interessa formar, naqueles que não estão na
atividade hoje, opinião favorável à importância do trabalho que
exercermos.
Comentarei o histórico da representação dos práticos e demais
trabalhadores do setor; as características das empresas no setor
de transporte marítimo no Brasil; o papel estratégico da pratica-
gem no desenvolvimento do transporte marítimo; o processo
de estigmatização da imagem do prático; o modelo da relação de
trabalho; e, finalmente; o usuário do transporte marítimo como
instrumento de pressão por mudanças e consequências.
O primeiro tópico é aquele de que sentimos falta. Nós não temos
conseguido passar para a sociedade brasileira a nossa identidade,
a nossa origem no mar. O que é lamentável, dada a importância da
atividade... Um dos primeiros atos da Coroa portuguesa quando
tangida da Europa pelo Exército de Napoleão foi tentar estabelecer
regras para a praticagem. Isso há mais de dois séculos.
Precisamente em 1808. Curioso o fato de que um dos primeiros
atos do Brasil República (no final do século 19) foi decretar uma
regulamentação para essa atividade. Estamos diretamente envolvi-
dos com o Estado e sob sua custódia no que se refere à certificação
das condições do exercício profissional desde 1926.
Será que diante de um histórico como esse é cabível que alguém
possa referir-se ao trabalho de praticagem como um trabalho com-
parável ao de um grupo de flanelinhas arrumando carros em um
estacionamento? Muitos não sabem, mas nós, aquaviários, somos
muito diferentes. Não somos melhores nem piores do que qualquer
outro trabalhador. Nós começamos no mar. Aprendemos nosso
11
ofício – seja o estivador, o marinheiro, o prático na sua origem –
vivenciando, olhando e sentindo o mar. Hoje a maioria esmagadora
dos nossos práticos tem experiência de mar, seja como oficiais
mercantes, seja como oficiais da Marinha do Brasil. Mesmo
aqueles que não têm um passado diretamente ligado a essas
atividades, até mesmo sem saber, já incorporaram muito da nossa
identidade com origem no mar.
Talvez por isso seja o setor que, além de estratégico, mais tem
resistido no Brasil às mudanças prejudiciais que deslocariam o
controle de nossos portos. Outro aspecto que muitos desconhe-
cem: nós não somos antigos apenas em termos de atividades. Os
primeiros sindicatos no Brasil são da última década do século 19.
O primeiro, formalizado como associação, dos oficiais sapateiros,
foi fundado em 1896. Em nosso setor a primeira associação data
de 1903; já estamos fazendo 110 anos. Em 1905 já tínhamos três
associações. Os oficiais – numa época em que nem comando nem
chefia de navio eram exercidos por oficiais brasileiros – em 1917 já
se estavam organizando de forma unificada. Quando muitas cate-
gorias iriam organizar-se 20, 30, 40 anos depois, e algumas sequer
existiam, nós já estávamos nos organizando há muito tempo.
Talvez toda essa história de experiência, resistência e luta é que
tenha contribuído para que possamos sobreviver diante das
investidas que sofremos. Quem é do setor sabe, não é novidade
para ninguém. Por exemplo: Montevidéu e a dificuldade de fechar
acordos já há uns três anos dentro do Mercosul. Ora, 60% do
Porto de Montevidéu está reservado para carga de transbordo da
empresa Maersk. Ao não se aceitar essa carga de transbordo
dentro do acordo do Mercosul, por que a Argentina iria aceitar
um acordo como esse? Eu pergunto até mesmo por que o Brasil
aceitaria? Em tese já aceitou, o que é lamentável. Isso não é bom
para um país; nós não podemos permitir que o processo de
concentração que vou abordar logo a seguir possa tirar-nos o
controle de nossos portos.
Nós, trabalhadores, iremos contribuir para que isso não ocorra. No
próximo tópico destacarei aspectos que não podemos esquecer. A
imprensa não vai lembrar isso para vocês, mas nós hoje somos o
setor que efetivamente, em sua esmagadora maioria, existe em
função de investimentos estrangeiros. Hoje os principais emprega-
dores do marítimo brasileiro são empresas de capital estrangeiro.
A única brasileira grande hoje é, aliás, do Estado, a Transpetro,
subsidiária da Petrobras. O monopólio do transporte é algo muito
curioso. Todos vocês sabem que ninguém consegue transportar um
simples contêiner de sapatos, por exemplo, de Rio Grande a
Fortaleza, ou vice-versa, sem passar necessariamente por uma
empresa brasileira de navegação. Não existe cabotagem brasileira
sem monopólio da Empresa Brasileira de Navegação, que na sua
maioria é de capital estrangeiro.
Quem de fato vive numa realidade dessa pode reclamar de
monopólio? Por mais críticas que os senhores e senhoras tenham
em relação a monopólio, ninguém que vive num cenário desses
pode falar mal de monopólio. Por que monopólio só incomoda
quando é de alguma forma utilizado a favor dos trabalhadores? Por
que essa boca torta devido ao uso de um cachimbo indevido? Tanto
se falava em monopólio do Estado, dos sindicatos etc.... Passados
esses anos todos, desde a aprovação da Lei 8.630, em 1993, o que
nós temos hoje? Trocamos um monopólio do Estado por um verda-
deiro oligopólio privado em nossos portos. E preocupem-se com
isso. O fenômeno de concentração dessas empresas, com esse
oligopólio, vai colocar o usuário do transporte refém desse siste-
ma. Acredito que por essa razão o Estado brasileiro através de seu
governo esteja tentando impedir um controle acionário significativo
de empresas armadoras dentro dos terminais privados brasileiros.
Quanto à segurança das operações portuárias, na ampliação do
volume de carga operada e em suporte ao controle do tráfego
aquaviário, Ricardo Falcão já falou. Em relação a essas questões,
a primeira observação que eu gostaria de fazer é a respeito
do acidente que aconteceu em Gênova há um par de dias.
A imprensa internacional divulgou o fato com muito mais
12
interrogações do que certezas sobre o que teria ocorrido. É
curioso que, se ocorresse esse tipo de acidente no Brasil – e a
praticagem tem orgulho de mostrar índices que afastam essa
possibilidade, e contamos que continue assim –, as manchetes
seriam: “Manobra de prático no Porto X mata seis e faz três
desaparecerem”. Seria essa a manchete, não haveria interrogação!
Contudo, segurança − além do que Ricardo muito bem disse:
“O som da segurança é o silêncio” −, eu digo a vocês: segurança
custa caro. Segurança não rima com gratuidade. E se queremos
ter operações seguras precisamos ter disposição em investir em
bons profissionais e ótimas condições de trabalho.
A segunda observação desse tópico é que nós, que conhecemos o
tráfego portuário, as manobras e como se dá nossa realidade nos
portos, sabemos que o prático não é uma figura isolada que sobe a
bordo, munido de walk-talk que provavelmente lhe foi doado na rua
e surge a bordo como geração espontânea. O prático às vezes é
tratado como se fosse a prova contundente de que Lavoisier estava
errado. A geração espontânea existe! E de repente surge o prático
a bordo, ajudando a manobra segura do navio. Não! Existe todo um
sistema, uma estrutura dando-lhe suporte. E ao adentrar o pas-
sadiço esse sistema já foi colocado em ação: desde o transporte,
desde o preparo dos homens, equipamentos para manobra da
embarcação. Isso representa custo. Só que normalmente coloca-se
o valor da praticagem como se aqueles milhões de reais fossem
diretamente para aquela figura que costuma contrariar Lavoisier,
aparecendo repentinamente no passadiço dos navios.
O outro tópico é o processo de estigmatização da imagem do práti-
co. Isso é o que mais choca e revolta. Porque não é dirigido apenas
ao prático. No nosso setor, o marítimo e o portuário brasileiros pas-
sam por isso. A menção a uma figura abjeta, porque imprópria – o
flanelinha – não é gratuita, porque quanto mais se reduz a importân-
cia desse trabalho – o papel estratégico do prático em nosso portos
– mais se torna absurdo o custo da praticagem. Mais convencem-se
as forças políticas deste país a promover mudanças em direção a
outros interesses. O serviço de praticagem é essencial por força de
lei. Está escrito na Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, é
classificado como um serviço essencial. E não o é porque o redator
estava procurando palavras fortes para incluir numa legislação
ordinária. Não! Ele é essencial há mais de dois séculos. E não
pode ser aceito que seja tratado como trabalho de quinta ou
quarta categoria se pudermos classificar trabalho por categoria.
É bom perguntar sempre ao armador ou a qualquer outro que
defenda mudanças ou precarização nessa prestação de serviços se
o usuário em algum momento vai receber alguma vantagem nessa
busca de redução de custos. Já vivi o suficiente no meio dessa
armação para saber que o usuário normalmente só serve para
pagar a conta. Já negociei na minha vida milhares de acordos
coletivos de trabalho no Brasil e no exterior até porque sou
chairman desse setor para a nossa região. Para países no Caribe,
na América do Sul e em outras regiões. Cansei de sentar à mesa
de negociação. Eu nunca recebi como negociador compreensão da
armação, nem sequer nos Anos Dourados, antes de 2008, quando
o sistema levou um baque. Naquele ano, houve trimeste em que o
armador aumentou seu frete em 48%. E nem sequer, num ato de
magnitude, nos foi repassado 2%, por compreensão. O modelo
de relação de trabalho está no cerne de toda essa questão.
Outro ponto. O marítimo brasileiro tem uma organização sindical
forte? Isto não interessa à interlocução, à relação capital/trabalho.
Empregador, e não apenas o armador, gosta de subordinação.
Trabalha para isso, para obter dependência. Extrema compreensão
do trabalho em relação às necessidades do capital. Prático não é
empregado de empresa alguma. Nem de armador, nem de
operador. É um prestador de serviço, recebe pelo serviço prestado
previamente contratado e negociado. Não é a melhor relação de
trabalho deste mundo capitalista, para um tomador de serviço.
Há ausência de subordinação! O prático leva em consideração
sua consciência e competência além de seus compromissos
profissionais para tomar a decisão quanto a fazer ou não esta ou
aquela manobra porque coloca em risco a segurança das pessoas,
do navio e da carga!
Ele não está subordinado à vontade de um empregador, que pensa:
“... mas a cada hora está me custando milhares de reais”. Não
existe o “... mas, meu empregador, essa operação não é segura”,
ou o “faça ou está demitido”. Isso incomoda. A praticagem conti-
nua há mais de dois séculos estritamente ligada ao papel funda-
mental do Estado. Não é prático quem quer. Tem que se certificar
e tem que obedecer a critérios estabelecidos pelo Estado, definidos
pela autoridade marítima. Não se pode ter neste país quatro, cinco
mil práticos numa fila monstruosa de práticos desempregados
pedindo: “Pelo amor de Deus, me dá pelo menos uma ou duas das
mais de 13 mil operações anuais de Santos”. Aqui no Rio seriam
19 mil. Isso não existe, é um cenário desejado pela armação que
13
não existe no Brasil e, repito, isso incomoda. O armador pensa
“Isso precisa ser mudado...”. Mas a questão é: onde fica a segu-
rança operacional, onde fica o serviço de praticagem independente,
forte e seguro? E, finalmente, quem vai efetivamente agregar os
serviços complementares da praticagem? Porque o prático não é
uma prova de contrariedade à Lei de Lavoisier.
E finalmente reservei dois ou três minutos para o nosso querido
usuário, aquele que paga a conta. Não tenho a menor dúvida de
que os usuários, de modo geral, são caldo de cultura muito apro-
priado à motivação por mudanças, até porque para o usuário
quanto menos pagar mais interessante é. Tenho bem forte na
memória, nos anos 80, quando tínhamos um outro modelo, sem
entrar no mérito de vantagens e desvantagens, o usuário pagou
muito caro pelo transporte marítimo. O usuário normalmente é um
aliado nesse processo de mudança. Agora, como vai ficar esse
usuário no futuro? Como todos sabem, talvez mais de 70% de
contêineres sejam controlados por três ou quatro grandes
empresas. Desafio vocês a listar dez empresas megacarries em
cada tipo de transporte: granel, líquidos, cargas especiais... Esse é
um setor que se concentra. Anualmente a Maersk, por exemplo,
empresa que conheço razoavelmente bem, promove um encontro
em regiões diferentes e tenta convencer de sua visão toda a malha
sindical que está envolvida. Talvez não devesse estar falando da
Maersk, talvez porque eu tenha um carinho especial por ela. Ela
gosta de me bater, e eu gosto de bater nela. Uma questão de amor
mal resolvida.
Esses eventos reúnem portuários, trabalhadores de apoio por-
tuário, marítimos, toda uma malha para discutir políticas de
integração de sua rede no mundo. Eu pergunto ao usuário se ele já
pensou em ficar dependendo de um oligopólio restrito a muito
poucas empresas concentradoras de todo esse serviço. Do
começo do serviço até a entrega no ponto B. Se já pensou nas
consequências disso. Se é interessante que nós venhamos a tirar
a voz do marítimo, tirar a independência da praticagem, eliminar a
organização dos trabalhadores portuários, destruir a nossa
identidade e a nossa capacidade de resistir. Deixo a pergunta e
agradeço a paciência de me escutarem durante esses minutos.
Bom dia e obrigado.
14
É realmente uma honra dirigir-me à ilustre plateia deste seminário.
No breve tempo que terei com vocês, pediram-me que falasse sobre
o inestimável serviço que os práticos prestam ao público;
sobre a importância de se implantar um sistema de praticagem
organizado, no qual a praticagem seja obrigatória e os práticos
tenham autonomia para exercer juízo independente na execução
de suas obrigações de serviço público; sobre a importância de
haver apenas uma associação de práticos em cada zona de prati-
cagem; e sobre a necessidade de regulação governamental abran-
gente para assegurar que a praticagem – que é o melhor instru-
mento para garantir a segurança marítima – não seja deixada à
mercê de forças de mercado destrutivas e desestabilizadoras.
Antes de iniciar minha discussão sobre essas importantes questões
políticas, gostaria de dizer algumas palavras sobre o respeito que
os práticos brasileiros conquistaram na comunidade marítima
internacional. O capitão Otavio Fragoso foi recentemente reeleito
vice-presidente sênior da IMPA, um dos cargos mais importantes
do corpo executivo da Associação, e sou grato pelo fato de ter um
profissional tão motivado, qualificado e talentoso em minha equi-
pe. Os serviços prestados pelo capitão Fragoso e sua reeleição
como vice-presidente sênior demonstram que ele conquistou a
confiança e o respeito do conjunto de membros da IMPA em todo o
mundo, o que inclui oito mil práticos de mais de 50 países. Quero
igualmente agradecer ao capitão Ricardo Falcão, atual presidente
do CONAPRA, ele também um verdadeiro profissional, que rapida-
mente mereceu o respeito de seus colegas presidentes de associa-
ções nacionais de práticos. É prova da influência internacional de
ambos o fato de terem conseguido reunir um painel tão impres-
sionante de especialistas em praticagem e navegação, entre os
quais um dos diretores da Organização Marítima Internacional.
Presidente da Associação dos Práticos dos Estados Unidos da América (APA) eleito em 2000 e reeleito em 2004, 2008 e 2012. Vice-presidente da Associação Internacional dos Práticos (IMPA) eleito em 2002. Atual presidente da IMPA eleito em 2006 e reeleito em 2010.
Michael R. Watson
Vou começar minha apresentação dizendo que todo governo corre
grande risco se subestimar a importância de manter um sistema de
praticagem obrigatório abrangente, eficiente e moderno. O traba-
lho de pilotar navios oceânicos é desgastante e exige conhecimen-
tos e habilidades especializados, atenção e vigilância constantes,
além de tomadas de decisão das mais complexas. Um prático deve
estar extraordinariamente familiarizado com cada uma das carac-
terísticas das áreas de praticagem. Ele ou ela deve conhecer – e
ser capaz de enumerar instantaneamente, em todas as condições
de clima e visibilidade, e muitas vezes em circunstâncias
estressantes – cada canal, ponte, obstrução, equipamento de
auxílio à navegação, bem como as características hidrográficas e
geográficas. Um prático deve entender os efeitos das marés,
correntes, ventos e a hidrodinâmica das embarcações que se
deslocam por vias de acesso estreitas. Cada embarcação apre-
senta novo desafio, pois cada uma tem características únicas de
manobra e governo, e reage de forma diferente ao meio ambiente.
Um prático também deve estar preparado para enfrentar a
multiplicidade de equipamentos presentes no passadiço de
embarcações oriundas de portos de todo o globo, bem como para
lidar com tripulações de navios de diversas nacionalidades.
Mudanças drásticas no tamanho dos navios atuais, na indústria de
shipping e na visão da autoridade portuária também impactam as
Praticagem: atividade essencial e de interesse público. O paradigma internacional, a importância da regulação social e econômica
15
atribuições do prático. O tamanho dos navios – comprimento, boca
e calado – aumenta rapidamente. Isso vai continuar. Todos nós,
que trabalhamos junto ao governo a fim de obter verbas para
dragagem, sabemos: os canais de navegação não crescem em
velocidade proporcional à do crescimento dos navios. Por conse-
guinte, as autoridades portuárias vão continuar a pedir aos práticos
que “nadem com a corrente” e aceitem menores lazeiras abaixo da
quilha, bem como a esperar que os práticos manobrem navios
imensos a metros de estruturas fixas e em vias confinadas. Essa
tendência de crescimento dos navios à frente da expansão dos
canais vai jogar ainda mais pressão sobre os práticos e sobre
nossas habilidades.
Também se evidencia que, no futuro, muitos navios vão operar com
tripulações ainda menores. Embora certamente existam alguns
armadores que são focados na segurança e trabalham em parceria
com os práticos para melhorar as práticas de navegação, alguns
armadores e alguns governos vão continuar a forçar os limites da
definição de “tripulação mínima de segurança”. Infelizmente, a
contínua diminuição no tamanho da frota vai ser acompanhada por
redução ainda maior na competência dos marinheiros. Não se trata
de reflexão sobre os marinheiros de hoje, mas sobre alguns, no
setor de navegação, que insistem em manter tripulações mal
remuneradas e mal treinadas. Isso também vai aumentar a pressão
sobre os práticos, o que me leva diretamente ao próximo ponto.
Alguns interesses da área de navegação e alguns governos acredi-
tam que qualquer problema de navegação pode ser resolvido pela
tecnologia. Essa tendência vai ajudar a solidificar a relutância de
segmentos do setor em valorizar pessoas – especialmente seus
próprios práticos. A desvalorização da função dos marinheiros já
está levando muitos no setor e alguns governos a pressionar por
mais controle das embarcações em terra. Essa obsessão, equivo-
cada e perigosa, com a navegação por “controle remoto” vai piorar.
Diante disso, faz-se ainda mais importante manter sistemas
eficazes de praticagem obrigatória, que posicionam no passadiço
de navios profissional treinado, experiente e independente para
orientar a navegação.
Os práticos de hoje prestam um dos serviços de segurança maríti-
ma mais importantes disponíveis para o setor de navegação e,
sobretudo, para o público. Todos nós, que temos responsabilidade
pela movimentação segura e ambientalmente saudável de
mercadorias e pessoas em nossas hidrovias, devemos assegurar
que os regimes regulatórios que regem a praticagem e a
qualificação e habilitação de práticos sejam abrangentes,
voltados para a segurança e efetivamente aplicados.
Um dos pontos mais importantes que desejo enfatizar neste painel
é que a praticagem não é simplesmente um negócio. Na verdade, é
bastante diferente até mesmo de outros serviços profissionais, a
maioria dos quais é normalmente prestada através de contrato
privado com consumidor voluntário. A praticagem marítima
obrigatória é uma norma de segurança de navegação – talvez sua
principal forma –, e a responsabilidade primordial do prático deve
ser proteger os interesses do governo que emite a habilitação e
regulamenta a operação de praticagem. O principal cliente do
prático não é o navio nem o armador, mas o interesse público. Ao
examinar os custos associados a um sistema de praticagem de
primeira classe, profissional e abrangente, esse aspecto de serviço
público da praticagem deve ser mantido em primeiro lugar na
mente dos formuladores de política. A praticagem jamais deve ser
vista simplesmente como mais um custo comercial da navegação.
Em todo o mundo marítimo, a experiência mostrou que os benefí-
cios máximos da praticagem obrigatória só são possíveis quando
ela é fornecida através de um regime regulatório governamental
abrangente. Como presidente da IMPA, organização que reúne
associações de práticos de dezenas de países, tenho pleno conhe-
cimento do fato de que os sistemas de praticagem compreensivel-
mente variam conforme as necessidades locais e demandas espe-
cíficas de portos e hidrovias. Existem, porém, alguns atributos
básicos que os regimes regulatórios de praticagem devem apre-
sentar, entre os quais se encontram: (1) exigência de praticagem
obrigatória; (2) exigência de disponibilidade de 24 horas/7 dias na
semana/365 dias por ano; (3) práticos livres para exercer seu juízo
profissional, que deve ser totalmente independente dos interesses
econômicos da embarcação; (4) escala única de rodízio de práticos
num determinado porto ou área portuária; e (5) controle do número
de habilitações de prático emitidas. Vou falar brevemente sobre
cada um dos atributos necessários a um sistema de praticagem
profissional e moderno.
Os regimes regulatórios de praticagem devem assegurar que cer-
tas embarcações numa área portuária sejam obrigadas a se sub-
meter à orientação e ao controle de um prático devidamente certi-
ficado que tenha treinado com os demais práticos daquele porto e
que com eles trabalhe em cooperação. A área portuária em sua
totalidade e as comunidades adjacentes ficam mais seguras
quando toda a navegação de grande porte está sob esse controle
de praticagem. Num regime regulatório abrangente, os práticos
trabalham juntos para garantir o cumprimento das restrições de
navegação locais e se consideram, corretamente, parte de uma
rede de segurança maior. A exigência de praticagem obrigatória é,
de longe, o mecanismo mais eficiente disponível para um governo
proteger suas águas, garantir a segurança da população e do meio
ambiente, e facilitar o comércio marítimo. É eficiente porque coloca
no passadiço do navio um indivíduo cujo propósito de ali estar é
proteger o interesse público. A decisão de embarcar um prático
deve ser mandatória e não pode ser deixada a critério das empre-
sas de navegação. Os donos e operadores de embarcações estão
naturalmente focados nos aspectos econômicos e comerciais do
transporte marítimo. Para alguns interesses de navegação de
menor responsabilidade, a praticagem pode não ser considerada
norma de proteção ambiental e de segurança de navegação, mas
custo que se pode reduzir ou mesmo eliminar. Esse pensamento
pode beneficiar o resultado financeiro de curto prazo de uma
empresa, mas é arriscada política pública, que pode ter consequên-
cias catastróficas para um porto e sua comunidade adjacente.
Além de tornar obrigatórios os serviços de praticagem, um regime
regulatório de praticagem eficaz também deve procurar assegurar
que práticos treinados, competentes e fisicamente capazes este-
jam disponíveis 24 horas por dia, 365 dias por ano e que todos os
navios sejam tratados com igualdade e sem discriminação. A fim
de alcançar isso, um sistema de praticagem deve exigir que os
práticos estejam disponíveis para atender a todos os navios que
são obrigados a embarcar um prático, e que mantenham programas
de treinamento, lanchas de prático, estação de controle para o
recebimento de pedidos e distribuição dos práticos, escalas
de rodízio e todos os demais tipos de equipamentos e serviços de
apoio necessários a uma operação de praticagem moderna,
eficiente e segura. Isso, evidentemente, requer significativo
investimento de recursos.
Um regime regulatório de praticagem eficaz também deve garantir
que os práticos estejam protegidos das pressões econômicas que
as empresas de navegação sofrem ao movimentar mercadorias e
pessoas. Como mencionei, grande parte da operação de pratica-
gem consiste em julgamento. Num sistema de praticagem real-
mente abrangente, os práticos são livres para exercer seu juízo
profissional e independente, que vai ao encontro do interesse
público. Muitas vezes um prático precisa decidir entre diferentes
procedimentos. Por exemplo, se o navio deve prosseguir sob
neblina densa ou outra condição inesperada; se o navio deve
aguardar condições de maré ou corrente específicas; se uma rota
ou manobra deve ser usada em vez de outra que pode levar mais
tempo; ou se um navio deve deslocar-se numa velocidade maior do
que a normal, a fim de manter sua programação. Ao tomar essas
decisões, é absolutamente essencial que o prático seja
independente do navio e que esteja protegido contra pressões, de
operadores de navios ou terminais, contrárias às necessidades
de segurança.
Talvez o meio mais eficaz para assegurar que o prático não seja
indevidamente afetado pelas pressões econômicas associadas
com a navegação comercial seja garantir que os práticos operem
sob regime regulatório no qual não se vejam obrigados a competir
entre si. Um prático que precisa disputar trabalho com outro
prático sabe que, para garantir seu meio de vida, deve agir NÃO no
interesse do governo e da população, mas da pessoa que controla
a escolha do prático. Quando a função de um prático está compro-
metida dessa maneira, a segurança da navegação, que é o objetivo
vinculado à exigência de praticagem obrigatória, é frustrada.
A verdade é que, trabalhando num sistema competitivo, os práticos
vão tomar atitudes que não tomariam, por razões de segurança,
num ambiente não competitivo tradicional. Num sistema em que
precisam competir entre si por trabalho, os práticos normalmente
vão preferir e buscar os clientes que oferecem o trabalho mais
regular, de maior volume, mais lucrativo ou mais fácil. Em resumo,
num sistema competitivo, alguns práticos podem querer atender só
16 17
à ‘nata’. Um navio que chega a uma boia ou que está pronto para
deixar um ancoradouro pode descobrir que o prático que estava
sendo aguardado preferiu assumir um trabalho mais vantajoso ou
atender outro navio sob contrato exclusivo. Essas situações
encorajam abatimentos informais, propinas e outras ações ilegais
quando tanto práticos quanto navios buscam tratamento preferen-
cial. Essa situação seria ruim para a navegação, ruim para os
práticos, mas, sobretudo, ruim para a segurança da navegação.
Para evitá-la, na maioria dos países marítimos, no mundo inteiro, o
governo julgou que um sistema abrangente de regulação econômica
e uma supervisão atenta das atividades profissionais dos práticos é
preferível a deixar o objetivo da segurança de navegação da pratica-
gem à mercê das forças do mercado aberto. Posso afirmar que,
apesar da política nacional de longa data e da arraigada cultura nos
Estados Unidos favorecendo os mercados livres, as autoridades
governamentais em meu país reconheceram que algumas atividades,
particularmente aquelas que envolvem segurança pública, não
devem ser ditadas por quem pode oferecer o serviço mais barato,
mas que são mais bem fornecidas por operações altamente regula-
das, sujeitas a estrita supervisão governamental. Um bom exemplo
desse entendimento pode ser encontrado nos estatutos de pratica-
gem do estado da Flórida, que incluem a seguinte declaração: “A
praticagem é serviço essencial, de importância tão superior, que sua
existência contínua deve ser assegurada pelo Estado, e não ser
deixada aberta às forças de mercado.”
Importante benefício de uma operação de praticagem altamente
regulada, na qual os práticos não precisam competir entre si por
trabalho, é eles se poderem organizar numa escala única de
rodízio. Tal escala ajuda a garantir que os práticos estejam dis-
poníveis a qualquer tempo e para qualquer navio, em termos de
igualdade. Com a escala única de rodízio, cada navio leva o próxi-
mo prático da escala, quando o navio precisa de um desses profis-
sionais e não quando é conveniente para o prático. Além disso, ao
distribuir o trabalho entre os práticos, o rodízio oferece maior
garantia de que o prático estará descansado o suficiente e física e
mentalmente preparado para a tarefa. Além de os serviços de
praticagem se beneficiarem da escala única de rodízio, também as
atividades administrativas e de apoio, bem como de treinamento,
podem ser realizadas regular e ordenadamente. Por fim, a escala
de rodízio assegura que os práticos mantenham em dia sua
experiência com todos os diferentes tipos de navios e tarefas de
praticagem. Não há como cumprir exigência de disponibilidade
de 24 horas diárias 365 dias por ano e rodízio regular num contexto
em que os navios podem selecionar e escolher seus práticos.
Outra característica que os sistemas de regulação do serviço
de praticagem devem ter é um método para limitar o número de ha-
bilitações de prático emitidas. Como indiquei, ao contrário de
esquemas de habilitação simples de outras profissões, as normas
de praticagem constituem um sistema de segurança de navegação
abrangente, através do qual um governo exige que as embarcações
embarquem um prático habilitado e assegura que toda embarcação
que leva um prático receba um profissional descansado, treinado e
competente, fornecido sem discriminação nem atrasos.
Limitando o número de habilitações emitidas, a autoridade gover-
namental pode garantir que os práticos recebam a quantidade
“certa” de trabalho. A quantidade certa de trabalho consiste em
trabalho suficiente para que os práticos possam ganhar o bastante
para pagar os substanciais custos de infraestrutura de uma opera-
ção de praticagem eficiente e moderna, e para que cada prático
permaneça atualizado em sua experiência com um amplo leque de
tipos de embarcações e localizações geográficas. A quantidade
“certa” de trabalho também não deve ser tal que o prático se veja
sobrecarregado e, por conseguinte, fatigado. Determinar a quanti-
dade “certa” de trabalho para um prático é um importante compo-
nente da função de supervisão regulatória do governo.
Embora a praticagem seja um serviço pessoal, prestado por um
indivíduo, as operações de praticagem configuram atividade de
capital relativamente intensivo. Dentro de uma área portuária, os
práticos precisam ter recursos suficientes para manter programas
de treinamento sólidos, lanchas de prático seguras e modernas,
com tripulações bem treinadas, redes de comunicação, distribuição
de práticos, escalas de rodízio, serviços de apoio e hoje, cada vez
mais, sofisticados equipamentos eletrônicos de navegação. Manter
a infraestrutura necessária para operar um serviço de praticagem
de primeira classe seria difícil para um prático individualmente. É,
portanto, importante que os práticos de um determinado porto ou
zona de praticagem se organizem em associação local.
Essas associações locais desempenham papel vital para garantir
praticagem eficiente e segura a determinado porto. Coletivamente,
são fundamentais para a eficiência de um sistema nacional de
praticagem obrigatória. As associações facilitam as atividades
conjuntas essenciais, tais como administrar a distribuição dos
práticos e a escala de rodízio; identificar o bom uso da tecnologia
de navegação; garantir a segurança e a eficiência das operações
das lanchas de prático; auxiliar na coordenação do tráfego por-
tuário; e executar a miríade de funções contábeis e administrativas
e os serviços de apoio necessários a uma operação de praticagem
eficiente e moderna. Além de aumentar a confiabilidade e a eficiên-
cia da praticagem e aumentar as críticas eficiências comerciais
e de apoio, as associações desempenham papel importante na
melhoria do treinamento dos práticos. Também podem trabalhar
de perto com as autoridades para ajudar a executar atividades de
praticagem de acordo com as normas governamentais. Sem as
associações locais, cada prático teria de fornecer sua própria
estrutura de apoio à praticagem e seu próprio programa de trei-
namento. Nenhuma economia de escala seria obtida, haveria
pouco investimento em novas tecnologias e poucas melhorias em
treinamento e operações, e as operações de praticagem seriam
pouco eficientes, mais caras e muito menos efetivas.
Também desejo enfatizar a importância de se ter apenas uma
associação para cada zona de praticagem. Em razão do grande
investimento de capital exigido para as operações de praticagem
modernas e com serviço completo, quando dois ou mais grupos
operam em uma zona de praticagem ocorre inevitavelmente a
duplicação de muitos custos, tais como lanchas e estações de
praticagem. Sendo o objetivo da determinação da tarifa de pratica-
gem assegurar que os preços da praticagem não sejam mais altos
do que o necessário, essa duplicação de custos é contrária aos
interesses públicos e da navegação. Nenhuma das partes com
interesse numa praticagem eficiente – nem o governo, nem a
navegação, nem os práticos – deve querer mais de um grupo de
práticos numa área portuária.
Até agora, falei sobre algumas das consequências negativas que,
conforme mostra a experiência, ocorrem quando a praticagem é
tratada meramente como outro empreendimento comercial. Quero
rapidamente discutir um aspecto diferente desse problema.
Deixando de lado por um momento os danos que as forças de
mercado causarão à independência, efetividade e eficiência da
praticagem, algumas pessoas equivocadamente acreditam que
permitir a concorrência entre os práticos pode de alguma forma
diminuir a necessidade de regulação governamental da praticagem.
A história e a experiência nos dizem que o contrário é verdadeiro.
A experiência com exemplos de concorrência na praticagem
mostrou que os ônus impostos às autoridades regulatórias são
muito maiores, particularmente nas áreas de habilitação, treina-
mento e preços de praticagem. No contexto altamente regulado de
associação de práticos única, não há incentivo para os práticos
tomarem atalhos no processo de habilitação ou treinamento, a fim
18
de adicionar rapidamente outros práticos, oferecer abatimentos ou
adotar outros tipos de práticas ilegais de preços. Quando a pratica-
gem é deixada à mercê das forças do mercado aberto e os práticos
buscam vantagem competitiva sobre outros práticos, faz-se
necessário grau de supervisão governamental mais elevado,
a fim de monitorar as atividades dos práticos e assim evitar
esses tipos de abuso.
O treinamento também apresenta difícil problema regulatório num
ambiente competitivo. Apesar dos recentes avanços na instrução
com simulação e em sala de aula, o principal ingrediente no
treinamento de um prático ainda é um programa do tipo
aprendizado – treinamento prático no passadiço de um navio sob a
orientação de um prático sênior. Quando grupos concorrentes
operam numa zona, muitas vezes um praticante de prático não
consegue fazer as viagens necessárias em todos os tipos de
embarcação e em toda a área de sua zona de praticagem para
se tornar plenamente qualificado e proficiente. Ainda que fosse
possível exigir que os práticos treinassem seus futuros concorrentes,
um relacionamento baseado em cooperação e confiança necessário
ao treinamento não pode ser imposto. As autoridades da pratica-
gem nos poucos locais onde existe concorrência constataram ter
de supervisionar os detalhes do treinamento em nível que se
torna desnecessário em ambiente de associação única e não
competitivo. Em outras palavras, deixar a praticagem à mercê
das forças do mercado aberto leva à necessidade de mais,
não menos, regulação.
Como conclusão, gostaria de destacar um último ponto. Embora se
considere que os práticos alcançaram o auge da profissão marítima
e ocupam um dos cargos mais importantes no setor, grande parte
do público não está ciente da imensa contribuição desses profis-
sionais à proteção do meio ambiente marítimo, mantendo sem
sobressaltos o tráfego de embarcações em nossos movimentados
portos e garantindo o transporte seguro de milhões de pessoas e
bilhões de dólares em comércio marítimo. É através de encontros
como o de hoje que esse trabalho vital, mas difícil e perigoso,
obtém reconhecimento.
Agradeço a todos por isso e por me oferecerem esta oportunidade
de trazer meu depoimento até vocês. Estou à disposição para
responder a suas perguntas.
19
8
Capitão de longo curso, mestre em ciências pela Cranfield University, Inglaterra.Diretor adjunto da Divisão de Segurança Marítima e secretário do Subcomitê de Segurança da Navegação – NAV
da Organização Marítima Internacional – IMO, com responsabilidade sobre este e o Subcomitê de Radiocomunicações, Busca e Salvamento (Comsar), também da IMO.
Gurpreet Singhota
21
Bom dia a todos. Bom dia, ilustres participantes. Antes de tudo,
gostaria de agradecer ao presidente do Conselho Nacional de
Práticos, Sr. Ricardo, e ao almirante Viveiros.
É um privilégio e uma honra para a IMO estar aqui hoje, e em nome
do secretário-geral da IMO gostaria de agradecer ao CONAPRA
o convite.
Vou falar sobre a orientação que a IMO desenvolveu ao longo dos
anos sobre praticagem. Basicamente, vamos voltar a 1967, quando
pela primeira vez tivemos uma resolução da Assembleia da IMO,
referente à recomendação sobre as escadas de prático e sobre a
qualidade e os equipamentos das escadas de prático para pesca-
dores. A verdadeira recomendação sobre praticagem, porém, veio
da Resolução A.159, de 27 de novembro de 1968. Há muito tempo,
portanto; há 45 anos, e essa resolução recomenda que os governos
devem – a palavra principal aqui é “devem” – organizar os serviços
de praticagem nas áreas em que esse serviço contribuiria para a
segurança da navegação de modo mais eficaz do que outras
possíveis medidas e, onde aplicável, definir os navios e as classes
de navios para os quais o emprego de um prático seria obrigatório.
Essa foi a primeira resolução da Assembleia sobre praticagem
emitida pela IMO.
Em seguida vamos para novembro de 1973, quando tivemos a
Resolução A.263(8) da Assembleia da IMO; o número 8 entre
parênteses indica que foi a oitava sessão da Assembleia da IMO
que adotou uma emenda à Resolução A.517 sobre escadas de
prático e pilot hoists, e convidou os governos em questão a
aceitá-la o quanto antes. Em paralelo, tivemos a Resolução A.275,
que trouxe a recomendação sobre padrões de desempenho para
pilot hoists.
Avançando, tivemos a Resolução A.332 da nona sessão da
Assembleia da IMO referente à recomendação sobre os procedi-
mentos de embarque e desembarque de práticos em navios muito
grandes. Foi quando o assunto começou realmente a ficar sério. O
tamanho dos navios vinha aumentando, e a resolução recomendou
que todas as embarcações nas quais a distância do nível do mar ao
ponto de acesso do navio, a qualquer tempo, ultrapassasse nove
metros deveriam também ter uma escada de portaló de cada lado,
para facilitar o embarque do prático.
Em seguida, há toda uma série de resoluções adotadas pela IMO.
A primeira foi a Resolução A.426, que revogou a A.332, em
novembro de 1979.
E depois, na 12a sessão da Assembleia da IMO, em novembro
de 1981, adotamos uma resolução muito importante: as
Uma visão geral das orientações da IMO incluindo a Resolução A.960 e as regras Solas relativas à praticagem
22 23
“Recomendações sobre treinamento, emissão de certificados e
procedimentos operacionais para práticos que não os práticos
de alto-mar”.
Oito anos depois, tivemos a Resolução A.667(16), sobre os proce-
dimentos para transbordo do prático, e então, em 1999, uma nova
resolução da Assembleia revogou todas as aqui mencionadas.
Finalmente, tivemos a Resolução A.1045(27), sobre os procedimen-
tos para transbordo do prático, que revogou até mesmo a anterior,
A.889(21). Foi nessa época que também adotamos, como mostrarei
adiante, as emendas ao Capítulo 5 da Solas.
A mais relevante resolução da Assembleia é a A.960(23), que revo-
gou, como mencionei, a A.485(12) e trata das “recomendações
sobre treinamento, emissão de certificados e procedimentos
operacionais para práticos que não práticos de alto-mar; em seu
parágrafo preambular informa que tem dois anexos, urge os
governos a pôr em vigor essas recomendações tão logo possível e
solicita ao Comitê de Segurança Marítima, que é o órgão técnico
máximo da IMO, que mantenha as recomendações sob exame e as
emende conforme necessário, à luz da experiência adquirida com
sua implementação.
Então, basicamente, foi um período de 22 anos, desde a Resolução
A.485 até a A.960(23), e esta última foi muito bem debatida e
planejada. Tivemos algumas discussões sobre isso no subcomitê
NAV, que promove o melhor consenso possível na IMO. Meu colega
palestrante Paul Kirchner, da APA, também vai explicar a resolução
com um pouco mais de detalhes, pois era o presidente do grupo de
redação, e acho que ele merece reconhecimento. Muito reconheci-
mento, por gerenciar tarefa tão difícil.
Essa resolução adotou duas recomendações, constantes no
Anexo 1 e no Anexo 2. O Anexo 1 traz as “Recomendações sobre
o treinamento e emissão de certificados de práticos, que não os
práticos de alto-mar”, e o Anexo 2, as “Recomendações sobre
os procedimentos operacionais para práticos, que não os práticos
de alto-mar”. Portanto, ela especifica as recomendações da IMO
para os governos-membros sobre como estabelecer autoridade
da praticagem e como treinar práticos.
Na seção sobre escopo, o Anexo 1, recomenda encorajar o governo
a estabelecer ou manter autoridades competentes da praticagem
para administrar sistemas de praticagem seguros e eficientes.
Todas as resoluções das Assembleias da IMO empregam a palavra
“deve”; são, portanto, recomendações, a palavra “será” não é
empregada. “Será” é o termo usado no texto da Convenção;
então é obrigatório. A Convenção trata da autoridade competente
da praticagem. Diz que todo governo deve estabelecer uma
autoridade competente da praticagem, e o que isso significa?
Significa que o governo nacional ou regional, ou grupos e
organizações locais, por lei ou tradição, administram ou fornecem
um sistema de praticagem. Cabe aos governos informar as
autoridades competentes da praticagem sobre as disposições
desse documento e incentivar sua implantação.
A avaliação da experiência, das qualificações e da adequabilidade
de um candidato à certificação ou ao licenciamento é responsabili-
dade de cada autoridade competente da praticagem.
A resolução descreve o que as autoridades competentes da
praticagem devem fazer. Elas devem estabelecer os requisitos
de admissão e elaborar as normas para obtenção do certificado ou
da licença, exigir a manutenção das normas elaboradas, especifi-
car os necessários pré-requisitos, experiência ou provas para
assegurar que os candidatos à certificação ou ao licenciamento
como práticos sejam adequadamente treinados e qualificados, e
também providenciar para que os relatórios sobre as investigações
de incidentes estejam disponíveis e sejam levados em
consideração no treinamento dos práticos marítimos.
Em seguida, trata do certificado ou da licença de praticagem.
Significa que todo prático deve ter um certificado ou uma licença
de praticagem adequada, emitida pela autoridade competente da
praticagem e que estabeleça para quais áreas a licença é válida.
Aptidão médica: todo prático deve provar à autoridade
competente da praticagem que tem aptidão médica e que
esta atende aos requisitos da Convenção do STCW.
Um prático que tenha sofrido ferimento ou doença deve ser
reexaminado a fim de garantir que cumpre as normas de
aptidão para retornar a suas funções.
Somente a autoridade competente da praticagem tem todas as
responsabilidades para assegurar que as normas de treinamento e
de certificação ou licenciamento sejam cumpridas. O prático deve
ser treinado em gerenciamento de recursos de passadiço, e as
autoridades competentes da praticagem devem ser encorajadas a
oferecer treinamento de atualização e aperfeiçoamento. Isso
significa que, após obter sua licença, o prático deve continuar o
treinamento ou fazer cursos de aperfeiçoamento. E a proficiência
contínua é essencial.
No Anexo 1 há um sumário sobre a certificação ou licenciamento
para praticagem. Eu não a incluí aqui, mas o presidente do
CONAPRA informou-me que cópias da Resolução A.960(23) estão
disponíveis em português e em inglês do lado de fora do salão de
conferências, então eu incentivo os distintos delegados a pegar um
exemplar, para ter uma melhor ideia dos requisitos.
O Anexo 2 trata das recomendações sobre os procedimentos
operacionais para práticos, que não os práticos de alto-mar.
Estabelece em geral quais são as diretrizes e afirma que a coorde-
nação efetiva entre prático, comandante e pessoal do passadiço é
muito necessária para operações seguras de praticagem. Detalha
as atribuições do comandante, dos oficiais do passadiço e do
prático, e, evidentemente, a regra básica é sempre composta por
ordens do comandante e conselho do prático, o que não absolve o
comandante de nenhuma de suas responsabilidades quanto a
acidentes pessoais. Aborda o ponto de embarque de praticagem
e cabe à autoridade competente da praticagem estabelecer e
divulgar a localização dos pontos seguros de embarque
e desembarque do prático. Sei que estão marcados nas cartas,
mas é responsabilidade das autoridades competentes da
praticagem informar aos oficiais em questão que os pontos estão
na carta, mas a informação também está disponível para
os armadores e para os usuários do porto.
24 25
Depois há os procedimentos para solicitar um prático. A autoridade
competente da praticagem deve estabelecer, divulgar e manter os
procedimentos para solicitar um prático para um navio entrando ou
saindo, ou para movimentar um navio dentro de uma área portuária,
e evidentemente as horas previstas de chegada e de partida devem
ser fornecidas às autoridades da praticagem tão logo possível.
Esse é um ponto vital, a troca de informações entre comandante e
prático. Foi discutido muitas vezes nos fóruns, subcomitês e no
STW, e mesmo no subcomitê NAV, e é muito, muito importante que
o comandante e o prático troquem informações para garantir a
praticagem segura. O anexo diz que, no início da praticagem, o
comandante e o prático devem trocar informações em relação
a procedimentos de navegação, condições e regras locais,
e as características do navio. Sei que é um requisito que as
características de manobras do navio sejam exibidas no passadiço,
curvas de evolução e tudo o mais, mas pode ter havido um defeito
durante a viagem. Quando um equipamento não está funcionando,
é dever do comandante informar isso ao prático.
Outra questão muito importante é o idioma de comunicação, pois
atualmente temos tripulações de múltiplas nacionalidades. Houve
um tempo em que os países tinham companhias de navegação
estatais. Isso não era um grande problema, mas hoje é. A
resolução da Assembleia da IMO enfatiza que os práticos devem
conhecer o vocabulário-padrão de Comunicação Marítima da IMO;
é uma resolução da Assembleia e também está disponível como
livro, publicado pela IMO. Além disso, estabelece que as comuni-
cações a bordo entre o prático e o pessoal do passadiço devem ser
feitas no idioma inglês ou em outro idioma que seja comum a todos
os envolvidos na operação.
Em caso de acidente, o prático deve relatar qualquer incidente ou
acidente que tenha ocorrido durante o processo de praticagem. E
depois há a recusa de prestar serviços de praticagem. O prático
deve ter o direito de recusar a praticagem quando o navio é
considerado um perigo para o meio ambiente ou para a segurança
da navegação. Evidentemente, deve haver uma base sólida ou
uma boa razão para a recusa. Depois, há a obrigação do prático de
estar apto para o serviço.
Essas foram as resoluções da Assembleia, mas também há
as regras da Convenção Solas que concernem à praticagem. A
primeira é a Solas V/23 sobre os procedimentos de transbordo do
prático, que foi adotada no MSC 88 em 3 de dezembro de 2010
e entrou em vigor no ano passado, em 1o de julho. A norma Solas
II-1/3-9 trata das escadas de portaló para uso no embarque e
desembarque dos navios. Foi adotada em maio de 2008 e entrou
em vigor em 1o de janeiro de 2010.
Há uma nota de rodapé nessa norma e na Resolução A.1047 sobre
os procedimentos de transbordo do prático. Existem também
circulares relevantes do MSC que oferecem diretrizes para a
administração e para as autoridades de praticagem em relação aos
procedimentos de transbordo do práticos. Em termos de hierarquia,
as resoluções da Assembleia ocupam a posição mais alta,
seguidas pela circulares do MSC, pela segurança de navegação e
depois outras circulares.
Além disso, há três circulares do MSC que são de relevância:
MSC.1/Circ.1402, sobre a segurança dos procedimentos de
transbordo do prático; depois a MSC.1/Circ.1428, sobre os
procedimentos de embarque necessários para práticos. Uma cópia
dessa circular também está disponível do lado de fora do salão
de conferências. Depois há a MSC.1/Circ.1331, sobre as diretrizes
para construção, instalação, manutenção e inspeção dos meios
de embarque e desembarque. Isso está relacionado com a regra
Solas V/23, que é uma referência cruzada com a resolução da
Assembleia A.1047.
A MSC.1/Circ.1402 é muito importante, pois trata da segurança
dos procedimentos de transbordo do prático. Essa circular encoraja
os governos a incluir, formalmente, a inspeção realizada pelo
Estado do Porto (PSCO e FSCO) nesses arranjos. Reconhecemos
que a segurança do prático é fundamental e deve ser parte
do processo de inspeção do Estado.
Conclusões
Como vocês veem, de 1967 em diante, a IMO elaborou orientações
suficientes e detalhadas para os problemas de praticagem.
Mantivemos o processo sob análise e, quando tomamos
conhecimento de preocupações de governos-membros de que
existia a necessidade de revisar determinada diretriz, nós o
fizemos; mas o processo não foi acidental. Por exemplo, a
Resolução A.960 foi revisada após quase 22 anos. Portanto, isso
não mudou da noite para o dia. A diretriz foi emendada/atualizada
como e quando necessário para atender a um novo regime
regulatório. Nessa tarefa, a IMO foi assistida a cada estágio do
processo de maneira muito construtiva pela IMPA. E devo deixar
registrado o excelente relacionamento que a IMO estabeleceu ao
longo dos anos com a IMPA. Na verdade, todas as organizações
observadoras trabalharam muito próximo à IMPA no que concerne
à praticagem.
Quero concluir dizendo que a implementação da diretriz da
IMO é, evidentemente, prerrogativa dos governos, mas também
é muito importante que os governos-membros adotem as
recomendações constantes da Resolução A.960(23).
Muito obrigado.
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Diretor-geral adjunto da Associação Internacional de Armadores Independentes de Navios Petroleiros – Intertanko, tendo sido diretor-geral (2011-2012). Diretor de Assuntos Regulatórios e das Américas (2005-2010).Primeiro diretor (1995) de Padrões de Segurança da Navegação, Salvaguarda da Vida Humana e Prevenção da Poluição Hídrica da Guarda Costeira Americana.Chefiou (1980-2004) inúmeras delegações dos EUA nas comissões de Segurança da Navegação e Prevenção da Poluição – NAV, MSC e MEPC da IMO.
Joseph Angelo
Avaliação e expectativas da Intertanko em relação ao serviço de praticagem
Muito obrigado. Em nome da International Association of
Independent Tanker Owners (Intertanko), gostaria de agradecer
ao Ricardo e ao CONAPRA o convite para falar neste seminário
tão importante.
Primeiro comentário. Trabalhei durante muitos, muitos anos, para
a Guarda Costeira dos Estados Unidos. Meu chefe era sempre o
almirante. Estou muito impressionado, almirante Viveiros. Na
Guarda Costeira, um almirante de três estrelas vem, faz o discurso
de abertura e depois vai embora, nunca permanece depois do
intervalo. Eu lhe agradeço por ficar e escutar. Isso me diz como é
importante para a Marinha brasileira lidar com essa questão.
Meu segundo comentário. Examinei a programação e descobri
ontem à noite que sou o único palestrante representando arma-
dores. Assim, a esse respeito, farei os seguintes comentários: pri-
meiro, estou aqui representando a Intertanko. Não vim falar sobre
esse assunto em nome de todos os armadores. Isso é importante.
O terceiro comentário é que – mencionei isso ao Ricardo ontem à
noite –, como sou o único representante dos armadores a falar,
espero que não tenham preparado uma cilada para mim, para que
eu sofra a ira dos armadores. Mas, mesmo que seja uma cilada, no
que concerne à Intertanko, acreditamos que o que estamos fazendo
é correto e o que vou lhes dizer é a maneira certa de lidar com
essa questão.
Com isso, vamos passar à minha apresentação. Gostaria de
dividi-la em três áreas, basicamente. Primeiro, gostaria de falar
um pouco sobre a Intertanko, para que vocês saibam quem
somos, quem representamos e qual é nosso foco. Segundo,
gostaria de falar sobre o relacionamento que a Intertanko
mantém com a IMPA, a Associação Internacional de Práticos
Marítimos. E terceiro, e o mais importante, é claro, a Intertanko
e nosso relacionamento atual com o Brasil e com várias entidades
no Brasil.
Então, primeiro, uma pequena propaganda. A Intertanko é a
Associação Internacional de Armadores Independentes de Navios
Petro-leiros. Somos uma organização sem fins lucrativos, e aqui
vocês podem ver quais são nossos objetivos. Minha intenção
não é ler cada slide. Vou deixá-los ler este, mas o mais
importante é que nós trabalhamos pela segurança no mar e pela
proteção do ambiente marinho para nossos membros. Esse é
nosso foco principal.
A missão que estabelecemos para nós é oferecer liderança ao
setor de petroleiros e fornecer ao mundo transporte marítimo
seguro, ambientalmente correto e eficiente de petróleo e
produtos químicos.
27
Associados a essa missão, identificamos sete objetivos que quere-
mos alcançar. Não vou falar sobre todos eles; apenas sobre o mais
importante e que nossos membros quiseram impor a si mesmos.
Isso não é para o secretário; isso é para os membros que operam
os petroleiros. Eles decidiram que queriam liderar o aperfeiçoa-
mento contínuo do desempenho do setor de petroleiros, esforçan-
do-se para alcançar os objetivos de fatalidade zero, poluição zero
e detenção zero. Houve discussões sobre se queríamos usar o
zero como objetivo, algumas pessoas poderaram que isso não é
viável. Mas a filosofia foi a de que é melhor ter o copo meio cheio
do que meio vazio, e é por isso que eles escolheram esse objetivo.
A associação reúne proprietários independentes de petroleiros.
Companhias de petróleo, operadores de proprietários de petro-
leiros estatais não são proprietários independentes de petroleiros,
e, portanto, não se qualificam para ser membros da Intertanko;
podem, contudo, ser membros associados. E, como membros asso-
ciados, temos aqueles que estão relacionados com o setor de
petroleiros. Isso pode incluir sociedades classificadoras, estaleiros,
prestadores de serviços, escritórios de advocacia, clubes de P&I
etc. Temos alguns lidando com isso. Então, se alguém tem
interesse em fazer parte da Intertanko, como membro ou como
membro associado, é claro, fale comigo, por favor.
Esta é nossa atual posição com relação aos associados. Começando
em 2013, temos pouco mais de 220 membros, mais de 3.200 petro-
leiros com mais de 280 milhões de toneladas. Estamos presentes
em 40 países. Tenho orgulho de dizer que temos membros no
Brasil, na Argentina, no Chile, no Peru, no Equador, na Venezuela e
na Colômbia, e não devo excluir o México, que também faz parte
da América Latina. Representamos mais de 70% da frota mundial
de petroleiros independentes.
No ano passado, nosso conselho, que é nosso órgão normativo,
decidiu que devíamos adotar um plano estratégico de cinco anos.
São sete os principais itens que eles adotaram como parte de
nosso plano estratégico de cinco anos, e destaco para vocês os
dois primeiros itens.
O primeiro é a sustentabilidade do setor de petroleiros. Se não
sabem, o setor de petroleiros está com problemas financeiros
bastante significativos. Existem petroleiros demais agora. Então,
estamos tentando garantir a sobrevivência de nossos membros.
O segundo item da lista é segurança e desempenho dos petro-
leiros. Para essas duas importantes questões (não vou falar sobre
todas elas, só essas duas), que resultado desejamos? O que que-
remos obter em cada uma delas? Quanto à sustentabilidade,
queremos assegurar que nossos membros tenham acesso às
ferramentas, aos modelos e às informações de que precisam para
continuar a operar com segurança. E, quanto à segurança e ao
desempenho dos petroleiros, queremos que nossos membros
sejam posicionados proativamente para um alto desempenho.
Enfatizo tudo isso porque existe um tema comum que se vê aqui.
Segurança. A Intertanko quer garantir, todos os nossos membros
querem garantir, que estejamos operando nossos petroleiros de
maneira segura em todo o mundo. Temos uma estrutura de comitês
que nos ajuda a realizar isso. Temos um comitê técnico, um comitê
ambiental, um comitê de navegação. Eu não queria entediar vocês
com todos os detalhes, ainda que pertinentes a este seminário
específico, mas temos um grupo de trabalho de praticagem.
É formado por membros que oferecem voluntariamente seus
serviços para aconselhar especificamente a Intertanko sobre
quais são as questões que devemos abordar, o que devemos fazer
com relação aos problemas de praticagem. Nosso foco está em
duas principais questões: promover os relacionamentos com as
associações de práticos, tanto nacionais como internacionais, e
também revisar e fornecer contribuições e recomendações sobre
qualquer dos mais recentes requisitos ou diretrizes emitidos
pela IMO ou em qualquer parte do mundo. Essa foi uma breve
visão geral da Intertanko.
28 29
Vamos tratar agora do nosso desenvolvimento com a IMPA, começan-
do com alguns fatos básicos, alguns, aliás, já identificados.
Fato 1. Penso que todos vão concordar, todos queremos a navega-
ção segura das embarcações em todos os portos e vias navegáveis
das nações. Me parece que ninguém pode discordar disso.
Fato número 2 que temos de aceitar. Os práticos são obrigados,
pela legislação nacional, a dar assistência à navegação segura das
embarcações nas águas daquele país.
E o terceiro fato, já mencionado, me parece, e que não pode ser
mudado: os membros da Intertanko não escolhem o prático que vai
a bordo de seus navios.
A partir desses três fatos básicos, o que os membros da Intertanko
esperam? Bem, queremos práticos com conhecimento sólido e
treinamento adequado para assegurar que as viagens em zonas de
praticagem sejam livres de acidentes. E, devo acrescentar, a um
custo justo e razoável. Observem que eu não disse ao menor custo
possível. A um custo justo e razoável é o que consideramos o modo
certo de lidar com isso.
Evidentemente, quando tudo está correndo bem, não se vê nada na
imprensa. Quando ocorre um acidente, porém, as questões surgem.
Quais são essas questões de que falamos na Intertanko? Qual foi
a causa? De quem é a responsabilidade? Quem é o responsável
legal? Nossos proprietários estão muito preocupados com isso.
Houve treinamento apropriado tanto da tripulação quanto do
prático, e houve profissionalismo na maneira de tratar o problema?
São questões centrais que abordamos na Intertanko.
Ingressei na Intertanko há cerca de oito anos e meio. Quando com-
pareci a minha primeira reunião do comitê executivo, em fevereiro
de 2005, um dos assuntos na pauta era praticagem. Um breve
histórico de meu percurso. Frequentei a mesma escola marítima
que Mike Watson. Ele se formou muitos anos antes de mim; é por
isso que posso dizer que sou mais novo do que todos os que
falaram até agora. Mas ele era o mais inteligente. Ele se formou
como oficial de praticagem, depois foi a capitão e depois a prático.
Eu era engenheiro. Ficava na casa de máquinas do navio. Não
sabia para onde o navio se dirigia, só garantia que estivesse fun-
cionando. Então eu conhecia muito pouco, se é que conhecia
alguma coisa, de praticagem, além do que Mike me dissera. Vou
falar sobre isso num segundo. Então, fiquei ali escutando a dis-
cussão de nosso comitê executivo, e, para ser franco, a maneira
como se falava a respeito dos práticos nessa reunião era a
mesma como se fala dos piratas hoje. O relacionamento entre
a Intertanko e os práticos não era boa. Sempre havia brigas, confron-
tos e diferenças de opinião, sem que tentassem o trabalho conjunto.
Com base em minha experiência na IMO, como chefe da delegação
americana em muitas reuniões, disse que precisávamos encontrar
uma maneira melhor de lidar com isso. A primeira coisa que
perguntei a eles foi: Vocês têm certeza de que todo incidente
que ocorre com um prático a bordo é culpa dele? É uma pergunta
simples que fiz como engenheiro, um engenheiro lógico. E, é claro,
a resposta que recebi foi: Não, não temos. Então, minha primeira
proposta foi adotar nova abordagem. Acho que nossa filosofia para
enfrentar esses problemas deve ser a de que toda história tem dois
lados. Vamos saber qual é o outro lado da história e depois vamos
ver se podemos chegar a uma situação favorável a todos. E, para
fazer justiça ao nosso comitê executivo, eles têm a mente aberta,
pensaram a respeito e disseram: sim, vamos proceder dessa
maneira, Joe, com você à frente. Para isso, é preciso começar por
algum lugar, estabelecer um diálogo construtivo. E esse diálogo
construtivo tem de começar pela confiança. De onde vem essa
confiança? Eu tive sorte. Como já mencionei, chefiei a delegação
americana na IMO. Eu era chefe da delegação americana que
negociou a Resolução IMO A.960, sobre a qual todos nós tanto
ouvimos falar. E quem estava na minha delegação que me
aconselhou sobre a A.960? Mike Watson, presidente da IMPA, e
Paul Kirchner, diretor-executivo da APA. Ele era muito importante.
Era o presidente do grupo de trabalho. Confiei nele na época, como
chefe da delegação. Eu disse: “Mike, Paul, façam o que for melhor
para os Estados Unidos em relação à praticagem. Vou confiar em
vocês.” Na época, eu era do governo. Eles confiavam de verdade
em mim? Não sei. Quem confia no governo? Mas acho que
confiaram, e chegamos à elaboração da A.960. A partir de então,
essa foi a base para a confiança. E, na verdade, foi Mike que
chegou para mim e disse: “Temos um relacionamento ruim com a
Intertanko, você e eu temos um relacionamento antigo. Talvez
possamos trabalhar juntos para tentar melhorar o relacionamento
entre Intertanko, IMPA e API.” Respondi: “Mike, essa é minha
função, vamos trabalhar juntos.” E foi assim que iniciamos esse
esforço de cooperação em 2007. Começamos com algumas
conversas informais, mas foi preciso uma demonstração de boa-fé
para dar a partida. E, na minha opinião, senti que cabia à Intertanko
dar o primeiro passo nessa demonstração.
A Resolução A.960 foi adotada na IMO, aprovada por todos os
estados-membros, mas as associações de navegação importantes,
incluindo a Intertanko, não concordavam com ela necessariamente,
porque a resolução não era abrangente o bastante. As associações
do setor puseram propostas na mesa durante as negociações para
ampliá-la mais. Essas ampliações não foram aprovadas pela IMO.
A A.960 ficou como está, mas a Intertanko e outras associações
de navegação produziram um documento contendo o que
nossa orientação achou que deveria ser, que ultrapassava
esses requisitos.
Então, como demonstração de boa-fé da Intertanko, em julho de
2007 escrevemos uma carta à IMPA dizendo que deveríamos dar
total apoio à Resolução A.960, e fomos à Câmara Internacional de
Navegação e dissemos a eles que retirassem nosso nome do Guia
de Procedimentos no Passadiço da ICS. Esse foi nosso primeiro
passo para seguir em frente, e acho que isso foi o degrau que nos
ajudou a avançar de forma positiva para obter confiança.
Concordamos em formar um grupo de discussão dali em diante e
fizemos reuniões. Alguns tópicos que debatemos em nosso grupo
de discussão foram: gestão de recursos para o passadiço, intera-
ção prático e comandante/tripulação do passadiço, Resolução A.960,
providências para transbordo seguro de práticos e e-navigation.
Quando conversamos sobre essas coisas, nem sempre concorda-
mos com tudo. A questão é que tivemos um diálogo aberto. E, por
ter um diálogo aberto, conhecíamos as ideias deles, e eles, as
nossas, sobre o que estava acontecendo. Esse foi o ponto impor-
tante do que estava acontecendo entre Intertanko, IMPA e APA.
Na minha opinião, porém, houve o que chamei de momento defini-
dor. Do lado da Intertanko, nessa reunião, estavam nosso diretor de
náutica – capitão de longo curso, com muitos anos de navegação
num navio –, o presidente de nosso grupo de trabalho de pratica-
gem – outro capitão de longo curso, com muitos anos de navega-
ção num navio – e eu, o engenheiro, tentando ser o facilitador. Para
mim, o momento definidor foi quando Paul e Mike estavam
explicando para nós o papel do prático nos EUA, e Paul explicou
que, por causa das obrigações exigidas de um prático em águas
americanas, o prático obrigatório não é um integrante da equipe
do passadiço. A essa altura, o presidente do grupo de trabalho de
praticagem e nosso diretor de náutica disseram que agora
entendiam por que a IMPA adota a abordagem que adota, e como
lidamos com essas questões.
Esse foi o momento definidor entre Intertanko, IMPA e APA, para
seguir em frente numa direção muito mais positiva. E foi muito útil
do nosso ponto de vista.
Desde então, evidentemente, a IMPA, a Intertanko e a APA assina-
ram um acordo de cooperação histórico, para aumentar a segu-
rança dos petroleiros. Seu propósito é ampliar e manter a parceria,
a cooperação e o diálogo construtivo e aberto para promover a
segurança marítima e de navegação nas zonas de praticagem. Isso
gera uma lista de objetivos que temos e que estamos tentando
alcançar por meio desse acordo. Até onde eu sei, somos a única
associação de navegação que tem um acordo dessa natureza com
a IMPA e a APA.
Quando o acordo foi assinado o capitão Mike Watson, presidente
da IMPA, disse no final de suas declarações: “Este acordo pode
servir de exemplo para todo o setor de navegação.” Nosso presi-
dente, Graham Westgarth, ficou muito satisfeito com a declaração
de Mike, porque gosta de ser proativo e preparar o terreno para o
setor. É por isso que foi muito positivo.
E, de nossa perspectiva, nosso presidente, Graham Westgarth,
expressou sua opinião, que foi a de que “esse acordo vai
demonstrar o quanto a Intertanko aprecia a função dos práticos e
o papel que eles desempenham”. Portanto, nada de críticas nega-
tivas, mas uma forma positiva de construir e lidar com a situação.
Atualmente, temos discussões contínuas nas reuniões de grupo,
30 31
desde 2008, sobre as questões de interesse comum. Conversamos
sobre uma variedade de assuntos, incluindo a criminalização de
acidentes marítimos, falhas de motor e de condução, segurança
do prático etc.
Fizemos nossa última reunião em março. Novamente, concordamos
em todos os tópicos? Não, mas temos um diálogo aberto, e eles
compreendem de onde estamos vindo.
Uma das coisas que fizemos através desse acordo foi deixar muito
claro para nossos membros e, naturalmente, para os membros da
IMPA, que, se eles tiverem qualquer problema com qualquer
questão de praticagem, em qualquer lugar do mundo, quero que me
informem. Quando recebo esse feedback, ligo para Mike e conto a
ele o que um de nossos membros relatou. Então Mike examina
a situação e conversamos sobre o que podemos fazer para
resolvê-la. Esse diálogo aberto ajuda bastante a lidar com essa
questão. E só posso considerar isso positivo, pois, há quase dois
anos não recebo nenhuma queixa de nenhum de nossos mais de
220 membros, sobre nenhum problema de praticagem em todo o
mundo. Portanto, isso nos parece muito positivo.
Alguns exemplos do que fizemos juntos desde a assinatura do
acordo de cooperação incluem a revisão do Anexo 6 sobre emis-
sões atmosféricas, o programa de trabalho da IMO e coisas assim.
Vamos passar agora à Intertanko e ao Brasil.
Número 1. A Transpetro, da Petrobras, é um membro associado da
Intertanko aqui no Brasil. Apreciamos sua participação. Há um
cavalheiro, Elizio Neto, que comparece a nossas reuniões, bem
como alguns outros, mas Elizio começou isso, e estamos muito
orgulhosos de tê-lo presente. Vou falar sobre ele e alguns outros
em um segundo.
Número 2. Desde que assumi como secretário do painel latino-
americano da Intertanko, assegurei que viéssemos ao Rio o
máximo possível. Estivemos aqui duas vezes. Primeiro, em 2006
e depois no ano passado.
Em nosso painel latino-americano, no ano passado, convidei o
capitão Otavio Fragoso, que também é vice-presidente sênior da
IMPA, ex-presidente do CONAPRA e ex-presidente da Rio Pilots.
Nessa reunião aqui no Rio, em 31 de outubro de 2012, Elizio Neto,
gerente executivo da Expansão da Frota da Transpetro, fez uma
apresentação sobre os planos da Transpetro para a modernização
da frota de petroleiros, que foi muito abrangente e informativa.
Otavio também falou − sobre questões de praticagem, tanto da
perspectiva da IMPA como do CONAPRA. Mais especificamente,
Otavio apresentou uma visão geral muito boa da organização do
CONAPRA, como eles estão organizados aqui no Brasil, sua
história e mandatos legais. A informação sobre os requisitos de
formação foi muito importante, porque permitiu que nossos
membros soubessem quão abrangentes eles são aqui com o
CONAPRA. Ele também falou sobre as 22 zonas de praticagem
existentes no Brasil e os planos do CONAPRA de aumentar o
número de práticos a fim de atender ao crescimento do tráfego de
embarcações no Brasil, mas entendo que também há alguns outros
motivos para esse aumento. Além disso, Otavio nos deu uma visão
geral do novo Superporto do Açu, que engloba dois terminais, com
um terminal de petróleo no TX1 e TX2 com um estaleiro. Ele
informou aos nossos membros e ao painel latino-americano a
diversidade que está ocorrendo no Brasil nesse campo. Isso, por
sua vez, resultou numa discussão muito boa a respeito no painel
latino-americano. Evidentemente, do nosso ponto de vista,
concordamos que a expansão da indústria petrolífera e do uso de
petroleiros ao largo da costa brasileira é importante para o Brasil,
é importante para o CONAPRA e é importante para os membros da
Intertanko. Significa mais negócios, supondo-se que a Petrobras
use nossos petroleiros-membros, esperamos que seja assim.
E concordamos com a ideia de que a IMPA, o CONAPRA e os
membros da Intertanko devem cooperar para evitar incidentes
nesse novo cenário brasileiro, bem como trabalhar juntos e
aprender se, ainda assim, algum ocorrer, para que possamos
evitar que ocorram no futuro.
Finalmente, concordamos que a continuação do bom relaciona-
mento de trabalho entre a IMPA, o CONAPRA e os membros
da Intertanko é baseada no respeito e apoio mútuos, o que
consideramos positivo para o setor de navegação, e devemos
manter esse diálogo.
Em conclusão, resumindo tudo isso, eu simplesmente diria que, do
ponto de vista da Intertanko, as parcerias entre os operadores
de petroleiros e práticos são essenciais para aumentar a segurança
da navegação. Uma abordagem cooperativa é a mais correta
para fazê-lo. A abordagem de confronto não foi bem-sucedida.
Aprendemos com isso e é por esse motivo que estamos adotando
uma abordagem cooperativa. Para garantir essa boa abordagem
cooperativa, é preciso garantir que se tenha confiança.
De certa forma, tivemos sorte no relacionamento com Mike, mas
isso não significa que qualquer outro setor, associação ou empresa
não possa construir essa confiança com quem quer que seja.
Quando você parte de fundamentações sólidas e está disposto a
dar o primeiro passo, boas coisas acontecem.
E, finalmente, provamos ao mundo da navegação que a confiança
pode construir um relacionamento forte de cooperação, e vamos
mantê-lo pelo máximo de tempo possível.
Com isso, deixo minha última palavra, e única em português,
obrigado.
32
Autoridades presentes, senhoras e senhores. Como prático, minha
atividade cotidiana é gerenciar riscos em águas restritas. Enquanto
o comandante de um navio é um profissional treinado para manter
a embarcação o mais longe possível de qualquer obstáculo, o
prático, ao contrário, é treinado para manobrar o navio, com
segurança, muito próximo a obstáculos.
Eventualmente, quando ocorre um acidente maior, a extensão dos
danos causa espanto no público, que é forçado a lembrar do risco
envolvido na navegação desses sistemas complexos, tão depen-
dentes da tecnologia e dos seres humanos. Algumas imagens nos
remetem, particularmente, ao risco representado pela navegação,
Bacharel em ciências navais pela Escola Naval – Marinha do Brasil, condecorado com o prêmio Greenhalgh, especialização em hidrografia pela Diretoria de Hidrografia e Navegação – MB, MBA em finanças pelo Ibemec-RJ.Prático da Zona de Praticagem do Estado do Espírito Santo há 15 anos, com larga experiência em projetos na área de qualidade, segurança e gerenciamento de risco no serviço de praticagem.
Siegberto Rodolfo Schenk Jr.
quando ela ocorre muito próximo da costa, nas chamadas águas
restritas. O que esses acidentes têm em comum além de sua
localização? Raramente acontecem. Mas o impacto de seus efeitos
é enorme. A magnitude dos prejuízos, sejam eles materiais,
ambientais ou sociais, chama nossa atenção.
A sociedade e seus governantes são então demandados, com
frequência crescente, a ponderar sobre os benefícios e os riscos, e
a lidar com as incertezas associadas às suas decisões. É necessário
gerenciar os riscos dessa navegação da forma mais eficiente pos-
sível. Assim, esta apresentação pretende cooperar nesse sentido
através de uma abordagem resumida de alguns conceitos de
gerenciamento de risco e através de exemplos de situações ligadas
aos práticos e à atividade da praticagem que provoquem a nossa
reflexão. E para esta breve discussão, baseio-me na norma ISO
31000 e seus complementos, uma síntese abrangente e objetiva
dos princípios e diretrizes relativos ao gerenciamento de risco.
Para começar: o que é risco? O risco é sempre negativo ou pode ser
visto como positivo? Risco é formalmente definido como o “efeito
que as incertezas podem causar sobre os objetivos”. Mesmo ine-
rente à vida e geralmente encarado como negativo, risco pode
também ser visto como algo positivo e necessário. Os grandes
saltos da conquista humana foram dados ao encarar e gerenciar
33
Gerenciamento de risco nas atividades do prático
efetivamente as incertezas e os riscos envolvidos em nossas ativi-
dades. Algumas atividades, embora necessárias, são em sua
própria essência arriscadas. É esse o caso da navegação marítima,
responsável pela maior parcela da tonelagem movimentada na
matriz de transportes mundial. Ainda mais quando consideramos
que os navios estão ficando cada vez maiores. Nas últimas quatro
décadas os armadores se propuseram a assumir mais riscos, sejam
eles financeiros ou de redução de margens de segurança, obtendo
com isso grandes ganhos de escala que visam a maior e justo
retorno financeiro. Afinal, risco e retorno estão correlacionados.
Nosso primeiro problema seria então como mensurar o risco. O
risco pode ser expresso pela combinação de duas dimensões: sua
probabilidade ou chance de ocorrer (que está associada à incerte-
za) e a consequência da materialização desse risco (o efeito sobre
os objetivos). Da combinação dessas duas medidas obtemos o
nível de risco, ou seja, a magnitude do risco é dada pela chance de
ele ocorrer em relação à gravidade das consequências de sua ocor-
rência. É interessante notar que, mesmo tendo chance relativa-
mente pequena de ocorrer, as consequências de um evento podem
ser tão indesejáveis, que o nível do risco associado a ele se torna
muito elevado. Infelizmente, esse é o caso de alguns eventos
classificados como acidentes da navegação.
Outro ponto importante é a distinção entre o proprietário do risco
e as partes interessadas nele; proprietário do risco é a pessoa ou
entidade que tem a responsabilidade por um risco e a autoridade
para gerenciar esse risco; parte interessada é a pessoa ou
entidade que pode afetar, ser afetada ou perceber-se afetada
por uma decisão ou atividade.
Pois bem, se alguns riscos valem a pena ser corridos e outros não,
como fazer para diferenciar o joio do trigo? Aqui entra o conceito
de segurança, que é estar livre de riscos inaceitáveis! E isso é pos-
sível através do processo de gerenciamento de risco, que modifica,
de forma sistemática, os efeitos negativos das incertezas nos
objetivos. Ele pode ser visualizado neste fluxograma, que evidencia
seu aspecto contínuo, retroalimentado e sem fim.
Tudo começa pela comunicação e pela consulta, balizadores de
todo o gerenciamento de risco, juntamente com o monitoramento
e análise crítica. São todos os meios que o proprietário do risco usa
para compartilhar ou obter informações que irão embasar sua
tomada de decisão. Isso se dá através do diálogo com as partes
interessadas. Todas as partes interessadas devem ter a oportuni-
dade de ser ouvidas, pois podem fazer julgamentos distintos sobre
os riscos, com base em suas próprias percepções, que devem ser
identificadas e levadas em consideração.
A própria sociedade civil é, quase sempre, uma parte interessada.
Convém, então, que esteja representada, geralmente através dos
agentes do Estado, atuando no interesse público.Vale ressaltar que
a consulta às partes interessadas fornece subsídios, através da
influência e não do poder, para apoio à decisão pelo proprietário do
risco. Portanto, não se trata de tomar decisões em conjunto, mas
de fornecer subsídios adequados.
Vejamos, em um caso real, o que pode acontecer quando essa
fluidez na comunicação e consulta não funciona. Em 2001, a
Codesa, autoridade portuária de Vitória, contratou uma consultoria
que sugeriu que os calados máximos permitidos poderiam ser
aumentados, sem nenhuma dragagem, fundamentando-se no
conceito da "lama fluida". Dentro de suas prerrogativas, a Codesa
aumentou os calados máximos, baseando-se nas indicações da
consultoria, mas ignorou as recomendações técnicas para os
levantamentos de dados ambientais necessários.
Pouco depois, em julho de 2001, o navio Med Glory encalhou, em
frente ao Palácio Anchieta, sede do governo estadual. Houvesse
sido consultada, a praticagem teria sugerido a adoção da metodo-
logia da Pianc. Essa abordagem detectaria a inviabilidade de se
utilizar o conceito de lama fluida, no caso do porto de Vitória, pois
estabelece critérios de definição de densidade e métodos de levan-
tamento. Graças à falta de comunicação, ocorreu um encalhe que
poderia ter sido evitado. Felizmente sem grandes consequências.
34 35
É essencial, nesse sentido, criar-se uma cultura de segurança de
forma que o processo de gerenciar riscos conte com a real
participação dos envolvidos e que todas as formas de contato,
formais ou informais, sejam bem-vindas. Obrigações legais ou
regulamentares para que ocorram esses contatos, como as
existentes nesses documentos balizadores do serviço de
praticagem, são de grande valia. Mas o ideal é que se construa
um clima de confiança entre os envolvidos. Isso pode levar anos.
E, de acordo com nossa experiência, é perfeitamente alcançável.
Atualmente, no Espírito Santo, todos os portos e terminais,
incluídos aqueles que ainda estão só no papel, chamam a
praticagem para opinar e participar proativamente em seus
projetos − sempre sob a coordenação da autoridade marítima.
Hoje, o encalhe do Med Glory teria pouca chance de ocorrer.
Iniciamos efetivamente o processo de gerenciamento de risco com
o estabelecimento do contexto e a definição dos critérios de risco.
Nessa fase são definidos os parâmetros e o escopo do gerencia-
mento. A definição dos critérios de risco considera os diferentes
pontos de vista das partes interessadas, para estabelecer, clara-
mente, quais riscos são intoleráveis, quais riscos devem ser trata-
dos, e quais riscos podem ser negligenciados. Infelizmente, muitas
vezes os critérios de risco não ficam claros nem definidos. Até que
um dia o risco se materializa. Então, o critério antes indefinido
torna-se claro.
Podemos exemplificar a questão do contexto e dos critérios de
risco através da forma como embarcamos nos navios e deles
desembarcamos. Muitas vezes sou questionado por pessoas fora
do meio marítimo: por que vocês não usam um cabo (ou “corda”)
de segurança quando embarcam pela escada de prático? Respondo-
lhes que esse arranjo é o resultante do aprendizado de anos de
experiências de colegas que me antecederam, alguns que perderam
a própria vida, para chegarmos até aqui. Por isso ele deve ser
rigorosamente observado. Ele consta da Convenção Solas e foi
recentemente revisado pela IMO, pois o aprendizado é contínuo.
Demonstra que, eventualmente, cair no mar, ao embarcar em um
navio ou desembarcar, é risco que enfrentamos cotidianamente na
nossa profissão. Esse risco é aceitável dada a frequência com que
ocorre, mas definitivamente deve ser gerenciado. Apenas não da
forma vislumbrada naquele questionamento.
Retornando ao fluxograma, entramos agora no núcleo do gerencia-
mento de risco. É o processo de avaliação de riscos. Em inglês,
risk assessment. Compreende a identificação, análise e avaliação
de riscos.
Na identificação deve-se gerar uma lista abrangente de todos os
riscos que possam, de uma ou de outra forma, interferir na realiza-
ção dos objetivos. Os riscos devem ser descritos considerando-se
as fontes de risco, os eventos possíveis, suas causas e consequên-
cias. O perigo nessa fase é deixar de identificar algum risco,
fazendo com que não seja trabalhado nas fases posteriores. Para
isso é interessante a discussão de possíveis cenários de risco e
cadeias de eventos, bem como o brainstorming com as partes
interessadas, com análise do histórico de acidentes e dos quase
acidentes, a consultoria de especialistas e o emprego de simula-
ções. Outra ferramenta, em nível de execução, são os checklists,
como os nossos conhecidos pilot cards e formulários de MPX.
Uma vez identificados os riscos, passamos então à sua análise, à
sua mensuração, a fim de determinar o nível dos riscos. Isso envolve
estimar as probabilidades das consequências que podem ocorrer.
Analisam-se todos os riscos identificados e descritos na etapa
anterior, que podem, então, ser visualizados facilmente numa
matriz de risco. As consequências precisam ser expressas em ter-
mos de seus impactos tangíveis, como em números financeiros.
Mas também devem ser considerados os impactos intangíveis,
como, por exemplo, os custos sociais das consequências. O termo
"probabilidade" pode ser utilizado tanto para análises qualitativas,
quantitativas ou em uma combinação das duas, conforme as cir-
cunstâncias e os recursos disponíveis. Organizações menores e
com menos recursos tecnológicos terão sempre mais dificuldade
em produzir uma análise quantitativa dos riscos. Mas isso, de
forma alguma, deve impedir que um processo de gerenciamento de
risco seja estabelecido e traga resultados satisfatórios, com base
em análises apenas qualitativas, desde que bem conduzidas.
A terceira e última etapa do risk assessment é a avaliação de ris-
cos propriamente dita. Essa é a fase da decisão. Significa comparar
o nível de risco, medido durante a análise, com os critérios de risco
estabelecidos quando o contexto foi considerado. Com base nessa
comparação, é o momento de dizer se um risco deve ou não ser
tratado. E com qual prioridade.
Toda essa terminologia parece complexa, mas é simples. Para
mostrar isso, vejamos o maior acidente ambiental de todos os
tempos envolvendo navegação e praticagem. Ou a ausência desta
última. Trata-se do famoso desastre do Exxon Valdez. Prince
William Sound, no Alaska, é uma área transitada por navios petro-
leiros que transportam o óleo extraído na região. Havia ali uma
zona de praticagem obrigatória até meados da década de 1980.
Certo dia, as autoridades responsáveis reduziram substancial-
mente a área de praticagem compulsória, tornando-a facultativa.
Em março de 1989, o petroleiro americano Exxon Valdez após car-
regar 1.236.000 barris de petóleo cru no Porto de Valdez desviou-se
da rota ideal e encalhou no Recife Bligh, situado na região que
havia sido tornada de praticagem facultativa. Assim, não havia
prático a bordo. Do total da carga vazaram ‘apenas’ 258.000 barris.
Mas o óleo chegou a mais de 600km de distância do acidente. E
dada à geografia acidentada da costa, poluiu uma extensão de
milhares de quilômetros causando danos catastróficos ao meio
ambiente e, principalmente, à fauna da região, inviabilizando o
sustento de vários habitantes. Os danos ao navio e a perda da
carga somaram pouco mais de 28 milhões de dólares. Mas a lim-
peza e recuperação do meio ambiente, que levaram anos, chega-
ram à casa dos dois bilhões de dólares, isso em valores de 20 anos
atrás. Como se pode imaginar, depois do acidente a praticagem
voltou a ser obrigatória na região, ou seja, as autoridades, antes do
sinistro, entenderam que dar ao armador a oportunidade de ‘econo-
mizar’ o custo do prático era um risco que valia a pena ser corrido.
A fase de avaliação de risco pode utilizar várias ferramentas de
apoio à decisão. Uma delas é a matriz de risco, identificando-se
aqueles que se encontrem na região de níveis de risco intoleráveis,
de acordo com os critérios de risco estabelecidos no contexto.
Esses riscos devem ser tratados, trazendo-os para a região de nível
de risco tão baixo quanto razoavelmente possível.
Também muito importantes são as análises de custo x beneficio,
em que se comparam, de um lado, os custos representados pela
implementação das medidas de controle do risco e, de outro, as
possíveis perdas evitadas.
Aqui devem ser levadas em conta as externalidades. Externalidade
é um conceito da economia. São os efeitos que certas atividades
geram para terceiros, não envolvidos na atividade, sem que esses
tenham oportunidade de impedir ou obrigação de pagar, por
esses efeitos. Externalidades podem ser negativas, quando geram
custos para os não envolvidos; ou positivas, quando geram benefícios.
Estamos nos referindo, então, ao impacto de uma decisão sobre
aqueles que, mesmo sendo partes interessadas, não participaram
da decisão. Percebe-se que os acidentes de navegação têm grande
potencial de gerar externalidades negativas para a sociedade e
para o meio ambiente e a economia como um todo. Por outro lado,
um serviço de praticagem bem estruturado e eficiente, além de
contribuir para evitar externalidades negativas agrega valor à
economia, pois gera externalidades positivas. Ao agilizar o fluxo da
cadeia logística e maximizar as possibilidades de utilização de
canais de acesso e berços de atracação, em segurança, gera
benefícios para toda a sociedade, muitas vezes intangíveis. Isso
explica o porquê da importância social da praticagem e da
necessidade de sua regulação pelo Estado. Existe uma expressão
popular no mercado de seguros em Londres: "Se você acha que
praticagem é caro, experimente um acidente...".
A fase de tratamento do risco envolve a seleção e a implementa-
ção de uma ou mais opções para modificar os riscos. Em seguida,
é necessário avaliar sua efetividade e, se for o caso, agir para
implementar medidas adicionais, realimentando o processo.
Existem quatro estratégias básicas de tratamento de risco: evitar,
transferir, reduzir ou reter.
Evitar: trata-se simplesmente de remover a fonte do risco. Evita-se
o risco ao não iniciar ou interromper a atividade que daria origem
ao risco. Exemplo: as autoridades chinesas vinham agindo dessa
forma com relação aos valemax. Os chineses alegam que seus
portos não estão preparados para receber com segurança navios
desse porte. Simplesmente proibiram a atracação de navios dessas
dimensões, evitando o risco representado por eles.
36 37
Outro exemplo. O prático, no Brasil, pode valer-se de prescrições,
contidas nas normas da autoridade marítima, que lhe permitem
solicitar ao representante local da autoridade, o capitão dos
portos, que declare a impraticabilidade de uma manobra − sempre
que as condições de tempo e mar, ou mesmo do navio, não
aconselhem sua execução com nível de risco aceitável. Outra
forma de evitar o risco de operar com margens de segurança
insatisfatórias é estabelecer calados e dimensões máximos para o
acesso dos navios, como preconiza a nossa legislação em revisão
no Congresso. Ideal é quando esse processo ocorre não de forma
empírica, mas observando-se normas técnicas consagradas, como
ABNT, Pianc e Usace.
Outra estratégia para tratar riscos é transferir. Transferir risco não
significa diminuí-lo ou eliminá-lo, mas compartilhar o ônus
advindo das consequências com outro ator. Geralmente envolve
contratos financeiros, seguros, clubes de proteção mútua ou
instrumentos financeiros derivativos.
É uma estratégia rotineiramente usada pelos armadores, conhece-
dores que são dos riscos da "aventura marítima”. Geralmente os
riscos específicos e quantificáveis da navegação, tais como, casco,
máquinas e carga, são cobertos por seguradoras convencionais.
Porém, as seguradoras relutam em cobrir riscos mais amplos e
indeterminados, como aqueles que podem ser gerados por um
grande acidente. Para essas coberturas, os armadores recorrem
aos clubes de P&I, Protection and Indemnity, que são associações
cooperativas de proteção mútua, das quais os próprios armadores
são mutuários.
Bem, nada é perfeito, e até mesmo os clubes de P&I só cobrem
custos de acidentes até certos limites. Assim, são cada vez mais
comuns navios que ostentam o emblema de algum grande
armador, mas nos quais esse armador atua apenas como
afretador. Quando se procura verificar quem é o proprietário do
navio e portanto, o responsável por alguma eventual reparação,
não se encontrará o armador famoso, mas alguma empresa
bem menos conhecida, muitas vezes registrada em um paraíso
fiscal e operando sob bandeira de conveniência. Provavelmente
operando um único navio! É uma estratégia de blindagem do
armador contra, entre outros, possíveis reparações por danos
não cobertos pelo clube de P&I, uma forma de gerenciar seu
próprio risco.
Mas a estratégia de tratamento de risco mais comumente em-
pregada é reduzir o risco. Isso envolve tomar medidas e ações para
diminuir a probabilidade de um risco se materializar. Para diminuir
as consequências negativas de um eventual risco, quando ele se
materializa. Ou ambas as coisas. Aqui se dá a grande possibilidade
de contribuição da praticagem no gerenciamento de riscos.
Com o restabelecimento da praticagem obrigatória na Baía
Príncipe William no Alaska, ficou consideravelmente diminuída a
possibilidade de ocorrer um novo Exxon Valdez.
Outro exemplo: o já famoso acidente do Costa Concordia, que colidiu
com uma rocha e naufragou na Ilha de Giglio, Itália. Duas medidas
teriam reduzido, em muito, o risco de um acidente como esse. A
primeira é se o gerenciamento da equipe do passadiço (o bridge
team management) houvesse funcionado a contento. Um tripulan-
te, dada a cultura de decisões verticais, pode se sentir pouco à
vontade de questionar uma decisão do comandante. Mas esse é o
papel da equipe do passadiço. A outra: se na Itália fosse obrigatória
a presença de um prático a bordo, num cruzeiro navegando tão
próximo da costa. Por exemplo, a Columbia Britânica, no Canadá,
destino turístico que recebe mais de 200 navios de cruzeiro por
ano, requer que todos os grandes navios que naveguem a menos
de três quilômetros da linha da costa tomem práticos. As autori-
dades italianas acenam com providências semelhantes a partir
desse acidente.
A presença de um prático a bordo pode não ser suficiente para se
evitar um acidente. Mas pode minimizar as suas consequências.
Um caso emblemático, em que a correta atuação do prático não
evitou, mas reduziu em muito as consequências de um acidente,
aconteceu, em 1996, em Nova Orleans, Estados Unidos. O car-
gueiro Panamax Bright Field, descia o Rio Mississipi, quando uma
falha numa bomba de lubrificação cortou automaticamente a ali-
mentação da máquina principal, parando-a. Sem máquina, o navio
perdeu governo, em meio a uma curva fechada do rio, dirigindo-se
diretamente a um cassino flutuante atracado na margem, em que
havia 800 pessoas. Na trajetória do navio estavam, ainda, dois
navios de cruzeiro, além de um shopping center e um complexo
hoteleiro construídos junto à margem. O prático a bordo atuou
prontamente. Comunicou-se com o controle de tráfego solicitando
a evacuação da área e realizou uma hábil manobra de emergência,
utilizando os ferros do navio. Com isso, conseguiu que o navio
‘atracasse’ na vaga entre os cruzeiros e o cassino, evitando o
abalroamento dessas embarcações. Não houve fatalidades. Não
fosse pela pronta e correta atuação do prático, as consequências
teriam sido bem mais trágicas.
São várias as ferramentas que podem contribuir para a redução
de risco na navegação em águas restritas. O uso de rebocadores de
escolta. Melhorias na sinalização náutica. O correto gerenciamento
de recursos do passadiço. Do lado regulamentar, nas normas locais
da autoridade portuária e/ou da autoridade marítima, a adoção de
janelas de condições ambientais, com correntes de marés
favoráveis e observação de período diurno para certas operações.
Assim como a adoção de novas áreas de praticagem obrigatória,
pela autoridade marítima, quando alguma situação nova assim
recomendar. O próprio emprego de práticos pode ter seu alcance
ampliado com treinamento em simuladores de passadiço e em
modelos tripulados. E com a utilização de novas tecnologias, como
os PPUs, que agregam maior quantidade de informações de apoio
à decisão. Além de atalaias bem equipadas e treinadas para coor-
denar as operações com eficiência e para fornecer informações
relevantes aos práticos, em tempo real.
Finalmente, a última estratégia de tratamento é reter o risco. Reter
significa aceitar o possível benefício ou consequência daquele
determinado risco. É impossível, a menos que se evite o risco,
reduzi-lo a ponto de se considerar que não haja mais risco algum.
Apesar de todo tratamento, sempre haverá algum risco residual,
que pode estar identificado ou não.
Vejamos o caso do Sea Diamond. O Arquipélago de Santorini é um
destino turístico nas ilhas gregas, para onde acorre um grande
número de navios de cruzeiro. Entretanto, não existe ali uma zona
de praticagem. Apesar da proximidade de terra, os navios são
manobrados pelos próprios comandantes. Em abril de 2007 o navio
Sea Diamond encalhou em Santorini, num recife vulcânico. Os pas-
sageiros foram evacuados em cerca de quatro horas. O navio aca-
bou indo a pique no dia seguinte com todo o seu óleo combustível
ainda nos tanques, e esse perigo potencial de poluição perma-
nece ainda hoje a mais de 100 metros de profundidade. Embora o
turismo represente uma das principais fontes de renda da Grécia,
Santorini continua sendo área sem praticagem. Isso indica que as
autoridades gregas, nos cenários que visualizam em suas análises
de risco, continuam considerando aceitável o risco de os cruzeiros
navegarem por ali sem prático a bordo, retendo o risco de aciden-
tes como o do Sea Diamond.
Enfim, na hipótese de reter riscos, as ferramentas muitas vezes são
subjetivas. Passam pela conscientização e cultura de entidades, de
organizações e das pessoas envolvidas, a fim de que tomem
decisões conscientes e muito bem embasadas.
É bom lembrar que o tratamento de risco, independente da estra-
tégia utilizada, pode, por sua vez, gerar novos riscos. O monitora-
mento desse processo, então, é fundamental. E fecha o ciclo de
tratamento, reiniciando o processo.
O processo é contínuo e deve ser seguidamente realimentado e
revisado, através do monitoramento e da análise crítica. As ferra-
mentas a serem empregadas devem considerar como objetivos
principais do monitoramento: detectar mudanças nas circunstân-
cias; verificar se as medidas de controle de risco estão funcionando
a contento; revisar as estratégias de comunicação; e criticar as
premissas utilizadas nas análises.
Poderão ser criados indicadores para medir os resultados. É impor-
tante a documentação não só dos acidentes, mas também e princi-
palmente dos quase acidentes, conhecidos em inglês como near
misses. São aquelas situações em que todas as condições para a
ocorrência de um acidente estavam presentes. Mas medidas de
controle ou até mesmo o próprio acaso impediram que o acidente
ocorresse. Esse tipo de documentação é importante, pois muitas
vezes a realidade está mais próxima de nós do que imaginamos.
Menos de um mês antes de ocorrer a tragédia do Costa Concordia,
o cruzeiro Costa Pacifica quase abalroou o MSC Orchestra, em
Búzios, no litoral do Rio de Janeiro. O monitoramento dos riscos
pode vir a recomendar que, no futuro, se estabeleça ali uma zona
de praticagem.
Finalmente, mas não menos importante, deve-se destacar que o
elo principal dessa cadeia é o ser humano. O fator humano é um
dos mais importantes elementos que contribuem tanto para causar
como para evitar acidentes. Todas as atividades que envolvem ris-
cos, assim como as medidas propostas para gerenciar esses
riscos, dependerão, em última análise, dos seres humanos.
Felizmente, nossa autoridade marítima sempre esteve atenta à
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qualificação dos práticos. Em 2004, quando a Organização Marítima
Internacional publicou a Resolução A.960, contendo recomenda-
ções para treinamento, certificação e procedimentos operacionais
para práticos, a autoridade marítima brasileira foi uma das primei-
ras do mundo a cumprir integralmente os preceitos ali constantes.
Inclusive implantando, em colaboração com o CONAPRA, o ATPR,
um moderno programa de atualização de práticos, totalmente
aderente às recomendações daquela resolução.
Tentando fazer um fecho sobre tudo o que foi dito, podemos dizer
que, dentro de cada contexto, o proprietário do risco deve ter a
consciência de buscar gerenciá-lo de acordo com os critérios de
risco aceitos por todas as partes interessadas, através das estraté-
gias que estão à sua disposição.
Assim, no contexto da faina de praticagem, o prático é o proprie-
tário do risco. Deve zelar por estar descansado, manter-se
atualizado, executar a manobra com atenção, lançando mão de
todos os conhecimentos e recursos disponíveis para esse fim.
No contexto do serviço de praticagem, a organização de práticos é
a proprietária do risco. Isso envolve administrar a escala de serviço
e prover os meios necessários ao apoio dos práticos, tais como
lanchas, atalaia, sistemas de comunicação, logística, despacho e
monitoramento do tráfego.
No contexto do complexo portuário, a autoridade portuária é a
proprietária do risco. A ela cabe regular o tráfego, definir calados
e dimensões máximas, bem como regras de utilização de berços e
canais de acesso etc.
E, finalmente, no contexto da segurança do tráfego aquaviário, a
autoridade marítima é a proprietária do risco, que envolve geren-
ciar a segurança do tráfego, no interesse de toda a sociedade.
Os critérios de risco devem ser muito bem definidos dentro de cada
contexto. É importante definir quais riscos são intoleráveis, quais
riscos devem ser tratados para que sejam mantidos em nível
razoável e quais podem ser negligenciados. Porém, um risco acei-
tável para uma parte interessada pode não o ser para outra. E por
isso é importantíssimo desenvolver a cultura de comunicação e
consulta em que se busque um processo franco e de confiança
mútua entre os proprietários de risco e as partes interessadas.
Sempre que se detectar um nível de
risco maior que o critério de risco,
deve-se tratar esse risco. Não sendo
possível, em nenhuma hipótese,
ignorá-lo. E, nesse caso, quais são as
nossas opções?
A primeira é evitar o risco. Geral-
mente, só é considerada quando o
nível de risco for inaceitável.
Postergar uma atividade até que me-
lhores condições estejam presentes é
viável. Já impedir a vinda de determi-
nados navios, como a China vem
fazendo com os valemax, talvez não. Até que ponto evitar é eco-
nomicamente justificável? É a única opção disponível?
A segunda é transferir o risco. Uma opção frequentemente adotada
pelos armadores, que compartilham os maiores riscos da aventura
marítima com os clubes de P&I, que, entretanto, só cobrem os
danos até certos limites. E quando as externalidades negativas se
avolumam, quem paga a conta excedente? Acabará sobrando para
a sociedade?
A terceira é reter o risco. Nesse caso, todas as outras opções foram
consideradas? As organizações e os indivíduos, estão preparados
para exercer de forma consciente e bem embasada essa opção? E
arcar com as consequências caso o risco se materialize?
E por fim, reduzir o risco, situação em que certamente temos mais
possibilidades de tomar atitudes para diminuir a probabilidade de
que o risco se materialize e ou para diminuir suas consequências
negativas. Qual o alcance dos meios que já são empregados em
nosso país, com sucesso, para reduzir o risco da navegação
em águas restritas? Uma possibilidade para esse fim, no interesse
público, e que está sempre ao alcance dos governos bem
intencionados é, certamente, contar com um serviço de praticagem
bem estruturado.
Colocando-se a bordo dos navios práticos capacitados, bem treina-
dos, descansados, independentes de pressões comerciais e provi-
dos da estrutura de apoio necessária, há condições objetivas de
reduzir as chances de acidentes ou de mitigar suas consequências
quando, de todo, não for possível evitá-los.
Felizmente, esse parece ser o caso do Brasil. Que tem índice de
acidentes, com participação de erro do prático, comparável ao
de países como Estados Unidos, Bélgica e Austrália, por exemplo.
Ainda que muito baixo, esse valor demonstra que sempre restará
algum risco residual. Que deve permanecer sempre dentro de
limites razoavelmente aceitáveis.
Muito obrigado pela atenção! Coloco-me à disposição para
outros esclarecimentos.
40
Capitão de longo curso, mestre em direito ambiental e bacharel em gestão portuária pela Academia Marítima Lloyds.Presidente da Praticagem de Milford Haven, Inglaterra, na qual ingressou em 1992 e foi prático instrutor durante cinco anos.Vice-presidente da Associação de Práticos do Reino Unido de cujo comitê executivo foi membro durante oito anos.
John Pearn
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Muito obrigado pela apresentação. Infelizmente, não a entendi.
Espero que tenha sido positiva. Em primeiro lugar, gostaria de
expressar meus agradecimentos a Ricardo, Otavio, Marcelo e
Flávia pela organização de um seminário cinco estrelas, em
instalações cinco estrelas, realizado por uma instituição cinco
estrelas, que é o CONAPRA dos práticos brasileiros.
Minha carreira começou em 1979. Fui praticante de prático em
Liverpool, no Reino Unido. Depois de concluir meu aprendizado,
fui para o mar numa variedade de navios, e minha última viagem
foi do Rio de Janeiro exportando frutas para a Antártica, porque
eles não cultivam muitas frutas por lá.
A regulação inadequada e suas consequências: o exemplo do Reino Unido
Depois de receber minha licença de capitão, tornei-me prático em
outubro de 1992, no porto de Milford Haven, no Reino Unido.
Hoje vou examinar a legislação de praticagem no Reino Unido,
pela perspectiva de um acidente, o do Sea Empress, navio-tanque
que, em 1996, encalhou com efeitos catastróficos. Gostaria de
explicar as consequências do acidente, principalmente para
que vocês possam avaliar como o efeito de um desastre desse
porte pode afetar uma ampla variedade de pessoas e
interessados. Em seguida, vou falar sobre a legislação que
estava em vigor na época e também a que foi desenvolvida
desde então.
OK. Esse é o porto de Milford Haven. Na parte inferior esquerda do
mapa, vocês podem ver duas boias. É a entrada do porto de Milford
Haven. Em 15 de fevereiro de 1996, o Sea Empress estava marcado
para atracar às 20h, imediatamente antes da maré baixa, na
refinaria de petróleo da Texaco, seis milhas para dentro da entrada.
Ao se aproximar das boias de entrada do porto, a embarcação
sofreu um forte e inesperado deslocamento para estibordo. O
timoneiro relatou perda de direção. Quase que de imediato, uma
forte vibração foi sentida por todos a bordo, e o navio desenvolveu
inclinação de 21 graus a estibordo. O cheiro de petróleo bruto
foi percebido por todos a bordo. Os motores do navio foram
imediatamente desligados na popa e duas âncoras foram lançadas
dentro da distância de uma milha. Além disso, a embarcação
encalhou ainda mais na entrada.
Na verdade, o encalhe inicial causou apenas danos mínimos.
Menos de aproximadamente 1.000 toneladas, creio, o que ainda é
uma quantidade considerável. Isso porque, além de um tanque de
carga, o tanque de carga número 1 lateral de estibordo, o dano
principal foi no tanque de lastro segregado, que sofreu ruptura,
causando a súbita invasão de água, o que aumentou o calado de
15,7 metros para 21 metros.
O aumento do calado significou grande limitação nas opções para
movimentar a embarcação. Com aquele calado, ele não conseguia
deslocar-se mais para dentro do porto e, para sair e afastar-se do
perigo, havia apenas uma passagem, pequena demais.
A operação de salvamento subsequente causou o derramamento
de 72 mil toneladas de carga, o que gerou consequências
tremendas para todos os envolvidos. Demorou quase uma semana
para que a embarcação fosse levada para o porto e o canal de
navegação fosse liberado. Muitos navios ficaram presos no porto
porque não podiam sair, e muitos ficaram parados do lado de
fora, com carga para as refinarias, sem poder entrar. Além disso,
houve graves consequências para muitos outros usuários
do porto.
Agora eu gostaria de discutir algumas das consequências para o
pessoal envolvido. Não podemos nos permitir pensar que um
acidente é simplesmente um conceito acadêmico, uma considera-
ção política ou um conceito teórico. Pessoas de verdade, tanto
aquelas envolvidas no acidente como aquelas totalmente
inocentes, podem ter a vida arrasada e, nos casos mais graves,
morrer, como fomos hoje informados: dez mortos em Gênova.
Em geral, imediatamente após um acidente há intensa cobertura
da mídia. Os jornais e a televisão vão seguir todos os
protagonistas, vão acampar diante de suas casas, vão seguir o
prático, o capitão do porto, vão seguir sua família, tentando
garantir entrevistas exclusivas. Vão lançar mão de suborno,
chantagem, qualquer coisa para conseguir uma reportagem
exclusiva a ser apresentada no telejornal.
A atenção da mídia não termina logo depois do acidente. Ela
ressurge quando a investigação é anunciada, quando os resultados
da investigação são anunciados, quando o processo judicial
começa, no resultado do processo judicial e, com bastante
frequência, no aniversário do incidente. Além disso, quando
ocorrem outros incidentes, a mídia quer falar com o protagonista
para saber seu ponto de vista.
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Obviamente, após qualquer acidente há uma investigação. No
Reino Unido, a Agência de Investigação de Acidentes Marítimos
conduziu uma investigação independente. A conclusão foi que
houve erro do prático, má gestão da equipe do passadiço,
relacionamento ruim entre o prático e o porto, e graves problemas
administrativos com a administração do porto e os práticos.
Depois, é inevitável que haja culpa. Com frequência, uma
autoridade portuária ou um regulador, num esforço para se desviar
das críticas, busca punir publicamente as pessoas envolvidas.
Nesse caso, o prático. Ele foi investigado. Disseram-lhe
claramente que não levasse um advogado, pois seria considerado
culpado. Quando isso aconteceu, ele se defendeu com o apoio dos
colegas, e o processo disciplinar movido contra ele, com base na
Lei de Praticagem de 1987, tentou condená-lo por incompetência
ou negligência. Com o apoio dos colegas, ele conseguiu
defender-se dessas acusações, mas os custos legais – estamos
falando de 17 anos atrás – para as duas partes foi provavelmente
de meio milhão de dólares, e tratava-se apenas de mera
investigação disciplinar interna.
O estresse pessoal dos protagonistas e suas famílias não deve ser
subestimado. Muitos envolvidos receberam ameaças anônimas por
telefone e por carta. Alguns, até 15 anos depois do incidente, ainda
estavam recebendo ameaças anônimas do tipo “sabemos onde
você mora, sabemos que escola seus filhos frequentam. Se algo
acontecer, vamos atrás de você”.
Assim, muitas pessoas, especificamente os práticos e o capitão
do porto, precisaram de muitos níveis de proteção, vigilância e
investigação policial. Isso não sai no jornal, infelizmente.
Quanto às consequências para o porto, as autoridades do Reino
Unido, por meio da Agência Ambiental, realizaram minuciosa
investigação de todos os aspectos do incidente. Na conclusão de
suas investigações, o prático não foi acusado formalmente.
Decidiu-se, no entanto, processar a autoridade portuária e o
capitão do porto. As acusações contra a autoridade portuária de
Milford Haven foram feitas de acordo com a Lei de Recursos
Aquáticos de 1991, que cria um conceito legal de responsabilidade
civil objetiva. Efetivamente, não existe defesa. A autoridade
portuária não teve opção a não ser declarar-se culpada, e recebeu
multa de quatro milhões de libras. Não se esqueçam de que isso
foi há 17 anos. Esse valor foi subsequentemente reduzido mediante
apelação, porque a autoridade portuária conseguiu demonstrar
que havia rebatido muitas críticas e que tinha um procedimento
operacional muito mais robusto e rigoroso. Felizmente para o
capitão do porto, as acusações contra ele foram retiradas. O porto
também teve de lidar com seus grupos de interessados. Na época,
Milford Haven contava com três refinarias de petróleo. Tinha
também uma frota de pesqueiros, um terminal de balsas e um
terminal de cargas gerais. Muitas dessas pessoas, pescadores,
proprietários locais de barcos de lazer, todos buscaram indenização
da autoridade portuária, especificamente depois que ela foi
considerada criminalmente culpada.
Milford Haven está localizado num parque nacional. Alguns
de vocês talvez tenham estado lá. É uma parte muito bonita do
sudoeste do País de Gales. Depende altamente do turismo. Logo
depois do incidente, que felizmente aconteceu no inverno, os
hotéis da área receberam muitos clientes: a imprensa, a mídia,
os investigadores, pessoas que simplesmente iam dar uma olhada.
Entretanto, depois que as fotografias do petróleo na praia
chegaram à mídia, todas as reservas para as férias de verão
desapareceram, e a praia passou de um local com gente surfando
e nadando para a imagem que vocês veem, de pessoas limpando
o petróleo da praia. Essa era a impressão que o resto do país
tinha agora de Milford Haven.
Milford Haven também era um importante porto de pesca. Muitas
frotas pesqueiras da Bélgica, França e Espanha pegam seus peixes
naquele porto, devido à sua proximidade dos bancos de pesca do
Atlântico. Entretanto, após o incidente, ninguém queria que sua
pescaria fosse associada com essa área, e muitos levaram seu
negócio para outro lugar. Os pescadores locais não podiam mais
ganhar a vida. A área imediatamente adjacente à entrada do porto
ficou fechada para pesca por três meses. A pesca da lagosta e do
caranguejo foi interrompida por mais seis meses depois disso, o
que teve terrível efeito sobre muitos dos pequenos operadores, que
encerraram seus negócios. Além disso, provavelmente mais
famosas são as consequências para o meio ambiente. Mais da
metade da carga foi derramada de uma posição uma milha ao largo
da costa. O resultado imediato foi uma limpeza em larga escala.
Mesmo assim, 15 mil toneladas de emulsão alcançaram mais de
200 quilômetros do litoral. Como resultado da grande operação
de limpeza e da dispersão natural – como eu disse, era inverno, o
tempo estava muito ruim –, no fim do verão havia apenas 500
toneladas desaparecidas.
No auge da resposta, mais de 50 embarcações, 19 aeronaves e 25
organizações encontravam-se diretamente envolvidas. Isso incluiu
mais de 250 pessoas no mar e 950 em terra. A disposição dos
resíduos em si foi uma grande dificuldade, e esperava-se que o
custo total ultrapassasse, em estimativas conservadoras, 60
milhões de libras. Essa cifra não reflete o impacto financeiro do
turismo nem da pesca comercial, que podem ser calculados em
outras dezenas de milhões. Mais uma vez, lembro que isso
aconteceu há 17 anos. O custo hoje seria muito maior.
Eu poderia prosseguir durante horas falando sobre os fatores que
contribuíram para o incidente com o Sea Empress, mas hoje vou
concentrar-me na legislação, nos fatores regulatórios que estavam
em vigor na época.
Primeiro, vou falar sobre a mudança na legislação antes do Sea
Empress. Desde que venho ao Brasil acho que existem alguns
paralelos notáveis entre o que aconteceu, o que está sendo
considerado agora para os práticos brasileiros e o que aconteceu
com os práticos do Reino Unido em 1987.
No Reino Unido, os registros da praticagem resultam daqueles
elaborados no século 12, muito antes de a existência do Brasil
passar pela imaginação de alguém. Os habitantes da Ilha de
Oleron, na França, haviam elaborado um sistema para a
praticagem. Naquele tempo, se um prático perdesse seu barco, sua
punição era ser levado até o guincho e ter a cabeça decepada.
Felizmente, os direitos humanos intervieram, e essa punição foi
reduzida a ser enforcado no mastro!
Em 1514, o rei Henrique VIII, famoso por ter seis mulheres, formou
uma guilda chamada Trinity House e, pelos 450 anos seguintes,
essa guilda, junto com diversas comissões de praticagem locais,
manteve a norma de praticagem no Reino Unido. Com muito
poucas exceções, a maioria dos práticos era autônoma; eles
trabalhavam individualmente ou em cooperativas para o porto.
Após intenso lobby político dos interesses comerciais, sobretudo
autoridades portuárias e a indústria de navegação, em 1987, o
governo introduziu a Lei de Praticagem, que transferiu a
responsabilidade da Trinity House e dos comissários da praticagem
local para o controle direto dos portos comerciais. O resultado,
porém, é que, hoje, o Reino Unido não tem uma legislação nacional
de praticagem. Existem cerca de 70 organizações de praticagem.
Todos os portos são independentes uns dos outros e podem atuar
com autonomia. Muitos deles concorrem mutuamente. Por
exemplo, no Tâmisa temos Medway, Londres e Felixstowe, todos
importantes portos de contêineres, todos exercendo a praticagem
na mesma área. Esses portos estão em concorrência mútua direta,
e parte dessa estrutura portuária envolve o custo de praticagem.
Portanto, obviamente, hoje os portos consideram a praticagem um
centro de custos.
O principal propulsor econômico dos portos é a obtenção de lucro.
Desde 1987, os portos consideram a praticagem uma fonte de
renda mais do que um serviço a ser prestado. Esse foco nos lucros
tem o efeito de distrair a atenção dos tipos de navios e de comércio
em desenvolvimento que podem exigir adaptações na prestação do
serviço e no treinamento da praticagem. Um exemplo disso é a
introdução de fundos duplos nos tanques de lastro segregados. O
último palestrante fez uma boa demonstração disso, mostrando
que foi um excelente desenvolvimento. E é muito bom. No entanto,
como consequência involuntária, certas embarcações são fisica-
mente maiores do que os portes brutos sugeririam. Devido à
introdução do fundo duplo nos tanques de lastro segregados, não
se pode mais determinar o tamanho da embarcação com base
puramente em seu porte bruto.
No porto de Milford Haven, os práticos eram tradicionalmente
designados para as embarcações com base na tonelagem líquida.
Quando isso foi revogado em 1987, essa prática foi mudada para
porte bruto. Como consequência imprevista, o Sea Empress passou
de uma embarcação que exigia um prático de primeira classe e um
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assistente, com restrição de só entrar no porto duas horas antes da
maré alta, para a exigência de apenas um prático de segunda
classe, com permissão de entrar naquele porto a qualquer tempo.
Investigações feitas após o incidente mostraram conclusivamente
que uma embarcação daquele porte jamais entrara antes no porto
naquelas condições de maré, ou seja, uma hora mais ou menos
antes da maré baixa. Isso está mais relacionado com a direção da
baixa de maré na entrada do que com quaisquer restrições
de profundidade.
Após o incidente, várias opções foram consideradas sobre como
eliminar essa dificuldade, e descobriu-se que a solução era
simplesmente trabalhar em tonelagem bruta. Por conseguinte,
hoje, em Milford Haven, toda embarcação com mais de 65 mil
toneladas brutas é considerada um VLCC, que requer dois práticos,
com restrições de horário de entrada. Além disso, deve ter
reboques de escolta. O Sea Empress pesava 77.500 toneladas
brutas. Coincidentemente, Milford Haven é hoje o maior
importador do norte da Europa de LNGs. Agora manobramos navios
dos tipos Q-Max e G-Flex de até 345 metros de comprimento. Por
causa disso, o porto mudou a maneira de carregar os navios,
de porte bruto para tonelagem bruta, convenientemente
aumentando sua fonte de renda da praticagem.
A resposta legal após o caso veio de Justice Steel. Ao resumir o
caso para o processo contra a autoridade portuária de Milford
Haven, ele fez a seguinte declaração: “Os armadores e
comandantes devem contratar um prático. Eles devem incluir no
valor nominal o treinamento, a expertise e a experiência do
prático.” E prosseguiu: “A autoridade portuária impõe uma cobran-
ça pela praticagem, mas ao mesmo tempo tem a vantagem
adicional de que o prático é tratado como um empregado do
armador para fins de responsabilidade civil. Tudo isso demanda as
normas mais rígidas possíveis da parte da autoridade portuária.”
É preciso dar crédito à autoridade portuária de Milford Haven pela
maneira como reagiu àquele julgamento. Eles aceitaram os comen-
tários do juiz, sujeitaram-se a muitos estudos de gestão e aceita-
ram muitas críticas que receberam, e sua administração da prati-
cagem desenvolveu-se de modo a incorporar as lições aprendidas.
Por exemplo, a progressão dos práticos está mais rigorosa. São
necessários cinco anos e meio para passar de praticante de prático
a prático de primeira classe. Isso é baseado nas classes de tonela-
gem bruta, como já explicado. Antes demorava três anos. Agora,
nenhum prático pode avançar para a classe de embarcação
seguinte sem que todos os demais práticos daquele porto aprovem,
dizendo que estão satisfeitos com o progresso.
Foi estabelecida uma norma de treinamento rigorosa e robusta.
Envolve um curso de simulador de uma semana entre cada classe,
antes que se possa ser promovido. Faz-se um curso com modelo
tripulado no início da carreira de praticagem e, depois que se é
prático de primeira classe, faz-se uma atualização a cada cinco
anos. Fazemos o treinamento com reboque de escolta a cada
dois anos num simulador, fizemos cursos de gestão de recursos
marítimos, cursos de ECDIS, todos operamos com um PPU e, para
um prático de primeira classe, existe um sistema robusto de
desenvolvimento profissional contínuo. E tenho de dizer que, se
procurarmos nossa autoridade portuária e acreditarmos que há
uma boa justificativa para um programa de treinamento, se
pudermos convencê-la, vamos conseguir.
Além disso, o reboque de escolta é agora obrigatório para todos os
LNGs, VLCCs e também embarcações menores. O porto de Milford
Haven é muito bem considerado pelo modo como dirige a pratica-
gem e os sistemas de gestão de segurança, e com frequência
recebemos visitantes do mundo inteiro para conhecer nossas
operações, em particular com relação ao comércio de LNG.
Podemos dizer que é uma pena que eles não tenham aprendido
a lição antes do acidente. Teria sido bem mais barato.
Agora vou fazer uma comparação com os desenvolvimentos
regulatórios no Reino Unido. Como resultado do Sea Empress, o
Departamento de Transportes do Reino Unido desenvolveu um
código de segurança marítima dos portos. Ele estabelece o
princípio de uma norma nacional para todos os aspectos da
segurança da navegação no porto e visa aumentar a segurança
de seus usuários ou trabalhadores. Isso se aplica às operações de
navegação do porto, os bem-estabelecidos princípios da avaliação
de risco e dos sistemas de gestão de segurança. O código fornece
uma medida pela qual as autoridades portuárias podem ser
responsabilizadas pelos poderes e pelas obrigações legais que têm
para dirigir o porto de maneira segura e ajudar a executar suas
obrigações com eficiência. É um excelente documento, muito
completo. Tem, entretanto, uma grande falha. Devido à pressão
comercial das autoridades portuárias, ele não é obrigatório. São
simplesmente diretrizes. É um pouco como os Piratas do Caribe, o
código de conduta dos práticos, estando mais para diretrizes do
que para código.
Alguns portos, porém – isso tem de ser dito –, são muito atentos
aos requisitos. Outros optam por cumprir apenas algumas seções,
e alguns mal prestam atenção ao código.
Os portos, por sua vez, precisam escrever ao regulador, ou seja, a
Agência da Guarda Costeira Marítima, a cada três anos, para
declarar que estão em conformidade com o Código de Segurança
Marítima dos Portos. É sua única obrigação. É impressionante que
cerca de 60% dos portos do Reino Unido não o fazem.
Infelizmente, a guarda costeira não tem recursos nem inclinação
para policiar o código. Os portos inspecionam-se uns aos outros.
Alguns deles de fato convidam um porto local para inspecioná-los,
e em troca o inspecionam.
Em resposta a algumas críticas, os portos desenvolveram o Guia de
Boas Práticas, que tem por finalidade complementar o Código
de Segurança de Navegação dos Portos e contém informações
úteis, diretrizes mais detalhadas sobre várias questões relevantes
para as autoridades portuárias e diretrizes gerais sobre como uma
autoridade portuária deve cumprir seus compromissos em termos
de conformidade com o código.
Para evitar confusões, em sua página introdutória há este conselho
extremamente útil: como o código, este guia não tem valor jurídico.
Mas, a mensagem para os portos é bem clara.
Por sua vez, o Departamento de Transportes declarou que gostaria
de ver uma norma ocupacional nacional para os práticos. Os
práticos do Reino Unido trabalham em estreita colaboração com as
associações dos portos para desenvolver normas ocupacionais
nacionais. Essas normas, que as associações dos portos ajudaram
a desenvolver, estão anexadas ao Código de Segurança Marítima
dos Portos e, lembro a vocês, não são obrigatórias. Então, as
associações dos portos que receberam a tarefa de introduzir tais
normas, não as estão aplicando, na maior parte. Muitos práticos do
Reino Unidos se defrontam com autoridades portuárias
competentes, mas só fazem o mínimo do treinamento, com base
no argumento de custos.
Embora os práticos do Reino Unido tradicionalmente sejam
recrutados para capitães de longo curso, na verdade não existe um
requisito nacional que defina as normas de entrada. Cada porto
pode estabelecer as próprias normas. Como expliquei, cada
porto é, efetivamente, sua própria autoridade de praticagem
independente.
Um grande operador de portos possui 21 portos no Reino Unido. Em
um deles, o porto de Southampton, é exigida a qualificação de
capitão de longo curso. No porto de Humber, um dos maiores
da Grã-Bretanha, o anúncio para o recrutamento de práticos
simplesmente menciona experiência recente em alto-mar e o
direito de residir no Reino Unido, o que pode significar qualquer
pessoa dos 27 países da União Europeia.
Outro porto, Cardiff, no sudeste do País de Gales, está atualmente
tentando treinar um timoneiro de lancha de prático por um período
de cerca de seis meses. Então, espera-se que ele adquira a
experiência e o discernimento de alguém que anteriormente
tivesse uma carta de capitão. Isso é algo que não consideramos
particularmente adequado, e que estamos levando ao
conhecimento das autoridades regularmente.
O mais recente golpe na praticagem veio há menos de duas
semanas. O Reino Unido já dispõe de um dos regimes de isenção
de praticagem mais liberais. Com a Lei de Praticagem de 1987,
qualquer pessoa de boa fé, o comandante ou imediato de uma
embarcação podem candidatar-se a um certificado de isenção se
sua embarcação visita regularmente o porto. Isso significa que,
em geral, pequenas embarcações costeiras, uma vez tendo
feito meia dúzia de viagens saindo e chegando, poderão fazer
um teste e assim ficar isentas. Devido às normas trabalhistas
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europeias relativas a horários de trabalho, balsas e dragas
oceânicas agora têm seu horário de trabalho controlado.
Então, em vez de embarcarem um prático para guiar seu navio
através da parte mais perigosa da viagem, as zonas de
praticagem congestionadas, com fortes correntes e rochas, e
tráfego intenso, eles fizeram um lobby bem-sucedido por
mudanças na lei. Assim, desde duas semanas atrás, qualquer
oficial de convés pode conduzir seu navio em zonas de praticagem.
Concluindo, a política de portos do Reino Unido é impulsionada
pelo lobby comercial por meio da Associação de Portos Britânicos,
do Grupo dos Maiores Portos do Reino Unido e da Câmara de
Navegação. A principal motivação é o lucro, e as preocupações
com a segurança e a proteção ambiental ocupam posição
bastante secundária.
Gostaria apenas de resumir o que vimos até aqui.
As autoridades devem tomar muito cuidado ao elaborar normas
para sistemas de praticagem. O propósito fundamental da
praticagem é a segurança da navegação e a proteção dos portos e
do meio ambiente. Qualquer legislação referente à praticagem
deve garantir que isso continue a ser sua finalidade principal.
Normas ineficazes em si mesmas não produzem operadores
ineficazes, mas permitem que eles funcionem. A regulação e a
prestação dos serviços de praticagem não devem estar sujeitas às
pressões comerciais. A regulação focada nos aspectos comerciais
da praticagem pode ser prejudicial aos melhores interesses da
segurança e da praticagem eficiente. Se você acredita que a
prestação de um serviço de praticagem robusto e eficiente custa
caro, considere o custo de um acidente − para a pessoa não só em
termos financeiros, mas para a vida dos envolvidos, para o porto
e seus clientes; para a economia local, para o meio ambiente
costeiro e, não menos importante, para a reputação e credibilidade
daqueles considerados responsáveis por permitir que o acidente
acontecesse, o que poderia facilmente recair sobre os reguladores
ou legisladores.
Normas rigorosas e treinamento eficiente evitam acidentes. Corte
de custos, não. O fornecimento de práticos marítimos altamente
treinados, que podem fazer uso de suas habilidades e experiência
de forma independente, livre de pressões comerciais, é a melhor
salvaguarda que se pode dar à infraestrutura dos portos e do meio
ambiente costeiro. Acidentes não acontecem apenas com os
outros. Eu era o prático a bordo do Sea Empress. Ninguém vai
trabalhar buscando sofrer um acidente, nem cria deliberadamente
uma legislação para diminuir a segurança. Há na legislação em
vigor as consequências involuntárias de se criar um ambiente no
qual o foco da operação e dos prestadores de serviço se afasta
da segurança.
Em suas palavras de abertura, Ricardo perguntou: “Por que não
somos uma nação desenvolvida?” Sugiro que vocês têm uma
vantagem: podem aprender com nossos erros, em vez de repeti-los.
Muito obrigado por sua atenção.
Advogado em Washington-DC, especializado em direito marítimo desde 1978.Diretor executivo e diretor jurídico da Associação dos Práticos Americanos.
Representante dos práticos e seus interesses junto ao Congresso Americano, agências federais, órgãos legislativos e administrativos e à IMO.
Paul Kirchner
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Comparação do modelo brasileiro com modelos de praticagem de outros países: a praticagem nos Estados Unidos
É uma grande honra estar aqui, ter sido convidado a juntar-me a
esses importantes especialistas e palestrantes.
Vou falar sobre o sistema de praticagem nos EUA. Há dois artigos,
que os organizadores colocaram numa bela capa, que acompa-
nham minha apresentação no powerpoint. Eles estão disponíveis
do lado de fora da sala, na mesa à direita da porta. Um deles é um
artigo de revisão de lei sobre a regulação da praticagem nos
Estados Unidos. Não vou lê-lo, mas tudo que falaremos aqui está
explicado no artigo com mais profundidade e detalhe. Há também
um artigo de uma página sobre o papel e a responsabilidade de um
prático nos EUA. Vou ler alguns trechos adiante.
Existem dois pontos principais sobre o sistema de praticagem nos
Estados Unidos que desejo destacar, sendo o primeiro referente à
sua extrema regulação. Na verdade, temos duas instâncias de
regulação de praticagem: a do governo federal e, mais importante,
a dos governos dos estados. Como vocês devem saber, os Estados
Unidos têm 50 estados; 24 deles têm costa, e navios oceânicos
chegam e partem de seus portos.
A segunda característica relevante do sistema de praticagem
americano – e me parece importante que este grupo entenda – é
que os práticos nos Estados Unidos são cidadãos particulares, mas
com responsabilidades públicas. Isso se liga ao que o capitão
Watson mencionou hoje mais cedo, quanto ao fato de a praticagem
obrigatória integrar a regulação de segurança da navegação.
Trata-se de um serviço público. Isso une esses dois pontos: sendo
um serviço público, é totalmente apropriado e correto que o
governo o regule fortemente.
O sistema de praticagem estadual
Uma das primeiras leis de nosso primeiro Congresso foi a
Lighthouse Act, de 1789. Nessa lei, depois de examinar as
atividades marítimas do país, o Congresso fixou quais atividades
seriam de responsabilidade do governo federal e quais caberiam
aos governos estaduais. Como vocês podem imaginar com base no
nome da lei, o Congresso considerou primeiro os faróis. E decidiu
que o novo governo federal deveria assumir a operação de todos
os faróis do país. Na seção 4 da lei, porém, os congressistas
analisaram a praticagem e chegaram à conclusão oposta: que
a praticagem deveria continuar a ser regulada pelos estados.
Essa decisão baseou-se em dois fatos. Naquela época, os estados
(as antigas colônias) tinham sistemas de praticagem próprios havia
pelo menos 100 anos, e tais sistemas pareciam funcionar bem. O
Congresso decidiu que o novo governo federal já tinha trabalho
suficiente sem se envolver em algo de que os estados já estavam
cuidando.
Além disso, e mais importante, o Congresso determinou que, devi-
do à sua natureza, a praticagem seria mais bem regulada no
âmbito estadual; por causa das variações nas condições de um
porto para o outro, uma abordagem nacional não seria a melhor
solução, e sim manter a regulação em nível local. Com isso, foi
criado, em 1789, o Sistema de Praticagem Estadual, que está em
vigor desde então.
Esse é, hoje, o sistema de praticagem predominante nos Estados
Unidos. Em qualquer discussão sobre práticos de embarcações
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comerciais internacionais, sabe-se que, nos Estados Unidos, eles
são estaduais. São indivíduos que têm licença emitida por um
governo estadual. Cada um dos 24 estados costeiros tem um esta-
tuto de praticagem e um conjunto de normas de praticagem
próprios. E em 23 deles, a entidade responsável pela regulação
dos práticos é uma “comissão de práticos”. Sua composição e
responsabilidades variam de estado para estado. O modelo de com-
posição mais comum é a representação cross-sectional de grupos
interessados. Em geral, há um número igual de usuários de
práticos (interesses dos operadores de navios); há os chamados
membros públicos; pode haver representantes de entidades
ambientais e funcionários do governo. Em alguns estados,
conforme seus estatutos, não há práticos na comissão de práticos.
Nos Estados Unidos, cada comissão de práticos estadual corres-
ponde à definição internacional de autoridade de praticagem
competente, ou CPA. A tarefa mais fundamental, essencial, de uma
comissão de práticos estadual ou de qualquer outra autoridade de
praticagem é administrar a exigência de praticagem obrigatória.
Resumindo o que as autoridades de praticagem competentes
fazem, é isso. Todo o resto dá suporte a esse trabalho. O sistema
de praticagem que a autoridade supervisiona está na natureza de
um pacto que diz a um operador de navio: “Vamos exigir que você
leve um prático habilitado, mas, em troca, nós (o governo) vamos
assegurar que você tenha um prático sem demora e sem discrimi-
nação. Esse prático será treinado, competente, estará descansado,
habilitado e completamente preparado para prestar serviços
especializados de praticagem. Não só isso, o prático terá o apoio
operacional que dispõe de tudo que uma operação de praticagem
eficiente e moderna deve ter. Terá, por exemplo, lanchas de prá-
tico de primeira categoria, sistema de distribuição de práticos,
escalas de rodízio, equipamentos de comunicação, PPUs, rádios
e estrutura administrativa bem dirigida.”
Em termos ideais, todas as atividades de uma comissão de práticos
devem estar ligadas a essa tarefa fundamental. Nos Estados
Unidos, uma típica comissão de práticos estadual emite as licenças
de prático, supervisiona o treinamento e faz cumprir a exigência de
praticagem obrigatória. Com relação a este último aspecto, é
importante reconhecer que uma comissão de práticos não regula
apenas os práticos, mas a praticagem. Deve, portanto, lidar tanto
com os operadores de navios como com os práticos.
No Sistema de Praticagem Estadual, o estado supervisiona os
preços da praticagem. Cada estado americano com um sistema de
praticagem estabelece os preços. As taxas de praticagem não são
uma questão de acordo privado entre o prático e o operador do
navio. O processo de precificação, porém, estimula que práticos e
operadores de navios se reúnam e cheguem a um acordo sobre os
preços quando possível. Esses acordos, porém, devem ser aprova-
dos e adotados pela entidade de fixação de preços e publicados
como preços públicos.
Os estados também supervisionam as operações de praticagem.
As comissões de práticos querem assegurar que a operação de
praticagem seja mantida atualizada e que os usuários recebam
serviço de qualidade. Isso está relacionado à função estadual de
fixação de preços. O objetivo da fixação dos preços é garantir não
só que eles sejam justos e razoáveis para os usuários, mas que
produzam receita suficiente para pagar os custos do tipo de
operação que o estado determina que quer e de que necessita
para proteger suas águas e manter o comércio funcionando sem
problemas. Em outras palavras, os preços não devem ser altos
demais nem baixos demais.
Finalmente, a regulação do estado inclui a responsabilização
profissional. Se um prático tem desempenho deficiente, se ocorre
um acidente resultante do erro de um prático, se um prático
apresenta conduta imprópria, a comissão de práticos vai analisar
as queixas sobre os práticos, vai investigar os acidentes e, se
necessário, tomar providências para responder a problemas no
desempenho dos práticos.
Em resumo, o Sistema de Praticagem Estadual é abrangente. As
amplas atividades das autoridades de praticagem competentes dos
estados fazem parte da responsabilidade governamental de
garantir que o interesse público na segurança da navegação, na
proteção ambiental e no comércio aquaviário eficiente esteja
resguardado e que os operadores de navios recebam serviço de
praticagem de primeira categoria e especializado, em troca de sua
obrigação de solicitar o serviço do prático.
Regulação federal da praticagem
Como mencionei, existe também uma instância de regulação
federal nos EUA. A Guarda Costeira dos Estados Unidos emite as
licenças federais de prático. No entanto, as normas para essas licen-
ças são muito menos rígidas do que para as estaduais, porque a
federal serve a diversos propósitos. Cada um dos 1.200 práticos
estaduais nos Estados Unidos também tem licença federal que
serve, nesse aspecto, como norma mínima nacional.
Existe um sistema de praticagem dos Grandes Lagos, configurando
uma operação restrita, para a qual há 32 práticos americanos. Por
causa de suas águas internacionais, é necessário um sistema
regulatório federal. De acordo com a Constituição dos Estados
Unidos, nenhum estado pode estabelecer acordos com um governo
estrangeiro; portanto, para celebrar acordos com o Canadá sobre
as operações de praticagem nos Grandes Lagos, precisamos de
uma entidade federal encarregada da praticagem na região.
Quando o sistema St. Lawrence Seaway foi expandido, em 1960,
para que grandes – na época – navios oceânicos pudessem usar os
portos dos Estados Unidos e Canadá nos Grandes Lagos, o
Congresso aprovou a Lei de Praticagem dos Grandes Lagos. Essa
lei, de 1960, criou um sistema de praticagem inteiramente novo
para a região, inspirado no sistema estadual. Na época, um
escritório do Departamento de Comércio dos Estados Unidos foi
designado para dirigir o sistema de praticagem na região, seme-
lhante ao Sistema de Praticagem Estadual. Por conseguinte, os
práticos dos Grandes Lagos têm licença federal, mas também um
“registro”, análogo a uma licença estadual, com normas mais
rígidas e treinamento adicional, além e acima da licença federal.
Os preços são regulados e existem limites para o número de práti-
cos registrados. O sistema de praticagem dos Grandes Lagos,
atualmente administrado pela Guarda Costeira dos Estados Unidos,
tem a maioria dos atributos do Sistema de Praticagem Estadual,
embora seja dirigido de maneira um pouco diferente.
Finalmente, na praticagem federal, existe isenção da regulação
estadual para as operações de navios de cabotagem de bandeira
americana. Essas operações não são numerosas e requerem
apenas um prático portador da licença federal. No entanto, a maio-
ria desses navios – muitos, hoje, são petroleiros – vai embarcar um
prático com licença estadual, pois ele também tem licença federal,
e o operador de navios reconhece as vantagens de levar um prático
que atenda às normas estaduais mais rígidas.
O papel do prático
Nos materiais disponíveis na mesa no saguão de entrada, há uma
explicação de uma página sobre o papel do prático e as respectivas
responsabilidades de práticos e comandantes sob a lei americana.
Vocês vão perceber que a explicação inclui a declaração de que o
prático obrigatório não é um membro da equipe do passadiço. Essa
declaração recebeu muita atenção desde que a explanação foi
formalmente adotada pela APA, em 1997. A finalidade da declara-
ção foi conseguir que as pessoas reconheçam que a praticagem
obrigatória, ao menos nos Estados Unidos, e na verdade em muitos
outros países, é um serviço público e que os práticos precisam
exercer seu juízo independente.
Isso significa que há momentos em que o prático tem de dizer
“não”. Se o operador de um navio quer partir sob condições nas
quais o navio não deve partir, o prático tem de dizer “não”. Se o
operador quer fazer algo que o prático julga ser inseguro, o prático
deve ter liberdade e autoridade para dizer “não”. O prático não
está ali simplesmente para fazer o que o comandante ou a compa-
nhia operadora do navio lhe diga para fazer. Felizmente, os exemplos
desse tipo de conflito são extremamente raros, mas acontecem. Os
práticos estaduais são avisados de que, se não se mantiverem
firmes e não fizerem o que é necessário e viável para defender os
interesses do estado, serão responsabilizados. Tivemos casos em
5150
que isso ocorreu, quando um acidente resultou de uma decisão do
comandante do navio com a qual o prático não concordou, e este
foi punido por não manter sua posição e não agir para fazer valer
os interesses do estado e evitar um acidente.
Costumava-se dizer que o papel do prático é proteger o navio dos
perigos apresentados em um porto. Hoje, por outro lado, o papel do
prático é proteger o porto dos perigos que o navio representa. O
público espera que os práticos evitem acidentes. Obviamente, os
práticos têm de equilibrar isso com sua obrigação de prestar bons
serviços ao navio − esse é um dos aspectos singulares a seu
respeito. Os práticos têm posição muito firme sobre o transporte
comercial. São marítimos, fazem parte do setor de navegação;
sentem-se responsáveis pela saúde e bem-estar econômico de seu
porto, querem manobrar navios. No fundo de todas as suas
decisões, porém, está a responsabilidade básica de evitar um
acidente, se puderem.
Portanto, se vocês lerem essa explanação de uma página, verão
como se busca conciliar esses dois aspectos. O texto começa com
o princípio básico de que a navegação é responsabilidade compar-
tilhada por prático, comandante e tripulação do passadiço. Quando
preparamos uma primeira minuta, com a assessoria dos operado-
res de navios, em 1997, eles ficaram muito contentes com a decla-
ração. Consideraram que se tratava de uma grande concessão por
parte dos práticos. Não pensamos isso. Pensamos, é claro, na época
e ainda agora, que a tripulação do passadiço e os práticos têm de
compartilhar a responsabilidade e que cada um tem uma função
importantes para desempenhar na navegação do navio. Eles
precisam respeitar suas respectivas funções e trabalhar juntos.
A declaração seguinte é que o prático dirige a navegação da
embarcação sujeito às ordens gerais do comandante. Isso está
totalmente fora da jurisprudência nos EUA há mais de 100 anos.
Esse é o relacionamento real do comandante e do prático. Vocês
podem perceber que evitamos usar o termo “conselheiro” para
descrever o prático. Esse termo é enganoso. O prático faz mais do
que simplesmente aconselhar, e o público e a lei esperam dele
mais do que isso. Ao nos opormos ao uso de “conselheiro”, reco-
nhecemos que referir-se aos práticos como conselheiros é parte da
tradição marítima. Pessoas que respeito muito vão citar a tradicio-
nal entrada no diário de bordo: “ordens do comandante, conselho
do prático”. Alguns práticos se sentem confortáveis com o rótulo
de conselheiro. No entanto, não vamos tentar varrer do mapa o
clichê prático-como-conselheiro fora de nossa tradição marítima.
Simplesmente queremos evitá-lo em discussões sérias sobre
o que os práticos fazem e quais são suas responsabilidades e
obrigações legais.
Como seu estado espera que o prático exerça seu juízo profissional
independente no interesse público, existem diversas característi-
cas do Sistema de Praticagem Estadual que buscam proteger o
prático de pressões que podem comprometer sua segurança e seu
julgamento. Falarei sobre essa característica a seguir.
Concorrência
Somos frequentemente indagados a respeito de concorrência.
Tenho o prazer de informar que, nos Estados Unidos, adotamos a
praticagem não competitiva. Cada estado e o escritório da Guarda
Costeira que regula os práticos dos Grandes Lagos limitam o
número de licenças que emitem. O capitão Watson falou esta
manhã sobre o objetivo dos reguladores da praticagem de determi-
nar e manter o número “certo” de práticos.
Nos Estados Unidos e nos Grandes Lagos não existe um lugar no
qual os práticos estaduais e os práticos dos Grandes Lagos concor-
ram por trabalho. Só no estado de Connecticut, principalmente nas
águas do estuário de Long Island, existem vários grupos de práti-
cos que operam dentro da mesma área. Entretanto, todos devem
participar de uma escala de rodízio conjunta, e o objetivo disso
é evitar que concorram por trabalho. Em Connecticut, portanto, é
possível haver diversos grupos de práticos, mas a escala de rodízio
obrigatória evita os efeitos nocivos da concorrência. Nesse siste-
ma não há incentivo para que existam vários grupos de práticos.
Na verdade, o incentivo é para que eles se unam e operem como
uma unidade, a fim de reduzir despesas e atingir economias de
escala. Acredito que isso vai acontecer com o tempo.
A praticagem não competitiva nos EUA é resultado de uma deter-
minação política específica por parte dos estados, segundo a qual
a regulação econômica, mais do que as forças de mercado, é a
melhor maneira de manter a praticagem de interesse público e
proteger a segurança da navegação. O estatuto da Flórida mencio-
nado pelo capitão Watson pela manhã explica essa determinação.
A legislação da Flórida sentiu que era importante dizer, antes de
tudo, na primeira disposição de seu estatuto de praticagem, por
que eles acreditam que a praticagem não deve ser deixada à mercê
das forças de mercado.
Seleção e treinamento de práticos
De onde vêm e como são treinados os práticos nos Estados
Unidos? Assim como para outras perguntas sobre praticagem
americana, a resposta breve é que cada estado tem um sistema
próprio. As qualificações e o processo de seleção para novos práti-
cos mudam de estado para estado. Alguns deles, em particular os
da costa leste, tradicionalmente têm usado pessoas sem experiên-
cia de navegação. No entanto, quanto menor a experiência ou
formação marítima exigida na seleção, mais longo o período de
treinamento. Esses grupos de práticos vão treinar essas pessoas
“do zero”. Outros locais exigem experiência anterior, em alguns
casos como comandante de navio de longo curso.
Um bom exemplo das variações nos critérios de seleção e
programas de treinamento nos EUA pode ser encontrado no Rio
Columbia, no Oregon. Dois grupos de práticos operam lado a lado.
Todos os práticos da barra do Rio Columbia são ex-comandantes
de navios de longo curso. Eles levam o navio através da barra e,
assim que entram, o entregam a um prático do Rio Columbia.
Todos os práticos do Rio Columbia são oriundos do setor local de
rebocadores-barcaças fluviais. Os dois grupos de práticos têm
formações completamente diferentes, mas ambos operam no
mesmo estado e são habilitados pela mesma comissão de práticos.
Seus programas de treinamento, devido às diferenças de formação
dos aprendizes, são completamente diferentes.
Embora os práticos da barra e os práticos do rio no Oregon se
respeitem mutuamente e respeitem suas respectivas habili-
dades, cada um acredita que seu sistema é o melhor. Esse é um
sentimento bastante universal entre os diferentes grupos de
práticos nos EUA e, imagino, em todo o mundo. Cada grupo
acredita firmemente que seu sistema é o melhor. E o interessante
sobre isso é que todos têm razão. Cada um tem o melhor sistema
para suas condições e necessidades específicas. Ao longo dos
anos, os requisitos de qualificação e programas de treinamento
em cada estado se desenvolveram e produziram os melhores
práticos possíveis, dadas as demandas específicas da zona
de praticagem.
Muitas vezes observamos que não é tão importante o tipo de pes-
soa que entra no sistema de seleção e treinamento, mas sim a
pessoa que dele sai. O objetivo de todo sistema é produzir, ao fim
do programa de treinamento, um prático que tenha as habilidades
e o conhecimento necessários aos trabalhos de praticagem
naquela zona. Nos EUA, os estados são encorajados a focar sua
regulação de praticagem nas necessidades locais. Portanto, as
variações entre os programas estaduais não constituem um ponto
fraco do Sistema de Praticagem Estadual; são antes um grande
ponto forte do sistema.
Cada estado tem requisitos para o treinamento contínuo. O modelo
mais comum é um ciclo, em geral de três ou cinco anos, de
treinamento contínuo em áreas como manobras de emergência,
navegação eletrônica, BRM para práticos (BRM-P), prevenção/
mitigação da fatiga e segurança pessoal. O treinamento é
fornecido por meio de métodos tais como simuladores Full Mission
Bridge, modelos tripulados e instrução em sala de aula.
Recentemente estabelecemos diretrizes para treinamento em
ECDIS para práticos, por exemplo, e temos um programa de
treinamento em BRM desde 1993. Naquele ano, a APA recomen-
dou formalmente que os práticos recebessem treinamento em
BRM e o renovassem a intervalos regulares, hoje estabelecidos
em cinco anos. Aprovamos os cursos de BRM de acordo com as
diretrizes que elaboramos com a assessoria do Conselho Nacional
de Segurança nos Transportes dos Estados Unidos.
Nossas diretrizes para o treinamento em BRM conceberam cursos
significativamente diferentes dos cursos de BRM oferecidos para
as tripulações de navios – porque as tarefas e os desafios da
navegação para os práticos são bastante diferentes daqueles para
as tripulações de navios. Os práticos encontram ambiente dife-
rente quase a cada vez que embarcam num navio. Enquanto o BRM
para tripulações de navios enfatiza rotinas e práticas padronizadas,
os práticos precisam ser flexíveis em sua abordagem, dependendo
do que encontram em cada navio. Por conseguinte, a ênfase num
curso de BRM-P está em duas tarefas essenciais para um prático
– avaliar e adaptar. Embora os práticos venham fazendo isso há
centenas de anos, um dos objetivos do curso é fazê-los pensar
sobre como, ao chegar, avaliam os recursos do navio, tanto em
termos de pessoal como de equipamentos, e depois como devem
adaptar suas práticas para utilizar da melhor maneira o que encon-
tram. Por exemplo, se um prático vê um navio de primeira classe
5352
com tripulação engajada e muito profissional, ele vai manobrar de
uma determinada maneira. Se o trabalho seguinte envolve um
navio mal equipado e mal conservado, cujo comandante parece
pouco profissional e não interessado no que vai acontecer durante
o trabalho de praticagem (e frequentemente os práticos deparam
com essa circunstância), o prático terá de adaptar sua ação.
Como nosso BRM-P existe há 20 anos, muitos práticos americanos fre-
quentaram cinco ou seis cursos de BRM-P ao longo de suas carreiras.
Situação profissional dos práticos americanos
Em geral, os práticos estaduais são profissionais autônomos.
Pertencem a uma associação com o objetivo de dividir despesas e
serviços de apoio, a fim de atingir eficiências de operação e econo-
mias de escala. A esse respeito, eles operam de maneira seme-
lhante a um escritório de advocacia ou grupo de médicos. Cada
prático estadual tem um grande investimento financeiro de risco na
operação do grupo. Eles não são empregados; não recebem salário.
Na maioria dos lugares, têm de pagar para entrar no grupo. Depois
que se tornam práticos plenos, precisam comprar uma participação
no negócio. A justificativa para isso é que eles estão obtendo a
vantagem da infraestrutura pela qual os práticos que são integran-
tes do grupo já pagaram.
Nos Estados Unidos há apenas um porto diferenciado, Los Angeles,
cujos práticos são funcionários municipais. É uma situação espe-
cífica. Nem o porto de Los Angeles nem o porto vizinho de
Long Beach fazem parte do Sistema de Praticagem Estadual.
Os práticos desses dois portos não têm licença estadual. Em
Long Beach, uma empresa privada, a Jacobson Pilots, recebeu
do porto concessão por muitos anos.
Responsabilização profissional
Um prático estadual num navio que se envolve em acidente marí-
timo vai ser investigado. Se ficar constatado que um erro seu foi
a causa do acidente, podem ser tomadas providências contra a
licença do prático, tanto pelo governo estadual quanto pelo
federal. As opções básicas são: a licença pode ser revogada ou
suspensa. Algumas das autoridades habilitadoras vêm-se
mostrando um tanto criativas ao aplicar outras medidas, tais como
exigir treinamento adicional, viagens de observação etc.
Há também penalidades civis e multas aplicadas pelos governos
estadual e federal − não necessariamente relacionadas a
acidentes com navios. Se o desempenho de um prático foi
negligente, se ele violou alguma regra ou apresentou conduta
inadequada, pode haver multa substancial.
Cada vez mais – e esse é o constrangimento aqui – existe o risco
muito real de ação penal para um prático infeliz o bastante para
estar num navio que se envolveu num acidente do qual resultou
morte ou, ainda pior, derramamento de óleo. Não tenho tempo para
discutir isso em detalhe, mas a realidade hoje é que, se houver
óleo na água ou morte, alguém deverá sofrer uma ação penal. Isso
também se aplica aos práticos, e há alguns anos vimos um deles
ser processado.
Os processos civis também constituem grande preocupação. Por
diversas razões que estão além do escopo dessa discussão,
normalmente os práticos não são processados pelos danos resul-
tantes de um acidente. Isso, no entanto, está mudando. Os práticos
estão sendo processados com mais frequência. Para tratar essa
questão, dez dos 24 estados adotaram alguma forma de limitação
de responsabilidade civil estatutária. Embora sejam apenas dez,
eles são os estados com os maiores números de práticos − então
bem mais de 50% dos práticos nos EUA operam em zona que
dispõe de um sistema de limitação de responsabilidade civil.
Tais sistemas assumem uma de duas formas. Alguns estados têm
teto para o valor dos danos recuperáveis de um prático. Por
exemplo, esse teto é de US$ 1.000 no Texas e de US$ 5.000 no
estado de Washington. Existe outra forma de limitação de
responsabilidade civil que consiste num sistema relativamente
complicado. É com frequência chamado de sistema de preço duplo.
Em troca de um preço de praticagem mais baixo, que é na verdade
o preço de praticagem habitual, um navio concorda em retirar
todas as queixas contra o prático e em indenizar e isentar de
responsabilidade o prático contra queixas de terceiros. Esse é o
sistema, por exemplo, que está em vigor em São Francisco. Foi
aplicado no caso do acidente com o Cosco Busan em 2007, e o
prático de São Francisco que se achava a bordo do navio estava
coberto por esse sistema.
Em todos esses sistemas, a limitação de responsabilidade civil não
se estende à suposta negligência ou conduta dolosas. Portanto,
qualquer limitação que conste do estatuto não se aplicará no caso
de um prático considerado gravemente negligente ou culpado de
conduta dolosa.
A limitação de responsabilidade civil existe há muito tempo. É
aceita pelos estados e, na maioria dos lugares, pela comunidade
de operadores de navios, porque é economicamente eficiente. Não
existe seguro capaz de cobrir um prático pelo risco potencial de
responsabilidade civil – de muitas centenas de milhões de dólares
– em que incorre a cada vez que embarca num navio. Considerado
esse risco, uma tarifa de praticagem num contexto de responsabi-
lidade civil ilimitada teria de cobrir o custo do seguro de respon-
sabilidade civil para o prático, se disponível (que seria proibitiva-
mente caro em relação ao preço normal de praticagem), ou o risco
econômico que o prático está assumindo toda vez que vai trabalhar.
Isso não só seria prejudicial ao setor de navegação, como não
serviria a nenhum propósito válido. Os navios já têm seguro contra
erros dos práticos; portanto, faz sentido que a responsabilidade
civil do prático seja limitada ou transferida para o navio, que está
segurado. Isso evita o duplo seguro ineficaz.
A questão importante ao se considerarem as diferentes conse-
quências de um erro ou mau desempenho de um prático nos EUA é
que existe responsabilidade. Mais do que isso, a carreira de um
prático está em jogo toda vez que ele vai a bordo de um navio.
Benefícios do sistema de praticagem americano
A regulação da praticagem no sistema americano não é perfeita.
Mas é claramente bem-sucedida. Está em vigor há muito tempo e
tem benefícios significativos – para os operadores de navios, para
o público e para os práticos.
Primeiro, é um verdadeiro sistema do tipo “quem paga é o usuário”.
Não há subsídios do governo. Os contribuintes não são
responsáveis pelo pagamento dos práticos. O custo da praticagem
recai sobre os usuários do serviço. Não obstante, o público dele
muito se beneficia.
Segundo, existem duas instâncias de supervisão regulatória. Às
vezes isso pode ser complicado, e às vezes os sistemas regulatórios
estaduais e federal podem entrar em conflito. Nenhum prático,
todavia, vai passar despercebido na regulação governamental.
Terceiro, no Sistema de Praticagem Estadual os práticos são
protegidos das pressões econômicas que poderiam comprometer
a segurança. O sistema estadual é concebido para oferecer
aos práticos essa proteção.
Quarto, os práticos têm interesse profissional e financeiro no
sucesso da operação de praticagem em seu porto. Isso porque eles
não são empregados nem recebem salário. O que eles ganham –
sua renda – baseia-se no trabalho que fazem. Se sua operação de
praticagem e seu porto estiverem bem financeiramente, eles
também estarão.
Quinto, há compensações financeiras para os práticos nos EUA.
Essas compensações atraem pessoas de alta qualidade e
motivadas. Ser prático é atingir o auge da profissão de marítimo,
e os práticos são remunerados de acordo.
Finalmente, a regulação da praticagem nos EUA é um processo
democrático. É transparente. Nos EUA, os práticos, os usuários da
praticagem e o público participam do sistema; podem dirigir
petições ao governo. A praticagem é totalmente direta e aberta;
não há acordos de bastidores.
Essa é uma breve descrição da praticagem nos EUA. Terei prazer
de responder às perguntas e agradeço a atenção de todos.
mas todas sob as mesmas normas. Temos a parte oeste, próximo à
fronteira com a Holanda, o Rio Ems, depois temos o Rio Weser, o
Rio Elbe, o Porto de Hamburgo, o Canal de Kiel, parte leste e parte
oeste, e os Países Bálticos. Ao todo, somos cerca de 900 práticos
em todas as zonas.
A Lei de Praticagem também descreve como formar os jovens
práticos, como calcular os preços e o rendimento do prático, o
tempo de trabalho, a supervisão, os sistema de transbordo, respon-
sabilidade civil, gestão da qualidade, organização e administração
etc. Tudo está de fato contido na Lei de Praticagem.
Agora vamos examinar a praticagem alemã. Podem ver que em
2008 tivemos mais de 200 mil manobras de praticagem na
Alemanha, e depois, devido à crise financeira em 2009, esse
número caiu para 130 mil, e, no final de 2012, nos aproximamos
do correspondente ao ano de 2005 novamente.
E quanto à formação e ao treinamento avançado? Pelo menos,
aqueles que gostariam de se tornar práticos devem ser aprovados
na escola pública, com a graduação, e depois devem trabalhar no
mar durante pelo menos dois anos como aprendizes. Em seguida,
devem ir para a escola de navegação e concluir o STCW; precisam
no mínimo de um bacharelado. Depois de passar pelo STCW
ilimitado, trabalham novamente no mar para completar três anos
de experiência. E, então, podem tornar-se práticos, e a
Administração de Águas e Navegação vai examinar se todos
os requisitos estão preenchidos. Eles têm mais oito meses de
formação em alguma zona de praticagem específica, e só depois
vem a prova. Aprovados, começam como práticos juniores, durante
três anos, com limite quanto ao tamanho do navio. Depois disso
tornam-se práticos seniores, sem limite algum.
É, portanto, um caminho muito longo, e agora temos tido pro-
blemas para encontrar jovens, homens e mulheres, que queiram
tornar-se práticos. Começamos a discutir o novo sistema, mas são
necessários dois anos para estabelecer um sistema tão grande.
Aqui, vocês podem comparar o número de manobras e o
número de práticos. Vejamos o ano de 2008. Temos um
grande número de práticos, um menor número de práticos e
muitas manobras de praticagem, e depois exatamente o oposto.
55
Capitão de longo curso.Prático do Canal de Kiel e do Báltico Ocidental desde 1993.Presidente da Associação de Práticos do Canal de Kiel e Báltico Ocidental desde 2005.Presidente da Associação Alemã de Práticos desde 2009.Vice-presidente da Associação Internacional de Práticos – IMPA.
Hans-Herman Lückert
54
Comparação do modelo brasileiro com modelos de praticagem de outros países: a praticagem na Europa
OK. Antes de tudo, quero dizer obrigado e que é uma grande
honra para mim, senhoras e senhores, ser convidado a vir aqui
e fazer uma rápida palestra. Agradeço especialmente ao Otavio,
ao Marcelo e a vocês. Muito obrigado a todos.
Gostaria de falar um pouco sobre o sistema de praticagem alemão
e um pouco sobre os sistemas de praticagem europeus que
temos aqui.
Primeiro, volto rapidamente ao pas-
sado, à história. Existem diferen-
tes nações na Europa, com diferentes
idiomas, e, portanto, vamos nos referir
a loods, ludsman em russo; lotsman,
em sueco; piloto. Piloto, por exemplo:
antigamente, há dois séculos, especial-
mente na região do Mediterrâneo, os
armadores possuíam navios e deseja-
vam ser os comandantes desses navios, mas não tinham
conhecimento algum. Então, contratavam pessoas que
tinham conhecimento para conduzir um navio. Esses homens eram
chamados de pilotos. Acho que esse foi o primeiro relacionamento
de confiança entre armadores e práticos.
A primeira vez que encontramos praticagem, ou alguma
regulamentação de praticagem, foi durante o período hanseático.
No século 14, pescadores locais atuavam como práticos do mar.
Duzentos anos depois, as Normas de Praticagem de Hamburgo
existiam, mas um comentário sobre os hanseáticos: atualmente
circula uma piada em meio a cidadãos, comerciantes e negociantes
hanseáticos. Eles dizem que os hanseáticos venderiam a avó e
os hamburgueses, que também são hanseáticos, de fato a
entregariam! E, apenas para sua informação, a Hamburg Süd
está localizada em Hamburgo.
A primeira estação de práticos situava-se na costa báltica, perto de
Kiel. Naquela época, o canal de Kiel não existia. Sou prático
do Canal de Kiel, e aquela foi a primeira estação sob supervisão
governamental. A primeira Federação Alemã de Práticos foi
fundada em 1919, logo após a Primeira Guerra Mundial, e na época
foram estabelecidas algumas diferentes avaliações de práticos. Há
algumas frases muito importantes, por exemplo, a do poeta Joseph
Conrad: “Os práticos são a personificação da confiabilidade”; e
acima vocês veem a charge “Dropping the Pilot”, sobre a demissão
do chanceler Otto von Bismarck.
Não seria a Alemanha se tudo não fosse regulamentado por
normas e algumas leis. De uma, porém, tenho muito orgulho. É a
Lei Alemã de Praticagem, que entrou em vigor em 1954 e descreve
tudo que se relaciona à praticagem. Zonas de praticagem, como
vemos aqui no mapa muito claramente, temos sete, diferentes,
57
do rendimento do empregado alemão. Esse é o acordo. Precisamos
ter conversas especiais quando queremos algo importante, como,
por exemplo, estabelecer um sistema PPU, ou algo assim.
A Resolução IMO A.960 está integralmente implementada na
Lei de Praticagem. Assim, de acordo com essa norma, todos os
práticos alemães fazem o treinamento avançado.
Temos um problema especial com o tamanho dos navios. Por
exemplo, essa é a eclusa de Kiel, e o tamanho dos navios que usam
o canal de Kiel só está aumentando. No Rio Weser e no Rio Elbe,
nos últimos cinco anos, o tamanho aumentou cerca de oito mil
toneladas brutas. No canal de Kiel, aproximadamente duas
mil toneladas brutas. Então precisamos fazer um treinamento
especial para os práticos no simulador, para que eles possam
manobrar navios tão grandes.
Agora vamos ver um pouco da Europa. Em geral, a Europa é
um problema, devido às diferentes nações. Somos 26 membros
na UE agora. Duas semanas atrás, o mais novo membro era a
Croácia. Então, 26 nações, e cada nação teve um desenvolvimento
diferente no passado. O principal problema relativo à praticagem
está nos diferentes sistemas usados. Por exemplo, os práticos
são autônomos na Alemanha, França, Holanda; são empregados
dos portos, ou supervisionados pelos portos, no Reino Unido;
empregados pelo governo na Bélgica, Noruega e Dinamarca. A
maioria dos práticos europeus é empregada pelo governo.
56
Essa crise foi boa para os práticos, que fizeram muitas horas
extras. Tínhamos atravessado um deficit de pelo menos 40% de
práticos; foi bom para pensar na vida, relaxar um pouco. O período
anterior à crise foi realmente muito difícil para nós.
Agora, quanto ao sistema de transbordo do prático, antigamente,
essa parte era do governo; uma parte muito cara. Então, o governo
transferiu isso para o Bundeslotsenkammer, que estabeleceu,
em 1964, uma empresa chamada Lotsbetriebsverein. A
Lotsbetriebsverein é responsável por todo o transporte dos
práticos e emprega 450 pessoas. Nosso orçamento anual é
de 60 milhões de euros. O sistema é o seguinte: todos os
equipamentos, todas as lanchas pertencem ao governo, mas
toda a manutenção cabe a nós. Portanto, é um bom sistema.
Os práticos também estão à frente do sistema de transbordo
e de transporte. Usamos diferentes tipos; usamos helicópteros;
nessa foto podem ver a tecnologia SWATH, é um sistema
novíssimo, muito bom, mas muito caro.
Chegamos à gestão da qualidade. É a coisa mais importante na
Alemanha. Adotamos o seguinte sistema: a associação dos práti-
cos e a supervisão do governo são ambas responsáveis pela gestão
da qualidade. A associação dos práticos deve investigar e fazer o
treinamento de segurança regularmente, a análise de acidentes,
novos desenvolvimentos. Cabe-lhe também o ônus da prova,
conforme o parágrafo 26 da Lei Alemã de Praticagem. E a
supervisão do governo vai trabalhar em paralelo, especialmente no
sistema de serviços de tráfego de embarcações.
Às vezes, porém, temos problema. O prático tem de reportar-se o
tempo todo à Administração de Águas e Navegação, mas nossa
orientação é: primeiro nos contate para informar ao presidente da
associação de práticos local, ou aos advogados, e depois então
reporte-se à autoridade.
Assim, a supervisão legal é uma questão central na Alemanha.
Todas as sete zonas de praticagem alemãs têm a mesma
supervisão legal da Administração de Águas e Navegação.
Consideramos muito importante ter um sistema comum para todo
o país.
E de onde vem o dinheiro? Existe uma tarifa de praticagem.
Ela é paga por todo navio acima de 300AB, e é cobrada pela
administração. Primeiro tiramos o dinheiro para o transporte dos
práticos, ou seja, 60 milhões por ano, depois distribuímos para
cada associação de práticos e deduzimos o custo de nossa
administração. O resto é enviado a cada prático em partes iguais;
trata-se do último sistema comunitário em toda a Europa, acredito.
Como eles definem a tarifa? Todo ano discutimos com o ministro
dos Transportes. Ele define o preço da praticagem, e todo ano
temos uma discussão sobre isso, mas o contrato é que o rendi-
mento do prático vai aumentar de acordo com o aumento médio
Doutor em economia pela Universidade Federal do Rio de JaneiroProfessor-associado do Instituto de Economia da UFRJ.
Foi assessor do Ministério da Fazenda, da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis.
Ronaldo Fiani
59
Em geral os benefícios para a sociedade aumentam com a
introdução de competição. A razão disso é que, com a competição,
a quantidade ofertada aumenta, e os preços declinam, permitindo
que mais pessoas possam consumir os bens ou serviços ofertados,
e, assim, o bem-estar da sociedade aumenta. No serviço de prati-
cagem, contudo, a introdução de competição pode provocar danos
à sociedade, que superam em muito os benefícios oriundos de
eventuais reduções nos preços. Isso se explica pelo fato de que a
praticagem é afetada por significativas ‘externalidades’. Diz-se
haver externalidades quando as decisões de um agente afetam
outros agentes, sem que o agente que afetou os demais negocie
esses efeitos em um mercado. As externalidades podem ser nega-
tivas ou positivas. Há externalidades negativas quando as ações de
um indivíduo ou empresa geram custos para outros indivíduos ou
empresas, sem que o agente que adotou as ações seja cobrado por
isso. Diz-se haver externalidades positivas no caso de um agente
gerar benefícios para outros, que não pagam por esses benefícios.
Vamos ilustrar o problema das externalidades com dois exemplos.
Suponhamos que uma fábrica de produtos químicos se instale às
margens de um rio onde vive uma comunidade de pescadores. A
fábrica faz uso das águas do rio para lançar dejetos industriais,
resultantes de sua atividade produtiva, os quais possuem impacto
adverso sobre a fauna que habita o rio, incluindo-se aí os peixes
dos quais os pescadores extraem seu sustento.
Trata-se, assim, de uma externalidade negativa, pois a produção da
fábrica gera um custo para os pescadores: a redução na população
de peixes e o consequente aumento nas horas de trabalho para
obter quantidade de pescado igual à que recolhiam antes da insta-
lação da fábrica. Contudo, como não há um ‘mercado’ para as
águas do rio, os custos de operação da fábrica não incorporam os
custos da utilização da água, que é um recurso produtivo da socie-
dade (pois serve para lançar os dejetos da fábrica, assim como é
dela que são obtidos os peixes consumidos).
Assim, os custos da fábrica serão menores do que deveriam, pois
não incluem os peixes que não são mais pescados, em função da
diminuição de sua população, ocorrida como resultado da atividade
fabril. Em decorrência, dados os preços dos produtos químicos
produzidos pela nossa hipotética fábrica, seus lucros serão maio-
res do que deveriam ser se incorporassem os custos que gera para
a sociedade, por conta da redução no volume de peixes. Sua
produção será superior àquela que seria interessante do ponto de
vista social (considerando-se a redução na satisfação dos pescado-
res e dos consumidores de peixe pela diminuição da quantidade
de pescado).
É fácil identificar que esse tipo de problema ocorreria também no
caso de um serviço de praticagem inadequado que retardasse os
fluxos comerciais ou mesmo provocasse acidentes com embarca-
ções. Os prejudicados seriam todos os envolvidos nas atividades
de exportação e importação no país, mais as populações das
proximidades dos portos ou dos rios navegados, mas esses vários
Características econômicas da praticagem, competitividade e regulação econômica
58
O principal problema, que já mencionei, é que ao longo dos últimos
20 anos, depois da queda da Cortina de Ferro, a maioria dos novos
membros da União Europeia veio da antiga parte comunista da
Europa. Na Europa, estamos perto de cinco mil práticos.
O problema para o sistema é que, na Europa Oriental, eles tiveram
uma atividade absolutamente regulada, e agora as pessoas oriun-
das desses países gostariam de ter total desregulamentação.
Existem muitas áreas nas quais é perigoso estar totalmente
desregulamentado, e a praticagem na Europa é uma delas. Deve
ser regulamentada. Temos a Comissão Europeia, temos o Conselho
Europeu e temos o Parlamento Europeu. E agora o caminho é a
Comissão Europeia; o comissário para a DG MOVE, da Estônia, faz
algumas propostas e vai para o Conselho, formado pelos
primeiros-ministros ou presidentes de cada estado-membro, e
depois para o Parlamento Europeu. E a questão é que, por exemplo,
o Sr. Kallas fez uma proposta de desregulamentação total e
estabelecimento de um sistema competitivo, e assim por diante.
Sabemos, porém, pela nossa experiência na Europa Ocidental, que
não podemos lidar com isso. A praticagem deve ser um sistema
estritamente regulamentado. A competição é como se você
comparasse com uma brigada de incêndio: há um incêndio e real-
mente não dá tempo de fazer uma oferta, só dá tempo de chamar
um único número, e a partir daí a operação seguir em frente.
É um grande erro.
A posição alemã é muito clara. Não é apenas a minha posição, é a
posição do Parlamento alemão. Teremos um sistema de praticagem
regulamentado. Somos contra a competição e precisamos da
praticagem obrigatória em todos os portos, e é absolutamente
inacreditável para a Alemanha que a ordem venha de Bruxelas
sobre o que temos de fazer em águas alemãs, por exemplo.
Portanto, somos estritamente contra a proposta do Sr. Kallas, mas
estamos em meio a uma discussão, e o Sr. Kallas e a União
Europeia vão fazer propostas durante o verão. Estou otimista
de que poderemos defender a praticagem e manter um sistema
regulado na Europa.
Trata-se de um grande problema para nós, mas acho que, se
estivermos unidos, seremos fortes e bem-sucedidos também em
Bruxelas. Esse é nosso principal objetivo.
OK, é isso. Estou à disposição para perguntas, obrigado pela
atenção.
agentes não seriam ressarcidos pelos responsáveis pelo provi-
mento do serviço. Teríamos a geração de externalidades negativas.
Um eloquente exemplo foi o encalhe do navio-tanque Exxon Valdez,
em 1989, no Alasca, ocasionado por falha de navegação. O navio
carregava 1.263.000 barris de petróleo, e o acidente causou
prejuízo de US$ 25 milhões em reparos do navio, perda de carga
avaliada em US$ 3,4 milhões e danos ambientais catastróficos,
cuja reparação teve custos finais que excederam US$ 2 bilhões.
Não havia prático a bordo, pois a praticagem na região tinha
sido considerada desnecessária. Esse processo foi revertido, e a
praticagem reestabelecida na área do acidente.
Esse risco, por si só, justifica a regulação na forma de limitação e
controle em relação a quem está autorizado a exercer o serviço de
praticagem. Uma liberalização do serviço incorreria no risco
de atrair profissionais sem o preparo adequado, com o que o
risco de externalidades negativas aumentaria perigosamente.
Vistos exemplos de externalidades negativas, passemos agora a
um caso de externalidades positivas. Nessa situação, o próprio
serviço de praticagem oferece mais um exemplo direto. Um serviço
de elevada qualidade, de modo que as manobras, além de seguras,
sejam rápidas, eficientes e bem coordenadas, resulta em ganhos
não apenas para a empresa proprietária da embarcação, mas para
todos os demais agentes envolvidos indiretamente naquela ativi-
dade – por exemplo, o exportador e ou importador das mercadorias
embarcadas, que ganham com a agilização do transporte ou ainda,
os portos e terminais, que contam com os benefícios cumulativos
dessa mesma agilização, sob a forma de maior disponibilidade de
berços de atracação. Além disso, serviços de praticagem eficien-
tes, bem coordenados e de boa qualidade aceleram o fluxo comer-
cial e afetam positivamente toda a rede logística ligada ao comér-
cio exterior. Dessa forma, os lucros de um serviço de praticagem
eficiente se difundem pela economia. Entretanto, como os práticos
não serão remunerados pelos vários agentes beneficiados,
estariam sendo geradas externalidades positivas para todos
esses agentes favorecidos.
Por conseguinte, em decorrência da não remuneração dos benefí-
cios gerados, os práticos poderiam não se sentir inclinados a incor-
rer no custo e no risco de investir no longo prazo em sua atividade,
embora isso fosse do interesse da sociedade. Assim, o volume de
investimento nesse tipo de atividade seria inferior ao nível dese-
jado do ponto de vista da sociedade, um resultado que é típico da
presença de externalidades positivas. Contudo, essa tendência é
contrabalançada pela presença de ‘quase rendas’ no serviço de
praticagem. Quase rendas são rendas que se originam do fato
de que, sendo os ativos envolvidos em uma atividade muito
específicos, há grande diferença entre o valor do serviço para quem
o demanda – que é muito elevado – e seu custo operacional – este
último muito reduzido. Vejamos como isso ocorre.
Essas quase rendas (q) seriam dadas pela expressão: q = y - c - t,
em que y é a receita total do serviço de praticagem, c é o custo
operacional esperado do serviço (o gasto com combustível e
manutenção das lanchas, energia elétrica etc.), e t é seu custo de
oportunidade esperado, isto é, o valor que se pode obter do serviço
de praticagem em seu melhor uso alternativo. Ocorre que devido à
especificidade da formação do prático, cujos conhecimentos e
habilidades são úteis apenas para uma zona de praticagem (ZP)
específica, seu custo de oportunidade t é muito baixo (o valor de
seus conhecimentos e habilidades em outras atividades é pratica-
mente nulo). Como o custo operacional c também é muito baixo em
relação ao valor do serviço, a receita que expressa esse valor do
serviço y é muito maior do que a soma dos custos operacionais e
de oportunidade. O resultado é que as quase rendas que resultam
da diferença y - c - t são muito elevadas.
Ocorre que é possível, no curto prazo, manter a oferta do serviço de
praticagem apenas remunerando o custo de oportunidade e o custo
operacional, pois eles cobrem o custo imediato do serviço de
praticagem. Resulta daí que há um incentivo para o comprador do
serviço tentar capturar a quase renda para si, tentando reduzir o
valor do serviço apenas a c + t. Esse incentivo produz ameaças de
60 61
hold-up, que nada mais é do que a suspensão ou apenas a ameaça
de disputa em relação aos termos anteriormente contratados,
afetando o desenvolvimento esperado da transação, em função de
demandas de revisão das condições originalmente estipuladas em
acordo ou contrato. Em casos mais radicais, pode haver a pura e
simples interrupção da transação, até que uma das partes tenha
seu pleito atendido.
A ameça de hold-up torna-se particularmente grave quando uma
das partes, que realizou investimento em um ativo específico com
poucas possibilidades de uso alternativo – como é o caso do apren-
dizado de um prático em uma ZP –, fica vulnerável a ameaças da
outra parte de encerrar a relação. Essa ameaça pode permitir a
uma das partes obter condições mais vantajosas do que as do
início da transação. Obviamente, se as ameaças de hold-up
obtêm sucesso, há o risco de desestímulo à prestação do serviço
de praticagem no longo prazo. Daí a necessidade também da
regulação como forma de solucionar conflitos, garantindo
adequada oferta do serviço de praticagem ao longo do tempo.
Capitão de longo curso. Diretor (desde 2006) da Praticagem do Rio da Prata, na qual ingressou em 2001.
Pablo Pineda
62 63
Caros colegas, autoridades presentes, ilustres senhores, é uma
grande honra estar com vocês, e quero agradecer o convite das
autoridades do CONAPRA para participar deste seminário.
Faz tempo que praticamos com colegas do CONAPRA, no âmbito de
fóruns e congressos, intensa troca de informação sobre a situação
da praticagem em nossos países; e hoje tenho a oportunidade de
contar-lhes a forma com que, segundo meu ponto de vista, nos
últimos 20 anos tem avançado ou retrocedido a praticagem na
Argentina. Em minha exposição vou fazer referência à pilotagem
no Rio da Prata, que é a região em que trabalho; o Prata é um rio
longo, de 100 milhas náuticas, mas o canal é muito estreito, pouco
profundo e com fluxo cruzado.
A praticagem, desde o início da desregulação, vem experimentan-
do muitas mudanças, e, para falar a seu respeito, temos que nos
situar temporalmente e conhecer o contexto naquele momento. Se
falamos sobre desregulação, temos que nos remeter a dezembro
de 1991. A globalização começava a nos deslumbrar, e um governo
neoliberal na Argentina tentava nos convencer de que um negócio
nas mãos do Estado não era um bom negócio.
Em dezembro de 1991 o governo lançou seu decreto com cinco
pontos fundamentais.
• Os práticos habilitados pela autoridade puderam ser contratados
livremente pelos usuários para prestar serviços com o status de
profissionais independentes.
• Abre-se o registro para a habilitação, incorporação de novos
práticos, sem limite de número, a todo profissional que tenha
as condições.
• Os serviços ligados a praticagem, embarque e desembarque
puderam ser cumpridos livremente pelos usuários e pelos práticos.
• O valor dos serviços de praticagem, até então decidido entre os
práticos e o cliente, foi fixado pelo Estado na tarifa máxima.
• A praticagem constitui serviço público de interesse para a
segurança na navegação.
Qual foi o principal objetivo do decreto segundo as autoridades?
Obter mais economia para os usuários de maior agilidade operativa
e administrativa. Sem dúvida, o principal objetivo foi reduzir custos
ou, como se diz comumente, diminuir o custo argentino. Era lógico
pensar que a competição entre colegas e a livre contratação pelos
usuários iriam desencadear uma guerra entre práticos, e que a
estratégia seria a redução da tarifa. O que, porém, não aconteceu.
A tarifa, cujo valor poderia ser estabelecido entre os funcionários
e usuários, não mudou; manteve-se igual. E qual foi o papel dos
práticos nos primeiros anos da competição?
As consequências da concorrência no serviço de praticagem: o exemplo da Argentina
Antes da desregulação, os práticos eram profissionais que traba-
lhavam sob o regime da Prefeitura Naval Argentina, recebendo
todos remuneração igual, fixada pelo Estado, e todos faziam igual
quantidade de trabalho. Como todo serviço público a navegação
tinha um número limitado de práticos, e o Estado respondia a
processo jurídico por responsabilidade civil.
A abertura do Rio da Prata acontece dois anos depois do decreto
da desregulação. Com o apoio da maioria dos práticos jovens e
com a promessa de ganhar mais dinheiro, um prático se converte
em empresário e cria a primeira empresa com práticos emprega-
dos, que logo se apodera de 60% do mercado para dividir entre
apenas 30% dos práticos. Dessa forma, poucos colegas, donos
de 60% do mercado, deviam realizar, cada um, até 20 manobras
de praticagem por mês.
A empresa original, que chamaremos de Cooperativa IMPA, ficou
com 70% dos práticos e apenas 40% do mercado, fazendo, cada
um, quatro ou cinco manobras por mês, ou seja, muito pouco
trabalho. Quando mencionamos práticos no Rio da Prata fazendo
20 manobras ao mês, é necessário informar que a praticagem na
região leva não menos de 15 horas, considerando transporte ter-
restre e aquático. Temos aqui a grande diferença econômica entre
as duas empresas. Isso gerou o seguinte fato: outros colegas,
com as mesmas ambições, criaram novas empresas. O curioso é
que todas as empresas foram desmembramentos da cooperativa
original não pela falta de serviço, mas pelo abuso dos empresários,
gerando insatisfação por parte dos empregados, que reagiram e
criaram outras.
Acrescente-se a questão da segurança, porque fazer mais de 20
viagens por mês significa trabalho sem descanso e quase sem
retorno ao lar. Logo, para fazer uma síntese da primeira etapa da
competição devemos incluir:
• fracasso do Estado; as tarifas mantiveram-se, assim como o
custo que só se repartiu de outra forma;
• enorme desigualdade entre rendas referentes ao trabalho
realizado por colegas empregados e pelos que continuaram
vinculados a uma empresa IMPA.
Segunda etapa da competição
Ao longo de anos os práticos continuaram sua luta visando obter
maior mercado. A situação começou a mudar com a entrada de
práticos jovens na Cooperativa; sem nada a perder, como último
recurso, ameaçaram o sistema com a possibilidade de oferecer o
serviço diretamente a armadores e carregadores no exterior por
tarifa mínima. Estamos falando do ano 2000, e, agora sim, parecia
64
que depois de seis anos de competição no Rio da Prata, o objetivo
do Estado estava quase por se cumprir, já que dessa forma as
tarifas se reduziriam drasticamente.
O que aconteceu, no entanto? Os intermediários, ante a clara pos-
sibilidade de sua extinção, acalmaram as águas e eles mesmos
começaram a partilhar mais equitativamente o mercado, para
evitar o fim do negócio.
Até agora, só falei da praticagem como negócio que foi bom para os
intermediários, mas não tão bom para o Estado, os práticos e os clien-
tes. Não fiz referência às diferenças mais importantes desse sistema
com alto impacto negativo sobre a profissão do prático, a segurança
da navegação, o cuidado do ambiente e nossas vias navegáveis.
O sistema tem um número limitado de práticos. Não existe um
padrão que estabeleça a relação ideal entre as quantidades de
trabalho realizado e de descanso. Por isso a tradicional antinomia
fadiga versus conhecimento adequado continua sem ser resolvida.
Isso, entretanto, não é tudo; hoje a Marinha argentina, depois
de um processo de recuperação, tem um número significativo de
comandantes de navios em condições de atuar como práticos,
bastando-lhes somente fazer alguns exames.
Como consequência, talvez em curto prazo haja muitos práticos
novos sem emprego − quero dizer que provavelmente teremos
de compartilhar o trabalho de hoje com muito mais pessoas e,
com certeza, por pagamento menor. Podemos perceber que se trata
de uma situação sem controle. E todos sabem que o número
limitado de práticos é o pilar para manter o sistema em equilíbrio
estável entre práticos, garantidos o descanso necessário e o
conhecimento adequado. Depois de muitos anos de negociação e
mesmo com o apoio recebido da IMPA, ainda não pudemos
mudar essa situação.
Falemos agora sobre responsabilidade civil. Com o novo decreto,
nós, os práticos, não temos limite quanto à responsabilidade civil.
De acordo com nossa lei, o prático é culpado até que se prove o
contrário. Temos uma grande quantidade de demandas milionárias.
Refiro-me, certamente, a simples varações ou colisões contra cais.
Com relação a calados excessivos, não há, na regulamentação
argentina, limite de calado máximo para determinado porto ou
canal. Existem apenas “recomendações da autoridade marítima” e
do concessionário do canal − simples recomendações, entretanto.
“O calado máximo recomendado é de 34 pés”, mas ninguém pode
impedir que os carregadores e charteadores fechem seus contratos
por mais de 36 pés, que é o que está acontecendo. No entanto, as
agências recomendam aos clientes carregar os navios menospre-
zando os práticos, já que também elas competem entre si.
Quando um navio está com excesso de carga deve esperar uma
preamar de magnitude para poder sair do Rio da Prata. Trata-se de
marés que, em geral, em presença de um vento sul, acontecem
periodicamente, provocando atrasos nos navios, que, no entanto,
raramente superam quatro ou cinco dias.
Não apenas a passagem em canais estreitos, com folga abaixo da
quilha reduzida, é arriscada, mas além disso o prático tem que ser
mágico em vez de prático para conhecer os dados relativos à
maré, posto que o sistema carece de indicadores (marégrafos).
A maioria dos marégrafos está fora de serviço. Então o prático
deve iniciar a navegação contando apenas com o dado da tabela
mais uma avaliação pessoal sobre a influência que possa ter o
vento na região. Bem, assim funciona a coisa, e lembro que não
temos limite quanto à responsabilidade civil.
A navegação em grande parte do Rio da Prata se faz com corrente
cruzada. “O comprimento máximo autorizado para cruzamento de
navios no trecho é de 150 metros com um calado de 34 pés." Com
a chegada de navios pós-panamax, o eventual cruzamento de
embarcações gera uma situação de risco máximo, já que a soma
das duas bocas aparentes se aproxima da largura máxima do
canal – situação, aliás, que se repete diariamente.
Fato também cotidiano diz respeito às pressões comerciais no
início da competição. Nenhum colega estranhava ter que
embarcar num navio que se achava fazendo bunker sem poder
evitar o embarque na faixa de barlavento, já que, na outra faixa,
encontrava-se amarrada a barcaça. A premissa não era a
segurança do prático, mas que ele não atrasasse o navio depois
de finalizada a operação do bunker. Também não nos podíamos
opor a navegar sem agulha giroscópica, ainda que o navio saísse
carregado com calado máximo.
Senhores, essa é a história de nossa convivência com a
competição em mais de 20 anos. Muito obrigado.
Bacharel em ciências náuticas, pós-graduado em análise de sistemas, mestre e doutor em ciências da hidrodinâmica do navio pelo COPPE-UFRJ.
Professor-associado do Magistério Superior da Marinha do Brasil desde 1990.
Edson Mesquita
65
“Professional pilots controls ships in a way that makes the
traditional channel width with division illogical” (manual de
engenharia do Exército americano 1110-2-1100, parte V).
Devido ao aumento do tamanho dos navios, tem-se verificado não
só no Brasil, mas em todo o mundo, o problema da limitação
geométrica dos canais de acesso. Esse problema é de solução
complexa e esbarra em condições críticas que não se limitam
apenas à dragagem (mesmo quando ela é admissível).
Os critérios técnicos de segurança que definem os padrões para
entrada e saída de navios em portos e terminais são preliminar-
mente definidos por:
- Análise das condições náuticas, em que a geometria do canal, a
bacia de evolução, os fundeadouros etc. são avaliados em função
da conformidade com normas de segurança.
- Análise da manobrabilidade do navio no ambiente previamente
definido na análise das condições náuticas.
A análise das condições náuticas de um canal de acesso é feita
através do emprego das normas brasileira ABNT – 13.246, de
fevereiro de 1995, da Associação Permanente Internacional de
Congressos da Navegação (Pianc) – PTC II-30, de julho de 1997,
e americana – manual de engenharia número 1110-2-1613, de
31 de maio de 2006, do Exército americano (Usace).
A padronização para referências bibliográficas, quando tratando
do relacionamento entre o navio e o porto, é dada pela
Organização Marítima Internacional (IMO), órgão da Organização
das Nações Unidas (ONU), através do Comitê de Facilitação,
na circular Fal. 6/14, de 2 de março de 2006, recomendando que
todos os países-membros levem em consideração uma lista de
publicações indexadas. Nessa circular, as normas que tratam
de canal de acesso, bacia de evolução, berços e atracadouros,
incluídos os flutuantes, estão, em sua maioria, associadas às
normas da Pianc.
As normas do Corpo de Engenheiros do Exército Americano aten-
dem aos padrões Pianc e recebem adaptações para configurações
locais. A norma ABNT está desatualizada e já se encontra em
processo de revisão, mas, de forma geral, atende aos principais
critérios de segurança prescritos na norma da Pianc.
No Brasil, em portos organizados, a responsabilidade pela
manutenção de canais de acesso, bacias de evolução, fundeadou-
ros é da autoridade portuária sob coordenação da autoridade
marítima, de acordo com a nova Lei dos Portos, Lei n. 12.815, de
05 de junho de 2013.
Infraestrutura portuária e aquaviária: dragagem e levantamento batimétrico – parâmetros e planejamento
66 67
De acordo com as Normas da Autoridade Marítima para Tráfego
e Permanência de Embarcações em Águas Jurisdicionais
Brasileiras (Norman-08/DPC), o capitão dos portos pode, para
estabelecer parâmetros aceitáveis de segurança da navegação
em águas restritas, recorrer às normas Pianc PTC II 30 e da
ABNT 13.246.
É importante ressaltar que a sistematização do projeto de canais
de acesso a áreas portuárias definido pelas normas tem como
escopo apresentar recomendações e informações que permitam
formular o projeto conceitual de um canal para um navio-tipo ou
conjunto de navios.
O propósito das normas técnicas é fornecer aos engenheiros em
exercício, gerentes de tráfego portuário, comandantes de navios e
práticos, diretrizes e dados que lhes permitam projetar e avaliar a
segurança de um canal para um dado navio ou misto de tipos
de navios ou, alternativamente, possibilitar a avaliação da
compatibilidade de um canal existente com uma proposta de
mudança no tipo de navio ou de operação. A intenção é fornecer
diretrizes práticas que sejam prontamente utilizáveis e de
fáceis entendimento e justificativa.
Através das recomendações é possível analisar a adequação de
um canal existente, em função das definições dadas para o
conceito de segurança da navegação para um canal, permitindo
assim, melhor avaliação de trechos em que possam existir
condições de risco maior.
Podem existir dúvidas, principalmente junto à autoridade marítima,
quanto aos riscos à segurança da navegação. Em casos de
dúvida quanto ao risco envolvido e de conflitos é recomendável
o emprego de simuladores de manobra.
Cabe ainda lembrar que a simples adequação às normas de
projeto não contempla diversos outros fatores associados à
segurança da navegação em um canal de acesso, tais como
características do casco, potência da máquina, variação de
empuxo do propulsor, governabilidade e ação do leme, respostas
do movimento à excitação de forças de governo e ambientais,
ação do prático etc.
Na própria publicação Pianc, pode-se constatar:
“Os clientes podem querer que a segurança e o risco sejam demons-
trados de maneira tangível e mensurável de modo que fiquem
convencidos de que a largura (e o alinhamento) do canal e áreas de
giro e atracação a ele associadas sejam satisfatórias. A ferra-
menta de projeto que auxiliará a satisfazer essas exigências de
Projeto Detalhado é o modelo de simulação de manobra de navios...”
A mesma metodologia de segurança também é adotada pelo
Usace, que, aliás, dispõe de um simulador de manobras próprio,
para fins de otimizar custos e recursos federais empregados em
obras de dragagens.
Existem casos em que o estudo em simuladores e em modelos
reduzidos não é suficiente, e dúvidas com relação ao comporta-
mento do navio ficam pendentes. A solução só é conquistada com
a avaliação da manobrabilidade do navio real, em águas rasas,
fazendo-se testes-padrão de controlabilidade, como já feito no
Brasil, em conjunto com práticos, com o navio Login Tambaqui,
quando de sua entrada no estreito do Bacabal. As informações
sobre a resposta do navio deixaram de ser suposições para ser
dados concretos, que, no caso, demonstraram que o navio estava
apto a manobrar em condições-limite inferiores às prescritas nas
normas técnicas.
68
Engenheiro mecânico graduado em automação e sistemas pela Escola Politécnica da USP (1998), onde cumpriu doutorado (2002), pós-doutorado (2003) e livre-docência (2010).
Professor-associado do Departamento de Engenharia Mecatrônica da Escola Politécnica da USP e coordenador do Tanque de Provas Numérico.
Membro do Comitê de Manobras do 270 ITTC (2012-2014).
Eduardo Tannuri
Introdução
O projeto de vias de acesso e áreas de manobras de navios baseia-
se em normas e recomendações que definem suas dimensões e
configuração geométrica básica. Dentre elas destacam-se as reco-
mendações da Permanent International Association of Navigation
Congresses (Pianc) − Approach Channels, A Guide for Design), a
ROM 3.1-99 (Proyecto de la Configuracion Maritima de los Puertos,
Canales de Acceso y Areas de Flotacion), do US Army Corps of
Engineers (Usace) e a norma brasileira ABNT-NBR 13246
(Planejamento portuário − Aspectos náuticos).
A enorme variabilidade das condições de cada porto, entretanto,
demandam muitas vezes estudos mais aprofundados e adaptados,
devendo-se para tanto utilizar ferramentas de análise e dimensio-
namento mais complexas. Esses estudos podem apontar a neces-
sidade de adicionar margem de segurança ao recomendado pela
norma ou a possibilidade de reduzir as margens recomendadas,
dependendo do caso.
A norma brasileira ABNT-NBR 13246 explicita em seu item 2.5 que
“podem ser adotados critérios mais restritos de dimensionamento,
desde que justificados pelo projetista” ou, em seu item 2.4, que “O
dimensionamento geométrico feito com base nos critérios mínimos
recomendados nesta Norma deve ser verificado para as condições
de uso requeridas na instalação”.
Nesse contexto, os simuladores de manobra são as ferramentas
mais adequadas para esse estudo das condições locais do porto,
pois permitem sua representação visual, a aplicação de complexos
modelos matemáticos para os fenômenos físicos e a inclusão do
elemento humano no controle da manobra. A Figura 1 apresenta o
simulador marítimo hidroviário desenvolvido pelo Tanque de Provas
Numérico (TPN-USP). Descrição completa dos modelos matemáti-
cos e componentes de um simulador de manobras pode ser encon-
trada em Tannuri (2013).
A simulação como ferramenta para o desenvolvimento de terminais e vias de acesso
69
As normas técnicas de projeto de canais de acesso são conserva-
tivas e limitadas com relação à definição de manobrabilidade do
navio. Por exemplo, um navio que tenha boa manobrabilidade em
águas profundas pode apresentar índices ruins em águas rasas, e
vice-versa. De modo geral, as normas são estabelecidas visando ao
projeto das obras, ou seja, fixar as dimensões (profundidades,
larguras, áreas etc.) em função do navio-tipo, e não o contrário.
Assim sendo, as normas devem ser devidamente adaptadas às
situações de canais existentes.
A controlabilidade do navio é muito dependente do fator humano,
e a chave do sucesso da entrada e saída de um navio em um dado
porto é função da habilidade dos operadores, no caso, o prático e
o comandante do navio, como citado pelo Dr. Brard, na clássica
publicação Princípios de arquitetura naval. Como comparação,
um prático pode garantir condições ótimas de controle em um
canal de acesso, assim como um bom piloto de Fórmula 1
pode obter do carro muito mais resultado do que o planejado
por engenheiros.
Assim, a Figura 2 ilustra a forma de trabalho para a correta
definição de terminais e vias de acesso portuários. Os simuladores
de manobra, em conjunto com a experiência prévia de práticos, são
usados em dois momentos do projeto. Inicialmente, devem ser
realizados estudos preliminares que definirão os parâmetros de
entrada para a aplicação das normas e recomendações, tais como
movimento em ondas e grau de manobrabilidade dos navios-tipo.
Em seguida à aplicação das normas, define-se a configuração do
terminal ou via de acesso, que compreende a profundidade e parâ-
metros geométricos, como largura, raios de concordância, distân-
cias de segurança e comprimentos. Utiliza-se, então, novamente o
simulador de manobras para uma validação do arranjo proposto,
em que é possível ao prático identificar riscos à segurança da
navegação em função das particularidades das condições ambien-
tais e operacionais do local. Com isso pode-se realizar um refina-
mento do projeto.
Tipos do simulador de manobras
Para a execução dos estudos mencionados, dispõe-se de dois tipos
de simuladores de manobras. Os simuladores fast-time são contro-
lados pelo computador, através de algoritmos de posicionamento
automático semelhantes aos usados em pilotos automáticos ou
sistemas de posicionamento dinâmico (DP). Com esses simula-
dores, as manobras são realizadas em tempo acelerado, pois não
há elemento humano no comando. Uma manobra de uma hora é
realizada em menos de um segundo, dependendo da capacidade de
processamento do computador utilizado. Com simuladores fast-
time podem ser realizados estudos prévios das condições ambien-
tais críticas (as que exigem maior capacidade dos rebocadores),
bem como uma pré-análise de viabilidade e segurança. Esses
simuladores não exigem sistema de visualização realista e
requerem recursos computacionais mais modestos. Os modelos
matemáticos, entretanto, devem ser tão validados e abrangentes
como os usados nas simulações real-time.
As simulações real-time são executadas na escala de tempo real,
e um prático ou comandante executa efetivamente a manobra. Um
sistema de visualização tridimensional e realista é necessário para
que o ambiente portuário seja representado de forma adequada,
provendo a resposta visual necessária para o comando da mano-
bra. Instrumentos, cartas náuticas e radares devem estar dis-
poníveis também. Em função da realização em tempo real, só é
possível ser feito um número reduzido de manobras, limitado aos
FIGURA 1 − SIMULADOR MARíTIMO HIDROVIÁRIO DO TANQUE DE PROVAS NUMÉRICO (TPN-USP)
70
FIGURA 2 − ETAPAS PARA A DEFINIçÃO DO ARRANJO PORTUÁRIO E VIAS DE ACESSO 1 “A limited number of simulations using a less-than-perfect simulator, a few select (design) ship types, a few select environmental conditions over extreme ranges charac-teristic of the local area, and a few pilots with representative local expertise and shiphandling proficiency are sufficient to obtain a useful appraisal of waterway design.”
casos críticos definidos na fase de simulações em fast-time. Como
o elemento humano está presente nesse estudo, questões como
tempo de reação são incluídas nos resultados.
A Figura 3 ilustra manobra realizada em fast-time e em real-time.
Logicamente, no caso do controle por computador, as trajetórias
são em geral mais próximas da ideal, dado que o tempo de
resposta aos desvios é menor.
Aplicações do simulador de manobras
Os simuladores de manobras são utilizados para a previsão da
segurança da navegação em áreas abrigadas (portos e canais) e
para o treinamento. O foco principal deste artigo é relativo à pri-
meira dessas aplicações. O parágrafo a seguir, retirado de Webster
(1992), resume os conceitos que serão aprofundados.
“Um número limitado de simulações utilizando um simulador não
perfeito, alguns navios-tipo, condições ambientais extremas carac-
terísticas do local, e alguns práticos com perícia e proficiência em
manobras no local são suficientes para se obter uma útil avaliação
do projeto portuário.”1
Alguns pontos devem ser ressaltados dessa afirmação e ilustram
de maneira concisa as vantagens e a forma adequada para o uso
dos simuladores. Os simuladores nunca são perfeitos, pois os
modelos matemáticos são simplificações da realidade. Logo,
devem ser usados sempre em conjunto com a experiência de práti-
cos e operadores com conhecimento e experiência das condições
locais. Como mencionado, a utilização de normas e recomendações
também deve acompanhar os estudos portuários.
Profundidade
A definição da profundidade recomendada de um porto ou do
calado máximo dos navios é exemplo da aplicação da metodologia
proposta na Figura 2. O aprofundamento de um canal não reflete
diretamente o aumento do calado permitido para navegação. Deve-
se realizar estudo com auxílio de ferramentas numéricas e simula-
dores, uma vez que se altera a manobrabilidade do navio com esse
novo calado, bem como os outros fenômenos físicos que definem o
calado máximo, tais como o squatting (afundamento do navio
durante a navegação), movimento em ondas e correnteza no canal.
A Figura 4 apresenta a metodologia aplicada ao presente caso, de
estudo de profundidade mínima ou calado máximo. Inicialmente,
procede-se estudo hidrodinâmico do campo de ondas na locação,
complementado por medidas de campo e de preferência que envol-
vam longo tempo de amostragem (representatividade de aproxima-
damente dez anos). Em seguida, para os navios-tipo calculam-se os
movimentos máximos da quilha quando sob ação dessas ondas,
utilizando-se programas de comportamento em ondas que podem
ser considerados simuladores do tipo fast-time, pois não necessi-
tam do elemento humano no controle. Estima-se também o afunda-
mento do navio em avanço (squatting), aplicando-se formulações
matemáticas previamente validadas. A norma NBR-13246 é então
aplicada, prevendo-se as margens de segurança necessárias em
função do tipo de solo e assoreamento.
Ao final, é necessária a realização de simulação do porto na nova
configuração, dado que o navio com maior calado possuirá diferen-
tes características de manobrabilidade.
FIGURA 3 − SIMULAçÃO DE MANOBRA: (ESQ.) EM FAST-TIME (DIR.) EM rEAL-TIME
FIGURA 4 − METODOLOGIA DE PROJETO ADEQUADA PARA ESTUDO DE DRAGAGEM/CALADO
71
Geometria do arranjo portuário e canais de acesso
O simulador permite a execução de diversas manobras em
condições extremas, com diversos navios-tipo e em condições de
avaria e/ou falhas de comando. Com isso, obtém-se a envoltória da
trajetória do navio em condições ambientais e operacionais que na
realidade acontecem poucas vezes durante o ano e é possível
dimensionamento mais adequado de canais, bacias de evolução e
áreas de escape.
As normas e recomendações definem algumas propriedades geo-
métricas básicas da área navegável, tais como largura de canais,
diâmetro das bacias de evolução e raios de concordância entre
canais de acesso. Alguns parâmetros, entretanto, não são discuti-
dos e devem ser estudados por meio de simulação. Um exemplo é
apresentado na Figura 5, referente ao canal de acesso ao Porto do
Suape (PE). Embora a largura e profundidade do canal tenham sido
devidamente projetadas por normas e recomendações, a pratica-
gem alertou para o problema da geometria ao final do canal. Em
função de condições ambientais, muitas vezes é necessária
navegação com velocidade de cinco a sete nós para garantir a
manobrabilidade e o rumo do navio dentro do canal. Assim, ao se
aproximar da área abrigada, é necessário dar máquina a ré com
meia força ou toda força, e o navio, por efeito pá, muitas vezes
guina fortemente para boreste. Há portanto o risco de encalhe no
limite norte do canal. Através de exaustivo estudo por simulações
fast-time e real-time da manobra desde o canal até a região
abrigada, foi possível definir uma expansão da área dragada (com-
primento e largura adicional) no trecho final do canal, de forma a
acomodar as trajetórias do navio quando em redução de velocidade.
Obras civis
O simulador deve também ser usado para a verificação do impacto
de obras civis, tais como a construção de novos berços e quebra-
mares. Muitas vezes, a simulação de manobras deve ser associada
a um estudo hidráulico para prever a alteração do campo de ondas
e correnteza devido a essas obras. A Figura 6 apresenta estudo de
caso correlacionado a esse tópico, no Porto de Salvador (BA).
Com a futura construção de um novo terminal de contêineres,
realizou-se o projeto da expansão norte do quebra-mar, para abri-
gar os navios atracados nesse terminal. A proposta original de
expansão (esquerda) foi estudada em termos de difração de ondas
e verificou-se ser adequada por garantir operacionalidade integral
aos navios ali atracados. O estudo mostrou-se incompleto,
entretanto, pois não avaliou o impacto dessa expansão na manobra
dos navios. Com a expansão, os navios de maior porte devem
72
FIGURA 5 − SIMULAçÃO DE MANOBRA PARA DEFINIR LARGURA ADEQUADA DE CANAL E ÁREA DE ESCAPE
73
realizar o giro na região desabrigada, onde ocorre, durante o
inverno, a incidência de ondas que impedem a ação adequada dos
rebocadores. O simulador de manobras mostrou que apenas com
meios próprios não é possível realizar o giro do navio para atraca-
ção de boreste. Propôs-se então alteração da expansão do quebra-
mar, tal como mostrado na figura à direita. Essa alteração foi veri-
ficada por meio de estudo de abrigo e difração de ondas, e também
garantia a atenuação necessária para a região do novo terminal.
Além disso, com a nova expansão, é possível abrigar também a
bacia de evolução, e o giro do navio passa a ser executado com
auxílio de rebocadores. Essa solução permitirá a entrada de navios
conteineiros de porte de até 400m no Porto de Salvador (BA).
Operações especiais
Operações não convencionais, tais como atracação a contrabordo
e manobras de cascos de futuras plataformas FPSO, também
devem ser analisadas previamente por simulação. A Figura 7 apre-
senta dois estudos por simulação de operações especiais desses
tipos. Os estudos permitem definir os riscos associados a tais
operações, definição das janelas ambientais mais adequadas e
testes da sinalização náutica necessária.
FIGURA 6 − PORTO DE SALVADOR: (ESQ.) PROPOSTA ORIGINAL DE EXPANSÃO DO QUEBRA-MAR (DIR.) REVISÃO DA EXPANSÃO EM FUNçÃO DO ESTUDO DE MANOBRABILIDADE
FIGURA 7 − OPERAçõES ESPECIAIS: (ESQ.) ENTRADA DE VLCC (CASCO NU) EM ESTALEIRO NA BAíA DE GUANABARA (RJ) (DIR.) IMPACTO DE NAVIOS A CONTRABORDO NO PORTO DE ITAQUI (MA)
74
Outras aplicações
Além disso, quando canais e curvas de acesso estiverem com
dimensões muito próximas ou inferiores às recomendadas pelas
normas, é fundamental a execução de simulações que verifiquem
os riscos associados às condições operacionais extremas e, pos-
sivelmente, a definição de janelas ambientais para a operação.
A análise dos resultados das simulações pode também ser usada
para a definição do projeto de sinalização (localização e tipo de
boias) e planos de contingência. Número, disposição e bollard-pull
de rebocadores para garantir o posicionamento seguro dos navios
podem também ser avaliados com o uso dos simuladores.
Conclusões e considerações finais
Este artigo descreveu as diversas aplicações de um simulador de
manobra como ferramenta para projeto portuário em conjunto com
as normas e recomendações. O simulador de manobras é ferra-
menta disponível para a avaliação da segurança da navegação, que
não prescinde da opinião de práticos e comandantes quando à
avaliação de riscos e condições inseguras. O simulador pode e
deve ser usado para a quantificação desses riscos e/ou definição
de condições operacionais-limite, sempre em conjunto com o
julgamento humano.
Considera-se, portanto, que o projeto portuário adequado é aquele
feito contemplando as normas e recomendações, embasado por
estudos técnicos e por simulações, e com o apoio e participação de
práticos experientes e conhecedores das condições locais e dos
riscos inerentes ao local.
Referências
WEBSTER, W.C., 1992. Shiphandling Simulation: Application to
Waterway Design. Washington DC: National Academies Press.
TANNURI, E.A., 2013. “Uso de simuladores para avaliação de
manobras”, rumos Práticos, ano XIV, n. 38.
Capitão de longo curso.Prático do Rio St. Lawrence desde 1996, importante liderança na Corporação de Práticos de St. Lawrence,
de que foi presidente (2004-2007).Presidente da Associação Canadense de Práticos – CMPA desde 2009.
Vice-presidente da Associação Internacional de Práticos – IMPA desde 2008.Na Organização Marítima Internacional – IMO concentra-se em tecnologia e desenvolvimento de e-navigation.
Simon Pelletier
Obrigado, senhor presidente.
Estou muito contente por estar mais uma vez com meus amigos e
colegas do CONAPRA, e por ter a oportunidade de compartilhar
algumas ideias sobre praticagem e tecnologia com um grupo tão
ilustre, representando quase todos os setores da comunidade de
transporte marítimo no Brasil e em toda a América Latina.
Parabéns ao CONAPRA por convocar esta conferência sobre prati-
cagem e envolver tantas partes interessadas do setor. A pratica-
gem é da maior importância para a segurança, mas, em última
análise, a segurança é responsabilidade compartilhada e só pode
ser alcançada com todas as partes interessadas do setor de
navegação – e com os práticos – trabalhando juntos. Estou certo
de que este encontro só vai aprofundar as linhas de comunicação
e o senso de fraternidade necessário para que todos nós possamos
manter o transporte marítimo seguro.
Pediram-me que falasse em termos gerais sobre tecnologia e o futuro
da praticagem. Trata-se de tópico fascinante e muito importante.
Durante os últimos anos, passei muito tempo, tanto no Canadá
como internacionalmente, discutindo esse assunto. Ele está na
base de quase todas as análises de práticas de navegação atual-
mente em curso, sejam dirigidas pela Guarda Costeira Canadense,
pela Organização Marítima Internacional (IMO), pela Associação
Internacional de Autoridades de Faróis ou diversos órgãos e
agências governamentais de todo o mundo.
Como presidente da Associação Canadense de Práticos Marítimos
e também vice-presidente da Associação Internacional de Práticos
Marítimos, responsável por garantir a plena participação da
associação nas deliberações da IMO sobre a e-navigation, tive
muitas oportunidades de discutir tecnologia no contexto da
navegação e da praticagem. Fico feliz de compartilhar com vocês,
hoje, algumas de minhas ideias sobre o tema.
É evidente que a tecnologia desempenha papel central em nossa
vida. Ela permeia praticamente tudo que fazemos. A velocidade
com que os avanços tecnológicos surgem nunca foi tão grande.
E, muito provavelmente, essa aceleração na inovação tecnológica
vai continuar.
Usamos a tecnologia para ‘ampliar nossas habilidades’. Usamos a
tecnologia para facilitar e aumentar a produção, para nos comuni-
car com mais facilidade, para viajar mais depressa ou transportar
mais mercadorias por distâncias maiores, com mais segurança
e eficiência.
Mas, como acabo de dizer, usamos a tecnologia ‘para ampliar nos-
sas habilidades’, e não para as substituir. A meu ver, isso significa
que o elemento humano – as pessoas – continua a ser o compo-
nente mais importante de qualquer sistema tecnológico.
Começo, portanto, respondendo primeiro à grande pergunta: serão
os práticos substituídos pela tecnologia?
Numa palavra, não.
Se quiserem uma resposta mais longa, vou citar um homem muito
sábio, o juiz Yves Bernier, que escreveu um relatório para o governo
do Canadá há 45 anos. Esse relatório continua a ser a base do
A evolução tecnológica da navegação marítima: e-navigation e VTMIS.
O prático será substituído pela tecnologia?
75
sistema canadense de praticagem até hoje. Ele disse: “Práticos
com mais conhecimento do que eles têm hoje serão necessários
para manobrar com agilidade navios maiores e mais rápidos, pois
todos os instrumentos e auxílios à navegação serão tão eficientes
quanto aqueles que os utilizarem.”
Considero essas palavras tão verdadeiras hoje quanto o eram
na época.
A tecnologia sempre teve papel importante na navegação segura
do tráfego marítimo. Hoje, esse papel é mais sofisticado e mais
importante do que nunca.
A tecnologia de navegação – cartas eletrônicas, portable pilot
units (PPUs), radares, sistemas de gerenciamento de tráfego
de embarcações, boias meteorológicas avançadas –, porém,
só pode desempenhar seu papel adequadamente quando usada
para complementar, validar e incrementar a expertise e o
julgamento de práticos devidamente qualificados na condução
de embarcações.
Nada pode substituir as habilidades, o conhecimento local espe-
cializado e o julgamento dos práticos para garantir a passagem
segura de embarcações em águas difíceis e condições desafiadoras.
Por causa disso, os práticos sempre apoiaram o desenvolvimento
e a inclusão de novas tecnologias de navegação que possam
promover trânsitos seguros e eficientes.
Os práticos acolhem toda inovação tecnológica prática e útil
disponível. É por esse motivo que estamos ativamente engajados
na implantação da e-navigation, particularmente em nível
internacional, através da IMO.
A e-navigation tornou-se uma espécie de fenômeno mundial. Tem
significado bastante preciso e não devemos perder essa definição
de vista.
Deixem-me lembrá-los do que se trata: coleta, integração, inter-
câmbio, apresentação e análise de informações marítimas, a bordo
e em terra, por meios eletrônicos, tudo devidamente harmonizado.
O que a IMO está fazendo, o que na verdade está sendo feito em
muitas jurisdições do mundo, é desenvolver e implantar estraté-
gias que vão estabelecer sistemas eletrônicos de navegação,
abrangentes e totalmente integrados, baseados na mais recente
tecnologia disponível e flexíveis o bastante para mudar quando
necessário.
A iniciativa internacional da e-navigation está indo bem. A IMO
desenvolveu e aprovou estratégia e plano de implantação que
devem ser adotados no próximo ano.
Os principais componentes da estratégia são:
1. determinação das necessidades do usuário – para entender
melhor as demandas dos usuários baseados em terra e a bordo;
2. análise da arquitetura do sistema existente – para avaliar o
escopo das tecnologias atualmente disponíveis;
3. análise de lacunas entre as tecnologias existentes e as
necessárias – para identificar que adições devem ser feitas para
atender às demandas dos usuários; e, finalmente,
4. análise de custos e riscos – para avaliar melhor o impacto e o
benefício das mudanças propostas.
A IMO é composta de 169 estados-membros, 61 organizações
intergovernamentais e 80 organizações não governamentais inter-
nacionais, todas com interesses, pontos de vista e prioridades
diferentes. Por causa disso, a IMO é norteada pelo consenso e
assegura que haja tempo e espaço para considerar todas as
opiniões e levar em conta todos os interesses. Isso significa forte
ênfase na consulta e na discussão, o que ajuda a explicar o
processo que vou descrever agora.
Três subcomitês da IMO formaram grupos de trabalho relacionados
ao desenvolvimento dos quatro componentes estratégicos que
acabei de mencionar. Esses subcomitês são os seguintes:
• Segurança da Navegação (NAV);
• Radiocomunicações e Busca e Salvamento (Comsar);
• Normas de Treinamento e Serviço de Quarto (STW).
Para coordenar o trabalho desses três subcomitês, foi criado outro
coletivo, conhecido como Grupo de Correspondência, coordenado
pela Noruega.
O Grupo de Correspondência – do qual a IMPA é membro – está
atualmente examinando o trabalho efetuado pelos subcomitês e
realizando outras análises para fornecer atualização consolidada
sobre os avanços, com recomendações para decisões finais.
Supondo-se que tudo corra bem, o Comitê de Segurança Marítima
(MSC) da IMO vai aprovar o Plano de Implantação de Estratégias
em 2014.
Práticos marítimos de todo o mundo continuam a apoiar firme-
mente a e-navigation e a desempenhar papel construtivo no
desenvolvimento de estratégias de implantação.
Por exemplo, no Canadá, a Guarda Costeira Canadense promoveu
uma mesa-redonda nacional para oferecer aconselhamento sobre
sua implantação. Os participantes incluem quase todas as partes
interessadas, entre as quais a Associação Canadense de Práticos
Marítimos.
O processo está dando certo. Nos últimos dois anos foi desen-
volvida uma visão canadense da e-navigation, bem como objetivos
e princípios para sua implantação. As partes interessadas traba-
lharam juntas a fim de definir as necessidades dos usuários e um
conceito de operações. O próximo passo é determinar como dados
e serviços devem ser fornecidos aos marítimos. Em seguida, o
processo de implantação.
Ao fazer isso, a meta dos práticos canadenses se equipara
àquela articulada na declaração da posição formal da IMPA sobre
e-navigation, que contém três princípios básicos:
1. Predominância do elemento humano
A e-navigation deve refletir o fato de que os marinheiros são o fator
mais crítico na navegação segura. Isso quer dizer que o especia-
lista no passadiço deve estar no centro das tomadas de decisão.
2. Atendimento às necessidades da equipe do passadiço e
do prático
A e-navigation deve – em primeiro lugar e acima de tudo – ter
como prioridade responder às necessidades da equipe do
passadiço e do prático, e facilitar as tarefas que eles executam.
3. Olhar pela vigia continua a ser essencial
A e-navigation deve reconhecer o valor das informações obtidas
por outros meios. Para garantir uma navegação segura, os
dados da e-navigation devem ser complementados e validados
por todos os outros métodos tradicionais disponíveis para
os práticos.
Nas zonas de praticagem compulsória, a presença no passadiço de
práticos habilitados e livres para exercer seu juízo profissional
de especialistas continua a ser a maior garantia de navegação
segura e a melhor proteção possível para o meio ambiente e o
interesse público.
Com a e-navigation, a ideia não é descartar nossa abordagem
de navegação segura, mas aprimorá-la. O objetivo certamente
não é ter embarcações navegando os sete mares ‘berço a berço’
com base apenas em equipamentos eletrônicos. Ao contrário, é
76 77
Capitão de longo curso, atua desde 2002 na Praticagem de Marselha, França.Responsável desde 2006 pela Gestão da Qualidade na Federação Francesa de Práticos,
da qual é secretário-geral desde 2012.Vice-presidente tesoureiro da Associação Europeia de Práticos.
Jean-Philippe Casanovaaperfeiçoar a navegação por meio de um melhor uso das
ferramentas eletrônicas.
A iniciativa da e-navigation é, sem dúvida, a melhor alternativa. É
o assunto no qual todo o mundo marítimo está focado. Mas não
é a única questão de tecnologia que merece nossa atenção.
Vale a pena dedicar um momento para pensar sobre alguns desses
outros avanços tecnológicos e no que eles significam para a praticagem.
Em geral, a tecnologia de navegação aper-
feiçoada deve reduzir a necessidade de
sistemas de tráfego de embarcações basea-
dos em terra. Estamos vendo isso no Canadá.
O comissário da Guarda Costeira Canadense
anunciou recentemente uma consolidação dos
centros de Serviço de Tráfego e Comunicações
Marítimos (MCTS) e Serviço de Tráfego de
Embarcações (VTS).
Isso vai resultar na eliminação de quase
metade desses centros em todo o Canadá.
Serão reduzidos de 22 para 12, sem nenhum
impacto sobre a prestação dos serviços ou sobre a segurança.
Essa redução no Canadá contrasta com sugestões que ouvimos em
outros lugares que tornariam o gerenciamento do tráfego de
embarcações mais dependente desses centros. Fato é que as
melhorias na tecnologia de navegação, como, por exemplo, os
PPUs, podem fortalecer a capacidade a bordo de garantir a
passagem segura de navios e diminuir a dependência de instala-
ções baseadas em terra.
Outro exemplo de tecnologia usada para fins relacionados
à praticagem é o papel dos simuladores como ferramenta
de treinamento, como estipulado na Resolução A.960 da IMO,
que trata do treinamento, da certificação e dos procedimentos
operacionais para práticos marítimos. Como a maioria de
vocês sabe, essas simulações de navegação geradas por
computador, mas altamente realistas, são de enorme valor no
treinamento necessário na qualificação dos indivíduos para
a obtenção das habilitações de prático. Também são inesti-
máveis para o treinamento avançado em novas tecnologias
e procedimentos de práticos habilitados.
Muitos grupos de práticos de todo o mundo agora possuem e
operam centros de simulação. Esse é o caso no Canadá, mas
também tenho conhecimento de grupos de práticos nos Estados
Unidos, na Alemanha e na França, entre outros.
O fato de os práticos estarem na vanguarda da tecnologia de
simulação é um ótimo exemplo de como seu conhecimento
de especialistas das águas locais tem papel significativo na
obtenção do máximo valor de um avanço
tecnológico, no melhor interesse tanto do
público quanto do setor.
Acredito que, até agora, só tocamos a super-
fície do que essa tecnologia representa para
a nossa profissão e acho que os práticos do
mundo inteiro precisam explorar mais como
podem extrair um valor ainda maior dessa
tecnologia não só em termos de treinamento,
mas também para facilitar o desenvolvi-
mento da infraestrutura marítima futura.
Minhas ideias finais sobre a praticagem e o futuro da tecnologia de
navegação são sobre processo. Vocês me ouviram discutir o papel
que os práticos estão desempenhando na IMO e no Canadá com
relação às iniciativas de e-navigation.
Em todos esses casos, os práticos não são observadores passivos
de novos desenvolvimentos e novas tecnologias. Estamos envolvi-
dos ativamente na definição do papel que essas tecnologias terão
na navegação marítima e assegurando que nossa profissão seja
proficiente no uso das novas tecnologias, com todo o seu potencial.
Portanto, minhas últimas palavras a vocês são de incentivo.
Envolvam-se nessas iniciativas; assegurem-se de que seu grupo de
práticos esteja atualizado quanto às novas tecnologias e de que
sua voz seja ouvida onde são tomadas as decisões sobre como
a tecnologia será usada. Se fizerem isso, será bom para os
práticos, mas, sobretudo, teremos a garantia de um transporte
marítimo seguro.
Obrigado!
78 79
Obrigado pelas palavras gentis. Obrigado, Simon, por me conceder
mais tempo. Como minha apresentação será longa e muito chata,
terei 15 minutos a mais. Muito obrigado por tudo. Bem, senhoras e
senhores, é uma grande honra e um grande prazer dirigir-me a
vocês com esta apresentação, em nome da Associação Francesa
de Práticos.
Antes de tudo, quero fazer um agradecimento muito sincero ao
CONAPRA pelo convite e pela perfeita organização deste evento, e
também a Otavio, Marcelo, Ricardo, e a Flávia, por toda a paciência
que ela teve comigo.
Peço que aceitem minhas desculpas pelo meu considerável
sotaque franco-corso. Nasci na Córsega, onde infelizmente o
idioma de Shakespeare não é o primeiro dialeto; lamento.
Agora tenho que apertar o botão… É claro que, neste distinto lado
da família, todos sabem o que é um prático marítimo. Por via das
dúvidas, entretanto, apenas um slide para mostrar sobre quem
vou falar.
O prático é um marítimo altamente qualificado, que embarca nos
navios por uma escada de prático ou talvez por um helicóptero. Ele
toma a frente da equipe do passadiço e garante a segurança da
manobra. Para quê? Para a proteção ambiental, para a segurança
marítima e para a fluidez do tráfego econômico do porto. Ele é o
sujeito que vocês veem no meio do passadiço, indicado pela seta
vermelha. Apenas algumas palavras sobre os práticos marítimos
na França. No momento, somos 338 práticos autônomos, em 31
distritos independentes, na França e territórios ultramarinos.
Temos também 400 empregados e mais ou menos 100 lanchas de
prático e três helicópteros. Nossa autoridade de praticagem
competente é o Ministério dos Transportes. Existem normas rígidas
nos níveis nacional e regionais para a organização como um todo,
mas vamos mostrar isso mais tarde. Há um controle estrito da APC
todos os anos – APC é a Autoridade de Praticagem Competente.
E, além disso, desenvolvemos um SGQ, um Sistema de Gestão
da Qualidade.
Como o organizador me pediu que falasse sobre a qualidade na
praticagem, essa será a primeira parte de minha apresentação.
Esse assunto é considerado um bom sonífero, então vou fazer
o possível para torná-lo mais aceitável para todos. Vou fazer o
possível, mas não sei se terei sucesso. Durante a palestra, vou
tentar resumir nosso SGQ. Foi o único sistema que a Associação
Francesa de Práticos considerou satisfazer os requisitos do STCW
95. Quero afirmar que não tenho nada para vender esta tarde. Na
verdade, minha apresentação hoje pretende mostrar a nossa
experiência, e não convencê-los a endossar um ou outro sistema.
Na segunda parte vamos examinar rapidamente a organização e
regulação dos práticos franceses.
Por que os práticos franceses escolheram implementar um SGQ,
embora a praticagem continue obrigatória, sem concorrência
e com regulação muito forte? Essa é a pergunta a que vou
tentar responder.
Desde 1995, a Federação francesa buscava uma ferramenta que
atualizasse regularmente o conhecimento dos práticos; o sistema
precisava ser aceito pelas administrações de praticagem e ser
robusto o suficiente para garantir que os práticos encontrassem
uma ferramenta nova e confiável para melhorar continuamente sua
proficiência. Nesse sentido, deveria estar de acordo com a IMO
A.485, antes da chegada, mais tarde, da A.960.
Qualidade e eficiência no serviço de praticagem
80 81
No início, a opção de iniciar essa jornada no SGQ deveu-se
à demanda de nossas autoridades no sentido de estar em
conformidade com o STCW 95, porque elas não queriam acres-
centar uma nova norma na legislação francesa para a praticagem
marítima. Nessa época dos anos 1990, era também uma forma
de comunicar a total confiabilidade da praticagem francesa e de
convencer a administração disso, num clima hostil devido a
acidentes recentes, que mencionamos ontem.
Vamos começar com a escolha das normas do SGQ. Para atender
a nossos requisitos, a primeira opção era um sistema produzido
internamente, projetado por práticos, para práticos. Não tinha
reconhecimento internacional algum e, ainda hoje, não tem
credibilidade.
A segunda opção era implementar o código ISM, o que poderia ter
atendido aos requisitos da Federação francesa. Era, entretanto, um
código focado unicamente em metas de segurança que os práticos
franceses consideraram muito limitadas. A escolha dessa solução
teria definido a posição da praticagem como um serviço do Estado,
longe da vontade dos clientes e longe das necessidades do mercado.
A terceira era a implementação de uma norma de SGQ externa.
Esse sistema atende a todos os requisitos, cobre o campo da rela-
ção cliente/prestador de serviços e permite a atualização dos
conhecimentos do prático e a proficiência contínua.
De fato, na França, o contrato de praticagem é chamado de sui
generis, pois é muito específico e estabelece obrigações para
ambas as partes. Trata-se, portanto, de um contrato comercial,
mesmo que os práticos não sejam vendedores; esse aspecto
comercial, contudo, é componente de uma abordagem adequada
do processo de qualidade que leva à satisfação do cliente.
A solução eleita pelos franceses foi a norma de certificação ISO.
Como diversos fornecedores estavam aptos a oferecer várias
vantagens em diversas empresas, a Federação francesa comparou
esses fornecedores e selecionou a ISO 9002, por ser mundialmente
conhecida e utilizada por indústrias e órgãos de navegação. Além
disso, a abordagem do sistema ISO era uma oportunidade para a
praticagem aperfeiçoar aspectos comerciais ao lado da melhoria
da prestação de um serviço seguro.
Apenas um slide sobre o histórico do processo. Esse é o calendário
da entrada em vigor do SGQ francês na organização de práticos.
Começamos essa jornada em 1995. Vemos que a primeira
certificação foi em 1997. Na época, acho que fomos os primeiros
no mundo a obter essa certificação. Não é como no esporte, não é
como no futebol.
O que é um SGQ aplicado à organização de práticos? O sistema de
gestão da qualidade é relevante para o que está no slide: geren-
ciamento das ordens dos agentes marítimos e organização e
prestação de serviços de praticagem, incluindo o monitoramento
da aproximação dos navios do local de embarque do prático e as
operações de transbordo do prático (embarque e desembarque).
Como fizemos? Devido ao fato de a organização nacional de
praticagem não ser uma empresa, o esquema de certificação foi
baseado em duas entidades: a Federação francesa, como a parte
central do órgão, e ao lado as estações de práticos aplicando
a norma.
A implantação do processo levou dois anos, devido a dificuldades
encontradas durante o estabelecimento da arquitetura, relativas
principalmente à percepção negativa do código ISM por parte dos
práticos que o haviam experimentado por si mesmos, e também
porque os práticos, como trabalhadores independentes, mostra-
vam-se às vezes relutantes em adotar um comportamento de
grupo, bem como em função de complicações burocráticas para a
redução dos documentos da qualidade.
Princípios e operação do SGQ
O eixo central do SGQ ISO nos ajuda a manter o foco na abordagem
de prestador de serviços ao cliente, preparando-nos para
desenvolver um esquema de monitoramento da satisfação do
cliente. Não cabe aqui falarmos em detalhe da arquitetura. Vou
apenas esboçar o arranjo geral do design do sistema, a seguir.
A base da política geral de qualidade é a antecipação dos requisi-
tos de qualidade e a confiabilidade das ações de praticagem. O
manual de qualidade, organizado pela Associação Francesa de
Práticos, é comum a todas as estações de práticos, e cada grupo
de práticos adiciona ao primeiro seu próprio manual de qualidade,
no qual se encontram explicadas as particularidades da estação.
Evidentemente, o objetivo do sistema inclui um mínimo de seis
procedimentos obrigatórios e uma descrição exata do processo.
Existem seis processos, que vou mostrar em alguns slides. Como
funciona? É muito simples. O processo é naturalmente o centro
do sistema. Descreve como as entidades são reunidas no SGQ
e conduz as diferentes atividades envolvidas na organização
de praticagem.
Na condição inicial, temos os requisitos do cliente. A embarcação
se aproxima e, para atracar, precisa de um prático. Na condição
final, o navio está atracado, atracado pronto para se deslocar ou
está do lado de fora. Então, do que precisamos? Processo número
3, precisamos solicitar um prático. Processo número 2, precisamos
ir a bordo. Processo número 1, precisamos manobrar a embarca-
ção. Essas são as atividades centrais do nosso sistema. O SGQ
estabelece a diferença entre os processos de recursos (4) e os
processos que levam à satisfação do cliente (5).
A Federação não presta nenhum serviço de praticagem. Trata-se de
associação que protege os interesses globais da profissão; uma
associação responsável pelo SGQ encarregada do sistema global e
que tem delegados locais em cada grupo de práticos.
O esquema de gestão está centrado na revisão da gestão. É
organizado uma vez por ano em cada estrutura de praticagem
francesa, a Federação incluída, a fim de analisar resultados,
promover a melhoria dos resultados e programar o planejamento
de qualidade.
A política é decidida pelo Congresso de Práticos Franceses durante
o qual o presidente se compromete por atos escritos. O sistema de
qualidade garante que em todas as estruturas e em cada atividade
haverá metas de melhoria relativas a pessoas e recursos.
As ferramentas de avaliação, tais como não conformidades,
proporções, auditorias, pesquisas ou observações da empresa de
certificação, são altamente consideradas. A auditoria interna é
também ferramenta de educação usada pelos auditores, bem
como define a política uma vez por ano.
Objetivos e metas são definidos anualmente numa revisão da
gestão da qualidade; essa reunião é realizada em cada grupo e
durante o congresso anual da Federação. A revisão monitora a
melhoria necessária para atender à norma concebida pelo órgão
externo que está certificando o grupo.
Por exemplo, um de nossos objetivos é a implementação da
resolução A.960.
Além da arquitetura global do SGQ e da previsão de gestão anual,
a Federação e cada grupo se comprometem oficialmente numa
Carta da Qualidade, expressando vontades e objetivos locais. Ela
materializa a direção do comportamento desejado pelo grupo.
Trata-se de compromisso forte.
Quais são os pontos-chave dessa política de carta? Antes de tudo,
a observação e conformidade com os documentos da quali-
dade; a prestação segura de serviços e a troca de informações
entre comandante e prático; o envolvimento na regulação do
tráfego do porto de acordo com os requisitos de segurança e a
cortesia, é claro; um dos mais importantes, a independência dos
práticos; a informação aos agentes de navegação; a comunicação
de acidentes, incidentes ou deficiências; e por que fizemos o
sistema de gestão da qualidade, é claro, a atualização contínua
do conhecimento.
Vamos dar uma olhada nas ferramentas. Depois que o SGQ foi
escolhido, o design e a revisão da gestão foram feitos, e a Carta da
Qualidade foi publicada, o SGQ pode iniciar sua vida, e precisa
de ferramentas para vincular todas as entidades.
Essas ferramentas são os registros que alimentam o ciclo de
monitoramento, tais como não conformidades ou a comunicação
de deficiências, as quais foram informadas às autoridades.
Incluem também a pesquisa de satisfação do cliente, que pode
ser realizada para corrigir um ou outro ponto fraco no grupo;
auditorias internas ou externas, realizadas para avaliar o nível
82 83
de competência; e, evidentemente, os objetivos que devem ser
indicados diariamente.
Essa é uma das ferramentas que acabei de mencionar. Vocês
podem ver nesse slide uma folha da pesquisa de satisfação
do cliente quanto à operação de praticagem em quatro anos
diferentes. A pesquisa é respondida pelo comandante durante sua
escala em nossos portos.
Isso indica a filosofia de realimentar o sistema com alguns
documentos de rastreamento que monitoram tendências sobre
objetivos como cortesia, segurança e confiabilidade dos serviços
de praticagem prestados aos clientes.
No âmbito da organização global, a fim de melhorar o serviço e o
sistema de relatórios, a Associação Francesa desenvolveu uma
ferramenta de relatórios chamada Risap. Trata-se de um banco de
dados que armazena todas as deficiências registradas em todo o
país. Todos os práticos podem acessar o banco de dados e adaptar
a prestação de serviços ao histórico de eventos do navio. Nesse
slide, vocês veem a versão desenvolvida para smartphones.
Em seguida, se você é um bom aluno, deve passar por testes. Os
testes do SGQ são as auditorias realizadas pela empresa de certi-
ficação do SGQ. Para nós, consistem na ISO através da LRQA e no
teste global, que é a renovação da pesquisa de certificado condu-
zida a cada três anos. Praticamente a cada seis meses o auditor vai
a três ou quatro distritos franceses a fim de conferir toda a
organização francesa durante o período de validade do certificado
(três anos). E uma observação num distrito tem de ser resolvida em
todos os distritos. Não se trata apenas de produzir toneladas
de papel nem de matar todo o tempo livre dos práticos.
Nesse slide falo também dos clientes, e vocês certamente ouviram
essa palavra muitas vezes desde o início de minha apresentação.
Estou sempre falando sobre clientes, clientes, clientes, e quando
falo a respeito de clientes, estou falando sobre os armadores,
embora não só eles − toda a comunidade portuária deve ser con-
siderada cliente, e assim podemos falar a cada cidadão na área.
Como o sistema é lucrativo para nós? É uma ferramenta de
comunicação muito interessante; permite melhores registros; é
demonstração universal de qualidade; processo de melhoria
contínua; certificação externa por um órgão independente; e
também é importante para o marketing.
Como conclusão sobre o SGQ, eu diria que, para nós, envolver a
associação no SGQ foi lucrativo para a Associação Francesa de
Práticos não só pela produção de papel, mas também na
abordagem proativa de clientes, como eu disse antes, para o
setor e para as comunidades portuárias, para a segurança da
navegação e para a proteção ambiental.
Agora, sem intervalos, enquanto esperamos um pouco o café,
vamos dar uma rápida olhada na Organização Francesa de Práticos.
A praticagem marítima é regida pelo artigo L5341-1 e seguintes do
Código de Transportes francês (Regulamento n0 2010-1307, de 28
de outubro de 2010) e pelo decreto de 19 de maio de 1969,
atualizado em 2009. O trabalho das estações de praticagem está
sob a supervisão do ministro dos Transportes. Anteriormente,
a regulação era baseada na lei de 28 de março de 1928. Com a
transposição para o código dos transportes não houve grandes
mudanças, apenas algumas atualizações.
Tenho orgulho de acreditar que os legisladores construíram um
bom sistema em 1928, pois ele passou por vários governos
diferentes sem grandes mudanças e ainda funciona bem. O que me
parece engraçado agora, com o projeto da EU de concorrência, é
que talvez estejamos reescrevendo a história, porque antes de
1928 havia concorrência na praticagem francesa.
A praticagem na França se baseia em três pilares. Primeiro, a esta-
ção de práticos. É o núcleo da organização dos serviços públicos de
praticagem. A estação de práticos cobre as atividades essenciais
da praticagem marítima na área pertinente. A coletividade dos
práticos é a verdadeira proprietária dos materiais necessários à
execução do serviço. Depois temos a Associação de Práticos. Na
verdade, a Associação é ferramenta jurídica criada para coordenar
e organizar os práticos e seus empregados na área pertinente. Por
que eles escolheram a Associação em vez de uma cooperativa ou
sociedade? Porque o importante é saber que a estação de práticos
não tem personalidade jurídica. E o prático na França é autônomo.
Atuando a bordo ele está fazendo seu trabalho em seu próprio
nome. E, como Paul Kirchner disse ontem sobre os americanos, eu
diria que os práticos franceses são cidadãos particulares, profis-
sionais com responsabilidades de serviço público.
Como se tornar prático na França? No nível nacional, é preciso
estar em conformidade com algumas qualificações. Há certos
requisitos de idade, é preciso obter o certificado de comandante
pleno, e há também alguns requisitos de habilidades de navega-
ção. É preciso passar seis anos no mar. Depois disso, o recruta-
mento é feito em nível local. Há uma banca examinadora, presidida
por um oficial da Marinha, com a autoridade marítima represen-
tada por um inspetor; um capitão da Marinha mercante; dois
práticos da área. Em seguida, se o candidato for bem-sucedido
no exame, é comissionado pelo Ministério dos Transportes.
Uma vez comissionado, o prático deve ser instruído e treinado. O
treinamento inicial dura entre um e quatro meses na academia,
antes que possa embarcar sozinho num navio, em geral de pequeno
porte, evidentemente, e são necessários de cinco a dez anos para
ser plenamente habilitado.
No meu porto, primeiro trabalhamos em dupla durante quatro
meses, e depois podemos embarcar em navios pequenos num local
específico, no qual não há navios transportando cargas perigosas,
por exemplo. Depois, vai demorar cerca de dez anos até podermos
manobrar todos os tipos de embarcações em qualquer condição.
Além disso, o treinamento é especificado e conferido em nosso
SGQ. Todo ano, os práticos marítimos têm de realizar diferentes
tipos de treinamento para atualizar seu conhecimento. Estamos
utilizando simulador, manobras em modelos tripulados, gerencia-
mento de recursos do passadiço, e temos muitos briefings entre os
práticos dentro do distrito para analisar todos os incidentes e
atualizar os conhecimentos da área.
Bem, tendo então o prático treinado, vou falar sobre o funciona-
mento dos serviços de praticagem na França; sobre o serviço, os
equipamentos, os preços, a praticagem obrigatória e sobre o que
chamamos de PEC.
Por equipamentos quero dizer lanchas de prático, carro, helicóptero,
prédio. Os equipamentos são propriedade dos práticos. O compar-
tilhamento é uma prerrogativa, mas não é tão simples, porque os
práticos não podem vender sua participação, que por sua vez não
pode ser hipotecada. Essa propriedade dos equipamentos funciona
sob um controle muito rígido das autoridades de praticagem
competentes. Um exemplo desse controle rígido: para um novo
investimento e/ou substituição, os práticos devem pedir
autorização ao diretor de Assuntos Marítimos.
84 85
Agora vamos falar sobre preços. No nível nacional, os preços
tomam por base o volume da embarcação. Comprimento total,
largura máxima e calado máximo de verão. Depois, as taxas de
praticagem são decididas anualmente em nível local pelo préfet
de région, que é um representante do governo francês, e são
publicadas num regulamento. Esse regulamento é emitido depois
de consulta aos grupos interessados no que chamamos de
Assemblée Commerciale.
O objetivo desse comitê de usuários é opinar sobre a organização
e interferir nos preços dos serviços de praticagem. Às vezes é
difícil proteger todos os interesses. No entanto, a eficiência
necessária é decidida localmente por grupos com o mesmo
interesse na promoção do porto em que trabalhamos. Eu diria
que, como nos EUA, para nossas carreiras pessoais, temos
um interesse financeiro no sucesso da operação de praticagem
em nosso porto, porque não somos empregados.
O comitê de usuários é, evidentemente, a instância em que as
indústrias podem pedir o aumento ou a redução dos preços de
praticagem, mas não apenas isso. Como vocês sabem e como
escutaram esta manhã, o prático tem um conhecimento sólido
sobre a manobra de navios nas zonas de praticagem. A singular
expertise do prático permite a utilização máxima das dimensões
do porto, em termos de espaço geográfico e tempo.
A questão da fluidez do tráfego é abordada com frequência pelos
interessados durante essa assembleia no caso, por exemplo, de
um novo projeto ou para otimizar os existentes. Realmente, e
tenho certeza de que vocês têm conhecimento disso, os práticos
podem reduzir o tempo de fundeio indevido ou outro período de
tempo desperdiçado ao permitir escalas seguras e rápidas. E,
como mencionou o professor Mesquita esta manhã, para otimizar
o procedimento, utilizando sua expertise.
Nesse comitê de usuários, temos oito pessoas, oito
representantes sem direito a voto. Temos dois represen-
tantes dos armadores, dois outros usuários do porto, dois
representantes da administração do porto e dois práticos.
Esses têm direito a voto. Os demais usuários do porto
são em geral agentes de navegação, mas também
podem ser barqueiros ou empresas de rebocadores.
E eles são propostos pelo que chamamos em francês
de Union Maritime, que é a representante da indústria
portuária.
Os demais participantes são o diretor de Assuntos Marítimos, o
diretor do Porto, a autoridade competente que está presente
quando a assembleia comercial está discutindo a tarifa, e temos
também o representante da Marinha quando a assembleia
comercial está discutindo a zona de praticagem.
Então, temos os práticos, a indústria e o preço; e como funciona?
Vamos analisar a praticagem obrigatória e o que chamamos de
PEC, que é o Certificado de Isenção de Praticagem (Piloting
Exemption Certificate).
O marco regulatório é fornecido pela lei em âmbito nacional, mas
sempre tratado localmente. O ponto-chave nesse caso é o que
chamamos de comissão local, que trata, portanto, dos aspectos
técnicos dos serviços de praticagem e dos exames de PEC.
Os membros do comitê técnico são o diretor da Autoridade
Marítima, o diretor do Porto, o capitão do Porto, um comandante de
navio que vem frequentemente ao porto, e também, é claro, o
prático da zona de praticagem.
Para a praticagem obrigatória na França, todas as embarcações
cujo tamanho ultrapasse um comprimento total (LOA) decidido
localmente precisam embarcar um prático. Normalmente, nos
diferentes portos franceses, esse tamanho situa-se entre 40 e
70 metros.
Agora, vamos falar sobre os PECs. Há um marco regulatório nacio-
nal para o PEC, e depois uma decisão local para implementá-lo. O
PEC pode ser concedido a um comandante, a uma embarcação, ao
porto ou a um berço específico nesse porto. Esse comandante
precisa ter bom conhecimento do idioma francês e ser aprovado
num exame médico. Não são concedidos PECs para petroleiros ou
embarcações levando carga perigosa, e também há algumas outras
disposições na lei, como, por exemplo, a validade de sua emissão:
dois anos.
A decisão local é tomada pelo comitê local, que vai decidir a área
do porto em que o regime de PECs pode ser usado. O comitê decide
o número de escalas necessárias para passar no exame; se haverá
alguma restrição, como condições meteorológicas, se a embarca-
ção usará rebocador ou não. Em geral, quando há assistência
de um rebocador, o prático embarca no navio. O prático local
marítimo embarca no navio. O comitê também vai decidir o tipo
de propulsão do navio. Portanto, em certos portos, você pode ter
uma hélice e um propulsor de proa, mas na maioria dos casos
são embarcações de duas hélices e um propulsor de proa.
Agora, como os PECs funcionam na prática.
Número 1 – Uma embarcação bem equipada para manobras.
Número 2 – Temos um comandante muito habituado a fazer esca-
las nesse porto e, quando estou me aproximando do porto, às vezes
só há um berço dedicado exclusivamente na entrada. Se é preciso
passar por eclusas ou pontes, não é possível obter o PEC.
Número 3 – Muito importante. É necessário ter total controle da área
de navegação por meio de um centro VTS. Como não há um prático
a bordo, é preciso verificar o tempo todo o que o navio está fazendo.
Número 4 – Podem ocorrer condições específicas e limitadoras,
aliás, já mencionadas: condições meteorológicas, assistência do
rebocador, tráfego marítimo na vizinhança, área muito sensível
no porto, como, por exemplo, uma base naval. Como em Toulon, no
sul da França, onde a autoridade marítima não quer conceder PECs.
E, evidentemente, haverá taxas especiais para embarcações sob o
regime de PEC, sendo uma fração da tarifa normal. Na verdade, as
taxas de praticagem são uma contribuição para os serviços públicos.
Em resumo, posso dizer que 95% dos PECs concedidos na França
são dados a comandantes de balsas de veículos que fazem a
travessia entre a França e o Reino Unido, porque eles entram várias
vezes por dia no mesmo porto. Por exemplo, em Calais, estão
fazendo a ligação entre Calais e Dover, e em Calais estão entrando
cerca de cinco vezes por dia. Então, 95% são casos como esse, e o
restante é concedido para embarcações especializadas usadas
para dragagem e operações de manutenção.
Tenho apenas mais sete minutos, mas estou quase terminando.
Vamos à conclusão sobre a praticagem na França. Existe um marco
regulatório nacional para todos os distritos, sempre com trata-
mento local. Há consulta aos grupos de interessados, em relação
aos aspectos tanto comerciais como técnicos, e um regulamento
emitido pelo préfet de région.
Vamos falar sobre esse regulamento, que chamamos de règlement
local. Nesse regulamento encontram-se todos os itens referentes
à organização de praticagem no âmbito local. O número de práti-
cos, os equipamentos necessários para a execução do serviço, os
limites da zona de praticagem obrigatória, o tamanho e o tipo de
embarcação para a qual um PEC pode ser concedido e as taxas
de praticagem. Todos os anos altera-se um anexo do regulamento
com a mudança nas taxas de praticagem.
Tenho certeza de que vocês estão pensando como eu, que falei
demais esta tarde e que está na hora de concluir.
Em todo o mundo existem cerca de 14 mil práticos. Sabemos que a
indústria de navegação transporta aproximadamente 90% das
mercadorias. Vocês viram que nas diferentes partes do mundo os
práticos podem ser profissionais autônomos, servidores públicos
ou empregados, mas sempre sob a supervisão de uma autoridade
de praticagem competente. O que é importante observar é que
essa autoridade de praticagem competente deve ser sempre o
mais independente possível das diferentes partes interessadas, e
assegurar que os práticos também se mantenham sempre o mais
independentes possível das diferentes partes interessadas.
Como conclusão, junto-me ao Sr. Singhota da IMO e ao que a IMO
declarou claramente no preâmbulo da Resolução A.960, reproduzi-
do nesse slide. Em outras palavras, a praticagem é uma questão
local e deve ser decidida localmente. Estou certo de que, se for
para lembrar apenas um ponto de minha apresentação, é esse.
Para encerrar, apenas as únicas palavras que conheço em
português: muito obrigado!
O serviço de praticagem
O serviço de praticagem ou pilotagem (pilotage) é atividade consa-
grada desde os primórdios e consigna o conjunto de atividades
profissionais de assessoria ao comandante nos procedimentos de
manobra náutica e na navegação.
Constatam-se, como razão fundamental da existência da atividade
de pilotagem ou praticagem, a maior eficiência e segurança à
navegação, a salvaguarda da vida humana, preservação do meio
ambiente e proteção do patrimônio público e privado sob
interferência do tráfego aquaviário no interior de áreas ou zonas
de praticagem ou de pilotagem (pilotage area).
Trata-se de atividade de gerenciamento de riscos baseada no
conhecimento dos acidentes e pontos característicos de áreas
marítimas designadas zonas de praticagem realizada, essencial-
mente, em trechos da costa, em baías, portos, estuários de rios,
lagos, rios, lagos, rios, terminais e canais.
A atuação da praticagem apresenta características peculiares e
mundialmente consagradas: o caráter local, a ausência de vínculo
empregatício e o controle efetuado pelo Estado que regula a ativi-
dade e determina as zonas e áreas obrigatórias (compulsory
pilotage area) ou facultativas (facultative pilotage area).
Na generalidade, o exercício da atividade de praticagem envolve,
normalmente, tipos distintos de ações relacionadas às manobras
náuticas: a pilotagem ou praticagem de singradura ou de atracar,
desatracar, fundear os navios e outras manobras.
Advogada, mestre pela Unesp, doutora pela USP, pós-doutorada pela Universidade Autônoma de Barcelona.Professora do doutorado e do mestrado, e coordenadora da pós-graduação
em direito marítimo e portuário da Unisantos.Autora de Cursos de Direito Marítimo volumes I-III.
Eliane Octaviano
Contratos ou acordos de praticagem
O contrato de praticagem regulamenta os direitos e obrigações rela-
tivos aos serviços de assessoria náutica entre o prático e o armador.
No Brasil, o contrato de praticagem não encontra normatização
específica, sendo raros os posicionamentos no âmbito doutrinário
e jurisprudencial.
Tem-se considerado, em geral, a natureza de prestação de serviços
submetendo-se o contrato de praticagem aos dispositivos gerais
constantes do Código Civil (CC), concernentes às obrigações e
contratos combinado com os ditames legais específicos à presta-
ção de serviço, complementadas por menções específicas em
legislações esparsas.1
Inobstante prevalência dessa vertente, a natureza jurídica do con-
trato de praticagem também remete a controvérsias e se questio-
na, efetivamente, seu enquadramento como contrato de prestação
de serviços por obra certa (CC, Artigos 593 a 607) ou contrato de
empreitada (CC, Artigos 610 a 626),2 ou ainda em um tertius genus,
consignando elementos comuns de ambos os tipos contratuais.3
No contexto da natureza apenas de prestação de serviços, teoria
prevalente no direito brasileiro, a atividade de praticagem, em si, é
obrigação de meio para obtenção do resultado desejado.
Na tese que considera a natureza de contrato de empreitada, a
praticagem assumiria os riscos até o momento da finalização da
manobra náutica, na típica configuração de obrigação de resultado.
Aspectos jurídicos do serviço de praticagem: o armador estrangeiro, suas representatividade e responsabilidades
1 Defende a natureza de prestação de serviços. Sampaio de Lacerda, 1984, p. 143 e Gibertoni, 2005, p. 138.2 O contrato de empreitada tem por objeto a realização de obra material ou imaterial, considerando-se nesse contexto a “obra” como o trabalho ou tarefa. 3 Descartada totalmente a possibilidade de contrato de trabalho, pois o prático não é tripulante nem empregado do armador, inexistindo, ainda, qualquer relação de 3 dependência ou subordinação do prático com o armador ou comandante. V. Lesta, art. 2º e 12. Para aprofundamento no tema consulte Octaviano Martins, 2012, capítulo 14.
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Considerando um terceiro gênero, na base das considerações
desse enquadramento, o prático é convocado para a realização de
‘obra’ imaterial em razão de suas especiais aptidões técnicas e
obriga-se, concomitantemente, a assessorar o comandante, con-
figurando prestação de serviços, e a conduzir corretamente a
manobra em condições de segurança, resultando em obrigação de
resultado, típica da empreitada, a que a praticagem se presta com
unidade de ato: o prático assessora desde que a bordo do navio, e
o assessoramento termina, sem solução de continuidade, quando
concluída a manobra náutica. O caráter sui generis que remete à
consolidação de um terceiro gênero contratual emana das especi-
ficidades e tecnicidades do serviço de praticagem, e o caráter
bifronte, de sua vinculação ao direito público e ao direito privado.4
Resvala-se na pressuposição básica de apresentar a atividade de
praticagem características peculiares e mundialmente consagra-
das anteriormente referenciadas, designadamente no que tange ao
caráter local, à ausência de vínculo empregatício ou subordinação
e ao controle efetuado pelo Estado. No desempenho de suas fun-
ções, a praticagem representa, efetivamente, o interesse público
da segurança da navegação e goza de autonomia frente ao coman-
dante do navio.
Destaca-se, ainda, uma quarta vertente teórica, defendida por
Matusalem Pimenta (2007, p. 123-124), que relega a natureza con-
tratual a uma relação jurídica híbrida e defende assim configurar-se
a relação entre o armador e o prático − como, um “acordo sui generis”
que não constitui relação contratual perfeita, vez que não se fazem
presentes alguns princípios básicos que norteiam os contratos.
Afirma, ainda, que a relação híbrida ora considerada é contratual em
sua formatação, mas em sua execução aproxima-se muito mais de
uma relação de trabalho, posto que é exercida sob subordinação.5
O contrato ou acordo master
(master agreement ou master contract)
Na práxis marítima internacional, inexiste standard contract form
ou standard agreement para o acordo ou o contrato de praticagem.6
Como regra, prevalece o princípio da autonomia da vontade das
partes, com a interveniência das normativas imperativas vigentes
nos sistemas jurídicos estatais.
Seguindo esse parâmetro, não há um contrato-padrão de serviço
de praticagem no Brasil.
O preço do serviço de praticagem engloba o serviço constituído de
prático, lancha de prático e atalaia, e é devido pelo conjunto dos
elementos ou para cada elemento separadamente.
A elaboração do acordo ou do contrato deve consignar a definição
precisa, objetiva e inequívoca dos elementos fundamentais
intrínsecos à relação entre as partes contratantes para evitar
inadimplementos e litígios.
Constatadas a inexistência de regulamentação internacional ou de
contrato-tipo ou acordo-padrão e a omissão da legislação brasilei-
ra, é comum existirem vários acordos até para uma mesma zona
de praticagem.
4 No direito espanhol também se suscitam divergências teóricas sobre a natureza do contrato de praticagem e são constatados entendimentos que defendem a natureza de contrato de arrendamiento de obra, instituto similar ao contrato de empreitada no Brasil, arrendamiento de servicios, contrato de arrendamiento de servicios (prestação de serviços no sistema do Brasil) ou caráter sui generis. Partidário do entendimento da natureza sui generis do contrato de praticagem, afirma Arroyo Martinez (2001, p. 587) que
na prestação de serviços, ao contrário do que ocorre na praticagem, a prestação geralmente é diferida ou de trato sucessivo. Destaca ainda que autonomia do prático é característica que também não se constata nos contratos de arrendamiento de obra ou no contrato de arrendamiento de servicios. Em sentido diverso: “Arrendamiento de
Obra. Práctico del puerto. No tiene la condición de tripulante del buque. Autonomía en el ejercicio de sus funciones. Distinción entre la responsabilidad del capitán e la del práctico” (TS 1ª. S 13 jun. 2003, Madrid, Espana).
5 “A existência de uma relação contratual pressupões necessariamente a liberdade de contratar, o que não acontece em absoluto com os serviços de praticagem. A praticagem, conforme definida em lei, é atividade essencial de interesse público, não havendo qualquer possibilidade de sua não utilização por parte dos armadores, nem tampouco de sua não prestação por parte dos práticos. Portanto, a relação não nasce da vontade das partes, mas, sim, por imposição legal nos moldes do artigo 15 da Lei
9.537/97 (...). Uma outra característica da relação contratual é a bilateralidade quanto à escolha do seu conteúdo, característica esta extremamente mitigada nos acordos de praticagem. O serviço de praticagem deve ser executado rigorosamente em conformidade com a lei especial e regulamentos pertinentes, devendo estar estampada no corpo do acordo cláusula pétrea para esse fim (...) Ainda como princípio orientador das relações contratuais, tem-se a manutenção do equilíbrio entre as partes, e, na hipótese de
desequilíbrio, razão há para rescisão do contrato, ou seu ajuste através do Poder Judiciário. Também não é o que ocorre com os serviços em tela, vez que são executados sob o regime de hierarquia, senão vejamos: quando o prático se apresenta a bordo, para dar início ao serviço seu nome é aposto no diário de bordo seguido das seguintes pala-vras: “to master’s orders on pilot’s advice” (...) ou seja, sob as ordens do comandante e orientação do prático. Assim, há consenso internacional no que tange à autoridade do comandante sobre todas as pessoas de bordo, sendo essa autoridade expressa na maioria dos ordenamentos jurídicos, a exemplo da lei brasileira” (Pimenta, 2007, p. 125-126).
6 Admite-se, embora não seja de praxe, a forma não escrita iniciando-se com a formalização da solicitação do serviço de praticagem. 88
7 Para aprofundamento no tema consulte Octaviano Martins, 2012, capítulo 14.8 As empresas estrangeiras para atuar no Brasil devem ter autorização do Poder Executivo. V. Decreto-lei 2.627/40, art. 64 e art. 1.134 do CC. 9 Em sentido contrário: “DECLARATÓRIA − ILEGITIMIDADE ATIVA − EXTINçÃO MANTIDA − DEMANDA COM OBJETIVO DE AFASTAR A OBRIGAçÃO DECORRENTE DE 8 8 8 ACORDO SOBRE OS PREçOS DE PRATICAGEM PROPOSTA PELO SINDICATO QUE REPRESENTA AGENTES MARíTIMOS − O agente marítimo serve às empresas de navegação 8 para realizar serviços que seriam de sua competência, de um modo geral, auxiliando no transporte e na armação. Há uma relação jurídica de representante do navio em 8 8 terra em nome do transportador ou armador. Enfim, a relação jurídica estabelecida não alcança certos conflitos, especificamente a discussão sobre a prática de preços, 8 8 diante da atuação na qualidade de mandatário − Sindicato que atua na qualidade de substituto processual e, em consequência, não é legitimado para a causa (TJSP 8 8 8 Apelação APL 992080096777; Relator: José Malerbi; Data de Julgamento: 08/10/2010, 35ª Câmara de Direito Privado)10 CC, art. 653: "Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato".
89
Os contratos de praticagem se vinculam a um acordo master
(master contract ou master agreement) que determina os parâme-
tros gerais das obrigações entre o armador e a praticagem.
Estrategicamente, os master contracts ou master agreements
contêm cláusulas relativas à negociação como um todo e permitem
continuidade, fluidez e celeridade nas operações. Efetivamente,
cada assessoria específica a ser prestada pelo prático está vincu-
lada aos termos do acordo ou termo de contrato. Em face da
dinâmica das atividades que envolvem o setor, não é usual (e até
se consubstanciaria em procedimento inviável) que sejam negocia-
dos acordos específicos a cada efetiva prestação de serviços da
praticagem a determinado navio.
Considerada a diversidade de acordos e contratos e a confidenciali-
dade e sigilo que porventura possam ser consideradas, não há como
se analisar, em efetivo, um padrão específico. Inobstante ausência
de paradigma, evidências empíricas evidenciam a elaboração de
contratos, termos de contrato ou acordos de praticagem tradicional-
mente estruturados em cláusulas introdutórias e cláusulas específi-
cas em consonâncias às normas gerais aplicáveis às obrigações.
As cláusulas introdutórias contêm, essencialmente, a identificação e
qualificação das partes. As cláusulas específicas são variáveis de
acordo com a especificidade da transação, mas geralmente versam
sobre o objeto e descrição das atividades, preço e condições de paga-
mento, obrigações das partes, duração, rescisão, lei aplicável e foro.7
Das partes contratantes
O contrato de praticagem é o instrumento pelo qual se regulamen-
tam os direitos e obrigações relativos aos serviços de assessoria
náutica entre o prático e o armador.
A obrigação fundamental do prático se refere à condução da
embarcação em consonância com a segurança da navegação e as
normativas vigentes.
Na esfera contratual evidencia-se legitimidade para negociar ou
contratar o serviço de praticagem no Brasil às empresas brasileiras
de navegação (EBNs), às empresas estrangeiras autorizadas legal-
mente,8 ao Sindicato dos Armadores Nacionais (Sindarma) e às
agências marítimas 9 ou seus respectivos sindicatos que represen-
tem armadores estrangeiros.
A obrigação fundamental do armador é pagar o preço. Nas hipóteses
de inadimplência, há que analisar quem poderá figurar no polo pas-
sivo e ser demandado pelo não pagamento do serviço de praticagem.
Efetivamente, a demanda pode ser proposta contra a empresa
contratante. Se estrangeira (legalmente estabelecida), na pessoa
de seu representante legal no país. Em regra, é vedada a contrata-
ção de serviços de praticagem por empresas estrangeiras.
Nesse contexto, tem-se suscitado a responsabilidade das agências
marítimas, representantes dos armadores estrangeiros, pelo paga-
mento do serviço de praticagem.
Da representatividade do armador estrangeiro
As agências marítimas (owner’s agencies) ou agências de navegação
são empresas que têm como função a representatividade do armador.
Na práxis de mercado, o agente exerce a completa representação
do armador em consonância ao que for determinado contratual-
mente. Na generalidade, as atividades do agente contemplam a
contratação de praticagem, providências relativas ao despacho de
chegada e saída do navio, rebocadores, lanchas, atracação,
reparos, suprimentos, víveres, entre outras obrigações.
A natureza jurídica da atividade da agência marítima não encontra
posição uníssona no direito brasileiro, e se constatam teorias que
divergem acerca da natureza da relação entre o armador e a agên-
cia, e suscitam-se teorias que defendem a configuração de man-
dato (CC, art. 653 a 658),10 contrato de agência (CC, arts. 710 a
716),11 prestação de serviços, comissão mercantil (CC, art. 693 e
seguintes)12 ou representação comercial (Lei 4.886/65).13
Considerada a natureza de mandato, a agência marítima recebe do
armador poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar
interesses (CC, art. 653).
Na indústria de shipping, os armadores estrangeiros geralmente não
concedem procurações aos agentes marítimos para atuar em seu
nome. Tal representatividade advém dos usos e costumes consoli-
dados internacionalmente, que são fontes relevantes de direito.
O agente atua em seu ofício e nos limites do contrato; todavia,
deve o agente marítimo atuar com diligência e primar pelo cumpri-
mento dos contratos nos quais atua em representatividade do
armador e, se necessário, exigir do armador remessa adiantada
de valores necessários para fazer frente às obrigações contratuais.
Na prática, é usual a exigência de envio antecipado de valores para
o pagamento de algumas taxas que são pagas antes de o navio
atracar, como as taxas portuárias. Trata-se de procedimento que
poderá ser adotado para evitar inadimplemento na esfera da
contratação de praticagem.
Considerando a natureza de comissão mercantil, destacam-se dois
julgados que versam sobre a responsabilidade da agência pelas
despesas de atracação e desembarque de mercadorias e de sobre-
estadias de contêineres.
O TJRJ determinou a responsabilidade do agente marítimo pelas
despesas dos serviços de atracação e desembarque de mercado-
rias considerando que a representação, que o agente marítimo
exerce em favor do armador do navio, configura o contrato de
comissão mercantil, segundo o qual o comissário, embora aja
em nome próprio, o faz em favor de terceiros (TJRJ, 0007658-
81.1997.8.19.0000; 1997.001.04154 Apelação; Des. Marlan Mari-
nho; Julgamento: 04/11/1998; Primeira Câmara Cível).
No mesmo sentido, em sede de ação de cobrança de sobre-estadia
de contêineres, o TJSP considerou a legitimidade ativa ad causam
do agente marítimo por restar caracterizada a relação contratual de
comissão mercantil entre a agência e a empresa estrangeira que
transportou a mercadoria e alugou os contêineres. Reconheceu o
Tribunal que a agência marítima é parte legítima para figurar no
polo ativo do processo, na defesa de seus direitos subjetivos
decorrentes do desempenho de suas atividades, eis que, embora
aja segundo as instruções e o interesse da comitente, o faz em
nome próprio, contratando com terceiros e assumindo as respon-
sabilidades daí decorrentes (TJSP, 9143017-34.2006.8.26.0000
Apelação Com Revisão / Seguro Relator(a): Itamar Gaino Órgão
julgador: 21a Câmara de Direito Privado Data do julgamento:
09/05/2007 Data de registro: 04/07/2007).
Inobstante tais casos não versem, efetivamente, sobre os serviços
de praticagem, configuram precedentes importantes que podem
ser invocados.
Ademais, independentemente da teoria que se defenda, tem-se
consagrado a validade da citação do armador estabelecido no
exterior na pessoa do agente marítimo.
Da formação e execução do acordo ou contrato de praticagem
Na esfera internacional, a formação do contrato ou do acordo de
praticagem emana da proposta formalizada pelo contratante ou
seus prepostos solicitando a assessoria de um prático a bordo. A
solicitação é feita, em regra, por comunicação do comandante com
a estação de praticagem. Admite-se, ainda que considerada
conduta em desuso, a solicitação do prático por meio de sinais.
Nos termos do Código Internacional de Sinais (CIS) da IMO
(International Maritime Code of Signals) a bandeira alfabética
Golf significa solicitação de prático pelo navio.
No Brasil, em consonância aos ditames das Normas da Autoridade
Marítima para o Serviço de Praticagem − Normam 12, 0313 (d), os
serviços de praticagem devem ser obrigatoriamente, requisitados
ao Centro de Controle de Operações de Praticagem da Atalaia
11 CC, Art. 710: “Pelo contrato de agência, uma pessoa assume, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, a obrigação de promover, à conta de outra, mediante retribuição, a realização de certos negócios, em zona determinada, caracterizando-se a distribuição quando o agente tiver à sua disposição a coisa a ser negociada.
Parágrafo único. O proponente pode conferir poderes ao agente para que este o represente na conclusão dos contratos”.12 CC, Art. 693: “O contrato de comissão tem por objeto a aquisição ou a venda de bens pelo comissário, em seu próprio nome, à conta do comitente”.
13 Lei 4.886/65, Art. 1º: “Exerce a representação comercial autônoma a pessoa jurídica ou a pessoa física, sem relação de emprego, que desempenha, em caráter não eventual por conta de uma ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis, agenciando propostas ou pedidos, para, transmiti-los aos representados,
praticando ou não atos relacionados com a execução dos negócios”.90
14 Conferir Octaviano Martins, 2012, capítulo 14; Pimenta, 2007, p. 123-125 e Normam 12.15 “Na fase de navegação no canal e durante as manobras de atracação, a responsabilidade pelo tráfego do navio fica com o prático, salvo se suas determinações e ordens 15 não forem endossadas pelo comandante, que a qualquer momento pode reassumir o controle de seu navio se julgar necessário, fundamentando, por escrito, à AM 15 a posteriori seu ato” (Santos Pilot, 2006, p. 8).16 Considerada a natureza jurídica contratual dos serviços de praticagem, admite-se, ainda que em tese, suspensão ou resolução do contrato de praticagem nas hipóteses 16 de recusa, impraticabilidade, inaceitável risco, condições meteorológicas desfavoráveis e outras hipóteses de caso fortuito ou força maior. Em sentido contrário, v. Pimen- 16 ta (2007, p. 123-126), que defende a natureza de acordo e não de contrato. 91
homologada da respectiva ZP, pelos comandantes das embarca-
ções ou por seus prepostos.
Autorizada a manobra, o prático escalado embarca na lancha de
prático e se dirige ao ponto de espera de prático, estabelecido em
coordenadas geográficas na zona de praticagem (ZP), onde é
efetuado o embarque/desembarque do prático no navio por
ocasião do início ou fim de uma faina de praticagem.
No início das atividades, ao entrar no navio o prático dirigir-se-á à
ponte de comando, sendo apresentado ao comandante, momento
no qual se transfere a condução do navio ao prático e consolida-se
a relação contratual inter partes.
Na apresentação do prático a bordo, antes do início da faina, faz-se
constar no diário de bordo o nome do prático seguido da frase: “to
master’s orders on pilot’s advice”. Trata-se de procedimento-
padrão para dar início à faina de praticagem.14 Evidencia-se, por-
tanto, a premissa consolidada internacionalmente de serem dele-
gadas a condução do navio e a direção náutica do navio ao prático,
mas permanece o comandante no comando, podendo intervir a
qualquer momento e reassumir a condução do navio.15
A direção do navio pelo prático se mantém até sua completa atra-
cação no cais, consignando a resolução do contrato para aquela
específica manobra.
Constatadas condições meteorológicas e/ou estado do mar que
determinem a impossibilidade de embarque do prático com segu-
rança, faculta-se ao comandante, sob sua exclusiva responsabili-
dade e mediante prévia autorização da capitania, delegacia ou
agência (CP/DL/AG), demandar à ZP local abrigado que permita o
embarque do prático, observando orientações transmitidas pelo
prático de bordo da lancha de prático.
Nas manobras náuticas de desatracação, o prático adentra o navio
atracado orientando a manobra de desatracação até o ponto de
espera de prático, onde desembarca e configura o fim da faina
de praticagem e respectiva resolução do contrato.
Na impossibilidade de desembarque do prático com segurança no
ponto determinado quando as condições meteorológicas e/ou
estado do mar impedirem, o comandante da embarcação, sob sua
exclusiva responsabilidade e mediante prévia autorização do CP/
DL/AG, poderá desembarcar o prático em local abrigado e prosse-
guir a singradura, observando os sinais e orientações transmitidas
pelo prático, que ficará a bordo da lancha de prático. Configurada
antecipadamente a possibilidade de falta de segurança no desem-
barque do prático e de que a segurança da navegação desacon-
selhe seu desembarque antes do ponto de espera de prático, tal
situação deverá ser apresentada ao comandante da embarcação,
devendo o prático estar pronto para seguir viagem até o próximo
porto caso seja a decisão do comandante e mediante prévia autori-
zação da CP/DL/AG. Em tais circunstâncias, se considera que a
responsabilidade do prático se encerra com o término da faina e
não se estende até o momento de seu efetivo desembarque.16
Da responsabilidade pelos acidentes da navegação
Consolida-se no direito brasileiro a premissa consagrada interna-
cionalmente: master’s orders, pilot’s advice.
No Brasil e na maioria dos portos, o prático não assume o comando
da embarcação nem dirige as manobras e a navegação.
Inobstante divergências teóricas, tem-se considerado que o prático
é assessor ou prestador de serviços de caráter não eventual,
inexistindo qualquer relação de subordinação entre as partes do
prático com o comandante e vice-versa. Em posição parcialmente
divergente, Matusalem Pimenta (2007, p. 125-126) defende que
vigora regime de hierarquia mantendo o comandante a
responsabilidade pelas condições de segurança, extensivas à
carga, aos tripulantes e às demais pessoas de bordo, incluindo
o serviço prestado pelo prático. Afirma que a relação jurídica entre
o prático e o armador é híbrida e é exercida sob subordinação.
Independentemente dessa polêmica, o comandante mantém sua
condição de autoridade máxima dentro do navio, delegando ao
prático a condução náutica.
Na constância do serviço de praticagem mantêm-se os deveres do
comandante, sendo ainda designadas algumas regras específicas
emanadas da Normam 12, 0230.
Evidencia a norma supra que a presença do prático a bordo não
desobriga o comandante e sua tripulação dos deveres e obrigações
para com a segurança da embarcação, devendo as ações do prático
ser monitoradas permanentemente.
No Brasil, inobstante omissão legislativa, ausência de precedentes
pretorianos e escassez de análise doutrinária, vislumbra-se na
doutrina a prevalência da tendência que exonera a responsabilidade
civil do prático salvo hipóteses de acidentes ou fatos da navegação
decorrentes de erro específico de navegação ou manobra do prático.17
A responsabilidade geralmente recai sobre o comandante, na
esfera de responsabilidade subjetiva e, consequentemente, sobre
o armador ou proprietário, consagrada a teoria da responsabilidade
objetiva (independentemente de culpa) ou do risco profissional,
tendências consolidadas nos âmbitos cível e administrativo.18
Considera-se, portanto, a responsabilidade do prático no âmbito
administrativo, cujos processos tramitam no Tribunal Marítimo e na
esfera penal.
No âmbito administrativo, constitui infração às regras do tráfego
aquaviário a inobservância pelo prático de qualquer preceito da Lei
de Segurança do Tráfego Aquaviário (Lesta, Lei 9.537/97), do
RLESTA (Dec. 2.596/98) ou de normas complementares emitidas
pela autoridade marítima e de ato ou resolução internacional rati-
ficado pelo Brasil, sendo o infrator sujeito às penalidades indicadas
em cada artigo. São consideradas infrações especificamente impu-
táveis ao prático, sem prejuízo de outras que o prático venha a
cometer, as condutas descriminadas no RLESTA, art. 25:19
i) Recusar-se à prestação do serviço de praticagem, cuja penali-
dade será suspensão do certificado de habilitação até 12 meses ou,
em caso de reincidência, o cancelamento;
ii) Deixar de cumprir as normas da autoridade marítima sobre o
serviço de praticagem, com penalidade de suspensão do certifica-
do de habilitação até 120 dias.
17 Tese defendida por Matusalem Pimenta (2007, p. 129/130 e 147/149).18 Para aprofundamento no tema consultar Octaviano Martins, 2012, capítulo 14.
19 As decisões do TM são atos administrativos e configuram prova técnica cuja eficácia é de ordem probatória. São destituídas de efeitos conclusivos e não fazem coisa julga-da judicial, sendo passíveis de reexame pelo Poder Judiciário. Na jurisprudência tem-se consolidado a natureza das decisões do TM de laudo, perícia ou de prova técnica.
92
Referências bibliográficas
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GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e prática do direito marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998 e 2005.
PIMENTA, Matusalém Gonçalves. responsabilidade Civil do Prático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. Curso de Direito Marítimo: Teoria Geral. Barueri: Manole, 2012.
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SAMPAIO DE LACERDA, J. C. Curso de direito privado da navegação: direito marítimo. V.1. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1984.
93
Serviço de praticagem: o tomador é o Estado
Embora neste seminário outros tenham apresentado as caracte-
rísticas e particularidades do serviço de praticagem, um aspecto
importante foge à compreensão corriqueira porque depende de
análise complexa, ao mesmo tempo econômica, sociológica e
jurídica: a função pública da praticagem.
Apesar do tempo limitado que impõe concisão demasiada, não há
como compreender o serviço de praticagem em sua completude
senão por esse tipo de reflexão que o exercício da advocacia impõe
aos profissionais que atuam na defesa dos interesses institucio-
nais da praticagem. A advocacia institucional da praticagem difere
e muito da defesa individual ou particular da praticagem, porque a
primeira visa proteger o sistema, enquanto a segunda procura
resguardar os interesses próximos e específicos das sociedades de
práticos ou dos profissionais individualmente considerados.
O CONAPRA, nesse sentido, sempre tem demandado estudos e
opiniões que transcendem questões meramente jurídicas ou legais
sobre a profissão, impondo um desafio adicional aos profissionais
envolvidos: o de buscar compreensão, se não holística, ao menos
global da praticagem inserida no contexto social, com facetas
econômicas, políticas e de Estado.
Nesse sentido, parece-nos que o serviço de praticagem não pode
ser compreendido como um serviço privado comum, ordinário,
embora seja executado por pessoas naturais habilitadas pela auto-
ridade marítima. Essa compreensão, enviesada e superficial, tem
fundamento ou apelo somente na literalidade das disposições
legais que são insuficientes para explicar a natureza dos serviços.
Também não se trata de um serviço público em sentido estrito,
Advogado da Banca Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian – Advogados.Mestre em direito político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Professor universitário.
Jaime Machado
porque não é prestado diretamente pelo Estado brasileiro nem é
objeto de concessão para que particulares o prestem em seu nome.
Trata-se e, com alguma insistência temos defendido este ponto de
vista, de um serviço de ‘função pública’.
O primeiro aspecto para defender nossa qualificação dos serviços
de praticagem a considerar é econômico. Não há dúvidas, e o fato
fala por si, de que a praticagem brasileira foi o ‘fator oculto’ que
garantiu ao país viabilizar o tráfego crescente nas vias de acesso e
instalações portuárias dentro das limitações de infraestrutura
existentes, que ficaram por décadas sem qualquer investimento
público e que hoje se demonstram mais desatualizadas do que
nunca, embora a União, em especial, tenha empenhado esforços
nos dois últimos governos para viabilizar abrangentes e profundas
reforma e ampliação da infraestrutura brasileira. A praticagem,
com o desenvolvimento técnico e tecnológico impulsionado pelas
exigências da autoridade marítima e por iniciativas próprias, den-
tre as quais destaco a atuação do CONAPRA como centro de ini-
ciativa e difusão de conhecimentos, conseguiu mitigar deficiências
da infraestrutura para permitir o ingresso do país como importante
e relevante protagonista do comércio internacional.
O segundo aspecto a considerar é sociológico. Embora a sociologia
pareça a alguns ciência menor ou dispensável, é fundamental para
que qualquer sociedade compreenda a si própria ao menos em sua
generalidade. Se o objeto da ciência é estudar as relações sociais,
a praticagem, nesse contexto, exsurge como importante grupo
organizado que tem como principal representante o CONAPRA.
Essa representação institucional permite que esse grupo se apre-
sente como protagonista na transformação econômica, técnica e
tecnológica do país, contribuindo para a coletividade com seus
relevantes serviços, especialmente por incessante e permanente
A necessidade da estabilidade institucional, jurídica, operacional e econômica para a eficiência do serviço de praticagem
interação com o Estado brasileiro, colaborando para agregar os inte-
resses difusos da sociedade brasileira. Não há na praticagem consi-
derada em sua totalidade, e faço aqui esta afirmação perante os
ilustres dirigentes do CONAPRA, outro interesse que não o de
defender e garantir que toda a cadeia logística e, portanto, a econo-
mia do país, progrida a passos largos, em busca do bem-estar social
ou do que os norte-americanos em sua Declaração de Independência
e em sua Constituição Federal chamaram de busca da felicidade.
Por último, o aspecto jurídico apenas corrobora nossas percepções
econômicas e sociológicas. Compete ao Estado brasileiro e, nos
termos da legislação infraconstitucional,1 dentro das normas de
atribuição de competência do Poder Executivo federal, à Marinha
do Brasil promover a segurança na navegação.
O serviço de praticagem é exercido por esses profissionais desig-
nados como práticos, que são devidamente habilitados pela Mari-
nha do Brasil. Por isso, afirmamos que o exercício dessa atividade
constitui ‘ofício privado’, mas de ‘função pública’, que tem por
finalidade garantir a segurança da navegação. Disso resulta, aliás,
sua caracterização pela lei em vigor como serviço essencial.2
As hipóteses de ‘exercício privado de uma função pública’ são
reconhecidas na doutrina. Entre outros, Juan Alfonso Santamaría
Pastor, professor titular da Universidade de Madri, apresenta os
dois elementos fundamentais que permitem identificar e categori-
zar uma atividade ou serviço, mesmo exercido por ente privado,
como de função pública:
Primero, la actividad constituye una función pública en sentido
estricto, no una mera tarea de interés público (como, p. ej., la que
puede realizar un fabricante de pan o un taxista), de donde se
deduce que los actos concretos en que se desarrolla poseen eficacia
jurídico-pública (p. ej., la dación de fe pública por un notario) o son
objeto de un servicio público en sentido estricto (p.ej., el servicio
de seguridad); y
Segundo, la persona privada que desarrolla la actividad lo hace con
medios y en nombre propio, no imputando su actividad a la
Administración; ello no impide que, por razones de control, sus actos
sean en algún caso recurribles ante la autoridad administrativa. 3
Segundo aí está demonstrado, esse serviço de função pública,
mesmo que privado quanto a seu exercício, não representa apenas
o ‘interesse público’. Seu conceito, sua natureza jurídica e os
interesses a que remete são mais amplos, porque é ‘função
pública’ em sentido estrito, ao mesmo tempo que não é prestado
ou explorado diretamente pelo Estado, mas por agentes privados
em nome próprio e com meios próprios − em um conjunto de ações
e efeitos sempre recorríveis à autoridade pública, que é, no caso,
a autoridade marítima.
Esta primeira conclusão é suficiente para evidenciar que tal ‘função
pública’ suscita, por suas implicações, o interesse na fiscalização,
intervenção e regulamentação pela Administração Pública em grau
mais profundo do que o que se verificaria nos serviços de
‘interesse público’. Os serviços de função pública são, verdadeira-
mente, funções de Estado e por isso, mesmo que exercidos por
particulares, devem receber tratamento próprio, mais próximo,
presente e efetivo da Administração Pública.
Ressalte-se que tal delegação pelo Estado de função sua a um
particular não afasta a necessidade da intervenção do primeiro, em
moldes que garantam o regular funcionamento, eficácia e atendi-
mento, vale dizer, em resumo, da função pública do serviço. Ao
contrário, essa intervenção é até mais necessária, porque a dele-
gação vincula, obriga e impõe aos agentes privados incumbidos da
função pública, que são os práticos, uma série de obrigações,
1 A Constituição Federal, em seu art. 21, inc. XII, alíneas “d” e “f”, estabelece a competência da União para explorar, diretamente ou mediante autorização ou permissão, entre outros serviços, os relativos ao transporte aquaviário. Em seu art. 22, inc. X, fixa a competência para, privativamente, legislar sobre “o regime dos portos, navegação
lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial”. Determina ainda, em seu art. 178, “a ordenação dos transportes aéreo, aquaviário e terrestre” mediante edição de lei e ainda prescreve, em seu art. 142, § 10, que a definição das atribuições das Forças Armadas e suas normas gerais dependem da edição de Lei Complementar. Editada em 9 de junho de 1999, a Lei Complementar n0 97 trata da organização das Forças Armadas e, em seu art. 17, caput e parágrafo único, confere ao comandante da Marinha, designado para essa finalidade como autoridade marítima, a atribuição, entre outras, de “prover a segurança na navegação aquaviária”, “implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores” (rios e lagos). Já a Lei n0 9.537, de 11 de dezembro de 1997, que é conhecida como Lesta, depois regulamentada pelo Decreto
n0 2.596, de 18 de maio de 1998, conhecido como RLESTA, dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional. Reafirmando o comando da lei complementar antes citada, a Lesta prevê, em seu art. 40, inc. II, a competência da autoridade marítima para “regulamentar o serviço de praticagem, estabelecer as zonas de
praticagem em que a utilização do serviço é obrigatória e especificar as embarcações dispensadas do serviço”. Essa lei ainda fixou, em seus arts. 12 a 14, os princípios gerais aplicáveis ao serviço de praticagem, assim outorgando o legislador à autoridade marítima, sem que caiba qualquer dúvida a respeito desse fato e dessa delegação,
competência para regulamentar esse serviço de forma ampla, respeitados os contornos gerais definidos na própria Lesta.2 Art. 14 da Lei n0 9.537, de 11 de dezembro de 1997.
3 Pastor, Juan Alfonso Santamaría. Principios de Derecho Administrativo General, v. 1, 1. ed. Madrid: Iustel, 2004, p. 502.4 Conforme § 20 do art. 20 da Lei n0 8.906/1994.
94
5 Conforme art. 133 da Constituição Federal.6 Salomão Filho, Calixto. regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos). São Paulo: Ed. Malheiros, 2008, p. 21.
95
condutas e controles destinados a que a realização do serviço
atenda ao interesse público.
Mal comparando, o advogado exerce uma atividade privada, mas
de múnus ou função pública,4 porque é essencial à aplicação da
Justiça.5 Podem existir tribunais, mas, sem os advogados, esses
nem sequer tomam conhecimento dos litígios que se perpetuariam
em injustiças.
Por essa razão, nossa compreensão jurídica do tema, em que
pesem importantes divergências doutrinárias, que incluem os ser-
viços de praticagem no rol de serviços de ‘interesse público’,
resulta exatamente da compreensão ampla de sua natureza e de
seus caracteres elementares. Assim, não cabe outra conclusão
senão colocar o Estado brasileiro como verdadeiro e único ‘toma-
dor’ dos serviços de praticagem.
Apesar da aparente confusão, porque os serviços são remunerados
pelos armadores, o Estado brasileiro, no exercício de suas atri-
buições, de sua competência primária de organizar a sociedade e
promover a ‘busca da felicidade’, emerge como o verdadeiro toma-
dor dos serviços e o maior interessado na manutenção da excelên-
cia, comparável às mais eficientes praticagens do mundo. Não por
acaso a praticagem brasileira figura entre os modelos ou paradig-
mas mundiais, o que se revela pela participação ativa no principal
organismo internacional de praticagem, a International Maritime
Pilots’ Association – IMPA. A corroborar essa opinião está o fato
de que no exato momento em que o Brasil comemora a eleição do
diplomata Roberto Azevêdo como diretor-geral da Organização
Mundial do Comércio – OMC, um brasileiro, Otavio Fragoso, ex-
diretor-presidente do CONAPRA, exerce a vice-presidência da IMPA.
Pelo exposto, dados os contornos dessa contribuição, passamos a
discorrer sobre a regulação e seus impactos na praticagem do
ponto de vista institucional, jurídico, operacional e econômico.
Regulação: conceito necessário
Considerando os serviços de praticagem função pública, cabe
discutir aqui a regulação desse serviço pelo Estado.
Há vários conceitos de regulação. Conceitos jurídicos diversos e
conceitos econômicos. Não cabe aqui a discussão doutrinária
sobre as diferentes escolas (clássica, neoclássica ou econômica e
de interesse público) que versam sobre o tema. Embora apresen-
tem visões específicas, preferimos optar pela Escola de Interesse
Público que, apesar do nome impróprio, é aquela que apresenta e
defende o que nos parece mais correto e o que tem mais valor:
o interesse geral da coletividade e do Estado enquanto seu
representante legítimo.
As escolas clássicas e neoclássicas tendem a aplicar soluções
estritamente econômicas sem atentar para as condutas humanas,
que devem ser devidamente consideradas para uma regulação
séria e ampla dos objetivos legais.
Portanto, regulação, no sentido tratado nesta apresentação, tal
como proposto, não significa a autorregulamentação ou ‘desregu-
lamentação’ da praticagem, como poderiam os mais precipitados
compreender. Para a defesa dos interesses individuais dos práti-
cos, como de quaisquer profissionais, a autorregulamentação ou a
desregulamentação poderiam parecer, em um primeiro momento,
alternativa interessante, mas certamente seria fadada ao fracasso.
Uma atividade de função pública precisa de regulação mais ampla
que, tal como propõe o professor titular de direito comercial da
Universidade de São Paulo, Calixto Salomão Filho, em obra especí-
fica sobre o tema, definiu o conceito de regulação como sendo a
atividade que “engloba toda forma de organização da atividade
econômica através do Estado, seja a intervenção através da con-
cessão de serviço público ou do exercício de poder de polícia”.6
Como visto, o serviço de praticagem não é um serviço público, por
isso, não pode ser objeto de concessão. Ainda assim, deve ser
objeto do exercício do poder de polícia pela autoridade competente.
Aqui, finalmente, ingressamos no tema proposto pelo CONAPRA e
abraçado por nós. A regulação, mecanismo ou forma de interven-
ção do Estado em uma atividade econômica não deve ser restrita a
aspectos puramente econômicos, visando simplesmente e de
forma enviesada e restritiva à atividade. Novamente, Calixto
Salomão Filho nos sugere um norte para o assunto:
De um lado temos, em uma abordagem jurídica do problema
econômico como a que se pretende ora realizar, a necessidade de
reconhecimento da importância do elemento jurídico na organização
social. A concepção jurídica é, de resto, uma forma eficaz de superar
os impasses criados pelo economicismo. O direito vê o conheci-
mento de maneira profundamente diversa das ciências sociais.
Enquanto para estas o conhecimento é algo eminentemente empíri-
co, para o direito o conhecimento é eminentemente valorativo.
Afirmar que o conhecimento é valorativo é nada mais nada menos
que afirmar que os valores de uma determinada sociedade podem
influenciar e influenciam dramaticamente o conhecimento que se
tem dela. Se, como afirma a doutrina, não existe uma norma vazia
sem uma pretensão ou interesse a proteger, ou seja, sem um valor
que lhe esteja por trás, então, a sociedade que conhecemos, ao
cumprir essas regras, nada mais faz que traduzir esses valores.
Desse modo, a sociedade que vemos é uma representação de
valores sociais democraticamente estabelecidos.
A formação democrática de valores e regras deve ser coletiva.
‘Coletiva’ não significa necessariamente estatal. Pode referir-se a
grupos maiores ou menores de pessoas. Isso não significa que esse
conhecimento seja teórico, não vindo da prática ou artificial. O
Digesto romano, obra jurídica mais duradora e influente da história
da Humanidade, nada mais é que a compilação estruturada de
casos práticos.7
Ora, a regulação dos serviços deve resultar, portanto, tal como o
próprio direito, de uma construção cultural. Para explicar essa
construção cultural, recorremos às lições do filósofo do direito
Miguel Reale:8
Pois bem, ‘cultura’ é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos
material e espiritual, o homem constrói sobre a base da natureza,
quer para modificá-la, quer para modificar-se a si mesmo. É, desse
modo, o conjunto dos utensílios e instrumentos, da obras e ser-
viços, assim como das atitudes espirituais e formas de comporta-
mento que o homem veio formando e aperfeiçoando, através da
história, como cabedal ou patrimônio da espécie humana.
Não vivemos no mundo de maneira indiferente, sem rumos ou sem
fins. Ao contrário, a vida humana é sempre uma procura de valores.
Viver é indiscutivelmente optar diariamente, permanentemente,
entre dois ou mais valores. A existência é uma constante tomada
de posição segundo valores. Se suprimimos a ideia de valor, per-
deremos a substância da própria existência humana. Viver é, por
conseguinte, uma realização de fins. O mais humilde dos homens
tem objetivos a atingir, e os realiza, muitas vezes, sem ter plena
consciência de que há algo condicionando os seus atos.
Não há regulação sem a devida análise e compreensão dos
serviços em sua completude, para que as regras estabelecidas
não sejam desvirtuadas por visões estritamente econômicas e
absolutamente apartadas da realidade.
Nesse sentido, a autoridade marítima, ao longo dos anos,
aproveitou-se de sua experiência na regulação de uma das mais
antigas profissões da humanidade (que remonta à Antiguidade!).
Contudo, de maneira correta, considerou elementos novos, por
exemplo, inovações técnicas e tecnológicas, estipulando regras de
forma precisa que permitiram e exigiram da praticagem como um
todo a adoção de medidas que permitiram seu aprimoramento,
visando garantir o funcionamento da cadeia logística no país e a
manutenção da segurança do tráfego aquaviário.
Entretanto, não foram poucas as iniciativas perniciosas e oportu-
nistas de determinados grupos que visaram destruir uma regulação
bem-sucedida, fundada em valores e no interesse da coletividade.
Essas tentativas, embora legítimas em um ambiente democrático,
não visaram a outra coisa senão defender interesses dos próprios
autores, mesmo que contrariamente aos verdadeiros valores a
serem tutelados.
7 Salomão Filho, op. cit., p. 38 e 39. 8 Reale, Miguel. Lições Preliminares do Direito. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 25 e 26.
96
9 http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI3698,41046-A+mao+pesada+do+legislador
A construção cultural da regulação da praticagem, portanto, consti-
tui um valor em si mesma, posto que representa um conjunto de
valores consagrados e que permitiram que os serviços fossem
prestados até hoje em perfeita sintonia com o desejado pelo
Estado e pela coletividade.
Infelizmente no Brasil, e aqui cito exemplos, não raras vezes toda
a experiência acumulada ao longo dos anos pelos intérpretes e
aplicadores das leis é atirada fora pela precipitada e inconse-
quente substituição dessas normas, que contêm, não raras vezes,
elementos estranhos à realidade e aos valores da coletividade. A
norma, por si, nada significa; o que vale e é relevante é sua aplica-
ção, realizada após um processo de valoração e interpretação. Para
que ela seja bem aplicada na regulação, seja pela autoridade
competente, seja pelo Poder Judiciário, é necessário que se atente
para a construção cultural, para o que se fez e o que se faz.
Nesse sentido, o Código Civil de 2002 substituiu o Código Civil de
1916 e o decreto-lei de 1919, que regulamentava as sociedades
limitadas, alterando substancialmente essas e outras diversas
normatizações, causando assim imensas dificuldades para sua
aplicação, que só foram sendo pacificadas recentemente após
longos e dolorosos processos judiciais e intensos estudos
doutrinários. Da mesma forma, a Lei de Concordatas e Falências de
1946 foi substituída por uma lei ‘oferecida’ pelo Banco Mundial,
que protege os interesses dos credores e afasta outros valores
mais caros à coletividade, como a manutenção das empresas, dos
empregos e da produção. Sobre o assunto, ainda jovem advogado,
escrevi um artigo para o site jurídico Migalhas,9 no qual defendia a
alteração pontual da legislação, simples atualizações naquilo em
que estivesse superada, velha, desatualizada, exatamente para que
os valores fundamentais de uma norma consolidada não fossem
perdidos, não fossem atirados ao lixo, causando todo tipo de dificul-
dades não só para os profissionais do direito, mas para a sociedade.
O bem tutelado e os valores da regulação
Não há dúvidas pelo que já foi visto aqui de que o bem jurídico
tutelado na regulação dos serviços de praticagem é a segurança do
tráfego aquaviário.
Essa é a razão de ser dos serviços, o porquê de sua existência; e,
sendo esse o bem tutelado, ao longo dos muitos anos de regulação
pelo Estado foi construído o que, com alguma liberdade literária,
chamamos neste momento de valores, todos eles justificados pela
segurança no tráfego aquaviário.
97
Os valores a seguir tratados, de natureza institucional, jurídica,
operacional e econômica, parecem ser os fundamentais para que a
prestação dos serviços de praticagem continue a existir a contento,
de acordo com os interesses da coletividade.
O primeiro valor é o prático. Esse profissional é habilitado pela
autoridade marítima após demonstrar ter os conhecimentos
teóricos (que chamamos aqui de cultura naval) e práticos
(específicos de cada zona de praticagem).
O prático é valor a ser considerado porque, para exercer suas
atividades, foi obrigado a comprovar: 1) ter formação específica
sobre navegação, 2) dominar idioma ou idiomas estrangeiros e 3)
ter recebido treinamento suficiente sobre as particularidades de
uma zona de praticagem. Além disso, o prático é um ser humano e,
por essa razão, deve ser tratado com dignidade, valor esse
inalienável. Por isso, não pode o prático ser obrigado pela regula-
ção – nem o é pelas normas em vigor – a arriscar sua própria vida
e a de outros (por exemplo o piloto da lancha) para realizar mano-
bras, mesmo que essas interessem à coletividade, preço muito alto
e algumas vezes pago por alguns profissionais.
O segundo valor é a escala única de rodízio dos profissionais, que
visa garantir a distribuição equânime do serviço e a manutenção
do treinamento dos práticos em determinada zona de praticagem,
que explicamos melhor a seguir.
A escala única de rodízio existe, em todo o mundo, para garantir o
interesse do Estado e a disponibilidade ininterrupta do serviço de
praticagem, sem preferências ou discriminação de usuários. É
instrumento da autoridade para obrigar os práticos a atende
indistintamente qualquer navio, mesmo os que remuneram menos.
Ademais, a autoridade necessita garantir que os práticos não
sejam submetidos à fadiga e, simultaneamente, que todos mante-
nham grau uniforme de treinamento. Isso só é possível pela escala
única, viabilizada pela distribuição equitativa do serviço. Por isso,
e em reconhecimento a esse valor, em distintas ocasiões o Poder
Judiciário brasileiro manifestou-se favoravelmente à escala única,
sempre que fora contestada perante aquele foro.
Como corolário desse valor há o número de práticos designados
pela autoridade marítima para cada uma das zonas de praticagem.
Para que haja a manutenção do treinamento, os práticos devem
executar manobras mínimas, tal como um piloto de aeronave pre-
cisa de um número mínimo de horas de voo em cada tipo de aero-
nave, para que estejam garantidas, efetivamente, as condições de
segurança desejadas e esperadas. Um número excessivo de práti-
cos coloca em risco a manutenção do treinamento e, portanto,
anula o prático, sua função e toda a qualificação que foi obrigado
a ter para comprovar ser habilitado a prestar seus serviços.
O terceiro valor é o aprimoramento profissional: técnico e tec-
nológico. A autoridade marítima exige da praticagem a realização
de investimentos em infraestruturas (por exemplo, atalaias) e o
treinamento contínuo dos profissionais para que a segurança do
tráfego seja sempre maximizada de acordo com o estado da arte.
Aqui cabe, novamente, menção honrosa ao CONAPRA, entidade
que, por delegação da autoridade marítima, colabora com a
homologação de equipamentos utilizados na prestação dos serviços.
O quarto e último valor por nós identificado, e pedimos desculpas
antecipadas se esquecemos de algum e por isso falhamos em nos-
sos objetivos, é a negociação do preço. Embora alteração recente
da regulamentação possa sugerir uma diminuição da importância
desse valor construído ao longo dos anos, como vimos na palestra
anterior, a negociação continua a ser um valor importante na
eliminação de conflitos potenciais e serve para garantir que os
serviços continuem a ser prestados com o grau de excelência
exigido pela autoridade marítima brasileira.
Portanto, esses valores, identificados por nós, parecem ser os mais
relevantes e resultam de anos de experiência, constituindo a base
fundamental para que o bem tutelado, a segurança do tráfego
aquaviário, seja preservado. Qualquer alteração na regulação
desses valores fundamentais – e de outros que possam ter fugido
à nossa estreita compreensão – colocam em risco a segurança do
tráfego, o que contraria definitivamente o que a coletividade
espera da praticagem enquanto protagonista social.
Riscos da violação dos valores
Diante da brevidade desta intervenção, sem mais delongas, a
consequência óbvia de mudanças na regulação é um prejuízo
à prestação de serviços, que se pode traduzir de várias formas:
queda da qualidade dos serviços com a consequente ocorrência de
98
acidentes a ser suportados pela coletividade através do Estado;
desinteresse dos profissionais em exercer a profissão e abandono
e renúncia da função, com o perdimento de todo o investimento
realizado na formação desses profissionais; e aumento de litígios
entre os diversos protagonistas.
A violação dos valores pode ser desastrosa do ponto de vista
econômico, social, jurídico etc., transcendendo os protagonistas
diretamente envolvidos, atingindo toda a coletividade. Não nos
cabe aqui, num exercício apocalíptico, enunciar hipóteses. Cabe-
nos, porém, discorrer sobre uma consequência que conhecemos
bem: os litígios.
Os litígios que poderão surgir não dizem respeito somente a conflitos
entre o Estado e seus regulados (os práticos), que podem contestar,
no exercício do direito de ação, as alterações em si mesmas, mas
também entre a praticagem e os armadores, agências marítimas e
outros protagonistas, incluídas outras autoridades, como a portuária,
obviamente, a depender da alteração realizada. Vamos ao assunto.
Judicialização dos litígios
Nesse sentido, cabe ainda nesta apresentação, falarmos sobre o
risco de judicialização dos litígios em razão de modificações na
regulação, se essas forem implementadas sem critérios, estudos e
sem estar fundadas nos valores corretos. Não se imagina aqui
afirmar que a autoridade marítima ou qualquer outra autoridade
legal e legitimamente constituída não possa promover reformas no
que for necessário. Tal afirmação seria absurda, mentirosa e levia-
na. De qualquer forma, os apontamentos a fazer apenas pretendem
chamar a atenção de todos para o sério risco de modificar a
regulação sem considerar a consequência de criar litígios que
terminam por chegar ao Judiciário.
A regulação serve, entre outras coisas, para dar estabilidade, que
pode ser violada pelos poderes constituídos de forma imprópria;
sem as devidas ponderações, poderão e quase certamente serão
questionadas judicialmente.
Até mesmo projetos legislativos são levados ao conhecimento do
Judiciário, como recentemente a proposta de emenda constitucional
que pretendia restringir a criação e atuação de partidos políticos.
Mas nada disso é necessário. Há espaços para que a regulação
seja adaptada à realidade social e aos valores sem que isso impli-
que alteração normativa. Nem sempre as normas precisam ser
alteradas diante de novas realidades sociais. A interpretação ou
mais propriamente a valoração das normas da regulação pode
mudar completamente sua aplicação. O sistema, ao contrário do
que se possa pensar, não é estanque, muito menos inflexível,
exatamente porque depende da ponderação de valores quando da
aplicação da norma.
Exemplo prático disso era a aplicação do Código Civil 1916 que,
apesar de falar em pátrio poder, não restringiu ao homem o direito
de exercer certos direitos (e cumprir certas obrigações) perante a
prole. E não se diga que isso resulta da promulgação da Constituição
Federal de 1988, porque a igualdade entre os cônjuges fora
reconhecida antes pela sociedade, como medida de aplicação da
Justiça, segundo a modificação dos valores da sociedade brasileira
após a Segunda Guerra Mundial. Ou seja, a própria sociedade
reconhecia como justo tratar homens e mulheres como iguais, em
direitos e obrigações.
Ora, no mesmo sentido, os conflitos que eventualmente surgem
em relação à praticagem também podem ser resolvidos pela
aplicação das normas em vigor, segundo valores atuais.
A Lesta, o RLESTA e a Normam 12 apresentam-se hoje como a
síntese de uma construção histórica; foram aprimorados longa-
mente e não merecem, em absoluto, ser modificados, a menos
que essas modificações sejam estritamente necessárias para
correções pontuais.
Uma alteração normativa como houve na Argentina, desregulando
todo o setor, pode ser trágica para o todo, para a coletividade, que,
nessa hipótese, certamente demandará um “retrocesso”.
99
Nesse sentido, é importante observar que embora existentes, os
litígios sobre praticagem são pontuais e raros, o que apenas revela
a estabilidade da atividade e de suas normas, que resultaram de
longa construção cultural dessa regulação.
Breve comentário sobre o Poder Judiciário brasileiro
Em que pesem os esforços recentes para modernização e melhoria
do Poder Judiciário brasileiro, ele é deficiente em razão do enorme
número de processos e dos parcos recursos (material e humano)
disponíveis.
Diversos artigos, teses e dissertações foram publicados sobre a
tendência à judicialização dos conflitos no Brasil, especialmente
depois da Constituição Federal de 1988, que garantiu, diga-se,
corretamente, o livre acesso ao Judiciário e o pleno exercício do
direito de ação.
Segundo informado pelo Conselho Nacional de Justiça − CNJ, os
tribunais brasileiros em 2011 eram responsáveis por mais de 26
milhões de processos.10 É como se 10% da população brasileira
estivesse a litigar!
Portanto, não parece ser razoável colaborar para o aumento de
litígios e impor aos protagonistas os ônus e despesas de uma
demanda judicial quando as soluções para os conflitos podem
existir com a aplicação das normas existentes segundo os valores
sociais. O prejuízo é duplo: para a sociedade como um todo, que não
encontra um Poder Judiciário capaz de resolver todos os conflitos,
bem como para os protagonistas relacionados com a praticagem.
Formas alternativas de resolução de litígios
Há três formas possíveis para a resolução de litígios além da
judicial: a conhecida como composição, conciliação ou transação,
a mediação e a arbitragem.
A composição, conciliação ou transação é o acordo. Na nossa
experiência como advogados essa é a melhor forma porque as
partes, mediante mútuas concessões, resolvem pôr fim ao conflito.
Essa forma deve ser buscada sempre pelas partes envolvidas e
pela autoridade que regula os serviços. Como é dito corriqueira-
mente, mais vale um mau acordo do que uma boa demanda.
Contudo, nem sempre a composição é possível, e, por isso, é
necessário recorrer a outras formas de solução de conflitos.
A mediação no Brasil, por ausência de disposição legal, não obriga
as partes a aceitar o entendimento do mediador. As partes
apresentam suas demandas e suas defesas, e o mediador pode
simplesmente recomendar-lhes a adoção de uma determinada
solução, que pode muito bem ser ignorada pelas partes. Em outros
países, a decisão do mediador ou mediadores, normalmente
pessoa ou pessoas com prestígio entre ambas as partes, passa a
ser obrigatória.
Além da mediação há a arbitragem, forma de resolução de litígios
fora do Judiciário. As partes firmam compromisso arbitral,
normalmente presente em cláusula contratual, no qual se
comprometem e se obrigam a submeter a um árbitro ou tribunal
arbitral o litígio que eventualmente surja. O Poder Judiciário pode
não conhecer esse litígio, exceto em situações emergenciais, que
demandam medidas cautelares. Só podem ser objeto de arbitra-
gem litígios entre partes capazes e se o objeto tratar de direitos
patrimoniais disponíveis.11
Direitos não patrimoniais − por exemplo, algum assunto relativo a
menores em qualquer litígio de família − não podem ser objeto de
arbitragem. Da mesma forma o patrimônio público, que é indis-
ponível, não pode ser levado ao árbitro ou tribunal arbitral. Nesse
sentido, há uma parte reservada à competência do Poder Judiciário.
Espero ter colaborado de alguma forma para enriquecer o debate.
Obrigado.
10 http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2012/10/29/numero-de-processos-no-pais-cresceu-8-8-em-no-ano-passado.11 Conform art. 10 da Lei n0 9.307/1996.100
Estimados senhoras e senhores,
Nestes dois dias a praticagem brasileira, saindo do ‘silêncio’, o som da segurança que caracteriza nossa atividade, mostrou uma pequena parte de sua contribuição ao desenvolvimento nacional e à eficiência de nossa economia,
fazendo jus à tradição de superação do povo brasileiro. Dignos palestrantes evidenciaram que os profissionais práticos e toda a estrutura do serviço que suporta seu trabalho a bordo estão presentes na economia de todas
as nações. Sem destaque, mas suficientemente forte para caracterizar a importância de nossa atividade, foi a imagem de práticos pagando com a vida seus erros.
Os tempos de cruéis punições passaram. Hoje formam o grato folclore que emoldura a atividade no cotidiano da navegação segura em águas restritas ou marcada por fragilidades ambientais.
Ficou, no entanto, esclarecido que perduram a imprescindibilidade e importância que acompanham a praticagem desde tempos imemoriais. A expansão do comércio, a competitividade entre as nações
e as exigências sociais de segurança ambiental passaram, aliás, a exigir ainda mais eficiência e confiabilidade dessa atividade. Mostrou-se que sua regulação, mais do que necessidade, dado seu
caráter essencial, é a forma mais eficiente de o Estado disponibilizar esse serviço. E tivemos a oportunidade de vislumbrar os efeitos nefastos que podem ser verificados quando o Estado
abdica dessa regulação e espera que a ‘mão do mercado’ resolva todas as questões.
O seminário que ora se encerra apresentou aspectos relevantes da realidade brasileira, comparando-os à experiência internacional. Mostrou que o serviço de praticagem tem
importância capaz de merecer especiais atenções da ONU, por intermédio de seu órgão para assuntos marítimos, a Organização Marítima Internacional – IMO, que nos
prestigiou neste evento.
Mostrou que a praticagem no Brasil não apenas segue paradigmas internacionais de sucesso, mas se destaca como referência.
E quais são os paradigmas que verificamos nestes dois dias? Não custa lembrá-los, pois que estão presentes globalmente:
(a) estrutura única de praticagem em cada zona, compreendendo três elementos indissociáveis, organicamente organizados:
práticos, atalaia e lanchas;
(b) execução do serviço por profissionais, cidadãos que atuam no interesse público, adequadamente treinados,
habilitados perante o Estado e não concorrentes entre si;
(c) distribuição equitativa da carga de trabalho entre todos os práticos, como forma de garantir
a prestação ininterrupta do serviço e a inexistência de regimes de preferência, mas também
a manutenção de grau de perícia uniforme, sem fadiga;
(d) número de práticos limitado em cada zona;
101
Encerramento
(e) serviço remunerado pelos usuários, porém com subordinação dos práticos ao Estado, sem que ocorra vínculo empregatício entre práticos e usuários;
(f) existência de legislação específica sobre praticagem, com inclusão de mecanismos que permitam padrões adequados de eficiência ao longo do tempo, autonomia do serviço, atualização, reinvestimento e remunerações sustentáveis, desejavelmente sem ônus para o poder público.
Este seminário mostrou o preparo técnico e a contemporaneidade do serviço de praticagem. E nossa contribuição para o desempenho da economia nacional e do comércio exterior. Mostrou a essencialidade do serviço e o interesse público ao qual atende e se subordina.
Nada, porém, é perene ou perfeito. A Comissão Nacional para Assuntos de Praticagem criada pelo Decreto n0 7.860 de 06 de dezembro de 2012 representa o esforço de nosso governo, e da sociedade, em aperfeiçoar o serviço de praticagem no Brasil.
Vimos que esse tipo de processo de revisão, quando realizado em outros países, tomou anos de discussões, com diferentes especialistas e a participação dos maiores conhecedores da atividade de praticagem: os próprios práticos.
Também se evidenciou, em diversas apresentações, a importância do relacionamento entre as partes, mediante relação de confiança mútua, a fim de se evitarem assimetrias de informa-ções. Não podemos temer que isso seja interpretado como lobbying ou captura. Trata-se de legítima contribuição ao processo de tomada de decisão. Acreditamos que fizemos nossa parte, que demos nossa contribuição para a sensata discussão dos diversos aspectos dessa nobre atividade. A jornada de mil quilômetros começa com o primeiro passo...
Senhoras e senhores, a existência de praticagem regulamentada no Brasil iniciou-se em 1808. Apresenta níveis de eficiência comparáveis aos mais elevados registra-dos no concerto das nações. Coloca à disposição da sociedade brasileira experiência secular e consagrada, dentro de regulação bem-sucedida promovida pela autoridade marítima brasileira – a Marinha do Brasil.
Entramos no século 21 como serviço de ponta. Por certo, temos o que melhorar, mas devemos estar atentos para evitar experiências equivoca-das, particularizadas ou mesmo que representem aventura não testada. Não devemos correr riscos, acreditando que podemos criar modelos absolutamente originais para uma atividade que remonta a tempos babilônicos. O Brasil segue paradigma que é global e decorrente da evolução de ‘boas práticas’ milenares.
Grato pela atenção de todos e pela honra que suas presenças emprestaram a este seminário.
Ricardo Falcão
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Encerramento
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