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SABORES DO LITORAL: COMIDA E IDENTIDADE NOS
TERRITÓRIOS PESQUEIROS DE BREJO GRANDE/SE
HEBERTY RUAN DA CONCEIÇÃO SILVA1
RESUMO
A comida litorânea constitui um dos marcos expressivos para reflexão da identidade e do contexto sociocultural dos povos e indivíduos. Nas comunidades tradicionais do litoral Sergipano, os sabores identitários são conformados por meio das experiências íntimas dos homens com o meio ambiente, revelando múltiplas formas, saberes, fazeres, temporalidades e territorialidades no processo de constituição dos sabores. A proposta deste trabalho é identificar e refletir sobre os sabores que estão enraizado na identidade, nas práticas socioculturais e na memória dos sujeitos que vivem nos territórios tradicionais pesqueiros do município de Brejo Grande/SE. Para isso, nos embasamos nos seguintes pressupostos teóricos: Claval (2012), Menezes, (2015) (2017), Woortmann (2013), Vilá (2012), Castells (1999) para construção de reflexões sobre as dimensões socioespaciais da alimentação e Dardel (2011), que nos instiga a refletir sobre a perspectiva da experiencial entre o homem e a terra na constituição dos hábitos alimentares. O cabedal metodológico está vinculado a pesquisa qualitativa, com destaque para as seguintes instrumentais; revisão bibliográfica, para a coleta de dados primários, pesquisas de campo constituídas de roteiros de observação e entrevistas semiestruturada, coleta de relatos informais, registro e levantamento fotográfico, diário de campo, e degustação de iguarias locais. Neste sentido, observa-se que no ambiente costeiro os sujeitos sociais das comunidades tradicionais pesqueiras desenvolvem as suas dinâmicas de trabalho, isto é, práticas produtivas desempenhadas para a busca pelos alimentos que garante a reprodução social dos grupos familiares. Os alimentos indenitários dos territórios tradicionais pesqueiros de Brejo Grande são formados na correlação entre os produtos das águas e da terra. Das águas do mar, rios e lagoas são extraídos os peixes (robalo, bagre, curimã, camurupim, pescada, tainha, tilápia), camarões (de agua doce, salgada e viveiros) e crustáceos (siri, guaiamum, caranguejo, Aratu, dedo de velho, ostra). Da Terra são extraídas as frutas como o coco, caju, manga, jenipapo. Das áreas cultivadas a mandioca é o principal alimento produzido. Os consumos desses alimentos ocorrem de variadas formas, uma vez que são submetidos a temperos e cozimentos múltiplos, transformando-se em pratos típicos como as moquecas com leite de coco, fritadas de peixes e camarão ao alho e óleo, caldinhos, pirão, cocadas, bolos, queijadinhas, e também recheios para iguarias diversas. A biodiversidade de espécies comestíveis no litoral brejo-grandense contribui para a construção histórica, econômica e identitária da cultura alimentar das comunidades tradicionais pesqueiras, que possuem hábitos alimentares marcados por comidas de cores, aromas e sabores que consistem na combinação dos elementos cultivados e extraídos da restinga, rios e manguezais. PALAVRAS-CHEVE: Comunidades Tradicionais Pesqueiras, Comida, Identidade, Litoral.
ABSTRACT
The coastal food constitutes one of the expressive landmarks for reflection of the identity and the
sociocultural context of the people and individuals. In the traditional communities of the Sergipano coast,
the identity flavors are shaped through the intimate experiences of men with the environment, revealing
multiple forms, knowledge, actions, temporalities and territorialities in the process of constitution of
1 Acadêmico de mestrado do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador do Grupo de Estudo e Pesquisa Sobre Alimentos e Manifestações Tradicionais – GRUPAM.
flavors. The purpose of this work is to identify and reflect on the flavors that are rooted in identity,
sociocultural practices and the memory of the subjects living in the traditional fishing territories of the
municipality of Brejo Grande / SE. For this, we base ourselves on the following theoretical assumptions:
Claval (2012), Menezes, (2015) (2017), Woortmann (2013), Vilá (2012), Castells (1999) for constructing
reflections on the socio-spatial dimensions of food and Dardel (2011), which instigates us to reflect on
the experiential perspective between man and the land in the constitution of eating habits. The
methodological approach is linked to qualitative research, with emphasis on the following instruments;
bibliographic review, for the collection of primary data, field surveys consisting of observation itineraries
and semi-structured interviews, collection of informal reports, registration and photographic survey, field
diary, and tasting of local delicacies. In this sense, it is observed that in the coastal environment the
social subjects of the traditional fishing communities develop their work dynamics, that is, productive
practices performed for the search for food that guarantees the social reproduction of the family groups.
Indigenous food from the traditional fishing territories of Brejo Grande is formed in the correlation
between water and land products. From the sea waters, rivers and ponds are extracted the fish (sea
bass, catfish, hake, among others), shrimp (freshwater, salty and nursery) and crustaceans (crab, crab,
oyster, among others). From the Earth are extracted the fruits like the coconut, cashew, mango, genipap.
Of the cultivated areas, cassava is the main food produced. The consumption of these foods occurs in
a variety of ways, since they are subjected to multiple seasonings and cooking, turning into typical dishes
such as stews with coconut milk, fish fritters and garlic shrimp and oil, broths, coconut candy, cakes ,
and also fillings for various delicacies. The biodiversity of edible species in the Brejo-Grandense coast
contributes to the historical, economic and identity construction of the food culture of the traditional
fishing communities, which have alimentary habits marked by food of colors, aromas and flavors that
consist in the combination of the elements cultivated and extracted from the restinga, rivers and
mangroves
.KEYWORDS: traditional fishing communities, Food, Identity, Coast.
1- Introdução
A alimentação é um produto das relações humanas, e por esse motivo,
possuem relações que extrapolam as dimensões nutricionais do corpo (VILÁ, 2012),
e perpassa as dimensões culturais, econômicas e identitária dos indivíduos e sujeitos
coletivo.
O ato de saborear proporciona experiências capazes de provocar múltiplas
sensações aos indivíduos, que no contato com o gosto das comidas e bebidas, podem
promover o despertar da memória social construída fundamentada nas relações de
identidade de determinados grupos, que se reproduzem culturalmente nas mais
diversas regiões do planeta.
Na alimentação das comunidades tradicionais localizadas em regiões
litorâneas é comum a presença de elementos originário das práticas produtivas
desenvolvidas nos ambientes terrestres e marinhos, conformando uma culinária e
identidades alimentares baseadas na articulação dos sabores da terra e da água.
A proposta deste trabalho é de identificar e refletir sobre os sabores que estão
enraizado na identidade, nas práticas socioculturais e na memória dos sujeitos que
vivem nos territórios tradicionais pesqueiros do litoral do município de Brejo
Grande/SE. E justifica-se pela necessidade de valorização científica do conhecimento
tradicional vinculado a produção de comidas enraizadas nos hábitos alimentares.
Os procedimentos metodológicos se ancoram nos pressupostos da pesquisa
qualitativa e está composto por revisões bibliográficas acerca dos conceitos e
temáticas fundamentais que contribuem para a interpretação teórica da realidade
pragmática por nos pesquisadas. Desenvolvemos pesquisas de campo nas
comunidades e utilizamos instrumentais metodológicos como roteiros de observação
e entrevistas semiestruturadas acerca das práticas, saberes e sabores que envolvem
os alimentos, coleta de relatos informais, registro fotográfico, diário de campo no qual
anotamos informações estratégicas para interpretação pós-campo do fenômeno
estudado, e também a degustação de iguarias elaboradas na culinária local.
Neste artigo, tomamos como recorte espacial quatro comunidades tradicionais
quilombolas e pesqueiras do município de Brejo Grande, no estado de Sergipe, a
saber, Carapitanga, Santa Cruz, Saramem e Resina. As comunidades apresentam
estruturas sociais, culturais e econômicas que as singularizam na mesma medida em
que as unem e as tornam coesas.
Diante das palavras iniciais apresentadas, estruturamos esse trabalho a partir
do próximo item com reflexões teóricas e conceituais sobre as dimensões
socioculturais que permeiam a alimentação e sua relação com as práticas territoriais.
Em seguida apresentamos de forma breve as características socioeconômicas das
comunidades analisadas e posteriormente, destacamos os alimentos identitários
consumidos no cotidiano. Por fim teceremos reflexões finais.
2- Dimensões socioculturais da alimentação
O corpo humano é um sistema biológico que possui funcionalidades vitais que
constantemente precisam ser nutridas com os mais diversos tipos de substancias e
microrganismos. Não sendo autossustentável, a maior parte dos componentes
nutricionais do corpo se estabelecem com entrada de matéria e energia de
componentes externos. Ou seja, para se manter o corpo precisa ser alimentado.
A alimentação possibilita a transferência de matéria e energia ao corpo, por
meio de matéria orgânica, água e minerais, que se transformam em energia e
contribuem para manutenção, crescimento e conservação do organismo (CLAVAL,
2014). A fome é o sintoma mais comum da ausência do alimento, e motiva ações e
atividades que promovem a busca, produção e consumo desses.
A alimentação em quantidade e qualidade é essencial para reprodução das
espécies, de acordo com Porto-Gonçalves (2011) ela é a questão-chave para
evolução da vida e se desenvolve através de cadeias alimentares que permitem a
constituição dos hábitos e hábitats. Neste sentido, torna-se evidente que para além
do suprimento das necessidades físicas do corpo, os alimentos possuem dimensões
sociais e interfere na vida econômica, geopolítica e cultural dos povos.
Com base na dimensão cultural e econômica dos alimentos, Woortmann (2013,
p.6) considera que “toda cultura identifica, dentro do conjunto de alimentos disponíveis
em cada ecossistema, o que se deve e o que não se deve comer para cada pessoa e
estágio de seu ciclo de vida ou estado físico”. A escolha, tipologia, formas, cheiros,
cores, sabores e a decisão de como, onde e quando comer os alimentos são
particularidades culturais de cada povo.
No mundo, a diversidade cultural dos povos está enraizada em múltiplas formas
de organização social, crenças, pensamentos, signos e hábitos que
consequentemente rebatem em várias maneiras de produção e consumos dos
alimentos, que adquirem concepções, significados e representações materiais e
subjetivas para os sujeitos coletivos. Desta maneira, os alimentos se transformam em
símbolos culturais e delineiam as identidades individuais e coletivas.
Sobre a conformação das identidades, Castells (1999) assevera que é um
processo de construção social, permeado por fontes de significação que tem como
referência uma ou mais culturas, e prevalecem sobre outras fontes de significação.
Os significados, isto é, identificações simbólicas, são autossustentáveis no tempo e
no espaço.
Os alimentos são importantes fontes de significado e contribuem para
conformação das identidades culturais e simbólicas, permeando todas as etapas e
processos do desenvolvimento cultural, identitário individual e coletivo da sociedade,
seja nas atividades do cotidiano ou até mesmo em festividades e rituais.
No âmbito da significação simbólica dos alimentos, os indivíduos portam
subjetividades que evidenciam particularidades e peculiaridades no processo da
construção de sua identidade alimentar. Isso acontece porque “mesmo dentro de uma
mesma cultura, a pessoa seleciona, dentre a ampla gama de alimentos disponíveis,
aqueles que irá comer, gostar muito ou os que irá dispensar” (Woortman, 2013, p.9).
A seletividade individual de alimentos tem como base as sensações provocadas no
ato da degustação, quando se evidenciam os sabores, texturas e odores dos
alimentos, provocando múltiplas reações que variam de repulsa a prazer.
Mesmo com gostos e preferencias individuais e pessoais por determinados
tipos de culinária, pratos, comidas e alimentos, a identidade cultural alimentar do
sujeito sempre estará atrelada à determinadas culturas. De acordo com Vilá (2012) à
vontade individual de um sujeito e a tomada de decisões que conformam a sua
alimentação são guiadas por referências culturais.
Apesar dos sabores serem determinantes nas decisões e na construção da
identidade alimentar, cabe destacar também a interferência das condições
econômicas e financeiras do indivíduo e dos povos. Claval (2014) destacou que a
alimentação reflete as estruturas da sociedade, isto é, os que dispõem de poder e
altas rendas, possuem relações distintas com os alimentos em termos de qualidade e
abundância quando comparado aos de baixo poder aquisitivo.
A renda e o poder econômico diferenciado na sociedade possibilitam distintas
formas de acesso e consumo dos alimentos, mas os sabores, são os propulsores da
identidade alimentar individual e coletiva, pois além de impulsionar múltiplas
sensações no corpo, são capazes de ativar a memória e reconectar os sujeitos as
experiências e espaços já vivenciados aos quais possuem ligações de intimidade,
representatividade, simbolismo e identidade. Neste caso, evidencia-se a relação da
identidade alimentar com o meio.
A conectividade dos sujeitos com o seu meio ambiente são fatores
constituintes das culturas e identidades alimentares. Menezes (2015) entende cultura
alimentar como um conjunto de elementos conectados por relações de objetividade e
de subjetividade, que estão presentes nas atividades entre os homens com o meio e
os alimentos.
As experiências dos sujeitos com o meio ambiente através da mediação
alimentar evidenciam dimensões espaciais. Entendermos que as atividades humanas
para a busca, produção e consumo de alimentos são imbuídas não só de identidade,
mas de relações territoriais.
As práticas territoriais dos sujeitos se referem as suas multiplicidades de
ações e atuações no meio ambiente. Menezes (2013) interpreta que cada ação possui
significados para os indivíduos e suas culturas, e quando estas ações estão
relacionadas aos alimentos, comidas e ao paladar, nos possibilita a compreensão dos
aspectos culturais e econômicos que estão incutidos na formação dos territórios.
Assim, não podemos compreender o processo de construção da identidade
alimentar de um povo sem relacionar ao território ao qual pertencem. Woortmann
(2013, p.8) afirma que “a cozinha de um país ou região, está alicerçada a um território,
assim como a um espaço e utensílios de grupos ou coletividades que a mantiveram
no decorrer do tempo”. Destarte, o atributo territorial é marcado por laços históricos,
identirários e culturais dos povos.
Ao refletir teoricamente sobre o território, Almeida (2018) afirma que o ele é
formado por meio da convivialidade, isto é, pelas relações de convivência que
evidenciam relações políticas, simbólicas e culturais que ligam o homem à sua terra e
estabelecem as suas identidades culturais.
Desta maneira vislumbramos a formação de uma identidade alimentar
baseada na produção e consumo de alimentos pertencentes aos territórios
tradicionais pesqueiros com elementos e características marcantes da biodiversidade
litorânea.
3- O desvelar do litoral brejo-grandense
As regiões litorâneas do estado de Sergipe possuem particularidades em
relação a sua formação física e no histórico contexto da ocupação humana. As
características do solo, relevo, hidrografia e vegetação apresentam reflexos na
cultura, identidade, representações sociais e nos modos de vida dos sujeitos sociais.
As terras sergipanas são recortadas por oito bacias hidrográficas e seus rios
desaguam no oceano, formando na foz ambientes estuarinos. A biodiversidade
desses ambientes está associada a formação dos ecossistemas manguezais e
restinga, além de vastos e volumosos recursos hídricos, nos quais possibilitam
reprodução de espécies marinhas e terrestres.
As margens dos rios e estuários da costa sergipana é comum verificarmos a
presença de centros urbanos consolidados, à exemplo da capital Aracaju, mas,
também o estabelecimento de comunidades tradicionais que apresentam como lógica
de reprodução socioeconômicas as condições socioambientais de seus territórios de
vivência. As práticas identitárias e suas características históricas e culturais as
classificam como quilombolas, ribeirinhas, pesqueiras e camponesas, ou até mesmo,
assumem identidades múltiplas, que permeiam mais de uma das classificações,
situação recorrente no município de Brejo Grande.
Localizado no extremo nordeste do estado de Sergipe, o município de Brejo
Grande apresenta características hidrográficas marcada pela atuação dos regimes
dos rios e do mar compondo dinâmicas fluviomarinhas. Seus limites municipais são
delineados pelo leito meandrante e anastomizado do Rio São Francisco e da Costa
retilínea banhada pelo oceano Atlântico. A foz de tipologia deltaica é caracterizada
pela formação de um Sistema estuarino-lagunar que se estende para o interior do
município, possibilitando a formação de manguezais, rios, afluentes e ambientes
alagados.
As comunidades tradicionais de Brejo Grande estão inseridas no interior do
Sistema estuarino-lagunar, no entorno de rios e manguezais. Resina e Saramem
possuem ligação direta com o rio São Francisco pois se estabeleceram às suas
margens. Carapitanga está localizada no entorno de vastos manguezais e próxima ao
rio Parapuca, principal afluente do São Francisco no município. A comunidade de
origem quilombola Santa Cruz, está situada no entorno de áreas alagadas e
manguezais, além disso, é a única em que os sujeitos praticam a agricultura familiar,
pois seus grupos familiares possuem terras conquistadas no processo de
reconhecimento e assentamento da comunidade.
Na figura 01 analisamos um mapa que apresenta as características ambientais
da cobertura da terra no entorno das comunidades, com destaque para os
ecossistemas manguezais, restinga e recursos hídricos vultosos.
No ambiente costeiro apresentado, os sujeitos sociais das comunidades
tradicionais pesqueiras desenvolvem as suas dinâmicas de trabalho, isto é, práticas
produtivas desempenhadas para a busca pelos alimentos que garante a reprodução
social dos grupos familiares.
Figura 01 – Localização e uso da terra no entorno das comunidades tradicionais pesqueiras de Brejo
Grande. Organizado pelo autor (2019)
Neste contexto, é praticado a caça e pesca artesanal nos rios, mares e lagoas,
e o extrativismo e coleta de elementos da fauna e flora na restinga e manguezais. As
experiências atreladas às convivialidades na busca pelos alimentos remete as
relações de geograficidade, que de acordo com Dardel (2011),
Refere-se às várias maneiras pelas quais sentimos e conhecemos ambientes em todas as suas formas, e refere-se ao relacionamento com os espaços e as paisagens construídas e naturais, que são as bases e recursos das
habilidades do homem e para as quais há uma fixação existencial. (p.42)
As práticas produtivas possibilitam que os sujeitos criem estratégias de convívio
com a natureza, que com o passar do tempo, adquirem significados e
representatividades simbólicas socioculturais e econômicas, uma vez que a natureza
possibilita as condições da própria existência dos sujeitos e seus familiares.
As intimidades criadas pelos sujeitos com o seu meio ambiente através de suas
práticas produtivas resultam na conformação dos hábitos alimentares e da identidade
alimentar litorânea, baseada numa culinária diversificada com sabores da
biodiversidade costeira.
4- Comida e identidade nos territórios pesqueiros de Brejo Grande
Ao refletirem teoricamente sobre a produção e consumo dos alimentos
tradicionais, Menezes e Cruz (2017, p.35) enfatizam que nos alimentos estão
presentes “valores culturais, representações em torno das práticas de obtenção,
preparação e consumo de alimentos, aspectos que auxiliam na construção e
manutenção da identidade dos grupos culturais”. Tais valores e representações se
fazem presentes durante as etapas de obtenção, produção e consumos de comidas e
iguarias típicas nos territórios pesqueiros de Brejo Grande.
A comida identitária e cotidiana das comunidades tradicionais de Brejo grande
possuem ao menos quatro etapas e processos de produção: busca/obtenção;
Beneficiamento; Preparo; e consumo. Os principais elementos da culinária local são
delineados pela natureza local. Os rios São Francisco e afluentes oferecem aos
sujeitos biodiversidade de espécies de peixe, para que sejam capturados por meio da
pesca artesanal. Dos manguezais são coletados os crustáceos. A prática extrativista
também é desenvolvida na restinga com a coleta frutos. Nas áreas cultivadas são
obtidas leguminosas e tubérculos.
O processo de beneficiamento é caracterizado pelo tratamento dos produtos
alimentícios capturados na natureza. Nos peixes (robalo, bagre, curimã, camurupim,
pescada, tainha, tilápia) consiste em remoção das escamas, barbatanas, espinhos e
vísceras. Dos camarões são extraídos as cascas, patas e vísceras. Abertura das
conchas de ostras, maçunim, sururu e unha-de-velho para remoção da parte
comestível. A quebra do exoesqueleto é praticada com o Aratu e resulta na remoção
da carne que poderá ser utilizada em variados tipos de pratos. Ocorre também a
limpeza de crustáceos como guaiamum, caranguejo e siri, para que assim sejam
submetidos a cozimentos. No caso dos frutos, apenas o coco requer um
beneficiamento mais elaborado, que consiste na remoção da casca e quebra do
endocarpo para remoção da polpa. Das áreas cultivadas, a mandioca passa por
processo de remoção da casca e manipueira, para produção de derivados.
Após o beneficiamento os produtos são prioritariamente destinados ao
consumo familiar. Nas cozinhas e casas de farinha os alimentos adquirem pluralidade
de texturas, cores, cheiros e sabores atrelados as referências culturais e identitária
dos sujeitos. No quadro 01, apresentamos uma síntese dos alimentos adquiridos por
cada uma das práticas produtivas e os principais tipos de preparo para o consumo.
Quadro 01 – Produção e formas de consumo dos alimentos identitários em Brejo Grande.
Organização: o autor. Fonte: Pesquisas de Campo, 2018/2019.
Os consumos dos alimentos identitários ocorrem de variadas formas, são
submetidos a temperos, cocções e cozimentos. Os mais comuns são as moquecas
(figura 2), no qual peixes e mariscos são cozidos no leite do coco. As fritadas (figura
02) são preparadas com a imersão do filé de peixes e mariscos no óleo de coco
(produzido artesanalmente pelas comunidades) ou soja. Os cozidos (figura 02) na
agua e sal são comumente consumidos em bares, festas, como petiscos e tira-gostos
PRÁTICA PRODUTIVA PRODUTO ALIMENTÍCIO PRIMÁRIO
COMIDAS E IGUARIAS TIPICAS DERIVADAS
Pesca artesanal Peixes em Geral Fritadas, cozidos, moqueca, Pirão do caldo e recheios. Pesca artesanal - Cativeiro Camarão
Coleta Caranguejo Cozidos inteiros ou catados, Pirão do caldo da panela, Recheios para iguarias diversas.
Coleta Guaiamum
Coleta Siri
Coleta Aratu Cozidos inteiros ou catados, Pirão do caldo da panela, Moqueca do catado, Fritada do catado, Recheios para iguarias diversas
Coleta Ostra
Coleta Sururu
Coleta Maçunim
Coleta Unha de veio
Extrativismo Coco Cocadas, queijadinha, cachaça e óleo.
Extrativismo Caju Doce, cocadas, suco e cachaça.
Extrativismo Jenipapo Suco e cachaça
Extrativismo Cambuí Cachaça
Agricultura familiar Mandioca Farinha, beiju, tapioca e bolos.
e acompanham bebidas alcoólicas. O Pirão é uma mistura de caldo de cozimento com
Farinha frequentemente consumida durante o almoço. Os Doces mais comuns são
derivados do coco. As cocadas (figura 02) podem ser encontradas em três texturas
distintas e dezoito sabores diferentes.
Figura 02 – Culinária típica e identitária das comunidades pesqueiras de Brejo Grande
Fonte: Pesquisas de Campo 2018/2019
Conforme Woortmann (2013) a comida e os ingredientes envolvidos no preparo
constituem linguagem e falam. Com base na reflexão da autora, interpretamos que as
cores, odores, sabores, texturas e aparência da comida remete a relações histórias,
representativas e identitária dos sujeitos envolvidos no processo de obtenção,
produção e consumo. A cocada, a moqueca, a fritada e o cozido de aratu representam
os aspectos da identidade alimentar litorânea atrelada ao território pesqueiro de Brejo
Grande.
As práticas de obtenção, beneficiamento, produção e consumo dos alimentos
são permeadas pelo saber fazer dos sujeitos, reflexo do modo de vida tradicional no
relacionamento existencial dos sujeitos sociais com a atividade pesqueiras. Os
alimentos resultantes desse processo integram as territorialidades que permitem a
perpetuação dos hábitos, saberes e sabores litorâneos.
A partir das reflexões apresentadas neste trabalho apresentaremos algumas
considerações finais.
5- Considerações finais
Os alimentos identitários das comunidades tradicionais pesqueiras de Brejo
Grande estão relacionadas as relações intimas que liga os sujeitos a natureza por
meio das práticas produtivas da caça, pesca, extrativismo e coleta. Relações que
marcadas por geograficidades e elos existenciais.
A biodiversidade de espécies comestíveis no litoral brejo-grandense contribui
para a construção histórica, econômica e identitária da cultura alimentar das
comunidades tradicionais pesqueiras, que portam hábitos alimentares marcados por
comidas de cores, aromas e sabores que consistem na combinação dos elementos
cultivados e extraídos da restinga, rios e manguezais.
As comidas buscadas, cultivadas, produzidas e consumidas no cotidiano das
comunidades tradicionais pesqueiras conformam representatividades simbólicas para
os sujeitos, que interpretam a culinária local como elemento central da sua identidade
e cultura. A comida aproxima os sujeitos e atraem indivíduos externos aos territórios.
É oportuno destacar que os hábitos alimentares dos sujeitos não são
compostos exclusivamente por alimentos da natureza local. Os alimentos
industrializados originados de diversas partes mundo fazem parte do consumo
cotidiano, entretanto, não possuem representatividade simbólica e identitária na
mesma medida que os alimentos da Terra. Além disso, não tem o mesmo poder de
conectar os indivíduos ao seu território de vivência através do sabor e da memória.
Agradecemos a Fundação de Apoio à Pesquisa e a Inovação Tecnológica do
Estado de Sergipe (FAPITEC/SE), pelo apoio financeiro por meio de concessão de
bolsa de mestrado, e pelo seu relevante papel no fomento ao desenvolvimento
científico no estado.
6- Referências
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