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Safatle - Introducao a Adorno (Curso)
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Curso Introdução à experiência intelectual
de Theodor Adorno
14 aulas
Primeiro semestre de 2013
Professor: Vladimir Safatle
Ministrado no Departamento de Filosofia
Universidade de São Paulo
Para introduzir a experiência intelectual de Theodor Adorno
Aula 1
“Ao final de um dia de esperança brutal e de profunda depressão: eu estava ao ar
livre, sob um céu de escuridão indescritível e furiosamente carregado. Ele
portava a expressão de uma catástrofe iminente. De repente, uma luz, como um
relâmpago, aparece em um ponto e desaparece rapidamente abaixo ou acima das
nuvens. Digo: é a tempestade, e alguém me confirma. Segue um longo barulho
indescritível, mais próximo de uma explosão do que de um trovão; não acontece
nada mais do que isto. Pergunto: é tudo? e isto também me foi confirmado.
Ainda sob grande emoção, mas ao mesmo tempo tranqüilizado, acordo.
Estávamos no meio da noite. Retomei tranquilamente meu sono”1.
Adorno tinha o hábito de anotar alguns de seus sonhos. Este é um deles, datado
de 24 de janeiro de 1956. A sua maneira, ele descreve algo de fundamental na
experiência intelectual deste que é, sem dúvida, um dos filósofos mais importantes do
século XX. Gilles Deleuze tinha o hábito de afirmar que o verdadeiro pensamento era
sempre solidário de um acontecimento que nos força a pensar, algo que tem a força de
nos retirar do solo seguro do senso comum a fim de nos levar à confrontação com o que
não se submete aos esquemas categorias que colonizam nossa linguagem ordinária. Não
seria difícil mostrar como esta concepção do pensar como resposta ao choque do
acontecimento está na raiz da experiência intelectual adorniana.
Neste sonho, há um choque. Na verdade, um choque que aqui não deixa de se
servir da figura romântica da potência colossal da natureza, força monumental capaz de
colocar o pensar diante do que produz uma certa violência contra o poder
esquematizador da imaginação. A contemplação da tempestade furiosa, portadora de
escuridão indescritível e de um longo barulho aterrador sem forma é uma figura
privilegiada que encontramos quando Kant fala do sublime dinâmico da natureza. Força
sublime que, ao ser contemplada de um ponto seguro, nos faz descobrir uma “potência
de resistência” (Vermögen zu widerstehen) capaz de elevar as forças da alma
(Seelenstärke) para além da onipotência aparente da natureza (scheinbaren Allgewalt
der Natur)2.
“Pergunto: é tudo?”, diz Adorno; um pouco como quem diz: então posso me
colocar diante de tal força sem me destruir!? Não deixa de ser desprovido de interesse
lembrar aqui desta passagem da Odisséia, tão cara a Adorno, onde Ulisses pede a seus
marinheiros que o atem ao mastro de seu navio para que ele possa ouvir o canto das
sereias sem com isto deixar-se afogar em busca da beleza. Como se o verdadeiro pensar
fosse isto: uma aproximação arriscada com o que parece ter a força de nos destruir, de
destruir uma certa imagem do que o homem é:
“As aventuras de que Ulisses sai vitorioso são todas elas perigosas seduções que
desviam o Eu da trajetória de sua lógica. Ele cede sempre a cada nova sedução,
experimenta-a como um aprendiz incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido
1 ADORNO, Theodor; Traumprotokolle, 24 de janeiro de 1956 2 Ver, KANT, Immanuel; Kritik der Urteilskraft, Feliz Meiner, Hamburgo, 2006, par. 28
por uma tola curiosidade, assim como um ator experimenta insaciavelmente os
seus papéis. “Mas onde há perigo, cresce também a salvação”: o saber em que
consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substância da
experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que desvia, que dissolve, e o
sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais audaciosamente
à ameaça da morte, na qual se torna duro e forte para a vida”3.
Digamos pois que vale para Adorno aquilo que ele mesmo escreveu sobre
Ulisses: a verdadeira experiência (e que não poderia deixar de dizer respeito também a
toda experiência filosófica verdadeira) é a experiência do sobrevivente, deste que se
expõe mais audaciosamente a uma certa forma de ameaça. Experiência daquele que
“ainda sob grande emoção, mas ao mesmo tempo tranqüilizado” pode retomar seu sono
porque sabe que o sono não será mais fundado sob o esforço obsessivo em tentar calar
um saber a respeito do qual nos seria insuportável assumir.
A filosofia e seus exteriores
Estas colocações iniciais podem ser úteis para balizar uma discussão sobre o
sentido do que poderíamos chamar de “experiência intelectual” ou, mais propriamente,
de “experiência filosófica” (philosophischer Erfahrung): termo que será objeto maior da
Introdução à Dialética negativa; talvez o livro mais importante de Adorno, juntamente
com a Teoria estética. Pois devemos começar dizendo que uma experiência filosófica é
a modulação incessante e rigorosa de uma única questão desdobrada em todas as suas
conseqüências. Façamos nossa a afirmação de Deleuze: “Na verdade, uma teoria
filosófica é uma questão desenvolvida e nada mais que isto: por ela mesma, nela
mesma, ela consiste, não em resolver um problema, mas em desenvolver até o fim as
implicações necessárias de uma questão formulada”4. Ou seja, cada filosofia é animada
por uma forma de questão capaz de gerar tanto uma série determinada de problemas
quanto uma dimensão de pressupostos tacitamente implícitos e não-problematizados
que fornece o campo de enunciação de uma problemática filosófica. Por trás de seus
inumeráveis desenvolvimentos e escritos, um filósofo no fundo sempre trabalha uma só
questão.
Esta questão, por sua vez, pode ser avaliada. Ela pode ser boa ou má, o que
indica que ela é passível de qualificação. Podemos fornecer uma proposição provisória a
afirmar que uma questão filosófica será boa ou má quando mensurada ao conteúdo de
verdade do acontecimento que a gera. Toda questão filosófica é necessariamente
vinculada a um acontecimento histórico, ela é a ressonância filosófica de um
acontecimento. Assim, a filosofia cartesiana é solidária do impacto filosófico da física
moderna. A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como fruto das aspirações
emancipadoras da Revolução Francesa. Mas, e a filosofia adorniana? Qual é a questão e
qual o acontecimento que geram a filosofia adorniana?
Antes de responder tais perguntas, vale a pena lembrar como o problema da
unidade da experiência filosófica adorniana guarda dificuldades suplementares. Pois
poucos foram os filósofos do século XX que se aplicaram de maneira tão sistemática em
embaralhar os limites da filosofia como disciplina universitária. Uma rápida passada de
olhos por suas Obras completas indica uma configuração extremamente peculiar. De
vinte volumes, oito dizem respeito a textos sobre estética musical, dois sobre crítica
3 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max; Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1991, p. 56 4 DELEUZE, Gilles, Empirisme et subjectivité, Paris: PUF, 6 ed., 1998, p. 118
cultural e literatura, dois estritamente sobre sociologia. Esta aparente dispersão de
interesse já foi objeto de várias tentativas em privilegiar certos momentos da
experiência intelectual adorniana afirmando, por exemplo, que os textos filosóficos têm
predominância em relação aos textos musicais, que a guinada sociológica teria
permitido à Teoria Crítica instalar-se em um “para além da filosofia”, entre outras
interpretações inumeráveis.
De minha parte, gostaria de partilhar um postulado fundamental de leitura: uma
verdadeira experiência filosófica é radicalmente una na multiplicidade de suas vozes.
Neste sentido, é absolutamente incorreto ler um filósofo da mesma maneira que um
açougueiro olha para um boi, ou seja, pensando inicialmente em como separar as partes
e quebrar as juntas. Devemos lê-lo respeitando a necessidade de todos os seus
momentos, perguntando-se pelas articulações internas entre textos que parecem
pertencer a áreas tão diversas entre si quanto podem ser, no caso de Adorno, a pesquisa
social empírica, a estética musical, a reflexão sobre a tradição filosófica, a crítica
literária, o estudo das mídias e a sociologia das idéias.
Este é um ponto importante se quisermos levar em conta o regime de recepção
do pensamento de Adorno no Brasil. Data do começo dos anos setenta o começo do
interesse pela Escola de Frankfurt no Brasil. Colaborou para isto a tradição marxista
solidamente implantada na universidade brasileira e a acolhida restrita que o marxismo
francês de Althusser teve entre nós. A Escola de Frankfurt aparecia como uma corrente
não dogmática do marxismo ocidental, com larga força de influência no campo da
crítica da cultura e da análise das sociedades do “capitalismo tardio”. Por outro lado, tal
recepção ocorreu no momento em que a universidade brasileira passava pela
constituição de suas estruturas de mestrado e doutorado. Como resultado, alguns
campos de saberes, como os estudos de comunicação, institucionalizaram-se ao mesmo
tempo que a Escola de Frankfurt fazia sua entrada no meio universitário. Desta forma,
ela se transformou rapidamente em referência importante para a vida acadêmica
nacional.
No entanto, a disponibilização dos textos de Adorno para o público brasileiro
ainda é limitada. Além da ausência de traduções de obras centrais, como a A
personalidade autoritária, Jargão da autenticidade, Três ensaios sobre Hegel, Para
uma metacrítica da teoria do conhecimento, devemos lembrar que a quase totalidade
dos textos e monografias sobre música até hoje não foram traduzidos. Isto tende a
produzir uma recepção que acaba por privilegiar certos momentos e questões devido,
entre outras coisas, à dificuldade de acesso a certas partes da produção adorniana. Por
outro lado, estudar alguém como Adorno, cuja multiplicidade de campos de análise está
articulada, de maneira peculiar, em um projeto comum, exige a reconstrução sistemática
de tal articulação, sob a pena de ignorarmos, por exemplo, como a estética musical pode
fornecer resposta para problemas que aparecem pela primeira vez nos textos de
filosofia, como a teoria social organiza previamente o campo de intelegibilidade que
será colocado em operação na crítica literária, etc.
Tal característica nos coloca diante de uma questão de método da mais alta
importância. Pois é possível que Adorno nos mostre como há certas questões em
filosofia que só podem ser abordadas de maneira adequada a partir do momento que
somos capazes de forçar a sistematicidade do discurso filosófico, a partir do momento
que obrigamos tal discurso a deparar-se continuamente com seus limites e misturar-se
com aquilo que lhe era aparentemente estranho. Forçagem que impediria a filosofia de
se transformar naquilo que um dia Foucault chamou de: “Perpétua reduplicação de si
mesma, em um comentário infinito de seus próprios textos e sem relação a exterioridade
alguma”5. Comentário infinito que nos levaria necessariamente à simples textualização
de práticas discursivas. È desta forma que devemos compreender afirmações maiores
como:
“Plenitude material e concreção dos problemas é algo que a filosofia só pode
alcançar a partir do estado contemporâneo das ciências particulares. Por sua vez
a filosofia não poderia elevar-se acima das ciências particulares para tomar delas
os resultados como algo pronto e meditar sobre eles a uma distância mais segura.
Os problemas filosóficos se encontram continuamente e, em certo sentido,
indissoluvelmente encerrados nas questões mais determinadas das ciências
particulares”6.
Tal forçagem vinda da confrontação entre filosofia e “ciências particulares”
empíricas, por sua vez, é capaz de nos indicar que talvez existam objetos que só podem
ser apreendidos na interseção entre práticas e elaborações conceituais absolutamente
autônomas e com causalidades próprias. Os momentos mais importantes da história
contemporânea da filosofia estão prenhes de tais estratégias. Por exemplo, quando Marx
pensa o problema da produção da aparência, ele só pode pensá-lo ao construir um ponto
de cruzamento entre a análise do processo de determinação social do valor das
mercadorias no capitalismo e a reflexão lógica sobre a dialética entre essência e
aparência a partir de Hegel. Estas duas séries de saberes são autônomas e irredutíveis,
uma não depende nem é a “aplicação” da outra (o problema da determinação social do
valor é da ordem da economia política e sua causalidade é economicamente
determinada). Mas tais séries devem se cruzar para que um certo objeto possa ser
apreendido. E elas devem se cruzar no interior do texto filosófico. Só a elaboração
conceitual sobre a dialética essência/aparência ou só a análise econômica do problema
do valor da forma-mercadoria não seriam capazes de apreender o “acontecimento” que
está em jogo no pensamento de Marx.
O mesmo vale para Adorno. Ao iniciar sua vida como professor universitário, o
jovem Adorno proferiu, em 1931, uma aula magna que não deixava de começar de
maneira sintomática:
“Quem escolhe atualmente por ofício o trabalho filosófico, deve renunciar desde
o começo a ilusão que inicialmente animava os projetos filosóficos: a de que
seria possível apreender (ergreifen) a totalidade da realidade (Wirklichen)
através da força do pensamento”7.
Esta consciência, historicamente enraizada, do descompasso entre exigências de
sistematicidade do pensamento e uma realidade que parece resistir à possibilidade de se
deixar formalizar como totalidade é o motor que levará Adorno a constituir a
configuração de sua própria experiência intelectual. Pois devemos colocar a questão: o
que deve ser uma filosofia que duvida da possibilidade de apreender a totalidade da
realidade através da força do pensamento com seus esquemas categoriais de
estruturação do campo da experiência? O que deve ser esta filosofia a não ser um
movimento incessante de confrontação com a autonomia dispersiva dos campos
empíricos e autônomos do saber e de retorno a si a partir do impacto de tal experiência?
5 FOUCAULT, Michel; Dits et écrits, Pairs, Quarto, 1984, p. 1152 6 ADORNO, Thedor, Die Aktualität der Philosophie In: Gesammelte Schriften I, Digitale Bibliotheke
Band 97, 2000, p. 334 7 ADORNO, ibidem, p. 325
Uma filosofia que mede a todo momento a distância entre tais campos empíricos e o
caráter constituinte da elaboração conceitual. Medida esta que vai ao poucos
configurando a sistematicidade do próprio texto filosófico, seja através da interferência
constante de elaborações vindas das ciências empíricas na economia textual da reflexão
filosófica, seja através da necessidade cada vez mais premente do texto adotar um estilo
fragmentário, elíptico, como se girasse em torno de algo que só pode ser exposto através
de suas resistências (daí o privilégio adorniano pela forma ensaio, pelo uso de aforismas
[como em Mínima moralia] e pela escrita “não monográfica” [como na Dialética
Negativa e na Teoria estética]). Um texto cujas categorias centrais serão forjadas
exatamente para dar conta, para construir o nome próprio da resistência, às totalizações
apressadas do pensamento, do que se oferece como real.
Uma teoria do sujeito
Neste ponto, talvez já possamos dar uma resposta provisória ao problema
relativo à questão central que baliza a experiência filosófica de Theodor Adorno. Pois
Adorno forneceu um nome para este movimento no interior do qual o caráter
constituinte da elaboração conceitual confronta-se com uma resistência que vem da
reflexão empírica e tem o estatuto de algo real que afeta o pensamento: sujeito.
Podemos mesmo dizer que, do início até o fim, a filosofia adorniana não será outra
coisa que uma complexa teoria do sujeito que procura desdobrar suas conseqüências
nos campos da reflexão sobre a teoria do conhecimento, a estética, a moral e a teoria
social. Ou melhor, uma teoria do sujeito que só pode se configurar através das
passagens da filosofia em direção a campos empíricos do saber. Não seria difícil
mostrar que, neste ponto, Adorno acaba por mostrar sua profunda solidariedade com a
tradição dialética inaugurada por Hegel, já que a filosofia de Hegel é, a sua forma,
também uma longa elaboração a respeito da reconstrução possível da categoria de
sujeito. Uma construção que também exige a dispersão conceitual do fazer filosófico.
No entanto, uma colocação desta natureza pode parecer estranha. Pois à pergunta
sobre o que é o sujeito, nós normalmente oferecemos uma resposta como: sujeito é uma
entidade substancial, ou seja, idêntica a si mesma e capaz de auto-determinar sua
própria essência. Na modernidade, sujeito tende a se confundir com termos como
“consciência” já que tendemos a atribuir ao sujeito as mesmas determinações da
consciência, a saber, a autonomia potencial das ações e condutas que leva à
imputabilidade da pessoa jurídica, a unidade coerente das representações e da
personalidade, a capacidade reflexiva do pensar, entre outros. Ou seja, autonomia,
imputabilidade, reflexividade, unidade e identidade nos aparecem normalmente como
atributos básicos de toda e qualquer noção de sujeito.
O que veremos em Adorno, no entanto, será um esforço sistemático para
repensar todas estas categorias, isto a fim de elaborar uma noção de sujeito onde a
identidade dê lugar à não-identidade e à clivagem, onde a reflexividade abra espaço ao
reconhecimento da racionalidade do que não é imediatamente conceito. Na verdade,
trata-se de constituir um conceito de sujeito capaz de servir de fundamento à crítica à
noção hegemônica de subjetividade. Projeto que Adorno enunciou ao afirmar querer:
“Com a força do sujeito, quebrar a ilusão (Trug) da subjetividade constitutiva”8. Para
tanto, ele precisará operar recursos massivos a campos empíricos do saber como a
psicanálise e a sociologia.
8 ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt: Suhrkamp, 1975, p. 10
Notemos ainda que a problematização do conceito moderno de sujeito é um dos
tópicos mais recorrentes na filosofia do século XX. Tudo se passa como se o
pensamento contemporâneo tomasse consciência de que as expectativas emancipatórias
da razão, estas expectativas que prometiam ao homem sair de sua minoridade e, como
dizia Descartes, ser “senhor da natureza” haviam produzido o inverso daquilo que era
seu conceito. Uma inversão da emancipação em dominação de si que não deixava de
estar ligada ao destino deste conceito que serve de fundamento à racionalidade
moderna: sujeito. Pois não foram poucos aqueles que insistiram na questão: quanto
devemos pagar para que a unidade, a autonomia, a transparência e a identidade do
sujeito possam se impor enquanto realidade? O que deve acontecer com a experiência
de nós mesmos para que ela possa ser vista como campo que se submete a tais
categorias? E o que acontece com a experiência do mundo quando o fundamento da
experiência é um sujeito pensado a partir destes atributos? Podemos dizer que tais
questões são a base de um dos livros centrais de Adorno: a Dialética do Esclarecimento.
De fato, elevar tal experiência de si à condição de problema é algo que
necessariamente traz conseqüências profundas. Pois a maneira com que compreendemos
a categoria de sujeito não poderia de deixar de ter conseqüências na maneira com que
definimos o que é um objeto da experiência, quais as condições para que algo aceda à
condição de objeto. Ou seja, trata-se da compreensão de que toda verdadeira crítica da
razão tem seu solo na crítica àquilo que serve de fundamento às operações de
categorização e de constituição do objeto de experiências que aspiram preencher
critérios racionais de validade.
Neste sentido, devemos estar atentos, por exemplo, para o fato de boa parte das
operações críticas da Dialética do Esclarecimento visarem demonstrar como o processo
de constituição do Eu moderno, com suas exigências de auto-identidade imediata e de
auto-determinação, significou a submissão de toda experiência possível ao primado da
identidade e da abstração. Assim, por exemplo, se Adorno precisa insistir tanto na
necessidade do pensamento racional denegar toda força cognitiva da mimesis (tema
maior do advento da razão moderna no qual se vinculam a degradação do pensar por
imagens e a crítica da força cognitiva da semelhança e da analogia), é porque se trata de
sustentar: “a identidade do eu que não pode perder-se na identificação com um outro,
mas [que] toma possessão de si de uma vez por todas como máscara impenetrável”9.
Pois a identidade do Eu seria dependente da entificação de um sistema fixo de
identidades e diferenças categoriais.
A projeção de tal sistema sobre o mundo é exatamente aquilo que Adorno e
Horkheimer chamam de “falsa projeção” ligada à dinâmica do narcisismo e as
processos de categorização do sujeito cognoscente10, já que, em última instância, a
categorização seria uma projeção do princípio de identidade do Eu na síntese do diverso
da intuição em representações de objetos da experiência. Mesmo a compreensão da
cognição como assimilação do objeto através de uma rememoração (Erinnerung) capaz
de internalizar as cisões que a própria consciência teria produzido não escapará dos
motivos da crítica frankfurtiana. Neste momento, valem para Adorno e Horkheimer a
afirmação de um filósofo que, em vários momentos, cruzou o caminho dos
frankfurtianos através de uma crítica da razão como modo de dominação técnica do
mundo e de si, Martin Heidegger: “nos parece que, em todo lugar, o homem só encontra
9 ADORNO e HORKHEIMER, ibidem, p. 24 10 Neste sentido, sigamos a afirmação: “Sempre que as energias intelectuais estão intencionalmente
concentradas no mundo exterior (...) tendemos a ignorar o processo subjetivo imanente à esquematização
e a colocar o sistema como a coisa mesma. Como o pensamento patológico, o pensamento objetivador
contém a arbitrariedade do fim subjetivo que é estranho à coisa” (idem, p. 180)
a si mesmo. Heisenberg teve plena razão ao dizer que, para o homem de hoje, o real
(Wirklichen) não pode parecer de outra forma”11.
Assim, toda boa leitura de Adorno deve tentar compreender como ele foi capaz
de constituir uma crítica do sujeito moderno que, ao mesmo tempo, colocou-se como
afirmação de uma teoria renovada da subjetividade, de uma teoria do sujeito
independente das temáticas ligadas à filosofia da consciência12.
Por outro lado, trata-se de demonstrar como, no interior da experiência
intelectual adorniana, estas temáticas próprias à reflexão sobre o estatuto de um
conceito filosófico, como sujeito, servirão de base para o desenvolvimento de uma
complexa crítica social do capitalismo avançado. É este movimento fundamental entre
crítica da razão, crítica do sujeito e crítica social que interessa a Adorno. Como
conceitos filosóficos, ao mesmo tempo, fundamentam a crítica social e se configuram a
partir dela, ou seja, são gerados pela situação social mas, ao mesmo tempo, fornecem a
perspectiva que fundamenta a crítica à esta mesma situação? Como o que nasce no
interior de uma situação pode servir de ponto de fuga, como perspectiva que me permite
criticar esta própria situação? Como se dá esta passagem tensa entre filosofia e teoria do
capitalismo? Como é possível, por exemplo, articular a crítica do sujeito como locus da
identidade imediata e a compreensão de que: “a ideologia é a forma originária da
ideologia”13? Todas estas questões só podem ser respondidas através de uma leitura
atenta do texto adorniano.
Indústria cultural e crítica da cultura
É tendo em vista os problemas gerados no interior do projeto de constituir uma
teoria do sujeito onde este não apareça como peça maior de uma metafísica da
identidade que podemos abordar o sentido de uma das elaborações mais conhecidas de
Adorno, a saber, o conceito de “indústria cultural”. Ele visa preencher duas funções.
Primeiro, trata-se de mostrar como a esfera da cultura de massa transformou-se
no núcleo dos processos de socialização e de formação de individualidades. Desde os
anos 30, o Instituto de Pesquisas Sociais desenvolvia pesquisas a respeito das
modificações estruturais na esfera da família devido à desagregação da autoridade
paterna. Neste contexto, eles insistiam que processos anteriormente vinculados ao
núcleo familiar tendiam a ser operados pelo setor mais economicamente organizado da
cultura.
Segundo, trata-se de mostrar como a produção cultural transformou-se no setor
mais avançado da produção econômica. Neste sentido, o conceito de “indústria cultural”
não visa apenas mostrar as mutações pelas quais a cultura passou na sociedade
industrial, mas também como a cultura transformou-se em peça fundamental do
processo de auto-valorização do Capital. A sua maneira, Adorno já indicava a mutação
do capitalismo em “capitalismo cultural”, ou seja, capitalismo onde a cultura
desempenha papel econômico decisivo.
Mas vejamos com mais calma a primeira função. Adorno acredita que a
indústria cultural constituiu-se como poder unificador da dinâmica de funcionamento
das esferas sociais e como processo de submissão da diversidade à lógica da identidade.
11 HEIDEGGER, Martin; Essais et conférences, p. 35 12 Um belo exemplo deste trabalho nos é fornecido por DEWS, Peter, Adorno, pós-estruturalismo e
crítica da identidade In: ZIZEK, Slavoj, Um mapa da ideologia, Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, pp.
51-71. Tomo a liberdade de também remeter ao meu: SAFATLE, Vladimir; Espelhos sem imagens:
mimesis e reconhecimento em Lacan e Adorno, Revista Trans/form/ação, vol. 28 (2), 2005, pp. 21-47 13 ADORNO, Negative Dialektik, op. cit., p. 151
Para tanto, foi inicialmente necessário que ela se constituísse como sistema unificado de
produção. Cinema, rádio, revistas: todas essas mídias devem estar submetidas à mesma
lógica de produção e aos mesmos detentores. Uma oligopolização que se acentou com o
passar do tempo.
Por outro lado, esta natureza oligopolista implica necessariamente padronização
e estereotipia. Esta padronização exige que a produção seja uma montagem de clichês
que devem ser facilmente reconhecidos para que a segurança advinda da capacidade em
reconhecer o que sempre volta ao mesmo lugar seja garantida. Daí porque Adorno e
Horkheimer falarão que o primeiro serviço fornecido pela Indústria Cultural ao
consumidor seria o “esquematismo”. Esta é uma maneira de atualizar a afirmaçao de
Marx, para quem a produção cria um necessariamente sujeito para o produto. Neste
sentido, Adorno chega mesmo a afirmar que a atitude do público já seria parte do
sistema. Vem da força do sistema sua capacidade de organizar a sociedade através de
uma rede de diferenciais e targets prontos para a identificação. Desta forma, Adorno
pode insistir que os processos de identificação presentes nos produtos da comunicação
de massa seriam negações simples da singularidade ou, se quisermos, da não-identidade
dos sujeitos.
Vários criticarão Adorno por ele parecer, com isto, acreditar que o processo de
recepção não seria uma atividade criativa, mas simplesmente a confirmação de padrões
postos e manipulados pela Indústria Cultural. Mas notemos um ponto importante que
faz uma grande diferença. De uma certa forma, Adorno não acredita que a função da
Indústria Cultural consista simplesmente na imposição do mesmo e na promessa
reiterada de satisfação imediata. É mais correto dizer que, para Adorno, a força da
Indústria Cultural vem da sua capacidade em administrar o desencanto com a própria
Indústria Cultural, em gerir a insatisfação. Adorno insiste várias vezes que a Indústria
Cultural já produz produtos que visam dar forma, expressar o desencantamento com os
próprios estereótipos fornecidos por ela mesma14. Como se o verdadeiro cerne do poder
não estivesse na imposição de padrões de condutas, mas na gestão de suas margens.
Neste sentido, se é verdade que a atitude do público já seria parte do sistema, é porque
desencanto do público com os padrões da Indústria Cultural é o verdadeiro motor do
processo. Nada dá mais dinheiro à Indústria Cultural do que produtos que expressam o
desencanto com a própria Indústria Cultural. Maneira astuta de perpetuar conteúdos de
identificação que não exigem mais assentimento.
Um acontecimento gerador
Mas voltemos ao nosso problema inicial, até porque, de uma certa forma, ela também
está ligada ao debate da cultura no século XX. Se a questão que fornece a consistência
da filosofia adorniana diz respeito à possibilidade de pensar um sujeito que não seja
mais a entificação dos princípios de identidade, unidade e auto-determinação, questão
esta que recebe sua forma canônica através do imperativo de, com a força do sujeito,
quebrar a ilusão da subjetividade constitutiva, então devemos ainda nos perguntar: qual
o acontecimento que gera esta questão? Qual é o acontecimento histórico a respeito do
qual a filosofia de Adorno será sempre fiel e a partir do qual ela medirá seu
desenvolvimento?
Pôr tal pergunta parece-me algo importante porque normalmente ela é
respondida de maneira equivocada. Não são poucos aqueles que dirão que a filosofia de
Adorno é marcada, sobretudo, por Auschwitz, isto a ponto dela estabelecer como
14 Neste sentido, tomo a liberdade de remeter a SAFATLE, Vladimir ; “Sobre um riso que não
reconcilia”, In: Cinismo e falência da crítica, São Paulo: Boitempo, 2008
imperativo categórico para a contemporaneidade: “tudo fazer para que Auschwitz nunca
mais ocorra novamente”. Um dos pensadores mais recentes a insistir neste ponto foi
Alain Badiou, para quem, em Adorno: “Trata-se de saber quais são as redes e condições
de possibilidade de um pensamento após Auschwitz, ou seja, de um pensamento que
seja, em vista do que foi Auschwitz, não seja um pensamento obsceno, mas antes um
pensamento cuja dignidade seria preservada devido a razão dele ser um pensamento
após Auschwitz”15. E se nos perguntarmos sobre do que Auschwitz é o nome,
deveríamos afirmar que Auschwitz é o nome de uma certa “catástrofe do pensamento
identitário”.
De fato, Adorno não cansa de insistir que “nos campos de concentração não era
o indivíduo que morria, mas o exemplar”, pois a indiferença em relação ao sofrimento
presente na transformação do assassinato em operação industrial e desafectada seria o
resultado direto de um modo de pensar, de uma forma de vida que perdeu toda
capacidade de se deixar tocar pela irredutibilidade singular do sensível. Daí uma
afirmação como:
“O que os sádicos diziam às suas vítimas nos campos de concentração: -
Amanhã, você partirá por esta chaminé como fumaça em direção ao céu; indica
esta indiferença em relação à vida de cada singular (Einzelnen) para a qual a
história caminha. Em sua liberdade formal, o singular já é tão intercambiável
como sob as botas dos que irão liquidá-lo”16.
Ou seja, a catástrofe histórica representada por Auschwitz não seria outra coisa
que a figura mais bem acabada de uma forma de vida, como a nossa, que seria incapaz
de viver com o que não se submete à forma de identidade, com o que rompe com um
princípio de unidade cuja maior entificação seria a própria função do Eu moderno.
Contra isto, teríamos uma filosofia assombrada pelo caráter totalitário do Uno, pela
exigência de pautar a política pela necessidade de evitar o sofrimento e de sustentar
respeito a alteridade (um pouco como se Adorno não passasse de um Lévinas precoce).
Posições que, hoje em dia, poderiam ser aceitas sem maiores dificuldades por todos os
que compreendem que a função fundamental do pensamento é a tarefa negativa e
reativa de simplesmente “evitar a catástrofe”. Posição de quem se desespera a respeito
da força geradora e revolucionária da práxis.
É verdade que Adorno formulará um critério moral que pode ser enunciado da
seguinte forma: o verdadeiro ato moral é aquele capaz de deixar-se guiar pelo
afastamento do sofrimento. No entanto, uma proposição desta natureza é temerária por
permitir, inicialmente, várias interpretações. Pois podemos compreender este
afastamento do sofrimento como um imperativo utilitarista (nossos atos são guiados
pelo cálculo do prazer e pelo afastamento do desprazer) ou ainda como um imperativo
ligado a formas de política da vitimização (os sujeitos da ação devem ser vistos
inicialmente como vítimas em potencial).
No entanto, podemos fornecer uma outra interpretação, substancialmente
diferente, em relação ao pensamento adorniano. Sem em momento algum ignorar a
importância decisiva da experiência castrófica de Auschwitz não apenas para o
pensamento adorniano, mas para todo e qualquer pensamento que, a partir da segunda
metade do século XX, queira de fato pensar à altura dos acontecimentos históricos, sem
negar que, de fato, uma das dimensões maiores do pensamento, a partir de então, será
necessariamente “evitar a catástrofe”, trata-se de insistir que nenhuma filosofia pode ser
15 BADIOU, Alain; De la dialectique negativa para rapport à um certain bilan de Wagner (mimeo) 16 ADORNO, Negative Dialektik, op. cit., p. 355
solidária apenas de um acontecimento meramente negativo (evitar algo, impedir que
algo aconteça novamente etc.). Toda verdadeira filosofia traz também consigo a
exigência de pensar a partir de um acontecimento portador de promessas
instauradoras. Mesmo a ação de evitar o pior só encontra força se for portada por
promessas instauradoras.
Fazer uma afirmação desta natureza é de especial importância para a leitura de
Adorno, já que vários comentadores procuraram afirmar que a filosofia de Adorno não
poderia fornecer horizontes de intervenção. No entanto, tentemos tirar todas as
conseqüências do fato de, para Adorno, mesmo o paradigma do campo de concentração
não ser resultante da irracionalidade de um pretenso mal radical, mas da estrutura
paranóica do Eu moderno que projeta compulsivamente para fora de si sua própria
infelicidade, sua própria impossibilidade de se reconhecer no que não se conforma à
imagem de si17. Ou seja, ele é, de uma certa forma, o extremo de uma patologia
vinculada à implementação social da metafísica da identidade. Por isto, devemos nos
colocar a seguinte questão : sendo Auschwitz, para Adorno, algo como a « catástrofe do
pensamento identitário », haveria então um acontecimento capaz de levar o Eu a se
confrontar com o que parece lhe dissolver, um acontecimento gerador de novas formas
para o pensar ? Pergunta que visa indicar a qual acontecimento devemos ser fiel a fim
de impedir que nossas formas de vida conservem estruturas psíquicas e libidinais que
possam servir de base para a integração em sociedades totalitárias. É neste ponto que
devemos levar às últimas conseqüências a importância da estética para a constituição do
programa filosófico adorniano.
De maneira esquemática, podemos dizer que o verdadeiro acontecimento
gerador da filosofia adorniana é o conjunto de as possibilidades estéticas abertas pela
chamada Segunda Escola de Viena, em especial nas figuras de Alban Berg e de Arnold
Schoenberg. Não devemos ter medo de afirmar que toda sua filosofia é a elaboração
contínua e rigorosa das potencialidades abertas pelas expectativas vanguardistas da
estética musical. Mas para entender melhor este ponto, devemos afinal de contas
compreender melhor o que é significa, para Adorno, pensar sobre a música, ou ainda, o
que a experiência da música nos traz.
Ao escrever seu mais importante livro sobre música, Filosofia da nova
música,de 1948, Adorno viu-se obrigado a iniciar desculpando-se:
17 Não se trata em absoluto de procurar compreender a complexidade sócio-histórica de um
acontecimento como o nazismo através de explicações genéricas a respeito dos impasses na ontogênese
das capacidades prático-cognitivas dos sujeitos. Trata-se simplesmente de colocar uma questão
subsidiária : qual deve ser a estrutura psíquica e libidinal de sujeitos que aceitam desenvolver disposições
de conduta em conformidade com as injunções de uma sociedade totalitária ? Daí o uso importante que
Adorno e Horkheimer fazem de categorias clínicas como « narcisismo » e « paranóia » em « Elementos
de anti-semitismo ». Lembremos, por exemplo, do sentido decisivo de afirmações como: “O anti-
semitismo baseia-se numa falsa projeção. Ele é o reverso da mimese genuína, profundamente aparentada
à mimese que foi recalcada, talvez o traço caracterial patológico em que esta se sedimenta. Só a mimese
se torna semelhante ao mundo ambiente, a fala projeção torna o mundo ambiente semelhante a ela”
(ADORNO e HORKHEIMER, ibidem, p. 174). Daí também a importância que Adorno dá a um texto
como « Psicologia das massas e análise do Eu », de Freud, na compreensão do nazismo. Mas, volto a
insistir, em hipótese alguma uma análise regional desta natureza pode querer dar conta da estrutura causal
que gera um acontecimento da complexidade do totalitarismo nazi-fascista, com sua especificidade e
diferença em relação a outras formas de totalitarismo que o século XX conheceu (como o stalinismo, as
ditaduras militares latino-americanas, o maoismo, entre outros). Por outro lado, ela também não responde
ao conjunto de ações que devem ser tomadas para que algo como Auschwitz não se repita mais.
“Pode parecer cínico, depois do que aconteceu na Europa e de tudo o que ainda
nos ameaça, dissipar tempo e energia intelectual decifrando problemas
esotéricos da técnica moderna de composição”18.
Esta frase no fundo pode ser traduzida da seguinte maneira: os problemas da
racionalidade musical parecem tão autônomos em relação àquelas questões gerais postas
pela efetividade ao pensamento filosófico que eles parecem ser desprovidos de
relevância real, para além de um pequeno círculo de especialistas. Afinal, por que regras
de harmonia, problemas de sintaxe musical e obsolescência de padrões de construção
musical interessariam alguém mais do que músicos?
A resposta adorniana seria: porque a história das formas musicais é um setor
privilegiado, mas quase esquecido, da história da razão. Lembremos desta antiga
constatação platônica de que a música indica fundamentalmente critérios de
organização, o que nos explicaria porque “nunca se abalam os gêneros musicais sem
abalar as mais altas leis da cidade”19. Se os gêneros musicais têm o poder de abalar os
alicerces da cidade, é porque as formas musicais se colocam como dispositivos que
aspiram fornecer critérios de organização racional daquilo que aparece primeiramente
como natureza (o som) e expressão das funções intencionais do sujeito.
Insistamos neste ponto. A forma musical é produzida a partir de decisões sobre
os protocolos de identidade e diferença entre elementos (consonância e dissonância),
sobre os problemas de partilha entre o que é racional e o que é irracional (som e ruído),
sobre o que é necessário e o que é contingente (desenvolvimento e acontecimento). Ela
se produz ainda a partir de decisões sobre a relação entre razão e natureza (a música
como mimesis das leis naturais ou como plano autônomo do que se afirma contra toda
ilusão de naturalidade) e sobre os regimes de intuição do espaço e do tempo. È esta
gama de dispositivos que nos permite afirmar que a forma musical nasce de uma
decisão sobre os critérios válidos de racionalidade. Neste sentido, desde sua juventude,
Adorno acreditava que as experiências musicais da Segunda Escola de Viena haviam
produzido as condições de possibilidade para pensarmos um conceito renovado de
sujeito e de razão. O que o levou a afirmar, de maneira peremptória: “em relação à
especificidade que o último Schoenberg foi capaz de realizar como compositor, há algo
a ser ganho para o conhecimento filosófico”20.
Sobre a relação entre arte e filosofia em Adorno
Podemos, desdobrar esta questão espinhosa a respeito da relação entre filosofia e
estética em Adorno através da apresentação de uma resposta ao problema do regime de
recurso filosófico à arte na experiência intelectual adorniana. É notável que em
momento algum tal recurso opere a partir da lógica da exemplificação. Para Adorno, as
obras de arte não são um caso exemplar daquilo que a elaboração filosófica seria o
conceito.
De maneira esquemática, é possível dizer que há, ao menos, três maneiras de se
pensar os modos de indexação entre conceito e caso. O primeiro é o caso como exemplo
do conceito. Aqui, há uma relação tautológica de subsunção da particularidade do caso à
generalidade do conceito, até porque não há nada a apreender do caso que já não esteja
no conceito. Isto nos leva necessariamente, para utilizar uma leitura proposta por
18 ADORNO, Philosophie der neuen Musik, Frankfurt: Suhrkamp, pp. 10-11 19 PLATÃO, A república, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, 424c 20 ADORNO, Über das gegenwärtige Verhältnis von Philosophie und Musik. In: Gesammelte Schriften
XVIII, Digitale Bibliotheke, op. cit., pp. 166-167
Badiou, a uma visão pedagógica da arte. Pois a arte não produziria verdades. Antes, ela
deveria fornecer o caminho correto para a apreensão de uma verdade que lhe ultrapassa
e que encontra seu solo natural na discursividade prosaica do pensamento conceitual.
O segundo é o caso como ponto de excesso do conceito. Trata-se da defesa da
existência de uma relação de não-estruturação do caso pelo conceito, como se houvesse
uma irredutibilidade da multiplicidade própria ao caso a toda tentativa de estruturação
pelas capacidades generalizadoras do conceito. Uma certa visão romântica da arte como
discurso originário, espaço natural da intuição criadora seria o desdobramento orgânico
de tal posição.
Por fim, podemos dizer que o caso é um modelo do conceito e se dissermos isto
estaremos mais perto do que Adorno tem em vista através do seu recurso filosófico às
artes. Trata-se de mostrar como o verdadeiro caso é aquele que traz em si modos de
organização capazes de reordenar as aspirações sintéticas do conceito.
Esta é uma questão maior, até porque Adorno é claro em afirmar o primado do
modelo em filosofia: “Pensar filosoficamente é como pensar por modelos; a dialética
negativa é um conjunto de análises de modelos”21. Assim, devemos responder: o que
significa afirmar que a confrontação com as obras de arte é o modelo para a
reconstituição do pensar filosófico?
Muito haveria a se dizer a respeito desta questão, mas a título introdutório
podemos insistir em um ponto. Afirmar que a confrontação com as obras de arte é o
modelo para a reconstrução do pensar filosófico significa sustentar que a arte pensa,
que ela é um campo produtor de verdades. Talvez ela não pense exatamente por
conceitos e com seus processos de submissão da particularidade do caso a
universalidade de representações gerais, mas ela pensa por formalizações. De qualquer
maneira, a idéia de forma liga ainda a arte a um certo nível de articulações lógicas do
conceito. Por outro lado, ela nos fornece modos de formalizações de objetos que, por
que não dizer as coisas às claras, tem aspirações cognitivas. A este respeito, lembremos
como a Teoria estética de Adorno não temia em afirmar que “a problemática da teoria
do conhecimento retorna (wiederkehren) imediatamente na estética”22. Ele vai ainda
mais longe, na medida em que afirma que a formalização estética deve ser
compreendida com “correção do conhecimento conceitual”, já que a : “arte é
racionalidade que critica a racionalidade sem dela se esquivar”23. A crítica da arte em
relação ao conceito se legitima na medida em que, para Adorno, a formalização estética
é capaz : “de absorver na sua necessidade imanente o não-idêntico ao conceito”24
colocando-se assim como dimensão de verdade. Pois: “Com o progresso da razão,
apenas as obras de arte autênticas conseguiram evitar a simples imitação do que já
existe”25. Um exemplo do gênero de “correção” que a arte pode nos fornecer: “A
grosseria do pensamento é a incapacidade de operar diferenciações no interior da coisa,
e a diferenciação é tanto uma categoria estética quanto uma categoria do
conhecimento”26.
Ou seja, contrariamente a uma tendência geral do pensamento estético do século
XX, Adorno não cessa de analisar as obras de arte a partir de critérios de verdade e de
falsidade, de autenticidade e de inautenticidade, tal como, por sinal, Arnold Schoenberg.
Isto permite Adorno relativizar a tendência de autonomia das esferas sociais de valor e
21 ADORNO, idem, p. 39 22 ADORNO, Ästhetische Theorie, Frankfurt, Suhrkamp, 1972, p. 493 23 idem, p. 87. 24 idem, p. 155 25 ADORNO e HORKHEIMER, ibidem, p. 34 26 ADORNO, ibidem, p. 344
afirmar que a atividade artística nos fornece coordenadas para pensarmos a ação moral e
as expectativas cognitivas. Contrariamente a Kant, para quem o acordo intersubjetivo
sobre o Belo não exigiria nenhuma referência à verdade racional ou à norma moral,
Adorno não cessa de insistir que forças idênticas agem sobre esferas não idênticas.
Neste sentido, devemos nos perguntar qual era o significado maior da
experiência estética da Segunda Escola de Viena para Adorno. Sem entrar em
considerações técnicas que obrigariam a redação de outro artigo, é possível dizer tal
significado está necessariamente vinculado à maneira com que, através da estética,
Adorno encontra as bases para pensar um conceito de sujeito não mais vinculado ao
primado da identidade. Isto fica claro em afirmações como:
A música de Schoenberg quer emancipar-se em seus dois pólos: ela libera as
pulsões (Triebhafte) ameaçadoras, que outras música só deixam transparecer
quando estes já foram filtrados e harmonicamente falsificados; e tenciona as
energias espirituais ao extremo; ao princípio de um Eu que fosse forte o
suficiente para não renegar (verleugnen) a pulsão (...) Embora sua música
canalizasse todas as forças do Eu na objetivação de seus impulsos, ela
permaneceu ao mesmo tempo, durante toda a vida de Schoenberg, algo ´estranho
ao Eu´”27.
Este é um ponto fundamental. Toda forma musical traz a pressuposição de uma
figura do sujeito, não apenas enquanto agente do processo composicional vinculado à
categoria de expressão, mas também como ouvinte que deve se orientar a partir de
modos determinados de audição. Tomemos, por exemplo, a forma-sonata definida
como o que tem: “um clímax identificável, um ponto de máxima tensão para o qual a
primeira parte do trabalho conduz e que é simetricamente resolvido. Trata-se de uma
forma fechada, sem a estrutura estática de uma forma ternária; ela tem uma finalização
dinâmica análoga ao desdobramento do drama oitocentista, no qual tudo é resolvido, os
detalhes estão ligados e a obra é redonda”28. A identificação de clímax e tensões exige
funções intencionais como a memória narrativa (que organiza o desenvolvimento em
“drama”), a atenção orientada por um telos, além da compreensibilidade de princípios
de diferenciação e de identidade partilhados tanto pelo compositor quanto pelo ouvinte.
A idéia de resolução exige, por sua vez, um Eu capaz de orientar processos de síntese e
de determinar o sentido de totalidades funcionais; ou seja, um Eu como unidade
sintética de representações. Mas uma música que não se organiza como uma sonata;
que modifica noções estruturais como resolução, hierarquia, tensão-distensão,
antecedente-consequente, consonância-dissonância, que constrói de outra maneira sua
totalidade funcional, traz necessariamente a promessa de uma nova figura do sujeito,
que não é simplesmente o sujeito dos julgamentos estéticos.
Este regime de recurso filosófico à arte será uma constante na experiência
intelectual de Adorno. Vemos que, aqui, a arte não é utilizada como álibi para o
abandono do conceito em prol de alguma espécie de imanência com domínios pré-
conceituais da intuição, de afinidade pré-reflexiva entre sujeito e natureza ou de
hipóstase do inefável, do arcaico e do originário. Ao contrário, tal recurso privilegiado
quer dizer simplesmente que precisamos sustentar novos modos de formalização e
ordenação que não sejam mais assentados na repressão da experiência de não-
identidade. Modos que, em certas situações históricas, encontram sua primeira
manifestação na arte, isto para depois desdobrarem-se em outras esferas da vida social.
27 ADORNO; Prismas; crítica cultural e sociedade, São Paulo: Ática, 2001, p. 147 28 ROSEN, Charles; Sonat forms, New York, Norton, 1988, p. 10
Foi esta a aposta que animou a experiência intelectual de Adorno: pensar a
partir das promessas de uma nova ordem trazida pelo setor mais avançado da
produção artística de seu tempo. Digamos que este foi o solo positivo de sua dialética
negativa. Aposta que só foi possível porque Adorno assumiu, desde o início, a
necessidade de parar de ver, na arte, a simples indicação de uma estética e assumí-la
como setor privilegiado da história da razão, ou seja, parar de ver, no recurso filosófico
à arte, apenas a tentativa de constituir uma estética inflacionada de vocabulário
filosófico. Devemos derivar todas as conseqüências do fato de uma certa experiência
estética, com seus protocolos de formalização, fornecer a Adorno o modelo de
reorientação das categorias da dialética, em especial a categoria de sujeito. Este é um
trabalho que exige um cuidado que sempre marcou a experiência intelectual adorniana:
o cuidado de não separar o que deve ser pensado conjuntamente.
Introdução à experiência intelectual de Theodor Adorno
Aula 2
Na aula de hoje, começaremos a discussão de um pequeno texto programático,
intitulado A atualidade da filosofia. Na verdade, este texto não foi publicado por
Adorno, mas pronunciado como aula-magna à ocasião de sua entrada na Universidade
de Frankfurt como professor de filosofia, em 1931, quando o autor tinha 28 anos.
Trata-se de um texto programático por ser, de uma certa forma, a síntese de um
processo de definição de problemas e de formação intelectual que havia direcionado
Adorno durante todo os anos 20. Uma das características maiores deste processo era seu
hibridismo. Durante os anos 20, Adorno foi atravessado por uma oscilação constante
entre seguir uma carreira de compositor e seguir uma carreira acadêmica de professor de
filosofia. Ele chega a ir para Viena a fim de seguir cursos com o compositor Alban Berg
durante quase dois anos. Neste período, ele produz várias peças, todas marcadas por
uma certa filiação àquilo que então era chamado de “nova música”, ou seja, a Segunda
Escola de Viena (Schoenberg, Berg, Webern). Sua produção de artigos sobre a música
de sua época e críticas de concerto é intensa, principalmente para revistas como
Musikblätter des Anbruch, Pult und Taktstock e Die Musik. Os assuntos dizem respeito,
sobretudo, às correntes artísticas e compositores decisivos para o debate estético dos
anos 20 na Alemanha: o expressionismo, Hindemith, Bela Bártok, os compositores da
nova música, Hanns Eisler, Kurt Weill, Ravel, Mahler, entre outros.
Por outro lado, Adorno continua seguindo os passos necessários para a carreira
acadêmica. Em 1924, ele defende sua dissertação, sob a supervisão de Hans Cornelius,
cujo título era: A transcendência do objetal e do noemático na fenomenologia de
Hursserl (Die Transzendenz des Dinglichen und Noematischen in Husserls
Phänomenologie). O debate com a fenomenologia será uma constante na trajetória
filosófica de Adorno, principalmente através dos seus dois nomes maiores: Husserl e
Heidegger. Ao primeiro, será dedicado, entre outros, o livro Para uma metacrítica da
teoria do conhecimento: estudos sobre Husserl e as antinomias fenomenológicas, de
1956. Para o segundo, o famoso O jargão da autenticidade, de1964.
Alguns anos mais tarde, em 1927, Adorno tentará apresentar sem sucesso, para o
mesmo Hans Cornelius, uma tese de habilitação em filosofia intitulada: O conceito de
inconsciente na doutrina transcendental da alma (Die Begriff des Unbewussten in der
transzendentalen Seelenlehre). Tratava-se de uma tentativa ousada de aproximação entre
psicanálise freudiana e a noção de transcendental no interior da tradição filosófica
kantiana. Indicação clara desta maneira tão própria a Adorno de procurar pontos de
articulação entre questões filosóficas e problemáticas derivadas do estado atual das
ciências empíricas. Este fracasso levará Adorno a apresentar outra tese de habilitação,
agora sob a supervisão de Paul Tillich, que será publicada em 1933 com o título de
Kierkegaard: construção da estética.
No entanto, não deixa de ser surpreendente que, até o momento da publicação de
sua tese de habilitação, Adorno não publicara praticamente nenhum artigo ou texto
claramente sobre filosofia. Sua prolífica produção era, até então, exclusivamente
dirigida à estética musical. Um fato que só pode ser explicado se aceitarmos que várias
preocupações maiores que serão objetos de seu programa filosófico já estão, de uma
forma ou outra, em operação no interior dos textos sobre estética e crítica musical. De
fato, a conferência A atualidade da filosofia, nos indica alguns caminhos importantes
neste sentido.
Esta conferência programática aparece em um momento decisivo. Em janeiro de
1931, Max Horkheimer assume a direção do Instituto para a pesquisa social, que a partir
de então se transformará na base institucional daquilo que hoje entendemos por Escola
de Frankfurt. Criado em 1923 graças à subvenção financeira de Félix Weil, filho de um
grande comerciante com negócios na Argentina, o Instituto dedicava-se, principalmente,
a estudos sobre a história do movimento operário, especialidade de seu então diretor, o
professor de economia política Carl Grünberg. A tais estudos, somavam-se análise sobre
a crise da economia capitalista e o funcionamento da economia planificada. Mas com a
vinda de Horkheimer, as pesquisas ganharão uma perspectiva substancialmente
diferente.
A nova linha de pesquisa encontra-se enunciada na conferência de janeiro de
1931 que Horkheimer pronuncia à ocasião de sua posse como diretor do Instituto. Ela
tinha por título “A situação atual da filosofia social e as tarefas de um instituto para a
pesquisa social”. Como vocês percebem, já seu título não deixará de ressoar na
conferência que Adorno dará meses depois. Nos dois casos, era questão de uma reflexão
sobre o quadro atual da filosofia (basicamente aquela de tradição alemã) e sobre as
possibilidades que então se abriam. Por isto, uma boa maneira de entrar na leitura da
conferência de Adorno é lembrando inicialmente algumas questões presentes na
conferência de Horkheimer, já que, muito seguramente, o público das duas conferências
era o mesmo.
O lugar da filosofia
A conferência de Horkheimer inicia com a afirmação da que a filosofia social
deve estar no coração das preocupações maiores da filosofia. Fundada na reflexão sobre
fenômenos que só podem ser entendidos no contexto da vida social (como estado, lei,
economia, religião), a filosofia social encontraria seu impulso decisivo na recusa
hegeliana em deduzir tais categorias da análise solipsista de sujeitos isolados. Daí a
necessidade de Horkheimer lembrar da crítica hegeliana a pretensa tendência kantiana
em derivar os princípios fundamentais da moral, arte, conhecimento, direito a partir de
uma reflexão que parte da estrutura individualizada da consciência ou da análise a priori
de suas faculdades. Contra isto, Horkheimer insiste na maneira com que, na filosofia
social hegeliana: “a essência ou a forma substantiva do individual manifesta-se não em
atos pessoais, mas na vida do todo ao qual ela pertence” É desta forma que o idealismo
pode se transformar, em Hegel, em filosofia social.
Hegel não desconhece a natureza conflitual e não-imediata da relação entre os
interesses do indivíduo e o modo de afirmação da necessidade inerente à totalidade da
vida social. Uma totalidade que se realiza normalmente na figura institucional do Estado
justo. No entanto, o modo de desenvolvimento histórico da indústria, da tecnologia, das
ciências positivas e dos regimes de reprodução social exigem, da filosofia social, não
apenas a problematização do projeto hegeliano, mas a compreensão das novas
condições necessárias à sua realização.
Horkheimer é sensível à maneira, por exemplo, com que um certo positivismo
afirmava-se tanto na filosofia quanto na sociologia através da crítica a todas categorias
‘abstratas” e “universalistas’, como: classe, ideologia, consciência de classe e totalidade.
Ele compreende tal esforço como uma maneira de hipostasiar o dado, de impedir o
pensamento de ir além da contemplação do que aparece à “consciência natural” como
mera efetividade, como realidade bruta. Por outro lado, como bem identificou Honneth:
“quando o Instituto de Pesquisas sociais de Frankfurt começa seus trabalhos no inicio
dos anos 30 sob a direção de Horkheimer, a estrutura comum é ainda largamente
marcada por uma fé no progresso alimentada pela filosofia da história”29. Ou seja,
contra a hipóstase do que aparece como o que meramente é, a filosofia social deve
deixar-se pautar por um ideal de reconciliação social filosoficamente fundamentado nas
considerações sobre a natureza emancipatória do projeto da modernidade. Ela deve
fornecer bases para processos de valoração que orientam a crítica.
Isto não significa, no entanto, alguma espécie de imperialismo filosófico onde
esta fornece o quadro de valores que deve guiar pesquisa empíricas que, em si mesmas,
devotar-se-iam a problemas parciais e perdidos em meio a questões de especialistas.
Horkheimer fala de uma interpenetração dialética através da qual a filosofia e teoria
social se influenciam mutuamente. Isto significa, de maneira mais precisa:
organizar investigações estimuladas por problemas filosóficos contemporâneos
onde filósofos, sociólogos, economistas, historiadores e psicólogos estejam
juntos em colaboração permanente para empreender em comum o que, em
outros campos, pode ser realizado individualmente em laboratório. Em suma, a
tarefa é fazer aquilo que todos verdadeiros pesquisadores sempre fizeram, ou
seja, perseguir suas questões filosóficas maiores através dos métodos científicos
mais precisos a fim de revisar e refinar suas questões a partir do desdobramento
de seus trabalhos e de desenvolver novos métodos sem perder a visão de amplos
contextos. Com esta perspectiva, nenhuma resposta por sim ou não deriva de
questões filosóficas. No entanto, tais questões integram-se no processo de
pesquisa empírica, suas respostas estão no avanço do conhecimento objetivo que
afeta a própria forma das questões30.
Esta é a primeira formulação do que aparecerá anos mais tarde, em um texto
maior de Horkheimer intitulado Teoria tradicional e teoria crítica, como sendo o
“programa interdisciplinar” que deverá aparecer como horizonte metodológico dos
esforços de pesquisa que caracterizarão a chamada Escola de Frankfurt. Neste
momento, tal programa interdisciplinar está ligado à tentativa de analisar a conexão
entre vida econômica social, desenvolvimento psíquico dos indivíduos e mudanças no
reino da cultura, tomada aqui em seu sentido o mais amplo possível. Horkheimer vê tal
análise como um setor renovado do problema clássico a respeito da conexão entre
existência particular e Razão universal, realidade e Idéia, vida e Espírito. Não se trata de
pressupor uma correspondência completa entre Idéia e realidade material, mas de,
através de uma relação renovada entre filosofia e teoria social, dar conta de um duplo
processo de reconfiguração das questões filosóficas, seus métodos e de orientação do
potencial crítico da teoria social. Daí porque Horkheimer insiste em uma filosofia social
capaz de, por exemplo, saber avaliar pesquisas empíricas, questionários, estudos sobre
comunicação de massa, aproximando-se cada vez mais do método de análise próprio à
sociologia.
Todas estas questões não deixam de estar presentes como pano de fundo da
conferência que Adorno pronunciará meses mais tarde. O problema da relação entre
filosofia e teoria social, a metodologia da especulação filosófica, assim como sua função
contemporânea enquanto discurso de forte potencial crítico, a posição em relação às
correntes então hegemônicas no cenário intelectual alemão (em especial, a
fenomenologia e o positivismo lógico): todas estas questões formam a ossatura do texto
adorniano. No entanto, uma série de diferenças são fáceis de serem identificadas.
29 HONNETH, Patologias do social In: La société du mépris, p. 78 30 HORKHEIMER, A situação atual da filosofia social e as tarefas de um instituto de pesquisas
A totalidade como problema
Lembremos mais uma vez da maneira com que a conferência de Adorno
começa:
“Quem escolhe atualmente por ofício o trabalho filosófico, deve renunciar desde
o começo a ilusão que inicialmente animava os projetos filosóficos: a de que
seria possível apreender (ergreifen) a totalidade da realidade (Wirklichen)
através da força do pensamento”31.
Como dissera na aula passada, esta consciência, historicamente enraizada, do
descompasso entre exigências de sistematicidade do pensamento e uma realidade que
parece resistir à possibilidade de se deixar formalizar como totalidade é o motor que
levará Adorno a constituir a configuração de sua própria experiência intelectual. A
princípio, parece estarmos longe desta maneira horkheimeana de colocar-se sob a égide
de uma certa recuperação do projeto hegeliano de constituir uma filosofia social
suficientemente fortalecida pela sociologia a ponto de dar conta das articulações globais
da realidade socialmente partilhada e de suas promessas de racionalidade. Se é verdade
que: “em Horkheimer, a filosofia social é finalmente a rainha das ciências”32 devido ao
seu caráter sintético, em Adorno aparece desde o início uma necessidade reiterada em
afirmar que: “Nenhuma razão legisladora pode reencontrar-se em uma realidade cuja
ordem e forma (Gestalt) exclui toda pretensão da razão”33. Ou seja, o primeiro dado a
respeito do qual a filosofia deve confrontar-se de maneira demorada é a desintegração
da adequação (angemessen) entre pensamento (conceito) e ser. Uma desintegração que
faz com que a própria idéia de ser apareça como um “princípio formal vazio” (leeres
Formalprinzip). Para Adorno, toda filosofia que pressupõe tal adequação deve ser
compreendida como idealista. Daí porque uma das operações mais recorrentes do texto
consiste em mostrar como o espectro do idealismo ainda assombra a filosofia atual
(através principalmente da fenomenologia). A crítica do idealismo transforma-se em
peça de orientação do próprio programa filosófico adorniano.
Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar que o ponto de partida da
experiência filosófica adorniana era, a sua maneira, o resultado da absorção de um
diagnóstico utilizado para dar conta dos desafios para a produção artística da época. A
perda de unidade da experiência do mundo aparecia na estética vanguardista como
consciência do esgotamento das formas artísticas arraigadas na tradição com sua força
sintética e sua capacidade de constituir obras de arte como totalidades orgânicas. Já o
expressionismo, o grande movimento artístico do modernismo alemão, trazia no seu
interior o esgotamento terminal das “leis formais universais” e aquilo que o jovem
Adorno chamava de “separação entre o Eu e as formas”. Daí porque: “Se o poeta e o
pintor expressionista procuram retratar não a objetividade do mundo, nem o modo como
ele se mostra aos sentidos, mas sim reconstruir o primado da subjetividade na relação
com o que lhe é externo, a consciência da impossibilidade de atravessar o abismo que
ligaria o Eu ao mundo também afeta a possibilidade de comunicação dessa expressão
pura, cristalizada no ideal do ‘grito’”34.
31 ADORNO, Die Aktualität der Philosophie, p. 325 32 MÜLLER-DOHM, Stephan; Adorno, p. 138 33 ADORNO, idem 34 ALMEIDA, Jorge; Crítica dialética em Theodor Adorno, p. 40
Mas o que seria exatamente esta desagregação da experiência do mundo que
tanto a estética quanto a filosofia do início do século XX parecem sentir de maneira
decisiva?
Mais ou menos na mesma época e contexto cultural, o sociólogo Max Weber
insistia que um certo sentimento de desagregação e de indeterminação apareciam
necessariamente como saldo dos processos de modernização social e de
desencantamento do mundo. Weber se referia, principalmente, à perda do poder de
unificação social produzido pelas explicações mítico-religiosas de mundo. A tensão
entre a significação religiosa e a direção do mundo material levará necessariamente
àquilo que Weber chamava de “autonomização das esferas social de valores”, ou seja,
processo de autonomia cada vez maior entre os conteúdos normativos, as exigências de
validade e o desenvolvimento da arte, da ciência, da política e da economia. Cada uma
destas esferas da vida social irá desenvolver aquilo que Weber chama de “legalidade
própria”. Isto significa que cada esfera da vida social ganhará, na modernidade, a
possibilidade de se desenvolver de “acordo com suas próprias leis” e sem precisar, a
todo momento, fazer apelo ao poder unificador dos mitos mítico-religiosos socialmente
partilhados. Algumas conseqüências importantes resultam de tal processo.
Primeiro, lembremos desta tendência de fragmentação da vida social e de
conflito entre exigências de validade. Esta fragmentação foi bem salientada por
Habermas, ao lembrar que: “uma vez que as imagens do mundo se desagregam e os
problemas legados se cindem entre pontos de vista específicos da verdade, da justeza
normativa, da autenticidade ou do belo, podendo ser tratados, respectivamente, como
questão de conhecimento, como questão de justiça e como questão de gosto, ocorre nos
tempos modernos uma diferenciação de esfera de valor: ciência, moral e arte”35. Todo o
problema consistirá em encontrar algum modo de diálogo entre a verdade aspirada pelo
discurso científico, a justiça aspirada pelo discurso jurídico e a autenticidade aspirada
pela arte (embora esta compreensão da arte como domínio da autenticidade expressiva
nào deixe de colocar uma série de problemas).
Enquanto tal diálogo não encontrar lugar o resultado não será apenas o
crescimento da distância entre especialistas e a esfera pública. As esferas de valores
tendem a ser cada vez mais complexas, inesgotáveis e refratárias à tradução. Seu
desenvolvimento impede processos de totalização. Isto faz com o sujeito moderno
apareça como aquele que sente a desintegração da possibilidade de apreensão da
experiência de totalidade capaz de garantir o acesso ao sentido do existente por
operações dedutivas. O desencantamento do mundo mostra aqui, segundo Weber, seu
sintoma mais profundo: a entificação de uma antropologia da finitude, a indeterminação
social e a perda do sentido que só uma racionalidade orientada por valores seria capaz
de garantir.
Esta antropologia da finitude fica muito bem caracterizada em um trecho maior
de Weber a respeito do fenômeno moderno de ausência de sentido da morte:
Ela não o tem porque a vida individual do homem civilizado, colocada dentro de
um progresso infinito, segundo seu próprio sentido imanente, jamais deveria
chegar ao fim; pois há sempre um passo à frente do lugar onde estamos, na
marcha do progresso. E nenhum homem que morre alcança o cume que está no
infinito. Abraão, ou algum camponês do passado, morreu ‘velho e saciado de
vida’, por que estava no ciclo orgânico da vida (...) O homem civilizado,
35 HABERMAS, Modernidade : um projeto inacabado, p. 110
colocado no meio do enriquecimento continuado da cultura pelas idéias,
conhecimento e problemas, pode ‘cansar-se da vida’, mas não ‘saciar-se dela’36.
Podemos dizer que a proposta horkheimeana de organizar um programa
interdisciplinar sob os auspícios da filosofia social consistia em reconstruir uma
experiência possível de totalidade acessível à reflexão. Ela vinha ainda marcada de uma
importante inflexão marxista fortemente influenciada por Georg Lukács que, grosso
modo, consistia em dizer que esta autonomia das esferas sociais de valores e a
constituição de racionalidades próprias era um processo que tendia a esconder um outro,
a saber, a maneira com que todas estas esferas tendiam a ser racionalizadas a partir de
dinâmicas de abstração e quantificação ligadas à universalização da forma-mercadoria.
Como dirá Lukács:
Não há problema nessa etapa de desenvolvimento da humanidade que, em
última análise, não se reporte a essa questão e cuja solução não tenha de ser
buscada na solução do enigma da estrutura da mercadoria”, já que o problema
da mercadoria seria: “o problema central e estrutural da sociedade capitalista em
todas as suas manifestações vitais. Pois somente nesse caso pode-se descobrir na
estrutura da relação mercantil o protótipo de todas as formas de objetividade e de
todas as suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa37.
Lukács pode dizer isto porque a forma-mercadoria não é apenas um dado
econômico, mas um modo global de organização e de racionalidade que parece
colonizar todas as esferas a partir do modo de racionalidade em operação na esfera
econômica. Daí porque esta filosofia social renovada proposta por Horkheimer era
animada pelo horizonte de uma crítica da economia política do capitalismo avançado.
No entanto, a via de Adorno não era totalmente simétrica a tais considerações e é
bem provável que isto venha do fato de que esta experiência de desagregação e
indeterminação não tenham, para ele, apenas uma causa social. Veremos isto de maneira
sistemática em outras aulas, mas já vale a pena notar como Adorno introduz em sua
conferência algumas noções que nos obrigam a passar para uma dimensão de problemas
que não se esgotam na tematização do campo de determinações sociais, mas que
parecem nos indicar algo próprio ao campo de uma certa experiência metafísica.
Pensemos por exemplo na idéia de uma “ruptura no próprio ser”38 (Brüchigkeit im sein
selbst), ou de um ser cujo caráter não adequado e não posto como totalidade racional
pode ser esboçado (das ihr nicht adäquat und nicht als Totalität rational zu entwerfen
ist).
É fato, por outro lado, que a consciência da ausência de relação imediata de
adequação entre pensamento e ser (uma temática, diga-se de passagem, maior da
filosofia hegeliana) leva Adorno a, por um lado, estabelecer uma plataforma crítica em
relação às correntes hegemônicas da filosofia alemã à época, em especial a
fenomenologia de Husserl, Heidegger e o positivismo lógico do Círculo de Viena, isto
sem deixar medir sua distância em relação à Escola de Marburgo e a dita filosofia da
vida de Simmel. Por outro, tal consciência permitirá a Adorno estabelecer, através de
um diálogo cerrado e bastante importante com Walter Benjamin, uma peculiar
perspectiva metodológica materialista e dialética.
36 WEBER, A ciência como vocação, p. 166 37 LUKÁCS, História e consciência de classe, p. 193 38 ADORNO, idem, p. 334
Nem ontologia do ser, nem hipóstase do dado
Boa parte da conferência de Adorno era dedicada à crítica a duas linhas antagônicas da
filosofia alemã da época: a fenomenologia, com sua guinada em direção à recuperação
heideggeriana da ontologia, e o positivismo lógico. Tais críticas continuarão como
motivos maiores do pensamento adorniano em seus desdobramentos posteriores. Em
1931, ela aparece para demonstrar a possibilidade de uma filosofia que não seja nem
simples glosa das ciências empíricas (como quer o positivismo), nem hipóstase de um
conceito indeterminado de ser (como quer Heidegger).
Sobre o positivismo, Adorno afirma que ele procura simplesmente “liquidar a
filosofia” a partir do momento que esta: “converte-se exclusivamente em instância de
ordenação e controle das ciências particulares, sem ser permitida acrescentar algo de
essencial a elas”39. Adorno não nega a necessidade, corretamente levantada pelo
positivismo, de pensar a possibilidade da filosofia a partir da consideração sobre seus
modos de relação às ciências. Neste sentido, ele segue Horkheimer ao afirmar:
Plenitude material e concreção dos problemas é algo que a filosofia só pode
alcançar a partir do estado contemporâneo das ciências particulares. Por sua vez
a filosofia não poderia elevar-se acima das ciências particulares para tomar delas
os resultados como algo pronto e meditar sobre eles a uma distância mais segura.
Os problemas filosóficos se encontram continuamente e, em certo sentido,
indissoluvelmente encerrados nas questões mais determinadas das ciências
particulares40.
No entanto, Adorno não deixará de lembrar como o positivismo é incapaz de apreender
de maneira correta “o problema do sentido do ´dado´”41 (Gegebenheit – que também
pode ser traduzido em vários casos por “fato”, “condição”, “circunstância”), categoria
fundamental de todo empirismo. Em larga medida, a crítica adorniana à premissa do
imediatamente dado é uma versão da crítica hegeliana a todo conhecimento que procura
se fundamentar na imediaticidade do dado.
No primeiro capítulo da Fenomenologia do Espírito, Hegel insiste que não há
acesso imediato algum a dados primeiros. Toda e qualquer percepção de um estado
físico já é conceitualmente estruturada, ou seja, a receptividade da nossa percepção é
dependente do que estamos acostumados a ver e da maneira como estruturamos o
campo do visível, por isto ela é inferencial, e em hipótese alguma imediata. Ver algo é
não apenas separar este algo de um continum, o que já pressupõe capacidades
estruturadas de diferenciação, mas pressupõe também que posso fazer julgamentos do
tipo: - Este algo X é semelhante, é idêntico, é o mesmo caso que algo Y. O que, por sua
vez, pressupõe todo um amplo conjunto de estruturas inferenciais lógicas que dizem
respeito à maneira com que compreendo noções como: identidade, diferença,
semelhança, entre outros. Ou seja, todo dado é mediado por estruturas lógicas, e não
imediato.
Mas Adorno diz mais do que isto, assim como Hegel havia feito antes dele.
Quando o filósofo de Frankfurt afirma que o positivismo lógico parece ignorar como: “o
sujeito do dado não é ahistoricamente idêntico, transcendental, mas ele adquire forma
(Gestalt) historicamente compreensível e mutável (wechselnde)”42, ele insiste no fato de
39 ADORNO, idem, p. 332 40 ADORNO, idem, p. 334 41 ADORNO, idem, p. 333 42 ADORNO, idem, p. 333
que tais categoriais lógicas de estruturação do dado não são dedutíveis
transcendentalmente, não são o resultado de uma reflexão a respeito de condições a
priori e ahistóricas de possibilidade da experiência. Antes, elas são fruto de uma gênese
empírica, de um processo histórico que constitui a pretensa naturalidade e
essencialidade do meu modo de perceber, de apreender um objeto. Ignorar esta
dimensão constitutiva do processo histórico em nossos modos de conhecer é
simplesmente sucumbir diante daquilo que Lukács chamava à época de “reificação”, ou
seja, tratar como imediatamente dado aquilo que é resultado de um processo histórico e
estrutural que se desenrola normalmente às costas das consciências. Daí porque Adorno
insiste que o positivismo lógico não pode dar conta de maneira adequada do problema
da “consciência alienada, do Eu alienado” (des fremdes Bewustsseins, des fremdes Ich),
sou seja, da consciência incapaz de apreender reflexivamente a gênese e o sentido de
seu modo de apreensão de objetos. Aqui já se vê uma postura epistemológica
fundamental de Adorno. Ela consiste em sempre se perguntar sobre a figura do sujeito
pressuposta por perspectivas epistemológicas variadas. Tudo se passa como se Adorno
dissesse não haver teoria do conhecimento sem teoria do sujeito, sendo que teorias do
conhecimento podem ser criticadas tendo em vista conceitos inadequados de sujeito. O
que não significa “psicologizar” a teoria do conhecimento, como se fosse questão de
submeter nossas expectativas cognitivas à análise das faculdades psicológicas dos
sujeitos. Trata-se antes, como veremos, de mostrar que mesmo faculdades psicológicas
têm uma gênese sócio-histórica e, com isto, de submeter nossos modos de conhecer a
processos sócio-históricos. Como dirá um comentador atento de Adorno: “Ele aceita
que o psicologismo é falso mas propõe no seu lugar uma forma daquilo que poderíamos
chamar de “sociologismo”. O que ele está dizendo é que nenhuma característica da
lógica – entendida como o reino da validade pura – pode ser compreendida como
independente de sua sociogênese”43.
Por sua vez, a crítica à fenomenologia presente nas filosofias de Husserl,
Heidegger e Max Scheler é mais complexa. A complexidade vem do fato de Husserl e
Heidegger serem dois dos filósofos que mais receberam a atenção de Adorno durante
todas as fases de sua produção intelectual. Isto indica a importância que Adorno
reconhece na filosofia dos dois, uma importância advinda de uma certa partilha de
problemas que unem os três.
Adorno partilha com Husserl a procura em pensar as condições para um certo
“retorno às coisas”. Daí porque ele pode afirmar que a descoberta realmente importante
de Husserl, para além da noção de intuição de essência (Wesensschau) foi o
reconhecimento do conceito de “dado irredutível” (unableitbaren Gegebenheit). Ele
arrancou assim da psicologia o conceito de uma intuição que se dá como algo
originário. No entanto, esta saída da psicologia teria acabado por hipostasiar um certo
absolutismo lógico que permite a Adorno endereçar a Husserl críticas parecidas àquelas
que ele dirige contra o positivismo. Como veremos mais a frente, Adorno vê no
conceito de “intuição categorial” o ponto central da filosofia husserliana, o ponto para
onde converge de maneira antinômica exigências materialistas de retorno às coisas e
estratégias idealistas que acabam por atribuir imediatez ao que é resultado de reflexão.
Por outro lado, não é difícil perceber como a relação conflituosa de Adorno a
Heidegger sempre o acompanhou, embora não possamos falar em sentido inverso, já
que Heidegger, por sua vez, nunca comentou os ataques reiterados adornianos. Esta
relação não é apenas resultado de uma espécie de operação de guerrilha intelectual
contra um dos pilares daquilo que um dia Adorno chamará de “ideologia alemã”. Ela é
43 O´CONNOR, Brien; Adorno´s negative dialectic, p. 136
uma operação decisiva para a própria formação do pensamento de Adorno, já que entre
ele e Heidegger passa uma relação tensa de distância e proximidade.
A primeira questão que deve ser respondida a fim de esclarecer o motor desta
confrontação entre Adorno e Heidegger é: em que estas duas experiência filosóficas
convergem? Poderíamos aqui identificar, ao menos, três centrais. Primeiro, tanto
Adorno quanto Heidegger percebem que a razão moderna enredou-se em um
movimento de interversão que transforma os processos de racionalização em
dispositivos de dominação técnica da natureza. Ou seja, há uma crítica da racionalidade
instrumental orientado os diagnósticos históricos tanto em Heidegger quanto em
Adorno: “Pois pode muito bem ser que a natureza esconda sua Essência precisamente
no lado em que se presta ao controle técnico do homem”44, diz Heidegger. Isto leva
também Heidegger a uma crítica contra a “positividade” das ciências que faz do próprio
Heidegger, uma das vítimas preferidas do positivismo lógico que Adorno tanto
combate.
Segundo, tal crítica da racionalidade instrumental é também crítica à filosofia
moderna do sujeito como sua hipóstase de um conceito de sujeito centrado na figura da
consciência. Por fim, restará à filosofia entrar na procura de uma linguagem capaz de
pôr o que é da ordem daquilo que nega as determinações fenomenais reificadas. Tanto
em Adorno quanto em Heidegger ela será encontrada principalmente no recurso
filosófico à arte.
No entanto, Adorno desde o início endereça críticas bastante fortes contra
Heidegger. Já no início da conferência A atualidade da filosofia, Adorno afirma que
projetos, como o heideggeriano, de reconstrução da ontologia, ou seja, de um discurso
do ser enquanto ser, erram por partir da possibilidade de uma adequação entre
pensamento e ser. Neste sentido, Heidegger compartilharia o pressuposto fundamental
do idealismo com suas ilusões de totalidade.
Tal crítica será repetida, por exemplo, na Dialética negativa. Lá, ao analisar o
problema da ontologia, Adorno parte de uma estratégia visando dar conta da natureza
própria à “necessidade ontológica”, ou seja, àquilo que impõe a ontologia como
necessidade para o pensar. Tal necessidade estaria vinculada a exigências de um saber
do absoluto (Wissen des Absoluten), vontade de apreender o todo sem que limites sejam
impostos ao conhecimento:
A influência da ontologia não poderia ser compreendida se ela não
correspondesse a uma necessidade urgente, index de uma perda (Versäumten), a
aspiração de que o veredicto kantiano a respeito do saber do absoluto não fique
por isto mesmo45.
Esta necessidade estava assentada na crença de que a razão poderia impor sua
estrutura à profusão do ente. No entanto, é possível transformar em uma ontologia a
própria experiência da impossibilidade de tal tentativa de imposição. À sua forma, ao
menos aos olhos de Adorno, é isto que Heidegger tentaria fazer.
Heidegger reconheceria uma situação histórica na qual os processos de
reprodução material da vida transformaram a sociedade em uma interconexão integral
de funções para as quais a própria noção de substância perdeu sua realidade social. Daí
porque mesmo em teoria do conhecimento a noção de substância perdeu há muito seu
lugar. Neste sentido, a necessidade ontológica apareceria como sintoma de defesa contra
tal situação através de um recurso a relações substanciais que, no entanto, não podem
44 HEIDEGGER, Sobre o humanismo, p. 42 45 ADORNO, ND, p. 70
mais se afirmar em toda sua positividade. A ontologia fundamental do ser apareceria
assim como uma certa nostalgia de um absoluto que não pode fundamentar
determinação fenomenal alguma. É a partir de tal problemática que Adorno procura
encaminhar a interpretação do conceito heideggeriano de ser e sua autonomia em
relação a todo e qualquer processo posicional reflexivo próprio aos modos de apreensão
de um sujeito.
Na nossa conferência, Adorno afirma que a aproximação heideggeriana em
relação a Kierkegaard é, no fundo, algo extremamente sintomático, já que a dialética
incessante (rastlos) de Kierkegaard não vincula a subjetividade a ser firmemente
fundado algum, levando ao abismo do desespero subjetivo. Heidegger deve resolver o
problema aceitando uma realidade historicamente pré-dialética, pré-reflexiva e vazia.
Por isto, ela tende a se encontrar com uma transcendência opaca, obscura e totalmente
indeterminada tematizada através da noção de “ser para a morte”. Pois a morte aqui não
é outra coisa do que a manifestação fenomenológica da indeterminação do que exclui
toda figura de um sujeito.
Esta realidade pré-dialética, por sua vez, não nos leva a outra coisa que à
submissão do sujeito ao ser: “Não é o homem o essencial”, dirá Heidegger, “mas o ser”.
No entanto, a subjetividade que se nega (verleugnet) intervém-se em profissão de fé
objetivista. Este objetivismo tende à determinação do ser como tautologia não
mediatizada por conceitos nem designada imediatamente a partir do modelo da
consciência sensível. “Mas o ser – o que é o ser?”, pergunta-se Heidegger, “Isso é isso
mesmo (Es ist Es selbst)”46. “A pura repetição do nome”, diz Adorno, “toma o lugar de
toda instância crítica concernente o ser”. Ou seja, Adorno age como quem segue Hegel
na sua crítica ao ser como imediaticidade indeterminada (unbestimmte Unmittelbare)
que sacrifica a relação ao conceito discursivo e à toda individuação.
46 HEIDEGGER, Uber den Humanismus, p. 19
Introdução à experiência intelectual de Theodor Adorno
Aula 3
Recapitulação
Na aula de hoje, continuaremos o comentário da conferência de 1931, “A atualidade da
filosofia”. Lembremos mais uma vez da maneira com que a conferência de Adorno
começa:
“Quem escolhe atualmente por ofício o trabalho filosófico, deve renunciar desde
o começo a ilusão que inicialmente animava os projetos filosóficos: a de que
seria possível apreender (ergreifen) a totalidade da realidade (Wirklichen)
através da força do pensamento”47.
Já sabemos como esta consciência, historicamente enraizada, do descompasso entre
exigências de sistematicidade do pensamento e uma realidade que parece resistir à
possibilidade de se deixar formalizar como totalidade será o motor que levará Adorno a
constituir a configuração de sua própria experiência intelectual. O primeiro dado a
respeito do qual a filosofia deve confrontar-se de maneira demorada é a desintegração
da adequação (angemessen) entre pensamento (conceito) e ser (domínio do que se
afirma como objetividade). Para Adorno, toda filosofia que pressupõe tal adequação
deve ser compreendida como idealista. Daí porque uma das operações mais recorrentes
do texto consiste em mostrar como o espectro do idealismo ainda assombra a filosofia
atual (através principalmente da fenomenologia).
Notemos como tal adequação entre pensamento e o domínio do que se afirma
como objetividade é, por um lado: “a dissolução da premissa da identidade entre sujeito
e objeto, considerada pelo idealismo burguês como o pré-requisito para o conhecimento
da verdade”48. Assim, toda filosofia que, de uma forma ou de outra, ainda pressupor
níveis fundamentais de identidade entre sujeito e objeto só poderá ser descrita por
Adorno como idealismo. Neste sentido, Adorno não está longe de filósofos
contemporâneos, como Robert Brandom, que definem o idealismo como a perspectiva
filosófica para a qual a estrutura do Eu duplica a estrutura do objeto, já que: “a estrutura
e unidade do conceito é idêntica à estrutura e unidade do Eu”49. Uma estrutura formal
que seria condição suficiente, e não apenas necessária, para a apreensão do conteúdo
dos objetos da experiência. Daí porque a perspectiva idealista é necessariamente holista.
Um holismo que Adorno critica ao afirmar que: “A crise do idealismo equivale à crise
da pretensão filosófica à totalidade”50.
Lembremos ainda que esta desagregação da experiência do mundo da qual parte
Adorno tinha condições objetivas e sociais bastante claras. Adorno procura desde o
início operar uma passagem que consiste em mostrar como os impasses da sociedade
burguesa se apresentam no interior dos próprios textos filosóficos. O que não significa
simplesmente que tais textos sejam produções ideologicamente comprometidas com
modos hegemônicos de reprodução material da vida. Antes, trata-se de afirmar que eles
são lugares privilegiados que deixam visíveis, muitas vezes pela primeira vez, a
extensão dos impasses e contradições presentes no interior das nossas próprias formas
47 ADORNO, Die Aktualität der Philosophie, p. 325 48 BUCK-MORSS, The origin of negative dialectics, p. 70 49 BRANDOM, Tales of the mighty dead, p. 210 50 ADORNO, idem, p. 326
sociais de vida. Por isto, e amplamente possível mostrar como a configuração do objeto
de uma experiência filosófica temporalmente determinada expõe a situação das
condições de possibilidade de toda e qualquer experiência social. Trata-se simplesmente
de insistir que toda e qualquer reflexão sobre as condições de possibilidade da
experiência, ou seja, toda e qualquer reflexão sobre a validade transcendental dos
nossos modos de conhecer, não pode deixar de sustentar-se em considerações sobre as
coordenadas sociais que interferem na maneira com que os objetos do mundo aparecem
a um sujeito.
Assim, na aula passada, eu insistira no fato de um certo diagnóstico histórico da
modernidade aparecer como base privilegiada para a reflexão dos frankfurtianos. Ele
vinha de Max Weber e de sua teoria da autonomia das esferas sociais de valores na
modernidade. Weber insistia que o sentimento de desagregação e de indeterminação
apareciam necessariamente como saldo dos processos de modernização social e de
desencantamento do mundo devido à perda do poder de unificação social produzido
pelas explicações mítico-religiosas de mundo. A tensão entre a significação religiosa e a
direção do mundo material levará necessariamente àquilo que Weber chamava de
“autonomização das esferas social de valores”, ou seja, processo de autonomia cada vez
maior entre os conteúdos normativos, as exigências de validade e o desenvolvimento da
arte, da ciência, da política e da economia. Processo este cujo resultado era a necessária
fragmentação do campo de experiências.
No entanto, não só as explicações mítico-religiosas de mundo haviam perdido
sua força unificadora. Para Adorno, aquilo que décadas mais tarde a filosofia francesa
contemporânea chamará de “metanarrativas”, ou seja, explicações globais de processos
sociais através do recurso à filosofias emancipatórias da história não podiam mais
fornecer garantias para qualquer experiência filosófica autêntica fiel ao seu conteúdo de
verdade. Contribuía para isto o desaparecimento, no horizonte histórico, do proletariado
como “sujeito-objeto” capaz de realizar as expectativas sociais de emancipação.
Diante deste quadro, Adorno fornecia inicialmente as coordenadas gerais para a
crítica das duas correntes hegemônicas da filosofia alemã que, de diferentes modos,
ainda continuariam prisioneiras da premissa idealista da identidade entre sujeito e
objeto. Adorno referia-se ao positivismo lógico do Círculo de Viena e a fenomenologia
de Husserl e Heidegger (além de Max Scheler).
Em sua crítica ao positivismo lógico, Adorno centra o foco em sua pretensa
incapacidade de apreender de maneira correta “o problema do sentido do ´dado´”51
(Gegebenheit – que também pode ser traduzido em vários casos por “fato”, “condição”,
“circunstância”), categoria fundamental de todo empirismo. Devido à sua matriz
hegeliana, Adorno não pode aceitar a premissa do imediatamente dado, ou seja, da
existência de proposições fatuais de base que forneceriam o fundamento último para
toda operação de saber. Premissa que nos levaria a: “considerar as proposições
derivantes da observação como a origem última do conhecimento”52.
Assim, quando Adorno afirma que o positivismo lógico parece ignorar como: “o
sujeito do dado não é ahistoricamente idêntico, transcendental, mas ele adquire forma
(Gestalt) historicamente compreensível e mutável (wechselnde)”53, ele insiste no fato de
que as categoriais lógicas de estruturação do dado não são dedutíveis
transcendentalmente, não são o resultado de uma reflexão a respeito de condições a
priori e ahistóricas de possibilidade da experiência. Antes, elas são fruto de uma gênese
empírica, de um processo histórico que constitui a pretensa naturalidade e
51 ADORNO, idem, p. 333 52 SCHLICK, O fundamento do conhecimento In; Os pensadores XLIV, p. 82 53 ADORNO, idem, p. 333
essencialidade do meu modo de perceber, de apreender um objeto. Ignorar esta
dimensão constitutiva do processo histórico em nossos modos de conhecer é
simplesmente sucumbir diante daquilo que Lukács chamava à época de “reificação”, ou
seja, tratar como imediatamente dado aquilo que é resultado de um processo histórico e
estrutural que se desenrola normalmente às costas das consciências. Por outro lado,
trata-se de uma maneira de conservar a premissa da identidade entre sujeito e objeto,
mas sem o incômodo intelectual de necessitar expor a estrutura do conceito de sujeito
que opera no interior da teoria.
No que diz respeito às críticas dirigidas a Husserl e Heidegger é uma
complexidade suplementar. Como disse na aula passada, a complexidade vem do fato de
Husserl e Heidegger serem dois dos filósofos que mais receberam a atenção de Adorno
durante todas as fases de sua produção intelectual. Isto indica a importância que
Adorno reconhece na filosofia dos dois, uma importância advinda de uma certa partilha
de problemas que unem os três. Como havia dita, esta discussão será retomada de
maneira mais sistemática em outras aulas. Por enquanto, podemos lembrar algumas
críticas gerais endereçadas por Adorno.
Grosso modo, o filósofo alemão afirma que a fenomenologia é, no fundo: “o
esforço para alcançar, após a decomposição dos sistemas idealistas e com o instrumento
do idealismo, a ratio autônoma, uma ordem de ser cuja fiabilidade esteja assegurada
para além do nível subjetivo”54. Em que pensa Adorno exatamente? Segundo ele (e aqui
o exemplo maior é Husserl), a fenomenologia continua tributária da identidade entre
sujeito e objeto, mesmo que não se trate mais da identidade com o objeto “natural”, este
objeto puro e simples que possui determinação livres de qualquer referência ao
subjetivo, mas com o objeto de uma apreensão intencional da consciência e responsável
pelo processo de produção de sentido e da objetividade. Esta intencionalidade instaura a
consciência em uma relação de imediaticidade profunda com aquilo que fundamenta a
objetividade. Imediaticidade que é figura contemporânea na crença entre sujeito e
objeto. Pois consciência é necessariamente consciência de alguma coisa, mas o objeto
correlato à consciência será sempre um objeto intencional.
Vocês devem conhecer o exemplo clássico de Husserl: a árvore pura e simples
pode queimar, enquanto a árvore como objeto intencional não pode queimar, ela
permanece enquanto princípio estável de determinação de sentido. Dirá Husserl: “A
árvore pura e simples, a coisa na natureza, é tudo menos esse percebido de árvore como
tal, que, como sentido perceptivo, pertence inseparavelmente à percepção. A árvore
pura e simples pode pegar fogo, pode ser dissolvida em seus elementos químicos etc.
Mas o sentido – o sentido desta percepção, que é algo necessariamente inerente à
essência dela – não pode pegar fogo, não possui elementos químicos, nem forças, nem
qualidades reais”55. De uma certa forma, esta distinção estrita entre objeto natural
(domínio dos fatos) e objeto intencional será alvo constante das críticas de Adorno, isto
desde sua dissertação de 1924 sobre a diferença entre o noemática e o coisal em
Husserl. Ele não pode aceitar que a questão do conhecimento seja reduzida ao problema
de como a consciência pode ter acesso a objetos transcendentes em geral.
Por outro lado, sobre Heidegger, Adorno dirá:
Ao invés da questão das idéias objetivas e do ser objetivo, em Heidegger, ao
menos em seus escritos publicados, é a questão subjetiva que surge: a exigência
da ontologia material é reduzida ao domínio da subjetividade e ela procura na
54 ADORNO, idem, p. 327 55 HUSSERL, Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, § 89
profundeza desta o que ela não encontra na plenitude aberta da realidade
(Wirklichkeit)56.
A princípio, dificilmente encontraríamos colocação aparentemente mais distante
de Heidegger do que esta acusação de subjetivismo. Afinal, a insistência na categoria de
Dasein não seria o resultado mais visível da crítica heideggeriana a toda e qualquer
metafísica da subjetividade? Não é exatamente Heidegger que afirma claramente: “Não
é o homem o essencial, mas o ser”. Como veremos, uma das estratégias crítica que
continuarão até o Adorno de maturidade será insistir que a “negação total do ser
subjetivo” é animada, no fundo, por uma espécie de “identificação com o agressor”.A
consciência que sente a possibilidade de seu desaparecimento devido ao impacto sócio-
histórico da reificação acaba por assumir a necessidade de sua própria dissolução
através da defesa do primado de um ser que seria outra figura do pensamento da
identidade, identidade pensada, utilizando uma chave de leitura colocada em circulação
por Derrida, como metafísica do ser enquanto “presença”. Veremos isto mais a frente de
maneira mais sistemática.
Delineamentos de um programa
Feita estas colocações, Adorno passa à apresentação do que pode aparecer como
seu próprio programa filosófico. E para tanto ele não deixa de começar afirmando que
após o fracasso do idealismo e de suas versões recalcitrantes não é certo que a própria
filosofia como discurso seja ainda atual. Atualidade entendida aqui como possibilidade
de responder a pergunta: “Após o fracasso dos últimos grandes esforços, há ainda
adequação entre as questões filosóficas e a possibilidade de respondê-las?”57. Notemos a
maneira de enunciar a pergunta. Ela pressupõe que há questões filosóficas, que a
filosofia não é uma simples “instância de ordenamento e controle das ciências” que não
faria outra coisa que glosar e comentar os resultados de ciências empíricas. No entanto,
tais questões já estão presentes e circunscritas nas questões científicas as mais precisas.
Mas quais questões são estas? Podemos dizer, de maneira esquemática, que se
Heidegger havia elevado a questão do ser a problema filosófico fundamental, Adorno
nunca abandonará a centralidade da reflexão sobre o problema da verdade (que, em suas
mãos, aparecerá inclusive como categoria central da orientação de julgamentos
estéticos). Verdade no sentido daquilo que se impõe como absolutamente necessário,
incondicional e categórico. Daí porque: “para Adorno, não exatamente dados a respeito
de certo ou errado, mas julgamentos sobre verdade e falsidade eram o fundamento
necessário para a validação da teoria. Em uma era na qual a metafísica perdera toda
legitimidade, Adorno continuava se perguntando sobre a questão metafísica”58.
No entanto, questões desta natureza exigem que a filosofia tenha uma atitude
peculiar. Contrariamente à ciência, modalidade de discurso que, ao menos segundo
Adorno, aceitaria seus diagnósticos como resultados irredutíveis e estáveis em si
mesmo, como descrição exata de estados de coisas resultante da lógica da descoberta e
da investigação, a filosofia teria diante de si signos (Zeichen) a serem interpretados
(Deutung). Mas lembremos, estes signos que devem passar por uma certa hermenêutica
são exatamente os dados que a ciência vê como descrições exatas de estados de coisas.
Ou seja, não é uma diferença de objeto que separa a ciência e a filosofia, mas uma
diferença de abordagem em relação aos mesmos objetos.
56 Idem, p. 329 57 ADORNO, idem, p. 331 58 BUCK-MORSS, idem, p. 67
Mas a hermenêutica filosófica nada tem a ver alguma forma de arqueologia do
sentido. Como dirá Adorno, a tarefa da filosofia não consiste em mostrar que a realidade
é “portadora de sentido”, procurando com isto construir totalidades através do recurso a
alguma espécie de segundo mundo a ser descoberto através da análise do mundo que
aparece. A hermenêutica filosófica, para Adorno, nada tem a ver com uma hermenêutica
que procura reduzir as questões a elementos dados e conhecidos presentes em um plano
superior de inteligibilidade. Ao contrário, devemos compreender que: “o texto que a
filosofia tem para ler é incompleto, contraditório e despedaçado”59. No entanto, esta
incompletude, esta contradição, este despedaçamento são índices claros da verdade do
que aparece à filosofia como seu objeto. Por isto, ela não deve guiar-se pela tentativa de
submeter seus objetos a modos de síntese que visem se afirmar como totalidades
desprovidas de contradição, estruturas genéricas que visariam submeter o diverso da
experiência à determinação da unidade. Daí porque Adorno afirmará que a filosofia
deve ser capaz de dar conta de seus objetos sem pensar o conceito como símbolos de
objetos, ou seja, aquilo que faz com que o particular seja apenas a representação do
universal. A raiz desta desconfiança fundamental em relação às formas da unidade deve
ser procurada, mais uma vez, no interior dos debates estéticos do qual o jovem Adorno
tomava partidos desde o início dos anos 20.
Este é um ponto central, pois a filosofia é indissociável de uma reflexão sobre a
forma do pensar e as conseqüências desta forma para a determinação do conteúdo da
experiência. Adorno não age como quem afirma que a situação social de fragmentação e
dispersão é resultado de uma realidade que deve ser superada para que possamos voltar
às amarras seguras da unidade e da identidade re-encontrada. É da essência mesma do
objeto esta irredutibilidade em relação a um certo conceito hegemônico de unidade. A
tarefa da filosofia consiste em ser capaz de indicar uma forma de pensar mais próxima
desta verdade da essência. Daí porque Adorno pode falar que a função da filosofia não
consiste em responder aquilo que lhe aparece como enigma (Rätsel), mas de iluminá-lo
e, assim, supera-lo (aufzuheben), ou seja, transpondo-o para uma forma na qual o que
aparece como enigma apresenta seu fundo opaco por se reconfigurar, pôr-se em outra
forma. Pois é assim que se resolve um enigma, agenciando elementos singulares e
separados da questão em uma figura que apresenta a solução. Adorno fornece inclusive
um nome para este regime de figuração: constelação.
Antes de entrarmos na discussão sobre o impacto do pensamento de Walter
Benjamin no interior do programa filosófico do jovem Adorno, vale a pena insistir em
um ponto fundamental no texto que diz respeito à maneira com que Adorno compreende
a relação entre teoria e práxis. Diz Adorno:
O gesto transformador do jogo do enigma (Rätselspiels) – não a simples solução
enquanto tal, fornece o único modelo de soluções da qual a práxis materialista
dispõe. A esta relação [de transformação] o materialismo deu um nome atestado
pela filosofia: dialética. É apenas como dialética que a interpretação filosófica
parece-me possível. Quando Marx endereça aos filósofos a reprimenda de
apenas interpretar diversamente o mundo e lhes opõe a necessidade de
transformá-lo, esta sentença não é legítima apenas a partir da práxis política, ele
era também a partir da teoria filosófica60.
Ou seja, Adorno afirma que esta transformação que a interpretação filosófica
opera nos objetos do saber científico elevados à condição de enigmas é o modelo para a
59 ADORNO, idem, p. 334 60 ADORNO, idem, p. 338
reflexão materialista a respeito da práxis. Porque a verdadeira práxis, enquanto
transformação do modo de presença dos objetos, enquanto modificação do modo de
estruturação do mundo, só encontra sua radicalidade quando marca com o selo da
obsolescência toda uma forma de pensar, de procurar respostas. Como se a verdadeira
práxis social só alcançasse sua realização efetiva na medida em que fosse a efetivação
em marcha de uma crítica da razão, crítica dos modos de se orientar no interior do
pensar.
Não deixa de ser provido de ironia o fato de Adorno convocar Marx para
desmontar uma dicotomia que o próprio jovem Marx colocara em operação contra
Hegel ao afirmar que em Hegel todo ato de reconciliação é apenas formal porque se dá
através unicamente conceito, “porque vale como um ato abstrato, porque o ser humano
mesmo só vale como ser abstrato pensante, como consciência-de-si e, em segundo
lugar, porque a apreensão é formal e abstrata”61. Pois Adorno age como quem diz: é da
essência da dialética a compreensão de que uma modificação na estrutura conceitual
nunca é simplesmente uma modificação na estrutura conceitual. Há uma
performatividade fundamental do conceito que a dialética não desconhece. Como dirá
Adorno mais a frente, as exigências de emancipação não são realizáveis através apenas
da mudança na relação de propriedade dos modos de produção, mas na liberação em
relação aos modos de pensar que fundam a noção identitária de propriedade na qual o
objeto não é mais do que atributo de um sujeito que se afirma como pólo de
determinação de sentido através de suas exigências de auto-satisfação.
Note-se que não poderia ser diferente, já que o “materialismo” ao qual alude
Adorno está muito mais próximo de um materialismo pré-kantiano do que de um
materialismo histórico classicamente compreendido.
Influências benjaminianas
Gostaria de utilizar a última parte da aula de hoje para começar a expor esta rede
complexa de dependências mútuas que se teceu entre Adorno e Benjamin. É certo que
boa parte das articulações programáticas da conferência de Adorno nasceram,
principalmente, da sua confrontação com Origem do drama barroca alemão, de Walter
Benjamin. De fato, Benjamin é a grande referência silenciosa da conferência de Adorno.
Não apenas o conceito de “constelação” vem de Benjamin, mas várias noções centrais
para o texto de Adorno, como “materialismo”, “Idéia”, “verdade não intencional” são
extremamente dependentes das elaborações benjaminianas.
Ao publicar seu livro mais importante, em 1926, Benjamin teve o cuidado de
acrescê-lo de um prefácio no qual ganhava corpo sua maneira de pensar como o fazer
filosófico deveria ser compreendido. Neste prefácio, Benjamin inicia lembrando que,
para a filosofia, a reflexão sobre sua forma era inseparável do conteúdo de verdade que
ela visa alcançar. Um conteúdo que deveria aparecer no interior de uma versão
modernizada da dialética entre o particular e o universal, a saber, a relação entre o que
Benjamin chamava de “trabalho micrológico” (imersão nos detalhes de um conteúdo
material específico) e totalidade. Esta relação pode ser pensada, grosso modo, de duas
formas: como objeto de conhecimento e como relação à verdade. Conhecimento seria
um modo de determinar conexões entre elementos isolados através de conceitos. Já a
relação à verdade é uma relação de unidade imediata através da Idéia, pensada aqui
como modo de apreensão do ser.
61 MARX, Manifesto econômico filosófico, pp. 132-133
Esta distinção entre conceito e Idéia é fundamental e não deixa de nos remeter à
distinção kantiana entre conceito do entendimento e Idéias da razão. Grosso modo,
podemos dizer que o conceito é uma generalidade que se relaciona à sua referência
através da representação. Por sua vez, a representação é uma unidade, um princípio de
unificação que pode ser objeto de rememoração e de recognição. Se perguntarmos sobre
como o conceito estabelece relações entre representação e referência, a resposta será:
através de semelhanças e equivalências. Na verdade, toda generalidade seria baseada na
aplicação de princípios de semelhança e equivalência. No interior desta lógica de
semelhanças e equivalências, conceitualizar só pode ser estabelecer relações de
analogias, identidade. Como dirá Adorno: “pensar é identificar”. Ou como dirá ainda
Benjamin: ‘Conhecimento é aquisição (..) Nele, permanece o caráter de propriedade”.
No entanto, a Idéia seguiria outra lógica. Ela me mostraria como um objeto fora
do campo representativo só pode ser representado sob uma forma problemática (no
caso, de Kant, através de paralogismos ou antinomias). Benjamin pode assim apoiar-se
no caráter indeterminado da Idéia em Platão, caráter já identificado por Kierkegaard
quando diz: “O abstrato em Sócrates é uma designação completamente sem conteúdo.
Ele parte do concreto e chega ao que há de mais abstrato e lá onde a investigação
deveria começar, ela termina. O resultado a que ele chega é propriamente a
determinação indeterminada do puro ser”62. Ele se apóia nesta indeterminação para
lembrar que a síntese operada pela Idéia exige um estilo marcado pela descontinuidade,
em oposição à cadeia de deduções própria ao conceito. Um pouco como se, décadas
antes, Benjamin tentasse afirmar, como Deleuze, que as Idéias são multiplicidades:
“uma organização própria ao múltiplo enquanto tal, que não tem necessidade alguma da
unidade para formar um sistema”63. Esta descontinuidade própria à Idéia será a base
para a noção benjaminiana de constelação.
O conceito de constelação está, ao menos em Adorno, intimamente ligado ao
conceito de modelo. Noção fundamental para sua filosofia, já que: “Pensar
filosoficamente é como pensar por modelos”64. Como dissera na primeira aula, de
maneira esquemática, é possível dizer que há, ao menos, três maneiras de se pensar os
modos de indexação entre conceito e caso. O primeiro é o caso como exemplo do
conceito. Aqui, há uma relação tautológica de subsunção da particularidade do caso à
generalidade do conceito, até porque não há nada a apreender do caso que já não esteja
no conceito [ Uma rosa é uma rosa]. O segundo é o caso como ponto de excesso do
conceito. Trata-se da defesa da existência de uma relação de não-estruturação do caso
pelo conceito, como se houvesse uma irredutibilidade da multiplicidade própria ao caso
a toda tentativa de estruturação pelas capacidades generalizadoras do conceito. Por fim,
podemos dizer que o caso é um modelo do conceito
Lembremos aqui do que significa exatamente “modelo”. Desde Platão, “modelo”
é o que é representado. No entanto, muito mais do que a posição de um objeto, o
modelo é a representação de um estado de coisas a respeito do qual apenas a estrutura é
cognoscível. Ele é a linguagem funcional usada para conhecer a estrutura de uma
realidade. Por outro lado, operar por modelos não é a mesma coisa que operar por
esquemas. Lembremos da geometria de Desargues: modelizar significa projetar sobre
um plano, o modelo é uma construção imaginativa de um analogon de caráter
matemático ou físico que permite à ciência romper com uma tradição de conhecimento
62 KIERKEGAARD, O conceito de ironia, p, 49 63 DELEUZE, Différence et répétition, p. 236 64 ADORNO, idem, p. 39
que procura se orientar pela intuição direta de conteúdos65. A sua maneira, o modelo
parece ser um instrumento cognitivo que opera para além das coisas em si. Há um
exemplo extremamente significativo, vindo de Simplicius comentando Aristóteles:
“Face ao caráter aparentemente singular do movimento irregular dos corpos celestes, é
possível construir um sistema de hipóteses geométricas. Temos então um modelo
através do qual, substituindo os movimentos que observamos e que resistem à
explicação por movimentos uniformes e regulares, torna-se possível explicar os
primeiros pelos segundos”66. Este exemplo é praticamente o mesmo que Benjamin tem
em vista quando desenvolve o conceito de “constelação”: “As idéias estão para as coisas
assim como as constelações estão para os planetas. Isto quer inicialmente dizer: elas não
são nem o conceito nem a lei. Elas não servem ao conhecimento dos fenômenos e estes
não podem em hipótese alguma ser o critério de existência das idéias”67. No entanto, em
Benjamin, a inadequação entre o modelo e a coisa aparece como modo de posição:
“desta significação metafísica suprema que o sistema de Platão atribui à Idéia”68. Da
mesma forma como, em Adorno, a aproximação do modelo a uma realidade refratária à
Lei não significa recolocar o pensamento nas vias da premissa da identidade entre
sujeito e objeto.
Isto talvez nos explique porque Adorno insiste na necessidade de não pôr
diretamente uma concepção determinada de homem e de Dasein como fundamento de
sua experiência filosófica: “Eu contesto a necessidade de precisar recorrer a esta
concepção”69. Frase precisa porque questiona a necessidade de pôr de maneira direta o
que funciona como fundamento, já que em algumas situações pôr diretamente e de
maneira peremptória é uma maneira desastrada de anular aquilo que se quer conservar.
Pôr uma determinada concepção de homem, acabaria simplesmente por anulá-la na
medida em que ela tenderia a se confundir com o homem efetivo, este que já existe,
acabaria por determina-lo a partir das condições de estruturação de objetos da
experiência em operação.
Neste sentido, fica mais fácil compreender porque Benjamin lembra que a Idéia
não serve para o conhecimento de fenômenos. Pois contrariamente à noção mesma de
fenômeno, elas não estão ligadas a objetos a partir da noção de intencionalidade: “A
verdade”, diz Benjamin, “é um ser sem intencionalidade, formado a partir das Idéias”70.
Esta é uma noção que Adorno não cansará de expor em sua conferência, a saber, de que
a realidade a ser interpretada é não intencional, de que materialismo significa:
“interpretar o não-intencional (Intentionslosen) por disposição em conjunto
(Zusammenstellung) de elementos isolados por análise e esclarecer a realidade
(Wirklichen) graças a tal interpretação”71. Aqui, não-intencional significa aquilo que não
é posto através da estrutura intencional da consciência, que não tem sua fonte de sentido
em um objeto intencional. Pois: “o sujeito precisa ir em direção ao objeto, entrar nele,
enquanto parar diante de ´objetos do pensamento´ é descobrir nada mais que a próprio
reflexão do sujeito como intenção”72.
Neste sentido, o materialismo de Benjamin e Adorno é, digamos, não-
intencional na medida em que procuram liberar o sensível de seu aprisionamento nas
65 Sobre este ponto, ver SOULEZ, Quel nouage entre lettre et lieu? in MARCOS, La lettre et lê lieu,
Paris, Kimé, 2005 66 idem, p. 49 67 BENJAMIN, Origens do drama barroco alemão - Prefácio 68 idem 69 ADORNO, Die Aktualität ..., p. 343 70 BENJAMIN, idem, 71 ADORNO, Die Aktualität ..., p. 336 72 BUCK-MORSS, idem, p. 78
estruturas de apreensão do sujeito cognoscente. Uma liberação que encontra sua forma
na Idéia enquanto realidade que se apresenta lá onde a antinomia e a contradição não
aparece apenas como limites do pensamento e do pensável, mas se colocam como
modos de acesso ao ser. Daí porque a própria noção de história em Adorno não pode
fornecer as bases para um materialismo histórico do estilo de um Lukács, por exemplo.
Pois a história é, para Adorno, enquanto imagens históricas pensadas como Idéias
capazes de constituir uma verdade não-intencional. O que o coloca na contramão da
compreensão do acontecimento histórico enquanto verdade que advém na história como
intenção portada, no caso, por uma consciência histórica encarnada em atores sociais
determinados73. Este é o sentido do materialismo dialético de Adorno, um materialismo
distinto do materialismo histórico do marxismo de sua época.
Mas continuemos ainda um pouco mais analisando a noção de constelação. Ela
permitirá a Adorno desenvolver mais tarde a noção de que a filosofia pode desenvolver
modelos capazes de produzirem sínteses não-totalizantes, sínteses nas quais a negação
aos procedimentos de universalização totalizante é conservada. A idéia de constelação
permite o advento de um pensamento da síntese na qual: “não se progride a partir de
conceitos e por etapas até o conceito genérico (allgemeineren Oberbegriff), mas eles
entram em constelação”. O modelo para este processo de ‘entrar em constelação’ nos é
fornecido pelo “comportamento da linguagem (Sprache)", ou melhor, pelo
comportamento de uma teoria não-correspondecial da linguagem que nem por isto
abraça alguma forma de relativismo abandonando a centralidade da noção de verdade
objetiva. Segundo Adorno, a linguagem:
não apresenta um simples sistema de signos (Zeichensystem) para funções
cognitivas. Lá onde ela aparece essencialmente como linguagem, lá onde ela
advém apresentação (Darstellung), ela não define seus conceitos. Sua
objetividade é assegurada através da relação que coloca os conceitos centrados
sobre uma coisa (Sache) (...) Ao reunir-se em torno da coisa a conhecer, os
conceitos determinam potencialmente seu interior74.
Esta noção de uma opacidade fundamental da coisa que se exprime em uma constelação
de conceitos que se articulam sem jamais designar a referência de maneira imediata,
esta idéia de uma: “deficiência determinável de todo conceito (bestimmbare Fehler aller
Begriffe)" que leva à necessidade de “fazer intervir outros”75 a fim de formar
constelações, enfim, esta idéia de uma constelação de conceitos que guarda o sujeito
proposicional como elemento opaco ao qual se reporta a predicação é fundamental. De
um certo aspecto, ela demonstra que pensar por constelações é algo muito próximo de
pensar por metáforas, ou seja, através um “ver como” que me permite apreender certos
objetos apenas no interior de relações transversais, já que nenhuma apreensão conceitual
direta de conteúdo parece possível. Relações que, como dizia Adorno em Atualidade da
filosofia, são o modo de acesso a uma realidade formada por elementos isolados,
fragmentários e desprovidos de intenção unificadora.
Isto permite a Adorno comparar o conhecimento por constelações à ars
inveniendi medieval (razão das descobertas). Um processo de descoberta cujo organon é
a fantasia enquanto faculdade criadora da imaginação. Este apelo à fantasia enquanto
faculdade criadora não é sem relação com uma certa concepção da atividade cognitiva a
partir do processo criador da atividade estética que, diga-se de passagem, nunca é
73 ADORNO, idem, p. 338 74 ADORNO, ND, p. 160 75 ADORNO, ND, p. 59.
estritamente individual, nunca é feita a partir do bel querer de um individual marcado
pelo livre-arbítrio, mas é ditada pelas exigências objetivas dos materiais com os quais o
artista confronta. O verdadeiro artista, dirá mais tarde Adorno, é capaz de “fazer sua a
tendência do material” e não projetar sua categorias sobre os objetos. No entanto, ainda
precisaremos caminhar mais a fim de entender aonde Adorno quer nos levar com estas
idéias.
Introdução à experiência intelectual de Theodor Adornoí
Aula 4
Na aula de hoje, iniciaremos o comentário da Dialética do Esclarecimento através da
leitura do primeiro capítulo, O conceito de esclarecimento. Composto de três capítulos
(O conceito de esclarecimento, A indústria cultural e Elementos de anti-semitismo), este
é certamente o livro mais conhecido de Adorno, em parceria com Max Horkheimer.
Lançado em 1947 e escrito durante o exílio dos autores nos EUA, o livro reflete, de
maneira ainda muito viva, a experiência das barbáries da Segunda Guerra.
No que diz respeito à bibliografia de Adorno, note-se que este será seu segundo
livro, quebrando um hiato que durava desde 1933, com o lançamento de sua tese de
douturado: Kierkegaard – construção do estético. Durante estes quatorze anos, Adorno
publicará basicamente estudos sobre música em revistas especializadas, alem da revista
do Instituto de Pesquisas Sociais. ‘E desta época alguns de seus artigos mais
importantes, como: “O caráter fetichista da música e a regressão da audição” (1938) e “
Fragmentos sobre Wagner” (1938).
Neste período, Adorno atravessara um longo périplo. Com a ascensão do
nazismo, Adorno perde seu posto de professor na Universidade de Frankfurt. No ano
seguinte, ele é aceito como “advanced student” da Universidade de Oxford, a fim de
escrever uma tese sobre Husserl sob a orientação de Gilbert Ryle. A tese será publicada
décadas depois com o título Metacrítica da teoria do conhecimento. Em 1938, Adorno
muda-se para Nova York, onde se encontrava Horkheimer e outros membros do
Instituto de Pesquisas Sociais. Lá, ele trabalhará em um projeto sobre música no radio
(Princeton Radio Project) sob a direção do sociólogo Paul Lazarfeld. Em 1941, Adorno
muda-se para a California, onde se encontravam vários imigrantes alemães e austriacos,
como Thomas Mann, Bertolt Brecht, Arnold Schoenberg, entre outros. É neste contexto
que ele se encontrará com Horkheimer para elaborarem o que hoje conhecemos como a
Dialética do esclarecimento.
O livro, com seus três capítulos e dois excursos, visa traçar um panorama global
das ambivalências dos processos de racionalização. Neste sentido, podemos dizer que
seu cerne
é uma interversão (umschlagen) do Esclarecimento em positivismo que é visto como
figura da auto-destruição da razão. O núcleo da crítica dialética através da qual Adorno
e Horkheimer pensam a razão moderna é fornecido por este conceito de interversão. A
razão, ao tentar realizar seu projeto de constituição de uma ordem social racional no
interior do quadro histórico da modernidade, passou em seu oposto, ou seja, produziu
uma situação que os autores descrevem como “barbárie”. Assim, a crítica, por basear-se
na descrição de interversões não é simplesmente uma crítica das distorções e traições
em relação ao projeto da modernidade, nem é uma crítica da maneira com que as
resistências à modernidade continuariam presentes, de maneira regressiva, em nossa
vida social bloqueando a realização dos valores gerados no interior da experiência
filosófica da razão moderna. Ela é uma crítica totalizante da razão, ou seja, crítica que
visa expor o caráter profundamente solidário entre a razão moderna e o advento do que
os autores chamam de barbárie. É através da análise desta solidariedade que Adorno e
Horkheimer visam explicar: “porque a humanidade, ao invés de entrar em um estado
verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”76.
76 ADORNO e H|ORKHEIMER, Dialetica do Esclarecimento, p. 11
O primeiro capítulo e o primeiro excurso do livro fornecerão uma espécie de
quadro geral dos processos de interversão da razão, privilegiando uma peculiar
“sociologia da teoria do conhecimento” que visa fornecer os fundamentos de uma crítica
da técnica. Através dela, somos levados a procurar as raízes da interversão da razão não
exatamente no advento da modernidade, mas já na constituição do discurso do mito na
Grécia Antiga. Daí a idéia de um excurso que discuta Homero e seu herói, Ulisses. O
segundo excurso terá como assunto a filosofia moral e as interversões da moralidade em
perversão. O segundo capítulo versará sobre estética, isto através da discussão do
advento da noção de Indústria cultural. Por fim, o último capítulo será dedicado à
política e à tentativa de compreensão do potencial autoritário das sociedades modernas,
isto através de uma espécie de gênese psicológica do anti-semitismo. Desta forma,
teoria do conhecimento, estética, moral e política aparecerem como os horizontes de
reflexão sobre a Dialética do Esclarecimento.
A crítica da racionalidade instrumental
No entanto, uma questão rapidamente se coloca: já que a crítica não é apenas
crítica da situação existente em nome de um projeto valorativo e de consolidação de
princípios depositados na noção moderna de razão, mas uma crítica da própria razão
com suas estruturas valorativas em operação nos campos das expectativas cognitivas,
dos julgamentos morais e nos modos de racionalização de vínculos sociais, então como
resolver a questão do fundamento daquilo que quer se colocar como crítica da razão?
Em outras palavras, onde fundamentar o que os autores entendem por “estado
verdadeiramente humano” que aparece como horizonte para a indicação de uma nova
espécie de barbárie, onde fundamentar tal estado a não ser na própria razão com seus
princípios de determinação da humanidade do homem?
Este é um ponto importante porque leva Adorno e Horkheimer a se perguntarem
se é possível pôr um estado verdadeiramente humano que não se confunde
imediatamente com aquilo que a razão moderna trouxe não apenas como modo de
ordenamento da experiência, mas como produção de valores (como liberdade,
autonomia e auto-determinação). Isto exigirá o recurso a uma espécie de antropologia
filosófica que em larga medida será esboçada nas duas primeiras partes do livro. Adorno
e Horkheimer precisarão mobilizar uma teoria do sujeito e do processo de constituição
antropológica do sujeito como suporte dos valores postos pelo projeto da razão moderna
que servirá de base para a crítica da modernidade. Ela virá da antropologia (os nomes
fundamentais são Mauss, Durhkeim), da sociologia da Max Weber e da psicanálise
freudiana.
A este respeito, lembremos como Adorno e Horkheimer vinculam o programa
do Esclarecimento ä temática weberiana do desencantamento do mundo. Trata-se de
dissolver os poder das construções mítico-religiosas que constituiriam a compreensão
pré-moderna do mundo, fazendo com o que é da ordem do natural apareça como
animado por foras e processos sobre-naturais. Estas dissoluções das construções mítico-
religiosas é indissociável do primado da técnica: “A técnica é a essência deste saber”,
dirão os dois77. Técnica cujo objetivo é “transformar os homens em senhores da
natureza”, retirar o medo em relação à natureza através do desenvolvimento da
dominação instrumental. Por isto que “Força e conhecimento são sinônimos”78. Neste
sentido, a verdadeira função do desencantamento do mundo consiste na dominação
77 idem, p. 10 78 idem, p. 10
instrumental da natureza através de uma racionalidade cujas operações são baseadas na
mensuração, quantificação e calculabilidade. Como dirá Weber:
“O destino de nossos tempos é caracterizado pela racionalização e
intelectualização e, acima de tudo, pelo desencantamento do mundo [note-se esta
operação de aproximação entre racionalização, intelectualização e
desencantamento, o que nos indica como a essência da racionalização só pode
ser apreendida a partir do momento em que levamos em conta seu ‘efeito de
desencantamento’]. Precisamente, os valores últimos e mais sublimes retiraram-
se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a
fraternidade das relações humanas e pessoais”79.
É desta forma que a crítica da razão na Dialética do Esclarecimento se
transforma em crítica da racionalidade instrumental, ou seja, crítica da redução da
razão à uma racionalidade orientada para fins, a uma racionalidade que se pergunta
apenas pela maneira eficiente de organizar meios para alcançar fins. Fins estes que são,
por sua vez, reconhecidos como racionais exatamente porque se submetem à
mensuração, à quantificação e à dominação pelo cálculo. Tendo em mente o dignóstico
luckacsiano da transformação da forma-mercadoria em princípio geral de objetividade
na vida social sob o império do capitalismo, Adorno e Horkheimer vincularão o
primado da técnica à disponibilização dos objetos a partir da lógica do Capital.
Mas entendamos melhor o que devemos chamar aqui de “ racionalidade
instrumental”. Neste ponto, faz-se necessário compreendermos melhor os dois critérios
de racionalidade oferecidos por Weber. Eles são inicialmente apresentados tendo em
vista a compreensão da ação social. Dirá Weber:
“a ação social, como toda ação, pode ser determinada: 1) de modo racional
referente a fins: por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo
exterior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como ‘condições’ ou
‘meios’ para alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente,
como sucesso; 2) de modo racional referente a valores: pela crença consciente
no valor – ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação –
absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente
do resultado; 3) de modo afetivo, especialmente emocional, por afetos ou
estados emocionais atuais; 4) de modo tradicional, por costume arraigado”80.
Alguns pontos devem ser salientados nestas definições. Primeiro, a racionalidade
da ação orientada para fins (no sentido de finalidade) fundamenta-se na capacidade de
avaliar decisões a partir da previsibilidade (expectativa) do comportamento do mundo
externo e de outras pessoas. Mas devemos nos perguntar sobre o que deve acontecer ao
mundo e aos sujeitos para que estes possam aparecer como objetos de processos de
avaliação de previsilidade. Fundamentalmente, esta passagem do mundo a um conjunto
de objetos que podem se submeter a avaliações de previsibilidade implica a
categorização do que aparece a partir de procedimentos gerais de cálculo, mensuração e
identidade. Ou seja, a racionalidade orientada para fins só pode operar a partir do
momento em que aquilo que se dá à razão aparece como essencialmente matematizável
e abstraído de toda determinação qualitativa irredutível. De coisa no mundo a objeto da
79 WEBER, Ciência como vocação in Ensaios de sociologia, p. 182 80 WE BER, Economia e sociedade I, p. 15
técnica, objeto de dominação pelo cálculo, para retomar uma bela expressão de Max
Weber.
Um outro ponto merece nossa atenção : mesmo a racionalidade orientada por
valores partilha deste conceito de objeto fornecido pela racionalidade orientada para
fins. Lembremos, por exemplo, da maneira pela qual Weber diferencia a ação afetiva da
ação racional orientada por valores: “Elas distinguem-se entre si pela elaboração
consciente dos alvos últimos das ações e pela orientação consequente e planejada com
referência a estes, no caso da última”81. Uma ação impulsionada pelo desejo de
vingação (ação afetiva) pode ter seu alvo elaborado conscientemente. Mas ela não é
ação feita segundo ‘mandamentos’ ou ‘exigências’ que transcende o plano dos
sentimentos [ ela não é uma lei imposta pelo sujeito para si mesmo]. Por outro lado, esta
ação feita a partir de um mandamento transcendente permite o descolamento empírico
necessário para a orientação planejada da conduta. Quer dizer, mesmo que o valor não
seja relativo a nenhum cálculo (por exemplo, cálculo de prazer), ele permite que a
efetividade seja objeto de uma orientação planejada.
Mas voltemos os olhos para a Dialética do Esclarecimento. Uma análise
cuidadosa nos mostra um entrelaçamento complexo e profundo entre dois regimes
distintos de crítica. Uma deve ser chamada de crítica da economia política e visa
mostrar como um regime de produção econômica, no caso, o capitalismo, impõe às
esferas da vida social, um modo de racionalidade que tende a colonizar de maneira
integral nossas formas hegemônicas de vida. Esta crítica tem um quadro histórico
vinculado ao primado do regime de produção econômica em questão. Ela é, em última
instância, maneira de mostrar como um fato social (a produção econômica) produz
formas de racionalidade, atualizando um esquema marxista que tende a ver estruturas
conceituais do pensar como ideologia de processos materiais ligados, preferencialmente,
ao campo da economia.
A outra é a crítica da racionalidade instrumental que, tal como Adorno e
Horkheimer a praticam na Dialética do Esclarecimento escapam claramente do quadro
estrito da crítica do capitalismo. Basta lembrarmos aqui de afirmações prenhes de
consequência como:
A sociedade burguesa é dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo
comparável reduzindo-o a grandezas abstratas. Para o Esclarecimento, aquilo
que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão; o positivismo
moderno remete-o à literatura. “Unidade” continua sendo a divisa, de
Parmênides a Russell. O que se continua a exigir insistentemente é a destruição
dos deuses e das qualidades82.
Notemos como uma afirmação deste natureza pressupõe um quadro histórico
amplo que não se confunde imediatamente com a história do capitalismo. Pensando
nisto, comentadores como Axel Honneth insistirão em uma certa “inversão” da
perspectiva marxista clássica em Adorno e Horkheimer já que, na Dialética do
esclarecimento: “a troca de mercadorias é simplesmente a forma histórica desenvolvida
da razão instrumental” (HONNETH, 1991, p. 38). Uma razão instrumental cujas fontes
devem ser procuradas (e aqui os autores não poderiam ser mais freudiano) no processo
humano de auto-preservação diante do medo produzido pelos perigos da natureza e de
81 WEBER, Economia e sociedade, p. 15 82 idem, p. 23
humanização dos impulsos. Ou seja, as coordenadas históricas da crítica da economia
política vão se submeter a uma filosofia da história de larga escala.
Isto é o resultado desta maneira típica dos autores de compreenderem o
Esclarecimento não exatamente como um processo que começa neste momento
histórico que designamos por Iluminismo, mas que tem suas origens na passagem do
pensamento mágico ao pensamento mítico. Daí a necessidade de lembrar que: “os mitos
que caem vítimas do Esclarecimento já eram o produto do próprio Esclarecimento”83, de
que o processo de progresso que alcançará sua figura mais bem acabada no positivismo
e no capitalismo já estava claramente em marcha antes do advento do capitalismo. Por
isto, Adorno e Horkheimer são obrigados a desenvolver uma espécie de pré-história
(Urgeschichte) do Esclarecimento como condição para o entendimento do regime de
experiência histórica que a modernidade instaurou. O que não deixa de ter um forte
acento hegeliano, já que o processo histórico que se confunde com a razão ocidental
será compreendido como uma longa pré-história da modernidade. A diferença é que,
agora, esta modernidade não parece mais ter a força de realizar as promessas de
felicidade que animavam o impulso em direção à dominação instrumental da natureza.
Pois há algo que a modernidade perdeu e que seria fundamental para ela não se
interverter em simples barbárie.
Magia, mito e Esclarecimento
A melhor maneira de analisar este ponto consiste em compreender a maneira
com que Adorno e Horkheimer abordam o problema do estatuto do pensamento mágico.
Nós sabemos como o pensamento que marca a razão moderna recusa todo conteúdo
cognitivo à mimesis, à analogia e à semelhança, já que o pensamento “mágico” seria
exatamente este ainda aprisionado às cadeias da simpatia e da participação. Mas Adorno
e Horkheimer acreditam que o caráter mimético do pensamento mágico tem um
conteúdo de verdade, o que não significa em absoluto ignorar a ruptura entre natureza e
cultura. Isto significa apenas que o pensamento mágico é capaz de pôr certos processos
identificatórios recalcados pela razão reduzida a sua condição instrumental. Tais
processos concernem sobretudo à maneira com que a auto-identidade se reconhece
como momento da posição da diferença, o que nos leva à impossibilidade de posição de
distinções estritas entre Eu e Outro.
Primeiramente, lembremos da maneira com que a problemática do conteúdo de
verdade do pensamento mágico coloca-se para Adorno. Se o pensamento racional deve
denegar toda força cognitiva da mimesis, é porque se trata de sustentar: “a identidade do
eu que não pode perder-se na identificação com um outro, mas [que] toma possessão de
si de uma vez por todas como máscara impenetrável” (ADORNO e HORKHEIMER,
1985, p. 24). Lembremos do espanto do entendimento a afirmações como esta do índio
Bororó: “Eu sou uma arara”. Espanto que vem do fato da identidade do eu ser
dependente da entificação de um sistema fixo de identidades e diferenças categoriais. A
projeção de tal sistema sobre o mundo é exatamente aquilo que Adorno e Horkheimer
chamam de “falsa projeção” ligada à dinâmica do narcisismo e as processos de
categorização do sujeito cognoscente84.
83 idem, p. 23 84 Neste sentido, sigamos a afirmação: “Sempre que as energias intelectuais estão intencionalmente
concentradas no mundo exterior (...) tendemos a ignorar o processo subjetivo imanente à esquematização
e a colocar o sistema como a coisa mesma. Como o pensamento patológico, o pensamento objetivador
contém a arbitrariedade do fim subjetivo que é estranho à coisa” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p.
180)
Mas, por outro lado, se a racionalidade mimética do pensamento mágico pode
pôr as múltiplas afinidades entre o que existe, é porque ele seria mais aberto ao
reconhecimento da natureza constitutiva da identificação. Poderíamos mesmo dizer que
o pensamento mágico nos permite ver como a fixidez da identidade dos objetos é
dissolvida quando o pensamento leva em conta a natureza constitutiva das relações de
oposição (e neste contexto a oposição tem o valor de uma identificação que ainda não
foi posta)85. Isto pode nos explicar a importância de considerações como: “o espírito que
se dedicava à magia não era um e idêntico: ele mudava igual às máscaras do culto, que
deviam se assemelhar aos múltiplos espíritos” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p.
24).
Uma especial atenção é dispensada pelos autores ao conceito de mana,
desenvolvido por Marcel Mauss no Esboço de uma teoria geral da magia. Grosso
modo, podemos dizer que mana é uma noção que encontramos na Melanésia e que
“escapa da categoria rígida de nossa linguagem e de nossa razão”86. Ela visa designar
uma quantidade de idéias que poderíamos designar por: poder de feiticeiro, qualidade
mágica de uma coisa, coisa magia, ser mágico, ter poder mágico, estar encantado, agir
magicamente. Esta confusão do agente, do rito e das coisas é fundamental em magia.
No interior do pensamento mágico, o mana é o que produz o valor das coisas e das
pessoas, valor mágico, religioso e mesmo social. Mauss afirma que ele é a força por
excelência, a verdadeira eficácia das coisas. Adorno e Horkheimer vão aproveitar este
caráter de força que, ao mesmo tempo, ultrapassa e caracteriza agente e objeto a fim de
que o mana é o “primário, indiferenciado, ele é tudo o que é desconhecido, estranho:
aquilo que transcende o âmbito da experiência, aquilo que nas coisas é mais do que sua
realidade já conhecida”. Trata-se de um modo de experiência primitiva do “emaranhado
da natureza em face do elemento individual”87. Experiência de um “espírito movente”
que provoca uma profunda instabilidade na linguagem:
Quando uma árvore é considerada não mais simplesmente como árvore, mas
como testemunho de uma outra coisa, como sede do mana, a linguagem exprime
a contradição de que uma coisa seria ao mesmo tempo ele mesma e outra coisa
diferente dela, idêntica e não idêntica88.
Adorno e Horkheimer identificarão nesta experiência a fonte psicológica de um
medo, angústia, horror sagrado que indica “o eco da real supremacia da natureza nas
almas fracas dos selvagens”. De uma certa forma, esta experiência psicológica do medo
é o motor do progresso em direção ao pensamento mítico e ao Esclarecimento. Pois, do
medo o homem presume estar livre quando não há nada mais de desconhecido. E este
era afinal a base do desencantamento do mundo prometido pelo Esclarecimento.
Lembremos, a este respeito, da afirmação de Max Weber:
“Intelectualização e racionalização crescentes não significam um crescente
conhecimento geral das condições de vida sob as quais alguém se encontra.
Significam, ao contrário, uma outra coisa: o saber ou a crença de que basta
85 Martin Jay nos lembra que, em Adorno, o comportamento mimético não é imitação do objeto, mas
aproximação (anschmiegen) de si com o objeto ( Cf. JAY, 1999, p. 30) 86 MAUSS, Sociologia e filosofia,. p. 142 87 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 29 88 Idem, p. 29
alguém querer para poder provar, a qualquer hora, que em princípio não há
forças misteriosas e incalculáveis interferindo”89.
É pensando em afirmações desta natureza que Adorno e Horkheimer poderão dizer que,
para o Esclarecimento: “Nada mais pode ficar de fora, porque a simples idéia do “fora”
é a verdadeira fonte de angústia”90.
Por outro lado, lembremos como o pensamento mítico é visto por Adorno e
Horkheimer como não tendo diferenças ontológicas em relação ao pensamento
conceitual. As estruturas conceituais de organização da experiência já estão em
operação no interior do pensamento mítico. Do ponto de vista estrutural, o mito já é um
conceito, o que permite aos autores aproximarem mito e Esclarecimento. Eles
abandonam a idéia clássica de que elemento básico do mito seria o antropomorfismo e a
projeção do subjetivo sobre a natureza, já que o elemento projetivo não estará ausente
do próprio Esclarecimento. Eles dirão que: “Não há ser algum no mundo que a ciência
não possa penetrar, mas o que a ciência pode penetrar não é o ser”91.
O mito já são princípios de organização estrutural, distinção, hierarquização,
representação que, do ponto de vista formal, fornecem as primeiras figuras do que se
consolidará através do conceito. Eles chegam a basear-se em Durkheim (em De
algumas formas primitivas de classificação) para mostrar como as classificações
primitivas sociais, fundamentalmente vinculadas à produção mítica, eram as origens das
primeiras classificações científicas.
Passar por Freud
Mas ao vincular a compreensão do projeto do Esclarecimento ao
desencantamento do mundo, Adorno e Horkheimer podem desdobrar sua verdadeira
estratégia crítica: vincular a crítica da razão à crítica do sujeito moderno. A base do
argumento consiste em dizer que esta interversão da razão em dominação foi
impulsionada pela submissão da racionalidade instrumental a um valor maior: a auto-
conservação. A racionalidade instrumental seria fundamentalmente a transformação do
pensar em cálculo visando a auto-conservação. Conseqüência de uma perspectiva que
não aceita distinguir conhecimento e interesse.
Pois esta dominação da natureza externa só foi possível a partir do momento que
a natureza interna submeteu-se a princípios de auto-conservação ligados a uma instância
reflexiva de auto-controle que podemos chamar de Eu. Neste sentido, boa parte das
operações críticas da Dialética do Esclarecimento visam demonstrar como o processo
de constituição do Eu moderno, com suas exigências de auto-identidade imediata e de
auto-determinação, significou a submissão de toda experiência possível ao primado da
identidade e da abstração.
Esta estratégia justifica-se também devido a um raciocínio suplementar.
Sabemos que a razão moderna elevará o sujeito à condição de fundamento. Elevar o
sujeito à condição de fundamento implica afirmar que o sujeito fornece a medida de
tudo aquilo que pode submeter-se à razão. O sujeito é a medida que permite constituir,
que determina as condições o que pode ser objeto da experiência. A estratégia de
Adorno e Horkheimer consistirá em expor a gênese deste sujeito moderno e quais foram
as verdadeiras condições que colaboraram para o seu aparecimento.
89 WEBER, Ciência como vocação, p. 30 90 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 29 91 Idem, p. 52
Normalmente, vinculamos o aparecimento do sujeito moderno à exigências de
realização de princípios de autonomia da conduta e dos julgamentos, assim como auto-
determinação de sua própria identidade. Adorno e Horkheimer insiste, no entanto, que o
impulso de criação do sujeito moderno estaria vinculado a fatores psicológicos como: o
medo do que não posso controlar ou prever (por não se submeter à imagem de mim
mesmo) e, por isto, a dominação como peça fundamental dos processos de auto-
conservação. Pois a faculdade fundamental que constrói o campo no qual o Eu pode se
afirmar é àquela determinada pela força de auto-controle que tem dois operadores
principais: o controle da multiplicidade dos conteúdos pela unidade da forma e o
controle da diferença pela identidade. Este controle é auto-controle porque a experiência
da multiplicidade e da diferença resistentes à submissão pela forma e pela identidade é
algo que inicialmente se manifesta no interior da relação a si mesmo. Lembremos de
uma afirmação como:
O horror mítico do Esclarecimento tem por objeto o mito. Ele não o descobre
meramente em conceitos e palavras não aclarados (unaufgehellen), como
presume a crítica semântica da linguagem, mas em toda exteriorização
(Äusserung) humana que não se situe no quadro teleológico
(Zweckzusammenhang) da autoconservação92.
Ao falar de exteriorizações que não se situam no quadro teleológico da auto-
conservação, Adorno e Horkheimer expõe claramente uma das bases de sua
antropologia filosófica. Basta tirar as conseqüências da afirmação segundo a qual: “A
pulsão (Trieb) como tal seria [para o Esclarecimento] tão mítica quanto a superstição”93.
Ou seja, para o Esclarecimento, da mesma forma como o mito é peça de um
encantamento do mundo a ser combatido, as pulsões são forças pressupostas, quase
mágicas, que só podem produzir uma espécie de “encantamento de si”. Contra elas, não
se deve mobilizar apenas o desencantamento capaz de mostrar como o motor da ação
racional não são as pulsões, mas a vontade autônoma. Deve-se também lutar, através da
repressão e do recalque, contra toda exteriorização de uma pulsão que não se submeta
ao princípio de auto-conservação. Neste ponto, é Freud que aparece como marco teórico
principal.
Sabemos como Freud insiste na natureza conflitual da estrutura pulsional dos
sujeitos. Em um primeiro momento, ele partirá do conflito entre pulsões de auto-
conservação, ou simplesmente pulsões do Eu e pulsões sexuais. Há várias maneiras de
compreendermos esta distinção, mas gostaria de sugerir uma. Freud insiste que há algo,
no sujeito, anterior ao advento do Eu. Há um corpo libidinal polimórfico que orienta sua
conduta a partir da procura de satisfação de pulsões parciais (ou ainda pré-egóicas), ou
seja, impulsos que não respondem à hierarquia funcional de uma unidade. Esta estrutura
polimórfica e fragmentada das pulsões viria da ausência de um princípio unificador
como o Eu, princípio que não estaria presente antes de um certo processo de maturação
individual através do qual o sujeito internaliza a representação social de um princípio de
conduta e coerência, princípio que permite a unificação das pulsões a partir da
identificação a um Outro na posição de tipo ideal94.
Por outro lado, tal característica polimórfica das pulsões viria também do fato de
Freud compreender a estrutura do interesse (e de todas suas variantes: volição, vontade,
92 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 41 93 Idem, p. 36 94 Ver, por exemplo, FREUD, Sigmund; Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie In: Gesammelte Schriften
V, Frankfurt: Fischer, 1999
desejo etc.) a partir que ele chama de “libido”, ou seja, uma energia psíquica que
desconhece telos finalista, já que ela circularia de maneira “livre” no aparelho psíquico,
de maneira des-ligada de representações determinadas de objetos. Este caráter livre da
libido explicaria, ao menos segundo Freud, a plasticidade aparentemente inesgotável das
associações mentais que não se submetem completamente à intencionalidade
consciente, como os sonhos, lapsos, atos falhos, sintomas, assim como o caráter plástico
das fantasias. Pois elas indicariam a natureza própria a uma energia psíquica
caracterizada, principalmente, pela sua capacidade em ser transposta, invertida,
desviada, recalcada, em suma, deslocada indefinidamente. Freud ainda chama o modo
de formação de processos psíquicos submetido à esta dinâmica de processo primário.
Tal energia livre encontra na sexualidade seu campo privilegiado de
manifestação. Pois o que só se manifesta de maneira polimórfica e fragmentada
encontra seu campo privilegiado, necessariamente, em uma sexualidade não mais
submetida à lógica da reprodução, encontra seu campo em um impulso corporal que
desconhece telos finalistas, como é o caso da reprodução. Daí porque a libido é
inicialmente caracterizada como auto-erótica95, inconsistente por estar submetida aos
processos primários e, por fim, perversa (no sentido de ter seus alvos constantemente
invertidos, desviados e fragmentados).
Já as pulsões de auto-conservação, ou pulsões do Eu, permitem elevar as
exigências de conservação do indivíduo à condição de princípio de orientação da
conduta. A fome aparece em muitas situações como protótipo das exigências de
conservação. No que diz respeito ao funcionamento do aparelho psíquico, as pulsões de
auto-conservação são mais aptas a funcionarem a partir do princípio de realidade, já que
elas se constituem a partir da orientação para a satisfação de necessidades vitais. Freud
vincula o desenvolvimento da consciência, da atenção, da memória, da ação e do
julgamento às exigências de auto-conservação agenciadas pelo princípio de realidade.
Trata-se, em todos os casos, de como construir o melhor caminho para alcançar um
objeto capaz de satisfazer as pulsões do Eu. Neste sentido, ele chega mesmo a dizer que:
“o Eu-realidade (Real-Ich) não tem outra coisa a fazer que tender em direção ao
benefício (Nutzen) e afastar-se do prejuízo (Schaden)”96.
Estes termos econômicos não devem ser vistos como mera metáfora (ou melhor,
nenhuma metáfora é “mera”). O Eu submete a conduta a um princípio utilitarista de
cálculo de prazer e desprazer, estruturalmente distinto do princípio em operação na
fantasia. O que os distingue não é o vínculo entre ação e procura do prazer (já que
aceitar o princípio de realidade significa simplesmente que serei capaz de abandonar
uma procura alucinatória pelo objeto em prol de um cálculo onde as frustrações vindas
da realidade entrarão), mas o modo de organização da experiência. Na dualidade entre
pulsões sexuais e pulsões de auto-conservação há, na verdade, um conflito entre modos
de organização da experiência, para além de um conflito entre objetos visados. Basta
lembrarmos como as pulsões do Eu estão vinculadas àquilo que Freud chama de
processo secundário, ou seja, passagem de um regime de energia livre (próprio à
fantasia) a um regime de energia ligada (próprio ao pensamento da consciência com
suas estruturas fixas de representações e de inibição das exigências irrestritas de prazer).
Adorno e Horkheimer são sensíveis a este ponto. Eles querem mostrar como este
modo de organização da experiência a partir das exigências de auto-conservação só
pode nascer através do advento de um Eu que não se reconhece mais em “nenhuma
95 Lembremos como o auto-erotismo indica uma posição anterior ao narcisismo. Neste sentido, ela serve
para indicar a polimorfia de uma libido que se direciona ao prazer de órgãos que ainda não se submetem a
um princípio geral de unificação fornecido pelo Eu enquanto unidade sintética. 96 FREUD, GW vol. VIII, p. 135
exteriorização humana que não se situe no quadro teleológico da auto-conservação”.
Daí porque:
O Eu que, após o extermínio (Ausmerzung) metódico de todos os vestígios
naturais como algo de mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem sangue,
nem alma e nem mesmo um Eu natural, constituiu, sublimado num sujeito
transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a instância legisladora
da ação97.
Estas afirmações são de extrema importância para a economia do texto. Os
autores estão afirmando que o preço a pagar para a constituição do sujeito
transcendental como fundamento das operações da razão moderna está no extermínio
metódico, na repressão reiterada do que, no interior do sujeito, não se submete à forma
lógica geral do Eu. Não querer mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma significa, ao
menos neste contexto, impôr-se através da vontade de se afastar de tudo o que não é
imediatamente logos. Veremos as conseqüências maiores disto no segundo excurso
deste capítulo, “Juliette ou Esclarecimento e moral”.
Por outro lado, isto nos explica porque Adorno e Horkheimer afirmam que o
preço do primado de uma racionalidade instrumental que não é outra coisa que
entificação do princípio de auto-conservação repete-se em todo abandono da infância,
em todo processo individual de maturação visando exatamente a formação do Eu
através da submissão da polimorfia das pulsões sexuais à unidade das pulsões de auto-
conservação que visam fortalecer o Eu. Como se aquilo que aconteceu com a espécie
deve-se repetir-se e acontecer, de maneira mais condensada, com todo indivíduo. E da
mesma maneira como acontece com o indivíduo:
O medo de perder o Eu e o de suprimir com o Eu o limite entre si mesmo e a
outra vida, o temor da morte e da destruição [de si como princípio de
organização da experiência] está irmanado a uma promessa de felicidade
[advinda da liberação do que encontrou abrigo nas pulsões sexuais] que
ameaçava a cada instante a civilização98.
Por fim, Adorno e Horkheimer não deixarão de lembrar que todo este processo
está fundamentalmente vinculado ao destino da categoria de trabalho no capitalismo.
Devemos levar bastante a sério uma afirmação como: “O trabalho social de todo
indivíduo está mediatizado pelo princípio do Eu na economia burguesa”. Isto porque:
‘quanto mais o processo de auto-conservação é assegurado pela divisão burguesa do
trabalho, tanto mais ele força a auto-exteriorização (Selbsentäusserung) dos indivíduos,
que tem de se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica”99.
A este respeito, podemos lembrar como o trabalho social no capitalismo
industrial exigia um processo de regulagem das pulsões que, segundo Adorno e
Horkheimer, em muito se assemelha àquilo que Freud procurou descrever através dos
problemas vinculados ao conflito e à renúncia pulsional. Lembremos, por exemplo, de
algumas considerações que podemos encontrar em A ética protestante e o espírito do
capitalismo, de Max weber.
Weber, ao insistir que a racionalidade econômica dependia fundamentalmente da
disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta, lembrava que nunca haveria
97 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 41 98 Idem, p. 45 99 Idem, p. 41
capitalismo sem a internalização psíquica de uma ética protestante do trabalho e da
convicção, estranha ao cálculo utilitarista e cuja gênese deve ser procurada no
calvinismo. Ética esta que Weber encontrou no ethos protestante da acumulação de
capital e do afastamento de todo gozo espontâneo da vida. O trabalho que marcava o
capitalismo como sociedade de produção era um trabalho que não visava exatamente o
gozo do serviço dos bens, mas a acumulação obsessiva daqueles que: “de sua riqueza
´nada tem´ para si mesmo, a não ser a irracional sensação de ´cumprimento do dever
profissional”100. Weber chega a falar em um “estímulo psicológica”101 produzida pela
pressão ética e satisfeita através da realização de um trabalho como fim em si, ascético e
marcado pela renúncia ao gozo. O que o leva a insistir que: “este é o summum bonum
desta ‘ética’: ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, no mais rigoroso resguardo de
todo gozo imediato do dinheiro ganho, algo tão completamente despido de todos os
pontos de vista eudemonistas ou mesmo hedonistas e pensado tão exclusivamente como
fim em si mesmo que, em comparação com a ´felicidade´ do indivíduo ou sua
´utilidade´, aparece em todo caso como inteiramente transcendente e simplesmente
irracional”102. A irracionalidade deste processo de racionalização do trabalho, ao menos
a partir de uma lógica eudemonista ou hedonista, pode nos indicar seu caráter vinculado
à entificação de um mero princípio de dominação de si e de controle disciplinar
simétrico àquele descrito por Freud através daquilo que os frankfurtianos chamam de
“caráter compulsivo da auto-conservação” (Zwangscharakter der selbsthaltung).
Weber nos indica claramente vários traços desta Lei da ética protestante do
trabalho que : a transformação do Pai Celestial que suportava a Lei no Novo
Testamento em um Pai Severo superegóico: “ser transcendente que escapa à
compreensão humana”103, um trabalho feito como vocação que é resposta à voz do
Outro (no caso, o chamado de Deus), a culpabilização de todo prazer sensível
(rebaixamento do sensível que Freud compreendeu como figura maior da renúncia
pulsional) e a entificação obsessiva de um “auto-controle sereno” como ideal de
conduta104; auto-controle que se traduz na repressão ao prazer polimórfico em prol da
fixidez identitária no mundo do trabalho; fixidez já presente na idéia de “vocação”.
Em todos estes traços vemos como a mesma renúncia pulsional fundamental
para a constituição do Eu como instância de orientação da ação e de internalização do
princípio de realidade serve para a constituição da racionalidade econômica sob o
império do capitalismo. Agora, resta aos autores mostrar como esta subjetividade
moderna se impôs ao longo da história do ocidente. Para tanto, o próximo capítulo será
a exposição de uma “pré-história da subjetividade” que nos levará a este momento
inaugural da consciência do ocidente: a Epopéia de Ulisses, na Odisséia de Homero. É
neste momento em que o herói grego pro excelência aparece que Adorno e Horkheimer
encontrarão os vestígios arqueológicos do aparecimento do sujeito moderno.
100 WEBER, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo, Centauro, 2001, p. ´62 101 idem, p. 116 102 idem, p, 46 103 idem, p. 95 104 idem, p. 95
Introdução à experiência intelectual de Adorno
Aula 5
Na aula de hoje, daremos continuidade à leitura da Dialética do Esclarecimento através
do comentário do primeiro excurso ao primeiro capítulo, “Conceito do Esclarecimento”.
Este primeiro excurso, “Ulisses ou Mito e Esclarecimento” contém, sem dúvida, os
trechos mais conhecidos do livro. Trechos que se referem, sobretudo, à maneira
inesperada com que Adorno e Horkheimer transformarem a Odisséia, de Homero, na
descrição da ‘pré-história da subjetividade” moderna. Empreendimento fundamental por
transformar um dos textos fundadores da auto-consciência do Ocidente em documento
de confissão da natureza instrumental da razão. Neste sentido, a análise de um texto
literário transforma-se em peça central para a legitimação de uma crítica totalizante da
razão. Maneira, inclusive, de colocar em operação esta pressuposição metodológica
segundo a qual a filosofia devia voltar-se para objetos advindos dos campos empíricos
de saber (como pode ser a análise literária), mas para ver tais objetos como si signos
(Zeichen) a serem interpretados (Deutung).
Vimos como esta hermenêutica filosófica nada teria a ver alguma forma de
arqueologia do sentido. Como dirá Adorno, a tarefa da filosofia não consiste em mostrar
que a realidade é “portadora de sentido”, procurando com isto construir totalidades
através do recurso a alguma espécie de segundo mundo a ser descoberto através da
análise do mundo que aparece. A hermenêutica filosófica, para Adorno, nada teria a ver
com uma hermenêutica que procura reduzir as questões a elementos dados e conhecidos
presentes em um plano superior de inteligibilidade. Ao contrário, devemos compreender
que: “o texto que a filosofia tem para ler é incompleto, contraditório e despedaçado”105.
Esta incompletude, contradição e despedaçamento será a marca da leitura que Adorno e
Horkheimer farão do texto por excelência do Ocidente, Odisséia, de Homero. Eles serão
atentos à pulsação contraditória entre afirmação da autonomia e submissão à lógica da
dominação, entre afastamento da natureza e queda na brutalidade do que nada conhece
de espiritual. Eles insistirão no despedaçamento de uma narrativa que, longe de ser a
afirmação de uma era na qual: “não há nenhuma interioridade, pois não há nenhum
exterior, nenhuma alteridade para a alma”106, é a exposição contínua do conflito entre
um Eu que procura se formar e as ameaças que, a todo momento, lhe fazem sair dos
trilhos. Por fim, eles perceberão a incompletude de um texto onde o fim não garante a
paz, mas o começo da necessidade de uma guerra contínua contra si mesmo, de uma
instabilidade sem término.
Notemos ainda que os dois excursos que compõem o livro são, na verdade,
comentários de textos literários: a Odisséia e Historie de Juliette, de Sade. Uma escolha
que não deixa de ser sintomática. Pois tudo se passa como se houvesse uma estranha
complementaridade entre estes dois textos aparentemente tão distantes entre si. Tudo se
passa como se a máquina montada na pré-história da subjetividade mostrasse seus
verdadeiros traços neste texto (Sade) que nos remete, de uma maneira extremamente
peculiar e aterradora, às expectativas de esclarecimento depositadas no Iluminismo.
Antes de entrar, de forma detalhada, na maneira com que Adorno e Horkheimer
lêem a Odisséia, vale a pena compreender um pouco melhor o sentido deste projeto de
procurar assentar a crítica da razão na constituição de uma “pré-história da
subjetividade” que, como alguns comentadores perceberam claramente, é, na verdade;
105 ADORNO, Die Aktualität der Philosophie, p. 334 106 LUKÀCS, Teoria do romance, p. 26
“pré-história do idealismo, da imanência, do espírito exaltando-se a si mesmo, da
subjetividade dominadora”107.
Já sabemos como os autores não vêem sentido em construir a História do Mundo
a partir da tentativa de analisar o processo de realização de categorias como “justiça e
liberdade”. Eles estão dispostos a levar às últimas conseqüências a afirmação de
Benjamin segundo a qual: “Todo documento de civilização é um documento de
barbárie”. Daí uma afirmação fundamental como:
Uma construção filosófica da História do Mundo teria de mostrar como mesmo
apesar de todo desvio e resistência, a dominação conseqüente da natureza impôs-
se de maneira cada vez mais decidida e passa a integrar toda a interioridade
humana (Innermenschliche)108.
Ou seja, há uma filosofia da história que é sensível ao preço pago quando
aceitamos esta dicotomia fundadora do idealismo e que distingue de maneira ontológica
história e natureza. Distinção que leva necessariamente ao rebaixamento da natureza à
dimensão da matéria (contraposta ao espírito), do corpo (contraposto à alma), do objeto
(contraposto ao sujeito), da necessidade (contraposta à liberdade), do conteúdo
(contraposto à forma doadora de sentido) e do animal (contraposto ao homem). Quando
isto ocorre, a razão se mostra como dominação do que não tem mais dignidade
substancial alguma. A este respeito, lembremos da conferência a respeito da “Idéia de
História Natural”. Neste texto de juventude, Adorno já apresentava o núcleo do
argumento que ganhará corpo na Dialética do Esclarecimento quando o problema do
destino da racionalidade for questionado fundamentalmente a partir do impacto do
projeto de desencantamento do mundo ou, se quisermos, de desdivinização da natureza.
Ele já alertava, à ocasião, para a necessidade de uma racionalidade forte o suficiente
para livrar-se de uma história incapaz de se reconhecer na natureza e de uma natureza
que aparece apenas a partir da categoria do mítico: “do que está sempre lá, agenciado
como um destino, ser dado que suporta (trägt) a história humana, que nela aparece
como o que é substancial em si’109. Pois se é verdade que a história serve como
dispositivo crítico à tendência de reificação e naturalização de estruturas e processos, a
natureza serve, por sua vez, de dispositivo crítico à hipóstase da história em teleologia
marcada pela marcha irrefreável do progresso.
Vimos na aula passada como esta crítica a uma racionalidade reduzida à sua
condição instrumental de instrumento de domínio técnico da natureza tinha como
dispostivo fundamental a insistência de que este mesmo processo de dominação era o
elemento constituvo para o aparecimento da categoria moderna de sujeito. Vimos ainda
como esta era uma estratégia necessária de crítica a partir do momento em que o sujeito
é compreendido como fundamento da razão moderna. Afirmar que a razão moderna é
centrada no sujeito implica dizer que a maneira com que compreendemos a categoria de
sujeito não poderia de deixar de ter conseqüências na maneira com que definimos o que
é um objeto da experiência, quais as condições para que algo aceda à condição de
objeto. Ou seja, trata-se da compreensão de que toda verdadeira crítica da razão tem seu
solo na crítica àquilo que serve de fundamento às operações de categorização e de
constituição do objeto de experiências que aspiram preencher critérios racionais de
validade.
107 WIGGERHAUS, A Escola de Frankfurt, p. 356 108 ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, p. 208 109 ADORNO, Die Idee der Natursgechichte, p. 346
Na aula passada, foi questão de mostrar como Adorno e Horkheimer procuravam
apelar a uma teoria da gênese do Eu a fim de insistir que o impulso de criação do sujeito
moderno estaria vinculado a fatores psicológicos como: o medo do que não posso
controlar ou prever (por não se submeter à imagem de mim mesmo) e, por isto, a
dominação como peça fundamental dos processos de auto-conservação. Pois a
faculdade fundamental que constrói o campo no qual o Eu pode se afirmar é àquela
determinada pela força de auto-controle que tem dois operadores principais: o controle
da multiplicidade dos conteúdos pela unidade da forma e o controle da diferença pela
identidade. Este controle é auto-controle porque a experiência da multiplicidade e da
diferença resistentes à submissão pela forma e pela identidade é algo que inicialmente
se manifesta no interior da relação a si mesmo. Lembremos mais uma vez de afirmações
como:
O horror mítico do Esclarecimento tem por objeto o mito. Ele não o descobre
meramente em conceitos e palavras não aclarados (unaufgehellen), como
presume a crítica semântica da linguagem, mas em toda exteriorização
(Äusserung) humana que não se situe no quadro teleológico
(Zweckzusammenhang) da autoconservação110.
Toda exteriorização que não se submeta à lógica da auto-conservação, não da
auto-conservação do Eu como sujeito biológico, mas como forma geral de representação
da experiência, será vista como objeto de horror. È por pensar na auto-conservação do
Eu como forma geral de representação da experiência que Adorno e Horkheimer podem
vincular crítica da racionalidade instrumental e crítica de uma razão que nada mais é do
que efetivação de princípios de auto-conservação. Pois a razão apenas luta para
conservar a qualquer preço um modo de organização da experiência que é seu próprio
fundamento.
Neste sentido, devemos levar aqui em conta um elemento extremamente
importante referente aos problemas legados pela fundamentação de uma crítica
totalizante da razão, como esta posta em operação por Adorno e Horkheimer. Vimos, na
aula passada, que os autores compreendiam a Dialética do Esclarecimento como
resposta possível à questão sobre: ‘porque a humanidade, ao invés de entrar em um
estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de
barbárie”111. Mas logo nos deparamos com um problema: onde fundamentar o que os
autores entendem por “estado verdadeiramente humano” que aparece como horizonte
para a indicação de uma nova espécie de barbárie, onde fundamentar tal estado a não ser
na própria razão com seus princípios de determinação da humanidade do homem?
Aqui podemos desvelar mais claramente um ponto maior. Para Adorno e
Horkheimer, o que nos impulsiona à crítica e que fundamenta a “esperança de condições
melhores” é um sentimento de “sofrimento geral”112. Ou seja, trata-se de fundar a crítica
exatamente naquilo que os sujeitos sentem como “restrição ou alteração das
possibilidades de vida pressupostas ‘normais’ ou ‘sãs’”113. No entanto, podemos nos
perguntar qual a natureza deste sofrimento que parece indicar as impossibilidades
sociais da realização de si.
Na verdade, o sofrimento que Adorno tem em vista é de ordem bastante
particular. Nosso sofrimento mais aterrador não estaria exatamente vinculado, por
110 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 41 111 ADORNO e H|ORKHEIMER, Dialetica do Esclarecimento, p. 11 112 Idem, p. 208 113 HONNETH, La société du mépris, p. 89
exemplo, a alguma forma de sentimento de indeterminação resultante da perda de
relações sociais substancialmente enraizadas, estáveis, motivo sociológico clássico ao
menos depois de Durkheim e que não deixa de ecoar a perda da Sittlichkeit hegeliana,
que por sua vez, encontra eco da temática luckasiana da perda das relações substanciais
na modernidade. Nosso sofrimento mais aterrador seria este resultante do caráter
repressivo da identidade. Esta é a temática maior de uma certa filosofia francesa
contemporânea (Deleuze e Derrida) que encontra um eco profundo no interior da
experiência intelectual adorniana. Podemos mesmo dizer que para todos eles, a
modernidade não é apenas momento histórico onde: “não somente está perdida para ele
[o espírito] sua vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é
seu conteúdo”114. Perda que implicaria a pretensa angústia crescente do sentimento de
indeterminação. A modernidade seria também a era histórica de elevação do Eu a
condição de figura do fundamento de tudo o que procura ter validade objetiva. O que
neste caso significa: era do recurso compulsivo e rígido à auto-identidade subjetiva
enquanto princípio de fundamentação das condutas e de orientação para o pensar. Daí
porque uma das frases centrais da Dialética do Esclarecimento só pode ser:
O Eu que, após o extermínio (Ausmerzung) metódico de todos os vestígios
naturais como algo de mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem sangue,
nem alma e nem mesmo um Eu natural, constituiu, sublimado num sujeito
transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a instância legisladora
da ação115.
Estas afirmações são de extrema importância para a economia do texto. Os
autores estão afirmando que o preço a pagar para a constituição do sujeito
transcendental como fundamento das operações da razão moderna está no extermínio
metódico, na repressão reiterada do que, no interior do sujeito, não se submete à forma
lógica geral do Eu. Não querer mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma significa, ao
menos neste contexto, impôr-se através da vontade de se afastar de tudo o que não é
imediatamente logos, o que, no interior do si mesmo, pulsa no ritmo da não-identidade e
da alteridade. É tendo estes problemas em vista que devemos compreender o que estava
em jogo na leitura que Adorno e Horkheimer farão da Odisséia.
Ulisses: astúcia e sacrifício
O primeiro traço que salta aos olhos na leitura dos autores é a maneira de superar
a dicotomia entre romance e epopéia posta em circulação por Lukàcs. Primeiro, eles
insistem que a filologia clássica já havia mostrado como a simples assimilação entre
epopéia e mito era uma ilusão. De fato, as epopéias são narrativas (epos: a narrativa ou a
palavra do canto, poiesis: fazer) que se constituem a partir de mitos e lendas das
tradições populares orais. Mas elas já implicam organização relativamente estável da
narrativa (como a praepositio, a invocatio, in media res, a enumeratio e o epigrama) e
uma linguagem que, diferente da linguagem mítica já se coloca como representação
exotérica de um fato, e não evocação do sobrenatural através da linguagem.
Por outro lado, Adorno e Horkheimer são sensíveis ao fato na narrativa épica ser
normalmente organizada a partir dos feitos de um herói a fim de aproximar, de maneira
inesperada, a epopéia de um certo regime de “romance de formação” através da
passagem por provações, combates e vitórias. È desta forma que os autores podem
114 HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 24 115 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 41
afirmar que o herói épico já é um “protótipo (Urbild) do indivíduo burguês”116 e que
traços fundamentais da forma romance já estariam presentes na epopéia. Neste ponto, é
digno de nota a distância que separam os autores de Lukàcs. Pois, para o último, a
epopéia seria a forma estética da totalidade imanente. Daí porque: “O sujeito da épica é
sempre o homem empírico da vida, mas sua presunção criadora e subjulgadora da vida
transforma-se, na grande épica, em humildade, em contemplação, em admiração muda
perante o sentido de clara fulgência que se tornou sensível e ele, homem comum da
existência cotidiana, de modo tão inesperadamente óbvio”117. Por outro lado, o romance
seria exatamente: “a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é
mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se
problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”118. Ou seja, haveria,
ente a epopéia e o romance, a distinção entre um mundo fechado e substancialmente
enraizado naquilo que um dia Hegel chamou de “eticidade” e “a imagem especular de
um mundo que saiu dos trilhos” e é por isto assombrado por sua própria indeterminação.
Adorno e Horkheimer querem relativizar tal dissociação ao lembrar que o texto
homérico é, ao mesmo tempo, a organização de mitos extraídos de lendas difusas e a
descrição da fuga dos sujeitos diante das potências míticas. Esta oposição entre o Eu
sobrevivente e as múltiplas peripécias do destino é a base da narrativa de Homero. È
exatamente pensando nisto que Adorno e Horkheimer poderão dizer:
“As aventuras de que Ulisses sai vitorioso são todas elas perigosas seduções que
desviam o eu da trajetória de sua lógica. Ele cede sempre a cada nova sedução,
experimenta-a como um aprendiz incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido
por uma tola curiosidade, assim como um ator experimenta insaciavelmente os
seus papéis. “Mas onde há perigo, cresce também a salvação”: o saber em que
consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substância da
experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que desvia, que dissolve, e o
sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais audaciosamente
à ameaça da morte, na qual se torna duro e forte para a vida”119.
Como nos personagens do romance moderno, Ulisses se perde para poder se
encontrar, pois aqui a identidade do Eu é função da não-identidade, dos mitos
inarticulados. E não é um acaso que o “texto fundamental (Grundtext) da civilização
européia”120 seja exatamente a história de uma errância que parece nunca ter fim: “na
imagem da vida o tempo histórico desprende-se do espaço, o esquema irrevogável de
todo tempo mítico”121.
Este embaralhamento entre forma-romance e epopéia é fruto necessário da
tentativa de Adorno e Horkheimer em mostrar como as linhas da racionalidade do
espírito burguês começam antes do fim da Idade Média feudal. Proposição defensável
porque, para eles, mito e epopéia estilizam os princípios que serão a marca do
Esclarecimento: dominação e exploração. Uma referência importante para esta forma de
interpretar a epopéia é o Nietzsche de O nascimento da tragédia.
Neste livro, Nietzsche apresente seu conhecido esquema dualista referente a dois
princípios internos ao desenvolvimento das artes: o apolíneo e o dionisíaco. Enquanto o
116 Idem, p. 53 117 LUKÁCS, Teoria do romance, p. 48 118 Idem, p. 55 119 ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1991, p. 56 120 Idem, p. 55 121 Idem, p. 43
primeiro seria o desenvolvimento ligado à entificação de um processo: “que só conhece
uma lei, o indivíduo, isto é a observação das fronteiras do indivíduo, a medida no
sentido helênico”122, o segundo seria marcado pela exatamente força de ruptura e
transgressão de todo principium individuationis. Homero seria, segundo Nietzsche, o
artista apolíneo por excelência e, por isto, a fonte do processo artístico universal ao qual
devemos nossa individuação.
Pensando em um esquema semelhante, Adorno e Horkheimer poderão mostrar
como todos os momentos principais da viagem de Ulisses são conflitos de um Eu que
procura afirmar sua autonomia e controle contra forças que parecem querem leva-lo
para esta indistinção da qual ele escapou. Seis momentos são privilegiados na análise
dos autores: a ilha dos Lotófagos, onde estes comedores de Lótus traziam uma
felicidade que aparecia como um narcótico que retira toda autonomia da vontade,
disposição para o empreendimento e capacidade de decisão; o encontro com o gigante
Polifemo que exige de Ulisses a astúcia capaz de enganar o mais forte que, no entanto,
ainda não sabe jogar com uma palavra que não designa mais diretamente a coisa; o
encantamento de Circe que, através do desregramento dos prazeres, transforma os
homens em animais fazendo-os regredir a um estado de indistinção entre humanidade e
animalidade; o canto das Sereias, momento maior do livro que sela o destino da arte
como promessa de felicidade diante da qual os sujeitos ficam na posição neurótica
daqueles que se proíbem um gozo que os atrai, daqueles presos entre a posição segura e
a nostalgia de um canto que só ecoa à distância; a passagem entre Cila e Caribde,
passagem que só é possível devido ao sacrifício que Ulisses faz de seis homens a fim de
salvar os restantes e, por fim, o aprisionamento no leito da ninfa Calipso.
Em todos estes desafios, Ulisses demonstra com o verdadeiro órgão do Eu em
sua luta de auto-conservação é a astúcia (List). Ulisses é astuto não apenas por saber
jogar com a ignorância e com as fraquezas daqueles que a ele se contrapõe. Ele é astuto
por saber operar mediações. Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar como a
astúcia é elemento indissociável do trabalho humano, ao menos segundo Hegel. Para
ele, a astúcia estava ligada à capacidade que o trabalhador tem de colocar entre si
mesmo e a força indomável da natureza um instrumento, ou seja, de instaurar uma
mediação entre ele e a natureza. Esta mediação através do instrumento implica
estabelecer uma ordem mecânica de implicações e relações que permite a dominação da
natureza. E , neste contexto, Adorno e Horkheimer lembrar que a primeira forma de
mediação social não era outra que o sacrifício. Sacrifício que, por sua vez, permite a
instauração da troca, do intercâmbio daquilo que é qualitativamente diferente. De onde
se segue um elemento fundamental na leitura que os autores fazem de Ulisses: ele é
astuto porque é capaz de dominar os deuses e a natureza através do sacrifício. Seja
através do sacrifício de seus homens (como no caso da passagem entre Cila e Caribde),
seja através do sacrifício de seus interesses mais imediatos em prol do desenvolvimento
do auto-controle (como comer os bois sagrados de Posseidon).
O sacrifício não é outra coisa que a imposição da ordem humana através de uma
comunicação simbólica. Os autores falarão de: “uma cerimônia organizada pelos
homens com o fim de dominar os deuses, que são derrubados exatamente pelo sistema
de veneração de que são objetos”123. De fato, o sacrifício enquanto imposição da ordem
humana não é outra coisa que a ilusão (Trug) que aniquila a particularidade singular do
objeto em nome do valor simbólico que ele suporta. Por isto que: “A substituição que
ocorre no sacrifício, exaltada pelos defensores de um irracionalismo nova moda
122 NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, p. 40 123 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 57
(neumodische Irrationalisten), não deve ser separada da divinização do assassinato pela
apoteose do escolhido”124.
Ao falar dos “irracionalistas nova moda”, Adorno e Horkheimer pensam
sobretudo em Georges Bataille e Roger Caillois, autores que os dois conheceram através
de Walter Benjamin. Grosso modo, os dois visam fazer uma crítica totalizante da razão
moderna, mas através da recuperação do caráter fundador de vínculos próprio a
fenômenos sociais como o sacrifício, a festa e o erotismo. Tais fenômenos não podem
ser compreendidos se continuarmos analisando fatos sociais a partir da lógica utilitarista
baseada no afastamento do desprazer e na maximização do prazer. Lógica esta que seria
a única que nossas sociedades desencantadas conheceriam.
Contra este desencantamento, Bataille faz apelo à recuperação da força
disruptiva do sagrado. Um sagrado que não é solidário do estabelecimento sacramental
de regras, normas e leis de organização social, mas que, ao contrário, é o que só pode
manifestar-se através da suspensão do ordenamento social com suas estruturas de
organização de lugares, diferenças e com seu cálculo utilitarista de uso dos bens. Zona
de suspensão e indistinção capaz de realizar a exigência de: “Supressão do sujeito e do
objeto, único meio de não acabar na possessão do objeto pelo sujeito, ou seja, de evitar
a corrida absurdo da ipse querendo advir o todo”125. Supressão esta Bataille procurou
tematizar através de conceito como heterologia e gozo.
Bataille e Callois procuraram tal supressão em fenômenos sociais cuja
inteligibilidade exigiria a introdução de um outro campo conceitual com sua lógica
própria, um campo que desarticula as distinções estritas entre prazer e desprazer. Este
campo organiza-se através de uma noção bastante peculiar de “gozo”. Neste contexto,
“gozo” não significa o usufruto dos bens dos quais sou proprietário, mas algo
totalmente contrário, uma perspectiva de satisfação que não leva mais em conta os
sistemas de defesa e controle do Eu, perspectiva que flerta continuamente com
experiências disruptivas. Exemplo privilegiado aqui é o que Bataille descreve através do
erotismo: “O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas
constituídas. Eu repito: destas formas de vida social, regulares que fundam a ordem
descontínua das individualidades definidas que nós somos”126.
De fato, a crítica de Adorno e Horkheimer é bastante clara, até porque, a crítica
do Eu na Dialética do Esclarecimento não visa a aniquilação das individualidades. Ao
contrário, trata-se de lembrar que: “enquanto os indivíduos forma sacrificados, enquanto
o sacrifício implicar a oposição entre a coletividade e o indivíduo, a impostura será uma
componente objetiva do sacrifício”127. Daí esta afirmação central segundo a qual o
sacrifício não recupera, através de uma restituição substitutiva, a comunicação imediata
(unterbrochene Kommunikation) interrompida pelo advento de um Eu que: “corta
exatamente aquela conexão flutuante com a natureza que o sacrifício do Eu pretende
estabelecer”128. Ao contrário, o sacrifício é signo de uma “catástrofe histórica”, já que
perpetua a separação através do estabelecimento do domínio do intercambiável e da
troca.
Por outro lado, Adorno e Horkheimer lembram que a própria constituição do Eu
funciona através da lógica do sacrifício. A fim de se submeter às exigências de auto-
conservação, o Eu deve aprender a sacrificar exigências imediatas de prazer em prol do
agenciamento de prazeres futuros. Isto significa aprender a calcular e submeter à lógica
124 Idem, p. 58 125 BATAILLE, L´expérience intérieure, p. 67 126 BATAILLE, L´érotisme, p. 25 127 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 58 128 Idem, p. 59
do equivalente prazeres que são qualitativamente diferentes. Mas para que esta
submissão seja possível, o Eu deve se impor através do rompimento com esta
imediaticidade das sensações que Homero descreve tão bem através da passividade
narcótica dos lotófagos diante do prazer ou ainda desta “negação da natureza no
homem”.
Este rompimento é descrito por Adorno e Horkheimer como sacrifício. Pois: “o
eu que persiste idêntico e que surge com a superação do sacrifício volta imediatamente a
ser um ritual sacrificado duro, petrificado, que o homem se celebra para si mesmo
opondo sua consciência ao contexto da natureza”129. Isto é que leva os autores a falarem
da história da civilização como a história da introversão do sacrifício, ou antes, a
história da renúncia (Entsagung). Uma idéia que guia de maneira clara o livro que
provavelmente inspirou a leitura que Adorno e Horkheimer fazem de Homero: O mal-
estar na civilização, de Freud. O mesmo livro que visa mostrar como a função da
civilização era exatamente a de proteger os homens contra a natureza e ajustar suas
relações entre si. Função que a civilização cobrava através da renúncia constante
àquelas moções pulsionais que não se submetem ao princípio de unidade do vínculo
social.
Esta transformação do sacrifício em subjetividade é descrita de maneira
exemplar no canto XII da Odisséia. Aqui está a conhecida passagem do canto das
sereias. Circe fala a Ulisses: “
Há de as sereias primeiro deparar, cuja harmonia adormenta e fascina os que as
escutam/ Quem se aproprinqua estulto, esposa e filhos/ não regozijará nos doces
lares/ Que a vocal melodia o atrai às veigas,/ onde em cúmulo assentam-se de
humanos ossos e podres carnes. Surde avante;/ as orelhas aos teus com cera
tapes, ensurdeçam de todo. Ouvi-las podes / Contanto que do mastro ao longo
estejas/ de pés e mãos atado; e se, absorvido/ no prazer, ordenares que te
soltem/liguem-se com mais força os companheiros”130
Três elementos chamam a atenção de Adorno e Horkheimer nesta provação.
Primeiro, a transformação da promessa de felicidade enunciada pelo feminino em canto.
Por um lado, a força desta promessa só poderia ser enunciada pela boca de uma mulher,
já que ela: “provém da atração ou da saudade que continua exercendo a representação
de uma indistinção feliz entre o si (selbst) e o mundo, lembrança da indistinção entre o
recém-nascido e sua mãe segundo Freud; mas sucumbir à sedução dessa felicidade
também significa desistir da individuação e, portanto, arriscar a própria existência: os
viajantes que se entregaram às Sereias foram por elas devorados”131. Mas a redução
desta promessa ao canto implica, ao mesmo tempo, esvaziamento da vida social devido
a exigências de auto-controle e transformação da arte em inefetividade compensatória
dos sacrifícios exigidos por todo processo de individuação. “As Sereias recebem sua
parte, mas, na proto-hsitória da burguesia, isto já se neutralizou na nostalgia de quem
passa ao largo”132. Esta função social da arte como indicação nostálgica do que foi
perdido no processo de individuação é signo da impotência neurótica do sujeito
moderno, preso entre a vida ascética e a idealização da arte como volúpia. Como dirá
Adorno, melhor seria se ele fizesse o contrário.
129 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 60 130 HOMERO, Odisséia, Canto XII 131 GAGNEBIN, Resistir às sereias 132 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 64
Segundo, a divisão social do trabalho que esta possibilidade de fruição estética
pressupõe. Aos remadores não cabe nada a não ser tapar os ouvidos e continuarem o
percurso. Seu trabalho não permite nenhuma forma de gozo. Eles são a figura mais bem
acabada de até onde pode ir a renúncia. A eles, nem mesmo a experiência disruptiva da
arte está disponível. Resta apenas ouvir o que não remete a nada para além de si mesmo,
ou seja, esta produção sem diferença que Adorno e Horkheimer tematizarão no capítulo
II através das discussões a respeito da “indústria cultural”. Eles são a prova viva de que
“socialização radical significa alienação radical”. Uma alienação absolutamente clara
em uma afirmação central como:
A dominação do homem sobre si mesmo, que funda seu ser, é sempre
virtualmente a destruição do sujeito a serviço do qual ela ocorre, pois a
substância dominada, oprimida e dissolvida pela auto-conservação, nada mais é
senão o ser vivo (Lebendige), cujas funções configuram, elas tão-somente, as
atividades da auto-conservação, por conseguinte exatamente aquilo que na
verdade devia ser conservado133.
Estas colocações são centrais porque mostram como há uma clivagem
pressuposta entre este aparelho psíquico que dominação interna, que é o Eu, e o sujeito
que se vincula à dimensão da substância recalcada do vivente. Um conceito de vida não
mutilada funda aqui tanto a crítica social quanto um conceito de sujeito e de
individualidade que não se confunde diretamente com o Eu. Veremos melhor este ponto
na próxima aula.
Por fim, há um ponto extremamente relevante que Adorno e Horkheimer não
cessarão de lembrar e que diz respeito á maneira com que o conflito com a natureza
marca a forma com que o feminino aparece na Odisséia, sempre vinculado ao que deve
ser dominado (Circe, as sereias, Calipso). O feminino aparece como o princípio no
interior da vida social que parece colocar em cheque o afastamento da indiferenciação
com a natureza. Ele será o “representante da natureza” na sociedade burguesa. Não é
por outra razão que Calipso representa o pior de todos os perigos, a saber, a
impossibilidade de abandonar o leito de prazeres, de assumir os papeis sociais exigidos
porque, como dirá Freud, uma incompatibilidade entre o caráter particularista do amor e
as exigências de universalização da vida social parece ser inevitável.
Mas o preço não será outro que uma certa degradação do feminino que é o
princípio da degradação dos vínculos sociais a partir de uma lógica instrumental. Como
a vida afetiva não é mais o jogo de dissolução da individuação através de momentos de
simbiose e indiferenciação, mas a confirmação de papéis, ou ainda, a “instauração de
relações ordenadas para a reprodução sexual”134, então caberá a mulher um modo
determinado de alienação marcado por uma clivagem tão presente nos modos de escolha
de objetos de neuróticos. “A prostituta e a esposa são o complemento da auto-alienação
feminina na sociedade patriarcal”135. Como se esta fosse a prova mais radical do caráter
alienante da divisão entre natureza e cultura. Uma divisão que toda mulher submetida ao
regime patriarcal sente de maneira privilegiada.
133 Idem, p. 61 134 Idem, p. 75 135 Idem, p. 75
Introdução à experiência intelectual de Adorno
Aula 6
Na aula de hoje, daremos continuidade à leitura da Dialética do Esclarecimento através
do comentário de seu segundo excurso. Com ele, entramos diretamente nas
considerações de Adorno e Horkheimer a respeito da filosofia moral. Se na dimensão
cognitiva da razão, a crítica operava através da tematização das relações de interversão
entre mito e esclarecimento, na dimensão prática o primeiro dispositivo será a
tematização das relações de interversão entre moralidade e perversão. Para tanto,
Adorno e Horkheimer farão um peculiar movimento de aproximação entre Kant e o
Marques de Sade.
Mas o que tal aproximação pode significar? Como dizia Adorno a respeito da
psicanálise: ela só é verdadeira lá onde ela exagera. De fato, a idéia de aproximar Kant e
Sade parece uma espécie de “exagero” retórico que não faria juz à complexidade do
pensamento moral kantiano. No entanto, sugiro lermos este dispositivo como uma
figura importante daquilo que devemos compreender por “crítica ao formalismo”
kantiano. Pois uma das dimensões fundamentais de tal crítica pode ser enunciada da
seguinte maneira: “É possível garantir que uma ação feita por amor ao dever, ou seja,
consistente com os critérios formais que o dever enuncia, não produzirá conseqüências
prejudiciais?”.
As estratégias de crítica ao formalismo procurarão, pois, mostrar como, em
certos casos, a simples remissão a um conjunto definido de procedimentos formais não
permite o esclarecimento do que deve ser feito. Neste sentido, fazer uma crítica do
formalismo significará afirmar que a fundamentação da ação moral através da pura
forma do dever não é capaz de fornecer um procedimento seguro de decisão a respeito
do conteúdo moral de minhas ações. Se mostro que duas proposições contraditórias
podem preencher, de maneira consistente, os mesmos procedimentos de universalização
sem contradição, categoricidade e incondicionalidade então serei obrigado a assumir
que o julgamento moral precisa apoiar-se em algo mais que sua pura forma.
No fundo, é um raciocínio semelhante que guia Adorno e Horkheimer em sua
crítica à moralidade kantiana. Ele deve ser compreendido como um desdobramento da
crítica hegeliana a respeito do formalismo da moralidade kantiana e sua incapacidade de
permitir nos orientarmos na conduta. Hegel insistiu, várias vezes, na maneira com que a
convicção de agir a partir do mero respeito a procedimentos gerais da ação podia ser
compreendido, no interior da vida social, de maneira completamente inversa àquela que
o agente esperava. Podemos dizer que Adorno e Horkheimer seguem este via dando
figura a esta moralidade invertida através de Sade.
Às voltas com o esquematismo
Se voltarmos os olhos para o texto Juliette ou Esclarecimento e moral, veremos como
ele começa a partir da afirmação canônica de Kant em “Was ist Aufklãrung?” onde o
esclarecimento é apresentado como a saída do homem de uma minoridade da qual ele
mesmo é responsável. Esta saída só seria possível através da constituição de um
entendimento não dirigido por outro, uma lei que dou para mim mesmo em situação de
autonomia. Ou seja, Adorno e Horkheimer partem da definição moderna de autonomia
como a capacidade dos sujeitos porem para si mesmos a sua própria Lei moral,
transformando-se assim em agentes morais capazes de se auto-governar. De uma certa
forma, os autores desenvolvem seu texto como uma crítica às inversões que esta noção
de autonomia não seria capaz de evitar. Eles querem mostrar como a vontade de
autonomia é paga pelo medo em relação à heteronomia, medo em relação ao que não me
é radicalmente idêntico. Tentemos reconstruir o argumento tal como ele aparece no
texto.
Adorno e Horkheimer querem mostrar que tal autonomia aparece
necessariamente como “controle de si” solidário de uma certa rigidez psicológica,
inibição de afetos, e clivagem entre exigências racionais e abertura afetiva. Tal controle
de si seria, na verdade, um modo de bloqueio daquilo que poderíamos chamar de
“expressão de si” (levando em conta aqui a necessidade de reconstruir a noção mesma
de expressão). No entanto, ao invés de discutirem aspectos da Crítica da razão prática
que poderiam apoiar tal problematização, os autores preferem começar fazendo uma
crítica do papel desempenhado pelo esquematismo dos conceitos puros do entendimento
tal como ele aparece na Crítica da razão pura:
A razão é um ‘poder ... de derivar o particular do universal’. A homogeneidade
do universal e do particular é garantida, segundo Kant, pelo ‘ esquematismo do
entendimento puro’. Assim se chama o funcionamento inconsciente do
mecanismo intelectual que já estrutura a percepção em correspondência com o
entendimento136.
A possibilidade de articulação entre a dimensão prática e a dimensão cognitiva
da razão será justificada mais a frente, quando Adorno e Horkheimer afirmarem:
O sistema deve ser conservado em harmonia com a natureza. Do mesmo modo
que os fatos são previstos a partir do sistema, assim também os fatos devem por
sua vez confirmá-los. Os fatos porém, pertencem à práxis137.
Ou seja, os autores acreditam não ser possível conservar a objetividade do
conhecimento aceitando que as condições de possibilidade da intuição e do sentimento
são produções subjetivas, conservando distinções entre espontaneidade e receptividade.
O problema cognitivo kantiano pede uma teoria da ação social capaz de expor como a
ação social estrutura os fatos previstos e confirmados pelo sistema. Este “narcisismo da
razão” não deixa de adiantar posições contemporâneas como esta que encontramos em
John McDowell, anos mais tarde: “Kant’s idealism degenerates into subjective idealism
not because of relativity to ‘our conceptual scheme’ but because it contains a subjective
idealism about spatiality and temporality, a subjective idealism that reflects their being
conceived precisely as external to apperceptive unity, and so external to anything one
could call a ‘conceptual scheme”’138. Neste sentido, a peculiaridade de Adorno e
Horkheimer encontra-se no fato deste subjetivismo a respeito da espacialidade e da
temporalidade ser, no fundo, um sociologismo, como fica claro em uma aparente
boutade como:
Os sentidos já estão determinados pelo aparelho conceitual antes que a
percepção ocorra, o cidadão vê a priori o mundo como a matéria como a qual ele
o produz para si próprio. Kant antecipou intuitivamente o que só Hollywood
realizou conscientemente139.
136 ADORNO e HORKHEIMER, p. 82 137 Idem, p. 82 138 McDOWELL, Having the world in view, Harvard University Press, 2009, p. 84 139 ADORNO, Theodor; e HORKHEIMER, Max; ibidem, p. 83
Mas vejamos mais claramente a estrutura do argumento de Adorno e
Horkheimer a fim de compreendermos melhor os meandros de sua estratégia.
Sabemos que Kant tenta responder à questão sobre como conceitos puros do
entendimento podem ser aplicados a fenômenos em geral fazendo apelo às funções de
um esquema transcendental. O esquema seria uma regra, um produto transcendental da
imaginação que permite a produção de significado (Bedeutung) através do
estabelecimento de relações entre as categorias e o material empírico da intuição. A
imaginação em Kant é necessariamente poder sintético do diverso da intuição sensível
(synthesis speciosa). O esquema transcendental é uma representação mediadora, tanto
homogênea às categorias (na medida em que ele é universal, regra a priori e visa a
unidade do geral) quanto aos fenômenos (na medida em que ele unifica diretamente as
determinações particulares da sensibilidade fornecendo o objeto que se submeterá à
apreensão categorial). Kant chega a falar do esquema como: "conceito sensível de um
objeto"140 (sinnliche Begriff eines Gegenstandes), isto a fim de sublinhar seu caráte
rmediador.
Adorno e Horkheimer insistem como tal função do esquematismo demonstra
que: “o conhecimento consiste na subsunção a princípios”141. Tal subsunção, que Kant
vê como uma harmonização, apareceria como a figura de um princípio de dominação da
natureza pelo sistema, do diverso da intuição sensível por protocolos de unidade e
sistematicidade. No entanto, ao invés de discutir diretamente as razões que nos levariam
a criticar o caráter mediador do esquematismo transcendental (um pouco como fez
Heidegger em Kant e o problema da metafísica), Adorno e Horkheimer preferem passar
a um argumento psicológico. Ele consiste em dizer que a harmonização prometida pelo
esquematismo transcendental seria estratégia de dominação da natureza tendo em vista a
auto-conservação do sujeito. Tal auto-conservação seria o verdadeiro objetivo da saída
do homem da minoridade.
O uso desta categoria psicológica (a auto-conservação ou, se quisermos, a pulsão
de auto-conservação tal como aparece em Freud) se justificaria por supostamente haver
uma “relação obscura” (unklaren) na Crítica da razão pura entre o Eu empírico e o Eu
transcendental. Tudo se passa como se os autores quisessem dizer que, se o Eu
transcendental é, no fundo, um princípio formal de unidade capaz de fornecer as
condições de possibilidade para a constituição de objetos da experiência, é porque tal
princípio seria o meio de realização de exigências empíricas de auto-conservação.
Adorno e Horkheimer relativizam este ponto, lembrando que na figura do Eu
transcendental pulsa também a idéia de uma convivência baseada na liberdade. Pois
enquanto sujeito transcendental eu julgo não apenas como membro de uma comunidade
com seus sistemas de crenças, mas como membro de uma espécie de comunidade
universal virtual na qual os seres humanos estariam ligados pela razão. No entanto:
Mesmo o Eu, a unidade sintética de apercepção, a instância que designa em Kant
o ponto mais alto ao qual se deve vincular toda a lógica, é, na verdade, tanto o
produto quanto a condição da existência material142.
Esta duplicidade deve ser levada em conta. O sujeito transcendental guarda o desejo de
não limitarmos nossa existência àquilo que atualmente somos, àquilo que atualmente
nos determina. Ele é a expressão de que nada nos obriga a nos contentar com a imagem
140 KANT, idem, A 146/B 186 141 ADORNO e HORKHEIMER, p. 100 142 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, ibidem, p. 94
atual do homem, com suas configurações locais e suas determinações antropológicas.
Expressão de um desejo do que ainda não tem imagem e figura. No entanto, há de se
quando tal transcendentalidade se expressa sob a forma do dever ela se torna
dependente de um modelo de práxis que tece relações profundas com a reprodução das
condições atuais de existência material.
Isto talvez nos explique porque, além de relativizarem a distinção entre empírico
e transcendental, Adorno e Horkheimer dirão ainda que tais exigências empíricas de
auto-conservação são, por sua vez, inscritas em uma situação social precisa, elas são
exigências próprias a uma forma social de vida historicamente determinada sob as
condições de existência da sociedade capitalista. Temos então um duplo movimento que
consiste em insistir, por um lado, na gênese psicológica do sujeito transcendental e, por
outro, na gênese social das condições psicológicas do sujeito transcendental. O que
explica, por sua vez, uma afirmação aparentemente temerária como:
A verdadeira natureza de esquematismo, o ato de derivar o universal e o
particular, conceito e caso um do outro, demonstra-se claramente na economia
atual como interesse da sociedade industrial. O ser é intuído sob o aspecto da
manipulação e da administração143.
De fato, tais afirmações não são imediatamente claras. Afinal, em que o modo de
dedução do sujeito transcendental seria dependente de exigências empíricas de auto-
conservação? E, principalmente, que exigências são estas que seriam geradas no interior
da experiência social das sociedades capitalistas?
Unidade
Tentemos entender inicialmente o primeiro ponto. Em seu curso sobre a Crítica
da razão pura, Adorno enuncia a seguinte frase : “Na Alemanha, a alma é muito
refinada para ter algo a ver com a psicologia”144. O alvo era a desqualificação kantiana
de toda psicologia racional possível. Desqualificação que nos mostra como o que é da
ordem da psicologia nada poderia nos dizer a respeito de um conceito transcendental de
sujeito, fundamento da possibilidade de toda normatividade racional. Kant não cansa de
afirmar que todos os modos de consciência-de-si no pensamento são simples funções
lógicas e não há sentido algum em se perguntar sobre a gênese empírica ou psicológica
do que é função lógica e forma geral de representação. “Daqui se infere”, dirá Kant, “a
impossibilidade de explicar pelos princípios do materialismo a minha natureza como
sujeito simplesmente pensante”145.
Enquanto forma da representação em geral, sabemos que a consciência é o ato
espontâneo de unificar o diverso da experiência sensível a partir de um princípio de
ligação (Verbindung) que o sujeito já encontra em si mesmo. Pois:
não podemos representar algo como ligado no objeto se nós não o tivermos
ligado previamente e, entre todas as representações, a ligação é a única que não
143 Idem, p. 102 144 Idem, Kants “Kritik der reinen Vernunft”, op. cit., p. 292. 145 KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, op. cit., B 420. Desde sua juventude, Adorno critica tal
impossibilidade em Kant. Basta lembrarmos de afirmações como: “O ´Eu penso´ não significa apenas a
unidade formal de um sujeito do representado no pensamento (=x), mas a unidade atual das minhas
vivências (Erlebnisse) na consciência empírica (Bewsstseinverlauf)” (ADORNO, Theodor; Der Begriff
des Unbewussten in der tranzendentalen Seelenlehre In: Philosophische Frühschriften, op. cit., p. 163
pode ser dada pelos objetos, mas só pode ser realizada pelo próprio sujeito,
porque é um ato de sua espontaneidade146.
No entanto, esta ligação pressupõe a representação da unidade sintética do diverso
construída a partir de aceitação não-problemática de princípios de identidade, síntese,
unidade e diferença. Estes princípios formais de estruturação do campo da experiência
só podem aparecer ao sujeito de maneira não-problemática porque o próprio sujeito
seria o locus de constituição, a operação que permite constituir tais princípios. Pois
devemos tirar todas as conseqüências do fato do fundamento da regra de unidade
sintética do diverso da experiência ser inicialmente fornecida pelo modo de
imediaticidade à si da consciência-de-si. Devemos tirar as conseqüências do fato da
unidade sintética de apercepção ser: “o ponto mais elevado a que se tem de suspender
todo o uso do entendimento, toda a própria lógica e, de acordo com esta, a filosofia
transcendental: essa faculdade é o próprio entendimento”147.
Tal fato permitirá Adorno afirmar que as representações devem se estruturar a
partir de um princípio de identidade e de organização de distinções categoriais que é, na
verdade, a projeção da imagem do Eu penso. Neste sentido, Adorno é sensível a esta
maneira com que Kant permite a entificação transcendental de um conceito de
experiência construído a partir da auto-reflexão solipsista e da elevação da unidade (e,
por conseqüência, de identidade) a algo como uma premissa metafísica. Isto fica claro
em afirmações como:
“O conceito [kantiano] de unidade nunca é discutido. Na verdade, ele representa
o cânon a partir do qual o todo pode ser julgado. O conhecimento é uno e este
uno tem primazia sobre o múltiplo : se quisermos, eis aqui o pressuposto
metafísico da filosofia kantiana”148.
No entanto, este pressuposto metafísico seria, no fundo, outro nome para o
desconhecimento da maneira que uma experiência empírica da consciência psicológica
serve de base para a gênese da consciência transcendental. Adorno acredita que um
certo recurso à Freud poderia demonstrar como tais princípios seriam expressão de uma
certa metafísica da identidade problemática e repressiva, ou ainda, fundamentos de uma
vida mutilada (como dirá Adorno, uma « beschädigten Leben ») entificada, diríamos
nós, em um senso comum. Neste sentido, podemos mesmo dizer que através do recurso
à “psicologia” freudiana Adorno poderia mostrar os vínculos entre um certo regime
social de identidade e as exigências individuais de auto-conservação. Isto pode nos
explicar uma afirmação como:
Por detrás dos bastidores do sistema kantiano, esperava-se que o conceito
supremo da filosofia prática coincidisse com o conceito supremo da filosofia
146 KANT, Immanuel; ibidem, B 130 147 Idem, B 134. Lembremos ainda desta afirmação da primeira edição da Crítica da razão pura, onde
Kant afirma: “A unidade, que constitui necessariamente o objeto, não pode ser coisa diferente da unidade
formal da consciência na síntese do diverso das representações” (Idem, A 105) 148 ADORNO, Theodor; Kants “Kritik der reinen Vernunft”, op. cit.., p. 299. Ou ainda: “A razão [em
Kant] fornece apenas a idéia da unidade sistemática, os elementos formais de uma sólida conexão
conceitual” (ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, ibidem, p. 81. Adorno pensa principalmente
em afirmações como: “Que o eu da apercepção e, por conseguinte, o eu em todo o pensamento seja algo
de singular, que não se possa decompor numa pluralidade de sujeitos e que designe, por conseguinte, um
sujeito logicamente simples, eis o que já se encontra no conceito do pensamento e é, consequemente, uma
proposição analítica” (KANT, Immanuel; idem, B407)
teórica, com o princípio do eu que tanto funda teoricamente a unidade quanto
controla e integra praticamente as pulsões149.
A afirmação é aqui bastante clara. Haveria um modo de síntese e de integração
pulsional no campo prático da consciência psicológica, modo de integração
fundamentalmente vinculado a exigências de auto-conservação, que serviria de modelo
para a constituição do regime de síntese que determina os processos formais de ligação
do diverso e de unidade próprios à consciência transcendental. O Eu funda teoricamente
a unidade da mesma forma que ele integra praticamente as pulsões. Pois auto-
conservação é submissão de si ao princípio de identidade.
Se aceitarmos este esquema, podemos dizer que, segundo Adorno, quando não
somos capazes de reconhecer o não-idêntico no interior da vontade que se quer livre,
quando reduzimos esta não-identidade à condição de resto patológico que não se
conforma a uma vontade pensada como logos puro, nós perdemos a capacidade de
reconhecer a dignidade do que é não conforme à pura forma da identidade no interior da
ação. Nós nos satisfazemos com a pura forma da identidade, o que é a condição para
intuir o ser: “sob o aspecto da manipulação e da administração”150.
Kant e Sade
Feito isto, Adorno e Horkheimer podem passar diretamente à crítica da moralidade
kantiana. Eles começam por afirmar:
As doutrinas morais do esclarecimento dão testemunho da tentativa desesperada
de colocar no lugar da religião enfraquecida um motivo intelectual para
perseverar na sociedade quando o interesse falha151.
Ou seja, a queda do poder unificador dos mitos teológico-religiosos pede o
desenvolvimento de uma reflexão moral capaz de abrir o sujeito para motivações que
não se resumam ao sistema individual de interesse. Daí porque, por exemplo, a ética
kantiana coloque-se tão claramente em confrontação com perspectivas utilitaristas. O
respeito à Lei moral deve se fundar em algo outro do que o interesse material ou o
cálculo utilitarista. Mas, com a progressão do “pensamento calculador” em todas as
esferas da vida social, impulsionado pelo desenvolvimento da concentração econômica,
a dimensão libertária do respeito à Lei mostra sua fragilidade. Resta apenas a dimensão
instrumental de um auto-controle travestido de auto-preservação. Dimensão que mostra
como: “a razão é o órgão do cálculo, do plano, ela é neutra com respeito a objetivos, seu
elemento é a coordenação”152 e que visa formar uma organização integral da vida
desprovida de todo fim tendo um conteúdo determinado.
No entanto, Adorno e Horkheimer não parecem muito justos com Kant neste
ponto. A razão prática kantiana reconhece não apenas imperativos formais ligados às
exigências de universalidade sem contradição, de categoricidade e de
incondicionalidade. Ela insiste na exigência substantiva de tratar outros sujeitos como
fins em si mesmo, e não como meios para meus interesses, submetendo a Lei ao amor-
próprio. Podemos, entretanto, afirmar que tal imperativo kantiano é desprovido de
sentido. Pois, em algum nível, o outro é sempre meio para meu interesse, nem que seja
149 ADORNO, Dialética Negativa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 243 150 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, ibidem, p. 83 151 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 84 152 Idem, p. 87
interesse de reconhecimento, de acolhimento, de segurança, de desejo e de afeto.
Impedir genericamente que o outro seja tratado como meio é uma proposição vazia de
sentido que simplesmente inviabilizaria toda e qualquer relação humana. Ou seja, ela
simplesmente não serve para descrever a dinâmica necessária e corrente dos vínculos
entre seres humanos. Lembremos que não é necessariamente degradante ser o
instrumento do desejo do outro. Certamente, muito pior é não ser capaz de aparecer
como objeto do desejo do outro.
Este é o quadro traçado por Adorno e Horkheimer para a abordagem da obra de
Sade. A partir, principalmente, do comentário de Histoire de Julliete, os autores
procuram mostrar como a literatura libertina de Sade acaba por desvelar os aspectos
destrutivos da noção moderna de autonomia. Por isto, eles poderão dizer ao final:
Ao contrário de seus apologetas, os escritores sombrios da burguesia não
tentaram distorcer as conseqüências do esclarecimento recorrendo a doutrinas
harmonizadoras. Não pretenderam que a razão formalista tivesse uma ligação
mais íntima com a moral do que com a imoralidade153.
Esta última frase é a maneira frankfurtiana de insistir na crítica ao formalismo
moral. Se a razão formalista pode ter uma ligação tanto com a moralidade quanto com a
imoralidade ë porque a simples remissão a um conjunto definido de procedimentos
formais não permite o esclarecimento do que deve ser feito. Aproximar Kant e Sade é
maneira de mostrar como duas proposições contraditórias podem preencher, de maneira
consistente, os mesmos procedimentos de universalização sem contradição,
categoricidade e incondicionalidade.
De fato, Adorno e Horkheimer, ao aproximar Kant e Sade, trabalham como
quem acredita que a satisfação com a pura forma da Lei é a essência da perversão como
patologia social. É isto que Adorno tem em vista ao afirmar que: “a doutrina do
imperativo categórico transformou a renúncia [pulsional] em fetiche”154 [já que o
vínculo à Lei não é sustentado por nenhuma eticidade substancial].
A perversão não deve ser compreendida aqui como simples identificação de
desvios de comportamento sexual, mas como um modo particular de relacionamento à
Lei moral baseado na inversão de seu sentido pressuposto. Pois a incidência de
comportamentos ligados à polimorfia da sexualidade não é condição suficiente para
determinar um diagnóstico de perversão. Da mesma forma, não há diferença entre
fantasmas neuróticos e cenários perversos, já que não há fantasmas exclusivos dos
perversos (o que Freud já havia nos demonstrado em Bate-se em uma criança). “O
fantasma perverso não é a perversão”155. Mas se o acesso compreensivo aos fantasmas
perversos não nos fornece a estrutura da perversão é porque esta é fundada em uma
relação particular do sujeito à Lei. Relação peculiar por basear-se em modos de seguir
as injunções da Lei sem, com isto, produzir disposições de conduta que normalmente se
seguem do respeito à Lei156. Neste sentido, a perversão (e essa interpretação não deixa
de nos remeter ao sentido primeiro do termo) é uma interversão entre a Lei e os casos
que normalmente lhe seriam conformes.
No entanto, é certo que, se Kant soubesse que no século XX sua filosofia prática
encontraria críticos que a acusariam de não ser capaz de impedir a interversão da
153 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 111 154 ADORNO, Theodor, Problemeder Moralphilosophie, op. cit., p. 139 155 LACAN, Jacques, Seminaire VI, sessão de 24/06/59 156 Tomo a liberdade de remeter essas discussões sobre a estrutura da perversão a “A perversão no interior
da dialética do desejo”. In: SAFATLE, Vladimir; A paixão do negativo¸op. cit.
moralidade em perversão, ele teria certamente achado isto cômico. Pois Kant concebera
uma réplica possível a críticas desta natureza. Para ele, o ato de transgredir a Lei já
demonstrava como o perverso aceitava a realidade objetiva de uma lei: "que ele
reconhece o prestígio ao transgredi-la"157. Quer dizer, ao transgredir eu reconheço a
priori a presença da Lei em mim mesmo. Eu apenas não sou capaz de me liberar da
cadeia do particularismo do mundo sensível. O desejo de transgressão apenas funciona
como prova da universalidade da Lei.
No entanto, Adorno insiste que a natureza do desafio sadeano é de uma ordem
mais complexa. Para ele, os personagens de Sade eram impulsionados pela obediência
cega a uma Lei moral estruturalmente idêntica ao imperativo categórico kantiano. O
que lhe permitia dizer que, neste sentido:
Juliette, psicologicamente falando, não encarna nem a libido não sublimada,
nem a libido regredida, mas o prazer intelectual pela regressão, amor
intellectualis diaboli, o prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas.
Ela ama sistema e conseqüência. Ela maneja excelentemente o órgão do
pensamento racional158.
Juliette não está acorrentada ao particularismo da patologia de seus interesses; ela
também age por amor estrito à Lei.
Isto nos explica, por exemplo, porque Kant e Sade partilham uma noção de
Universal fundada através da mesma rejeição radical do patológico. Ou seja, através da
mesma desconsideração pelo sensível. Pois Sade também está à procura de uma
purificação da vontade que a libere de todo conteúdo empírico e de todo vínculo
patológico aos objetos, de toda fixação de objeto. De onde se segue, por exemplo, o
conselho do carrasco Dolmancé à vítima Eugénie, na Filosofia na alcova: "todos os
homens, todas as mulheres se assemelham: não há em absoluto amor que resista aos
efeitos de uma reflexão sã”159. Uma indiferença em relação ao objeto que pressupõe o
abandono do princípio de prazer. Este é o sentido de um outro conselho de Dolmancé à
Eugénie: "que ela chegue a fazer, se isto é exigido, o sacrifício de seus gostos e de suas
afeições"160.
Isto nos explica porque Sade, tal como Kant, eleva a apatia a pressuposto
indispensável da virtude e vêem, na compaixão, um sentimento que desvirtua a ação
moral. Os carrascos de Sade executam de maneira apática a Lei, sem deixar-se guiar por
prazeres sensíveis. Como se fosse sempre questão de negar a efervescência do prazer
sensível ligado ao Eu, a fim de dar lugar ao calor do poder demonstrativo da Lei. A
apatia (assim como a crítica à compaixão) aparece como negação radical do desejo
ainda ligado às escolhas patólogicas de objeto, negação daquilo que Adorno chamará de
afinidade mimética com o objeto. Deleuze fala com propriedade da apatia sadiana
como : “o prazer de negar a natureza em mim e fora de mim, e de negar o próprio Eu
[empírico]”161.
Sobre este ponto, Adorno e Horkheimer reconhecem, por um lado que a crítica
da compaixão, ou seja, a crítica da moralidade dos sentimentos, tem um conteúdo de
verdade, já que a compaixão tem um aspecto que não coaduna com a justiça, a saber,
seu particularismo:
157 KANT, Immanuel, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Berlin: Walter de Gruyter, 1969, p. 455. 158 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max ; ibidem, p. 102 159 SADE, D.A.F. ; La philosophie dans le boudoir, Paris : Gallimard, 1975, p, 172 160 Idem, p. 83 161 DELEUZE, Gilles, Présentation de Sacher-Masoch, op. cit., p. 27
A compaixão confirma a regra da desumanidade através da exceção que ela
pratica. Ao reservar aos azares do amor ao próximo a tarefa de superar a
injustiça, a compaixão acata a lei da alienação universal, que ela queria abrandar,
como algo inalterável162.
Ou seja, Adorno e Horkheimer criticam na compaixão a resignação do abandono
da universalidade, o que nada tem a ver com o culto ao prazer proporcionado pela
dureza, que eles encontram na crítica nietzscheana e sadeana à compaixão. Ao menos
neste ponto, eles estão próximos de Kant.
Por fim, tal incondicionalidade e indiferenciação do desejo sadeano em relação
ao objeto empírico nos leva a uma máxima moral que tem pretensões universais
análogas ao imperativo categórico kantiano. Trata-se do direito ao gozo do corpo do
outro. Sade dirá que: "todos os homens têm um direito de gozo igual sobre todas as
mulheres", isto sem esquecer de completar afirmando que, naquilo que concerne às
mulheres: "quero que o gozo de todos os sexos e de todas as partes de seus corpos lhes
seja permitido, tal como aos homens”163. Este gozo não é ligado ao sensível, já que
desconhece fixação de objeto, mas à pura forma da Lei.
No entanto, podemos nos perguntar: o que esconde este gozo pela pura forma da
Lei? Ele esconde a crença em uma identidade absoluta entre a Lei moral e a
consciência. Dolmancé também crê, como Kant, que não há nada mais fácil do que
julgar o que devemos fazer a partir da Lei que guia a conduta. Lei: "escrita no coração
de todos os homens"164. É neste sentido que devemos compreender a afirmação de
Adorno e Horkheimer:
Aquilo que Kant fundamentou transcendentalmente, a afinidade entre o
conhecimento e o plano, que imprime o caráter de uma inescapável
funcionalidade à vida burguesa integralmente racionalizada, inclusive em suas
pausas para respiração, Sade realizou empiricamente um século antes do
advento do esporte"165.
Devemos ver aqui o reconhecimento de um princípio de identidade entre Lei e forma
geral do ato. Ou seja, o que une Kant e Sade, ao menos segundo Adorno (e também
segundo Lacan que, neste ponto, está bastante próximo do filósofo alemão – de fato,
todo o aparato interpretativo aqui mobilizado para dar conta da leitura de Adorno é
simétrico ao que utilizei anos atrás para dar conta de Kant com Sade, de Lacan) é a esta
maneira de determinar a validade da ação através de um desejo de identidade, outra
forma de ver a ação como defesa contra o medo da indeterminação e do caos. “Fora
desta forma, vocês só terão o caos...”, dizia Deleuze a respeito do transcendental
submetido à forma do Eu como fundamento. Esta afirmação pode, por um lado, nos
lembrar como as exigências de autonomia acabaram por se vincular ao pathos do medo
da indeterminação e do caos através de um desejo de identidade e coesão das condutas.
Por outro, podemos nos perguntar se esta estrutura psicológica de medos e desejos não
162 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 98 163 SADE, D.A.F.; ibidem, p. 227. 164 Idem., p. 199 165 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, ibidem, p. 87. Lembremos também de Deleuze que
afirma: “Quando Sade invoca uma Razão analítica universal para explicar o mais particular no desejo,
não devemos ver aí a simples marca de sua dívida para com o século XVIII. É necessário que a
particularidade, e o delírio correspondente, sejam também uma Idéia da razão pura” (DELEUZE, Gilles;
ibidem, p. 22).
fornece o impulso que consolida uma conduta que, através de certo modo de
constituição transcendental de objetos, visa a implementação de práticas de dominação
da natureza interna e externa. Daí a questão de saber se uma regulação racional da ação
fundada na articulação conjunta dos conceitos de: vontade livre, autonomia do Eu, Lei
como pura forma do dever, distinções estritas entre sensível e inteligível, dicotomias
entre natureza e causalidade pela liberdade não seria, no fundo, uma patologia, uma
forma mutilada de vida na qual as aspirações de racionalidade se invertem facilmente
em perversão e as exigências de autonomia escondem uma forma astuta de
heteronomia.
Desta forma, a ação moral animada pelo desejo de identidade (a verdadeira
questão presente na crítica do “formalismo” kantiano) perde sua capacidade em
distinguir-se da perversão. Pois, ao menos neste ponto, a única diferença entre Sade e
Kant é que, no primeiro, é a Natureza que impõe a Lei. Mas se trata de uma natureza
que esconde, para-além do conceito de movimento vital onde se articulam
conjuntamente criação e destruição, uma natureza primeira concebida como poder
absoluto do negativo, como pura forma auto-idêntica que sacrifica todo objeto, e não
como espaço do não-idêntico, como procura Adorno. Assim, tanto a
transcendentalidade de Kant quanto o materialismo de Sade, a priori divergentes,
podem se encontrar na mesma crença da identidade entre razão e consciência.
Dolmancé tem a Lei da Natureza em seu coração; o mesmo coração que porta a Lei
moral do sujeito kantiano. Só que neste coração, Adorno não cansará de dizer, pulsa
uma patologia.
Por fim, devemos insistir que a crítica adorniana não nos leva necessariamente a
alguma forma de niilismo moral resultante da impossibilidade de estabelecer critérios
para a valoração da ação “intencional” individual. Adorno formulará um critério moral
que pode ser enunciado da seguinte forma: o verdadeiro ato moral é aquele capaz de
deixar-se guiar pelo afastamento do sofrimento. No entanto, uma proposição desta
natureza é temerária por permitir, inicialmente, várias interpretações. Pois podemos
compreender este afastamento do sofrimento como um imperativo utilitarista (nossos
atos são guiados pelo cálculo do prazer e pelo afastamento do desprazer) ou ainda como
um imperativo ligado a formas de política da vitimização (os sujeitos da ação devem ser
vistos inicialmente como vítimas em potencial).
Introdução à experiência intelectual de Theodor Adorno
Aula 7
Na aula de hoje, continuaremos o comentário da Dialética do esclarecimento através da
leitura de seu segundo capítulo, cujo título correto seria Indústria cultural:
Esclarecimento como logro (Betrug) das massas. Depois de expor o processo de
interversão do conceito de Esclarecimento em dominação através do recurso a uma
antropologia e a uma filosofia alargada da história, Adorno passarão, no segundo e
terceiro capítulos de seu livro, à maneira com que esta razão reduzida à condição de
racionalidade instrumental opera nas dinâmicas sociais da contemporaneidade. Para
tanto, o segundo capítulo versará sobre o campo da cultura, enquanto o terceiro dirá
respeito à política.
Esta escolha da cultura tem uma significação dupla. Primeiro, trata-se de mostrar
como a esfera da cultura de massa transformou-se no núcleo dos processos de
socialização e produção de individualidades. Desde os anos trinta, o Instituto de
Pesquisas Sociais desenvolvia pesquisas a respeito das modificações estruturais na
esfera da família devido ao declínio da autoridade paterna166. Neste contexto, eles
insistiam que processos de socialização e construção de ideais anteriormente vinculados
ao núcleo familiar tendiam a ser operados pelo setor mais economicamente organizado
da cultura.
Segundo, trata-se de mostrar como a produção cultural transformou-se em um
dos setores mais avançados da produção econômica no capitalismo tardio. Daí a
necessidade de constituir o conceito de “indústria cultural”, que aparece pela primeira
vez exatamente neste ensaio. O conceito visa mostrar não apenas as mutações pelas
quais a cultura passou na sociedade industrial, sendo agora objeto das mesmas técnicas
industriais e de vendas utilizadas para a maximização do lucro na produção de qualquer
outra forma de produto. Ele visa lembrar também como a cultura é atualmente peça
fundamental dos processos de auto-valorização do Capital. À sua forma, Adorno e
Horkheimer já indicam a transformação do capitalismo em “capitalismo cultural”, ou
seja, capitalismo no qual a cultura desempenha um papel econômico fundamental.
Cultura e oligopólios
Adorno e Horkheimer começam o texto criticando a tese weberiana da
autonomização das esferas sociais de valores devido a perda da força unificadora das
construções mítico-religiosas. Daí a afirmação:
Na opinião dos sociólogos, a perda do apoio que a religião objetiva fornecia, a
dissolução dos últimos resíduos pré-capitalistas, a diferenciação técnica e social
e a extrema especialização levaram a um caos cultural. Ora, essa opinião
encontra a cada dia um novo desmentido. Pois a cultura contemporânea confere
a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um
sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto167.
Ou seja, a cultura de massa aparece como poder unificador da dinâmica de
funcionamento das esferas sociais de valores e de submissão da diversidade à lógica da
identidade e da semelhança. Mas para que isto fosse possível, foi necessário que a
cultura se constituísse em um grande sistema unificado de produção. Cinema, radio,
televisão: todas estas manifestações culturais devem estar submetidas à mesma lógica
de produção e aos mesmos detentores dos meios de produção cultural. Lembremos
166 Ver, por exemplo, HORKHEIMER, Max; Autoridade e família 167 ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, p. 113
como Adorno e Horkheimer, ao refletirem sobre a estrutura monopolista da industria
cultural, afirmarão:
Tudo está tão estreitamente justaposto que a concentração do espírito atinge um
volume tal que lhe permite passar por cima da linha de demarcação entre as
diferentes firmas e setores técnicos. A unidade implacável da indústria cultural
atesta a unidade em formação da política” (ADORNO e HORKHEIMER, 1991,
p. 116).
Tal oligopolização que só se agravaria com o passar das décadas. A partir dos anos 90, a
mídia mundial adquiriu mais claramente a forma de grandes conglomerados
multimídias transnacionais nos quais convergem: controle dos meios de comunicação,
dos processos de produção de produtos midiático-culturais e das pesquisas tecnológicas
em novas mídias. Centros de tecnologia/entretenimento/informação formam hoje um
tripé fundamental da economia mundial. Conglomerados descritos por Adorno e
Horkheimer da seguinte forma:
A dependência em que se encontra a mais poderosa sociedade radiofônica em
face da industria elétrica, ou a do cinema relativamente aos bancos, caracteriza a
esfera inteira, cujos setores individuais por sua vez se interpenetram numa
confusa trama econômica168.
De fato, na história da mídia, os anos 90 serão lembrados pela criação de
conglomerados como: AOL Time Warner, Vivendi Universal e a News Corporation de
Rupert Murdoch; além da consolidação de outros como Sony, Viacom, Disney e
General Eletric (ALBARRAN, 1998). Podemos insistir, por exemplo, que já no início
dos anos 90, quatro grandes grupos de mídia controlavam cerca de 92% da circulação
de jornais diários e cerca de 89% da circulação dos jornais de domingo na Inglaterra
(THOMPSON, 1997, p. 74). Longe de termos uma pulverização das instâncias de
produção de conteúdo midiático, como alguns esperaram devido ao desenvolvimento
exponencial de novas mídias, vimos uma convergência cada vez maior de produção de
conteúdo, canais de distribuição e de gestão de recepção.
Este é um ponto importante que diz respeito à atualidade do conceito de
Indústria cultural. Pois a proliferação de estruturas de comunicação midiática como:
TV´s interativas, blogs, celulares multimídias, internet e mídias hiper-segmentadas
trouxe conseqüências para a compreensão das dinâmicas dos processos de mediação
social. Tende-se normalmente a aceitar que entramos em um movimento de abandono
de um modelo de alta-concentração de informação e baixa interatividade, modelo cujo
paradigma eram as grandes redes broadcasting, para caminharmos em direção a um
modelo de alta interatividade e produção de informação em rede. Processo este que
traria, como conseqüências, mudanças nos modos de consumo, de persuasão comercial,
de acesso à informação e, principalmente, nos modos de presença e constituição de
atores sociais na esfera pública. Tende-se a aceitar que a transformação de todo
consumidor de informação em produtor potencial de informação, transformação
impulsionada pelas novas mídias, seria a prova maior de que antigas noções
frankfurtianas de bloqueio da agenda pública de discussões por interesses de
corporações de mídias teria entrado definitivamente em obsolescência. Até porque, estas
168 Idem, p. 115. Lembremos ainda que: “para Horkheimer e Adorno é sintomático o fato de que o
momento de consolidação da indústria cultura, com o funcionamento dos grandes estúdios de Hollywood,
seja também o da ascensão do totalitarismo na Europa (...) Para estes autores, não se trata de mera
coincidência: indústria cultural e totalitarismo são apenas duas versões, respectivamente ‘liberal’ e
autoritária, do mesmo movimento histórico que engendrou a fase monopolista, não concorrencial, do
capitalismo no seu primeiro movimento de mundialização” (DUARTE, Rodrigo; Indústria cultural: uma
introdução, São Paulo: \editora FGV, 2010, p. 43)
antigas noções não dariam mais conta da espontaneidade de mobilizações produzidas
em espaços de alta-interatividade.
A respeito destas expectativas criadas pela mudança na configuração dos meios
de comunicação de massa, lembremos por exemplo desta afirmação de Howard
Rheingold a respeito da revolução social que poderíamos esperar com o advento das
chamadas novas mídias: “A maioria das pessoas que acessam as notícias através da
mídia convencional desconhece a impressionante variedade de novas cultura que tem
evoluído no mundo das redes de computador nos últimos dez anos. A maioria das
pessoas que ainda não usaram tais novas mídias permanecem inconsciente de quão
profundamente os experimentos sociais, políticos e científicos desenvolvidos
atualmente via redes de computadores pode mudar nossas vidas em um futuro próximo”
(RHEINGOLD, 1991, p. 23). No entanto, uma análise da economia política da mídia
demonstra como a natureza oligopolista descrita por adorno e Horkheimer no momento
da construção do conceito de indústria cultural apenas aprofundou-se por meio da
globalização e da incorporação da internet e de seus portais e ferramentas aos setores
dos grandes conglomerados.
Mas continuemos com a leitura do segundo capítulo da Dialética do
Esclarecimento a fim de melhor compreender a configuração do fenômeno descrito por
Adorno e Horkheimer. Os dois afirmarão que a natureza oligopolista da indústria
cultural implica padronização e estereotipia. Como em Marx, a produção cria um sujeito
para o produto. Daí porque eles devem afirmar que a atitude do público já é uma parte
do sistema, um pouco como estas comédias nas quais até o momento de rir já está
previamente definido através de risadas pré-gravadas. Vem da força do sistema sua
capacidade de organizar a sociedade através de targets prontos para identificação,
operando assim não apenas uma imposição da semelhança, mas uma gestão das
diferenças:
As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou
entre as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, tem menos a ver
com seu conteúdo do que com sua utilidade para a classificação, organização e
computação estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que
ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas169.
Desta forma, Adorno e Horkheimer podem afirmar que o processo de recepção
não é uma atividade criativa, mas a confirmação de padrões de diferenciação postos
previamente pela indústria cultural. Contrariamente a vários teóricos da comunicação de
massa, os frankfurtianos insistirão que a multiplicidade dos processos de recepção não
significa liberdade de interpretação em relação aos produtos da indústria cultural. Mais
interessante do que afirmar que cada um dos trinta milhões de consumidores que
compraram um CD da Madonna interpretam o fenômeno à sua maneira é lembrar que
trinta milhões de consumidores compraram o mesmo CD.
Neste sentido, o caráter sistêmico é de ordem tal que mesmo as linguagens
midiáticas são produtos de linguagens midiáticas anteriores, inaugurando um processo
que hoje chamamos de “remediação” e que acaba por fortalecer ainda mais a
padronização das linguagens:
Os próprios meios técnicos tendem cada vez mais a se uniformizar. A televisão
visa uma síntese do radio e do cinema, que é retardada enquanto so interessados
não se põem de acordo, mas cujas possibilidades ilimitadas prometem aumentar
o empobrecimento dos materiais estéticos a tal ponto que a identidade mal
disfarçada dos produtos da indústria cultural pode vir a triunfar abertamente já
169 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 116
amanhã – numa realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte
total170.
A linha de produção da indústria cultural
Mas para que tal circularidade das linguagens midiáticas tenha sucesso, faz-se
necessário o aperfeiçoamento das técnicas de duplicação da realidade. Uma duplicação
que não é meramente reflexo, mas forma astuta de reconfiguração do cotidiano. Maneira
de fazer o cotidiano parecer com o cinema através da tentativa do cinema moldar-se ao
cotidiano, isto décadas antes dos realities shows. Adorno e Horkheimer falam, neste
caso, de “atrofia da capacidade de representação”. Pois principalmente o cinema produz
sequencias de forma tal que proíbem, com sua aceleração do tempo, a atividade
intelectual. Como se a alienação própria ao mundo do trabalho ditasse agora as normas
de configuração do mundo do lazer e do entretenimento. Isto a ponto de Adorno e
Horkheimer afirmarem: “a diversão é a continuação do trabalho sob o capitalismo
tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para
se pôr de novo em condições de enfrentá-lo”171. Na verdade, o mundo do lazer é a
verdadeira base dos dispositivos de controle no capitalismo. Um controle através da
diversão, através do ritmo e da forma disponibilizada para a diversão.
Se voltarmos nossos olhos para a configuração dos produtos da industria
cultural, veremos como a padronização almejada pela exige que tais produtos sejam
uma montagem de clichês que devem ser facilmente identificados para que a segurança
vinda da capacidade de reconhecer o que sempre volta ao mesmo lugar seja confirmada.
Assim:
Os detalhes tornam-se fungíveis. A breve sequencia de intervalos, fácil de
memorizar, como mostrou a canção de sucesso; o fracasso temporário do herói,
que ele sabe suportar como good sport que é; a boa palmada que a namorada
recebe da mão forte do astro; sua rude reserva em face da herdeira mimada são,
como todos os detalhes, clichês prontos para serem empregados arbitrariamente
aqui e ali e completamente definidos pela finalidade que lhes cabe no
esquema172.
O termo mais importante aqui é “esquema”. O termo se refere ao esquematismo
transcendental kantiano. Adorno e Horkheimer insistem, assim, que a indústria cultural
fornece o esquema que determina a gramática da imaginação. Daí porque eles podem
afirmar que ela fornece o esquematismo como o primeiro serviço ao consumidor. Ao
agir, preferencialmente, na dimensão da formação das imagens, a indústria cultural
fornece a priori as regras que deverão guiar a constituição do que é recebido pela
sensibilidade. Desta forma, Adorno e Horkheimer se distanciavam das teses de Walter
Benjamin em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.
Esta discussão já vinha do texto O fetichismo na música e a regressão da
audição, de 1938. Grosso modo, contra a promessa de “aprofundamento da percepção”
produzida pela possibilidade do cinema penetrar o coração do real “alargando o mundo
dos objetos dos quais tomamos conhecimento” (Benjamin 13, p. 22), Adorno teria
insistido na tendência histórica de fixação da audição musical na particularidade de uma
dimensão fetichizada do material. Na música, o pretenso desenvolvimento da percepção
do particular seria regressão a um estágio de incapacidade de síntese e de reconstrução
da totalidade funcional. Por outro lado, se Benjamin lembrava que a modernidade
170 Idem, p. 116 171 Idem, p. 128 172 Idem, p. 118
capitalista viu a arte consolidar a passagem do valor de culto ao valor de exposição e,
com isto, afirmar sua autonomia; Adorno não teria deixado de sublinhar que a
autonomia da esfera artística se pagava com a passagem do valor de culto ao valor de
troca e sua redução à condição de mercadoria.
Esta discussão retorna no texto sobre a indústria cultural através da insistência
de que o pretenso aprofundamento e modificação da percepção produzidos pelo
desenvolvimento técnico das linguagens midiáticas seria, na verdade, a submissão
integral da percepção ao esquema, a liquidação do particular pelo universal. Pois
nenhum momento ou detalhe pode se opor à realização da “Ideia”. Como em uma peça
publicitária, tudo deve estar lá para reforçar o mesmo padrão e “conceito”. A linguagem
da indústria cultural partilha com o positivismo lógico a aversão à opacidade e à
ambigüidade. Tudo deve ser organicamente submetido ao todo. Daí porque Adorno e
Horkheimer falam da anulação completa do estilo nos produtos da indústria cultural, ou
ainda, da exposição de como o “estilo autêntico” do passado era aparentado à
dominação.
Esta é uma característica importante na diferenciação entre as obras de arte e os
produtos da industria cultural: só os produtos industriais são perfeitos. Pois Adorno
lembrará várias vezes como um objeto estético não é apenas a realização de um plano
construtivo. Toda verdadeira obra de arte foi animada pela tensão contra a unidade do
estilo, grandes artistas sempre produziram obras que continham tendências diversas ao
estilo que suas obras encarnavam. Por isto, tais obras são também a desorganização do
plano construtivo a partir da resistência dos materiais, elas são a cena no interior da qual
o plano construtivo encontra seu limite. Uma verdadeira obra de arte nunca é totalmente
construída, nunca é a realização integral e sem falhas de seu plano:
A possibilidade da arte não se transformar em uma jogo gratuito ou em uma
decoração depende da medida de suas construções e montagens serem, ao
mesmo tempo, desmontagens, integrando, ao desorganizá-los, os elementos da
realidade que associam-se livremente em algo diferente173.
Pois a diferença entre a ordem reificada presente na realidade social e a instauração
formal que toda verdadeira obra de arte é capaz de produzir está no fato de apenas a
obra de arte reconhecer a tensão entre os princípios formais e o material que ela procura
submeter. Neste sentido, a tensão é o verdadeiro objeto da obra de arte. Em toda obra de
arte, há um estranho amor pelas coisas que resistem à regra, ao princípio. Pois uma obra
de arte totalmente construída, incapaz de levar ao paroxismo a tensão entre forma e
material, seria a monstruosidade da simples exemplificação de um estilo, ela seria uma
peça de decoração. Como dirá Adorno :
“nas grandes obras de arte, a tensão (Spannung) [entre a particularidade dos
momentos expressivos e a universalidade do Todo como construção] não deve
ser resolvida (ausgleischen) nas obras, como mesmo Schoenberg pensou, mas
deve ser sustentada durante todo seu desenvolvimento” (Adorno 5, p. 301).
Esta é uma maneira importante de lembrar que, na produção estética, o sujeito
encontra o fracasso da objetivação de sua intenção primeira. No entanto, este fracasso é
condição constitutiva para a própria realização da obra de arte. Pois tal fracasso é a
astúcia de uma expressão que luta contra as formas da convenção social. Expressão que
procura recuperar algo da categoria de « autenticidade ». Mas não há autenticidade lá
onde o que impera é um “idioma da naturalidade” no qual até as quebras da regra já são
previstas pela regra, Um pouco como estes programas de comédia no qual sabemos de
173 ADORNO, Théorie esthétique, p. 324
antemão que os atores sairão de seus papéis. Por isto, Adorno e Horkheimer podiam
afirmar:
Todas as infrações cometidas por Orson Welles contra as usanças de seu oficio
lhe são perdoadas porque, enquanto incorreções calculadas, apenas confirmam
ainda mais zelosamente a validade do sistema174.
Neste sentido, a estereotipia própria à indústria cultural não é simplesmente a
repetição do mesmo, mas ela é principalmente a gestão do acaso e do imprevisível. Este
é um esquema importante. Não se trata apenas de conformar a um padrão positivo, mas
de aprisionar o que poderia aparecer como quebra do padrão. Desta forma, vários
criticarão Adorno por ele parecer, com isto, acreditar que o processo de recepção não
seria uma atividade criativa, mas simplesmente a confirmação de padrões postos e
manipulados pela Indústria Cultural:
Não há escapatória aqui. É a tecnologia que ganha, envenenando a originalidade
e o valor, oferecendo banalidade e monotonia em seu lugar. A crítica é ao
cinema, não a filmes específicos: à música gravada, sobretudo o jazz, não a
canções particulares. Tudo representa a industrialização da cultura: o sucedâneo,
o uniforme e o inautêntico. E é fundamentalmente uma crítica da tecnologia
como cultura, e da tecnologia como cultura impensável fora das estruturas
políticas e econômicas, sobretudo econômicas, que a contém, e sobre cuja
bigorna sua produção diária é forjada175.
Diversão e administração da insatisfação
Mas notemos um ponto importante que faz uma grande diferença. De uma certa
forma, Adorno não acredita que a função da Indústria Cultural consista simplesmente na
imposição do mesmo e na promessa reiterada de satisfação imediata. É mais correto
dizer que, para Adorno, a força da Indústria Cultural vem da sua capacidade em
administrar o desencanto com a própria Indústria Cultural, em gerir a insatisfação.
Adorno insiste várias vezes que a Indústria Cultural já produz produtos que visam dar
forma, expressar o desencantamento com os próprios estereótipos fornecidos por ela
mesma176. Como se o verdadeiro cerne do poder não estivesse na imposição de padrões
de condutas, mas na gestão de suas margens. Neste sentido, se é verdade que a atitude
do público já seria parte do sistema, é porque desencanto do público com os padrões da
Indústria Cultural é o verdadeiro motor do processo. Nada dá mais dinheiro à Indústria
Cultural do que produtos que expressam o desencanto com a própria Indústria Cultural.
Maneira astuta de perpetuar conteúdos de identificação que não exigem mais
assentimento.
É desta maneira que, no seio da indústria cultural, a diversão se transforma em
apologia da sociedade: “divertir-se significa concordar”. Ou seja, concordar como quem
esquece o sofrimento e aquilo que ele afirma como verdade, concordar como quem
foge, não da realidade, mas da vontade de resistir. Nesta apologia do que é, encontra-se
a base de uma ideologia que não é mais a afirmação falsa de valores ou o velamento de
interesses que não podem ser revelados, mas a afirmação cínica e desencantada do que
há. Assim, ao descrever as estruturas materiais da ideologia nas sociedades pós-
industriais, Adorno percebera claramente como a ideologia não podia mais fazer apelo à
noção de falsa consciência, mas precisava lidar com uma dimensão:
174 ADORNO e HORKHEIMER, p. 121 175 SILVERSTONE, Por que estudar a mídia, Belo Horizonte: Loyola, 2002, p.; 53 176 Neste sentido, tomo a liberdade de remeter a SAFATLE, Vladimir ; “Sobre um riso que não
reconcilia”, In: Cinismo e falência da crítica, São Paulo: Boitempo, 2008
que representa uma camada que não é nem admitida nem reprimida – a esfera da
insinuação, da piscadela de olhos, do ‘você sabe do que estou falando’.
Frequentemente, nos deparamos com um tipo de ‘imitação’ do inconsciente na
manutenção de certos tabus que, entretanto, não são inteiramente endossados.
Até agora, nenhuma luz foi lançada sobre essa zona psicológica obscura177.
Lembremos de como um texto seu consagrado à análise da televisão como ideologia
termina com a mesma piscadela de olhos:
Dentre os scripts analisados, numerosos são estes que jogam com a consciência
de ser kitsch e dão uma piscadela de olhos em direção ao espectador (Betrachter)
não ingênuo, como quem diz que eles mesmos não acreditam no que mostram,
que eles não são assim tão idiotas178.
Uma colocação desta natureza é central se lembrarmos que, para Adorno, a indústria
cultural e as estruturas de comunicação de massa que as suporta respondem, de maneira
hegemônica, pelo estabelecimento das dinâmicas dos processos de socialização. Neste
sentido, a verdadeira questão posta por Adorno não diz respeito a processos unívocos de
“manipulação” que desconsiderariam a multiplicidade possível dos modos de recepção e
de re-significação. Ela diz respeito às conseqüências de processos de socialização
mediados por conteúdos previamente ironizados. Pois: “Fun é um banho medicinal, que
a indústria do prazer prescreve incessantemente”179. Mas por que tudo deve ser fun? As
reflexões de Adorno apontam para uma boa resposta, principalmente em um texto tardio
como Tempo livre (1969), no qual, ao final, é questão de uma certa revisão no quadro
geral do conceito de indústria cultural tal como ele fora apresentado na Dialética do
Esclarecimento.
Partindo de um estudo empírico desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Sociais
sobre os modos de recepção da veiculação midiática alemã do casamento da princesa
Beatriz da Holanda, Adorno percebe a necessidade de abandonar um esquema clássico
de ilusão ideológica em prol da análise de “sintomas de uma consciência duplicada”
(Symptome eines gedoppelten Bewutseins). A respeito de tais sintomas, ele dirá:
Verificamos que muitos [espectadores] se portavam de modo bem realista e
avaliavam com sentido crítico a importância política e social de um
acontecimento cuja singularidade bem propagada os havia mantido em suspenso
ante a tela do televisor. Em conseqüência, se minha conclusão não é muito
apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece
para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira
como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos
pelo teatro e pelo cinema. Talvez ainda mais: não se acredita inteiramente
neles180.
Podemos ver no diagnóstico desta auto-ironia da indústria cultural um caminho frutífero
aberto por Adorno na análise das formações contemporâneas da ideologia. Ele explica
porque a negação do trágico é um elemento fundamental da cultura contemporânea. De
fato, uma análise empírica dos produtos recentes da indústria cultural demonstra a
prevalência deste esquema. Personagens de contos de fadas que não mais se
reconhecem e criticam seus próprios papéis, peças publicitárias que zombam da
177 ADORNO, Theodor ; As estrelas descem à Terra, São Paulo : Unesp, 2008, p. 41 178 ADORNO, Fernsehen als ideologie, p. 530. Lembremos ainda de uma afirmação adorniana
complementar a esta: “Para resumir em uma proposição a tendência imanente da ideologia da cultura de
massa, devemos parodiar a proposição “Torna-te o que tu és” compreendendo-a como duplicação e
justificação do estado existente que destrói toda transcendência e toda crítica” (ADORNO, Soziologische
Schriften I, p. 476) 179 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 131 180 ADORNO, Tempo livre, p. 127
linguagem publicitária, celebridades e representantes políticos que se auto-ironizam em
programas televisivos: todos estes fatos são apenas figuras de um processo geral de
ironização dos modos de vida que nos coloca diante daquilo que Peter Sloterdijk um dia
chamou de ideologia reflexiva, posição ideológica que porta em si mesma a negação
dos conteúdos que ela apresenta. Maneira astuta de perpetuá-los mesmo em situações
históricas nas quais eles não podem mais esperar enraizamento substancial algum.
A economia libidinal da cultura industrial
Aqui podemos entender melhor qual é o “logro” produzido pela industria
cultural e que dá título ao nosso capítulo. Ele se encontra em uma satisfação que sempre
é impedida, um prazer que sempre é estragado: “ A indústria cultural não sublima, mas
reprime”, “As obras de arte são ascéticas e sem pudor, a indústria cultural é
pornográfica e puritana” , “ Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo privá-las disso é a
mesma coisa. “e isso o que proporciona a indústria do erotismo”181. Em todas estas
colocações encontra-se a idéia de que o prazer produzido pela industria cultural é de
ordem tal que equivale ao recalque, não à sublimação. Se eles podem afirmar que a
produção em série do objeto sexual produz seu recalcamento, se a repetição aparece
como modo de recalque é porque há uma forma de visibilidade e de agenciamento das
demandas que não as satisfazem, mas a estragam.
De fato, a Escola de Frankfurt já oferecia um aparato para pensar tal situação
através do conceito de “dessublimação repressiva”, utilizado inicialmente para a
compreensão de certas características das sociedades totalitárias. Sabemos como a
noção de dessublimação repressiva aparece no edifício frankfurtiano, entre outras
coisas, como possibilidade de instrumentalização social direta das moções pulsionais
sem recalcamento, fruto de uma época na qual o eu não seria mais capaz de se impor
como instância de mediação entre as exigências pulsionais do isso e o princípio de
realidade. Adorno, por exemplo, chega a falar em “expropriação do inconsciente pelo
controle social” (Adorno, 1990, p. 431) que se imporia devido à fraqueza do eu.
Mas no interior deste debate, devemos lembrar como Marcuse configura
corretamente tal expropriação do inconsciente como neutralização social do conflito
entre princípio de prazer e princípio de realidade através de uma satisfação
administrada, ou seja: “uma liberalização controlada que realça a satisfação obtida com
aquilo que a sociedade oferece”, pois, “com a integração da esfera da sexualidade ao
campo dos negócios e dos divertimentos, a própria repressão é recalcada” (Marcuse,
1996, p. 106). Ou seja, abre-se a todos estes autores a consciência de uma modificação
substancial nos processos de socialização. Eles compreendem a tendência das imagens
sociais ideais não estarem mais vinculadas a representações do “auto-controle sereno”
da renúncia pulsional como princípio de conduta. Com a “integração da esfera da
sexualidade ao campo dos negócios”, ou seja, com a incitação ao gozo como elemento
central na lógica de reprodução mercantil do capitalismo, o que proliferam são imagens
ideais daqueles que instrumentalizam seus fantasmas e que pautam sua conduta pela
exigência irredutível de gozo.
Aqui, encontra-se a chave do logro. Como, em última instância, toda
determinação se mostrará provisória e inadequada diante de um imperativo que exige o
puro gozo, faz-se necessário que o sistema de mercadorias disponibilize determinações
de maneira cada vez mais descartável e de maneira cada vez mais rápida, importando-se
181 ADORNO e HORKHEIMER, idem,pp. 131-132
cada vez menos com o pretenso conteúdo de tais determinações. Em última instância,
isto nos faz passar de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da
insatisfação administrada na qual ninguém realmente acredita nas promessas de gozo
veiculadas pelo sistema de mercadorias (já que elas são postas para serem descartadas),
a começar pelo próprio sistema, que as apresenta de maneira cada vez mais auto-irônica
e “crítica”. Ou seja, estamos diante de uma sociedade na qual os vínculos com os
objetos (incluindo aqui os vínculos com a imagem do corpo próprio) são frágeis, mas
que, ao mesmo tempo, é capaz de se alimentar desta fragilidade. Até porque, não se
trata de disponibilizar exatamente conteúdos determinados de representações sociais
através do mercado. Trata-se de disponibilizar a pura forma da reconfiguração
incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado. Perpetuar a insatisfação
com os conteúdos fornecidos pela indústria cultural, sem nunca permitir que ela se
transforme em insatisfação contra a própria indústria cultural.
Introdução à leitura de Theodor Adorno
Aula 8
Na aula de hoje, terminaremos a leitura da Dialética do Esclarecimento através da
leitura de seu último capítulo: “Elementos do anti-semitismo: limites do
Esclarecimento”. Do ponto de vista metodológico, este é o capítulo mais importante do
livro. Pois Adorno e Horkheimer submetem a discussão sobre o anti-semitismo a um
modelo de análise do que poderíamos chamar de “patologias sociais”. Trata-se de
compreender o anti-semitismo não apenas como um comportamento político, mas como
o sintoma de um vínculo social que se organiza tal como uma patologia mental. Desta
forma, as estruturas autoritárias e totalitárias da vida social não serão explicadas apenas
através de sua necessidade econômica, mas principalmente através de seu vínculo a
estrutura psíquica dos sujeitos socializados. Sem negligenciar a pergunta sobre as
condições sócio-econômicas que geraram o anti-semitismo, interessa aos nossos
autores, principalmente, compreender como funciona a estrutura psíquica e libidinal do
anti-semita.
No entanto, esta perspectiva não visa, por sua vez, patologizar o anti-semita
como alguém que sofreria, porventura, de alguma forma de doença mental. Esta seria
uma forma de transformar o anti-semitismo em um fenômeno marginal vinculado a
indivíduos ou grupos refratários ao processo de esclarecimento e racionalização social.
No entanto, a perspectiva de Adorno e Horkheimer é mais radical e consiste em analisar
o anti-semitismo como: “um esquema profundamente arraigado, um ritual da
civilização”182. Um modo de comportamento organicamente vinculado ao modo com
que a modernidade constitui individualidades e pensa, tanto psiquicamente quanto
socialmente, ideias como identidade e diferença. Assim, a análise da estrutura psíquica e
libidinal do anti-semita aparecerá como a lente de aumento que nos permite observar as
tensões no interior de todo e qualquer processo de formação do Eu moderno. Por isto
que o anti-semitismo aparecerá como um “limite do esclarecimento”, como um
fenômeno que expõe os limites internos do esclarecimento.
Esta perspectiva tinha forte consequência política, pois era forma de lembrar
como o totalitarismo não é apenas uma tendência que aparece quando a individualidade
é dissolvida. Ele é tendência inscrita na própria estrutura dos indivíduos modernos.
Conhecemos a idéia clássica segundo a qual situações de anomia, famílias desagregadas
e crise econômica são o terreno fértil para ditaduras. Um pouco como quem diz: lá onde
a família, a prosperidade e a crença na lei não funcionam bem, lá onde os esteios do
indivíduo entram em colapso, a voz sedutora dos discursos totalitários está à espreita.
No entanto, se realmente quisermos pensar a extensão do totalitarismo, seria
interessante perguntar por que personalidades autoritárias aparecem também em
famílias muito bem ajustadas e sólidas, em sujeitos muito bem adaptados a nossas
sociedades e a nosso padrão de prosperidade.
Para realizar este modelo de análise do anti-semitismo, Adorno e Horkheimer
precisam colocar em circulação um movimento duplo. Primeiro, trata-se de
compreender porque “em razão de sua adaptação deficiente” os judeus seriam o grupo
que: “tanto prática quanto teoricamente, atraem sobre si a vontade de destruição que
uma falsa ordem social gerou dentro de si mesma”183. Argumentos que levam em conta
a posição sócio-econômica dos judeus na Europa, representantes do capital mas sem
direito de posso, assim como a tensão entre as religiões cristã e judaica serão utilizados.
182 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160 183 Idem, p. 157
Nesta parte, que vai até o sub-capítulo V, o modelo de análise é relativamente
tradicional.
No entanto, a partir do sub-capítulo V, Adorno e Horkheimer farão apelo a uma
antropologia filosófica profundamente inspirada na psicanálise freudiana para descrever
dois processos complementares: a passagem de uma racionalidade mimética a uma
racionalidade conceitual e o processo de formação do Eu como instância auto-
identitária. È na maneira com que a racionalidade mimética será recalcada para permitir
o fortalecimento das ilusões identitárias do Eu que Adorno e Horkheimer verão as raízes
psíquicas do anti-semitismo e de todo e qualquer processo de segregação social, já que:
A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a atenção . E como
as vítimas são intercambiáveis segundo a conjuntura: vagabundos, judeus,
protestates, católicos, cada uma delas pode tomar o lugar do assassino, na
mesma volúpia cega do homicídio, tão logo se converta na norma e se sinta
poderosa enquanto tal184.
Na verdade, esta análise do totalitarismo fascista como patologia social terá dois
momentos: este que encontramos em nosso texto e uma análise das mutações da
autoridade através do quadro freudiano fornecido por Psicologia das massas e análise
do Eu. Podemos encontrar tal elaboração no texto de Adorno: Teoria freudiana e as
estruturas da propaganda fascista. O que vincula os dois desenvolvimentos é o uso
contínuo da categoria clínica de “paranoia” para descrever a estrutura psíquica e
libidinal no interior do fascismo. Longe de ser uma simples metáfora, tal uso de um
conceito clínico para a análise de fenômenos sociais é de extrema importância.
O anti-semitismo
Os autores começam lembrando que os judeus são o grupo que atrai para si, de maneira
privilegiada, a vontade de destruição gerada pela falsa ordem social. Sua caracterização
como povo sem pátria, ligado a si apenas pela força da tradição e da religião teria
levado a um “apego inflexível às suas próprias formas de ordenamento da vida” e a uma
relação sempre insegura com a ordem dominante. Isto auxiliou a eleição do anti-
semitismo em modo social maior de racismo.
Adorno e Horkheimer são sensíveis às representações sociais normalmente
associadas aos judeus: banqueiros e intelectuais, o dinheiro e o espírito como o sonho
renegado daqueles que a dominação mutilou. Na posição de banqueiros , eles são os
bodes expiatórios da injustiça econômica de uma classe inteira. Pois os judeus ficaram
presos ao setor de circulação, sem direito a aceder a posses no setor produtivo, eles se
transformaram nos oficiais de justiça para o sistema inteiro, atraindo a si o ódio que
normalmente deveria estar direcionado a uma classe inteira. Na Europa, eles se
transformaram nos intermediários que representam, para o povo, a conta a pagar pelo
progresso:
Os judeus não foram os únicos a ocupar o setor de circulação, mas ficaram
encerrados nele tempo demais para não refletir em sua maneira de ser o ódio que
sempre suportaram. Ao contrário de seu colega ariano, o acesso à origem da
mais-valia ficou-lhes em larga medida vedado. Foi só após inúmeras
184 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160
dificuldades e tardiamente que lhes foi permitido o acesso à propriedade dos
meios de produção185.
Desta forma, a revolta contra uma classe econômica se transforma em revolta contra
um povo. O conflito sócio-econômico se transforma em conflito cultural, em revolta
contra formas de vida pretensamente diferentes. Assim, o destino dos judeus esteve
ligado ao descontentamento em relação a um processo de racionalização econômica que
eles foram obrigados a representar por serem “capitalistas sem propriedade”.
Esta explicação ligada à posição econômica dos judeus na Europa será acrescida
à defesa de uma relação particularmente problemática entre cristianismo e judaísmo, até
porque o judaísmo esteve, durante toda a época de intolerância religiosa na Europa,
presente como minoria constantemente vítima de revoltas.
Adorno e Horkheimer desconfiam do propalado universalismo paulino do
cristianismo por identificarem uma “nostalgia incontrolada” dos vínculos comunitários
religiosos canalizados como “rebeliões racistas” esporádicas: “os descendentes dos
visionários evangelizadores são convertidos, segundo o modelo wagneriano dos
cavaleiros do Santo graal, em conjurados da confraria do sangue e em guardas de
elite”186. A potencia comunitária da religião cristã é ativada de forma violenta contra os
semitas.
Esta nostalgia incontrolada dos vínculos comunitários pode ser melhor
compreendida se lembrarmos da leitura frankfurtiana do cristianismo, que coloca de
ponta a cabeça a leitura hegeliana. Ela está resumida na seguinte afirmação:
Na medida em que o absoluto é aproximado do finito, o finito é absolutizado.
Cristo, o espírito que se tornou carne, é o feiticeiro divinizado. A auto-reflexão-
humana no absoluto, a humanização de Deus por Cristo, é o próton pseudos. O
progresso para além do judaísmo tem por preço a afirmação de que o homem
Jesus era Deus. É justamente o aspecto reflexivo do cristianismo, a
espiritualização da magia, que está na origem do mal187.
Podemos entender tais colocações da seguinte maneira. No cristianismo, um particular
(Cristo) é elevado à condição de universal abstrato (Deus). Tal humanização do divino
tem um preço: a impossibilidade de vivenciar a limitação do particular, com suas
exigências. Um finito vale por absoluto, ele deve se sacrificar no absoluto, mas tal
sacrifício nunca é completo, pois implica perpetuação da natureza representativa da
finitude. Algo muito diferente do judaísmo e de seu caráter radicalmente anti-
representativo. Ao dar tal lugar à finitude, Adorno e Horkheimer podem dizer que o
cristianismo queria permanecer espiritual, mesmo quando aspirava à dominação. O
sacrifício do finito através da morte de Cristo faz com que o cristianismo viva entre a
recaída em uma religião natural (e o reconhecimento da inanidade do sacrifício da
representação finita) e o reconhecimento do paradoxo de um fé que exige sacrifício
completo da razão do mundo (como vemos nestes “cristão paradoxais”, como Pascal e
Kierkegaard). Os que recaíram em uma religião natural precisavam ver, nos que não
confiduram seu particularismo com o universal (a religião judaica) o inimigo a ser
abatido.
185 Idem, p. 163 186 Idem, p. 165 187 Idem, p. 166
Mimesis
Mas o verdadeiro cerne da discussão de Adorno e Horkheimer sobre o anti-
semitismo está vinculado à necessidade do recalque da mimesis enquanto condição para
a formação da individualidade. Com o recalque da mimesis é o problema da relação à
alteridade que se transforma em questão: “A mera existência do outro é motivo de
irritação. Todos os outros são ´muito espaçosos´ e devem ser recolocados em seus
limites, que são os limites do terror sem limites”188. Sendo os judeus uma das figuras
privilegiadas da alteridade na Europa, abre-se espaço para uma discussão que enquadra
o anti-semitismo como sintoma de uma recuperação social da revolta contra a mimesis
perdida.
A racionalidade mimética aparece como o que deve ser perdido tanto no
processo de maturação dos sujeitos quanto no processo de progresso social. Filogênese
e ontogênese recalcam a mimesis como relação entre sujeito e natureza. Para apreender
a especificidade de tal conceito, faz-se necessário lembrar que sua construção visa dar
conta de quatro problemas diferentes, porém complementares, a saber, o problema do
conteúdo de verdade do pensamento analógico que sustenta práticas magias e rituais, a
tendência pulsional a regressar a um estado de natureza marcado pela
despersonalização, o mimetismo animal e, sobretudo, as experiências estéticas
contemporâneas de confrontação com materiais reificados. Teoria antropológica da
magia, teoria psicanalítica das pulsões, mimetismo animal e o problema estético da
representação: eis os eixos da problemática adorniana do mimetismo.
Nós conhecemos como o pensamento que marca a razão moderna recusa todo
conteúdo cognitivo à mimesis, à analogia e à semelhança, já que o pensamento
“mágico” seria exatamente este ainda aprisionado às cadeias da simpatia e da
participação. Mas Adorno acredita que o caráter mimético do pensamento mágico tem
um conteúdo de verdade, o que não significa em absoluto ignorar a ruptura entre
natureza e cultura. Isto significa apenas que o pensamento mágico é capaz de pôr certos
procedimentos lógicos recalcados pela razão reduzida a sua condição instrumental. Tais
procedimentos concernem sobretudo à maneira com que a auto-identidade se reconhece
como momento da posição da diferença.
Primeiramente, lembremos da maneira com que a problemática do conteúdo de
verdade do pensamento mágico coloca-se para Adorno. Se o pensamento racional deve
denegar toda força cognitiva da mimesis, é porque se trata de sustentar: “a identidade do
eu que não pode perder-se na identificação com um outro, mas [que] toma possessão de
si de uma vez por todas como máscara impenetrável”189. A identidade do eu seria pois
dependente da entificação de um sistema fixo de identidades e diferenças categoriais. A
projeção de tal sistema sobre o mundo é exatamente aquilo que Adorno e Horkheimer
chamam de “falsa projeção” ligada à dinâmica do narcisismo e a processos de
categorização do sujeito cognoscente.
Mas, por outro lado, se a racionalidade mimética do pensamento mágico pode
pôr as múltiplas afinidades entre o que existe, é porque ele seria mais aberto ao
reconhecimento da natureza constitutiva da identificação. Poderíamos mesmo dizer que
o pensamento mágico nos permite ver como a fixidez da identidade dos objetos é
dissolvida quando o pensamento leva em conta a natureza constitutiva das relações de
188 Idem, p. 171 189 ADORNO et HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 24
oposição190. Isto pode nos explicar a importância de considerações como: “o espírito
que se dedicava à magia não era um e idêntico: ele mudava igual às máscaras do culto,
que deviam se assemelhar aos múltiplos espíritos”191.
Mas se Adorno procura no pensamento mágico a posição da estrutura de
identificações que suporta a determinação de identidades, ele saberá abandonar todo
conceito positivo de natureza aí presente. Pois, devemos sempre insistir neste ponto, a
assimilação de si ao objeto no mimetismo não pode ser compreendida como promessa
de retorno à imanência do arcaico. Isto pode nos explicar por que Adorno irá pensar o
conceito de natureza a partir, entre outros, da teoria pulsional freudiana. Sigamos uma
afirmação canônica sobre o mimetismo. Ele seria o index de uma: “ tendência a perder-
se no meio ambiente (Unwelt) ao invés de desempenhar aí um papel ativo, da propensão
a se deixar levar, a regredir à natureza. Freud a qualificou de pulsão de morte
(Todestrieb), Callois de mimetismo”192.
Se a pulsão de morte indica, para Adorno, as coordenadas da reconciliação com
a natureza, então devemos admitir várias conseqüências. Pois a pulsão de morte
freudiana expõe a economia libidinal que leva o sujeito a vincular-se à uma natureza
compreendida como espaço do inorgânico, figura maior da opacidade material aos
processos de reflexão. Esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da qual fala
Adorno pensando na pulsão de morte é o resultado do reconhecimento de si no que é
desprovido de inscrição simbólica.
Isto fica ainda mais claro se levarmos a sério o recurso a feito por Adorno a
Roger Caillois. Operação extremamente esclarecedora pois nos ajuda a compreender
melhor o que significa esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da qual fala
Adorno. Pois lembremos que, com seu conceito de psicastenia lendária, Caillois
tentava demonstrar como o mimetismo animal não deveria ser compreendido como um
sistema de defesa, mas como uma “tendência a transformar-se em espaço” que
implicava em distúrbios do “sentimento de personalidade enquanto sentimento de
distinção do organismo no meio ambiente”193. Falando a respeito desta tendência,
própria ao mimetismo, de perder-se no meio ambiente, Caillois afirma: “O espaço
parece ser uma potência devoradora para estes espíritos despossuídos. O espaço os
persegue, os apreende, os digere em uma fagocitose gigante. Ao final, ele os substitui. O
corpo então se dessolidariza do pensamento, o indivíduo atravessa a fronteira de sua
pele e habita do outro lado de seus sentidos. Ele procura ver-se de um ponto qualquer do
espaço, do espaço negro, lá onde não se pode colocar coisas. Ele é semelhante, não
semelhante a algo, mas simplesmente semelhante”194.
Este espaço negro no interior do qual não podemos colocar coisas (já que ele não
é espaço categorizável, condição transcendental para a constituição de um estado de
coisas) é um espaço que nos impede de ser semelhantes a algo de determinado. Por
outro lado, tal como na noção freudiana de tendência de retorno a um estado inorgânico,
Caillois lembra que o animal geralmente mimetiza não apenas o vegetal ou a matéria,
mas o vegetal corrompido e a matéria decomposta. “A vida recua em um degrau”, dirá
190 Martin Jay sublinhou que, em Adorno, o comportamento mimético não é uma imitação do objeto, mas
a assimilação (anschmiegen) do si ao objeto (JAY, Mimesis and mimetology in HUHN et
ZUIDERVAART, The semblance of subjectivity, p. 30) 191 ADORNO E HORKHEIMER, idem, p. 24 [tradução modificada] 192 idem, p. 245 [tradução modificada] 193 O termo « psicastenia » refere-se a nosografia de Pierre Janet que compreendia a psicatenia como
afecção metal caracterizada por rebaixamento da tensão psicológica entre o eu e o meio, sendo
responsável por desordens como sentimentos de icompletude, perda do sentido da realidade, fenômenos
ansiosos, entre outros. 194 CAILLOIS, Le mythe et l’homme, p. 111
Caillois (2002, p. 113). Podemos perceber como que, ao pensar o mimetismo como
identificação com um meio ambiente que obedece a tais coordenadas, Adorno livrou o
conceito de mimetismo da sua subordinação à natureza como plano imanente e positivo
de doação de sentido.
Desta forma, o imperativo mimético de reconhecimento de si na morte como
negação da potência de organização do Simbólico (Freud) e no exterior vazio de
conceito (Caillois) nos indica onde o sujeito deve se reconhecer para afirmar-se em sua
não-identidade. Josef Früchtl compreendeu claramente este ponto ao afirmar: “A
ambivalência em relação à mimesis que é possível identificar em Adorno deve ser
explicada através do seu reconhecimento do caráter absolutamente solidário entre
reconciliação e destruição”195; ou seja, reconciliação com o objeto e destruição do eu
enquanto auto-identidade estática no interior de um universo simbólico estruturado.
Vemos assim como tal articulação entre Freud e Caillois implica na identificação com
uma negatividade que vem do objeto enquanto motor de descentramento. Pois o
problema da mimesis nos mostra como, para Adorno, o objeto é aquilo que marca o
ponto no qual o eu não reconhece mais sua imagem, ponto no qual o sujeito se vê diante
de um sensível que é "materialidade sem imagem" cuja confrontação implica em um
perpétuo descentramento. A mimesis aparece assim enquanto reconhecimento de si na
opacidade do que só se oferece como negação. É ela que, com isto, pode nos indicar
como realizar esta promessa de reconhecimento posta de maneira tão surpreendente por
Adorno nos termos que já vimos: “Os homens só são humanos quando não agem e não
se põem mais como pessoas; esta parte difusa da natureza na qual os homens não são
pessoas assemelha-se ao delineamento de uma essência inteligível, a um Si que seria
desprovido de eu. A arte contemporânea sugere algo disto”. Ou seja, o reconhecimento
dos homens enquanto sujeitos é dependente da capacidade deles se porem ou, ainda, de
se identificarem com o que não se submete mais aos contornos auto-idênticos de um eu
com seus protocolos de individuação.
A sombra da razão
Na estrutura clínica psicanalítica, ela é ainda concebida como um dos três
quadros nosográficos próprios à estrutura psicótica, juntamente com a esquizofrenia e a
melancolia (ou psicose maníaco-depressiva). Sua caracterização atual não é muito
distinta daquela que encontramos em Freud. Desde 1895, Freud compreendia a paranóia
como um “modo patológico de defesa”196 que se servia de mecanismos como o
delírio197 e uma forte tendência à projeção de representações inconciliáveis com a
coerência ideal do Eu. À ocasião de seu texto paradigmático relativo ao caso Schreber,
tais mecanismos de defesa encontrarão seu fundamento em uma desesperada reação
contra um certo impulso homossexual impossível, por razões estruturais, de ser
vivenciado como tal pelo sujeito.
Por trás desta temática aparentemente muito redutora ligada à defesa contra a
homossexualidade (que, no limite, nos obrigaria a tese incorreta do ponto de vista da
fenomenologia clínica referente à impossibilidade de alguém ser, ao mesmo tempo,
paranóico e homossexual explícito) há, no entanto, o que poderíamos chamar de uma
intuição psicanalítica fundamental a respeito das psicoses. Ela se refere à
195 FRÜCHTL, Mimesis : Konstellation eines Zentralbegriffs bei Adorno, Würzburg, 1986, p. 43 196 Ver, FREUD; Sigmund; Manuscrit H In: La naissance de la psychanalyse, Paris: PUF, 1996, p. 98. 197 Sendo que, em Freud, o delírio paranóico é: “uma tradução em representações de palavras do
reprimido que retornou maciçamente na forma de signos perceptuais” (SIMANKE, Richard; A formação
da teoria freudiana das psicoses, Belo Horizonte: Loyola, 2008, p. 100)
impossibilidade de alguma forma de mediação simbólica das identificações e da
alteridade devido à fixação em um estado de desenvolvimento e de maturação que
Freud chamava de “narcísico”. Assim, devido a tal fixação, todo reconhecimento de si
em um outro aparece como anulação catastrófica dos regimes de identidade que, até
então, sustentavam uma certa estabilidade pré-psicótica. O problema da defesa contra o
homossexualismo é, no fundo, modo freudiano de dizer que, na psicose paranóica, todo
reconhecimento de si em um outro é vivenciado de maneira ameaçadora e muito
invasiva, o que coloca uma personalidade formada a partir da internalização de
identificações em rota contínua de colapso. Notemos ainda como tal situação indica um
certo modo de ligação defensiva à identidade, de negação da “interioridade da
diferença”, que demonstram a fragilidade, no caso da psicose, dos modos de síntese
psíquica fundadas na noção funcional de Eu.
Já no interior das práticas psiquiátricas, a paranóia é atualmente definida pelo
DSM IV como um subtipo da esquizofrenia – fala-se atualmente em esquizofrenia de
tipo paranóide, juntamente com outros quatro tipos: desorganizado (caracterizado pelo
discurso e pensamento desorganizado, além de afeto inadequado), catatônico
(caracterizado por uma acentuada perturbação motora, como imobilidade, atividade
excessiva, extremo negativismo, mutismo etc.), indiferenciado (esquizofrenia que não
se enquadra nos outros três tipos) e residual (quando há apenas um episódio de
esquizofrenia, mas o quadro clínico não apresenta sintomas psicóticos positivos
proeminentes). Enquanto sub-tipo, a paranóia seria marcada, principalmente, pela
consistência sistemática das interpretações delirantes (perseguição, erotomania, ciúme,
grandeza etc.) e pela ausência de deterioração intelectual. Por sua vez, sua causalidade
seria sindrômica, já que seria o resultado de uma articulação entre fatores psicológicos e
vulnerabilidades constitucionais (genéticos e obstétricos)198.
Sabemos que a paranóia é certamente uma das categorias clínicas mais antigas
que temos notícia. Sua raiz grega não nos deixa dúvidas. Paranóia vem do grego para e
nous, ou seja, algo como “ao lado do espírito”, fora do que deve ser o espírito. No
entanto, é só em meados do século XIX que ela ganha sistematização, principalmente
através do Tratado de psiquiatria (1879), do psiquiatra alemão Richard Krafft Ebing,
além dos esforços posteriores de classificação desenvolvidos por Emil Kraepelin. Desde
o início de sua sistematização, a paranóia conservou-se como modalidade de doença
mental cuja característica essencial era aquilo que podemos ainda encontrar no DSM
IV, a saber: “presença de delírios ou alucinações auditivas proeminentes no contexto de
uma relativa preservação do funcionamento cognitivo e do afeto”199.
Tal especificação da paranóia respondia a uma tendência maior da psiquiatria
ocidental até então, a saber, distinguir um modo de loucura onde as funções de
julgamento e os usos da linguagem eram, em larga medida, conservados em sua
estrutura formal de outro onde tais funções superiores eram eliminadas no interior de
um processo de regressão que classicamente foi chamado de “demência”. Por isto,
alguém como Foucault dirá:
a demência é, de todas as doenças do espírito, este que permanece mais próxima
da essência da loucura. Mas da loucura em geral – da loucura sentido em tudo o
que ela pode ter de negativo : desordem, decomposição do pensamento, erro,
ilusão, não-razão e não-verdade200.
198 Ver, CRAIGHEAD, Edward, CRAIGHEAD, Linda e MIKLOWITZ, David; Psychopathology:
history, diagnosis and empirical foundations, New Jersey: Wiley, 2008, pp. 402-434 199 DSM IV, p. 317. 200 FOUCAULT, Michel ; Histoire de la folie, Paris: Gallimard, 1962, p. 320
Esta dicotomia, tão bem caracterizada na distinção alemã entre Wahnsinn e
Verrückheit, continuou na psicanálise com sua distinção entre esquizofrenia e paranóia.
No entanto, ela tende a ser diminuída na psiquiatria contemporânea, que unificou todo o
espectro das psicoses sob a categoria geral de “esquizofrenia”.
Podemos ver nesta conservação relativa da estrutura cognitiva e afetiva na
paranóia um traço importante. Alguns psicanalistas viram nela a indicação de um
regime de participação em valores sociais e modos normatizados de raciocínio que dão
forma à própria noção de personalidade. É pensando nisto que alguém como Jacques
Lacan dirá, em uma tese de doutorado dedicada à paranóia: “A economia do patológico
parece assim calcada sobre a estrutura normal”201. Isto porque ela absorve os modos
formais de raciocínio e comportamento próprios à estrutura normal.
Neste sentido, não é desprovido de interesse perceber como encontramos tal
intuição em um trabalho profícuo de psicologia social como Massa e Poder, de Elias
Canetti202. Esta absorção de modos formais de raciocínio e comportamento próprios a
estrutura normal pode ser identificado, por exemplo, na presença, no interior da
paranóia, de algo como um “vício da causalidade” e um “vício da fundamentação”.
Uma espécie de princípio de razão suficiente elevado à defesa patológica : nada
acontece que não tenha uma causa. Assim, na “ontologia paranóica”, não haverá lugar
para noções como contingência e acaso. Por trás da máscara do novo, há sempre o
mesmo. Tudo o que é desconhecido deve ser remetido a algo conhecido e referido ao
doente. Isto leva o paranóico à necessidade compulsiva do desmacaramento. Ele quer
que haja algo por trás dos fenômenos ordinários e só se acalma quando uma relação
causal é encontrada. Como dirá Adorno e Horkheimer:
A excessiva coerência paranoica, este mau infinito que é o juízo sempre igual, é
uma falta de coerência do pensamento. Ao invés de elaborar intelectualmente o
fracasso da pretensão absoluta e assim continuar a determinar seu juízo, o
paranoico se aferra à pretensão que levou seu juízo ao fracasso203.
Neste sentido, é possível dizer que um dos traços fundamentais da paranóia,
traço que fornece a base de sua certeza delirante e da incorrigibilidade de seus
julgamentos, está vinculado à naturalização das estruturas e dos quadros narrativos de
organização da experiência. Não é possível ao sujeito tomar distância de suas próprias
construções, retificando criticamente suas pretensões a partir dos acasos e contingências
da experiência, desconfiando de sua sistematicidade e de sua exigência absoluta de
sentido e ligação, pois tais construções foram naturalizadas. Neste sentido, não seria
incorreto ver, nesta forma imanente de adesão a suas próprias crenças, um efeito maior
daquilo que em teoria social chamaríamos simplesmente de reificação204. O que talvez
201 LACAN, Jacques ; De la psychose paranoiaque dans ses rapports à la personalité, Paris: Seuil, 1975,
p. 56. O que é, no fundo, uma derivaçào consequente da idéia freudiana segundo a qual : “mesmo
formações mentais tão extraordinárias, tão afastadas do pensamento humano habitual, tiveram origem nos
mais universais e compreensíveis impulsos da vida psíquica” (FREUD, Sigmund; Observações
psicanalíticas sobre um caso de paranóia, In: O caso Schreber e outros textos, São Paulo: Companhia das
Letras, 2010, p. 24) 202 CANETTI, Elias; Massa e poder, São Paulo : Companhia das Letras, 2005, pp. 448-463 203 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 181 204 Exemplo ilustrativo de tal situação de reificação são considerações clínicas como: “Os pacientes com
transtornos de personalidade paranóide são incapazes de pensar: “Parece que esta pessoa está tentando
me prejudicar” Em vez disto, eles sabem que a outra pessoa tem más intenções” (GABBARD, Glen;
Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica, Porto Alegre: Artmed, 2006, p. 301)
nos permitiria dizer que a paranóia é uma sombra da razão, pois é o risco aberto quando
ocorre uma reificação da própria estrutura do conhecimento. Esta compreensão da
paranoia como uma espécie de “patologia da reificação” estará claramente presente em
Adorno e Horkheimer quando estes afirmarem:
Sempre que as energias intelectuais estão intencionalmente concentradas no
mundo exterior, ou seja, sempre que se trata de perseguir. Constatar, captar (que
são as funções que, tendo origem na empresa primitiva de subjugação dos
animais, se espiritualizaram nos métodos científicos da dominação da natureza),
tendemos a ignorar o processo subjetivo imanente à esquematização e a colocar
o sistema como a coisa mesma. Como o pensamento patológico, o pensamento
objetivador contém a arbitrariedade do fim subjetivo que é estranho à coisa; ele
esquece a coisa e, por isto mesmo, inflige-lhe a violência a que depois é, mais
uma vez, submetida na prática205.
Por outro lado, notemos como há um conjunto de valores políticos que parecem
nortear o sofrimento paranóico. Falamos de unidade, identidade, controle e risco de
invasão. Como se fosse questão de assegurar a posse e a unificação de um território a
todo momento ameaçado. Não é difícil perceber, já neste momento, como os motivos
paranóicos parecem derivados de uma certa compreensão a respeito daquilo que uma
ordem deve ser capaz de produzir.
O fundo paranóico de toda personalidade
Neste ponto, podemos insistir em um ponto maior. Freud costumava dizer que a
conduta patológica expõe, de maneira ampliada (Freud fala de Vergrösserung e
Vergröberung), o que está realmente em jogo no processo de formação das condutas
sociais gerais. É desta forma que devemos interpretar uma metáfora maior de Freud :
"Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não arbitrariamente. Ele se parte,
segundo suas linhas de clivagem, em pedaços cujos limites, embora fossem invisíveis,
estavam determinados pela estrutura do cristal"206. O patológico é este cristal partido
que, graças à sua quebra, fornece a inteligibilidade do comportamento definido como
normal. Neste sentido, podemos nos perguntar se a paranóia não expõe, como em uma
lente de aumento, a natureza do modo de formação da personalidade que determina a
figura da subjetividade moderna.
Aqui, poderíamos volta à hipótese de existência de uma espécie de fundo
paranóico em todo processo de constituição da personalidade. No fundo, trata-se de
levar a sério a idéia de Jacques Lacan, enunciada ao comentar a razão pela qual ele se
relutou a republicar sua tese de doutorado sobre as relações entre psicose paranóica e
personalidade: “Se resisti por tanto tempo à republicação de minha tese, é simplesmente
pelo seguinte, é que a psicose paranóica e a personalidade como tal não têm relações,
simplesmente por isso, porque são a mesma coisa”207.
No entanto, não se trata de simplesmente impor uma similitude completa entre
formação de um Eu como unidade psicológica e estrutura paranóica. Que no seu
processo de formação, o Eu coloque em circulação motivos e processos que fornecerão
o fundamento da paranóia, isto não significa que estamos exatamente diante do mesmo
fenômeno. No fundo, isto significa duas coisas. Primeiro, que a paranóia talvez deva ser
205 ADORNO e HORKHEIMER; idem, p. 180 206 FREUD, Sigmund; ibidem, p. 64 207 LACAN, Jacques; Séminaire XXIII: Le sinthome, Paris: Seuil, 2005, p. 53
compreendida como a tentativa desesperada de constituir um Eu, lá onde este processo
não é completamente possível. Neste sentido, devemos compreender claramente de
onde vem a flexibilidade que permite aos sujeitos modernos evitarem a paranóia,
mesmo colocando em circulação processos que a constitui. Qual é, neste caso, a
diferença qualitativa entre normalidade e patologia?
Neste contexto, vale lembrar o que realmente estava em jogo na centralidade do
problema da entrada no universo simbólico para a explicação lacaniana das psicoses.
Lembremos, a este respeito, como uma estrutura simbólica (ou, se quisermos, uma
ordem social) não é, para Lacan, apenas aquilo que determina previamente os modos de
relação sociais. Lacan insistia que a Lei social que estrutura o universo simbólico não
era uma lei normativa no sentido forte do termo, ou seja, uma lei que enuncia
claramente o que devo fazer e quais condições devo preencher para seguí-la. Esta é uma
questão central que costuma gerar confusões. A Lei simplesmente organiza distinções e
oposições que, em si, não teriam sentido algum. Assim, por exemplo, a Lei da estrutura
de parentesco pode determinar topicamente vários lugares, como “filho de...”, “pai
de...”, “cunhada de...”, mas estes lugares não têm em si nenhuma significação
normativa, nenhuma referência estável. Por isto, nunca sei claramente o que significa,
por exemplo, ser “pai de...”, mesmo tendo consciência de que ocupo atualmente tal
lugar. Só posso saber o que um pai é, o que devo fazer para assumir a autoridade e
enunciar a norma à condição de acreditar em uma certa impostura. É esta ausência de
conteúdo que Lacan tem em vista ao afirmar que a Lei sócio-simbólica é composta por
significantes puros, desprovidos de denotação, que ela é uma “cadeia de significantes”.
Desta forma, podemos entender melhor a profícua idéia lacaniana de que uma
estrutura simbólica é aquilo que nos permite nos relacionarmos com a experiência da
falta na determinação do objeto do desejo, assim como nos relacionarmos com a
experiência da fragilidade do sentido e das operações de identidade. Poder se relacionar
a tais experiências é fundamental para que situações de fragilização das experiências de
sentido e de identidade, assim como de indeterminação do objeto de desejo, não sejam
vivenciadas como situações catastróficas de vulnerabilidade absoluta para o sujeito. No
entanto, é exatamente isto que ocorre nos casos de psicose. Neste sentido, a entrada bem
sucedida no interior da estrutura simbólica está intimamente vinculada à capacidade de
saber lidar com isto que Lacan chama de “falta”. A função de uma ordem social talvez
não seja outra que esta.
Por fim, seria necessário mostrar como esta maneira de evitar a paranóia não é
sem deixar traços. Ou seja, há algo no processo de formação do Eu moderno que nos
deixa vulneráveis a um certo retorno da paranóia. A teoria social da Escola de Frankfurt,
em especial aquela desenvolvida por Theodor Adorno e por Max Horkheimer, foi
fundamental para demonstrar como impasses sócio-políticos no interior de nossas
formas de vida, impasses estes que podem dar formas à políticas totalitárias e de
segregação, não são simples acidentes advindos de momentos de crise. Eles são marcas
sempre inscritas em nossas formas de vida devido, entre outras coisas, ao processo de
formação de nossa própria subjetividade. Não foi por outra razão que tais autores
usaram uma categoria clínica como “paranóia” para explicar a natureza dos vínculos
sociais no interior do fascismo.
Para Adorno e Horkheimer, a paranoia como patologia social está ligada à
generalização daquilo que Adorno chama de “semicultura” ou “semiformação”: “uma
semicultura que, por oposição à simples incultura, hipostasia o saber limitado como
verdade, não pode suportar a ruptura entre o interior e o exterior, o destino individual e
a lei social, a manifestação e a essência”208. Eles chegam a dizer que a paranoia seria o
sintoma do indivíduo semicultivado, com sua atribuição arbitrária de sentido ao mundo
exterior, seus estereótipos e generalizações marcadas por perseguições e grandeza.
Neste sentido, se o reconhecimento de nossa vulnerabilidade é condição
fundamental para desenvolver ações que impeçam múltiplas formas de sofrimento
social, então o estudo de categorias clínicas como a paranóia talvez nos auxilie no
conhecimento do que somos, de como somos formados e quais são nossas linhas de
clivagem, ou seja, onde quebraremos quando jogados no chão, onde quebramos com
mais facilidade. Insistiria neste ponto que pode ter conseqüências tanto clínicas quanto
políticas: o reconhecimento de nossa vulnerabilidade é condição fundamental para
sabermos como lidar com a instabilidade de nossas formas de vida. Neste sentido, o
único que é incapaz de reconhecer sua vulnerabilidade e sua insegurança (no sentido de
conseguir inscrever tal situação em um dinâmica social de reconhecimento), de senti-la
como insuportável é exatamente o paranóico. Uma impossibilidade vinda de uma
maneira extremamente peculiar de participação e defesa de valores políticos e estéticos
em decomposição. Mas, por outro lado, é bem provável que um dos traços definidores
do comportamento normal seja exatamente sua capacidade de não se quebrar
completamente ao reconhecer a vulnerabilidade e a insegurança de suas construções.
Não se quebrar completamente quando se está em crise.
208 ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 182
Introdução à experiência intelectual de Adorno
Aula 9
Temas para monografia
“O texto que a filosofia tem para ler é incompleto, contraditório e despedaçado”
(Adorno, A atualidade da filosofia)
“A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo
comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas.Para o esclarecimento, aquilo que não se
reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo moderno remete-o
a literatura. “Unidade” continua a ser a divisa, de Parmênides a Russell”
(Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento)
“Não há dúvidas de que a história da música é uma progressiva racionalização (...) Não
obstante, a racionalização é apenas um de seus aspectos sociais, assim como a
racionalidade ela própria. “Aufklärung” é apenas um momento da história da sociedade,
que permanece irracional, presa ainda a formas ‘naturais’. No interior da evolução total
de que participou através da progressiva racionalidade, a música foi também, e sempre,
a voz do que ficara para trás no caminho desta racionalidade, ou do que fora vítima”
(Adorno, Idéias para uma sociologia da música)
« Uma das lições que a era hitlerista nos ensinou é a de como é estúpido ser
inteligente »
(Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento)
A aula de hoje é a introdução ao terceiro módulo de nosso curso; este dedicado à
análise da filosofia adorniana da música. Hoje, trata-se de tecer algumas
considerações gerais sobre o impacto da sociologia weberiana da música no
pensamento de Adorno. Esta me parece uma boa forma de introduzir questões
fundamentais que serão abordadas em nosso curso. Para tanto, precisaremos levantar
três considerações complementares.
Primeiro, trata-se de discutir a configuração geral do conceito weberiano de
racionalização, sua dinâmica, assim como a maneira com que ele é aplicado para
determinar um telos para o desenvolvimento da música no Ocidente. Isto nos permitirá
compreender o desenvolvimento da linguagem musical ocidental a partir de um
processo matemático de racionalização que obedece a parâmetros partilhados por todas
as esferas da vida social (economia, religião, política e ciência).
Segundo, trata-se de mostrar como a noção de música racional que aparece no
texto weberiano é, a seu modo, tributária uma discussão fundamental no século XIX a
respeito da autonomia da forma musical, cujo nome central é o crítico musical alemão
Eduard Hanslick, com seu Do belo musical, de 1854. O problema da racionalidade do
processo de autonomização da forma musical em relação a textos, programas, funções
sociais e mesmo em relação a expectativas expressivas nos remete, por sua vez, às
discussões sobre a música absoluta e sobre a matematização do material musical através
da centralidade da harmonia em relação à melodia (discussão que marcou a querela
Rousseau/Rameau). Desta forma, poderemos identificar melhor a relevância das
elaborações weberianas no interior da estética musical.
Por fim, trata-se de compreender como Adorno absorve, de maneira crítica, a
temática weberiana da racionalização do material musical. Tal recepção crítica só
pode ser analisada em toda sua extensão se compreendermos o problema da
racionalização do material musical como um processo legível no interior de uma
dialética da razão. Como dirá Adorno :
“Não há dúvidas de que a história da música é uma progressiva racionalização
(...) Não obstante, a racionalização é apenas um de seus aspectos sociais, assim
como a racionalidade ela própria. “Aufklärung” é apenas um momento da
história da sociedade, que permanece irracional, presa ainda a formas ‘naturais’.
No interior da evolução total de que participou através da progressiva
racionalidade, a música foi também, e sempre, a voz do que ficara para trás no
caminho desta racionalidade, ou do que fora vítima”209.
Isto implica na análise do texto O caráter fetichista da música e a regressão da
audição que nos ocupará a próxima aula.
Racionalização e desencantamento do mundo
Uma estratégia possível para a compreensão do conceito weberiano de “racionalização
das produções sócio-culturais do ocidente” consiste em articulá-lo com a temática do
“desencantamento do mundo” (Entzauberung der Welt). Não se trata aqui fornecer um
estudo detalhado de dois conceitos complexos com vários desdobramentos e
enraizamentos. Meu objetivo é apenas traçar um quadro panorâmico que nos permita
contextualizar melhor a abordagem weberiana do desenvolvimento musical do
Ocidente.
A fim de iniciar nossa análise cruzada, vamos partir de um diagnóstico de época
fornecido por Weber em 1918 :
“O destino de nossos tempos é caracterizado pela racionalização e
intelectualização e, acima de tudo, pelo desencantamento do mundo [note-se esta
operação de aproximação entre racionalização, intelectualização e
desencantamento, o que nos indica como a essência da racionalização só pode
ser apreendida a partir do momento em que levamos em conta seu ‘efeito de
desencantamento’]. Precisamente, os valores últimos e mais sublimes retiraram-
se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a
fraternidade das relações humanas e pessoais”210.
O diagnóstico aqui é claro : a especificidade do nosso tempo, ou seja, aquilo que
a ele se impõe como destino inelutável, está figurada em um processo de racionalização
da esfera pública que expulsa o que Weber chama, neste contexto, de “valores últimos e
mais sublimes” para o interior da vida subjetiva. O que determinará o conteúdo
normativo da nossa vida social desencantada não será mais um conjunto partilhado e
209 ADORNO, Idéia para uma sociologia da música, p. 262 210 WEBER, Ciência como vocação in Ensaios de sociologia, p. 182
não problemático de valores últimos, embora estes ainda não desapareçam
completamente. Ao lembrar que eles permaneceriam latentes na fraternidade das
relações pessoais, Weber acredita que, ao menos nas relações amorosas e na
solidariedade podemos ainda escutar, em pianíssimo, o encantamento de algo como o
pneuma profético que, nos tempos antigos, varria as grandes comunidades como um
grande incêndio, fundindo-as em uma unidade.
Eu gostaria nesta aula de me deter em alguns aspectos gerais deste processo. Isto
significa compreender o que são exatamente estes valores últimos e mais sublimes,
como eles foram expulsos da esfera pública, quais são os conteúdos normativos que
operam neste vazio e, se possível, gostaria de apontar também para algumas
consequências ou, por que não dizer a coisa às claras, quais são os sintomas da redução
de tais valores a um clamor que pulsa em pianíssimo na vida privada.
Notemos, primeiramente, que o problema de uma época que não pode mais fazer
apelo a uma esfera não problemática de valores últimos capaz de validar os múltiplos
aspectos da vida social, época que precisa tirar de si mesma sua própria certificação, não
é um problema exclusivo de Weber. O longo e doloroso processo de formação da
consciência de que o presente não pode mais procurar no passado, nas tradições ou nas
grandes construções teleológicas seu critério de fundamentação é a própria história da
formação da consciência do moderno. Habermas, nas primeiras páginas do seu Discurso
filosófico da modernidade, nos dá uma boa sistematização da gênese deste consciência,
identificando seus primeiros passos no início do século XVIII, com a problematização
do conceito de belo atemporal na famosa Querelle des anciens et des modernes211. Sem
querer entrar no mérito da definição do evento fundador da consciência da modernidade
(poderíamos muito bem seguir o hostoriador da ciência Alexandre Koyrè e identificar
este evento no advento da física galiláica com sua noção a–qualitativa de objetos e sua
noção uniforme de espaço), digamos que, se Weber está longe de ser o teórico fundador
do problema da modernidade, ele é ao menos aquele que melhor articulará
modernidade, desencantamento e racionalização. E é esta articulação que eu gostaria de
tratar aqui.
Quando Weber fala em valores últimos e mais sublimes, ele pensa
principalmente na força de unificação comunitária das concepções religiosas de mundo
partilhadas socialmente. Tais concepções e suas teodicéias forneceram as estruturas
simbólicas capazes de determinar o sentido daquilo que poderia aparecer como
irredutivelmente contingente (como a morte, a partilha desigual dos bens, a identidade
social e sexual) criando o que Weber chamará de “postulado religioso de um significado
divino da existência”212. Esta produção de significado do existente permitia a orientação
valorativa da conduta e a regulamentação unificada das esferas de valores que compõem
a vida social (arte, economia, política, ciência). Lévi-Strauss falará em mitos
socialmente partilhados que permitiam a produção social do sentido.
Esta articulação entre desencantamento e desmistificação remete a uma das
raízes do conceito weberiano de desencantamento do mundo, ou seja, a noção
schilleriana de desdivinação da natureza (Entgötterung der Natur). Ela fica extremante
clara em um trecho de A ciência como vocação:
“Intelectualização e racionalização crescentes não significam um crescente
conhecimento geral das condições de vida sob as quais alguém se encontra.
Significam, ao contrário, uma outra coisa : o saber ou a crença de que basta
alguém querer para poder provar, a qualquer hora, que em prinçipio não há
211 Ver HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 19 212 WEBER, Rejeições religiosas do mundo e suas direções in Ensaios de sociologia, p. 408
forças misteriosas e incalculáveis interferindo : que, em vez disso, uma pessoa
pode – em princípio – dominar pelo cálculo (durch Berechnen beherrschen)
todas as coisas. Isto significa : o desencamento do mundo (Entzauberung der
Welt). Ninguém mais precisa lançar mão de meios mágicos para coagir os
espíritos ou suplicar-lhes, feito o selvagem, para quem tais forças existiam. Isto,
antes de mais nada, significa a intelectualização propriamente dita”213.
Este trecho nos indica um ponto que deve ser objeto de um cuidado aprofundado de
análise : a articulação entre racionalização e “dominação pelo cálculo”.
A diferenciação das esferas de valores
O que me interessa agora é lembrar que a desintegração das concepções
religiosas de mundo vai necessariamente trazer uma diferenciação progressiva das
esferas sociais de valores. Este é um tema recorrente em Max Weber. A tensão entre a
significação religiosa e a direção do mundo material levará necessariamente a
autonomia cada vez maior dos conteúdos normativos, das exigências de validade e do
desenvolvimento da arte, da ciência, da política e da economia. Cada esfera da vida
social irá desenvolver aquilo que Weber chama de “legalidade própria”. Cada esfera da
vida social ganhará, na modernidade, a possibilidade de se desenvolver de “acordo com
suas próprias leis” e sem precisar, a todo momento, fazer apelo ao poder unificador dos
mitos socialmente partilhados.
Nós veremos, mais a frente, como a música forneceu a Weber o padrão de
autonomização e de constituição de uma legalidade própria à esfera artística.
Autonomização que permitiu a consolidação de um “julgamento estético” capaz de
impor-se em sua independência em relação aos julgamentos morais, religiosos e outros.
Por enquanto, basta lembrarmos que, no que diz respeito à arte como esfera unificada,
Weber tem em mente um processo bem descrito por Habermas :
“Os padrões de expressão estilizados artisticamente, que de início foram
integrados ao culto religioso como adornos de igrejas e templos, como dança e
cantos rituais, como encenação de episódios significativos dos textos sagrados,
tornam-se autônomos vom as condições da produção artísitca inicialmente
cortesã-mecenática, mais tarde capitalista-burguesa: A arte constitui-se então
como um cosmos de valores intrínsecos sempre conscientes, abrangentes,
autônomos”214.
Neste ponto, eu gostaria de insistir em algumas consequências, já percebidas por
Weber, no desdobramento de tais processos de autonomização. Primeiro, lembremos
desta tendência de fragmentação da vida social e de conflito entre exigências de
validade. Esta fragmentação foi bem salientada por Habermas, ao lembrar que: “uma
vez que as imagens do mundo se desagregam e os problemas legados se cindem entre
pontos de vista específicos da verdade, da justeza normativa, da autenticidade ou do
belo, podendo ser tratados, respectivamente, como questão de conhecimento, como
questão de justiça e como questão de gosto, ocorre nos tempos modernos um
diferenciação de esfera de valor: ciência, moral e arte”215. Todo o problema consistirá
em encontrar algum modo de diálogo entre a verdade aspirada pelo discurso científico, a
213 WEBER, Ciência como vocaçõa, p. 30 214 HABERMAS, Theorie des kommunikativen Handelns I, p.228 215 HABERMAS, Modernidade : um projeto inacabado, p. 110
justiça aspirada pelo discurso jurídico e a autenticidade aspirada pela arte (embora esta
compreensão da arte como domínio da autenticidade expressiva nào deixe de colocar
uma série de problemas).
Enquanto tal diálogo não encontrar lugar o resultado não será apenas o
crescimento da distância entre especialistas e a esfera pública. As esferas de valores
tendem a ser cada vez mais complexas, inesgotáveis e refratárias à tradução. Seu
desenvolvimento impede processos de totalização. Isto faz com o sujeito moderno
apareça como aquele que sente a desintegração da possibilidade de apreensão da
experiência de totalidade capaz de garantir o acesso ao sentido do existente por
operações dedutivas (nota-se aqui, em Weber, a inexistência de um pensamento
estrutural capaz de deduzir o sentido da multiplicidade dos fenômenos a partir de
coordenadas gerais de articulação de estruturas). O desencantamento do mundo mostra
aqui, segundo Weber, seu sintoma mais profundo : a entificação de uma antropologia da
finitude e a perda do sentido que só uma racionalidade orientada por valores seria capaz
de garantir. Daí a tentativa de volta a uma esfera da intimidade na qual o sujeito poderia
ainda conservar aqueles valores últimos e mais sublimes. Uma esfera na qual a arte –
enquanto esfera pretensamente articulada por uma racionalidade orientada por valores -
poderia fornecer.
Esta antropologia da finitude fica muito bem caracterizada em um trecho maior
de Weber a respeito do fenômeno moderno de ausência de sentido da morte:
“Ela não o tem porque a vida individual do homem civilizado, colocada dentro
de um progresso infinito, segundo seu próprio sentido imanente, jamais deveria
chegar ao fim; pois há sempre um passo à frente do lugar onde estamos, na
marcha do progresso. E nenhum homem que morre alcança o cume que está no
infinito. Abraão, ou algum camponês do passado, morreu ‘velho e saciado de
vida’, por que estava no ciclo orgânico da vida (...) O homem civilizado,
colocado no meio do enriquecimento continuado da cultura pelas idéias,
cconhecimento e problemas, pode ‘consar-se da vida’, mas não ‘saciar-se
dela’”216.
Racionalidade orientada para fins e o problema do destino do sensível
Mas eu sugiro aqui irmos mais devagar neste diagnóstico da perda do sentido
advinda do desencantamento do mundo com a desintegração das concepções religiosas.
Creio ser necessário colocar em questão este ponto a fim de problematizar a própria
noção de que nosso mundo é realmente desencantado, mas para isto é necessário
fazermos um grande curto-circuito.
Um primeiro ponto não deve nos escapar. Mesmo que a diferenciação das
esferas de valores produza múltiplas exigências de validade, elas obedecem a um
mesmo processo de racionalização. Vamos passar em rapidamente em revista pelos
resultados da racionalização em cada uma destas esferas:
Ciência : aparecimento de uma ciência matematizável, que só reconhece
objetos quantificáveis dispostos em um espaço a-qualitativo, uniforme e
geométrico, Isto permite que a múltiplicidade dos objetos possa ser submetida
a regras equivalentes de cálculo. Tal ciência encontra já suas bases em Galileu
e será tematizada por Descartes e, em uma chave empirista, por Francis Bacon.
O caráter a-qualitativo da física matemática de Galileu colocou em cheque os
216 WEBER, A ciência como vocação, p. 166
objetos qualitativos da física aristotélica (que apresentava um mundo
hierarquizado ao afirmar que: “por natureza, todo e qualquer sensível existe em
algum lugar e existe um lugar determinado para cada um”217), assim como a
cosmologia ptolomaica (que apresentava uma idéia de cosmos finito).
Política : constituição do Estado moderno através do monopólio do poder
judiciário e do uso legítimo da violência, submetido à princípios formais do
direito; profissionalização da administração através do aparecimento de uma
tecno-burocracia responsável pelas funções de gerência e de um tipo legal de
dominação, impessoal levada a cabo por funcionários especializados.
Economia : constituição da Empresa capitalista moderna como célula da vida
econômica. Algumas características fundamentais da empresa capitalisma
moderna são : A) sua separação em relação à gestão familiar. Tal separação
entre empresa e economia doméstica permite o aparecimento de uma gestão
burocrática e a criação de uma contabilidade racional. B) organização do
trabalho tendo em vista a produção de capital, ou seja, a rentabilidade. A
racionalidade do trabalho capitalista é orientação das ações através do cálculo
de rentabilidade. Isto pressupõe o aparecimento da figura do “trabalho
abstrato” submetido à divisão social do trabalho e a um padrão geral de cálculo
(“Na medida em que as operações são racionais, toda a ação individual das
partes é baseada em cálculo”218)
Arte : este é um caso a parte e voltarei a ele logo a seguir.
Vemos aqui como há uma orientação geral no modo de racionalização destas
esferas, Todas as três reconhecem, principalmente, a racionalidade de uma ação que
Weber definirá como ação orientada para fins, ou seja, orientada por expectativas
quanto ao comportamento de objetos através da padronização de critérios de decisão
baseados na possibilidade de mensuração, de cálculo e de estabelecimento de
equivalências. Mesmo que Weber nunca tenha deixado de reconhecer a racionalidade de
um outro tipo de ação, esta orientada por valores éticos, estéticos ou religiosos, não é
difícil perceber que ela não guia o desenvolvimento destas três esferas de valores.
Neste ponto, faz-se necessário compreendermos melhor estes dois critérios de
racionalidade oferecidos por Weber. Eles são inicialmente apresentados tendo em vista
a compreensão da ação social. Dirá Weber:
“a ação social, como toda ação, pode ser determinada: 1) de modo racional referente
a fins: por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de
outras pessoas, utilizando essas expectativas como ‘condições’ ou ‘meios’ para
alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente, como sucesso; 2) de
modo racional referente a valores: pela crença consciente no valor – ético, estético,
religioso ou qualquer que seja sua interpretação – absoluto e inerente a determinado
comportamento como tal, independentemente do resultado; 3) de modo afetivo,
especialmente emocional, por afetos ou estados emocionais atuais; 4) de modo
tradicional, por costume arraigado”219.
217 ARISTÖTELES, Física, 205 a10 218 WEBER, ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 14 219 WE BER, Economia e sociedade I, p. 15
Alguns pontos devem ser salientados nestas definições. Primeiro, a racionalidade
da ação orientada para fins (no sentido de finalidade) fundamenta-se na capacidade de
avaliar decisões a partir da previsibilidade (expectativa) do comportamento do mundo
externo e de outras pessoas. Mas devemos nos perguntar sobre o que deve acontecer ao
mundo e aos sujeitos para que estes possam aparecer como objetos de processos de
avaliação de previsilidade. Fundamentalmente, esta passagem do mundo a um conjunto
de objetos que podem se submeter a avaliações de previsibilidade implica a
categorização do que aparece a partir de procedimentos gerais de cálculo, mensuração e
identidade. Ou seja, a racionalidade orientada para fins só pode operar a partir do
momento em que aquilo que se dá à razão aparece como essencialmente matematizável
e abstraído de toda determinação qualitativa irredutível. De coisa no mundo a objeto da
técnica, objeto de dominação pelo cálculo, para retomar uma bela expressão de Max
Weber. O que nos mostra a extrema solidariedade, na qual eu havia insistido no início
desta aula, entre os processos de racionalização e desencamento do mundo. Pois todo
padrão de racionalidade funda-se a partir de uma reflexào sobre os modos adequados de
apreensão dos objetos da experiência.
Um outro ponto merece nossa atenção : mesmo a racionalidade orientada por
valores partilha deste conceito de objeto fornecido pela racionalidade orientada para
fins. Lembremos, por exemplo, da maneira pela qual Weber diferencia a ação afetiva da
ação racional orientada por valores: “Elas distinguem-se entre si pela elaboração
consciente dos alvos últimos das ações e pela orientação consequente e planejada com
referência a estes, no caso da última”220. Uma ação impulsionada pelo desejo de
vingação (ação afetiva) pode ter seu alvo elaborado conscientemente. Mas ela não é
ação feita segundo ‘mandamentos’ ou ‘exigências’ que transcende o plano dos
sentimentos [ ela não é uma lei imposta pelo sujeito para si mesmo]. Por outro lado, esta
ação feita a partir de um mandamento transcendente permite o descolamento empírico
necessário para a orientação planejada da conduta. Quer dizer, mesmo que o valor não
seja relativo a nenhum cálculo (por exemplo, cálculo de prazer), ele permite que a
efetividade seja objeto de uma orientação planejada (lembremos como o espírito do
capitalismo nesce da ética protestante).
A meu ver, isto demonstra como um elemento central na configuração deste
processo de racionalização é o não reconhecimento de nenhuma dignidade ontológica
na resistência do sensível à sua instrumentalização. Isto entra em uma economia mais
ampla de rebaixamento do sensível que perpassa toda a concepção weberiana de razão.
Daí porque Adorno e Horkheimer verão neste caso um processo de redução da razão à
sua dimensão instrumental de dominação : “A sociedade burguesa é dominada pela
equivalência. Ela torna comparável o que é heterogêneo reduzindo-o a quantidades
abstratas (...) De Parmênides a Russell, a divisa continua a mesmo : unidade, O que
continuamos a exigir, é a destruição dos deuses da qualidade”221. Podemos levar em
conta aqui também o que diz Heidegger, por uma razão diametralmente oposta, a
respeito da essência da técnica moderna, técnica que não é mais capaz de conjugar
poiesis e tecné : “A essência da técnica moderna coloca o homem no caminho de um
desvelamento através do qual o real advém objeto de estoque”222. Este ponto será
fundamental para nossa compreensão do processos weberiano de racionalização do
material musical.
220 WEBER, Economia e sociedade, p. 15 221 ADORNO, Dialectique des lumières, p. 25 222 HEIDEGGER, Essais et confèrences, p.33
Weber e a música
Não deixa de ser instrutivo perceber como este processo de racionalização atinge
inclusive a esfera da ação estético-expressiva. Pois mesmo que ela seja mais claramente
uma esfera onde a ação pode ser mais facilmente orientada para valores, os objetos
racionais de expressão obedecem, necessariamente, a uma construção não muito
diferente daquela que direciona o objeto da produção capitalista ou da descoberta
científica.
Weber não dedicou muitos trabalhos à estética, mas ele deixou ao menos um texto
fundamental neste domínio : Os Fundamentos racionais e sociológicos da música.
Trata-se de um texto extremamente bem construído e com um claro objetivo : definir o
que é uma música racional. Podemos imaginar que tais considerações sobre a música
serviriam de paradigma para as análises estéticas que Weber tinha em mente.
Podemos dizer, de maneira esquemática para inicar nosso trajeto, que Weber
identifica três características fundamentais para a especificidade da racionalização do
material musical no Ocidente:
Primeiro, Weber insistirá que a música ocidental é autônoma em relação a fins
prático-finalistas externos, pois tanto sua audição quanto sua composição são
desprovidas de função ritual. “temos que nos recordar do fato sociológico de que a
música primitiva foi afastada, em grande parte, durante os estágios iniciais de seu
desenvolvimento, do puro gozo estético, ficando subordinada a fins práticos, em
primeiro lugar sobretudo mágicos”. Mas “Com o ultrapassamento do emprego
meramente prático-finalista das fórmulas sonoras tradicionais e, por conseguinte, com o
despertar das necessidades puramente estéticas inicia-se o despertar da verdadeira
racionalização” 223. Ou seja, a um desencantamento do material musical que é resultado
da crítica ao fetichismo mágio-religioso como pólo de produção do sentido do fato
musical. Pois Weber sabe que esta subordinação ao fetichismo mágico-religioso atingia
o próprio desenvolvimento do material musical, já que ela provocava a estereotipização
de intervalos, de estruturas e de frases que adquirem significação mítica. Em suma, Há
um encantamento do material musical que deve ser rompido através da autonomização
da música em relação a toda função ritual.
No entanto, o despertar das necessidades puramente estético não implica apenas
em uma redefinição dos modos de audição derivada da modificação do lugar social da
música. Ela abre a possibilidade de mutações estruturais na própria forma musical, isto
primeiramente através da consolidação do sistema tonal com sua organização de
intervalos, escalas e estruturação dos temperamentos. E este é, em última instância, o
objeto central de Weber nos Fundamentos racionais e sociológicos da música; objeto
que será paulatinamente apresentado neste módulo. Ele permitirá que a significação do
fato musical não seja mais dependente de um elemento extra-musical.
Weber traça um grande apanhado histórico que procura dar conta do lento
processo de autonomização do julgamento estético na música. Ele começa através da
retomada deste problema geral da estética musical que diz respeito à imbricação entre
música e linguagem. Mas Weber aborda tal questão através da “ligação entre fala e
223 (WEBER, Fundamentos..., p. 86
melodia (Melos)”224. A fala pode exercer uma influência direta e concreta sobre a
formação do curso da melodia, principalmente nas chamadas línguas sonoras nas quais
os significados das sílabas é variável de acordo com a altura do som em que são
pronunciadas. Um exemplo aqui seria o chinês. Weber se serve de vários exemplos
advindo de músicas sacras a fim de mostrar como a organização intervalar da música
pode ser limitada devido à influência da dinâmica da fala e do recitativo. A “legalidade
própria” da esfera musical só pode se dar, assim, através do abandono de sua ligação, de
um lado, com a linguagem prosáica e ,de outro, com o fetichismo mágico-religioso.
Pois, enquanto estiver submetida a uma fins práticos-finalistas, a música estará
impossibilitada de desenvolver-se a partir das exigências do material musical. Ao
contrário, ao vincular-se a funções e textos sagrados: “a estereotipização dos intervalos
sonoros, uma vez canonizados por alguma razão, será extraordinariamente intensa”225.
A “legalidade própria” da esfera musical só pode se dar, assim, através do abandono de
sua ligação, de um lado, com a linguagem prosáica e ,de outro, com o fetichismo
mágico-religioso. Ou seja, a racionalização do material musical é solidária do
abandono de todo princípio mimético na racionalidade do fato musical. Note-se que a
música aparece como espaço privilegiado para a reflexão sobre este tipo de
racionalização devido ao seu caráter eminentemente não-figurativo e resistente a
processos de conceitualização226.
Mas para que a música conquiste sua esfera de legalidade própria (e esta é a
segunda característica da racionalização do material musical no ocidente), ela deve
trazer, na sua lógica interna das relações sonoras, o seu próprio critério de
desenvolvimento e de julgamento. Para tanto, Weber precisa passar a um conceito
positivo de racionalidade. O que significa expor como o material musical pode ser
“dominado pelo cálculo”, ou seja, como ele pode ser racionalizado ao submeter a uma
razão matemática. Isto Weber encontra ao analisar a estrutura do sistema tonal como
sistema global de organização do material sonoro a partir de regras harmônicas de
inspiração físico-matemática.
O que interessa Weber é o fato de que, através de regras gerais de cálculo
viabilizados pelo temperamento igual da escala cromática, a harmonia da música
moderna estabelece procedimentos gerais de desenvolvimento, de progressão e de
organização do material sonoro. Assim, se é verdade que uma esfera social de valor será
mais racional na medida em que ela estabelecer seus processos de valoração através de
um plano sistêmico de organização, plano que tira de si mesmo sua própria certificação,
então é com a consolidação do sistema harmônico tonal que a música entra na
modernidade.
Este é um ponto fundamental: a racionalidade do fato musical, para Weber, é
fundamentalmente vinculada à sua dimensão harmônica. O que significa um
posicionamento, não sem conseqüências, em relação a um longo debate que teve lugar
no interior da história da estética musical. De fato, vale para Weber o que Rameau já
tinha afirmado em 1722: “Música é geralmente dividida em harmonia e melodia, mas a
última é meramente uma para da primeira e um conhecimento de harmonia é suficiente
para um entendimento completo de todas as propriedades da música”227. Ou seja, a
224 WEBER, idem, p. 82 225 WEBER, idem, p. 86 226 Por outro lado, esta maneira de pensar a autonomização da esfera musical através da
negação de todo vínculo com a linguagem prosaica provoca uma aproximação inusitada
entre Weber e a temática romântica da música absoluta. 227 RAMEAU, Traité de l’harmonie, capítulo um
dimensão harmônica é a única a responder pela racionalidade do fato musical e de seus
processos internos de criação de sentido.
De fato, Weber admite que a dimensão harmônica é a única a responder pela
racionalidade do fato musical e de seus processos internos de criação de sentido. No
entanto, a especificidade da música ocidental não está na ausência de elementos
irracionais, mas na possibilidade de antecipar e resolver tais elementos, integrando-os
no interior da própria racionalidade da forma musical. Por isto, Weber pode atrelar a
dimensão expressiva da melodia a um princípio de irracionalidade (resíduo mimético na
música) sem que o protocolo geral de racionalização seja colocado em questão. Depois
de reconhecer que : “A melodia, no sentido geral do termo, é sem dúvida condicionada
e ligada harmonicamente, mas não pode mesmo na música de acordes, ser deduzida
harmonicamente” Weber afirma finalmente que: “Não haveria música moderna sem
estas tensões derivadas da irracionalidade da melodia, já que elas constituem
precisamente seus mais importantes meios de expressão” (Weber 29, p. 60). Pois é
racional um sistema que aceita um elemento que o negue, desde que tal elemento possa
ser antecipado, preparado e resolvido. Como dirá Schoenberg em seu Tratado de
Harmonia: “introduzir cautelosamento [a dissonânica] e resolver sonoramente: eis aqui
o sistema! Preparação e resolução são, portanto, as duas cobertas protetoras que vai
cuidadosamente empacotada a dissonância para que não recebe nem ocasione danos”228.
A razão da harmonia
Para compreender o que está em jogo no estudo da harmonia, podemos utilizar a
afirmação de Hugues Dufour : “A noção de harmonia é anfibiológica : ela designa ao
mesmo tempo a ciência de formação e de encadeamento de acordes, assim como o
sistema de tensões – quer dizer, as unidades antitéticas – que, desde a origem, rege a
conformação dos elementos ao todo (...) Neste sentido, a harmonia é potência das
diferenças, regra de dis-similitudes, desigualdade de relações e assimetria de termos
comensuráveis”229.
A característica fundamental da harmonia está no fato de que as consonâncias, ou
seja, as afinidades entre relações intervalares sonoras que permitirào as construções
musicais, em suma, o princípio que determina os procedimentos gerais de semelhança
no interior do fato musical, reduz-se a uma regra geral de cálculo. É isto que Weber tem
em mente ao insistir que: “Nossa música harmônica de acordes racionalizou o material
sonoro mediante a divisão aritmética”230. A harmonia ocidental é organizada por regras
de relações matemáticas, suas normas não podem mais ser deduzidas totalmente de
condições empíricas, embora ela reconheça a importância de certas características
físicas do som [a teoria da harmonia a partir do som fundamental e dos harmônicos
superiores]. Lembremos do que dizia Jean-Phillipe Rameau em seu Tratado de
Harmonia, obra inaguradora da teoria musical moderna com suas aspirações de
racionalidade: “Música é uma ciência que deve definir regras: tais regras devem derivar
228 SCHOENBERG, Tratado de Harmonia, p. 96 229 DOUFOUR, Les origines grecques do concept de l’hamronie, p. 18 230 WEBER, idem, par.2
de um princípio evidente e tal princípio não pode ser conhecido por nós sem a ajuda da
matemática”231.
Daí a importância dada por Weber ao temporamento, ou seja, a divisão geral dos
intervalos cromáticos no interior de uma oitava em doze intervalos absolutamente
iguais. Tais procedimentos possibilitaram a uniformização do material musical criando
assim as condições para o advento de uma organização funcional global que permite
com que todo e qualquer material seja transposto, modulado e dividido através da
unificação de procedimentos gerais de cálculo. Sem ser totalmente arbitrário, o
temperamento é uma abstração que permite a definição do material musical como objeto
de cálculo e de regulação da irracionalidade das tensões em resoluções possíveis através
das modulações e progressões harmônicas. Isto nos explica porque Weber insiste em
lembrar que : “toda moderna música acórdico-harmônica não é concebível sem o
temporamento e suas cponsequências. Só o temporamento proporcionou-lhe liberdade
plena”232.
Por fim, a música ocidental é fundamentalmente uma música escrita. Com isto ela
pode levar ao ápice a organização do material ao definir cada som a partir de variáveis
específicas como altura, duração, intensidade e valor. Assim, podemos ver na
racionalização do material musical as mesmas características gerais do processo de
racionalização das outras esferas. Temos a autonomização dos critérios de valor e dos
processos de desenvolvimento, a sistematização dos objetos através de um padrão
global de cálculo e de ordenação (fornecido pela harmonia e pelo temperamento), no
qual é a organização funcional que determina o sentido de cada elemento, e a deposição
de toda resistência do sensível à sua instrumentalização. Para Weber, o sentido do fato
musical é uma questão de relação e de dedução harmônica. Mas pensar o sentido como
relação significa anular toda resistência do material musical à sua implementação.
Significa pensar a ratio musical com dominação de um material criado a partir de regras
gerais de desponibilização integral.
231 RAMEAU, Teatrise of harmony, p. XXXV[a construção de acordes, o sistema de
inversão de acordes] [construção de escalas a partir dos acordes perfeito de tônica,
dominante, subdominante] [o baixo fundamental como centro tonal] [progressão
harmônica a partir do baixo fundamental : o som fundamental do acordo (que funciona
como centro) só pode se mover no interior dos harmônicos superiores, progressão de
terça, quarta, quinta e sexta. Todas as outras progressões são cadências de passagem,
licença etc.] 232 WEBER, p. 133
Introdução à experiência intelectual de Theodor Adorno
Aula 10
Vamos começar a discussão sobre a Filosofia da nova música através de um texto
fundamental da estética musical adorniana: O caráter fetichista da música e a regressão
da audição, de 1938. Ele servirá de porta de entrada para nossas discussões sobre o
livro de Adorno.
O diagnóstico a respeito do caráter fetichista na música é um dos dispositivos
centrais na perspectiva adorniana de análise dos fatos musicais. No entanto, esquecemos
muitas vezes que tal diagnóstico é o vetor de um procedimento geral de crítica aos
modos de racionalização do material musical na modernidade ocidental; crítica esta que
atinge um espectro de obras maior do que aquele que normalmente estamos dispostos a
reconhecer. Esquecemos também de nos perguntar como a identificação do caráter
fetichista na música fornece o terreno para a construção de um conceito positivo de
racionalidade musical que guiará as reflexões musicais de Adorno em textos tardios
como Berg : o mestre da transição ínfima, Mahler: uma fisiognomonia musical e
principalmente Vers une musique informelle?
Trata-se aqui pois de fornecer algumas coordenadas mais precisas para a
localização do problema do caráter fetichista na música na experiência intelectual
adorniana. Veremos como isto exige o reconhecimento de que, no conceito adorniano
de “fetichismo”, convergem deliberadamente motivos de duas tradições de crítica ao
fetichismo : a marxista e a psicanalítica. Tradições que Adorno conhecia igualmente
bem. A aceitação de tal convergência talvez nos ajude a identificar melhor o regime de
funcionamento da crítica e, por conseqüência, os alvos visados por Adorno no interior
do problema dos modos de racionalização do material musical na modernidade
ocidental. Isto permitirá também a identificação daquilo que, em Adorno, aparece como
“cura” ao fetichismo na música..
Na verdade, a única cura possível ao fetichismo está relacionada à recuperação
daquele que é o conceito mais desqualificado pela estética modernista, a saber, o
conceito de mimesis. A princípio, tal relação entre fetichismo e mimesis não parece
evidente. No entanto, ler o recurso adorniano a mimesis a partir do problema do
fetichismo e compreender como tal recurso pode re-orientar a discussão sobre a
racionalidade da forma musical são dois objetivos que servirão de horizonte para este
texto.
Espaços interiores fechados
Ao contrário do que se tende a admitir, a temática adorniana a respeito do caráter
fetichista na música não se esgota na análise da deterioração dos modos de recepção do
fato musical no capitalismo tardio. Procura-se sublinhar em demasia o sentido de
“resposta” que a temática do caráter fetichista na música teria em relação a certas
expectativas emancipatórias depositadas na cultura de massa por Walter Benjamin em A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Grosso modo, contra a promessa
de “aprofundamento da percepção” produzida pela possibilidade do cinema penetrar o
coração do real “alargando o mundo dos objetos dos quais tomamos conhecimento”
(Benjamin 13, p. 22), Adorno teria insistido na tendência histórica de fixação da audição
musical na particularidade de uma dimensão fetichizada do material. Na música, o
pretenso desenvolvimento da percepção do particular seria regressão a um estágio de
incapacidade de síntese e de reconstrução da totalidade funcional. Por outro lado, se
Benjamin lembrava que a modernidade capitalista viu a arte consolidar a passagem do
valor de culto ao valor de exposição e, com isto, afirmar sua autonomia; Adorno não
teria deixado de sublinhar que a autonomia da esfera artística se pagava com a passagem
do valor de culto ao valor de troca e sua redução à condição de mercadoria. .
Sem desconsiderar a importância deste diálogo interno na consolidação do
motivo adorniano do caráter fetichista, devemos lembrar que ele não explica totalmente
a centralidade do problema do fetichismo no interior da filosofia adorniana da música.
Pois a temática do caráter fetichista na música indica, antes de mais nada, a deterioração
da ratio musical ocidental em uma sentido mais amplo. Ela visa demonstrar como o
processo ocidental de racionalização do material musical, processo este que tem suas
raízes na consolidação do sistema tonal com suas regras gerais de progressão harmônica
e do temperamento igual dos intervalos da escala cromática, assim como na
autonomização da racionalidade da esfera musical em relação a tudo o que é
extramusical, resultou em seu contrário, ou seja, em um encantamento do material
musical e, em certos casos, em um encantamento da organização total do material. Estes
dois modos de encantamento não devem ser confundidos, mas são sintomas
complementares do mesmo processo.
Antes de entrar em considerações sobre os modos de interversão da
racionalização do material musical em encantamento fetichista, faz-se necessário traçar
algumas linhas gerais a respeito do diagnóstico adorniano. Lembremos primeiro que
não se trata exatamente de um diagnóstico, mas de um triplo diagnóstico que concerne:
os modos de audição, a estrutura formal das obras e a função social da música no
capitalismo tardio.
De fato, quando se fala do caráter fetichista na música, pensa-se primeiramente
naquilo que se refere à função social da música no capitalismo tardio. O valor da música
na época do fetichismo da mercadoria estaria determinado pelo deslocamento de afetos
(Verschiebung der Affekte) em direção ao valor de troca. Isto quer dizer, entre outras
coisas, que a consciência musical das massas não seria guiada pelo resultado de um
julgamento estético, mas pelo mero consumo de valores de troca reificados nas obras e
socialmente determinados. Valores que se fundam através da abstração de toda
consideração qualitativa sobre os materiais musicais. Neste sentido, a relação com a
música em um momento histórico no qual ela aparece desprovida de funções rituais ou
outras funções prático-finalista para além da função de entretenimento não poderia
deixar de se inserir em uma situação de colonização pela lógica de equivalentes própria
à forma-mercadoria233. Pois a possibilidade da autonomização da esfera estética de
valor teria sucumbido à colonização da arte pela forma-mercadoria.
Mas este argumento histórico-sociológico geral de esgotamento do julgamento
estético seria desprovido de relevância se não fosse acompanhado por uma análise
formal das obras visando mostrar que a reificação (Verdinglichung) atinge suas
estruturas internas. Faz-se necessário mostrar que as próprias obras organizam-se
estruturalmente em função de certas exigências sociais de circulação e consumo. No
entanto, e este é um ponto essencial, se tais exigências atingem também as obras
daquilo que Adorno chama de “musica séria” (ernsten Musik) é porque elas não vêm
exclusivamente dos imperativos da indústria cultural, mas enraizam-se na própria lógica
do processo de racionalização do material musical, como veremos mais a frente.
Devemos insistir neste ponto : a crítica adorniana do fetichismo na música é crítica a um
233 “Ao invés do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato da canção de sucesso ser
conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo. O
comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais
padronizadas” (Adorno 3, p. 165)
processo de racionalização cuja degradação inicia-se bem antes do advento da indústria
cultural234.
A análise da estrutura interna da forma musical feita por Adorno procura mostrar
como o fetichismo na música está ligado primeiramente àquilo que podemos chamar de
fixação metonímica aos materiais; no entanto, o problema do fetichismo não se esgota
neste ponto. Há também aquilo que Adorno chama de fetichismo da série e que ocupa
uma função fundamental na nossa discussão.
Esta fixação metonímica aos materiais diz respeito tanto à lógica interna dos
processos composicionais quanto à dinâmica de audição: as duas outras dimensões do
diagnóstico adorniano. Se começarmos pela análise dos modos de audição,. podemos
falar em metonímia porque estamos diante de um fenômeno de deslocamento da
percepção do Todo em prol da autonomização de momentos parciais. E podemos falar
em fixação porque se trata de um trabalho metonímico que se bloqueia na fascinação
pelas partes, trabalho que não se organiza através de um postulado expressivo na relação
entre partes e Todo. Assim, a organicidade da totalidade funcional da obra, esta mesma
organicidade que faz com que, ainda em Schoenberg, a forma musical seja definida
como aquilo que : “está constituído por elementos que funcionam tal como um
organismo vivo” (Schoenberg 26, p. 27), dissolve-se em um conjunto de momentos
parciais autonomizados. Tal como o fetichista que destrói de maneira metonímica a
mulher para poder gozar dos traços isolados de seu corpo, o ouvinte moderno se
encontraria em uma posição de gozo fascinante por momentos parciais, o que o
desobrigaria de reconstruir a totalidade. “O sentido da música automaticamente desloca-
se da totalidade em direção aos momentos individuais” (Adorno 10, p. 262), dirá
claramente Adorno.
Neste sentido, todo e qualquer tipo de fixação exclusiva a uma dimensão do
material que nos cega para a apreensão da estrutura da qual ele faz parte e retira seu
sentido será visto como sintoma próprio do fetichismo. Esta exaltação do material em si,
desprovido de função, exaltação fascinada pelo fenômeno sensível da música, levará
Adorno a criticar a fixação na performance técnica dos instrumentistas (fixação que
ganhará o nome de “barbárie da perfeição”), no timbre desprovido de função, nas frases
melódicas que são obsessivamente repetidas (como a “melodia obsedante”, de Theodor
Reik), nos detalhes “expressivos”, entre outros.
Mas, volto a insistir, não se trata apenas de criticar a degradação da audição. Se
a audição atomizada pode se impor é porque ela encontraria obras permissivas ao gozo
metonímico que ela pressupõe. Obras que são :
“um conglomerado de idéias, de ‘achados’ (Einfällen) que são inculcados aos
ouvintes através de amplificações e repetições contínuas, sem que a organização
do conjunto possa exercer a mínima influência contrária” (Adorno 3, p. 175).
No entanto, contrariamente ao que pode parecer, o problema da perda da
possibilidade de audição estrutural, da pressuposição do acesso à transparência das
estruturas de produção do sentido através da apreensão da organização funcional das
obras musicais e, por outro lado, a perda da possibilidade de composição de totalidades
funcionais, está longe de ser o núcleo duro da crítica adorniana ao fetichismo. Tanto é
234 Daí afirmação : “Uma história musical que não queira se satisfazer com distinções entre alta e baixa
música, mas que gostaria de ver a baixa como função da alta, deve traçar o caminho que vai das
formulações mais drásticas de Tchaikowsky, como o tema secundário de Romeu e Julieta, até as melodias
favoritas harmonicamente picantes dos Concertos para piano de Rachmaninoff, Gershwin, e daí para o
infinito ruim (schlechte Unendlichkeit) do entretenimento” (Adorno 5, p. 298)
assim que o protocolo de cura ao fetichismo não é a reconstrução da experiência de
totalidade auto-reflexiva através da defesa, por exemplo, do dodecafonismo integral de
Anton Webern ou do serialismo integral de Pierre Boulez com sua organização do
material musical em todos os seus parâmetros.
De fato, este ponto merece uma análise mais detalhada. A primeira vista, o
problema do caráter fetichista na música parece indicar simplesmente a dissolução da
relação fundamental entre forma musical e capacidade de síntese da diversidade do
material. Isto valeria tanto para a dimensão da produção quanto para a recepção
musical. Lembremos que Adorno falará das obras como “espaços interiores fechados”
(Innen zusammenliet) (Adorno 1, p. 205) e definirá a função da forma estética como a :
“mediação enquanto relação das partes entre si e relação à totalidade, assim que
enquanto completa elaboração (Durchbildung) de detalhes” (Adorno 1, p. 216). Adorno
será ainda mais claro quando definir a função da forma como “síntese musical” (Adorno
3, p. 167) ou quando ver na forma musical : “a totalidade na qual um encadeamento
(Zusammenhang) musical adquire o caráter de autenticidade” (Adorno 9, p. 254).
Se este fosse o caso, então a crítica adorniana seguiria os moldes “clássicos” de
uma certa crítica marxista do fetichismo. Sabemos que um dos processos fundamentais
presentes no fetichismo da mercadoria diz respeito à impossibilidade do sujeito
apreender a estrutura social de determinação do valor dos objetos devido a um regime
de fascinação pela “objetividade fantasmática” (gespenstige Gegenständlichkeit)
daquilo que aparece. Fascinação vinculada à naturalização de significações socialmente
determinadas. Uma certa crítica do fetichismo se organizaria a partir daí através da
temática da alienação da consciência no domínio da falsa objetividade da aparência e
das relações reificadas. Alienação que indicaria a incapacidade de compreensão da
totalidade das relações estruturalmente determinantes do sentido.
Por outro lado, a tomada de consciência resultante do trabalho da crítica
pressuporia a possibilidade, mesmo que utópica, de processos de interpretação capazes
de instaurar um regime de relações não-reificadas que garantam a transparência da
totalidade dos mecanismos de produção do sentido. A crítica viraria assim : “descrição
das estruturas que, em última instância, definem o campo de toda significação possível”
(Prado Jr. 25, p. 210). E o que seria a audição estrutural a não ser o resultado desta
crença em um horizonte de transparência do sentido ?
Mas uma série de problemas seguiriam necessariamente tal posição.
Lembremos, principalmente, que tal noção de forma como síntese musical parece ser
perfeitamente adequada apenas à análise de estruturas tradicionais como, por exemplo, a
forma-sonata com seus processos de apresentação e re-articulação do material.
Processos sustentados pela tensão entre desenvolvimento das partes e construção de
sínteses através da repetição de motivos e materiais. No entanto, o que dizer da
experiência contemporânea da forma? O que dizer, por exemplo, de uma forma como a
de John Cage que parece não admitir a mediação entre acontecimentos regionais e
articulação global235 ? Adorno seria , na verdade, alguém que só pode ver a produção do
sentido através da posição de uma totalidade construída a partir de uma dialética entre a
particularidade da expressão e a universalidade da construção formal ? Afinal, não é ele
que afirma, por exemplo que a grandeza de Beethoven encontra-se na completa
235 Lembremos do que diz Cage a este respeito : “Eu interpreto a palavra ‘estrutura’ como a divisão do
todo em partes. E eu aplicaria a utilidade da idéia de estrutura a uma obra de arte que parte para ser um
objeto, ou seja, que tem um começo, um meio e um fim. E se, como geralmente é meu caso, faz-se algo
que não é um objeto, mas um processo, então esta preocupação não tem lugar e a questão de saber se é
melhor ou não é sem objeto” (Konstelanetz 20, p. 292)
subordinação do elemento melódico, acidental e privado (züfallig-privaten melodischen
Elements) à totalidade da forma (Formganze)?
Vale a pena lembrar aqui como Lyotard criticava vivamente Adorno devido
exatamente a esta idéia de forma como síntese musical. Segundo ele :
“seu ceticismo [o ceticismo de Adorno em relação àquilo que é desprovido de
relação e que não se submete à síntese] resplandece na nova música ; o material
só vale como relação, só há relação. O som reenvia à série, a série às operações
sobre ela” (Lyotard 24, p. 118).
No entanto, seguir Lyotard significa perder a particularidade da experiência
adorniana e não compreender, por exemplo, suas críticas, bem conhecidas, ao serialismo
integral da Escola de Darmstadt, ou mesmo, ao processo de racionalização do material
musical tal como ele é concebido por Max Weber. Tanto em um caso quanto no outro,
as crítica de Adorno giram exatamente em torno da hipóstase da noção de relação na
determinação da racionalidade do fato musical. De qualquer forma, seria no mínimo
estranho que o mesmo Adorno que não cansava de afirmar que o Todo era o não-
verdade e de que : “o medo do caos, em música como na psicologia social, é
superestimado”. teria hipostasiado a noção de relação. Lembremos que, neste sentido, a
afirmação maior de Adorno continua sendo : “a unidade (Einheit) das obras de arte não
pode ser o que ela deve ser , ou seja, unidade da variedade. Sintetizando, ela estraga o
sintetizado e arruína nela a síntese”. Daí porque : “A arte mais exigente tende a
ultrapassar a forma como totalidade e realizar-se no fragmentário” (Adorno 1, p. 221).
Para realizar seu conceito, a música deve fracassar como totalidade funcional.
Lembremos também como Adorno sempre procurou pensar a análise musical como
crítica à ilusão da obra como Gestalt, boa forma totalizante. Criticar a aparência ilusória
do todo é um postulado que vale também para o projeto da filosofia da música
adorniana. Posições estas que só complexificam tanto a função do diagnóstico a
respeito do caráter fetichista na música quanto o prognóstico adorniano.
Anular o tempo : o devir imagem do material
Para compreender o que Adorno tem realmente em vista ao articular o diagnóstico a
respeito do caráter fetichista na música, devemos retornar à tese da audição atomizada :
o primeiro nome da audição fetichista. Seu caráter descontínuo, índice da sua
incapacidade em articular sínteses, nos lembra que estamos diante de uma audição
musical que não seria mais guiada por processos de rememoração e expectativa
(Erinnerung und Erwartung). Ela ignoraria que :
“em música, nada é isolado e tudo só se transforma no que é através do contato
físico com o que é próximo e do contato espiritual com o que é distante, na
rememoração e na expectativa” (Adorno 9, p. 254).
Adorno insiste no fato de que o instante musical conhece uma causalidade temporal que
o faz : “em virtude daquilo que ele faz lembrar, daquilo do qual ele se distingue, da
expectativa que ele desperta, reenviar para além de si mesmo” (Adorno 9, p. 256). Há
assim uma “transcendência” fundamental do instante musical que nos mostra que ele
nunca é exatamente idêntico à si mesmo, já que seu sentido só se estabelece através de
processos contínuos de recontextualização dos instantes passados.
Mas, como nos lembra Adorno, o tempo que estrutura a música fetichizada não é
o tempo-duração pressuposto pelos processos de rememoração, mas uma espécie de
tempo-espaço submetido às leis da descontinuidade e da justaposição. Como dirá, por
exemplo, este anti-bergsoniano involuntário que é Philip Glass : “Minha música é um
motor do espaço”. Fórmula precisa já que sua música, como muitas outras, não faz
apelo à rememoração ou às tramas teleológicas da memória. Ela faz apelo à dissolução
da experiência da temporalidade e à ek-stase própria daquilo que se transforma em
objeto no espaço. A audição atomizada da qual fala Adorno é, na verdade, audição
submetida às leis do espaço, audição que se submete a espacialização do tempo ao
apresentar os complexos de duração como complexos espaciais. Na verdade, estamos
diante de uma audição que passa de um material a outro tal como alguém que atravessa
as fronteiras de um território descontínuo; pois a determinidade imediata do espaço
fundamenta-se na indiferença recíproca como marca do modo de ser da espacialidade.
Esta submissão da audição à lógica descontínua do espaço é fundamental para
compreendermos a amplitude do que está realmente em jogo no diagnóstico a respeito
do caráter fetichista na música. Isto ao ponto de podermos afirmar que as várias formas
de anulação do tempo-duração nos fornecerão regimes distintos de fetichismo. Na
verdade, Adorno partilha diagnósticos como o de Lukács, para quem a racionalização na
modernidade capitalista : “reduz tempo e espaço a um denominador comum, nivelando
o tempo segundo o plano do espaço”. Pois “o tempo perde seu caráter qualitativo,
mutável, fluido, cristalizando-se em um contínuo cheio de ‘coisas’ delimitadas de
maneira estática, quantitativamente mensuráveis” (Lukács 23, p. 131). Tal diagnóstico
vale para a racionalização do material musical.
Mas, antes de analisarmos diretamente os impasses da racionalização musical,
devemos partir de certas considerações derivadas da forma mais evidente da anulação
do tempo: aquela pressuposta pela audição atomizada. Podemos dizer que a audição
atomizada é, na verdade, uma audição que tende a apreender o material musical da
mesma maneira que apreendemos uma imagem estática que se dá no espaço. É isto o
que Adorno tem em vista ao afirmar que a : “espacialização da música testemunha sua
pseudomorfose em pintura” Isto para, logo em seguida, insistir na impossibilidade de
uma síntese das artes devido ao fato de que: “toda pintura, e também a pintura não-
figurativa, tem seu pathos naquilo que é; toda música, ao contrário, visa um devir
(Werden)” (Adorno 8, p. 174). Esta determinação significante da imagem seria estranha
à indeterminação do sentido no fato musical. Adorno, na verdade, recorre aqui, mais
uma vez, à temática romântica da música instrumental desprovida de funções, textos e
programas como veículo privilegiado de exposição daquilo que excede toda
determinação fenomenal, ou seja, como veículo de uma metafísica do sublime.
Indeterminação fenomenal que permitiria à música, contrariamente às artes da imagem,
não se submeter totalmente à ratio objetivante236.
Notemos aqui a especificidade da concepção adorniana de temporalidade.
Adorno procura um pensamento do tempo não submetido ao paradigma da
espacialidade. Ou seja, trata-se de não pensar o tempo como justaposição de momentos
inertes e independentes, mas como movimento dinâmico de auto-anulação da
identidade. Esta negatividade própria à potência elementar do tempo nos reenvia
necessariamente à Hegel e à sua noção do tempo como “atividade negativa ideal”
(ideelle negative Tätigkeit) (Hegel 18, p. 156), ou seja, como potência que anula a
236 “A música contém algo que escapa à civilização, algo que não se submete totalmente à ratio reificada
(vergegenständlichenden); enquanto que as artes plásticas, que se vinculam a coisas (Dinge)
deeterminadas, ao mundo objetivo (gegenständliche) da práxis, mostra-se aparentada ao espírito do
progresso tecnológico” (ADORNO 8, p. 175)
justaposição indiferente do espacial ao instaurar a continuidade de instantes que, por
serem necessariamente pensados em continuidade, negam-se a si mesmos enquanto
identidades autônomas.
Neste sentido, devemos lembrar que, para Adorno, a anulação da temporalidade
na música traz ao menos duas conseqüências distintas mas complementares. A primeira
diz respeito à dinâmica musical. Ao submeter-se ao tempo-espaço, o desenvolvimento
interno da forma musical, marcado pela continuidade temporal da duração, tende a dar
lugar a uma articulação que se assemelha à construções por justaposição.
Mas, por outro lado, e este é o ponto mais importante, se a audição atomizada
pode apreender o material musical da mesma maneira que apreendemos uma imagem
estática que se dá no espaço, é porque estamos diante de um material reduzido à sua
própria imagem. A audição atomizada indica o devir imagem do material musical.
No nosso contexto, isto significa dizer que o material se transforma em
gramática congelada e estática, peças de um vocabulário totalmente codificado. Adorno
falará de acordes que são sempre usados em funções idênticas, combinações
estereotipados como os passos de uma cadência. A invariância de um material
previamente codificado pelo sistema leva à estereotipia e à constituição de uma
“segunda natureza” reificada. Por não poder se desenvolver para além da forma definida
por uma apreensão estereotipada, o material é reduzido à estática de imagens
idealizadas. Dissolve-se assim aquilo que Adorno chama de “resistência do material” à
sua instrumentalização integral, ou seja, este estranhamento do material que resiste a
todo processo de conformação integral à construção.
De fato, tal submissão do material musical à estática da imagem é o centro do
diagnóstico a respeito do caráter fetichista na música. O problema da perda do princípio
de organização e de percepção da totalidade funcional das obras é apenas seu efeito
derivado. Pois o verdadeiro problema do fetichismo é a deposição da resistência de
materiais que se dão essencialmente no tempo.
Mas vale a pena ainda insistir em outro ponto. Nesta redução do material à sua
própria imagem, a temática adorniana do fetichismo se aproxima daquilo que a teoria
psicanalítica chama de idealização (Idealisierung) própria a toda operação fetichista.
Jacques Lacan será mais explícito ao falar de imaginarização.
Há certamente várias maneiras de compreender este mecanismo de idealização
mas gostaria de me restringir a apenas uma. Ela está presente no sentido mais arcaico da
palavra idealização. Trata-se da submissão do objeto ao esquema mental que dele
possuímos. Ou seja, trata-se da apreensão do objeto como projeção de um esquema
mental que, no caso do fetichismo, é imagem fantasmática237. O objeto fetiche é objeto
reduzido a condição de suporte de uma imagem fantasmática. O que nos explica, por
exemplo, porque o fetichista é necessariamente um cenógrafo que, através de uma
espécie de contrato, constrói situações nas quais ele procura anular toda dissonância
presente no corpo do objeto através da sua conformação perfeita à imagem. É uma
pregnância imaginária semelhante que Adorno tenta evitar ao insistir que : “o que se
aferra à imagem fica prisioneiro do mito, culto dos ídolos” (Adorno 7, p. 199). Daí
porque : “é sem imagem que o objeto deve ser pensado em sua integralidade” (Adorno
7, p. 201).
Neste sentido, não é por acaso que os momentos parciais que se autonomizam na
música fetichizada sejam, normalmente, os momentos de inflexão expressiva. O
impulso (Impus, Drang, Trieb) subjetivo tende ao informe, à negação da organicidade
funcional, como vemos no livro de Adorno dedicado à Alban Berg. Nele, Adorno não
237 Lacan, por exemplo, dirá que : “O fetiche é de uma certa maneira imagem, e imagem projetada”
(Lacan 21, p. 158)
cessa de lembrar que: “quem analisa esta música, sobretudo a vê desagregar-se como se
não contivesse nada de sólido” e chega, várias vezes, a falar na pulsão de morte como
tendência originária das obras, isto devido ao desejo insaciável de amorfo e de informe
que as habitas. “A cumplicidade com a morte, uma atitude de amável urbanidade em
relação a sua própria dissolução caracteriza as obras de Berg” (Adorno 6, p. 83), dirá
Adorno.
Tais colocações são índices de uma mutação na categoria de “expressão”
operada por Adorno. Para alguém como ele, que moldou a categoria do impulso a partir
do conceito freudiano de pulsão, a expressão subjetiva não pode mais estar subordinada
a gramática dos afetos ou da imanência expressiva da positividade da intencionalidade.
Lacan insistirá que a pulsão é fundamentalmente caracterizada por ser inadequada a
toda determinação objetiva empírica, ou seja, o que é determinante na pulsão é o fato
dela não ter objeto naturalmente dado, como Freud nos mostrou em Pulsões e destinos
da pulsão. Uma pulsão pensada nesta chave expressa-se no interior das obras como
negação das identidades fixas submetidas a uma organização funcional, como
incidência do negativo na obra. Em alguns casos, tal negação aparece como tendência
ao informe, como seria o caso de Berg. No entanto, o que a música fetichizada faz é
dominar a negatividade da expressão subjetiva através da imagem fetichizada da
subjetividade, imagem que não deixa de dar lugar a um certo jargão da autenticidade.
Daí porque um dos temas fundamentais da estética adorniana não é o abandono da
categoria da expressão, mas a sua liberação do “momento da transfiguração, do
elemento ideológico na expressão (das Ideologische am Ausdruck)” (Adorno 2, p. 156).
Ou seja, tudo se passa como se Adorno tentasse, de uma certa forma, convergir, em um
mesmo movimento, categorias da música como veículo da metafísica do sublime e um
conceito de expressão construído a partir da noção psicanalítica de pulsão, com sua
ausência de determinação objetiva. Movimento arriscado, mas absolutamente possível
no interior da trajetória adorniana.
Racionalizações
Neste ponto, devemos insistir que tal maneira de pensar o fetichismo como
procedimento de submissão do material à estática das imagens e da conseqüente
deposição da sua não-identidade através da espacialização do tempo é índice da crítica
adorniana ao processo de racionalização do material musical no ocidente, ao menos tal
como ele é pensado por Max Weber.
Sabemos que a racionalização em Weber define-se, entre outras coisas, por um
processo triplo de desencantamento, de dominação pelo cálculo (Berechnen
beherrschung) e de consolidação da legalidade própria de cada uma das esferas de
valores. Sabemos também que falar em “desencantamento” do material musical
significa, inicialmente. livrar a música de toda e qualquer ligação essencial com funções
rituais. Trata-se de fazer a crítica do fetichismo mágico-religioso na música. Por isto,
Weber insiste que :
“temos que nos recordar do fato sociológico de que a música primitiva foi
afastada, em grande parte, durante os estágios iniciais de seu desenvolvimento, do
puro gozo estético, ficando subordinada a fins práticos, em primeiro lugar
sobretudo mágicos” (Weber 29, p. 87).
Mas o processo de desencantamento do material musical em Weber não se
resumiu apenas à crítica do fetichismo mágico-religioso na música. A música deve se
liberar de toda afinidade mimética com aquilo que lhe é externo, em especial com a
linguagem. A “legalidade própria” da esfera musical só pode se dar, assim, através do
abandono de sua ligação, de um lado, com a linguagem prosáica e ,de outro, com o
fetichismo mágico-religioso. Ou seja, a racionalização do material musical é solidária
do abandono de todo princípio mimético na racionalidade do fato musical. Note-se que
a música aparece como espaço privilegiado para a reflexão sobre este tipo de
racionalização devido ao seu caráter eminentemente não-figurativo e resistente a
processos de conceitualização.
Este conceito positivo de razão fundado na autonomia do fato musical a tudo
aquilo que é extramusical graças a consolidação de um sistema estrutural de
significação representado pelo tonalismo com suas regras de progressão harmônica será
claramente criticado por Adorno. Lembremos como, para ele :
“Uma vez que, na sua própria esfera, que é a livre produção artística, o espírito
domina tudo até o último elemento heterônomo, até o último elemento material
(Stoffliche), ele começa a girar em torno de si mesmo, como se estivesse
aprisionado, desligado de tudo o que a ele se opõe. A liberação total do espírito
coincide com a emasculação do espírito. Seu caráter fetichista, sua hipóstase
como simples reflexão formal advém manifesta a partir do momento em que ele
se libera (offenbar) do último vínculo de dependência com o que não é espírito”
(Adorno 8, p. 28).
Aqui, vemos claramente como o caráter fetichista está vinculado a construções
que, por participarem de uma lógica de autonomização do fato musical em relação a
tudo aquilo que é extramusical, só podem pensar a produção do sentido através da
submissão integral do material à forma. Este programa de dominação completa do
material anula a dialética entre forma e material e eleva as regras de construção a uma
“segunda natureza” (Adorno 9, p. 252) reificada e estática . E ao transformar-se em
“segunda natureza” não mais submetida à historicidade de suas escolhas, a construção
estereotipiza o material, definindo previamente suas possibilidades de incidência, sua
seqüência, ou seja, transformando em imagem estática aquilo que tem sua dimensão
original na potência negativa do tempo. Neste devir imagem de um material reificado, a
racionalização se inverte em encantamento. Não se trata mais do encantamento de um
material cujo sentido submete-se a funções mágico-religiosas; mas um encantamento
que naturaliza regras de construção e que transforma o material em mero suporte desta
segunda natureza238. Desta forma, podemos mesmo dizer que a desagregação da forma
em momentos parciais autonomizados já estava inscrita como destino devido a
estereopização implicada no programa de dominação completa do material.
238 Lembremos, por exemplo, do que diz Eduard Hanslick (cuja concepção de música autônoma, “formas
sonoras em movimento”, em muito se assemelha àquela defendida por Max Weber) a respeito das regras
de construção harmônica do sistema tonal: “O elemento satisfatoriamente racional que em si e por si pode
residir nas formações musicais funda-se me certas leis básicas primitivas que a natureza implantou na
organização do homem e nos fenômenos sonoros externos. A lei originária da “progressão harmônica” é o
que, de preferência, analogamente à forma circular nas artes plásticas, traz em si o germe dos
desenvolvimentos mais importantes e a explicação das diferentes relações musicais” (Hanslick 17, p. 41).
Ao elevar a harmonia como segunda natureza, vemos assim uma verdadeira naturalização da ratio
musical.
Introdução à experiência intelectual de Theodor Adorno
Aula 11
Introduzindo a Filosofia da nova música
Sabemos como “Filosofia da nova música” transformou-se no texto
mais conhecido de Adorno a respeito da música. O livro funcionou como
um marco de consolidação do que hoje poderíamos chamar de campo da
filosofia da música. Nesta aula, gostaria de analisar algumas estratégias
gerais que orientam o livro, a começar pela maneira de contrapor, como
dois vetores contrários no desenvolvimento do pensamento musical do
século XX, Schoenberg e Stravinsky. Minha idéia é de que esta maneira de
organizar os eixos do desenvolvimento da linguagem musical no século
XX, maneira que não é a única possível, obedece a uma escolha tática
impregnada de decisões filosóficas. Notemos, por exemplo, que ela
secudariza o pensamento musical francês cujas questões não se enquadram
totalmente na polaridade Schoenberg/Stravinsky. A desconstrução da
funcionalidade harmônica em Debussy e posteriormente em Messiaen não
é legível nem no interior da racionalidade dodecafônica, nem no interior da
paródia do tonalismo de Stravinsky. Notemos também que a perspectiva
adorniana acaba por secundarizar a peculiaridade do politonalismo e do o
trabalho de dissonâncias no interior de uma gramática ainda tonal na
música de Bela Bartok.
No entanto, esta escolha em validar a polaridade
Schoemberg/Stravinsky como eixo maior de compreensão do
desenvolvimento da linguagem musical do século XX não é gratuita. Se
formos a Introdução da Filosofia da nova música, Adorno colocar seu texto
“O caráter fetichista na música” como uma espécie de preâmbulo ao
presente livro. Ele afirma :
não poder se enganar a respeito do fato de que a arte que moldou seu
espírito não escapará, mesmo sob sua forma pura e intransigente, à
reificação que reina por todos os lados, mas que esta arte, justamente
no esforço de defender sua integridade, produz a partir de si mesma
as características desta mesma natureza contra a qual ela se opõe239.
Ou seja, esta maneira de colocar o texto sobre o fetichismo como vetor de
orientação para a Filosofia da nova música nos indica, entre outras coisas,
que o diagnóstico de fetichismo, pensado aqui como momento de
239 ADORNO, PNM, p. 7,
interversão da racionalização do fato musical em encantamento, deve agora
ser procurado também nesta arte pura e intransigente que será objeto do
livro. Novamente, estamos diante da idéia de que o fetichismo não é
resultante de uma simples consideração a respeito do destino da música no
interior da indústria cultural, mas ele organiza a maneira com que Adorno
pensa os impasses da racionalização do material musical no Ocidente.
Impasses que seriam partilhados, de maneiras diferentes, por Schoenberg e
por Stravinsky.
Neste sentido, devemos estar atentos à idéia de que a Filosofia da
nova música seria uma : “digressão da Dialética do Esclarecimento”. Da
mesma maneira como a Dialética do esclarecimento tinha como função
central fornecer uma crítica geral aos processos de interversão da razão em
dominação, seja nos campos da dimensão cognitiva (O conceito de
esclarecimento e Ulisses ou Mito e esclarecimento), da dimensão prática
(Juliette ou esclarecimento e moral) e dos processos de interação social
(Elementos de anti-semitismo e O esclarecimento como mistificação das
massas), a Filosofia da nova música amplia tal crítica geral para campo da
dimensão estética. Neste sentido, o livro só pode terminar em uma aporia.
A nova música será vista como uma garrafa no mar a procura de
destinatários que ainda não existem. Posteriormente, teremos que ir em
direção a outros textos para procurar o possibilidade de um conceito
positivo de razão musical em Adorno.
Eu havia falado anteriormente que a maneira de organizar o
desenvolvimento da forma musical no século XX através do
estabelecimento da polaridade Schoenberg/Stravinsky respondia a uma
orientação propriamente filosófica. De fato, veremos a partir desta aula
como Schoenberg e Stravinsky traziam dois regimes de fetichismo : o
fetichismo da série e o fetichismo como fixação metonímica aos materiais.
Notemos ainda que esta duplicidade do diagnóstico adorniano deve ser lida
no interior de um movimento duplo de crítica próprio a todo pensamento
dialético. Tudo se passa como se Adorno organizasse o desenvolvimento da
forma musical a partir de uma dupla crítica fundante de toda perspectiva
dialética
Desde Hegel, vemos a dialética procurar afirmar a dimensão
especulativa através de um movimento duplo de negação que visa, por um
lado, invalidar todo pensamento da imanência que crê na possibilidade de
recuperação de níveis de experiência imediata e pré-discursiva e, por outro,
todo pensamento transcendental que só pode pensar o sentido através de
uma elaboração de categorias formais deduzidas a priori. Nos dois casos, a
dialética identifica a presença de um princípio de identidade guiando tanto
a certeza de que há uma imanência disponível à experiência quanto a
defesa de que a forma organiza previamente a integralidade do sentido da
experiência. A astúcia de Adorno consistiu em encontrar estes dois regimes
do princípio de identidade em operação na organização dos vetores da
experiência musical do século XX. O “estruturalismo transcendental” do
programa de construção integral (que vai do dodecafonismo ao serialismo
integral) vê o material musical como aquilo que é absolutamente integrado
em uma totalidade de relações. O “plano de imanência” próprio à fixação
no fenômeno sensível da música (posição que inicialmente visa a fixação
metonímica nos materiais mas que também dá conta, em Adorno, da
hipostase do sonoro como o que é provido de realidade em si, e aqui
Adorno visa o intuicionismo da música aleatória de John Cage; embora não
se trate de dizer que os dois fenômenos musicais partilhem o mesmo
padrão de racionalidade) vê o material como o que é provido de
significações naturalizadas. Ou seja, a princípio, Stranvinsky e Schoenberg
distinguem-se da mesma maneira que distinguimos imanência e
transcedentalidade.
Schoenberg
No interior da Filosofia da nova música, Schoenberg aparece como aquele
que é capaz de indicar uma orientação para a procura de um conceito
positivo de racionalidade musical que não se inverta simplesmente em
dominação da natureza. Mas, para Adorno, o verdadeiro caminho apontado
por Schoenberg só se tornará visível a partir do momento em que certos
ideais schoenbergianos de construção integral forem devidamente
criticados. Neste sentido, o capítulo dedicado à Schoenberg na Filosofia da
nova música é eminementemente crítico e apenas suas últimas páginas
aparecem sob a luz de uma reflexão sobre direções possíveis para a nova
música, para além do impasse.
O trajeto composicional de Schoenberrg foi marcado por várias
rupturas internas. De fato, sua trajetória pode ser dividida em quatro fases:
até 1908, Schoenberg é um compositor tonal, embora seu uso da tonalidade
já demonstre uma tendência em aprofundar cada vez mais as possibilidades
abertas pelo cromatismo. Isto o levará, entre 1908 e 1923, a um período
atonal, ou como preferia o próprio Schoenberg, “pantonal”. Na verdade,
este é o período no qual Adorno encontra a possibilidade de um
desenvolvimento da forma musical que responde de maneira mais
satisfatória às suas exigências. A partir de 1923 até 1934 temos o período
dodecafônico. A primeira peça dodecafônica só foi terminada em 1923 (a
valsa das cinco peças para piano, opus 23). Durante dez anos, Schoenberg
praticamente não terminou peça alguma. Já neste período, encontramos
algumas peça “híbridas” pois não são totalmente organizadas a partir dos
princípios dodecafônicos. Por fim, a partir de 1934, encontramos um
período ainda relativamente pouco estudado, período marcada
principalmente pela utilização de material tonal e pela construção de
formas híbridas. Este último período também é importante para as análises
de Adorno, que vê nele a consolidação de processos composicionais
importantes para toda reflexão contemporânea sobre o destino da forma
musical.
O capítulo dedicado a Schoenberg na Filosofia da nova música
obedece, de uma certa forma, a esta trajetória. Ele começa a partir de
considerações sobre a tendência histórica do material musical. Ou seja,
trata-se de reconhecer que o material musical não é naturalmente fornecido.
Adorno no fundo critica todos aqueles que procuram derivar as regras de
consonância e de progressão harmônica de leis naturais e, com isto,
“naturalizar” a razão musical. Vimos um exemplo desta estratégia com
Eduard Hanslick. Ao contrário, Adorno procura insistir no fato de que o
material, ou seja, aquilo que o compositor dispõe para compor, é
historicamente determinado. Isto indica, por exemplo, que nem tudo é
possível a todo momento. Reconhecer a tendência histórica dos materiais
implica em reconhecer que certas dimensões do material podem se tornar
falsas, pois aludem a um momento histórico que, do ponto de vista das
técnicas composicionais, já passou. Ou seja, ninguém toca um acorde
perfeito impunemente quando as contradições não prometem nenhuma
forma de conciliação imediata.
Recuperar a expressão
De fato, Schoenberg aponta para o reconhecimento da tendência histórica
do material ao afirmar que : “a arte é, em seu estágio mais elementar, uma
simples imitação da natureza. Mas logo se torna imitação nem sentido mais
amplo do conceito, isto é, não mera imitação da natureza exterior, mas
também da interior”240. Nós sabemos como esta “imitação da natureza
interior” nos leva diretamente à categoria de expressão enquanto elemento
central na determinação da racionalidade da forma estética. Mas a pergunta
que devemos fazer é : como Schoenberg recupera a categoria de expressão?
O recurso ao vocabulário da imitação poderia parecer nos recolocar
nas vias de uma racionalidade mimética como protocolo de constituição da
aparência estética. No entanto, ao contrário, a expressão desta “natureza
interior” só poderá ser posta através da crítica à aparência funcional das
obras. A natureza desta crítica à aparência como motor da racionalidade de
obras que aspiram à modernidade foi claramente identificada por Adorno
ao afirmar que: “em Schoenberg, o aspecto verdadeiramente novo é a
mudança de função da expressão musical”241. Esta frase é mais decisiva do
que parece, já que normalmente, aceitamos que o aspecto realmente novo
240 SCHOENBERG, Tratado de harmonia, p. 55 241 ADORNO, PNM, p. 50
da experiência musical de Schoenberg estaria presente na sua maneira de
criar totalidades funcionais sem recorrer ao sistema tonal. Mas, no entanto,
Adorno insiste que devemos procurar a verdadeira cena da música de
Schoenberg através da compreensão de seu uso da categoria de expressão.
A mudança de função a que alude Adorno consiste em romper com o
fato de que:
Desde Monteverdi e até Verdi, a música dramática, como verdadeira
musica ficta, apresentava a expressão como expressão estilizada,
mediada, ou seja, como aparência de paixões242.
Segundo esta leitura, a expressão esteve paulatinamente subordinada a uma
gramática das paixões e dos afetos, gramática que faria com que a
particularidade dos momentos expressivos fosse sempre fetichizada e
submetida à generalidade conciliadora que constitui o primeiro princípio da
aparência estética. O esgotamento do sistema tonal é, também,
esgotamento de uma gramática de expressões que se naturaliza no uso
reiterado de cadências e elementos que desempenham sempre a função de
um “sistema de representações”. A “emancipação da dissonância” em
relação ao esquema antecipação-resolução, emancipação a respeito da qual
fala constantemente Schoenberg não seria outra coisa que a possibilidade
de construir idéias musicais capazes de desvelar uma expressão recalcada
pela gramática do sistema tonal. Recalque produzido por uma aparência
que submete a expressão singular aos ditames de uma linguagem
sedimentada.
Assim, o que Schoenberg faz é manifestar musicalmente uma
expressão desprovida de gramática. Neste sentido, Adorno não poderia ser
mais claro :
Não se trata mais de paixões fingidas, mas enregistra-se no medium
da música movimentos reais, e não disfarçados, do inconsciente,
choques, traumas. Eles atacam os tabus da forma, que submetem tais
movimentos à censura, os racionalizam e os transpõem em
imagens243.
Notemos primeiro esta tríade de recalcamento da expressão pela forma :
censura, racionalização e transposições em imagens.
Adorno encontra esta expressão que não se deixa colonizar por
imagens, por exemplo, em Erwartung, de 1909 Trata-se de uma música
escrita em um estilo atonal livre que desconhece trabalhos temáticos e não
é definível por categorias formais. Ela não tem nada que se assemelhe a
242 idem, p. 49 243 idem, p. 50
desenvolvimento ou continuidade, embora Dahlhaus insista que há um
trabalho de células motívicas. A ausência de estruturas temáticas claras e a
negação da forma como totalidade funcional aparecem como modo de
manifestação de uma expressão que deve ser compreendida como:
gravação sismográfica de choques traumáticos que se transforma na
lei técnica da forma musical, impedindo continuidade e
desenvolvimento244.
Esta afirmação é importante. Trata-se de tentar defender que o caráter
negativo da expressão fornece o princípio legal de organização desta forma
musical que nega a forma. Assim, a música vai sendo montada como uma
certa escritura de cicatrizes:
o contraste, suplantado no século XIX pela transição, converte-se em
meio de estruturação formal, sob a pressão de um estado sentimental
polarizado em seus extremos245.
E que o drama musical se chame Erwartung não deixa de guardar uma
certa ironia. Sabemos como a organização funcional baseada no sistema
tonal é fundado sobre um duplo processo de rememoração e expectativa
(Erinneung und Erwartung). Através da rememoração, construímos a
unidade de temas e motivos que se repetem e que determinam seu sentido
através de um sistema de repetições e analogias. Através da expectativa,
criada pelas cadências e pelas progressões harmônicas, a forma musical é
atualizada na memória do ouvinte, mesmo que ela não se realize no
fenômeno musical. No entanto, a peça de Schoenberg é um sistema de
anulação de expectativas, devido à negação contínua da forma musical.
De fato, uma análise inicial de Erwartung nos mostra que ela está
sustentada em dois processos composicionais contraditórios. Por um lado,
ela organiza-se como um recitativo accompagnato expandido para a
integralidade do drama musical, ou seja, como uma declamação musical
suportado por motivos orquestrais expressivos ou descritivos. Mas os
motivos orquestrais, ao invés de acompanharem o texto, desdobram-se em
um emaranhado polifônico e contrapontístico, impedindo assim que o texto
seja “acompanhado” pelos motivos orquestrais. Podemos compreender
melhor esta característica se lembrarmos o que o próprio Schoenberg diz a
respeito de Erwartung : “é impossível ao homem sentir apenas uma coisa
por vez. Sentimos milhares de coisas ao mesmo tempo. E estas milhares de
coisas não se adicionam, da mesma maneira como uma maça e uma pêra
não se adicionam. Elas divergem. É esta multiplicidade de cores, de
244 idem, p. 53 245 ADORNO, Prismas, p. 151
formas, este alogicismo próprio a nossas sensações, alogicismo inerente às
associações de idéias, a não importa qual reação dos sentidos e dos nervos
que quero em minha música”. E de fato, o caráter fragmentário do texto,
que Adorno comparava à narrativa psicanalítica de sonhos, reforça a
instabilidade formal da obra.
Mas se fizermos uma recapitulação dos elementos utilizados para
descrever Erwartung, pode parecer que se trata da mesma constelação de
motivos usados para expor as características da música de Stravinsky :
anulação de continuidade e desenvolvimento, dissolução dos princípios
clássicos de organização funcional da obra, gravação sismográfica de
choques traumáticos. Sendo assim, onde está a diferença entre Schoenberg
e Stravinsky aos olhos de Adorno? Neste momento, ela não está lá onde
nós esperamos, ou seja, nos procedimento composicionais gerais. Ela está
no conceito mesmo de “expressão”. Veremos como Stravinsky usa
exatamente o material mais fetichizado e gasto para estrutura os momentos
expressivos da música : pequenos motivos elementares sempre diatônicos,
peças musicais de salão etc. Segundo Adorno, há sempre algo de infantil
nas inflexões expressivas de Stravinsky e isto se daria devido à
implementação do programa modernista de retorno ao arcaico. A tríade :
infantil, arcaico, inconsciente seria o tripé usado por Stravinsky para
sustentar o papel por ele definido para a expressão. Já em Scheonberg, os
impulsos que constituem a expressão não nos levam exatamente em direção
ao arcaico e ao infantil. Eles nos levam à uma certa história do sofrimento,
a história daquilo que é desprovido de imagem, ou seja, a dimensão da
angústia como verdade. Como dirá Adorno, o núcleo da expressão em
Schoenberg é a angústia246. Haveria todo um trabalho a ser desenvolvido
para mostrar como a angústia vai aos poucos aparecendo como categoria
expressiva fundamental na arte contemporânea [A náusea,
Sartre/Heidegger e a angústia/ a angústia como manifestação de um desejo
desprovido de objeto] .
Dodecafonismo e construção como verdade
De fato, se Adorno estiver correto em sua interpretação, a obra de
Schoenberg seria estruturada em torno de uma tentativa de recuperar a
expressão através da negação da aparência estética. Isto o teria levado a um
combate contra a aparência musical e contra tudo aquilo o que poderia
aparentar a uma organicidade caduca que se faria passar por segunda
natureza através da entificação do sistema tonal. Neste sentido, a passagem
da fase “expressionista” à fase “dodecafônica” marcaria a transformação da
negação da aparência em sistema. A negação da aparência no
246 ADORNO, Prismas, p. 172
dodecafonismo fica clara se lembrarmos que : “se anteriormente a
totalidade se realizava às costas dos acontecimentos singulares, agora ela é
construção consciente”247.
Ao racionalizar todas as incidências do material musical através do
primado da série, que faz com que cada evento seja automaticamente
reportado a este padrão transcendental de justificação que é a série, a
música tenta assim se liberar da aparência costurada pela naturalidade do
sistema tonal. Ao colocar a música sob o signo do combate à aparência e do
desvelamento da estrutura, Schoenberg pode recuperar suas exigências de
verdade a partir da constituição de um sistema. Isto o permitirá sair do
impasse do período pantonal : obras cada vez menores, a não ser que elas
fossem sustentadas por elementos exteriores como texto.
Aqui, vale uma digressão. Não deixa de ser ilustrativo que
Schoenberg interesse-se por Freud e por sua noção de interpretação das
formações do inconsciente como revelação do que se aloja em uma outra
cena. Ao interpretar obras estéticas, Freud parte do princípio de que a
verdade da obra não coincide com sua letra, já que a aparência estética
oblitera uma dinâmica pulsional que só pode aparecer a partir de operações
arqueológicas de procura pelo sentido. “Eu percebi constantemente”, dirá
Freud, “que o conteúdo (Inhalt) de uma obra de arte me apreende mais que
suas qualidades formais e técnicas”248. Este comentário inocente é, na
verdade, a exposição de todo um programa estético. Trata-se de revelar o
pensamento presente na forma estética (pensamento cuja fonte, segundo
Freud, é a “intenção do artista” [Absicht des Künstlers], ou seja, seus
desejos inconscientes e suas moções pulsionais) através do ato de:
“descobrir (herausfinden) o sentido e o conteúdo do que é representado
(Dargestellten) na obra de arte “249. Desta maneira, o entrelaçamento entre
estética e pulsional serve para Freud desdobrar um horizonte de
visibilidade integral das obras. Por outro lado, com sua teoria das pulsões,
Freud permitiu a reconfiguração de uma categoria estética fundamental
como a expressão.
Para Schoenberg, tal exigência de visibilidade afirma-se como
resgate do que não se apresenta através da linguagem reificada de um
tonalismo que aparece como bloqueio às aspirações da “paixão pela
verdade por trás das mediações e das máscaras burguesas da violência”250.
Tal aspiração à plena visibilidade. Em “libertar a estrutura latente e
abandonar a manifesta”251 chega a fazer com que Schoenberg afirme, a
respeito de Pierrot lunaire: “A expressão sonora dos movimentos dos
247 ADORNO, PNM, p. 94 248 FREUD, 1999 X, 172 249 FREUD, 1999 X, p. 173 250 ADORNO, PNM, p. 155 251 ADORNO, Prismas, p. 152
sentidos e da alma são de uma imediatez quase animal. Como se tudo fosse
diretamente transposto (Fast als ob alles direkt übertragen wäre)”.
Procurar uma forma capaz de ser a transposição direta da idéia
musical na dimensão do que aparece, idéia que procura realizar exigências
expressivas que não se reconhecem na gramática dos sentimentos reificada
pelo tonalismo, é o que leva Schoenberg ao dodecafonismo. Aqui, vemos
como ele realiza enfim um impulso partilhado pelo modernismo de “crítica
da reificação e do fetichismo através da reconstrução de um pensamento
estrutural”.
Adorno sempre insistiu no fato de convergir, no uso schoenbergiano
da noção de série, a tentativa de conservar exigências de expressão do que
não se reconhece na imagem naturalizada do mundo e um princípio
construtivo e transparente de relação. A este respeito, Schoenberg não
cansava de afirmar, com uma ponta de orgulho: “ainda posso assegurar
coerência e unidade, ainda que existam vários elementos construtivos da
forma importantes, assim como auxílios à compreensibilidade, que não
uso”252. Orgulho de quem podia, ao mesmo tempo, oferecer um protocolo
de crítica à aparência reificada e assegurar um princípio autônomo de
racionalização e legibilidade das obras. O dodecafonismo seria assim a
realização da aspiração schoenbergiana de pensar a verdade na música
como necessidade formal de sentido e coerência, a verdade como uma
questão sintática de procedimentos de construção.
De fato, ao racionalizar todas as incidências do material musical
através do primado da série, primado que faz com que cada evento seja
automaticamente reportado a este padrão transcendental de justificação
que é a série, a música poderia se liberar da aparência costurada pela
naturalização do sistema tonal. Ao mesmo tempo, graças à onipresença da
série, seu tema é seu próprio processo de construção. Ela é o que realiza
exigências de “obediência irrestrita a alguma injunção ou princípio de
valor” das quais falava o crítico de arte Clement Greenberg a fim de definir
a essência da obra de arte moderna. Desta forma, Schoenberg mostrava
como a forma crítica deveria ser forma que expõe, em uma “correta
distância”, seu próprio processo de construção (a série), forma que já traz
em si a negação da naturalização da sua aparência como totalidade
funcional. Como dirá Adorno:
O problema central [de Schoenberg] é o domínio da contradição
entre essência e aparência. Riqueza e plenitude devem tornar-se
essência, e não mero ornamento. Mas a essência tem de vir à luz não
mais como um esqueleto rígido vestido pela música, mas concreta e
manifestamente no mais sutil dos seus traços. Aquilo que ele chama
252 SCHOENBERG, Style and Idea, p. 107
de “subcutâneo”, a estrutura dos eventos musicais individuais
enquanto momentos indispensáveis de uma totalidade consistente em
si mesma, rompe a superfície, torna-se visível e se afirma
independentemente de qualquer forma estereotipada. O interior
exterioriza-se. O fenômeno musical é reduzido a elementos de seus
nexos estruturais253.
É a partir desta perspectiva que podemos lembrar, por exemplo, deste
momento em que afirma: “Minha música não parte da visão de um todo
mas é construída de cima para baixo de acordo com um plano e esquema
pré-concebido mas sem uma verdadeira idéia visualizada do todo”254.
Trata-se de insistir que sua música não naturaliza totalidades funcionais
(como no caso da música tonal), mas expõe claramente seu processo de
construção através da posição do plano e do esquema. Tal afirmação é feita
na expectativa de levar o sujeito à necessidade de ouvir a estrutura e o
plano construtivo. Este é o sentido fundamental da “audição estrutural”
exigida por Schoenberg. Pois, para o Schoenberg do período dodecafônico,
a verdade era uma questão de construção formal coerente, e não de
adequação a regras naturalizadas de disposição do sonoro. Neste sentido,
podemos seguir a afirmação feliz de Antonia Soulez: “Segundo
Schoenberg, que toma do lógico este ideal sintático do verdadeiro, a música
pensa na mesma medida em que, por e através dela, articulam-se leis do
verdadeiro segundo uma certa gramática”255.Como dirá Schoenberg em um
conferência de 1928 “Faz-se música a partir de conceitos”, conceitos
compreendidos aqui como processos construtivos de relação e não como
indexação prévia da particularidade do caso sob o genérico da estrutura.
Neste ponto, vale a pena realizarmos um exercício de
contextualização. Ao refletir sobre a essência da obra de arte moderna,
Clement Greenberg afirmou certa vez: “Em razão de sua natureza
‘absoluta’, da distância que a separa da imitação, de sua absorção quase
completa na própria qualidade física de seu meio, bem como em razão de
seus recursos de sugestão, a música passou a substituir a poesia como a
arte-modelo (...) Norteando-se, quer conscientemente quer
inconscientemente, por uma noção de pureza derivada do exemplo da
música, as artes de vanguarda nos últimos cinqüenta anos alcançaram uma
pureza e uma delimitação radical de seus campos de atividade sem exemplo
anterior na história da cultura”256. A afirmação não poderia ser mais clara: a
música teria imposto, às outras artes, uma noção de modernidade e de
racionalização do material vinculada à autonomização da forma e de suas
253 ADORNO, Prismas, p. 151 254 SCHOENBERG, Style and idea, p. 107 255 SOULEZ, Schönberg: penseur de la forme, p. 120 256 GREEENBERG, Rumo a um mais novo Locoonte in op.cit., pp. 52-53
expectativas construtivas. Autonomia que teria se afirmado contra qualquer
afinidade mimética com processos e elementos extra-musicais.
O que Greenberg tem em mente é um longo e heteróclito movimento
de constituição da racionalidade da forma musical, movimento fundamental
para a definição das expectativas críticas da forma musical a partir,
principalmente, de Arnold Schoenberg e que herda motivos próprios ao
debate em torno da “música absoluta” no romantismo alemão. É a isto que
Greenberg alude ao falar da “natureza absoluta” da música em sua
“pureza”.
A grosso modo, podemos chamar de ‘música absoluta’ uma certa
noção que via na música instrumental, desligada de textos, de programas,
de funções rituais e “pedagógicas” específicas, o veículo privilegiado para
a expressão ou o pressentimento do “absoluto” em sua sublimidade e o
estágio de realização natural da racionalidade musical. É a proximidade
com tal temática que permitirá a Schopenhauer, cuja filosofia da música
influenciou bastante Schoenberg, afirmar: “Não podemos encontrar na
música a cópia, a reprodução da idéia do ser tal como se manifesta no
mundo”, ela é “cópia de um modelo que não pode, ele mesmo, ser
representado diretamente”, pois “a música, que vai para além das idéias, é
completamente independente do mundo fenomenal”257.
Este impulso de autonomização da forma musical será fundamental
para que teóricos posteriores, como Eduard Hanslick insistissem em levar
tal processo ao extremo. Ao afirmar que a música nada mais era do que
“formas sonoras em movimento”, Hanslick demonstrava plena consciência
de estar adentrando em um estágio histórico de racionalização do material
musical que permitia a consolidação da esfera musical em sua legalidade
própria. Legalidade própria que o leva a afirmar: “se se perguntar o que se
há de expressar com este material sonoro, a resposta reza assim : idéias
musicais. Mas uma idéia musical trazida inteiramente à manifestação é já
um belo autônomo, é fim em si mesmo, e de nenhum modo apenas meio ou
material para a representação de sentimento e pensamentos”258.
O impulso de Schoenberg na constituição de uma forma crítica perde
muito de seu solo natural se não tivermos tais balizas em vista259. Quando
Schoenberg afirma: “Faz-se música a partir de conceitos”, isto a fim de
lembrar que o objetivo maior da forma é compreensibilidade de “idéias
musicais” compostas pela unidade funcional e expressiva de ritmo, melodia
e harmonia, sabemos claramente que é Hanslick e sua noção de autonomia
257 SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e representação, par. 59 258 HANSLICK, Do belo musical, p. 42 259 Não é por outra razão que Dahlhaus nos lembra: “Os trabalhos através dos quais Schoenberg
aproxima-se e finalmente atravessa a fronteira da tonalidade pertencem a gêneros como a sinfonia, o
quarteto de cordas e as peças líricas de piano, ou seja, gêneros típicos da música absoluta” (DAHLHAUS,
Schoenberg and the new music, p. 99)
da forma que serve aqui de guia260. Mas esta noção schoenbergiana de idéia
musical advém incompreensível se partirmos de uma perspectiva
meramente “formalista”, isto no sentido mais restritivo do termo. Esta é
uma questão importante, já que o projeto musical de Schoenberg nos
lembra como “formalismo” não é a marca de alguma forma de abandono de
expectativas expressivas. Tal como já em Hanslick, a idéia musical é o que
permite a realização construtiva de exigências expressivas, ou seja, ela é o
que deve unificar construção racional e expressão subjetiva. É isto que
Adorno tem em mente ao afirmar que:
A música de Schoenberg quer se emancipar em seus dois pólos; ela
libera os impulsos ameaçadores, que outras músicas só deixam
transparecer quando estes já foram filtrados e harmonicamente
falsificados; e tensiona as energias espirituais ao extremo; ao
princípio de um Eu que fosse forte suficiente para não renegar o
instinto.261
Mas, como veremos na aula que vem, a Filosofia da nova música,
acaba por se organizar como uma crítica aos dois caminhos hegemônicos
trilhados pelo modernismo : o modernismo como retorno ao arcaico
(Stravinsky), retorno que pode provocar com sintoma a entificação de
forma paródica, e o modernismo como crítica da aparência através da
reforma de uma racionalidade matemática e funcional, ou seja, através da
absolutização da forma estética.
260 Ver, por exemplo, SCHOENBERG, Style and Idea, p. 121 261 ADORNO, Prismas, p. 147
Introdução à experiência intelectual de Adorno
Aula 12
Na aula passada, começamos a análise das características gerais da
compreensão adorniana do programa musical de Schoenberg. Nós vimos,
inicialmente, como o projeto da Filosofia da Nova música era
eminentemente crítica: tratava-se de mostrar como a crítica ao fetichismo,
tal como fora configurada em um texto anterior, O caráter fetichista na
música e a regressão da audição, poderia dar conta dos impasses dos dois
eixos principais do modernismo musical: estes representados pelos nomes
de Schoenberg e de Stravinsky. Como foi dito na aula passada, Adorno se
esforça sobretudo em mostrar que Schoenberg e Stravinsky traziam dois
regimes de fetichismo: o fetichismo da série e o fetichismo como fixação
metonímica aos materiais.
A fim de dar conta da leitura adorniana do compositor vienense,
partimos da idéia de que: “em Schoenberg, o aspecto verdadeiramente novo
é a mudança de função da expressão musical”262. Vimos que esta frase era
mais decisiva do que parecia, já que normalmente, aceitamos que o aspecto
realmente novo da experiência musical de Schoenberg estaria presente na
sua maneira de criar totalidades funcionais sem recorrer ao sistema tonal.
Mas, no entanto, Adorno insiste que devemos procurar a verdadeira cena da
música de Schoenberg através da compreensão de seu uso da categoria de
expressão. A mudança de função a que alude Adorno consiste em romper
com o fato de que:
Desde Monteverdi e até Verdi, a música dramática, como verdadeira
musica ficta, apresentava a expressão como expressão estilizada,
mediada, ou seja, como aparência de paixões263.
Segundo esta leitura, a expressão esteve paulatinamente subordinada a uma
gramática das paixões e dos afetos, gramática que faria com que a
particularidade dos momentos expressivos fosse sempre fetichizada e
submetida à generalidade conciliadora que constitui o primeiro princípio da
aparência estética. O esgotamento do sistema tonal é, também,
esgotamento de uma gramática de expressões que se naturaliza no uso
reiterado de cadências e elementos que desempenham sempre a função de
um “sistema de representações”. Assim, o que Schoenberg faria seria
manifestar musicalmente uma expressão desprovida de gramática. Neste
sentido, Adorno não poderia ser mais claro :
262 ADORNO, PNM, p. 50 263 idem, p. 49
Não se trata mais de paixões fingidas, mas enregistra-se no medium
da música movimentos reais, e não disfarçados, do inconsciente,
choques, traumas. Eles atacam os tabus da forma, que submetem tais
movimentos à censura, os racionalizam e os transpõem em
imagens264.
Vimos como Erwartung aparecia como esta posição desta expressão que
não se deixa colonizar por imagens. Exemplo maior de que o núcleo da
expressão em Schoenberg seria a angústia enquanto afeto que marca a
impossibilidade da ligação (Verbindung) da energia psíquica em
representações de objeto265.
De fato, se Adorno estiver correto em sua interpretação, a obra de
Schoenberg seria estruturada em torno de uma tentativa de recuperar a
expressão através da negação da aparência estética. É isto a que ele alude
um texte de 1934, O compositor dialético, ao parafrasear Stefan George e
afirmar que, em Schoenberg: “O mais estrito rigor é, ao mesmo tempo, a
maior liberdade”, já que, através do dodecafonismo: “Nenhum impulso da
imaginação (Regung der Phantasie), nenhuma exigência do dado deixa de
ter seu correlato técnico”.
Em última instância, teriam sido exigências de expressão que
levariam Schoenberg a um combate contra a aparência musical e contra
tudo aquilo o que poderia aparentar a uma organicidade caduca que se faria
passar por segunda natureza através da entificação do sistema tonal. Neste
sentido, a passagem da fase “expressionista” à fase “dodecafônica”
marcaria a transformação da negação da aparência em sistema, em decisão
formal.
Lembremos ainda que a negação da aparência no dodecafonismo fica
clara se lembrarmos que: “se anteriormente a totalidade se realizava às
costas dos acontecimentos singulares, agora ela é construção
consciente”266. Ao racionalizar todas as incidências do material musical
através do primado da série, que faz com que cada evento seja
automaticamente reportado a este padrão transcendental de justificação que
é a série, a música tenta assim se liberar da aparência costurada pela
naturalidade do sistema tonal. Ao colocar a música sob o signo do combate
à aparência e do desvelamento da estrutura, Schoenberg pode recuperar
suas exigências de verdade a partir da constituição de um sistema. A este
respeito, Schoenberg não cansava de afirmar, com uma ponta de orgulho:
“ainda posso assegurar coerência e unidade, ainda que existam vários
elementos construtivos da forma importantes, assim como auxílios à
264 idem, p. 50 265 ADORNO, Prismas, p. 172 266 ADORNO, PNM, p. 94
compreensibilidade, que não uso”267. Orgulho de quem podia, ao mesmo
tempo, oferecer um protocolo de crítica à aparência reificada e assegurar
um princípio autônomo de racionalização e legibilidade das obras. O
dodecafonismo seria assim a realização da aspiração schoenbergiana de
pensar a verdade na música como necessidade formal de sentido e
coerência, a verdade como uma questão sintática de procedimentos de
construção. É a partir desta perspectiva que podemos lembrar, por exemplo,
deste momento em que afirma: “Minha música não parte da visão de um
todo mas é construída de cima para baixo de acordo com um plano e
esquema pré-concebido mas sem uma verdadeira idéia visualizada do
todo”268. Trata-se de insistir que sua música não naturaliza totalidades
funcionais (como no caso da música tonal), mas expõe claramente seu
processo de construção através da posição do plano e do esquema. Tal
afirmação é feita na expectativa de levar o sujeito à necessidade de ouvir a
estrutura e o plano construtivo. Este é o sentido fundamental da “audição
estrutural” exigida por Schoenberg.
Fetichismo da série
Mas há uma questão que Adorno não deixa escapar. Ele falará do
dodecafonismo como princípio de “dominação” do material através da
totalidade funcional de uma forma que tira suas leis de construção de si. E é
a partir deste problema que podemos introduzir sua crítica à racionalidade
dodecafônica.
Esta é uma dimensão fundamental, mas muitas vezes negligenciada,
na crítica do caráter fetichista na música: ela também tem como alvo o
dodecafonismo, o que mostra definitivamente como a reconstrução de uma
experiência de organicidade funcional através do primado da série sobre a
autonomia metonímica dos momentos, assim como a hipóstase da audição
estrutural, também podem fornecer uma espécie de encantamento.
Na verdade, Adorno não tem dificuldades em ver, no primado da
série dodecafônica, o mesmo princípio de racionalização que guiou o
processo de autonomização da forma musical descrito por Max Weber. Nos
dois casos, trata-se de vincular a racionalidade musical ao primado da
forma como totalidade funcional.
De fato, a técnica dodecafônica impede a desintegração da
organicidade da forma musical em momentos parciais ao fornecer um
procedimento serial de composição que dissipa a insistência de materiais
estereotipados da tonalidade. Assim, ao colocar a questão da possibilidade
da unidade e da consistência formal sem recurso à tonalidade, o
dodecafonismo parece anular a tendência do devir imagem do material. No
267 SCHOENBERG, Style and Idea, p. 107 268 SCHOENBERG, Style and idea, p. 107
entanto, Adorno não cansa de lembrar que a organização formal própria à
racionalidade dodecafônica encontra sua verdade na insensibilidade ao
material :
“É verdade, nós demos a igualdade de direito ao trítono, a sétima
maior e também a todos os intervalos que ultrapassam a oitava, mas
ao preço de um nivelamento de todos os acordes, antigos e novos”
(Adorno 8, p. 76).
Tal insensibilidade, que será mais tarde chamada por Gyorg Ligeti, em sua
crítica ao serialismo integral de Pierre Boulez, de insensibilidade aos
intervalos269, indica que as operações de sentido serão resultados estritos de
jogos posicionais determinados pela série. O sentido é um fato de estrutura
que não reconhece a racionalidade de nenhum princípio não derivado do
trabalho serial. Se Schoenberg ainda conservava a escritura motívica e
temática como princípio de expressão que escapava ao primado da série
(ver, por exemplo, a valsa das Cinco peças para piano, opus 23)270,
Webern dará o passo em direção ao fetichismo da série devido a sua crença
de que a construção seria capaz de indexar todas as ocorrências de sentido
na obra :
“A partir do momento em que o compositor julga que a regra serial
imaginada tem um sentido por si mesma, ele a fetichiza. Nas
Variações para piano e no Quarteto de cordas opus 28, de Webern,
o fetichismo da série (Fetichismus der Reihe) é evidente” (Adorno 8,
p. 107).
Ao menos nestes casos, Webern fetichiza a totalidade por não reconhecer
nenhum elemento que lhe seja opaco . Em suas mãos, o material aparece
como aquilo que pode se totalmente dominado em uma totalidade de
relações seriais. Na verdade, o material transforma-se no próprio sistema de
produção da obra. A obra não dissimula mais, através da aparência estética,
seu processo de produção de sentido. No entanto, esta visibilidade plena é
figura de um princípio de dominação total do material que Adorno lê como
269 Cf. Ligeti 22, p. 134 : “A disposição das séries significa aqui que cada elemento é integrado ao
contexto com a mesma recorrência e o mesmo peso. Isto leva inevitavelmente ao crescimento da
uniformidade. Quanto mais a rede de operações efetuadas com um material pré-organizado é densa, mas o
degrau de nivelamento do resultado é alto. A aplicação total do princípio serial acaba por anular o próprio
conceito serial. Não há diferença fundamental entre os resultados dos automatismos e os produtos do
acaso : o totalmente determinado equivale ao totalmente indeterminado”. 270 Adorno insiste neste ponto ao lembrar que : “é apenas através destas categorias tradicionais que a
coerência da música, seu sentido (Sinn) , a composição autêntica, na medida em que ela não é simples
arranjo, foi preservada no interior da técnica dodecafônica. O conservadorismo de Schoenberg a este
respeito não é tributável a uma falta de consistência, mas a seu medo de que a composição seja sacrificada
em prol da prefabricação do material” (Adorno 2, p. 150)
racionalidade desvirtuada em dominação da natureza. O naturalismo de
Webern, tão claramente presente em afirmações como : “tal como o
naturalista se esforça em descobrir as leis que regem a Natureza, devemos
descobrir as leis segundo as quais a Natureza, sob a forma particular do
homem, é produtiva” (Webern 30, p. 46), deveria pois ser compreendido
como naturalização de processos gerais de construção.
É interessante lembrar que Adorno critica Webern exatamente por
tentar pensar uma construção integral da obra na qual tudo é relação e todas
as incidências de sentido são determinadas através de jogos posicionais.
Trata-se da mesma crítica que Lyotard irá endereçar mais tarde ao próprio
Adorno ao afirmar: “seu ceticismo [o ceticismo de Adorno em relação
àquilo que é desprovido de relação e que não se submete à síntese]
resplandece na nova música ; o material só vale como relação, só há
relação. O som reenvia à série, a série às operações sobre ela” (Lyotard 24,
p. 118).
É por ver, no princípio da construção integral, o puramente irracional
no interior da racionalização que Adorno compreende o dodecafonismo,
em certos momentos, como:
“Um sistema de dominação da natureza na música que responde a
uma nostalgia do tempo primitivo da burguesia : ”se apropriar”
(erfassen) pela organização de tudo o que ressoa e dissolver o caráter
mágico da música na racionalidade humana” (Adorno 8, p. 65).
Adorno chega mesmo a falar, neste contexto, da tendência da arte à uma
“pseudomorfose em ciência” devido à crença na dominação integral de um
material desencantado. Processo de racionalização que, no entanto, se
inverte necessariamente em encantamento, isto na medida em que :
“Enquanto sistema fechado e ao mesmo tempo opaco a si mesmo, no
qual a constelação de meios se hipostasia imediatamente em fim e
lei, a racionalidade dodecafônica se aproxima da superstição”
(Adorno 8, p. 67).
Embora tal encantamento não esteja vinculado ao fetichismo como
fixação metonímica aos materiais, fixação que pressupõe o devir imagem
do material, ela produz, da mesma forma, a anulação da não-identidade
própria àquilo que se manifesta no interior do tempo-duração. A
insensibilidade aos materiais através da conformação integral à construção
é solidária da anulação do tempo. Como Adorno afirma claramente :
“Mais uma vez, a música consegue dar conta (bewältigt) do tempo;
no entanto, não mais fornecendo ao tempo sua plenitude, mas
negando-o, graças a construção onipresente, através do
congelamento de todos os elementos musicais (...) O último
Schoenberg partilha com o jazz, e também com Stravinsky, a
dissociação do tempo musical. A música traça a imagem de um
estado do mundo que, para o bem ou para o mal, ignora a história”
(Adorno 8, p. 62)271.
Novamente, Adorno fala da tendência da música em adquirir a estaticidade
do espaço e em submeter-se ao primado da identidade fixa daquilo que se
dá no espaço. Lembremos, por exemplo, de que é um problema ligado ao
tempo musical que leva Adorno a ver em certas obras de Webern a marca
mais clara do fetichismo. Vários foram aqueles que perceberam que, em
Webern: “a forma advém estática, o desdobramento do tempo parece ter
parado”272, isto devido à redução da gestualidade musical a algumas células
motívicas muito concentradas, à impossibilidade de todo desenvolvimento
temático e ao abandono da hierarquização de materiais em prol da
justaposição de elementos de valor igual.
Vejamos, por exemplo, o exemplo fornecido por Adorno: as
Variações para piano. Se analisarmos a segunda variação veremos como o
trabalho de construção harmônica obedece a simetrias que tomam a nota lá
por centro (não é por outra razão que ela sempre aparece tocada duas
vezes). Mas como a simetria rígida da disposição harmônica não pode ser
dissolvida por progressões cadenciais ou modulações, Webern faz apelo ao
ritmo e à intensidade. Há um uso estrito de três intensidades (piano, forte,
fortíssimo), muitas vezes associadas a células motívicas específicas. O
resultado é uma flutuação permanente da intensidade que fornece uma
impressão “estereofônica” (o forte aparece como mais perto, o piano como
mais distante) que faz com que o verdadeiro eixo do desenvolvimento
musical seja o espaço, e não o tempo. Ligeti havia percebido isto com
clareza: “A música adquire um aspecto estereométrico; associações com
uma profundidade espacial se impõem; os acodes tocados fortíssimo
tendem a aparece à frente da estrutura, as células tocadas piano parecem
permanecer no fundo. As direções espaciais aparentes evocam uma
estrutura cristalina”273.
Desta forma, através da submissão da música ao espaço : “a
reificação entra nos poros da arte moderna por todos os lados” (Wellmer
31, p. 10) já que a arte moderna operaria uma síntese que traz a marca da
violência da totalidade social ao dissolver a resistência dos momentos
expressivos à identidade da forma, resistência do que se dá no tempo à sua 271 De fato, Adorno não deve estar pensando exatamente na última fase de Schoenberg, após 1934, fase
marcada pelo hibridismo de uma forma que permite a utilização de material tonal. Certamente, o
verdadeiro alvo aqui deve ser o período 1923-1933, no qual a técnica dodecafônica reina. 272 LIGETI, Neuf essais sur la musique, p. 40 273 LIGETI, idem,p. 59
posição em imagem. È neste sentido que podemos entender a afirmação de
que, na nova música: “Os sons continuam os mesmos, mas a angústia
(Angst) que cunhava seus maiores fenômenos originais (Urphänomene) foi
recalcada (verdrängt)”274. Neste sentido, Adorno era claro: “não é a
expressão que deve ser exorcizada da música (...) mas o caráter de
transfiguração, o elemento ideológica da expressão”275.
Isto faz Adorno relativizar a audição estrutural como padrão ideal de
audição. Pois a hipóstase deste modo estrutural de apreensão :
“transformou-se em parcial e ameaça anular os aspectos individuais sem os
quais, no final, nenhum método musical tem vitalidade” (Adorno 5, p.
299). Adorno recorre novamente a uma dialética entre particular e universal
no interior da forma musical mas para insistir na irredutibilidade do
particular ao universal :
“nas grandes obras de arte, a tensão (Spannung) [entre a
particularidade dos momentos expressivos e a universalidade do
Todo como construção] não deve ser resolvida (ausgleischen) nas
obras, como mesmo Schoenberg pensou, mas deve ser sustentada
durante todo seu desenvolvimento” (Adorno 5, p. 301).
A música do século XX teria conhecido pois dois modos
complementares de fetichismo, dois modos resultantes do mesmo impasse
nos modos de racionalização do material musical tal como eles teriam sido
pensados por Max Weber. Desta forma, como dirá Adorno, vê-se no
fetichismo, os dois extremos da fé no material e do cuidado exclusivo da
organização se encontrarem. Esta duplicidade do fetichismo implica
também na impotência de dois modos de crítica do fetichismo : um que
pensa o trabalho da crítica a partir da possibilidade de instauração de um
regime de relações que garantam a transparência da totalidade dos
mecanismos de produção do sentido e outro que faz apelo à recuperação de
uma experiência que se quer imanente ao fenômeno sensível da música,
como se o som fosse provido de uma realidade em-si.
Notemos ainda que esta duplicidade do diagnóstico adorniano deve
ser lida no interior de um movimento duplo de crítica próprio a todo
pensamento dialético. Desde Hegel, vemos a dialética procurar afirmar a
dimensão especulativa através de um movimento duplo de negação que
visa, por um lado, invalidar todo pensamento da imanência que crê na
possibilidade de recuperação de níveis de experiência imediata e pré-
discursiva e, por outro, todo pensamento transcendental que só pode pensar
o sentido através de uma elaboração de categorias formais deduzidas a
priori. Nos dois casos, a dialética identifica a presença de um princípio de
274 ADORNO, O envelhecimento da nova música 275 ADORNO, idem
identidade guiando tanto a certeza de que há uma imanência disponível à
experiência quanto a defesa de que a forma organiza previamente a
integralidade do sentido da experiência. A astúcia de Adorno consistiu em
encontrar estes dois regimes do princípio de identidade em operação na
organização dos vetores da experiência musical do século XX. O
“estruturalismo transcendental” do programa de construção integral (que
vai do dodecafonismo integral ao serialismo integral) vê o material musical
como aquilo que é absolutamente integrado em uma totalidade de relações.
O “plano de imanência” próprio à fixação no fenômeno sensível da música
(posição que inicialmente visa a fixação metonímica nos materiais mas que
também dá conta, em Adorno, da hipóstase do sonoro como o que é
provido de realidade em si, e aqui Adorno visa o intuicionismo da música
aleatória de John Cage; embora não se trate de dizer que os dois fenômenos
musicais partilhem o mesmo padrão de racionalidade) vê o material como o
que é provido de significações naturalizadas.
Resumindo, podemos dizer que todo o problema da leitura adorniana
do dodecafonismo pode ser organizada da seguinte maneira : faz-se
necessário um procedimento de organização que consiga liberar o sujeito
de todo e qualquer fixação a materiais naturalizados. Só assim, aquilo que é
da ordem da verdade da expressão pode se manifestar. O dodecafonismo,
como princípio geral de construção nega toda aderência natural aos
materiais e, por isto, seu momento é fundamental por liberar o sujeito de
uma gramática musical obsoleta. Sua função é emnentemente crítica. Mas,
no entanto é necessário negar a negação e não entificar o pensamento
serial como um segundo sistema de organização total do material. Se a
negação dodecafônica não for negada, ela irá se hipostasiar. Daí porque as
críticas de Adorno ao dodecafonismo seguem normalmente a forma de
“inversões” : “A fantasia do compositor submeteu totalmente o material à
vontade construtiva, então o material construtivo paralisa a fantasia”276. “O
radicalismo através do qual a arte técnica destrói a aparência estética
termina por arremessar à aparência a obra de arte técnica”277. Ou ainda : “a
obra de arte inteiramente funcional é totalmente desprovida de função”.
Todas estas afirmações guardam o mesmo movimento lógico. A
destruição da aparência , a recuperação do sujeito através, entre outras
coisas, de uma reordenação da funcionalidade das obras, só pode ser levado
à cabo através de uma negação da negação. Pois se é fato que a verdadeira
contribuição de Schoenberg estava na reconfiguração da categoria de
expressão, então a hipóstase de uma organização funcional total acaba por
anular aquilo que o compositor queria salvar. É por esta razão que Adorno
procura mostrar que a última fase de Schoenberg é totalmente organizada a
partir de um só problema: como a construção pode advir expressão ? Para
276 ADORNO, PNM, p. 77 277 ADORNO, PNM, p. 79
tanto, o ideal de uma organização funcional total deve ser abandonado: “É
apenas através da tecnica dodecafônica que a música pode aprender a
continuar senhora de si mesma, mas para tanto ela não pode perder-se no
dodecafonismo”278. É a partir desta perspectiva que ganha sentido uma
afirmação como:
“A arte, e acima de todas a música, é o esforço para preservar na
memória e cultivar estes elementos tirados fora (abgespaltenen) da
verdade que a realidade procurou renegar no crescimento da
dominação da natureza”279
[Dahlhaus : o dodecafonismo para Adorno como uma necessidade
histórica e um impasse estético]
Problemas da última fase
A compreensão da última fase de Schoenberg foi sempre a mais
problemática. O retorno à tonalidade após o primado da série é ainda
motivo de discussões. Dahlhaus tem um belo texto neste sentido chamado
As últimas obras de Schoenberg. Sua idéia é de que Schoenberg nunca
abandonou o trabalho motívico, isto o permitiu, ao final, submeter tanto o
material tonal como o material dodecafônico aos mesmos procedimentos.
Neste sentido, ele critica Adorno por nos levar a um impasse dialético que
consistiria no fato de que a arte deve sustentar uma posição utópica que ele
mesmo reconhece como inumana e impossível (a liberação total do sujeito
em relação ao mundo fetichizado).
Mas nós podemos dizer que, ao contrário, as últimas obras de
Schoenberg são absolutamente necessárias de um ponto de vista dialético.
De fato, como vimos, o resultado final do dodecafonismo, para Adorno,
seria a “desensibilização do material”, que pode parecer, por exemplo,
como “insensibilidade aos intervalos”. No entanto, este desencantamento
do material permite ao sujeito expressar-se através do inexpressivo, através
daquilo que não tem mais imagem:
Isto permite ao sujeito liberar-se novamente do material e esta
liberação constitui a tendência mais íntima do estilo tardio de
Schoenberg. È verdade que a desensibilização do material que
violenta o cálculo serial implicou nesta má abstração que o sujeito
musical experimenta como abstração de si. Mas é ao mesmo tempo
graças a tal desensibilização que o sujeito de libera do
278 ADORNO, PNM, p. 124 279 ADORNO, O envelhecimento da nova música
aprisionamento no material natural que constituiu, até o presente,
toda a história da música, assim como a dominação da natureza.280
Por outro lado, a absorção daquilo que nega a organização total (o
material tonal) mostra como a linguagem musical tende a dissociar-se em
fragmentos. É só através de “um certo regime” de obra de arte
fragmentária, obra que renuncia à totalidade, sem com isto, renunciar às
aspirações construtivas da forma e cair em uma construção por
justaposição, que a arte pode liberar seu conteúdo crítico. Obra na qual
Adorno vê a “liquidação da obra de arte unificada”.
Tal discussão nos mostra, mais uma vez, como o verdadeiro
problema da estética adorniana não é a perda da totalidade e da
organicidade funcional das obras. Seu problema é, na verdade, a deposição
de toda resistência possível, de toda opacidade do material musical. Por
isto, Adorno pode afirmar que o gesto radical de Schoenberg não estaria
vinculado à recusa ao tonalismo através do primado da série dodecafônica,
mas à “força do esquecimento” que lhe permitiu, em suas últimas obras,
retornar ao material tonal, agora transformado em material dessensibilidado
e mutilado pois sem força para produzir uma experiência de totalidade. Ele
volta a um material fetichizado, mas para revelar seu estranhamento. Graça
a este investimento libidinal do que se transformou em ruína “ele se
dessolidariza desta dominação absoluta do material que ele próprio criou
(...) O compositor dialético pára a dialética”281. È no interior deste processo
que devemos compreender afirmações como: “Schoenberg viola a série.
Ele escreve uma música dodecafônica como se a técnica de doze sons não
existisse. Webern realiza a técnica dodecafônica e não compõe mais: o
silêncio é o resíduo de sua destreza”282. Esta violação permite a Adorno
afirmar que as melhores peças da fase norte-americana de Shoenberg não
confiavam nem nas séries dodecafônicas, nem nos tipos tradicionais, mas
são compostas a partir de disposição em camadas de campos temáticos
ordenados ao redor de diferentes modelos centrais.
De qualquer forma, vale a pena salientar uma certa ironia maior no
último Schoenberg, ironia que consiste em tratar o material tonal como
exposição fragmentária de um resto, como manifestação da não-identidade
na obra, como aquilo que impede a totalização (agora serial). Isto indica
uma possibilidade de retorno ao material tonal que nada tem a ver como
possibilidades de restauração fascinada, já que a gramática tonal retorna em
farrapos por não ter mais a força de produzir experiências de organização
funcional. O material tonal, por ser marcado pela impotência do que não
280 ADORNO, PNM, p. 126 281 idem, p. 133 282 ADORNO, PNM, p. 119
pode realizar sua função, é marcado pelo estranhamento do que pode
figurar: “ a dissociação do sentido e da expressão”283. [Adorno não teme em
falar aqui do puro gesto]
Faz-se necessário ainda muito refletir a respeito desta maneira de
parar a dialética. Um gesto que vem no momento em que o sujeito se
reconhece em um material mutilado que se transformou em uma espécie de
resto opaco que representa a irredutibilidade do não-artístico na arte. Pois,
talvez, a astúcia suprema da dialética esteja aí, no ato de saber se calar para
deixar as ruínas falarem. Astúcia que a arte foi a primeira a formalizar.
283 ADORNO, PNM, p. 137
Introdução à experiência intelectual de Adorno
Aula 13
Autenticidade
Na aula de hoje, começaremos a interpretar a leitura de Stravinsky feita por
Adorno. Uma primeira característica que deve ser relevada na análise adorniana
de Stravinsky é seu caráter quase clínico. Uma leitura dos sub-títulos dos parágrafos que
compõem o texto já é elucidativa : “Regressão permanente e forma musical”, “O
aspecto psicótico”, “Despersonalização”, “Hebefrenia”, “Catatonia”, “Dissociação do
tempo”. Adorno não deixa de insistir no caráter “sado-masoquista” da música de
Stravinsky e de comparar seus procedimentos de construção à esquizofrenia. .Qual pode
ser o sentido de tal perspectiva? Estaríamos diante de uma espécie de psicanálise
selvagem aplicada ao fato musical? De fato, lembremos primeiramente que tais análises
não se reportam a uma psico-biografia que veria, na estrutura psíquica do compositor, a
chave de interpretação de sua obra. Adorno dá aqui uma passo ousado em direção a uma
análise clínica da forma musical. O recurso a categorias clínicas não deve ser
compreendido como meras metáforas inusitadas para alguém que se propõe desenvolver
análises musicais. Trata-se, na verdade, de insistir como a sociologia da música de
Adorno está muitas vezes mais próxima de uma espécie de psicanálise da música (e ao
nosso conjunto poderíamos facilmente lembrar de um conceito psicanalítico central na
filosofia da música de Adorno: o fetichismo). Pois ao procurar desenvolver uma clínica
das obras, Adorno visa mostrar como elas são sintomas da subjetividade diante dos
impasses de seu tempo. A articulação da obra ao momento histórico e aos contextos
sociais que a constituem não deixa de dar lugar a uma compreensão dos modos de
articulação entre teoria do sujeito e configuração das obras.
A análise musical em Adorno não se transforma apenas na leitura estrutural da
forma musical, mas a análise transfroma-se em uma psicanálise que procura
compreender a posição subjetiva que dá racionalidade às expectativas que estão em jogo
na forma musical em questão. Pois a forma musical não responde apenas a problemas
musicais. Ela também procura responder a problemas de possibilidade de auto-
objetivação do sujeito. O que não significa assumir um psicologismo que reduz a
autonomia das obras aos jogo de moções pulsionais dos sujeitos, mas compreender
como a forma musical, na sua tentativa de dar voz ao que ficara para trás nos processos
de racionalização, formaliza primeiramente as configurações possíveis da subjetividade.
A análise adorniana de Stravisnky é extremamente clara neste sentido. Ela se
baseia na noção de que toda a elaboração composicional de Stravinsky parte da
tendência em anular a categoria de sujeito. Isto é visível nas suas exigências de
autenticidade.
A ruptura inicial de Stravinsky com a gramática do sistema tonal (preparação
das dissonâncias, progressões harmônicas, desenvolvimento de temas e motivos etc.)
seria o fruto de tendência em restituir com ostentação a autenticidade à música. A
linguagem reificada do tonalismo aparece como bloqueio às aspirações de uma “paixão
pela verdade por trás das mediações e das máscaras burguesas da violência”284. Impulso
modernista por excelência, esta exigência de que a obra artística seja portadora de um
conteúdo de verdade, ou seja, que o julgamento estético seja ao mesmo tempo
julgamento cognitivo e julgamento moral, é partilhada por Stravinsky. Mas sua
284 ADORNO, PNM, p. 155
peculiaridade vem do falta de que tais exigências de autenticidade são organizadas
inicialmente a partir de dois vetores : o anti-psicologismo e o programa de retorno à
origem. A crítica a reificação da linguagem é feita em nome de um retorno possível ao
arcaico que pressupõe a auto-dissolução da subjetividade.
Este programa modernista de crítica através do retorno ao arcaico a fim de
liberar a força disruptiva de uma origem há muito recalcada pelos processos de
racionalização e de socialização é um dos movimentos centrais do modernismo. Adorno
lembra com perspicácia de como o momento histórico do primeiro modernismo concebe
uma aproximação cheia de ressonâncias entre o infantil, o primitivo e o inconsciente, já
que o inconsciente aparece aqui como conceito anterior à individuação. Neste sentido, a
crítica adorniana a Stravinsky inscreve-se, inicialmente, no interior de uma crítica mais
ampla a uma certa concepção de modernismo que concebe a crítica aos processos de
racionalização na modernidade a partir do protocolo do retorno ao arcaico e ao
originário que só pode redundar em uma arte da linguagem do ser e na entificação da
dissolução do sujeito.
Adorno não pensa apenas no enredo da Sagração da primavera : um ritual da
Russia pagã que exige que uma virgem dance até a morte para que a primavera comece.
Enredo no qual Adorno vê a própria encenação da dissolução da subjetividade, mas
através da identificaçào da música com a instância destruidora, dissolução através da
qual o sujeito seu livraria do eu para procurar a felicidade ao identificar-se com a
coletividade (Petruschka e Sagração). “Oferenda anti-humanista à coletividade”, será o
termo utilizado por Adorno. Ele não teme sequer em falar de “traços sado-masoquistas”
da música de Stravinsky devido à estilização do prazer masoquista de auto-aniquilação.
“Em Stravinsky, a subjetividade toma a figura da vítima; no entanto – e é aí que ele
zomba a tradição da arte humanista – a música não se identifica com a vítima, mas com
a instância destruidora. Através da liquidação da vítima, ela se desfaz das intenções, de
sua própria subjetividade”285.
Mas, de fato, Adorno pensa principalmente na anulação de todas as intenções
expressivas na música de Stravinsky. A música de Stravinsky é : ‘negação da alma para
protestar contra seu caráter mercantil, levando à limitaçào da música ao corpo”. Esta
negação de tudo aquilo que, na música, assemelha-se à expressão subjetiva, utiliza três
procedimentos-padrão : o princípio artístico da recusa, o choque e o princípio artístico
da de utilização de materiais gastos.
A recusa, ou o prazer perverso da privação, é um dos procedimentos
fundamentais no modernismo em sua primeira fase. Trata-se de limitar o material ao
mínimo a fim de livrá-lo de todo ornamento supérfluo e falso. No caso de Stravinsky, a
recusa dá-se, inicialmente, como anulação do desenvolvimento. Em sua música, nada se
realiza no seu sentido estrito, pois toda realidade subjetiva desenvolvendo-se
musicalmente advém tabu. Por exemplo, todo desenvolvimento harmônico é cortado, o
que faz com que as passagens de um material a outro sejam abruptas e articuladas a
partir do princípio de justaposição. Também nào há algo que poderíamos chamar de
desenvolvimento melódico. No seu lugar, há apenas “celulas melódicas” que são
repetidas e dissolvidas (através da modificação dos tempos fortes ou do apagamento de
seus limites), mas nunca desenvolvidas no interior de uma lógica, por exemplo, de
antecedente-consequente.
Mas esta limitação deliberada do material atinge também a própria estrutura do
material. Como Adorno bem levantou : “”Como no impressionismo, o material se limita
a sucessões sonoras elementares”286. Normalmente, as células sonoras são Stravinsky
285 ADORNO, PNM, p. 151 286 ADORNO, PNM, p. 157
diatônicas e muitas vezes derivadas de relações elementares. A pequena melodia do
fagote dos compassos iniciais da Sagração, por exemplo, não passa de um acorde de dó
maior com sétima.
Tende-se normalmente a criticar tal leitura de Stravinsky ao insistir no
desenvolvimento da dimensão rítmica que sua música teria dado lugar. Contra a
tendência ocidental em recalcar o ritmo para permitir o desenvolvimento apenas das
dimensões harmônica e melódica do fato musical, Stravinsky teria liberado esta
potência elementar do ritmo sempre presente na origem do fato musical em seu vínculo
com funções rituais mas esquecido pela metafísica musical do ocidente. Em muitos
momentos sua música organiza-se basicamente a partir do ritmo, que ganha a função
que normalmente seria dada aos temas e motivos.
Mas Adorno insiste que a verdadeira função do ritmo em Stravinsky está
vinculada à idéia de choque. As desconstruçòes rítmicas de Stravinsky aparecem como
um jogo arbitrário sem relação evidente com a construção, ou com aquilo que
poderíamos chamar de pressuposição de uma organização funcional. As modificações
contínuas na geografia dos tempos fortes e fracos produz apenas a sensação de choque,
como se o corpo fosse a todo momento tomado por convulsões , como se ele fosse
objeto contínuo de traumas que ele não consegue mais integrar, pois aparece como
violência externa. O caráter afirmativo do ritmo é, para Adorno, figura de uma
compulsão de repetição que atua contra o sujeito. O ritmo não adquire a função ritual do
transe, já que ele não é circular. Ele adquire a função traumática do choque, que acaba
pro reforçar o caráter de justaposição próprio à composição..
A articulação conjunta entre o princípio artístico da recusa e a noção de choque
permite a Adorno identificar aquela que é a seu ver o verdadeiro motor da estilização
stravinskiana da dissolução do sujeito : a anulação do tempo. Nós vimos nas aulas
anteriores como Adorno insistia neste problema maior da música no século XX : a
espacialização do tempo através da recusa da música em formalizar um tempo-duração.
No caso de Stravinsky, esta recusa, está vinculada à autonomização dos momentos
devido a ‘processos composicionais pensados como justaposição e des-articulados a
partir de um ritmo que é a exposição do princípio de choque no interior das obras.Há
várias passagens de Adorno a este respeito : “Sua música ignora a rememoração, logo a
continuidade temporal da duração. Ela vai de reflexo em reflexo”287. Ou ainda : “sua
música se priva de tudo aquilo que relações de duração poderiam criar – a transição, o
crescendo, a diferença entre campo de tensão e de distensão, entre questão e
resposta”288. [notar que, em Vers une musique informelle, Adorno reconhece que a
música não pode mais utilizar tais elementos da gramática do sistema tonal a fim de
pensar seus processos de desenvolvimento].
287 ADORNO, PNM, p. 170 288 ADORNO, PNM, p. 199
Curso Adorno
Aula 14
Em um texto de 1932, Sobre a situação social da música, Adorno esboça um
certo quadro tipológico de tendências musicais que será, em larga medida, conservado.
Adorno reconhecia quatro grandes tendências na produção musical “que expressa a
situação de alienação”. A primeira era representada pela Segunda Escola de Viena com
suas estratégias de emancipação da dissonância e de crítica ao sistema tonal de
organização de materiais, ou seja, de apresentação e cristalização do problema da
alienação através do material musical. A segunda era caracterizada por Adorno como:
“música que reconhece o fato da alienação assim como seu próprio isolamento e
individualismo”, mas opera tal reconhecimento através do “recurso a formas estilísticas
do passado”289, como se tais formas ainda tivessem escapado à alienação. A esta
tendência, Adorno dá o nome de “objetivismo” por evocar, de maneira “realista”, a
imagem de uma sociedade objetivamente presente e determinante. A figura estilística
mais bem acabada deste objetivismo seria o neo-classicismo: termo que é comumente
usado para descrever o estilo de certos compositores do entre guerras, como Prokofiev,
Schostacovich, Stravinsky e Hindemith, que reviveram formas equilibradas e processos
temáticos explícitos de gêneros antigos. Adorno pensa também em certos recursos à
música foclórica como é o caso de Bartok e Kodali.
Mas como Adorno reconhece na Filosofia da nova música, o objetivismo de
Stravinsky é peculiar por “implicar sua própria negatividade”. Daí porque, já no texto
de 1932, a obra de Stravinsky, principalmente a partir da História do soldado, aparece
também em uma terceira grande tendência da produção musical, uma “forma híbrida”:
“De mãos dadas com o objetivismo, o compositor procede a partir da cognição da
alienação. Ao mesmo tempo, ele é socialmente mais atento que o objetivista e
reconhece que as soluções oferecidas por seus colegas são ilusórias”. Adorno vê
correspondências fortes entre este procedimento composicional e as montagens
surrealistas compostas com dejetos da vida cotidiana. Daí a tendência em chamá-la de
“música surrealista”. Neste grupo, Adorno inclui ainda o Kurt Weill da Ópera dos três
vinténs e Mahagonny. Por fim, a última grande tendência seria uma tentativa de
recuperação da função social da música através de finalidades extra-musicais, como
seria o caso da Gemmeinschaftsmusik de Hans Eisler.
De fato, não é tal tipologia que nos interessa aqui, até porque ela não é
totalmente defensável (o trabalho de Debussy, por exemplo, dificilmente aí se
enquadra). O que nos interessa é, na verdade, esta complexidade expressa em apreender
o trabalho de Stravinsky, ao mesmo tempo dentro e fora do “objetivismo”.
Antes de procurarmos compreender melhor as raízes desta complexidade, vale a
pena procurarmos sistematizar alguns aspectos maiores dos processos composicionais
de Stravinsky. Aspectos estes que definirão um conjunto recorrente de tendências da
composição no século XX.
A violência contra o presente como retorno à origem
A obra de Stravinsky até hoje impressiona pela peculiaridade de seu
desenvolvimento. Normalmente, ela é dividida em três grandes fases. A primeira,
chamada normalmente de “Período russo”, vai de Fogos de artifício, de 1908, até o
289 ADORNO, Sobre a situação social da música
começo da década de vinte. Este é o momento de suas contribuições para os balés de
Diaghilev, como Petruchka, O pássaro de fogo e A sagração da primavera. Nele,
encontramos as obras mais conhecidas do compositor e, certamente, as mais ousadas do
ponto de vista das inovações formais.
A partir da década de vinte e até meados dos anos cinqüenta, encontramos uma
fase neo-clássica, na qual o compositor procura se dispor, de maneira integral e livre, de
materiais ligados à tradição da música ocidental, seja do clacissismo, do barroco ou
mesmo do medievo. O balé Pulcinella é uma peça paradigmática deste período, que tem
ainda obras como a Sinfonia dos salmos e a Sinfonia em dó. A respeito dela, Stravinsky
dirá: “Pulcinella foi minha descoberta do passado, a revelação através da qual foram
possíveis todas as minhas últimas obras”. Uma maneira interessante de afirmar que,
para uma certa tradição modernista, uma forma de revelação do passado aparece como
condição necessária para a criação. Seria interessante se perguntar que tipo de revelação
é esta, como ela aparece, por que ela vem logo após um impressionante período de
ruptura.
Por fim, a partir de meados da década de cinqüenta, Stravinsky terá uma fase
serial, onde encontraremos procedimentos marcados pelo uso livre da técnica
dodecafônica. Talvez as obras mais representativas deste período sejam Agon e
Canticum sacrum. No entanto, trata-se da fase menos discutida de Stravinsky. De fato, o
que nos interessará aqui são, basicamente, as duas primeiras fases.
Na aula passada, lembrei que Stravinsky partilha do diagnóstico do esgotamento
da linguagem do sistema tonal, mas sua estratégia não passa por esta constituição de um
novo princípio de ordenamento. Sua afirmação central a este respeito é : “nossa
principal preocupação é menos o que se chama de tonalidade do que o que poderíamos
chamar de atração polarizada do som, de um intervalo ou mesmo de um complexo de
notas”290. Esta era uma maneira astuta de transformar a tonalidade, de um sistema que
determina processos de progressão e desenvolvimento, em um procedimento de
polarização a partir de um centro tonal. No sistema tonal, estes centros tonais são
polarizados a partir do jogo entre tônica e dominante, o que permite a construção de
uma hierarquia e de uma direcionalidade para o movimento. É exatamente tal hierarquia
e direcionalidade que Stravinsky quebra.
Desta forma, Stravinsky pode quebrar as transições e desenvolvimentos, pode
demonstrar o caráter arruinado da tonalidade como sistema, isto sem colocar em questão
uma base de organização que é derivada da tonalidade. Digamos que Stravinsky não
conserva a regra, mas a aparência da regra, a regra reduzida a uma condição de
aparência. Como ele mesmo dirá: “Ora, é perfeitamente possível que eu permaneça por
um tempo considerável dentro dos limites da estrita ordem tonal, mesmo se posso
conscientemente quebrar essa ordem com a finalidade de estabelecer uma ordem
diferente”291. Tentemos entender melhor esta maneira de quebrar a ordem dentro dos
limites da ordem.
Por um lado, Stravinsky partilha de uma das estratégias maiores de crítica
modernista aos padrões gastos da linguagem artística ao apelar para um certo retorno à
origem. Forma peculiar de tentar andar para frente com o carro em marcha a ré. Assim,
ele não temeu compor esta obra maior do modernismo musical, A sagração da
primavera, fazendo referência a temáticas de sacrifício da Rússia pagã com seus rituais.
A história do soldado, por sua vez, estava prenhe de “infantilismos musicais”. Como se
o arcaico e o infantil pudessem liberar um passado recalcado, inconsciente, que
290 STRAVINSKY, Poética musical em seis licoes, p. 41 291 Idem, p. 43
assombrava, com a força dos espectros, o presente reificado pelos processos de
racionalização e de socialização. No entanto, seria o caso de se perguntar sobre como a
origem retorna no interior da obra.
Pensando nisto, Adorno chegou a afirmar, a respeito de Stravinsky:
“Em Stravinsky, a subjetividade toma a figura da vítima; no entanto – e é aí que
ele zomba a tradição da arte humanista – a música não se identifica com a
vítima, mas com a instância destruidora. Através da liquidação da vítima, ela se
desfaz das intenções, de sua própria subjetividade”292.
Esta é uma maneira de dizer que as figuras e estilos da expressão subjetiva no
interior da música são, a todo momento, liquidadas. Como se o retorno do que fora
esquecido pelo desenvolvimento da linguagem musical e de sua gramática expressiva se
manifestasse através da violência que destrói a expressão. Um exemplo didático deste
processo nos é fornecido pela Sonata para piano, de 1924. A referência principal de
Stravinsky não é a sonata clássica, embora possamos encontrar recursos estilísticos e
idiomáticos da linguagem expressiva própria ao romantismo. Sua referência é a sonata
barroca, onde o termo referia-se àquilo que deve ser tocado, em oposição a cantata,
aquilo que deve ser cantado.
Percebamos como os recursos expressivos são apresentados de forma
monstruosa, haja vista a maneira com que o compositor serve-se de trinados nos
primeiros compassos da obra. Como se eles tivessem sido ampliados a ponto de colocar
em cheque a legibilidade da obra. Como se o compositor adotasse uma postura
deliberadamente maneirista, o que fica ressaltado também na forma como o baixo
contínuo é apresentado. Esta recusa da expressão pode chegar a levar Stravinsky a
afirmar: “Não estaríamos, na verdade, pedindo o impossível à música quando
esperamos que ela expressa sentimentos, traduza situações dramáticas e mesmo imite a
natureza?”293.
A partir desta perspectiva, Adorno atenta-se para tudo aquilo que, nos processos
composicionais de Stravinsky, visam negar o que se assemelha à expressão subjetiva. A
este respeito, Stravinsky utilizaria três procedimentos-padrão : o princípio artístico da
recusa, o choque e o princípio artístico da utilização de materiais gastos.
A respeito da dimensão rítmica da musica de Stravinsky, Adorno insiste que a
verdadeira função do ritmo está vinculada à idéia de choque. As modificações contínuas
na geografia dos tempos fortes e fracos produziriam, acima de tudo, a sensação de
choque, como se o corpo fosse a todo momento tomado por convulsões, como se ele
fosse objeto contínuo de traumas que ele não consegue mais integrar, pois são
acontecimentos que aparecem como violência externa. Pensemos, por exemplo, em A
sagração da primavera. A continuidade do gesto, como momento da expressão
dramática do sujeito, não é a base do balé. O que temos é o movimento corporal como
reação a sucessões de impulsos que não podem ser controlados pela expectativa. Desta
forma, o ritmo não adquire sequer a função ritual do transe, já que ele não é circular. Ele
adquire a função traumática do choque, que acaba por reforçar o caráter de justaposição
próprio à composição.
Esta colocação, embora plausível, tende a subestimar o caráter estruturador do
ritmo. Boulez compreendeu claramente que o fenômeno mais importante no domínio
temático da Sagração era o aparecimento de temas rítmicos complexos. O exemplo do
número 13 da partitura é bastante evidente. Este tema rítmico serve de base para o
292 ADORNO, PNM, p. 151 293 STRAVINSKY, ibidem, p. 75
desenvolvimento inclusive do tema melódico do número 14. Desta forma, o aspecto
desestruturador de um ritmo vivenciado como choque tende a ser absorvida pela
construção.
Por sua vez, a recusa e a subtração são procedimentos fundamentais no
modernismo em sua primeira fase. Trata-se de limitar o material ao mínimo a fim de
livrá-lo de todo ornamento supérfluo e falso. “Proceder por eliminação – saber como
descartar, como diz o jogador, esta é a grande técnica de seleção”294, lembrará
Stravinsky. Eu havia dito a vocês que devíamos prestar atenção no impulso modernista
de subtrair a forma estética até alcançar os elementos fundamentais que organizam a
gramática dos modos de expressão, isto a fim de retrabalhá-los. Modo de reconfigurar
os fundamentos de nossa linguagem. Como se, assim, o muito familiar pudesse ser,
mais uma vez, objeto de conflitos de interpretação.
No caso de Stravinsky, esta subtração dá-se, inicialmente, como anulação do
desenvolvimento. Fato fundamental, já que podemos dizer que, no caso da música, seu
elemento fundamental, aquilo que define a especificidade de sua linguagem e seus
problemas não é simplesmente o sonoro, mas o som no interior de um desenvolvimento
temporal. Eduard Hanslick, afirmava ser a música “formas sonoras em movimento”.
Maneira astuta de dizer que música é um problema de movimento, um problema
cinético.
Na música de Stravinsky em sua fase russa, nada se realiza no seu sentido
estrito. Por exemplo, todo desenvolvimento harmônico é cortado, o que faz com que as
passagens de um material a outro sejam abruptas e articuladas a partir do princípio de
justaposição ou sobreposição. Também não há algo que poderíamos chamar de
desenvolvimento melódico. No seu lugar, há apenas “células motívicas” que são
repetidas, sobrepostas a outras células e dissolvidas (através da modificação dos tempos
fortes ou do apagamento de seus limites), mas nunca desenvolvidas no interior de uma
lógica, por exemplo, de antecedente-consequente. No seu lugar, o que temos
normalmente é o uso deliberado de contrastes e cortes abruptos. Desta forma, assistimos
o desenvolvimento de uma espécie de escrita em blocos sonoros que fica muito visível,
por exemplo, em A sagração da primavera. A metáfora é cara aqui. Quem fala em
blocos, fala em volumes que se desdobram no espaço, em volumes que podem ser
justapostos, sobrepostos, quebrados.
Quando Stravinsky caminhar em direção à sua fase neo-clássica, o
desenvolvimento será reforçado pela pressuposição das formas tradicionais utilizadas
pelo compositor. A este respeito, levemos a sério uma afirmação como:
Quanto a mim, sinto uma espécie de terror quando, no momento de começar a
trabalhar e de encontrar-me antes as possibilidade infinitas que se me
apresentam, tenho a sensação de que tudo é possível. Se tudo é possível para
mim, o melhor e o pior, se nada me oferece qualquer resistência, então qualquer
esforço é inconcebível, não posso usar coisa alguma como base, e
consequentemente todo empreendimento se torna fútil295.
As colocações não poderiam ser mais claras. A ausência de pressuposição das
formas tradicionais provoca um verdadeiro terror pois, sem elas, nada impõem
resistências à um artista que compreende a composição, principalmente, como a astúcia
de quebrar a ordem dentro dos limites da ordem. Um artista que precisa da resistência
para compor. Daí porque: “tudo o que diminui a restrição diminui a força”. A ordem
294 STRAVISNKY, ibidem, p. 69 295 STRAVINSKY, ibidem, p. 63
deve ser posta para ser exposta em sua impotência. No entanto, não há como superar a
ordem.
Mas há algumas questões que devemos levantar aqui. Se o elemento
fundamental da música é o som em movimento e se é exatamente a idéia de movimento
que parece ser o objeto da problematização de Stravinsky, então a base da experiência
musical de Stravinsky parece estar na mutação da categoria de tempo musical.
Tempo e movimento
No caso de Stravinsky, esta recusa, está vinculada à autonomização dos
momentos devido a processos composicionais pensados como justaposição e des-
articulados a partir de um ritmo que é a exposição do princípio de choque no interior das
obras: “A respeito da montagem de filmes, Eisenstein declarava que o conceito geral, a
significação, a síntese dos elementos parciais do dado cinematográfico surge
precisamente da justaposição de elementos separados. Mas, assim dissocia-se o próprio
contínuo da duração da música”296.
Neste sentido, Adorno chega mesmo a fazer um paralelo entre Stravinsky e seu
antigo professor, Debussy. Para ele, Stravinsky aprendeu com Debussy a
“atemporalidade” musical. Adorno pensa principalmente no caráter não-funcional das
harmonias de Debussy que descontrói o movimento da progressão harmônica, com suas
tensões, resoluções e com sua determinação de uma verdadeira “gramática da
temporalidade”:
“Stravinsky tomou diretamente de Debussy a concepção espacial de planos
sonoros na música: e a técnica de complexos, assim como a constituição de
modelos melódicos atomizados provém também de Debussy. Na verdade, a
inovação [de Stravinsky em relação a Debussy] consiste apenas no fato de que se
corta os fios de harmonização entre os complexos e se demole os resíduos do
processo dinâmico-diferencial. Os complexos espaço-parciais chocam-se
fortemente uns contra os outros”297.
O diagnóstico seria claro: Stravinsky, ao privilegiar o tempo espaço ao invés do
tempo duração, teria “preparado o fim do bergsonismo musical”. O fato mesmo dela
flertar tanto com a música de ballet não seria um acaso, já que a verdadeira dança é uma
arte estática, é um “tourner en rond”. Ao contrário: “em música, nada é isolado e tudo
só se transforma no que é através do contato físico com o que é próximo e do contato
espiritual com o que é distante, na rememoração e na expectativa” (Adorno 9, p. 254).
Adorno insiste no fato de que o instante musical conhece uma causalidade
temporal que o faz : “em virtude daquilo que ele faz lembrar, daquilo do qual ele se
distingue, da expectativa que ele desperta, reenviar para além de si mesmo” (Adorno 9,
p. 256). Há assim uma “transcendência” fundamental do instante musical que nos
mostra que ele nunca é exatamente idêntico à si mesmo, já que seu sentido só se
estabelece através de processos contínuos de recontextualização dos instantes passados.
Mas, como nos lembra Adorno, o tempo que estrutura a música de Stravinsky
não é o tempo-duração pressuposto pelos processos de rememoração, mas uma espécie
de tempo-espaço submetido às leis da descontinuidade e da justaposição298. Como dirá,
296 ADORNO, PNM 297 ADORNO, PNM< 298 Esta distinção entre modos de temporalidades musicais permite a Adorno falar em dois tipos de
audição, já que os tipos de audição são, fundamentalmente, modos de apreensão do tempo: “Tratam-se
por exemplo, este anti-bergsoniano involuntário que é Philip Glass : “Minha música é
um motor do espaço”. Fórmula precisa já que sua música, como muitas outras, não faz
apelo à rememoração ou às tramas teleológicas da memória. Ela faz apelo à dissolução
da experiência da temporalidade e à ek-stase própria daquilo que se transforma em
objeto no espaço. Na verdade, estamos diante de uma audição que passa de um material
a outro tal como alguém que atravessa as fronteiras de um território descontínuo; pois a
determinidade imediata do espaço fundamenta-se na indiferença recíproca como marca
do modo de ser da espacialidade.
Neste sentido, a audição que a música de Stravinsky requer seria uma audição
atomizada. Podemos dizer que a audição atomizada é, na verdade, uma audição que
tende a apreender o material musical da mesma maneira que apreendemos uma
imagem estática que se dá no espaço. Nada estranho para um compositor que disse :
“Disse em algum lugar que não era suficiente ouvir a música, que deveríamos ser capaz
de vê-la”.
Notemos aqui a especificidade da concepção adorniana de temporalidade.
Adorno procura um pensamento do tempo não submetido ao paradigma da
espacialidade. Ou seja, trata-se de não pensar o tempo como justaposição de momentos
inertes e independentes, mas como movimento dinâmico de auto-anulação da
identidade. Esta negatividade própria à potência elementar do tempo nos reenvia
necessariamente à Hegel e à sua noção do tempo como “atividade negativa ideal”
(ideelle negative Tätigkeit) (Hegel 18, p. 156), ou seja, como potência que anula a
justaposição indiferente do espacial ao instaurar a continuidade de instantes que, por
serem necessariamente pensados em continuidade, negam-se a si mesmos enquanto
identidades autônomas.
Neste sentido, devemos lembrar que, para Adorno, a anulação da temporalidade
na música traz ao menos duas conseqüências distintas mas complementares. A primeira
diz respeito à dinâmica musical. Ao submeter-se ao tempo-espaço, o desenvolvimento
interno da forma musical, marcado pela continuidade temporal da duração, tende a dar
lugar a uma articulação que se assemelha à construções por justaposição. Mas, por
outro lado, e este é o ponto mais importante, se a audição atomizada pode apreender o
material musical da mesma maneira que apreendemos uma imagem estática que se dá
no espaço, é porque estamos diante de um material reduzido à sua própria imagem. A
audição atomizada indica o devir imagem do material musical.
No nosso contexto, isto significa dizer que o material se transforma em
gramática congelada e estática, peças de um vocabulário totalmente codificado. Este
vocabulário funda-se no uso da história da música como um depósito de formas
estilizadas que podem se submeter ao trabalho contínuo do compositor. Mas a
invariância de um material previamente codificado pelo sistema leva à estereotipia. Por
não poder se desenvolver para além da forma definida por uma apreensão estereotipada,
o material é reduzido à estática de imagens idealizadas. A composição transforma-se
assim em conflito e violência contra a aquilo que poderíamos chamar de “resistência do
material”. No entanto, a resistência não é aqui a dinâmica interna de um material que
provoca o estranhamento próprio àquilo que resiste a todo processo de conformação
dos dois tipos de audição : a expressiva-dinâmica (expressiv-dynamische) e ritmica-espacial (rhythmisch-
räumliche). A primeira origina-se do canto, ela visa submeter o tempo preenchendo-o e, em suas
manifestações supremas, transforma o discurso temporal heterogêneo em força do processo musical. O
outro tipo obedece à batida do tambor. Ele toma muito cuidado em articular o tempo através de uma
repartição em massas quantidades que virtualmente ab-rogam o tempo e o espacializam” (Adorno 8, p.
180 ). A idéia da grande música consistia na compenetração entre estes dois tipos de audição. No entanto,
atualmente eles se encontrariam separados.
integral à construção299. Ela é a força negativa que o compositor demonstra ao recusar o
uso correto dos materiais. Força que se transformará em paródia:
Stravinsky só continua sob o império do idêntico porque ele não sai da cultura
[princípio de estilização]. É isto o que o acorrenta à afirmação e funda uma
aliança sinistra entre sua música e a realidade horrível da qual ela fornece uma
imagem. Mas sua cumplicidade com a mentira é muito próxima da verdade. O
mestre da paródia parodiou a dialética.
A forma paródica
Em um texto que escreveu, Stravinsky afirma:
Na verdade, eu teria dificuldade em citar para vocês um único fato na história da
arte que pudesse ser qualificado de revolucionário. A arte é, por essência,
construtiva. Revolução implica ruptura de equilíbrio. Falar de revolução é falar
de um caos temporário. Ora, a arte é o contrário do caos. Ela nunca se rende ao
caos sem ver imediatamente ameaçadas suas obras vivas, sua própria
existência300.
Estas colocações são bastante expressivas. Por ser construtiva, a arte só pode ver o caos,
a informidade, como uma ameaça insuportável. Ela estará disposta até mesmo a aferrar-
se à ordem que parecia gasta, a negar a possibilidade mesma de uma revolução para
esconjurar a ameaça do caos. No caso de Stravinsky, isto implica em um modo peculiar
de conservação da ordem através da ironia. Este é o desdobramento necessário deste
retorno à origem que parece animar os primeiros grandes trabalhos de Stravinsky.
Stravinsky, e esta é a chave para a complexidade da sua experiência artística, é
aquele que realiza certas expectativas do modernismo através do advento de uma forma-
paródica. Esta forma, ao invés de organizar-se como uma crítica da aparência através da
visibilidade integral da estrutura (como vimos com o dodecafonismo de Schoenberg),
organiza-se como a submissão integral do material a um “princípio de estilização”. O
material aparece normalmente como o representante de um estilo codificado, elemento
congelado como uma imagem-clichê. A obra advém “jogo” com materiais fetichizados.
Caminho que poderia nos levar, simplesmente, à composição de obras “regressivas”,
isto se tais materiais fetichizados não fossem tratados como aparências postas como
aparência. Desta maneira, a forma-paródica realiza cinicamente o programa que a
forma crítica, na modernidade, colocou para si: portar em si mesma sua própria
negação, já ser , em si mesma, a performance de uma distância correta em relação a
sistemas naturalizados de representações (como é o caso do sistema tonal). Neste ponto,
podemos dizer que Stravinsky é a chave para a compreensão daquilo que, mais tarde,
será definido como pós-modernidade.
Normalmente, a crítica indica o neo-classicismo do ballet Pulcinnella, de 1920,
como o momento de uma virada nos procedimentos composicionais de Stravinsky, mas
299 Como nota Makis Solomos, a importância da noção de “material” na música do século XX, entre
outras coisas, está ligada à metáfora da “imersão no material”, ou seja, a esta observação microscópica
do material que nos leva a um desdobramento infinito dos detalhes tão relevado por Adorno. Tal
desdobramento é o contrário da estática do devir imagem do material. Ou seja, todo uso do material,
pensado como imersão, leva necessariamente o compositor a deparar-se com a “resistência do material” à
construção (Cf. Solomos 27, pp. 137-151) 300 STRAVINSKY, Poética musical em seis licoes, p. 21
Adorno insiste que A história do soldado, de 1918, já é composta a partir de
procedimentos que determinarão a forma musical, em Stravinsky, de maneira cada vez
mais hegemônica. Isto porque, a partir da História do soldado, o único material de
composição será o material mutilado vindo de formas gastas do sistema tonal, materiais
pobres, convenções deterioradas que se mostram enquanto tais. Adorno já indicara algo
desta tendência ao perceber que, devido ao princípio artístico da recusa e a um certo
anti-humanismo, os momentos de inflexões expressivas em Stravinsky eram,
normalmente, sucessões sonoras elementares. Desde Petruschka, a expressão advém
grotesca, risível e conjugada apenas em uma gramática claramente posta como
ultrapassada, como se: “a imago do deteriorado e decrépito devesse se transformar no
remédio contra a decadência (Verfallenen)”301. Adorno pensa no fato de que os
momentos de expressão subjetiva, em Petruschka, são apresentados a partir de um
leitmotiv composto pela repetição insistente e uma melodia estereotipada de circo.
Este remédio contra a decadência do tonalismo sintetizado com imagens de
elementos deteriorados do próprio sistema será, não apenas o motor da fase neo-clássica
de Stravinsky, mas também procedimento composicional maior para a compreensão do
que está em jogo no resgate contemporãneo do tonalismo.
A este respeito, devemos levar à sério a afirmação adorniana de que o
compositor que segue a lógica em operação nas obras de Stravinsky compõe com
“ruínas de mercadorias (Warentrümmern)”, isto no sentido de assumir formas e
elementos fetichizados que se afirmam enquanto tal, como se tal material já estivessem
previamente criticado, como se ele trouxesse em si sua própria negação e afirmasse sua
própria impossibilidade em desempenhar suas “funções naturais”. É isto que Adorno
tem em mente ao dizer que Stravinsky compõe como quem “ritualiza a liquidação
(Ausverkauf – “liquidação” no sentido de proposições como: “ uma loja em
liquidação”)”302. Daí a idéia adorniana de afirmar que isto nada mais é do que uma
forma musical paródica, forma que apresenta todos os seus materiais entre parênteses,
como se estivéssemos diante de uma “música feita a partir da música”, ou de uma
montagem de músicas mortas, música feita contra a música.
Tudo se passa como se o fazer tomasse consciência de si através da ironia e
afirmasse abertamente enquanto tal. Música que, de maneira cínica: “zomba da norma
com o mesmo fôlego que a afirma”303, ou seja, forma estética capaz de suspender a
norma exatamente ao segui-la. Maneira astuta de conservar e repetir materiais esgotados
do ponto de vista de situação sócio-histórica. É devido a este ponto que Adorno pode
afirmar em 1962 :
“Stravinsky continua sendo um objeto de escândalo porque o caráter inautêntico
da objetividade tomou, neste prestidigitador, uma feição caricata. O que salvou
sua música de todo provincianismo, é que ela nunca deixou de mostrar seus
barbantes, como apenas os mágicos inimitáveis podem fazer”304.
Sua consciência de que apenas uma “linguagem orgânica em decomposição” era
possível à música que aspira afirmar-se como forma crítica nos leva a indicá-lo como
exemplo privilegiado de alguém que procura expor o colapso da distinção entre arte e
fetichismo, mas no interior de estruturas claramente fetichizadas. De fato, este
301 ADORNO, Philosophie der neuen musik, p. 138 302 ADORNO, idem, p. 166 303 ADORNO, idem, p. 188 304 ADORNO, Stravinsky, p. 164
diagnóstico sempre acompanhou a leitura adorniana de Stravinsky. Basta lembrarmos
que, já em um texto de 1932, Adorno não deixava de lembrar:
“a música de Stravinsky usa o conhecimento de sua antinomia coercitiva
apresentado a si mesma como um jogo. Ela faz isto, no entanto, nunca como
simplesmente um jogo e uma arte aplicada: ao contrário, ela mantém uma
posição de contínua suspensão ente jogo e seriedade, entre vários estilos também
que quase nos impede de chamá-la pelo nome e com ironia ela retardatoda
compreensão da ideologia objetivista”305.
È claro que sempre se pode dizer que: “esta música, longe de se confundir com a
consciência reificada que nela fala, ultrapassa-a na medida em que a contempla em
silêncio e a deixa falar em pessoa, sem intervir”306. Poderíamos mesmo seguir aqui Max
Paddison a fim de lembrar que: “segundo Adorno, Stravinsky expressa a alienação
através da ironia e fragmentação na relação aos seus materiais, isto principalmente em
um trabalho como L´histoire du soldat”307.
De fato, para Adorno, o exemplo privilegiado aqui e A história do soldado.
Segundo ele, trata-se de uma obra que “esclarece toda a produção de Stravinsky”.
Embora aqui os materiais sejam claramente regressivos e infantilizados, a intepretação
que Adorno faz da peça não deixa de reconhecer que: “os olhos vazios de sua música
são às vezes mais expressivos que a expressão”308. [o uso do jazz/a lógica da
desintegração/ o extremo da estilização]
No entanto, ela é a forma do paradoxo de uma consciência reificada auto-
reflexiva ou de uma falsa consciência esclarecida. Forma de uma consciência cínica
que repete os gestos musicais de uma consciência reificada, mas que demonstra a todo
momento, seja pela excessiva força, seja pelos cortes e pelas justaposições, tomar
distância de seu próprio gestual.
305 ADORNO, Da situação social da música 306 ADORNO, Stravinsky, p. 166 307 PADDISON, Adorno aesthetics of music, p. 47 308 ADORNO, PNM, p. 183
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