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Artigo apresentado ao X ENECULT
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MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES EX-VOTIVAS
NOS RETABULOS DOS SANTUÁRIOS DE
NOSSA SENHORA DE GUADALUPE E
BOM JESUS DE MATOSINHOS
Genivalda Cândido da Silva 1
Resumo: Ao pesquisar os ex-votos e as suas possíveis formas de diálogos entre o
homem e o espaço sacro, foi possível, também, inferir um olhar e o estudo sobre a
representação ex-votiva em determinadas tipologias, e as suas inferências no homem e
no contexto social, cultural em que o mesmo pode ser encontrado, onde o sentimento de
seus narradores e personagens é transmitido a partir de pinturas. Neste contexto
podemos dizer que as imagens, assim como as palavras transcritas, são ações de
representações e memórias. Os objetos analisados, e, exemplos utilizados na
comparação para esta pesquisa, foram os ex-votos dos Santuários de Nossa Senhora de
Guadalupe, na Cidade do México, e do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos em
Congonhas, Minas Gerais, Brasil.
Palavras-chave: Memória, Representação, Ex-votos, Santuários, Cultura popular.
Imagens, Representações e Memórias.
Conceituar a palavra imagem é uma tarefa difícil, até porque a subjetividade que
acarreta a palavra é grande, creditando a mesma uma ampla designação de sentidos,
então as interpretações são muitas. Mas buscando elucidar um pouco um dos seus
significados nesta pesquisa, pode-se dizer que uma imagem é um conjunto de pontos
que convergem num plano. Mas se falarmos da forma abstrata de uma imagem, então,
para nós, uma imagem é um suporte para a realização de trocas de informações, ou
representações de fenômenos e ações realizadas a serem estudadas. Uma imagem
contém uma imensa quantidade de informações, em que um observador pode interpretá-
la frequentemente, globalmente ou cientificamente.
A sua etimologia vem do latim: imago, o que significa a representação visual de
um objeto. Sendo assim, pode-se ter uma melhor definição da imagem como sendo uma
projeção da mente, uma aquisição dos sentidos, a representação mental de um objeto
real.
1 Mestranda do PPG Museologia, da UFBA. Email: v.bridacandido@gmail.com. Orientanda do Professor/Doutor
José Cláudio Alves de Oliveira, da Universidade Federal da Bahia. Membro do Grupo de Estudos sobre os
Cibermuseus e do Núcleo de Pesquisa em ex-votos – GREC/NPE -
No senso comum, envolve tanto o conceito de imagem adquirida como gerada
pelo ser humano, em muitos domínios, quer na criação pela arte, quer como simples
registro fotográfico, na pintura, no desenho, na gravura, em qualquer forma visual de
expressão da idéia.
O semiólogo Barthes (2001) referencia que a imagem propõe diversos modos de
leitura, um esquema muito mais aberto à significação do que um desenho, uma imitação
mais do que original, uma caricatura mais do que um retrato, sendo assim, ele define
imagem como forma “... mais imperativa que a escrita, impõe a significação de uma só
vez, sem analisá-la, sem dispersa-la... A imagem transforma-se numa escrita, a partir
do momento em que é significativa, como a escrita ela exige uma léxis (leis, regras)”
(BARTHES, p. 132. 2001).
Nesse sentido, podemos trazer a representação como um complemento de
acréscimo da imagem, no sentido de que a etimologia da palavra representação é
encontrada no latim como representatio, representationis, que, segundo Laudelino
Freire (1957), significa a "ação ou efeito de representar", "ser mandatário ou
procurador", "fazer vezes de", "suprir falta de", "apresentar-se no lugar de". Assim o
termo representação, no âmbito contratual, associa-se à figura da substituição na
manifestação de vontade. No entanto, para Manuel Gonçalves Ferreira Filho (2013), a
representação é definida como um vínculo entre os representantes e representados pela
qual os representantes agem em nome dos representados e devem trabalhar pelo bem
dos comuns e não pelo próprio.
A ideia clássica de representação deriva da Grécia antiga, vai para as vias da
política, que incita a participação popular no governo, por intermédio de representantes
eleitos, por meio do sufrágio universal. Representação, assim, está atrelada à idéia de
democracia, de governo do povo. Todavia, não trataremos aqui de governo e tão pouco
política, porém de participação popular, memória, e pesquisa, que abordam e
consideram a cultura popular como parte complementar das representações e dos
patrimônios.
Quando buscamos uma interação entre os pontos aqui acordados e trabalhados
podemos perceber que a memória é fundamental para as imagens e representações, pois,
para os gregos, a memória vem cerceada de um apelo divino, quando se refere à deusa
Mnemósyne, mãe das musas, entidades sagradas que protegiam as artes, a música, a
ciência e a história. (SUANO, 1986).
O termo memória traz consigo considerações que remetem a um sentido de
conservação de uma lembrança, pressuposto que vai ao encontro do que acredita Chauí
(2005, p. 138), quando diz que “a memória é uma evocação do passado”, uma
capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi salvando-o da perda total. A
lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais. Por isso, a necessidade de
revisitar o passado está cotidianamente presente em nossos contextos de vivência, a
partir da preservação de elementos e fragmentos culturais memoráveis diversificados.
A memória acaba assumindo diferenciadas perspectivas, se modificando
gradativamente a partir de atribuições de cada área específica de atuação. Daí a
apresentação de variadas tipologias de memória: memória autobiográfica, memória
cognitiva, memória histórica e memória hábito, por exemplo. Cada categoria traz a sua
contribuição em particular, seja numa perspectiva psicológica, social ou pessoal.
Entretanto, o objetivo do presente artigo nos direciona a uma perspectiva que se
fundamenta nas correntes historiográficas de memória, bem como a memória social e
coletiva e os processos de significação e de sentidos como efeitos.
A discussão em torno da memória social e coletiva parte das contribuições de
Durkheim que, entre os séculos XIX e XX, difundiu o conceito de fato social. Mas é
importante destacar a intervenção de Halbwachs (1990), criador do conceito de
memória coletiva. Embora aparentemente sejam categorias isoladas, quando
consideramos a concepção do referido autor, é tênue a linha de aproximação que existe
entre as memórias social e coletiva, uma vez que cada memória individual se apresenta
como um construto sobre a memória coletiva, construto esse que muda conforme o
lugar e o contexto que ocupamos, os quais também são modificados segundo as relações
que mantemos com outros meios. Essa passagem, além de evidenciar o caráter coletivo
da memória, nos remete à percepção do seu lado social, afinal, a memória é social
porque ela tem relação com o conjunto de noções que determinado grupo possui. A
memória aqui por nós contextualizada é tida não como uma propriedade da inteligência,
mas uma base dela.
Nessa perspectiva, Henriques (2004) ratifica que a memória coletiva representa
as memórias individuais de determinado grupo social que articula suas lembranças em
quadros sociais comuns, compartilhadas por todo o grupo.
A construção da memória de um grupo representa a construção da memória
coletiva desse grupo, ou seja, é aquilo que se seleciona, que se destaca e se registra, e,
sobretudo, revela a identidade daquele conjunto de sujeitos. E é através desse registro
que a identidade social se solidifica e fortalece, marcando sua trajetória no tempo e no
espaço.
A memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do
tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em
transbordamento. Pois, como afirma Gilles Deleuze (2000) tempo e memória se
fundamentam mutuamente, logo o fundamento do tempo é a memória. É a síntese
fundamental do tempo que constitui o ser do passado (o que faz passar o presente).
Nesse sentido, a memória é sempre uma síntese ativa derivada dos acontecimentos.
O aporte acima nos permite desmistificar o convencionalismo que ainda é
presente quando se trata da memória, ao reportá-la unicamente ao passado. Nessa
perspectiva Menezes (1987, p.184) argumenta que a memória não diz respeito apenas ao
passado, mas também ao presente, pois: “Exilar a memória no passado é deixar de
entendê-la como força viva do presente. Sem memória, não há presente humano, nem
tampouco futuro”. Ou seja, a premissa básica que vai nortear a memória é o
compromisso com a mudança.
A partir do momento que compreendemos a memória enquanto elemento de
transformação social abrem-se precedentes para discorrer, por exemplo, com as idéias
de Michael Pollak (1992) que trata esse construto social como um artifício básico para a
afirmação de nossa identidade e para nos reconhecermos enquanto sujeitos sociais.
Além de se apresentar como um elemento constituinte da identidade, tanto
individual, como social ou coletiva, a memória é também um fator extremamente
importante para a construção de um sentimento de continuidade e de coerência de uma
pessoa ou de um grupo em sua ressignificação de si. (POLLAK, 1992) Deste modo
podemos dizer que os espaços sociais sacros em que a memória de uma pessoa deixa de
ser pessoal passa a uma nova ressignificação social e coletiva, com múltiplos ensejos e
compartilhamentos, como é o caso dos fatos culturais, religiosos, comunicacionais e
artísticos, que acontecem nos santuários católicos, sobretudo nos de grande envergadura
histórica e midiática, a exemplo da Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe, localizada
na Cidade do México e do Santuário de Nosso Senhor Bom Jesus de Matosinhos que
serão aqui retratados. .
Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe
Um dos maiores santuários católicos do mundo, que traz em todo o seu espaço a
manifestação religiosa dos mexicanos e de povos de fora do México, demonstra o quão
impressionante é a extensão dos fatores da memória social. (v. ilustração 1).
A primeira Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe começou a ser construída
em 1531 e foi concluída em 1709, projetada por Pedro de Arrieta. Está localizada no
alto do Monte do Tepeyac. O seu interior é decorado em mármore com duas estátuas de
Juan Diego e do Frei Juan de Zumárraga. Em 1904 foi consagrada Basílica pelo Papa
Pio X. (Disponível em:
http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm.Janeiro2006, Acesso em
20/04/2014). O Santuário é composto por várias igrejas, capelas e o museu dos ex-
votos, que traz em seu acervo 3.000 retábulos ex-votivos.
O local passou por um atentado, quando em 1921 uma bomba foi implantada no
altar da Basílica por um ativista anticlérico que conseguiu explodir parte do templo,
causando enormes prejuízos à Arquidiocese da Cidade do México. Porém, mesmo assim
a memória ali estava presente, a memória urbana, pois o santuário se tornou um eixo do
mundo celeste com o da superfície humanizada. Fazendo valer, assim, a reconstrução do
local. “É necessário, finalmente, não esquecer que ao lado da emergência espetacular
da memória no seio da retórica, quer dizer, de uma arte da palavra ligada à escrita, a
memória coletiva prossegue o seu desenvolvimento através da evolução social e
política do mundo”. (POLLAK, Idem)
Ilustração 1. Santuário de Guadalupe. As três basílicas.
Imagem: Projeto Ex-votos das Américas
Na década de 1970, foi descoberto o afundamento do terreno e um novo templo
teve de ser planejado. Já em 1979, o Instituto Nacional de Antropologia e Historia
(INAH), em parceria com a Igreja Católica mexicana, iniciou um trabalho arqueológico
para tentar restaurar o chão da igreja e impedir a perda de artefatos importantes. O
INAH já havia trabalhado com a Catedral Metropolitana da Cidade do México.
O Museu da Basílica de Guadalupe está localizado atrás da Basílica Velha, a
segunda igreja. O museu foi inaugurado em 12 de outubro de 1941, pelo Abade de
Guadalupe, Feliciano XX Cortez e Mora. Segundo as museólogas que gerenciam a
instituição, algumas das salas do museu foram construídas especificamente para o uso
museográfico em 1931. Outros espaços eram usados com o fim religioso, como
sacristia, salão do reitor e escritórios específicos.
O Museu do Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe possui uma coleção de
mais de 4.000 peças, sendo 3.000 delas compostas de ex-votos, denominados
“retábulos”. As demais peças são objetos que se enquadram na arte sacra, nas
subcategorias da pintura, escultura, gravura, têxteis, jóias e móveis.
Desde a sua fundação, o museu tem como objetivo principal o resgate de
algumas das formas de arte que se desenvolveram em torno da Virgem de Guadalupe,
então, tal importância dada à sala principal, e primeira (da entrada) do museu, que traz
os “retábulos” (ex-votos) que os fiéis têm depositado ao longo do tempo como
agradecimento pelas graças alcançadas, e delas estão as imagens representativas ao
acontecimento, e em sua maioria, o verbete narrando a história de vida
Retábulos são designações referidas a painéis de madeira ou pedra que domina o
altar de uma igreja e que é esculpido ou pintado, e geralmente são ricamente decorados.
Em alguns lugares em que a religião católica é mais presente e o pagamento de
promessas também, os retábulos são decorados com passagens em pinturas de figuras
religiosas, ou atos de pedidos ou momentos de perigo de vida. Além da riqueza visual e
de usa complexidade apresentada na sua confecção material, os retábulos geralmente
comportam múltiplas mensagens e significados, que nem sempre estão aparentes a
primeira vista.
Vale ressaltar que “retábulo”, no Brasil, é a denominação que se dá ao móvel
que fica nos altares das igrejas, resguardando imagens de santos e o sacrário. Ao passo
que, no México e América Central, essa denominação recai aos ex-votos pictóricos, que
no Brasil são chamados “tábuas votivas”.
Santuário do Bom Jesus de Matosinhos - Congonhas do Campo – MG
O Santuário do Bom Jesus de Matosinhos está localizado no Morro do
Maranhão, na cidade de Congonhas, em Minas Gerais. Sua origem é de 1757, quando
foi fundado por Feliciano Mendes de Guimarães, de origem portuguesa. A obra, como
tantas outras de intuito religioso, é acrescida de fé, promessa, pagamento de promessa e
ex-voto. Feliciano Mendes que, tendo adoecido gravemente, prometeu construir um
templo a Bom Jesus de Matosinhos, como o que havia em Braga, sua terra natal, caso
alcançasse a cura de seu mal. Porém até sua morte em 1765, o complexo contava apenas
com uma modesta cruz e um oratório. (UNESCO 2002).
A primeira igreja do complexo de Matosinhos de Minas Gerais foi construída
em 1773; entre 1780 a 1793 foi concluída a Via Crúcis do sopé do morro até o
santuário. (Idem)
Em 26 de Julho de 1957, o Papa Pio XII, reconhecendo a importância histórica,
artística e religiosa do conjunto arquitetônico, elevou a igreja principal à sua distinção
de Basílica Menor. (Ibidem) A via sacra é composta por uma série de capelas de planta
quadrada, paredes caiadas e teto de quatro águas que abrigam em seu interior as
passagens da Paixão de Cristo, representado por conjunto de esculturas e esculpido em
cedro brasileiro e com policromias, seguindo a estética sentimental e rebuscada do
barroco, estilo artístico presente na época.
O local é considerado conjunto arquitetônico histórico. Em 1939 o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN (na ocasião SPHAN) –, realizou o
tombamento do Santuário. Já em 1985, passou a ser considerado como Patrimônio
Mundial da Unesco. Sua construção data ao longo de várias épocas que seguiram desde
os séculos XVIII até meados do século XIX. Sua construção envolveu vários mestres,
pintores e artesãos locais e de fora do país. Dentre os quais se destacam Antonio
Francisco Lisboa, mais conhecido como Aleijadinho, e Manuel de Costa Ataíde. (V.
ilustração 2).
Ilustração 2. Basílica Menor de Congonhas. Imagem própria
O Santuário é formado pela Basílica de mesmo nome, um adro, um conjunto de
esculturas representando os “Doze Profetas”, feitas por Aleijadinho e seis capelas com
as cenas da Paixão de Cristo. Os “Doze Profetas” foram esculpidos em pedra sabão
entre 1795 e 1805. São eles: Isaías, Jeremias, Baruc, Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel,
Abdias, Amos, Jonas, Habacuc e Nahum. Essas esculturas impressionam e fascinam
pela expressividade do trabalho do autor, porém, não as destacaremos, já que o interesse
maior está voltado aos ex-votos da sala de milagres.
Ex-votos: Retábulos nos Museus e Sala de Milagres.
No intuito de expor quão presentes eles são nesse espaço museal, os artefatos
denominados de retábulos representam o que é o ex-voto atualmente para o povo
mexicano, e a sua manifestação da fé popular dirigida a Nossa Senhora de Guadalupe,
na forma artística pictórica retratando os personagens e os acontecimentos.
Representação, quando pensada no Santuário de Guadalupe e com relação aos
objetos ali mantidos, vai além de demonstrar o fato de que alguém ganhou uma graça ou
fez um pedido: os ex-votos são importantes para, não somente influenciar e educar fiéis,
mas representativos no auxílio da interpretação que o visitante faz da coleção, pois
indicam diretrizes para perceber as mensagens e informações nas escritas e nas imagens.
José Marques de Melo (2008), citando Luiz Saia (1944. p. 62) diz que
“A tradição ex-votiva remonta a mais afastada atividade do homem perante o deus protetor. Às vezes surge como troféu de guerra deposto após a vitória, no altar do Deus
protetor; troféu que tanto podia ser arma, insígnia como a cabeça do inimigo. Ou de
outra forma, que, está presente até os dias atuais na tradição católica de muitas partes
do mundo, consiste no ato de pagar promessas relativas à graças alcançadas, com o agradecimento aos santos protetores com objetos que lembrem o pedido feito: Muletas,
representação da parte doente, peças de vestimentas, retábulos, esculturas em parafina
ou madeira, mídias, dentre tantas outras retratações simbólicas”.
O ex-voto é um objeto que traz em suas contextualizações variadas vertentes de
estudos e áreas de pesquisa, dentre algumas delas pode-se abalizar dois campos: o da
museologia, que o trata como objeto-patrimônio exposto em uma área de visitação, seja
em um museu ou santuário, e o campo da folkcomunicação que direciona os ex-votos à
iconografia e à comunicação popular. Ambas as áreas tratam do objeto ex-votivo em sua
característica híbrida, revelando-o mais do que símbolo votivo de fé, mas também como
patrimônio cultural e comunicacional.
Benjamim (2003, p. 43-44) trata a prática tradicional ex-votiva como
comunicação da fé popular:
“A prática mais tradicional da comunicação, nas devoções populares, é a entrega do ex-
voto. No ex-voto paga-se o compromisso de natureza contratual com o santo. A entrega
do ex-voto é, porém, a publicização da intervenção – o milagre ou, mais modestamente,
a graça alcançada – mensagem cujos receptores são os outros devotos ou pessoas que
circunstancialmente passem ou visitem o local da devoção. Quanto mais ex-votos
depositados, mais provados ficam os benefícios alcançados pela intercessão do santo, o
que faz crescer a fama e despertar o interesse de novos devotos.”
Com todo esse potencial histórico, cultural, e de fé, as devoções populares se
evidenciam entre trocas sociais e simbólicas, onde, sem mediações eclesiásticas, o
individuo legitima-se pelo sagrado estabelecendo uma relação direta entre devoto e o
Divino.
No estudo sobre os ex-votos de Guadalupe, as interpretações viabilizam e
reforçam a fé e as relações do fiel com Nossa Senhora Maria e com o espaço. Além
disso, os retábulos têm a possibilidade de influenciar o expectador, dando-lhe
possibilidades para compreender que milagres e graças estão ali representados.
Embora encerrada na materialidade, e inanimada, a arte ex-votiva pode ser
entendida como uma forma de agenciar o ser humano, apontando-lhe caminhos para
reconhecer e reafirmar a santidade e o poder de cura e superação que está relacionado à
imagem de uma santa, que por décadas é passada por meio da memória e do processo de
ressignificação.
Os objetos registrados e analisados no Museu do Santuário de Guadalupe tem
mais de 150 anos, a avaliar pela cronologia, que vai do início do século XIX a 1989. Os
registros trazem, quase sempre, a índole piedosa e oferecida a Nossa Senhora de
Guadalupe, em cumprimento de um voto ou promessa feita para obter uma graça.
Outros registram o momento exato do pedido a Santa, em exemplos que se configuram
como voto apenas. (V. ilustração 3 e 4).
Ilustração 3. Ex-voto do santuário de Guadalupe, México.
Imagem: Projeto Ex-votos das Américas.
Ilustração 4. Ex-voto do santuário de Guadalupe, México.
Imagem Projeto Ex-votos das Américas
Com devoção, isto é, com vontade de servir a Nossa Senhora, direta ou
indiretamente, e subordinado à sua glória e beneplácito toda a vida, os ex-votos são
exemplos da espontânea e popular prática religiosa, e estão expostos de forma artística
em painéis que medem, em média, aproximadamente 15X25m., no museu do Santuário.
As tábuas, de forma retangular, com suas medidas variáveis, pintadas a óleo
sobre madeira, papel ou sobre tecido, foram encomendadas a pintores (riscadores de
milagres ou santeiros) para posterior desobriga, para serem entregues em gratidão, como
assinalam algumas tábuas. Das que estão datadas, algumas constam o ano, remontando
a 1852, outras detem o registro também narrativo do acontecido, e a súplica feita a
Santa.
Essas imagens ex-votivas, que são caracterizadas por uma linguagem
imediatamente perceptível, tornaram-se um patrimônio cultural e artístico que tem
despertado o interesse de estudiosos de arte. A uniformidade da vida e do meio
ambiente do passado facilitou a leitura dos fatos, mas reconhece-se na técnica de pintura
tendência reconhecível ex-votiva para aproveitar ao máximo o ambiente em que ocorreu
o evento e os personagens.
A intervenção milagrosa no ex-voto pictórico é mostrada com a imagem de
Nossa Senhora reproduzida na parte superior da imagem. Em outras foi possível
observar algo singular, a imagem retratada no mesmo plano do fiel. Desta forma, é
possível confundir os testemunhos da vocação e, em seguida ações de graças evidentes
nos verbetes ao pé da composição pictórica. Em alguns, sem qualquer explicação por
escrito, apenas uma dedicação, confirmada por uma tradição centenária de ex-voto:
VFGA (Votum fecit gratiam accepit); P.G.R. (por graças recebidas), esse último muito
observado nas paredes do museu.
Já no Complexo do Santuário de Congonhas, não há um museu, e sim uma sala
de milagres, local esse em que os registros ex-votivos são recebidos e expostos, os
mesmos tem datação desde 1876 até atualidade. A expressão "sala de milagres" conduz-
nos o pensamento as palavras "promessas”, fé, “milagres”, ex-votos. A abundância de
elementos ex-votivos na sala proporciona uma representação grandiosa da história de
vida de pessoas de Minas Gerais e outros lugares do Brasil
Desse modo, o ex-voto se dinamiza em sua tipologia. Para o cientista, o ex-voto
não é apenas um elemento de arte e promessa, é também um documento (de várias
formas) que equivale aos "pagamentos" das "graças", que possuem formas específicas
de almejar e de comunicar. E nelas a retratação de fatos e acontecimentos.
Na sala de milagres de Congonhas há riqueza de variedades tipológicas ex-
votivas acumuladas nos 235 anos de existência, que constituem o acervo instalado no
complexo de Matosinhos. Grande parte da produção artístico-pictórica, rústica e literária
ex-votiva é de representações das tradições, do imaginário e das identidades nacionais e
locais, voltadas ora para o religioso, ora ao cultural, devocional e comunicacional. (V.
ilustração 5).
Ilustração 5. Ex-voto do santuário de Matosinhos. Brasil. Imagem própria
A similitude dos objetos de Congonhas com os do Museu do Santuário de Nossa
Senhora de Guadalupe está na estética, nas palavras e expressões para com o ente
superior. Há uma comunicação, um pedido feito e uma graça alcançada, representada
artisticamente na ação pictórica, em sua maioria “ingênua”, do pintor dos milagres, e,
em muitos exemplares, como rege a tradição, acrescidos de narrativas curtas e simples.
Conclusões
Podemos também afirmar, aqui, a diferenciação entre os dois ambientes
trabalhados. Mesmo que os dois locais contemplem o mesmo objeto, e o exponha para
apreciação de turistas, estudiosos, e afins, a liberdade imposta entre um e outro é
diferente. Visto que, no museu, regras tem de ser seguidas, como o acompanhamento
por um facilitador, ou funcionário local, a proibição de fotografação e filmagens, para
“preservação” dos objetos. O que em uma sala de milagres, já não é de extrema
imposição.
Na sala de milagres, fica livre o trânsito de pessoas, a liberdade para registros
fílmicos e fotográficos, a fruição e admiração do visitante ao objeto é mais livre e
maior.
Todavia, além da fé, do patrimônio cultural, sala de milagres e museu reservam
uma riqueza que se atesta para a cultura implantada em ambientes distintos como os
aqui estudados. É percebida a importância privilegiada de que se reveste a imagem, sob
todas as suas formas, para o conhecimento da sensibilidade popular e cultural.
Por serem os ex-votos objetos que guardam em sua essência teor, registro de
vida ou momentos de necessidade, o conteúdo da escrita mais a sutil e “ingênua”
pintura tornam-se a fala que exalta o fato e o acontecimento, a permanência de uma
tradição, e, consequentemente, a representação da memória de um tempo vivido.
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