Sapatos Brilhantes

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Um conto de Pedro Miguel Gon

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Sapatos Brilhantes

Estrôncio pesquisou vários compartimentos e deu com um quase vazio. Poisou a mala no banco mais próximo da porta e olhou aquele holograma encravado partido ao meio. Não era bem partido. Era rasgado. Tinha aquele tom de luz cinzenta típica dos hologramas, e, se bem que entre o punho e o cotovelo existisse um rasgão, notava­se que vestia um belo fato castanho; e dali para cima, nada. Não havia mais nada nem ninguém naquele compartimento. Decidiu entrar e seguir viagem ali.

Estrôncio voltou a pegar na mala e deitou­a de lado. Conferiu uns pertences numa bolsa lateral. E olhou o holograma rasgado. Que teria acontecido para ficar encravado? Analisou melhor e percebeu que os sapatos eram de óptima qualidade; as mangas da camisa fechavam­se com botões de punho de design simples mas marcadamente personalizados. Não conseguiu perceber se seriam feitos em ouro branco ou noutro material. Aço polido, por exemplo. Suspirou. Incomo­dou­se com o nariz e procurou outras pistas de existência.

Pegou na mala e mudou de lugar sem se afastar da porta. Conferiu uns pertences só com a ponta dos dedos. Do mesmo lado em que estava o meio holograma tinha agora uma outra perspectiva, mas sem lograr incremento de informação. A luz proveniente da janela acentuava as propriedades diáfanas do holograma, clareando ou escurecendo o tom de cinzento

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conforme os jorros de luz. Ao seu lado direito, Estrôncio tinha a porta do compartimento, e à sua esquerda, à distância de três lugares, estava o holograma. Suspirou. Penteou­se com os dedos de uma só mão e incomodou­se com o nariz. Cada vez que se incomodava com o nariz, a mão, os dedos, a cabeça e o nariz entravam juntos em rituais alienígenas.

Pegou na mala e voltou a mudar de sítio. Estrôncio preferia o lugar que primeiro ocupara, no lado oposto ao holograma. Voltava à primeira perspectiva. Agora tinha o holograma à direita. O que teria acontecido? Ou não aconteceu nada e era mesmo assim? Conferiu os pertences. A mala estava bem acomodada a seus pés. A imagem do holograma nem sequer tremia. Nem sofria saltos. Por isso tinha que estar mesmo encravado.

Um barulho à sua esquerda sobressaltou­o. Era o revisor. Queria picar o bilhete. O revisor olhou Estrôncio em silêncio e depois desviou o olhar, sem movimento de cabeça, sobre o holograma. Durante algum tempo os olhos do revisor fizeram esses movimentos inquisitórios para cá e para lá. Outra vez para cá e para lá. Estrôncio sentiu­se pressionado e viu­se obrigado a dizer,

«Não é meu.»O revisor não disse nada. Dois estalidos com o pica e

Estrôncio estendeu o bilhete. O revisor foi­se embora e Estrôncio suspirou. Gostava de sentir o cabelo solto na mão. Incomodou­se com o nariz.

O holograma continuava na mesma. Até a cadência sonora dos rodados nos carris, conjugada com os balanços da carruagem, parecia sempre a mesma. Fechou os olhos e voltou a suspirar. Em breve a cabeça impendia no sono. Mas ao notar que adormecia, reagiu, pôs­se direito, e arregalou os olhos. Espreguiçados os olhos, analisou o holograma. Estava na mesma. Conferiu os pertences.

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Noutro dos bolsos laterais da mala recolheu um jornal apenas meio relido. Folheou­o cirurgicamente, apenas pelas parangonas. Enquanto o fazia, a porta do compartimento voltou a abrir­se. Um passageiro procurava lugar. Olhou Estrôncio com ar afável e dir­se­ia que decidira ficar, mas ao deparar com o holograma hesitou. Os seus olhos como que se estamparam no holograma. Girou a cabeça para Estrôncio e depois para o holograma. Várias vezes. Meteu um sorriso usado em outras situações mais profissionais que aquela e fechou a porta sem entrar. Estrôncio, por sua vez, voltou a conferir o holograma. Os sapatos eram brilhantes, pensou.

Voltou a dar atenção ao jornal, mas não conseguia concen­trar­se. E se o holograma não estivesse nada encravado? E se fosse só aparência? E se estivesse perfeitamente activo e, por isso, a vigiá­lo? Começou a desviar o olhar pelo canto do olho para ver se conseguia notar nele alguma manifestação, por mínima que fosse, enquanto não estivesse a ser observado. Era necessário curvar ligeiramente as páginas da direita para aumentar o ângulo de visão. Seguiu esta estratégia durante uns quinze minutos mas sem nada descobrir.

A certa altura decidiu tomar uma iniciativa. Dobrou o jornal e incomodou­se com o nariz. Levantou­se, logo que concluído o ritual, e deu três passos perigosos em direcção à janela. Fingiu estar muito interessado na paisagem. Com uma descontracção estudada, apoiou um cotovelo no vinco de alumínio que separava as duas metades de vidro da janela de guilhotina, deixando despropositadamente a outra mão no bolso das calças. E como era uma posição desconfortável, ridícula aliás, acabou por se sentar. Mesmo diante do holo­grama. Agora estavam, permita­se a expressão, face a face. Os sapatos eram mesmo brilhantes.

O holograma continuava a ter todas as características dos sistemas encravados. Parecia suspenso. A qualquer momento

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uma perna podia levantar­se e cruzar­se sobre a outra. Analisou­o disfarçadamente entre bocejos quase autênticos e auto­massagens nas têmporas e, enfim, notou algo suspeito. Uma vez que o holograma era tridimensional, agora conseguia ver que um objecto volumoso irrompia do bolso esquerdo. O que seria? Não era próprio de um fato tão aprumado. Incomodou­se com o nariz para ajudar a posterior reflexão. O que seria?

Estava entregue a esta indagação quando se assustou com um barulho cortante à sua esquerda. Alguém abrira a porta rápido demais. Intencionalmente rápido. Olhou sobressal­tado. Era de novo o revisor, mas agora acompanhado por outro revisor, e estes acompanhados por outro homem sem farda. Os dois bonés azuis com uma conivência muito junta e uns olhos piscos muito interessados por trás de uns óculos de aro redondo encheram o vão da porta aberta. Estrôncio sentiu o coração a bombear depressa. Os indica­dores da circunstância funcionavam como se tivesse sido apanhado em flagrante. Ficou a olhar os três algo aparvalhado e esperando que alguém dissesse alguma coisa. Mas man­tinham­se mudos, ou melhor, silenciosos. Num silêncio de censura que se lia no bigode de um deles, murmurando cuidados ao ouvido do outro. Estrôncio percebeu que não estavam apenas a comentar o holograma rasgado porque o segundo revisor observava­o com insistência. Olhou também ele o holograma, desesperadamente, a ver se via o que os outros poderiam estar a ver. Mas estava tudo exacta ­ mente igual.

Pressionado, e algo intimidado com aquele comportamen­to, levantou­se tremulento com a intenção de pedir esclareci­mentos. Supunha já que havia infringido alguma norma desconhe cida. Mas ao levantar­se precipitou a saída dos indiví­duos. Fecharam rapidamente a porta deslizante e afastaram­se.

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Por automa tismo deslocou­se até à porta e acabou por não ter empenho para a abrir.

Aquele episódio deixou­o nervoso. Voltou a sentar­se junto da sua mala. Conferiu mais demoradamente os pertences no bolso lateral da mala. E incomodou­se, dedicadamente, com o nariz. Teve receio que aquele compartimento não estivesse tão vazio assim. Alguma coisa de errado deveria existir. Nem se sentava nem queria ficar em pé. Voltou a olhar o holograma cada vez com menos neutralidade.

Pegou no jornal apenas para se ocupar com alguma coisa que o desviasse de pensar no holograma. Sentou­se contrariado, cruzando a perna, e começou a espalhar agressivamente o olhar pelas frases enrugadas do jornal. Mas a certa altura o seu olhar conseguiu detectar a palavra “hologramas” num pequeno título no fundo de uma das últimas páginas. Uma compulsão inevitável levou­o a ler o artigo. A meio já estava branco. Bem, primeiro gelou até à estalactite por dentro e só depois ficou branco. E imóvel. Não ousou mais olhar o holograma. Não ousou sequer mexer o jornal. Mas apesar da imobilização instintiva, o cérebro chiava de vertiginoso trabalho interpretativo e planificador. Ficou largos minutos assim. Mas depois de repetidas vezes o cérebro debitar sempre a mesma solução ao considerar todos os pró e todos os contra, largou lentamente o jornal em cima do banco, esboçou gestos inacabados que o colocaram em pé ao fim de bastante tempo e veio, eventualmente, a sair do compartimento.