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Segredos, preces e confissões: uma narrativa de silêncios e sussurros1
Denise Moraes Pimenta (USP/SP)
Figura I: Breve prosa com Deus
1 Trabalho apresentado na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil
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Resumo
Este texto baseia-se em um trabalho de campo realizado no final do mês de
março e o início do mês de abril de 2010, na cidade de São João Del Rei - MG, que
intentava estudar a espetacularidade da Semana Santa. Tendo como cenário a suntuosa
cidade barroca e as imponentes igrejas, ocorriam as intermináveis missas e sermões,
grandiosas e performáticas procissões, além é claro das encenações da via crucis.
Apesar do impacto causado por este grande, trágico e suntuoso espetáculo, o olhar foi
desviado para o corpo, os olhos e lábios dos fiéis. Pois, paralelamente ao espetáculo da
Semana Santa, ocorria outro espetáculo: o próprio teatro do silêncio e dos sussurros.
Seguindo uma reflexão de Crapanzo, atentei-me para a lacuna, o intervalo, o silêncio do
fiel que reza, aquele que conversa baixo com o Cristo e com os santos. Desviei meu
olhar para as preces silenciosas e para as confissões sussurradas aos padres. Fixei minha
atenção aos corpos, que transfigurados pela fé, “percorriam” horas em pé ou longos
minutos ajoelhados, corpo de quem crê, corpo que crê. Teatro que saltou aos olhos por
sua força e por ser de certa forma algo secreto, preces que eu não podia e não conseguia
ouvir, mas que formavam uma narrativa de fé, tendo os santos e o próprio Cristo como
interlocutores privilegiados. Assim, partindo de uma leitura de Mauss, quem muito
entendeu sobre preces e hábitos dos corpos, entende-se aqui que seja fundamental
debruçar-se sobre a narrativa do espetáculo silencioso da fé.
Palavras-chave: silêncio, preces e narrativa.
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O poema jamais alcançará a sublimidade do silêncio(Carlos Drummond de Andrade)
SilêncioHá um grande silêncio que está sempre à escuta.
E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hojeaté a tua dúvida metafísica, Hamleto!
E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, falao silêncio escuta...
e cala.(Mario Quintana)
...Escolhe teu diálogoe tua melhor palavra
ou teu melhor silêncioMesmo no silêncio e com o silêncio
dialogamos.(Carlos Drummond de Andrade)
Parte I: Mercurius venit! [Passou um anjo!]
Mesmo que se calassem as matracas, que parassem de dobrar os sinos, que
cessassem os passos das procissões nas ruas de pedra de São João Del Rei, ainda sim
haveria barulho: o ensurdecedor silêncio daquele que reza sozinho na penumbra da
Igreja antes do sermão, daquele que arrastando seus dedos repetidamente nas contas do
rosário faz a vigília ao Santíssimo Sacramento ou daquele que ajoelhado permanece de
olhos fechados depois da comunhão. Ou ainda, o silêncio daqueles – que de olhos
arregalados – tocam as vestes dos santos, erguem as mãos para o alto em busca de
algum tipo de infinito, talvez o céu, e logo depois roubam rosas e arnicas dos altares.
Não seria possível também fazer ouvidos moucos a um “zumzumzum” insistente e
quase inaudível daqueles que conversam em tons de sussurro com os santos e com o
próprio Deus, estes que são interlocutores privilegiados desse diálogo de silêncio e
murmúrio. Há ainda o silêncio das ladeiras após a ida dos fiéis para casa, e
principalmente, o momento da madrugada quando os sinos tocam, na completa
escuridão e no meio do sono, no meio do silêncio. E o mais grave dos silêncios, a
ausência desesperada, o sábado santo, quando todas as portas das Igrejas se fecham,
toda a cidade é embalada por um silêncio de ressaca – de tristeza – afinal, o Cristo está
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morto. Existe apenas a portinhola da Igreja do Pilar aberta, onde o silêncio é mais alto,
lugar da vigília do Santíssimo. Durante a Semana Santa em todo barulho há um
quantum de quietude e toda ausência de som é constituída por milhares de ruídos, é a
Sonata do Silêncio, esta composta por quantos sons exista no mundo, dentre eles as
orações e as confissões. E foi justamente este diálogo mudo e estes sussurros que me
chamaram a atenção na Semana Santa da cidade mineira de São João Del Rei.
Chegando à cidade, tive minha primeira experiência com o silêncio, a confissão
coletiva, em meio a muitas pessoas, muitos padres, tendo a Igreja do Rosário como
cenário sombrio (luzes apagadas e portas fechadas). Em fila, cada um esperava sua vez
para ir ter com o padre. Uma fila de confessionários, inúmeros penitentes ajoelhados,
um grande barulho sussurrado, barulho incompreensível. Sons entrecortados, ruídos
prolongados, pecados e segredos atravessados. A cadência do silêncio era desenhada
por palavras de confissão, por orações de arrependimento, penitência. Então, percebi
que o silêncio era uma melodia com letra de preces baixas, pecados secretos, conversas
murmuradas ao pé do ouvido dos santos.
Na intenção de observar a encenação da Semana Santa (final do mês de março e
início do mês de abril do ano de 2010) na cidade barroca de São João, sua suntuosa
espetacularidade, foi então que me deparei com outro tipo de teatralidade: o teatro em
voz baixa, o teatro sussurrado, o teatro quase mudo, poderia talvez dizer Cassiano
Sydow Qulici: o teatro do silêncio. Ou melhor, a própria coxia do espetáculo. Esta que é
a margem, pois enquanto ocorria o majestoso espetáculo da Semana Santa narrado e
encenado pela Igreja Católica, tendo como pano de fundo a cidade barroca, ocorria nas
beiradas – dos altares, das escadas – a performance das pessoas comuns, aqui serão
chamados de fiéis ou crentes, aquelas experiências vividas nos bastidores. De fato que
estas encenações e performances não acontecem independentemente, pelo contrário,
elas se entrecruzam, o crente que reza em silêncio é personagem e platéia da encenação
da Igreja, e esta é cenário e marcador rítmico dos crentes.
Pode-se dizer que esta reflexão está muito mais preocupada com os ritmos do
mundo do que propriamente com a Semana Santa. Mas, foi a partir da observação do
ritual religioso que os ouvidos se atentaram para o ritmo do mundo, que comporta os
silêncios, os ruídos e as músicas do sagrado e também do profano, em um continum ora
ordenado ora caótico. O presente texto torna-se quase impossível no exato momento em
que percebo do que se trata o próprio texto: música, ritmo, silêncio, cadência, sons,
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ruídos. Algo complicado para leigos, não-músicos. Porém, quiçá o empreendimento
obtenha o mínimo de sucesso na medida em que Alexandre Waugh aponta em seu livro:
“Jéssica: Nunca fico alegre quando ouço música suave. Lorenzo: Isso é porque teus espíritos estão atentos.” (William Shakespeare, O Mercador de Veneza, acto V, cena 1)
Lorenzo resume a arte de ouvir em O Mercador de Veneza de Shakespeare indicando que ela requer espíritos atentos e não apenas um ouvido penetrante. Toda a gente é capaz de ouvir atentamente mas como é que se faz para manter os espíritos atentos? E afinal, o que são espíritos atentos? A imaginação é o que Lorenzo entende aqui por espíritos – não a imaginação de palavras e histórias, mas a imaginação de ambientes e sentimentos. Só permitindo que a nossa imaginação se mova livremente é que a grande música será capaz de fazer sentir seu efeito. Lorenzo termina o seu discurso com um aviso contra aqueles que não apreciam música: “As acções do seu espírito são tão sombrias como a noite – Não dês confiança a um homem desses.” (WAUGH, 2.000).
Desta forma, posso dizer que meus espíritos estavam atentos na medida em que
os silêncios, sussurros, orações faladas coletivamente ou sentidas de forma calada e toda
forma de música sacra (com seus coros e cravos) tomaram minha audição e corpo. E é
seguindo Vincent Crapanzano que percebi a Cena (realidades e irrealidades), a
importância dos horizontes imaginativos e a importância das lacunas, dos intervalos
(ma), eles mesmos constituintes do grande teatro que estava a minha frente tendo como
cenário a cidade barroca e suas Igrejas (e botecos); como personagens os seguidores da
Semana Santa e os santos/Cristo em estado da Paixão. Assim, de acordo com Quilici, o
silêncio, que se encontra nas bordas da linguagem, representa uma experiência central
na mística cristã como nas tradições orientais. A experiência do silêncio possui uma
relação de intimidade com a experiência do absoluto. E neste silêncio, é o corpo que se
comunica, corpo de quem crê, corpo que crê. O corpo assim é instrumento essencial
para a construção imagética e expressiva da cena/ encenação. Meyerhold, já na
primeira fase do seu trabalho, afirmava que “as palavras não dizem tudo” e que “a
verdade das relações humanas está determinada pelos gestos, poses, olhares e
silêncios”(grifo meu). (QUILICI, 2005). O corpo tem a capacidade de expressar as mais
profundas motivações’, intenções e ações das personagens. Sendo pois o corpo que reza,
que ora em silêncio, um emissor de signos, um corpo que comunica com seus
interlocutores (Deus e os santos) e também comunica aos espectadores da encenação. E
para quem assiste/observa, no caso o pesquisador/eu, as imagens silenciosas são – nas
palavras de Quillici – incompletas e sugestivas, levando o espectador a um esforço
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imaginativo. Sobre o que conversam os fiéis e Deus? Como se dá este diálogo calado?
Como se processa essa oração? Impossível compreender este cenário sem entender que
para isso são fundamentais as imagens e a imaginação, imprescindível se apropriar da
Cena nos ternos de Crapanzano, ou seja, uma junção de realidades e irrealidades.
Portanto, o silêncio se apresenta nas fissuras da linguagem como algo potente e
intenso, os instantes de silêncio durante esta narrativa de fé poderiam ser tidos como os
delicados nervos da linguagem, terminações sensíveis cheias de potência. E ao longo
deste processo de observação e de escritura tendo a mudar e a achar que o silêncio não é
em si uma lacuna, mas mais propriamente uma nervura da linguagem que apresenta
também suas retóricas, estas que estão diretamente associadas à linguagem dos gestos
(mesmo quando estes são tensos, travados e recalcados, com retidão). Penso que talvez
seja necessário ampliar o entendimento do silêncio dentro da linguagem e da narrativa.
O silêncio não deixa de ser margem, mas agora não mais como lacuna e sim como
nervura. Silêncio que enuncia e anuncia, que tece sua própria retórica (com ajuda dos
gestos, que compõem a estética do silêncio) e também anuncia a narrativa falada, ou
anuncia ainda mais silêncio. Este se faz essencial nas transições do ordinário para o
extraordinário e vice-versa (chegando até a confundi-los). Portanto, não consigo vê-lo –
não mais - como lacuna e sim como terminação nervosa e delicada. Impossível mesmo é
entender o silêncio como ausência, pelo contrário, este é pura presença no espaço,
matéria silenciosa.
E é através do silêncio, desta presença no tempo e no espaço, que se pode ser
percebido os “cochichos” do mundo, só através do silêncio podem ser ouvido os
sussurros e sentidas as sensações de mistério e segredo. Dessa forma, os murmúrios das
confissões na Semana Santa, as sensações de segredo e mistério, permeadas por pecados
escondidos e calados são percebidas em sua profundidade pelo escandaloso silêncio. Só
este pode revelar os delicados, preciosos, perigosos e secretos ruídos do mundo (ruídos
quase mudos da fé).
Ele (o silêncio) se torna a condição para a escuta da divindade, mas também da natureza, e do próprio corpo. Ah, diante de Deus minha alma vibra de silêncio” (Salmo 62,2). E do corpo à natureza, o eremita, o anacoreta, o caçador: todos estão com os ouvidos atentos ao espírito do campo e ao interior do corpo, como sugerem as descrições de Michel Serres. “No silêncio, reencontramos os sons do corpo e os reconhecemos como nossos, escutando-os, finalmente”. Por outro lado, é o anjo que sussurra aos ouvidos de Mateus no quadro de Rembrandt, ele é a sua inspiração. Assim, o silêncio também faz ouvir os sons que denunciam sua proximidade, a contundência do mistério, sua vitalidade, a enunciação do
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segredo: magnetismo de sentido que, deixando-se levar por uma dose de suspeita, libera o acesso à vivência de seu enigma e de seu delicado universo. O murmúrio e o sussurro só ganham peso com o trabalho do silêncio que, depurando a sensibilidade, nos faz submergir num estado incomparável de disposição sensível. (ALDROVANDI, 2008).
Lembro-me aqui do compositor John Cage, que em 1952, produziu a peça
musical 4’33’’ sem nem uma nota sequer. O autor afirma que dentre as experiências
sonoras existentes, a que mais gosta é a experiência do silêncio. Esta que permite a
confluência e confusão entre duas dimensões: o tempo e o espaço. Sublinha também
que é através do silêncio que podem ser ouvidos os sons, ruídos do mundo, da vida.
O feto cresce no útero ao som do coração da mãe
(...)o ritmo está na base de todas as percepções.
(Wisnik)
Depois do silêncio, o que mais se aproxima
de expressar o inexprimível é a música.(Aldous Huxley)
A música é o verbo do futuro.(Victor Hugo)
Ainda Parte I: Ordenando o mundo ou um pouco de música
José Miguel Wisnik se dedica a fazer uma antropologia da música, do som;
antropologia do ruído. Algo extremamente interessante e enriquecedor na medida em
que proporciona uma compreensão mais ampla sobre as sensibilidades do mundo. De
acordo com Rose Satiko, Wisnik aproxima música e corpo, pulsação musical e pulso
sanguíneo e respiração.
Wisnik lembra ainda que o som é impalpável e invisível, características que permitem a atribuição das propriedades do espírito à música: o som torna-se "o elo comunicante do mundo material com o espiritual e invisível". Daí o uso
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mágico do som em diversas culturas. Para Wisnik, a música constitui-se no "jogo entre som e ruído". Por isso propõe uma "antropologia do ruído". Ruído: "o som do mundo", "freqüências irregulares e caóticas com as quais a música trabalha para extrair-lhes uma ordenação". Um único som afinado, música: ordenação do mundo, acordo que projeta o fundamento do universo social. (HIKIJI, 2000).
Acredito que talvez o som seja o englobante, povoado por ruídos e músicas (e
também silêncio). E seguindo Lévi-Strauss e Wisnik, poderia dizer que os ruídos
estariam para a natureza como a música estaria para a cultura. Assim, o ruído
representaria o caos e a música o princípio ordenador. Para Lévi-Strauss a música faz
parte da organização do mundo sensível, assim o autor percebe que há uma
aproximação estrutural entre a música e a narrativa dos mitos. Dessa maneira, o autor se
utiliza da música para refletir sobre os mitos, ou seja, a primeira se mostra como potente
instrumento para a compreensão da narrativa mítica e elemento importante em seu uso
ritual. A música como uma forma de comunicação ordenada onde emissor e receptor se
misturam, interpenetram-se, pela e através da força e tensão da mesma. Mostra o autor
que a música é um vigoroso instrumento para propor soluções e responder questões,
instrumento de fôlego e viço. Sendo assim, a música é utilizada por Lévi-Strauss como
um instrumento metodológico para a compreensão dos mitos.
O que não se distancia da discussão sobre a prece na medida em que Marcel
Mauss irá dizer que ela se aproxima do mito. Assim, a prece enquanto narrativa se
aproxima da música enquanto estrutura para o entendimento de uma narrativa e como a
própria narrativa de louvor. Completo ainda com a fala do compositor Igor Stravinski
sobre a relação da música, da prece e da Igreja. Ou seja, os coros que cantam também
oram e louvam ao Senhor:
A Igreja sabia o que o Salmista sabia: a música louva ao Senhor. A música é tão ou mais capaz de louvá-lo do que o edifício da igreja com toda sua decoração; é o maior ornamento da Igreja. Glória, glória, glória; a música do molete de Orlando de Lassus louva Deus, e essa “glória” especial não existe na música secular. E não apenas a glória – penso nela primeiro porque a glória do Laudate, o júbilo da Doxologia estão extintas – mas a oração, e a penitência, e muitas práticas não podem ser secularizadas. (STRAVINSKI, CRAFT, 1984).
Não sei se Stravinski teria razão no que tange a questão da secularização, mas -
sem dúvidas – tem razão no que tange ao poder de louvar da música. Ou seja, a música
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como narrativa religiosa. E além, a música como instrumento (metodológico, rítimico)
para a compreensão de diversos tipos de narrativa religiosa.
No princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus,
e o Verbo era Deus.(JO 1:1)
No descomeço era o verbo.Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá,Onde a criança diz: eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar nãoFunciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo,Ele delira.
E pois.Em poesia que é a voz do poeta,
Que é a vozDe da fazer nascimentos
- O verbo tem que pegar delírio.(Manoel de Barros)
Parte II: Verbo
Diz Marcel Mauss: “a oração é uma palavra”, e esta palavra poética e plástica –
que é a prece – é uma linguagem que pensa e age, tem meta e efeito, eficácia simbólica.
Como afirma o autor, ela é um dos fenômenos centrais da vida religiosa, participando
ao mesmo tempo do rito e da crença. A prece é uma narrativa religiosa, enunciação de
repetição, cura e consolo pela palavra. A seqüência de palavras que adoram, consagram.
Ela ainda conjuga mito e rito, pois, a prece – de acordo com Mauss – é plena de sentido
como o próprio mito.
Há dois movimentos importantes: a prece pode ser tanto embalada pelo silêncio
como pela música. Que a música seja entendida aqui como ordenação. Dessa maneira,
faz-se importante voltar-se para uma certa história da prece, pois
Ela tem uma história maravilhosa: partindo de baixo, elevou-se, aos poucos, até os cumes da vida religiosa. Infinitamente flexível, revestiu as formas mais variadas, sucessivamente adorativa e constrangedora, humilde e ameaçadora,
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seca e abundante em imagens, imutável e variável, mecânica e mental. (MAUSS, 1981).
A oração – primeiramente – encontrava-se apenas no campo do coletivo, do
público. A prece estava ligada às práticas religiosas coletivas, voltada para as atividades
mecânicas, corporais. Atitude que deu lugar a um processo de espiritualização
individualizada, ligado à alma.
Estes dois processos são particularmente marcantes na prece. Ela foi um dos melhores agentes desta dupla evolução. No começo totalmente mecânica, agindo só por meio de sons proferidos, acabou por ser totalmente mental e interior, depois de ter concedido apenas uma parte mínima ao pensamento, acabou por não ser mais do que pensamento e efusão da alma. No início estritamente coletiva, dita em comum ou ao menos segundo formas rigorosamente fixadas para o grupo religioso, algumas vezes até mesmo proibida, torna-se o domínio da livre conversação do indivíduo com Deus. (MAUSS, 1981).
Tal fato só se deu desta maneira pelo fato da prece ser de natureza oral, desta
forma maleável, sujeita às mais diversas mudanças. De acordo com Mauss, sendo a
oração uma palavra, ela encontra-se próxima ao pensamento, podendo assim ocorrer a
transposição da prece como expressão coletiva para a prece enquanto expressão
individual. E como gosta de sublinhar o autor, a prece é um fenômeno social, mas que
jamais podem ser excluídos seus aspectos individuais. Importante ressaltar que mesmo
quando está no campo individual, a prece não deixa de ser um amplo fenômeno social.
Prova disso pode ser vista na hora da comunhão, quando cada fiel se recolhe –
ajoelhado – a seus pensamentos e orações de maneira reservada (com retidão) e
individualizada, mas todos estão dentro da Igreja, dentro da missa e em comunhão
silenciosa. O mesmo se dá nos diversos momentos de reflexão que existem nos sermões,
preces e reflexões silenciosas e individuais feitas por um coletivo que crê. Ressalto que
tanto como expressão individualizada ou como expressão coletiva, a oração é sempre
expressão (de palavras, pensamentos e gestos) plástica e poética. Ou seja, a função
poética e estética do momento vivido e vívido é dominante tanto nas preces silenciosas
– individualizadas – como nos sussurros/murmúrios das confissões e também das
grandes orações coletivas durante as missas e novenas, além das músicas sacras
cantadas pelo coro e acompanhada por muitos fiéis.
Justamente neste ponto, pode-se perceber a afinidade da prece e da discussão
estabelecida pelo campo da performance. Ou seja, a performance é uma possibilidade
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fértil para o estudo da oração, em seus mais variados aspectos. A performance é um ato
de comunicação que se diferencia dos demais tipos de linguagem por sua carga
expressiva, poética e plástica, destacando uma preocupação com o formato. Assim, a
performance ajuda a compreender a prece enquanto forma, o que se faz muito
importante para esta etnografia, pois esta é praticamente uma etnografia do silêncio, do
não-dito, do não-ouvido, onde o conteúdo perturba e oprime, por não poder ser tocado.
E o que fazer com o que não pode ser ouvido? O que não pode ser tocado? De qual
narrativa se (estou) está falando?
Um distúrbio nos espelhos,O mar estilhaçando seu cinza –
Amor, amor, minha estação.(Sylvia Plath)
Parte III: Contribuição (?) silenciosa para uma discussão sobre Performance
No que tange as preocupações, tenho me preocupado - nos últimos tempos –
mais amplamente com o amor (enquanto possível categoria a ser pensada e sentida) e
mais especificamente com a performance e o tempo. Categorias – será que poderia dizer
fenômenos? – que não considero desencaixadas, opostas ou distantes, pelo contrário.
Mas isto, veremos com o desenrolar das leituras ou com os idos dos meus tempos, estes
que ainda não são nem ao menos imaturos, mas prematuros, no que tange mesmo à
gestação.
É certo que o que há de muito parecido com as duas “categorias” é uma
imprecisão e a preocupação com a imprecisão. Coisas tão mal definidas, chegam a
constranger quem passa. Coisas que necessitam de um mínimo de delimitação para
serem estudadas, é certo, é já discutido. Mas é justamente na fragilidade desses cacos do
cristal que está a potência, o risco, o medo e o deslumbre. O quê incomoda porque
indefinido, é ele mesmo potência e possibilidade. Como aponta John C. Dawsey citando
Clifford Geertz:
Uma premissa se apresenta: campos emergentes freqüentemente surgem como manuscritos desbotados. A metáfora de Clifford Geertz é sugestiva. O campo da antropologia da performance pode ser lido como “um manuscrito estranho e
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desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos” (Geertz 1978:20). Mas, uma das intuições de Turner também pode sugerir uma premissa complementar: os lugares onde um texto se desmancha podem ser os mais fecundos. (DAWSEY, 2006).
O amor, mesmo que decorrente de um desenvolvimento cultural e social, não obedece à ordem social: quando aparece, ignora barreiras, despedaça-se nelas ou simplesmente as rompe. O amor é filho de ciganos, é “enfant bohème”. (MORIN, 2005).
Assim, poderia eu exagerar e dizer que se para o amor não existe nada mais
inteiro do que um coração partido, para uma pesquisa nada mais potente (mesmo que
constrangedor) do que um texto em aquarela, desbotado, quase se desmanchando. E
acrescento ao devaneio (que Bachelard tão bem entendeu): a mesma boca que ama,
narra. A narrativa (mitológica, religiosa), esta que fica mais rica e potente sendo olhada
através dos olhos da performance.
A boca não se limita somente ao que come, absorve, dá (lamber, salivar). É também a via de passagem da respiração, que corresponde a uma concepção antropológica da alma (...) a boca é algo verdadeiramente extraordinário, algo aberto para o mitológico e o fisiológico. Esquecemos que esta boca fala, e o que há de muito belo é que as palavras de amor são seguidas de silêncios de amor. (MORIN, 2005).
Falando então em narrativa, penso, o que poderia a prece (enquanto silêncio e
música) enquanto narrativa, linguagem presente no mundo, ajudar a antropologia da
performance e o que esta última poderia auxiliar e potencializar o estudo etnográfico da
prece? A prece sendo um fenômeno maleável, flexível e que se acomodou das mais
variadas formas ao longo dos tempos pode mostrar à antropologia da performance o
poder da mutação, da transição. Pois assim como a performance, também a prece sofreu
por sua inconstância e falta de delimitação, sua não-fixidez e falta de conceitualização
rígida, o que foi bem apontado por Mauss (o autor fala da falta de estudos e referências
sobre o tema), e por sua complexidade poderia talvez ter levado o autor a deixar tal
reflexão inconclusa, mas isto é uma das especulações possíveis. A prece ensina à
performance as possibilidades e as potências da indeterminação do que é impalpável: do
que é falado e silenciado, do que é ouvido e não-ouvido, do que pode ser visto e
escutado, do que só pode ser visto, ou ainda do que só pode ser sentido e imaginado. E
como se daria o estudo deste impalpável?
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Acredito que o melhor formato de se estudar a prece é exatamente através das
lentes da antropologia da performance, que se preocupa muito com a forma da
expressão. Assim, como a prece pode se apresentar nos mais variados formatos, rico
seria se a concentração se voltasse para as formas expressivas das prece/oração. E a
antropologia da performance se mostra preciosa para tratar a experiência de estar no
mundo, algo impalpável. Dessa forma, tratar a experiência religiosa e a narrativa da
prece como multisensorial, sinestésica, é uma das potencialidades deste tipo de
antropologia. Pois, a oração – mais precisamente no caso da Semana Santa na cidade de
São João Del Rei – está envolta em cores (vestes e mantos roxos da Paixão do Cristo),
sons (músicas, ruídos e silêncios), cheiros (incensos de mirra), corpos que se ajoelham,
olhos que se fecham, sabores (hóstias que não podem ser mastigadas), bocas que narram
em silêncio ou em voz alta. Portanto, a antropologia da performance ajuda no
entendimento de que os sentidos, sentimentos, a imaginação e o lúdico estão presentes
naquele momento e devem ser utilizados na escritura de um texto que trata da prece e
das formas expressivas, pois só assim não se correrá o risco completo de se perder o
impalpável das experiências. E é justamente por isso que teço esta escritura em primeira
pessoa, pois como diz Lévi-Strauss, quando se fala de música, tanto compositores como
ouvintes silenciosos compõem, dessa forma, esta hi(e)stória é também minha e sobre
mim.
Optei aqui por um entendimento da prece como narrativa sonora de silêncios e
música, mas poderia ter sido vista também como uma narrativa imagética, do olfato, etc.
Pois na verdade, ela é tudo isso, multifacetada, um mosaico partido e inteiramente
colado. Mas, como o silêncio chamou tanta atenção no momento do campo, intentei o
esforço de mostrar a existência de uma narrativa silenciosa, que pode ser entendida a
partir da reflexão dos ritmos do mundo, usando a música e o próprio silêncio como
instrumentos metodológicos. Pois aqui não se trata de correr atrás do fiel e tecer
perguntas sobre suas preces, aqui se trata de ouvir o silêncio dos crentes e, no máximo,
ouvir os sussurros das confissões e os crentes acompanhando o coral da Igreja.
Pensei bastante em Lévi-Strauss, pois talvez também para a prece – justo por sua
proximidade com o mito - esta reflexão a partir da música e principalmente através do
silêncio e dos ruídos poderia acontecer. Talvez não se tenha obtido sucesso na
empreitada, mas o que se pretendi foi a sugestão de como se poderia fazer uma
etnografia de uma narrativa do não-ouvido, uma narrativa silenciosa, impalpável.
Primou-se pelo exercício de refletir sobre o comum, mas que em campo causou total e
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completo estranhamento e fascínio. Labirintos de sedução e medo: as coisas
impalpáveis e cheias de emoção (a prece, o silêncio, o amor...).
Tudo tem seu tempo, há um momento oportuno
para cada empreendimento debaixo do céu.(Eclesiastes)
Parte IV: A prece no tempo e o tempo da prece
O silêncio, a prece silenciosa faz pensar o tempo. Parece-me que aquela cidade
está sempre em estado (perpétuo) de cenário religioso, a impressão que se tem é que
São João Del Rei nunca foi outra coisa que não o palco do ritual católico, do
extraordinário. O extraordinário parece permanente, perene e não intermitente. A
impressão que se tem é que os tempos se invertem, ou melhor, se confundem. O
extraordinário ganha ares de ordinário. O que parece, é que o tempo, que não aquele (o
extraordinário), é que é intervalo. O cotidiano, o tempo comum, vira extraordinário,
pois o tempo Kairótico (do coração, da intensidade e da potencialidade) se sobrepõe ao
tempo cronológico. Quando o padre diz durante o sermão que as orações e as preces
têm que ser levadas para o cotidiano e que o espírito da Paixão do Cristo (da Semana
Santa) deve ser levado para a vida comum, penso então que o extraordinário da fé é
perene na vida (vida comum) de quem crê. Ou seja, como a batida de um coração, o
tempo kairótico seria o oficial, aquele que acaba, mas não acaba, é levado para o tempo
de Chronos. Como o próprio coração,o tempo teria seus picos, que seriam os rituais/o
tempo do ritual, mas não haveria outro tempo que não o tempo ritual, o tempo do
coração e da reza se sobreporia ao tempo cronológico, ou melhor, sustentaria com os
pilares da crença o duro tempo mundano e do fazer cotidiano. É esta a impressão que se
tem quando se está imerso naquela cidade, naquelas palavras, naquele silêncio.
Narrativas (preces) que têm a força para mudar a lógica do titã do tempo, Chronos.
Dando lugar a uma lógica do Kairos.
Um extraordinário cotidiano e cotidiano extraordinário. A questão talvez seja essa: o cotidiano não poderia ser tão ou mais espantoso quanto o
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extraordinário? Nesse caso, talvez seja preciso articular as abordagens de Erving Goffman, que se interessa pelo teatro da vida cotidiana, e de Victor Turner, que procura captar os momentos de interrupção, ou meta-teatro, para se falar de um meta-teatro cotidiano. Walter Benjamin escreve: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ é a regra” (1985b:226). (DAWSEY, 2006).
A regra aqui seria o tempo kairótico, mesmo sendo exceção.
Figura II: Silêncio em vermelho
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Parte V: Bibliografia
ALDROVANDI, Leonardo. Salvatore Sciarrino e a dinâmica do silêncio. XVIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação (ANPPOM). Salvador, 2008.
DAWSEY, John Cowart. Turner, Benjamin e Antropologia da Performance: O lugar olhado (e ouvido) das coisas In. Campos, 2006.
DURÃO, Fábio Akcelrud. Duas formas de se ouvir o silêncio: revisitando 4'33". In. Kriterion vol.46 no.112 Belo Horizonte Dec. 2005.
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FIGURA I: Breve prosa com Deus, Semana Santa, 2010, por Denise Pimenta.
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FIGURA II: Silêncio em vermelho, Semana Santa, 2010, por Denise Pimenta.
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