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Simpósio 30 – Tráfico, Escravidão e Alforria – Séculos XVII - XIX
1 - Senhores e escravos na formação de uma sociedade escravista no
Alto Sertão da Bahia, termo de Monte Alto, século XIX.
Doutoranda: Universidade Federal da Bahia
(Bolsista da FAPESB)
Email: rosamirandagbi@gmail.com
Orientadora:Mariade Fátima Novaes Pires Rosângela Figueiredo Miranda1.
(...) A exportação de gados, algodão e couros era uma esplêndida fonte de
riqueza, os fazendeiros acumulavam grandes fortunas e possuíram
vivendas quase principescas. Aquilo era um paraíso e nadava-se em
fartura. A libertação dos escravos e a enorme emigração para São Paulo
abalaram muito essas fortunas, as terras foram retalhadas, muitas casas
foram derribadas, como a do Canabrabal, que era um verdadeiro palácio,
sendo dispersos os materiais para construção de casas modestas de
pequenos lavradores e outras obras de somenos importância. (GUMES,
1928, P.159)2
O trecho acima foi retirado do livro – Os Analfabetos - de João Gumes, escritor e
jornalista do alto sertão da Bahia, em fins do século XIX, e primeira década do século
XX. Nesse livro o autor descreve as riquezas e fortunas acumuladas pelos fazendeiros
do alto sertão da Bahia, em especial, as fazendas da Villa de Monte Alto, cuja ênfase era
a Fazenda Canabrabal.3 De fato, a fazenda Canabrabal, constituía uma opulência entre
tantas outras fazendas conforme atestam os inventários encontrados no Fórum da cidade
de Palmas de Monte. A referida fazenda contava, em 1847, com 48 escravos sendo que
a maioria deles foi declarada como de origem africana.
Entre os anos de 1790 e ao longo século XIX, Monte Alto passou por uma dinâmica
interna e de integração socioeconômico a centros mais avançados de comércio como
Recôncavo da Bahia, Salvador, província de Minas Gerais entre outros lugares. Os
trânsitos de comércio foram favorecidos com o desenvolvimento de atividades rentáveis
como o cultivo do algodão e da pecuária. Essas duas atividades constituíram os
principais elementos de riquezas da região, à base do trabalho cativo. Assim, desde o
século XVII, aquelas vastas terras do sertão eram tomadas por criação de gados, que
serviam de abastecimento às zonas produtoras do açúcar no recôncavo da Bahia,
fornecimento do couro para transportar os rolos de fumo e mais tarde para as regiões
das Minas Gerais com a exploração do ouro.4 Os inventários do termo de Monte Alto,
entre 1810 a 1880, sinalizaram à existência de ricas fazendas com vista para o
desenvolvimento da pecuária e do cultivo de algodão destinadas ao mercado interno e
externo, assim como o desenvolvimento da policultura. As pequenas fazendas e sítios
também integravam a dinâmica do comércio interno e subsidiavam o abastecimento da
região.
O contexto do século XIX possibilitou à região mudanças econômicas e sociais,
levando, como em outros lugares da coroa-luso brasileira, à reescravização de africanos
e a uma reestruturação da reprodução endógena, o que favoreceu dinamismo nas
relações de convivência entre senhores e escravos, forros e livres. As fontes
documentais do termo de Monte Alto mostram as tensões e acordos, bem como os
casamentos de cativos com livres e entre si e as ocupações distintas nas atividades
desempenhadas pelos cativos. Tais fontes permitem-nos compreender parte da vida
social dos escravos no cotidiano das fazendas e na busca pela liberdade. O documento a
seguir evidencia situações de experiências dos cativos nas relações com seus senhores,
com forros e libertos.
Diz Faustino Mor-ª Castro, tutor de suas sobrinhas, filhas do Cap.ᵐᵒ ͬ
Joaquim José Barbosa q’ havendo tocado em legítima de sua tutellada
de nome Elvira uma escr-ª de nome Nazária, já velha, e avaliada por
trezentos e cinquenta mil reis, sucede que o marido da referida escr-ª a
queira liberta, offerecendo em troca da liberdade dela uma outra escr-ª
de nome Marcolina, boa cozinheira e lavadeira sem vício algum, e q’
uma semi troca seja vantajosa p-ª a tutellada do suplicante em rasão da
escrava Nazária, além de velha ter ataque de pensamento que lhe priva
prestar os serviços, e a Marcolina dada em troca ser sem ataques, e
estar pela idade em estado de parir, e requer que o Juiz d’ Órphãos
deste termo a anos esteja ans- ͤ (sic.) no de Carinhanha, vem o Supp. ͤ
requerer a V.S. como provedor em correção seja serv.ᵒ admitir a dita
troca e dar licença ao Supp.ͤ para poder fazer, visto q’ della resulta
vantagem a sua tutellada e ao mesmo tempo em favor da liberdade. É
isso.
Villa de Monte Alto, 05 de julho de 1851.5
A petição encontra-se no inventário do Capitão Joaquim José Barbosa, datado em 1845.
Trata-se de um rico proprietário da fazenda Lameirão, no século XIX, termo de Monte
Alto, no Alto Sertão da Bahia. Assim como em outras fazendas da região, aquele senhor
possuía sob seus domínios quantidade significativo de escravos, totalizando 117 cativos
para aquele período. As avaliações de seus bens resultaram em um montante de oitenta
e dois contos e duzentos e noventa e seis mil e quinhentos e trinta reis (82: 296$530).
Entre os bens que possuía os itens escravo, gado vacum, cavalar e negócios
relacionados a dívidas ativas se destacavam no montante do patrimônio adquirido.
Nazária era uma das escravas daquele rico fazendeiro e após o falecimento de seu
senhor presenciou o inventário dos espólios e a partilha dos bens entre os herdeiros.
Casada com o liberto Francisco, cabra, vaqueiro da mesma fazenda, com 50 anos de
idade e doente conforme consta na lista nominativa das escravarias daquele senhor,
pleiteou por intermédio de seu marido a alforria no momento da partilha dos bens do
finado. Consta no livro de casamento da freguesia de Monte Alto que, Francisco era
natural de Rio de Contas e Nazária, natural de Monte Alto, eles confirmaram a união
estável em 1849, na Matriz de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens de Monte
Alto.6
O liberto Francisco, companheiro conjugal de Nazária, provavelmente gozava de
condição privilegiada como vaqueiro liberto e possuidor de alguns escravos, como a
cativa Marcolina, que a ofereceu em troca da alforria de sua mulher.7 Francisco
aproveitou o momento oportuno de partilha do espólio para requerer a compra da
liberdade de sua esposa, porque não queria vê-la pertencer a outro senhor e morar em
lugar distante da fazenda, pondo em risco aquela união.
O processo da partilha dos bens inventariados levara vinte anos, sendo concluído em
1865, e não consta se o pedido da barganha chegou a ser realizado. Provavelmente o
juiz deferiu a petição requerida, visto que havia consentimento entre as partes e o
curador alegava vantagens na troca das escravas. Mas o que está em jogo na petição
eram as possíveis relações entre senhor, escravos e libertos, de forma que os cativos
aproveitavam de situações complexas como o falecimento de seus senhores e conflitos
entre herdeiros para estabelecer negociações no intuito de angariar algumas vantagens
para si.
Aliás, este é um aspecto bastante comum nos inventários de grandes senhores do termo
de Monte Alto, no Alto Sertão da Bahia. Os momentos em que senhores faleciam
geravam constantes demandas por anos a fio entre os herdeiros e eram no desenrolar
daquelas ações de partilha que os cativos encontravam espaços propícios para adquirir
algumas vantagens como a alforria, os casamentos e a ascensão em ocupações exercidas
nas fazendas. Sobre a mobilidade social entre os escravos, o historiador João José Reis
(2016, p 37-38), em um artigo publicado e intitulado – De escravo a rico liberto: A
trajetória do africano Manoel Joaquim Ricardo na Bahia oitocentista - enfatiza que
muitos escravos foram proprietários de outros escravos no Brasil, tanto no mundo
urbano, quanto no âmbito rural.8 Ao descrever e analisar minuciosamente a vida do
escravo Manoel Joaquim Ricardo, que se tornou rico e liberto na Bahia, na primeira
metade do século XIX, o autor chama à atenção para os inúmeros casos de cativos que
alcançaram a ascensão social e foram possuidores de outros escravos. Sobre esse
aspecto, a historiografia brasileira vem demonstrando em muitos estudos recentes e Reis
sistematiza com exemplos de várias pesquisas que também dispõem de dados
semelhantes, a despeito das pesquisas realizadas na Bahia, sobretudo no Alto Sertão e
outros lugares do Brasil.
No entanto, Reis sinaliza que a prática de escravos adquirirem outros escravos e a
usarem como moeda de troca para a compra da alforria perpassava por um aspecto
importante para chegar a essa condição. Nesse caso as relações estabelecidas entre
senhores e escravos eram fundamentais nesse processo de ascensão social. Salienta o
autor:
Atente-se que os senhores tinham direitos a impedir que seus escravos
adquirissem outros cativos ou, uma vez permitidos, expropria-los.
Isso, aliás, valia para qualquer propriedade: imóveis, colheitas, gado,
dinheiro, escravos. Portanto, posso razoavelmente concluir que o
reconhecimento da posse de escravos por escravos dependia da
negociação direta entre estes e seus senhores. Em troca os senhores
livres exigiam lealdade, obediência e trabalho (ou seu eufemismo,
“bom serviços”) de seus escravos – senhores. Isso valia para
beneditinos, Guedes de Brito ou senhores comuns como os de
Salvador aqui apresentados, (2016, P 40).
Presume-se que o personagem Manoel Joaquim Ricardo, aqui estudado por Reis fugiu a
regra da dependência de seu senhor para adquirir a posse de outros escravos. O avanço
em termos de ascensão social da condição de escravo “a rico liberto” e possuidor de
muitas posses, inclusive escravos, mostra claramente a complexidade das relações
sociais estabelecidas entre senhores e cativos. E, não raro escravo burlava ou transgredia
as regras e costumes instituídos. Para o sertão da Bahia, sobretudo Monte Alto essas
relações pareciam em algumas vezes ultrapassar o plano da “convivência harmoniosa”.
Os cativos pareciam estar atentos às conjunturas locais e sabiam com astúcia organizar
mecanismos de ganhos para si e seus companheiros de senzalas.
Por se tratar de um estudo voltado para o século XIX, sobretudo na transição da crise
colonial e por todo o Império do Brasil, os escravos e senhores do termo de Monte Alto
conviveram com situações marcadas por conjunturas, como as leis de suspensão do
tráfico atlântico e as leis abolicionistas. Percebe-se que, no caso citado acima da escrava
Nazária, o momento coincidira com a suspensão do tráfico atlântico e por conta desses
fatores conjunturais no Alto Sertão, os fazendeiros de grande porte recorreram à
reprodução endógena em suas fazendas, na iminência de suprir a mão de obra na
pecuária e na agricultura, após o embargo do fornecimento de seres humanos da África
em 1850.
A leitura da petição da escrava Nazária, que deu início ao capítulo acima, sugere,
situações de experiências cotidianas enfrentadas pelos cativos frente às ambições
capitalistas de senhores que, a todo custo defendiam a manutenção da escravidão,
mesmo sobre as ameaças de cessação do tráfico atlântico. No documento, o curador
considerava vantajosa a troca proposta pelo liberto, por considerar a escrava Marcolina
dotada de “boas qualidades” como cozinheira, lavadeira e sem vício algum, além do
interesse pela reprodução natural que a escrava jovem poderia lhe proporcionar.
Não era raro encontrar casos de escravos peticionando na justiça à alforria, quando da
morte de seu senhor e partilha dos bens entre os herdeiros. Geralmente os escravos
adquiriam a alforria mediante compra, sendo poucas aquelas concedidas
incondicionalmente.
Havia as mesmas possibilidades de mobilidade social dos cativos em diferentes
propriedades de grande, médio e pequeno porte? Como a capacidade produtiva das
fazendas interferia na vida cotidiana dos escravos e nas estratégias alternativas de
mobilidade?
Dessa forma, quais os significados de ser cativo em pequenas, médias e grandes
propriedades do termo de Monte Alto? Quais as estratégias para alcançar as alforrias,
casamentos e mobilidade social? São questões dessa natureza que só poderão ser
respondidas mediante cruzamento de fontes. Os casamentos, alforrias e mobilidade
social dos escravos nas ocupações de trabalho pareciam ser mais comuns entre as
grandes fazendas. As distintas ocupações de trabalho geravam certa autonomia entre os
cativos e eram delas que muitos acumulavam pecúlios para comprar a alforria.
É importante ressaltar que, no termo da vila de Monte Alto, as relações senhor e escravo
nem sempre se pautaram por medidas conciliatórias. Os interesses antagônicos fizeram
com que os cativos construíssem intensa solidariedade, resistência individual, coletiva,
interpretações de suas ações e do que queriam para si. Sob os mecanismos de uma
política paternalista, os escravos encontraram nessa relação meios de resistir à ideologia
da naturalização da violência contra escravos, do solapamento de seus direitos e das
justificativas de inferioridade racial.9
Robert Slenes, analisando Campinas, no Sudeste do país, concluiu que vários estudos
entre São Paulo e Rio de Janeiro apontaram para um aumento de casamentos
consagrados pela igreja e maior estabilidade na vida dos escravos entre as fazendas de
grandes posses. Apesar dos estudos se estabelecerem em localidades diferenciadas e
distantes, é possível verificar alguns aspectos comparativos entre as ações dos escravos
nas respectivas fazendas de Campinas e do Alto Sertão da Bahia, principalmente sob os
aspectos de maior permanência dos cativos nas grandes fazendas e possibilidades de
negociações nas relações estabelecidas. Assim, evidencia o autor:
Segundo, sugere que normalmente as posses maiores tinham uma
força de trabalho bastante estável; isto é, que poucos escravos, uma
vez adquiridos, eram transferidos para outros proprietários por venda
ou doação, pelo menos durante a vida do senhor. (SLENES, 2011, p.
107)
Slenes (2011, p.213- 214), assinalou que os cativos enxergaram possibilidades “de tirar
da aflição e do suor uma vida melhor, mesmo que a liberdade não chegasse a se
concretizar”. Ao formar uma visão de “economia moral” juntando pequenos pecúlios,
muitos cativos aglutinaram coletivamente sua comunidade, criando culturas e
identidades próprias. Ao fazer isso impuseram “limites à exploração senhorial”.
Continua o autor que os casamentos e as roças foram marcadores importantes na vida
dos escravos. Por meio da união estável os cativos encontraram vias para alcançarem as
alforrias, pois os “laços familiares” potencializavam esforço para uma pequena
economia, principalmente quando se tratava de famílias conjugais e ou extensas.
O argumento acima não isenta perceber que na região em estudo, entre os pequenos
senhores, sobretudo aqueles que dispunham de faixa entre 1 a 10 escravos, as
negociações também não existissem. Mas esse segmento social parecia dispor de certa
autonomia na convivência cotidiana entre senhores, livres pobres e forros, pois nos
inventários post mortem de pequenos senhores, os indícios de tensões conflituosas e
ameaças aos escravos pareciam maiores do que entre os grandes senhores. A
vulnerabilidade de um senhor pequeno em desfazer de seus cativos eram constantes,
principalmente nos momentos de crises financeiras e ou quando do falecimento
deixando sempre pendências de dívidas a credores em praça pública. A morte de um
senhor de pequenas posses e que deixavam dívidas, geravam situações emblemáticas
para os cativos, pois os credores exigiam que o mínimo de patrimônio existente fosse
levado a leilão na praça da vila com a finalidade de quitação das dívidas contraídas em
vida. Sendo assim, encontramos abaixo uma situação bem específica da vulnerabilidade
em que os escravos de pequenos proprietários deparavam após a morte de seus
senhores, conforme se ver na transcrição abaixo:
Ilm. Sr. D.ᵒ ͬJuiz D. órfãos suplente
Diz João Pereira Castro Filho, credor cessionário nos bens do casal do
finado Dionísio Ramos de Oliveira, q tendo este juízo mando pôr em
Asta pública todos os bens do casal p. pagamento dos credores, sucede
q. a escrava de nome Francisca, q.ͩo foi avaliada, se achava grávida, e q
a mesma escrava tinha já parido um filho, q, esteja amamentando, e se
acha nesta villa, e o requerimento do supp.ᵒ, q V.S. digne-se mandar
proceder na avaliação do seu filho p.ª ir a praça, juntam com a mãe e
se tornam inseparável, e evitar-se assim grandes despesas com 1 nova
praça somente com ele.
É isso.
Informe o escrivão
Monte Alto, 5 de julho de 1852.
P/ a V.S. seja servido mandar q. o escrivão intime os herdeiros e
curador dos órfãos p. a avaliação do escravinho. 10
Em outras palavras, os cativos pertencentes a pequenas propriedades, conviviam lado a
lado com senhores na lida diária, e podiam até estabelecer certos vínculos solidários e
maior aproximação, mas após a morte do seu senhor a situação deles tornavam-se
complexas, principalmente se houvesse dívidas a pagar na praça. Por isso o tempo de
permanência nas mãos de um único senhor era instável, o que os dificultavam na
construção de famílias por meio dos casamentos e a conquista da alforria.
Enquanto que os inventários de grandes e médios senhores eram mais frequentes
situações litigiosas na partilha dos bens entre os herdeiros, visto que, muitos escravos
corriam o risco de apartar dos seus companheiros de senzalas, daí a incidência de ações
que lhes garantissem estabilidade ou a liberdade.
Refere-se aqui que, tanto nas grandes, médias ou pequenas propriedades do termo de
Monte Alto, existiam infindáveis práticas cotidianas de estratégias construídas pelos
escravos e não havia um modelo de negociações a ser seguido. Tampouco os cativos de
pequenas propriedades deixaram de alcançar a alforria, ou recorrer a outras frestas da
instituição para obterem ganhos na rotina da vida.
O que se observa nas grandes e médias propriedades são os investimentos maiores de
senhores nas atividades rentáveis e os escravos perceberam essa necessidade. Por isso
os senhores foram obrigados a ceder espaços de negociação que permitiu maior
mobilidade nas ocupações dos escravos, nas uniões estáveis e permanência de tempo do
que nos pequenos sítios.
O risco de morar em lugares distantes, trocar de donos, no momento das partilhas ou
dos dotes, deixava-os em estado de vigilância constante, daí perceberem espaços para
negociarem a aquisição da alforria ou outras necessidades. A demanda nas atividades
das grandes e médias fazendas promoveu a segmentação nas ocupações exercidas entre
os cativos, e disto os escravos perceberam e buscaram extrair das complexas relações
vantagens para si e sua família.
Muitos escravos compreenderam a lógica de organização das estruturas das fazendas e
buscaram vantagens próprias, de construção de espaços com autonomia e
consequentemente a concessão de uniões estáveis, de alcance da alforria e de
mobilidade social. Nem sempre as mediações, barganhas redimiam a condição escrava,
mas o fato de conseguirem alguns proveitos geravam expectativas e melhorias de vida.
Citam-se a exemplo, os escravos de outra fazenda, de nome Canabraval que, no decorrer
do século XIX, muitos cativos permaneceram naquela localidade e negociaram alforria,
casamentos e ocupações variadas de atividades11. O escravo Césário, mulato de 35 anos,
em 1835, fora avaliado por Rs. 400$000, e em 1847, em outro inventário, continuava na
fazenda e estava casado com Josefa crioula, avaliada em Rs. 500$000. Em 1866, o casal
de escravos pertencia ao Major Manoel Moreira da Trindade, herdeiro da mesma
fazenda e, quando este faleceu, Cesário requereu de Dona Leonarda da Silva Prates
(cabeça do casal), a compra da alforria. Naquela época apresentava especializado em
atividades da fazenda, sendo ele, vaqueiro e ela costureira, com 45 anos, avaliada em
Rs. 700$000. Cesário adquiriu a alforria no mesmo ano em que requereu, conforme
sinalizou sua senhora “em vista dos bons serviços prestados” e com consentimento dos
demais herdeiros. O casal tivera uma filha, de nome Valéria, avaliada por Rs. 150$000
reis.
Na cadeia sucessória da fazenda muitos escravos aproveitaram o momento das partilhas
dos bens para pedir a liberdade mediante compra. Consta no inventário ainda que, os
escravos, Maria Francisca, Jacinta africana e Rita crioula entraram com petição para
comprar suas alforrias. Logo em seguida, há um termo de recebimento dos valores
pagos pelos escravos e a divisão da quantia entre os herdeiros.
Outra petição da escrava Angélica, africana, que dizia estar com enfermidade crônica e
fora recusada pelos avaliadores da época em avaliá-la por conta da moléstia que sofria.
No pedido a suplicante alegava não suportar o cativeiro mesmo que fosse “brando”, e
oferecera Rs. 40$000 mil reis por sua liberdade.12 Assim situa o documento;
Diz Angélica, africana, escrava do casal da falecida D. Ignácia da
Silva Prates que tendo tido a supp.ͤ presente aos avaliadores para lhes
darem um valor no inventário a que está procedendo, estes nenhum
lhe darão em razão do seu estado de enfermidade crônica e que a supp. ͤ
queira se libertar não só por este solícito desejo de toda a pessoa
sugesta como a mesma possui estado crônico de enfermidade e não
lhe permitir suportar o cativeiro ainda q muito brando, vem perante
V.S. offerecer por sua liberdade a quantia de quarenta mil reis, único
dinheiro que possui a supp. ͤ e q oferece em troca da sua liberdade: A
supp.ͤ requer e // digam os interessados e o curador do menor.
Canabrabal, 14 de maio de 1847. V. S. se digne deferir mandando
juntar esta aos autos do inventário passando-lhes a carta de liberdade e
depositando a quantia oferecida de que assino a logo de Angélica
Affricana.
Depreende-se das narrativas acima, as múltiplas situações por onde enveredaram
escravos e seus senhores na região. Entendendo que os primeiros tinham consciência de
suas ações e planejaram os momentos oportunos para alcançar seus objetivos. Nem
sempre os propósitos dos escravos e libertos tiveram conquistas satisfatórias, mas as
possíveis artimanhas para sobreviver à dominação escravista e adquirir proveitos dos
direitos costumeiros eram constantes.
As histórias dos escravos narrados neste texto nos permitem perceber as limitações e as
possibilidades do alcance a alforria no sertão da Bahia. O mesmo verifica-se no quesito
ascensão social. Mesmo diante das pressões senhoriais e contundentemente favoráveis a
continuidade da exploração do trabalho escravo, muitos cativos enxergaram
possibilidades de mobilidade social, sejam elas por meio de negociações, conflitos, ou
mediante estratégias paternalistas nas relações estabelecidas, objetivando a promoção no
exercício das funções executadas no cotidiano das fazendas, quer seja na luta e
resistência incansável pela liberdade na busca por condições exíguas de sobrevivência.
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1 Doutoranda em História Social, UFBA. Mestre em história Regional e Local – professora do IFbaiano,
Campus Guanambi, Bahia. 2 Epígrafe retirada do livro - Os Analfabetos - do jornalista, escritor e tipógrafo do alto sertão da Bahia,
João Gumes. 3 Em 1856, a câmara de Monte Alto informou ao presidente da província da Bahia que a referida vila se
limitava com Caetité a 15 léguas, com Macaúbas a 34 léguas, Carinhanha 16 léguas e para o lado do Sul,
com a província de Minas. O documento tratava de informar ao presidente da província baiana os limites
dos colégios eleitorais na região. Fonte: Governo da província, câmara de Monte Alto, 1840 a 1856.
Seção de arquivo colonial e provincial. N° 1360. Arquivo Público da Bahia (APB).
No ano de 1878, Monte Alto desmembrou territórios para o município de Riacho de Santana, em 1919
para Guanambi e em 1962 para Sebastião Laranjeiras. Fonte IBGE. Disponível em
http://www.cidades.ibge.gov.br/. Acessado em 15/01/2015.
4 Os estudos sobre o alto sertão da Bahia tomaram maior expressão com os trabalhos de Neves (2000),
Pires (2003, 2009), Almeida (2012), dentre outros. Os referidos estudos começaram por Rio de Contas e
Caetité, (que dispõe de arquivos organizados) e vêm ampliando-se para outras regiões como Paratinga,
Bom Jesus da Lapa e Palmas de Monte Alto. 5 Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Inventário: Capitão Joaquim José Barbosa e
Carolina Sofhia Moreira de Castro. 1845. Nᵒ 025, p. 174. 6 Fonte: Fonte: Arquivo da Cúria da Paróquia de Santo Antônio – Guanambi Bahia.
Livro de casamento de Monte Alto, 1840-1862. 7 Encontram em : Medrado (2012, p. 44-46) -Terra de Vaqueiros - aspectos referente à vida dos
vaqueiros no sertão da Bahia, especialmente para a região de Jeremoabo. Para a autora os vaqueiros eram
responsáveis pelo cuidado diário com o gado nas fazendas como; tocar os rebanhos de um pasto para
outro, “cuidavam das bicheiras e realizavam serviços associados à criação, como consertos de cercas e
limpeza dos bebedouros dos animais, das fontes e olhos d’água.” Acrescenta ainda que era costume dos
senhores retribuir o serviço prestado pelo vaqueiro com gados. Havia um costume chamado de
quartações, uma forma de partilha recebida pelo vaqueiro de um animal entre quatro a cinco animais
nascidos na fazenda. Provavelmente esse costume se estendeu para todo o sertão baiano durante o século
XIX, sendo a quartação um prêmio pelo trabalho realizado. Prática que permitiu aos vaqueiros acumular
uma pequena economia e ascensão social entre os demais trabalhadores. 8 REIS, João José. De escravo a rico liberto: A trajetória do africano Manoel Joaquim Ricardo na
Bahia oitocentista. Rev. Hist. (São Paulo), n.174, p. 15-68, jan-jun, 2016.
http: dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rn.2016.108145. 9 Não se trata aqui de um paternalismo baseado nas ações de “benevolência” de senhores com escravos,
como defendeu Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala. Mas um paternalismo inspirado nos conceitos
de Eugene de Genovês, A terra prometida, quando viu aspectos semelhantes para as relações senhor
escravo no Sul dos Estados Unidos. Thompson no livro Costumes em Comum, mais específico o capítulo
intitulado Patrícios e Plebeu. Nesse capítulo Thompson define o paternalismo entre a Gentry e os pobres
na Inglaterra, no século XVIII, como não somente um fator de responsabilidade efetiva como “teatro e
gestos”, de relação amigável familiar, lado a lado, mas uma “ensaiada de técnicas de domínio”. A
multidão na Inglaterra do século XVIII compreendia a capacidade de sua ação e da própria arte do
possível, de uma ação rápida, direta e fugaz. Para o autor mesmo que a relação de deferência entre as
classes eram antagônicas, havia uma dialética correspondente entre as partes que de certa forma
mantinham uma convivência equilibrada entre os pobres e ricos, de modo que uma se tornava prisioneira
da outra. E é aqui que Thompson define seu conceito de paternalismo e deferência, conceito esse baseado
em interesses de ambos os lados. Acerca de o conceito paternalismo ver: Genovese, Eugene Dominick. A
terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra:Brasília , DF: CNPQ.
1988. Thompson, E. P. Costumes em Comum. São Paulo, Companhia das letras, 1998. Ver também:
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor – Esperanças e recordações na formação da família
escrava: Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011. CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão:
ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. LARA,
Silvia Hunolt. Blowin’ in the Wind: E.P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Proj.
História São Paulo, (12), out.1995. LIBBY, Douglas Cole. Repensando o conceito do
paternalismo escravista nas Américas. São Paulo: Annablume: Belo Horizonte: PPGH –
UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB, 2008.
9GUTMAN, Hebert G. The Black Family in Slavery and Freedon, 1750 – 1925. New York; Vintage
1976. 10 Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Inventário: Dionísio Ramos de Oliveira,
1852, n.ᵒ 07, p. 37. 11 Fonte: Fórum Alcebíades Dias Laranjeira. Seção Judiciária: Inventariado: Joaquim Moreira da Silva.
1835. Nᵒ do processo 405. 12 Fonte: Fórum Alcebíades dias Laranjeira. Seção Judiciária: Inventariada: Ignácia da Silva Prates. 1847.
Nᵒ do processo, 021, f, 28.
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