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LVIA MARTINS NONATO
TEATRALIDADE NA OBRA AUDIOVISUAL CAPITU
Londrina
2013
LVIA MARTINS NONATO
TEATRALIDADE NA OBRA AUDIOVISUAL CAPITU
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras, da Universidade Estadual de Londrina, como requisito obteno do ttulo de Mestre em Letras. rea de Concentrao: Estudos Literrios Orientadora: Profa Dra Sonia Pascolati
Londrina
2013
Catalogao na publicao pela Diviso de Processos Tcnicos da Biblioteca Central da
Universidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
N812t Nonato, Lvia Martins. Teatralidade na obra audiovisual Capitu / Lvia Martins Nonato. Londrina, 2013. 106 f.: il. + 2 CD ROM. Orientador: Sonia Pascolati. Dissertao (Mestrado em Letras) - Universidade Estadual de
Londrina, Centro de Letras e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Letras, 2013.
Inclui bibliografia. 1. Carvalho, Luiz Fernando 1960 Teses. 2. Televiso \x
Minissries Teses. 3. Teatralidade Teses. 4. Representao cinematogrfica Teses. 5. Literatura brasileira Teses. I. Pascolati, Sonia. II. Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Letras. III. Ttulo.
CDU 869.0(81):792
LVIA MARTINS NONATO
TEATRALIDADE NA OBRA AUDIOVISUAL CAPITU
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras, da Universidade Estadual de Londrina, como requisito obteno do ttulo de Mestre em Letras. rea de Concentrao: Estudos Literrios
BANCA EXAMINADORA
______________________________________ Profa Dra Sonia Pascolati
UEL Londrina PR
______________________________________Profa Dra Lourdes Kaminski Alves
UNIOESTE Cascavel - PR
______________________________________ Profa Dra Maria Carolina de Godoy
UEL Londrina - PR
Londrina 28 de junho de 2013.
A meu pai, Marco Antonio Nonato,
pelo apoio incondicional,
amor e inspirao nos caminhos da vida.
AGRADECIMENTOS
Darei incio aos agradecimentos por esta pesquisa professora
Sonia Pascolati, orientadora nas etapas mais confusas e motivadora nos momentos
mais lcidos.
Agradeo todo o auxlio financeiro prestado pela CAPES, que me
proporcionou estimada dedicao ao trabalho acadmico.
A minha me, Suzi Nonato, e a minha irm, Juliana Nonato, pelo
afeto do dia a dia.
Ao colega Renato Forin Jr. pelo companherismo e rumos nos
caminhos de estudo.
Declaro ainda imensa gratido aos amigos Luiz Henrique Pedrozo,
Luiza Nonato e Silvia Elizabeth, pelo carinho, ajuda e por me oferecerem dias mais
felizes.
A Felipe Melhado, por me impulsionar a querer ser uma pessoa
melhor.
Aos professores Frederico Augusto Fernandes, Marta Dantas, Volnei
Edson dos Santos, Luiz Carlos Santos Simon e Maria Carolina de Godoy, pelo
incentivo ao conhecimento e aprendizagem, assim como aos funcionrios da
secretaria de Ps-Graduao em Letras da UEL, por todos os favores e
prontificao.
Um ltimo obrigada ao artista Luiz Fernando Carvalho, por sua obra
inspiradora.
O propsito do teatro fazer o gesto recuperar o seu sentido, a palavra, o
seu tom insubstituvel, permitir que o silncio, como na boa msica seja tambm
ouvido, e que o cenrio no se limite ao decorativo e nem mesmo moldura apenas
- mas que todos esses elementos, aproximados de sua pureza teatral especfica,
formem a estrutura indivisvel de um drama.
Clarice Lispector
NONATO, Lvia Martins. Teatralidade na obra audiovisual Capitu. 106 f. Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013.
RESUMO Fruto de um processo criativo complexo e distanciado de preocupaes realistas, Capitu uma obra audiovisual que mescla diferentes formas de manifestaes artsticas, originando uma linguagem nica de amplo alcance expressivo. A presente pesquisa analisa a linguagem sincrtica composta por Luiz Fernando Carvalho, enfocando sua dimenso teatral. A fim de delinear o que distingue o signo prprio do espetculo teatral em contraste com a materialidade expressiva do cinema, apresentamos os traos elementares de cada linguagem e seus aparatos tcnicos, passo necessrio para a anlise da composio audiovisual e compreenso da intrincada rede de sentidos orquestrados pela presena da teatralidade na composio da mise-en-scne. Palavras-chave: Teatralidade. Capitu. Audiovisual. Luiz Fernando Carvalho.
NONATO, Lvia Martins. Theatricality in the audiovisual piece Capitu. 106 p. Dissertation (Masters Degree Letters) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013.
ABSTRACT
Results of a complex creative process and distanced from realistic concerns, Capitu is an audiovisual piece that combines different forms of artistic expressions giving rise to broad expressive range of a unique language. This research analyzes the syncretic language composed by Luiz Fernando Carvalho, emphasizing its theatrical dimension. To establish what distinguishes the sign of theatrical spectacle in contrast with the expressive materiality of cinema, we present the basic features of each language and its technical apparatus, which is a necessary step for analyzing the audiovisual composition and for understanding the intricate network of meanings built by the theatricality presence in the composition of its mise-en-scne. Keywords: Theatricality. Capitu. Audiovisual. Luiz Fernando Carvalho.
LISTA DE IMAGENS
Sequncia de imagens 1 Cavalo teatralizado .................................................... 32 Sequncia de imagens 2 Cena de abertura da minissrie ................................. 36 Sequncia de imagens 3 Cena no interior do trem ............................................ 39 Sequncia de imagens 4 Cortina teatral ............................................................ 45 Sequncia de imagens 5 O Agregado ............................................................... 50 Sequncia de imagens 6 Maquiagem teatral ..................................................... 50 Sequncia de imagens 7 Incio do captulo Do Livro ....................................... 53 Sequncia de imagens 8 Captulo Do Livro ..................................................... 54 Sequncia de imagens 9 Personagens espectrais ............................................ 55 Sequncia de imagens 10 Representao da escrita do narrador ....................... 56 Sequncia de imagens 11 Captulo Olhos de ressaca ...................................... 59 Sequncia de imagens 12 Narrador interage com personagem .......................... 59 Sequncia de imagens 13 Lentes figurativizando o ponto de vista ...................... 62 Sequncia de imagens 14 Entrada em cena de Capitu ....................................... 64 Sequncia de imagens 15 Movimentos de dana flamenca ................................ 66 Sequncia de imagens 16 Captulo Um seminarista ......................................... 67 Sequncia de imagens 17 Captulo Os braos .................................................. 70 Sequncia de imagens 18 Elemento extemporneos .......................................... 72 Sequncia de imagens 19 Captulo A catstrofe ............................................... 72 Sequncia de imagens 20 Captulo O enterro ................................................... 74 Sequncia de imagens 21 Captulo Othelo ........................................................ 80 Sequncia de imagens 22 Captulo E bem, e o resto? ...................................... 83 Sequncia de imagens 23 Espelhos na obra audiovisual .................................... 88 Sequncia de imagens 24 Captulo Final .......................................................... 90
SUMRIO
INTRODUO .......................................................................................................... 10
1 TEATRO, CINEMA E SUAS ESPECIFICIDADES ............................................. 17
2 ANLISE DA OBRA AUDIOVISUAL CAPITU PELO VIS DA TEATRALIDADE ................................................................................................ 35
2.1 DO TTULO: A REVELAO DA TEATRALIDADE NA OBRA AUDIOVISUAL ..................... 37
2.2 A VIDA UMA PERA: A TEATRALIDADE ENCENANDO A TEMTICA CENTRAL
DO ROMANCE DOM CASMURRO .............................................................................. 45
2.3 MEU FIM EVIDENTE ERA ATAR AS DUAS PONTAS DA VIDA: A TEATRALIDADE
ENCENANDO A MEMRIA ....................................................................................... 53
2.4 ASSIM PREENCHO AS LACUNAS ALHEIAS; ASSIM PODES TAMBM PREENCHER
AS MINHAS: A TEATRALIDADE EM FAVOR DA SUBJETIVIDADE ................................... 63
2.5 O DESTINO NO S DRAMATURGO, TAMBM O SEU PRPRIO CONTRA-
REGRA: MACHADO DE ASSIS UM HOMEM DE TEATRO. ......................................... 76
2.6 COMO A FRUTA DENTRO DA CASCA: PERSONAGENS DENTRO DO NARRADOR,
FICO DENTRO DA REALIDADE E FILME SE APRESENTANDO COMO FILME ................. 81
2.7 CAPITU: RUPTURAS E CONFORMIDADE COM O MODELO TCNICO-ESTTICO DA
LINGUAGEM TELEVISIVA ......................................................................................... 91
CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... 97
REFERNCIAS ......................................................................................................... 99 ANEXOS ................................................................................................................... 104 ANEXO A Gravao de DVD (1) Capitu ................................................................ 104
ANEXO B Gravao de DVD (2) Capitu ................................................................. 104
10
INTRODUO
Pessoas diferente de pblico. Pblico aquele grupo de pessoas que o mercado anseia. Pessoas um grupo de seres humanos que tm
memrias, corao, que se comovem com as imagens, e que so todas diferentes entre si.
Luiz Fernando Carvalho
A realidade boa, o realismo que no presta pra nada. Essa
frase de Machado de Assis foi fonte de inspirao para o diretor Luiz Fernando
Carvalho no processo criativo do objeto estudado nesta pesquisa Capitu,
minissrie criada a partir do romance Dom Casmurro, exibida pela Rede Globo em
dezembro de 2008, entre os dias 9 e 13, e posteriormente reeditada em DVD. A obra
tem seu roteiro escrito por Euclydes Marinho, com colaborao de Daniel Piza, Lus
Alberto de Abreu e Edna Palatnik, e o texto final do prprio Luiz Fernando
Carvalho.
A obra audiovisual Capitu composta por uma linguagem sincrtica
que envolve a exuberncia tpica da pera, os artifcios cnicos do teatro, as
tcnicas de montagem, composio e projeo do cinema, a expresso corporal da
dana, a atmosfera emotiva cedida pela msica, e ainda uma combinao de
elementos do mundo moderno com os de poca e os virtuais. Em suma, um
sincretismo que origina uma obra de linguagem complexa e inovadora.
A ideia fundamental que nos guia nesta pesquisa a notvel
preponderncia do uso da arte teatral na composio de cenas na obra. A criao
de Luiz Fernando Carvalho coloca em segundo plano caractersticas do dispositivo
cinematogrfico que colaboram para sua impresso de realidade como a riqueza
perspectiva e a materialidade expressiva flmica que faz da imagem do mundo real
signo representativo na tela e escolhe, para a composio plstica e performtica
das cenas, recursos e solues prprios da arte teatral.
A anlise busca o entendimento da manifestao imagtica da
teatralidade em uma obra de arte de linguagem sincrtica composta a partir de um
romance cannico num dispositivo audiovisual.
Capitu a segunda realizao do Projeto Quadrante que procura,
atravs de obras literrias dos quatro cantos do Brasil, estabelecer um dilogo
cultural que provoque uma reflexo sobre a cultura do pas. A minissrie contempla
a regio sudeste pelo livro ser contextualizado no Rio de Janeiro.
11
A primeira minissrie do Projeto foi A Pedra do Reino, composta a
partir da obra de Ariano Suassuna e a segunda foi Capitu; a terceira transcriao
seria do livro Dois irmos, de Milton Hatoum, e a quarta de Danar Tango em Porto
Alegre, de Sergio Faraco. Aps Capitu, o projeto foi suspenso, tendo sido retomado
recentemente (2012) para a realizao da terceira obra.
Desde o incio de sua carreira, Luiz Fernando Carvalho mantm uma
relao prxima com a literatura. Carvalho inaugurou seu percurso artstico
audiovisual em 1985 como assistente de direo na minissrie O Tempo e o Vento,
feita a partir da obra homnima do escritor rico Verssimo. No mesmo ano, o diretor
de apenas 25 anos encabeou a transcriao televisiva de Grande Serto: Veredas,
de Guimares Rosa.
Em 1986 Luiz Fernando Carvalho se desviou brevemente do
trabalho televisivo, mas sem deixar a literatura, uma vez que realizou um curta-
metragem intitulado A Espera, cujo roteiro foi elaborado a partir do livro Fragmentos
de um discurso amoroso, de Roland Barthes.
No ano seguinte Carvalho voltou para a televiso, na rede
Manchete, e adaptou para o formato de telenovela o romance Helena, de Machado
de Assis, e em seguida a pera Carmem, de Georges Bizet.
Posteriormente, as realizaes audiovisuais de Luiz Fernando
Carvalho continuaram na Rede Globo, e de 1988 at 2010 foram mais oito obras
literrias ganhando vida na televiso pelo trabalho do diretor, sendo elas obras: Tieta
do Agreste, de Jorge Amado; Riacho Doce, de Jos Lins do Rego; Uma mulher
vestida de sol, A farsa da boa preguia e A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna; Os
Maias, de Ea de Queiros; Hoje dia de Maria, que rene contos da literatura oral; e
Dom Casmurro, consagrado romance de Machado de Assis.
Em 2001 Carvalho fez seu primeiro trabalho no cinema. A
proximidade com a literatura mantida e o diretor leva ao cran a obra de Raduan
Nassar - Lavoura Arcaica. O filme recebeu aproximadamente 25 prmios nacionais e
internacionais, entre os quais Melhor Contribuio Artstica do Festival de Montreal,
assim como "Melhor Filme", "Melhor Diretor", "Melhor Fotografia" e "Melhor Trilha
Sonora" no Festival de Cartagena.
As minissries seguidas de seu filme foram Hoje dia de Maria
(primeira e segunda jornada), A Pedra do Reino, Capitu, Afinal, o que querem as
mulheres e a mais recente Suburbia. Essas obras tm em comum uma esttica mais
12
prpria ao cinema por aportar grande liberdade artstica, mesclar linguagens de
outros campos expressivos e desafiar os critrios mercadolgicos da indstria
cultural.
Lavoura Arcaica foi como um divisor de guas entre as obras do
diretor. Aps o filme, seu trabalho ganhou destaque pela esttica ousada e de alto
valor artstico que difere das produes audiovisuais contemporneas. Luiz
Fernando Carvalho assume um posicionamento contestador da linguagem
cinematogrfica inserida no mercado de cultura.
Em entrevista para a revista Contracampo, o diretor declara certa
indignao com a hegemonia da linguagem de cultura de massa. Para ele, a lgica
comercial vivida pelos meios de comunicao atuais engessa o potencial criativo de
artistas contemporneos.
Tudo isso fruto do uso do vocabulrio hegemnico. [...] Estamos trabalhando em cima de meia dzia de regrinhas que aprendemos da cartilha hegemnica. Como pode um pas deste tamanho abrir mo de tanta capacidade criativa que ele tem, da tal identidade multifacetada, desse caldo, em favor dessas regrinhas? Esquece-se de uma expresso mais verdadeira, que, a sim, vai se tornar bela pela necessidade de expresso do artista que vai estar por trs. Mas hoje se esbarra no fato de que esta uma gerao que no exercitou a linguagem. uma gerao que, em sua grande maioria, no se permitiu o desafio do exerccio criativo, uma gerao que at hoje opera a partir de estatutos do mercado, o que fez com que muitos diretores reduzissem a margem de criatividade de seus filmes, tornando-os escravos das "regras de bilheteria". O cinema comercial desapropria o aprendizado, rouba o aprendizado do diretor e faz com que ele no exercite a linguagem. (CARVALHO apud. WERNECK, 2008).
Carvalho (2001, p. 23) expressa a importncia da contestao para
o fazer artstico, pois, para ele, contestao o princpio de toda e qualquer ao
artstica. No falo isso aplicado ao plano poltico, ao poltico partidrio simplesmente,
mas ao plano humano da expresso. Contestao como linguagem de
sobrevivncia. O diretor aborda o assunto sobre a hegemonia da linguagem
comercial em diversas manifestaes acerca de seu processo criativo, sendo
frequente seu questionamento sobre a atual configurao da cultura.
Ao analisar e pensar o percurso da carreira artstica de Luiz
Fernando Carvalho fica notvel o quo importante a literatura para o exerccio de
sua esttica e de sua contestao. O diretor trabalha assiduamente com textos
literrios, nos quais encontra inspirao para realizar sua almejada criao
audiovisual de cunho questionador aos parmetros culturais contemporneos:
13
Estou atrs da literatura porque busco reafirmar o valor da palavra e das vises. A literatura tambm nos ensina, pois consegue trabalhar nas entrelinhas. As narrativas no ficam restritas a ao e reao, causa e efeito, moral da histria, bem ou mal. A boa fabulao assim como o bom cinema, o bom teatro e, por que no, a boa TV nos apresenta uma viso dialtica do mundo. (CARVALHO, 2011).
Alm de trabalhar frequentemente com textos da literatura, Carvalho
pauta seu processo criativo nas formas de expresso da arte literria, criando assim
obras audiovisuais que dialogam com os potenciais interpretativos das narrativas e
impulsionam o espectador a se posicionar como seres pensantes. O diretor defende
que o pblico necessita de entretenimento, mas tambm de caminhos para alcanar
um novo olhar sobre o mundo. Deste modo, o diretor (apud. COLOMBO, 2012)
resume seu intuito artstico:
O pouco que realizei para TV foi no caminho de tentar humanizar a narrativa, na maioria das vezes forjada de forma hegemnica e industrial. Se na televiso tenho a sensao de estar sendo vigiado por todos os lados, no cinema o contrrio. [...] Meu trabalho no diminui a TV nem engrandece o cinema, mas tambm no se deixa escravizar por essa ou aquela linguagem artificial. Quero me libertar do peso industrial que transforma tudo em uma leitura andina dos seres e da vida.
Com isso, esclarece-se a pertinncia em estudar a obra do diretor no
campo dos estudos literrios. Luiz Fernando Carvalho um artista expoente no que
se refere a difuso e entendimento da literatura num tempo em que se vive a
supremacia da imagem. Carvalho faz de sua narrativa cinematogrfica uma
expresso de intuito artstico de forma a contrariar a hegemnica subordinao da
imagem naturalista audiovisual que habitualmente instaura em suas narrativas uma
conjetura do mundo real. Capitu teledramaturgia que convida o espectador a ser
intelectualmente ativo ao propor uma mise-en-scne baseada na teatralidade. A
cena deve se materializar no livre jogo da imaginao; colocam-se disposio
elementos narrativos para aluso que provocaro o devaneio criador de cada um, ou
seja, a obra composta por signos que estimulam o trabalho interpretativo.
As principais questes que norteiam este trabalho so: entender
como se d a presena da teatralidade em uma obra audiovisual; analisar a
representao cinematogrfica a partir da complexa rede de sentidos configurados
pelo revestimento de teatralidade na composio de Capitu; compreender o efeito e
a recepo dessa linguagem hbrida para o entendimento e apreciao da narrativa.
14
Para alcanar tais objetivos, procurou-se primeiramente situar as
relaes entre teatro e cinema, e logo de sada percorreu-se terreno perigoso.
Mesmo com variados estudos sobre as aproximaes e diferenas dos campos
artsticos em questo, as artes representativas vivem em permanente estado de
confluncia, sendo que determinar suas especificidades e materialidades
expressivas foi tarefa rdua. Iniciamos com algumas discusses a respeito dessas
linguagens, possibilidades tcnicas, desenvolvimento histrico e consolidao, e
relao com o espectador. Tende-se, com isso, estabelecer paralelos entre o signo
teatral e o signo cinematogrfico, a matria-prima do teatro que difere da matria-
prima do dispositivo audiovisual. A polissemia do termo teatralidade exige um
posicionamento terico que guia nossa abordagem crtica, ou seja, preciso, antes
de tudo, esclarecer o que se entende por teatralidade e qual o conceito adequado
para alicerar a anlise.
A segunda parte da pesquisa se dedica anlise da minissrie de
Carvalho, com nfase em sua dimenso teatral, ou seja, concentrando-se nos
elementos da composio que revelam a teatralidade.
A metodologia baseia-se em conceitos e fundamentos analticos
conforme a investigao dos signos teatrais e dos cinematogrficos. Para
estabelecer o conceito teatralidade, assim como as anlises das cenas focando a
dimenso teatral, apropriou-se como apoio os tericos da arte teatral que, mais
precisamente, se debruam sobre as formas de encenao e signos teatrais Jean-
Jacques Roubine, Patrice Pavis, Renata Pallottini, Tadeusz Kowzan e Anne
Ubersfeld.
Buscou-se no somente referncias de crticos e tericos teatrais,
pois, como se trata de uma obra audiovisual, foi preciso consultar os estudiosos que
se debruam sobre o campo cinematogrfico, como Jacques Aumont, Ismail Xavier,
Christian Metz, Edgar Morin, Sergei Eisenstein, Marcel Martin, Andr Bazin, Roman
Jackobson, Gerard Betton.
Foi necessrio tambm fazer uma abordagem dos estudos sobre a
obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, sendo indispensvel, portanto, a
apropriao dos grandes pesquisadores da vida e literatura do escritor, tais como
Afrnio Coutinho, Daniel Piza, Michael Wood, entre outros.
O objetivo examinar o efeito da combinao das expresses
artsticas (teatral e cinematogrfica) e seus artifcios que se exibem na construo
15
do sentido na obra audiovisual, valorizando seu teor ficcional. O trabalho questiona
como essa linguagem sincrtica pode acercar-se da literatura devido a seu potencial
de provocar a imaginao e requerer o trabalho interpretativo do espectador, e, mais
precisamente, como a teatralidade representa e materializa o enredo e as ideias
capitais de Dom Casmurro.
Assim, a anlise de Capitu foi elaborada com o propsito de verificar
como a teatralidade pode ser recurso cnico que consagra a aproximao da obra
audiovisual de Luiz Fernando Carvalho com a literatura de Machado de Assis. Ela, a
anlise crtica da obra, buscou perceber de que modo a arte teatral contempla a
transcriao da essncia da literatura machadiana para um dispositivo imagtico,
construindo metforas cnicas que compreendem a materializao de ideias
contidas no romance, alm da mais direta, a encenao da filosofia do tenor italiano
a vida uma pera.
O percurso do texto dissertativo respeita certa cronologia da
minissrie e agrupa as cenas analisadas de acordo com o enfoque crtico sobre a
materializao de diferentes temas que a teatralidade constri em cena. Desta
forma, a anlise trata primeiramente da contextualizao temporal da obra, em
seguida explica-se a revelao da teatralidade em cena, que o entendimento e
posicionamento intelectual chave para a leitura do resto da obra. Sequencialmente,
o texto compreende a anlise da teatralidade como metfora cnica do mundo das
aparncias; a teatralidade que coloca em cena a memria de um narrador ambguo;
o signo teatral em favor da materializao cnica de questes mais subjetivas; o
desdobramento do narrador; e finalmente, a dimenso cinematogrfica da obra.
preciso registrar que uma nica cena no esgota um tema
analisado; as significaes despontadas pela teatralidade ressoam em todo a
minissrie sendo que se s fosse contemplado um tema por cena a crtica deixaria
de apontar dados importantes para a compreenso da obra. Desta forma, por vezes
o texto retoma questes j discutidas ou ainda no aprofundadas, para melhor
explicar a cena estudada, com a inteno de iluminar as possibilidades
interpretativas de cada parte da narrativa audiovisual.
Portanto, as divises no so estanques, mas visam facilitar a leitura
e organizar as ideias.
Tratando-se de uma obra questionadora e ousada, a pesquisa
pretende construir um texto que reflete sobre o estado e natureza da arte na
16
contemporaneidade a partir das rupturas e inovaes instauradas na criao dessa
linguagem sincrtica. O trabalho se encerra com a reflexo sobre as caractersticas
da linguagem audiovisual carvalhiana, com destaque para Capitu, dissertando sobre
a forma como essa linguagem inovadora tende a provocar relaes e percepes
diferentes do espectador para com uma obra televisiva, compreendendo a
importncia da teatralidade na potica do autor.
17
1 TEATRO, CINEMA E SUAS ESPECIFICIDADES
A Fico consiste no em fazer ver o invisvel, mas em fazer ver at que ponto invisvel a invisibilidade do visvel.
Michel Foucault
A arte constantemente dominada pela tendncia de pesquisar a
liberdade de expresso e de recursos (HONZL, 1977, p.41). Essa tendncia vem a
ser o princpio que rege o trabalho artstico de Luiz Fernando Carvalho. Capitu
uma obra audiovisual que incorpora em sua linguagem matrias-primas e formas
expressivas de vrios outros campos artsticos, no se limitando aos meios prprios
de seu dispositivo. Essa linguagem sincrtica exibe deliberadamente a apropriao
da forma de encenao caracterstica do teatro e justamente esta proeminncia de
teatralidade a fonte de nosso estudo e o foco de anlise do corpus.
Para uma pesquisa que busca o entendimento do uso da arte teatral
na criao de uma obra audiovisual e questiona sua manifestao no campo cultural
cinematogrfico, necessrio, precedentemente, estabelecer os fundamentos sobre
os quais se apoiam a anlise, esclarecendo primeiramente o que se entende como
linguagem teatral em contraste com a linguagem cinematogrfica, assim como
estabelecendo as teorias abordadas para a compreenso do termo teatralidade,
determinante dos pressupostos da pesquisa.
O teatro e o cinema so, em suas similaridades, artes
representativas, porm compostas por diferentes linguagens e, igualmente, criadas a
partir de signos distintos. O signo o material expressivo caracterstico de todos
meios artsticos e nele encontramos importante chave para delimitar algumas
particularidades das manifestaes artsticas em questo. preciso, portanto,
confrontar o signo teatral e o cinematogrfico.
No teatro, o que convm e se faz necessrio, que uma cena
montada num espao fechado, circunscrita a um palco, tenha a capacidade de
evocar e tornar presente ali uma igreja, por exemplo, ou um campo de flores, uma
estrada onde transitam cavalos, carruagens, assim, como no caso de uma pea de
teatro de rua, o espao tomado pelos artistas pode representar um quarto de hotel,
uma sala de estar etc. Ou seja, a estratgia para a leitura do signo teatral baseia-se
na liberdade expressiva e suplementar de sua definio conceitual e funo fsica
fora de cena, no mundo externo representao. A cena normalmente uma
18
construo, mas no absolutamente sua disposio arquitetural que lhe confere a
realidade de cena, mas sim o fato de que ela representa o local da ao dramtica
(HONZL, 1977, p.36).
Os elementos presentes na composio da pea no possuem outra
funo alm de representar. Um colar de prolas, por exemplo, no s um
acessrio para atribuir beleza a uma mulher, ele um signo que representa a
riqueza ou vaidade da personagem, sendo que os objetos e os elementos que
compe a cena, assim como a indumentria, so, muitas vezes, signos que
remetem a um dos signos contidos no traje ou na casa da personagem introduzida
pela pea. Repito: signo de signo, e no signo de objeto (BOGATYREV, 1977, p.15).
A liberdade do signo permite originar uma mobilidade do material
expressivo do teatro, seja ele visual, acstico ou performtico. Estas caractersticas
colaboram para que sejam mltiplas as possibilidades de formulao ou combinao
de signos teatrais que possam representar uma mesma ideia, uma nica
informao.
Determinado rudo signo de chuva. O som emitido pela prancha do sonoplasta nesse caso o significante, a ideia de que chove o significado. Mas no teatro a chuva pode ser representada [ser significada] de diversos modos, por meio de diferentes sistemas de signos: pela iluminao [projeo], indumentria [impermevel e capuz], acessrios [guarda-chuva], o gesto [ator que se sacode ao entrar], penteado [cabelo molhado], a msica e, sobretudo, a palavra. H ento diferentes signos [simultneos, sucessivos ou virtuais], diferentes significantes, mas o significado sempre o mesmo: chove. (KOWZAN, 1977, p.81).
Temos aqui uma faculdade especfica do signo teatral, que de
intercambiar os materiais, de passar de um aspecto para outro, de animar uma coisa
inanimada, de passar do campo acstico para o campo visual, etc.. (HONZL, 1977,
p.45). E, indo mais alm, percebe-se a capacidade da linguagem teatral em propor
uma superposio de signos. Isso quer dizer que no teatro possvel, por
exemplo, que um objeto, como uma cadeira, possa representar uma personagem.
Eles deixam de conter somente seus valores imbudos de carga social e funcional do
mundo externo e passam a ser cdigos representativos aptos a despertar a
imaginao cnica.
19
a isso que se deve a maleabilidade do signo teatral e a possibilidade de substituio de um signo de um cdigo, por um signo de um outro cdigo; as lgrimas na Fedra encenada por Vitez em 1975 eram figuradas [substitudas] por uma bacia cheia dgua em que os atores lavavam seus rostos. O eixo sintagmtico compreende o encadeamento da sequncia de signos, e compreende-se como possvel sem propriamente romper o encadeamento , graas a uma substituio, fazer contracenarem ambos os cdigos, fazer o relato passar de um tipo de signos a um outro [...]. Da a possibilidade, para o teatro, de dizer muitas coisas ao mesmo tempo, de construir vrias narrativas simultneas ou entrelaadas. O empilhamento de signos permite o contraponto. (UBERSFELD, 2010, p.12).
Um signo teatral pode, portanto, emitir um ou vrios significados
numa montagem. Na arte do espetculo, a funo social (atribuda pelo mundo real)
e a cnica (originada por motivao artstica) do signo se complementam, assim
como se permutam. O material significante altera e intercambia seu significado com
uma liberdade que outros campos de manifestao artstica dificilmente alcanam.
Assim, uma pea de teatro tem a possibilidade de ser toda montada
sem a presena de acessrios, figurinos etc.. Num cenrio desnudo, a performance
do ator pode ser o material expressivo para contextualizar o local da ao dramtica.
Quando os personagens danam, movimentam figurinos invisveis, gesticulam um
brinde com copos imaginrios em mos, logo se assimila que a ao se passa num
baile ou em uma festa.
impossvel, no teatro, determinar definitivamente se aquilo que chamamos comumente de gesto [do ator] no ser executado por um elemento cnico, assim como no se pode prever se o que fenmeno pictrico no ser confiado msica. De fato, essa transformabilidade do signo teatral que constitui seu carter especfico. graas a ele que se explica a transformabilidade da estrutura teatral. (HONZL, 1977, p. 45-46).
Trabalha-se, portanto, com formaes de opostos; por exemplo, num
palco vazio, sem composio de objetos para criao do cenrio, preenchido
somente com a ao dos atores, o papel do cenrio existe em igual funo e este
critrio vlido para todos os outros elementos cnicos. Esta contradio , pois,
legitimada pela natureza especfica do signo teatral, da estrutura teatral e do
material teatral. (HONZL, 1977, p.47).
A totalidade desses elementos que formam o espetculo compe
mltiplos significados que ultrapassam aqueles contidos no texto escrito. H os
significados primordiais que esto, usualmente, mais ligados ao desenvolvimento da
fbula, e ainda aqueles que proporcionam a revelao de outros significados. Esta
20
polissemia est relacionada ao trabalho receptivo que compe o sentido, sendo que
possvel assimilar s os mais diretos para compreender o enredo ou ir mais
profundamente e exercer diversas leituras.
Entre todas as artes, e talvez entre todos os campos da atividade humana, a arte do espetculo onde o signo se manifesta com maior riqueza, variedade e densidade. A palavra pronunciada pelo ator tem em primeiro lugar sua significao lingstica, ou seja, o signo dos objetos, das pessoas, dos sentimentos, das idias ou de suas inter-relaes que o autor do texto quis evocar. Mas a entonao da voz do ator, a maneira de pronunciar essa palavra, pode modificar o seu valor. (KOWZAN, 1977, p.61).
Percebe-se, portanto, que essa transformabilidade que torna a
arte cnica to variada e cativante. (HONZL, 1977, p.52).
Por conseguinte, quando o signo teatral lanado ao espectador,
sua recepo primeiramente questionadora e de carter interpretativo e
imaginrio. A composio do cenrio e da performance dada pelo encenador para
ser concluda na atividade intelectual do pblico. O significante, ou seja, o material
figurativo usado em cena lido pelo espectador que deve identificar seus
significados, isto , ideias sugeridas a partir da assimilao do signo representativo.
Assim, a manifestao teatral consideravelmente uma arte
fascinante pela participao que exige. Seu sistema de signos riqussimo e
incorpora mltiplas possibilidades de leituras para um mesmo texto dramtico. A
complexidade de suas redes semnticas excede a primeira faculdade do signo, que
comunicar. , portanto, uma arte privilegiada, de importncia capital, pois mostra,
melhor que todas as outras, de que modo o psiquismo individual investe-se numa
relao coletiva. (UBERSFELD, 2010, p.2).
Logo, possvel afirmar que existe um pacto implcito entre o
espectador e a arte teatral, no qual j est estabelecida a regra do jogo, regra esta
que compreende a liberdade expressiva isenta de associaes lgicas, a no serem
as internas de cada pea, criadas pelos encenadores e vlidas somente naquele
nico espetculo. E dessa forma a arte cnica , em proeminncia, uma
representao que tambm um jogo dialtico.
O objeto de nossa pesquisa uma obra audiovisual produzida para
televiso, mas com liberdade artstica e configurao mais prpria arte
cinematogrfica. Trataremos Capitu como obra audiovisual, flmica ou
21
cinematogrfica. O olhar crtico direcionado mais s possibilidades tcnicas
audiovisuais, que implicam tanto o cinema como a televiso. Alm de tudo, a obra foi
lanada em DVD, o que j a desliga do dispositivo televisivo e a torna mais
independente. No mais, os dois dispositivos, cinema e TV, so frequentemente
considerados similares pelos tericos do campo audiovisual, como se nota na
afirmao de Robert Stam (2003, p. 142):
Os dois meios constituem praticamente a mesma linguagem. Compartilham importantes procedimentos lingusticos [escala, sons on e off, crditos, efeitos sonoros, movimento de cmera etc]. Logo, so dois sistemas vizinhos; os cdigos especficos pertencentes a ambos so muito mais numerosos e significativos que os no-pertencentes; e, inversamente, os cdigos que os diferenciam um do outro so muito menos numerosos e importante que os que os diferenciam em conjunto de outras linguagens.
Sob essa perspectiva, investigar a natureza da linguagem
cinematogrfica empreendimento necessrio para nossa anlise, que se sustenta
no contraste das estruturas artsticas teatrais e flmicas.
No esforo para legitimar o cinema como um novo modelo narrativo
e, ainda mais, como um campo de expresso artstica, os estudiosos se voltaram
para a reflexo e teorizao da linguagem cinematogrfica. O cinema criado a
partir de imagens, sons e movimento. Uma lente denominada objetiva captura as
imagens que por um processo qumico so reveladas num material sensvel: a
pelcula. As questes que nos interessam so: qual a especificidade desta
linguagem cinematogrfica? O que a difere de outras linguagens artsticas
imagticas e, mais precisamente, o teatro?
Recorrendo a Roman Jakobson em seu ensaio Decadncia do
cinema, deparamo-nos com a preocupao do autor em delimitar a matria-prima da
arte audiovisual. Jakobson (2004, p.154) afirma que o material cinematogrfico so
precisamente os objetos reais. O diretor francs Louis Delluc j tinha intudo
perfeitamente que at o homem no cinema um mero detalhe, um mero fragmento
do material do mundo.
Outrossim, lembramos que o signo , precisamente, material de
todas as artes, assim, o mago do trabalho dos cineastas consiste em transformar
elementos do prprio mundo real (sonoro e imagtico) em significante na
composio do filme. Determina-se a a essncia cinematogrfica em contraste com
a teatral.
22
Todo fenmeno do mundo externo se transforma em signo na tela. O co no reconhece o co pintado, visto que a pintura essencialmente signo a perspectiva pictrica uma conveno, um meio plasmante. O co late para o co cinematogrfico porque o material do cinema um objeto real. (JAKOBSON, 2004, p. 155).
Nota-se, portanto, que seu material expressivo contribui para a
vocao do efeito de veracidade da arte audiovisual. Roland Barthes (2004, p.43)
em seu ensaio intitulado O efeito de real explica que este efeito provm da inteno
de alterar a natureza tripartida do signo, para fazer da notao o puro encontro de
um objeto e de sua expresso. Assim, essa representao realista trabalha com a
iluso referencial na qual o real volta pra ela, a ttulo de significado de
conotao.
No se assiste a um filme como um discurso elaborado acerca do
real, porm como reproduo direta deste real, sendo que os significantes so
tomados por reflexos dos signos, sem que o espectador coloque em prtica o
trabalho de relacionar o objeto cnico e seu referente do mundo externo.
Com isso, a especificidade cinematogrfica ao abrigar o apreo
fotogrfico da unidade da imagem, cria narrativas imaginrias, porm de
consistncia real.
A impresso de realidade sentida pelo espectador quando da viso de um filme deve-se, em primeiro lugar, riqueza perceptiva dos materiais flmicos, da imagem e do som. No que se refere imagem cinematogrfica, essa riqueza deve-se ao mesmo tempo grande definio da imagem fotogrfica, que apresenta ao espectador efgies de objetos com um luxo de detalhes. (AUMONT, 2007, p.148).
Desse modo, o cinema uma linguagem que tende a uma
representao realista. O filme produto de um processo criativo que possibilita
contar fbulas atravs de imagens semelhantes nossa viso do mundo real. Os
filmes narrativo-representativos, mesmo se seu enredo for bem irreal, sempre sero
particularmente crveis.. A noo de sindoque assinala de forma plausvel este
trabalho da stima arte em se apropriar de parte de um todo (AUMONT; MARIE,
2006, p. 165) para criar e conferir-lhe outro significado.
O denominador comum da representao audiovisual
precisamente a criao de fico revestida de um conjunto estilstico bastante
ilusrio, no qual o espectador identifica sem custo sua percepo cotidiana no
mbito ficcional.
23
Qualquer que seja o filme, seu objetivo dar-nos a iluso de assistir a eventos reais que se desenvolvem diante de ns como na realidade cotidiana. Essa iluso esconde, porm, uma fraude essencial, pois a realidade existe em um espao contnuo, e a tela apresenta-nos de fato uma sucesso de pequenos fragmentos chamados planos, cuja escolha, cuja ordem e cuja durao constituem precisamente o que se chama decupagem de um filme. Se tentarmos, por esforo de ateno voluntria, perceber as rupturas impostas pela cmera ao desenrolar contnuo do acontecimento representado e compreender bem porque elas nos so naturalmente insensveis, vemos que as toleramos porque deixam subsistir em ns, de algum modo, a impresso de uma realidade contnua e homognea. (BAZIN, 2005, p. 66).
Ainda que no se possa negar que a imagem flmica sofra um
achatamento em relao viso humana do mundo real devido transformao
de uma percepo tridimensional que a nossa, para uma imagem que compreende
somente duas dimenses, este dado prprio de seu dispositivo, parece ser, de uma
maneira geral, no contemplado pelo espectador que assiste a um filme sem
lembrar-se da restrio imagtica da tela. Assim declara Aumont (2007, p. 21):
claro que a experincia, mesmo a mais breve, de se assistir a um filme, basta para demonstrar que reagimos diante dessa imagem plana como se vssemos de fato uma poro de espao de trs dimenses anlogo ao espao real no qual vivemos. Apesar de suas limitaes [presena do quadro, ausncia de terceira dimenso, carter artificial ou ausncia de cor etc.], essa analogia vivenciada com muita fora e provoca uma impresso de realidade especfica do cinema, que se manifesta principalmente na iluso de movimento e na iluso de profundidade.
Assim, a arte do cinema, apesar de herdeira direta da teatral, em
potencial considerada sucessora da fotografia, visto que o cinema se origina da
matriz fotogrfica que, encadeada no cinematgrafo, promove a sensao real de
movimento.
Se j fato tradicional a celebrao do realismo da imagem fotogrfica, tal celebrao muito mais intensa no caso do cinema, dado o desenvolvimento temporal de sua imagem, capaz de reproduzir, no s mais uma propriedade do mundo visvel, mas justamente uma propriedade essencial sua natureza o movimento. (XAVIER, 2005, p. 18).
Este encadeamento gera uma iluso que basta para o espectador
no levar em conta a no existncia de imagens exteriores ao quadro, de modo que
o campo [] como includo em um espao mais vasto, do qual decerto ele seria a
nica parte visvel, mas que nem por isso deixaria de existir em torno dele.
(AUMONT, 2007, p. 24). chamado fora de campo este espao narrativo
24
escondido que torna possvel a extenso do que visvel, ou seja, mesmo as aes
dramticas que no participam do enquadramento so perpetuadas na percepo
do espectador e fazem parte da comunicao da fbula. Um filme pode, portanto,
compor dois espaos num mesmo momento, por exemplo, muitas vezes quando o
quadro preenchido por um close up no rosto de uma personagem podemos saber
claramente para onde ela est olhando, ou com qual outro personagem ou evento
interage.
Por conseguinte, vemos que o que caracteriza a arte audiovisual de
outros meios culturais sua faculdade criar uma imagem ilusria de realidade,
originada do conjunto de elementos que relacionam nosso olhar com a fico a partir
de representaes imagticas muito prximas nossa viso do mundo real. A
percepo flmica afigura-se aos aspectos de nosso olhar habitual. O terico Edgar
Morin (apud. AUMONT, 2007, p.236) afirma que
Todo real percebido passa pela forma imagem. Depois, renasce em lembranas, isto , imagem de imagem. Ora, o cinema, como qualquer representao [pintura, desenho], uma imagem de imagem, mas, como a foto, uma imagem da imagem perceptiva, e, melhor do que a foto, uma imagem animada, isto , viva. Como representao de uma representao viva, o cinema convida-nos a refletir sobre o imaginrio da realidade e a realidade do imaginrio.
Em seu estudo sobre o espectador do cinema, Morin se debrua
sobre o universo cinematogrfico em busca do seu papel na atividade receptiva
humana diante de um filme. Ele aponta para a condio de crena que o homem
dispe aos eventos na tela, comparando-a mentalidade infantil que aceita como
verdade seus sonhos. Abordando a projeo-identificao, o terico verifica que
A impresso de vida e de realidade prpria das imagens cinematogrficas inseparvel de um primeiro impulso de participao. Vincula ltima ausncia ou atrofia da participao motriz prtica ou ativa e estipula que essa passividade do espectador o coloca em situao regressiva, infantilizado sob o efeito de neurose artificial. Disso tira a concluso de que as tcnicas do cinema so provocaes, aceleraes e intensificaes da projeo-identificao. (AUMONT, 2007, p.236).
Apesar de apontarmos para dados generalistas e tcnicos, o
cinema, como campo de ao artstica do homem, praticvel e existem muitas
obras de essncia fantstica, esttica ousada, potencial transgressor etc.. Porm,
de maneira geral, foram poucos os movimentos cinematogrficos que procuraram
25
algo totalmente diferente do Realismo no sentido da definio dada no sculo XIX
(AUMONT; MARIE, 2006, p.253), ou seja, conveno estilstica que busca
humanizar a representao artstica e assim facilitar a identificao do espectador.
plausvel observarmos que a expresso audiovisual vivamente
manipulada pela produo comercial da cultura de massa. O cinema uma mdia
que proporciona uma esttica de fcil assimilao e ainda tem grande alcance de
pblico, sendo alvo de interesses fundamentados em gerao de lucro financeiro.
H no dispositivo certa esfera de ao muito diversa daquelas da vontade artstica.
Alm dos aparatos funcionais de linguagem, a arte cinematogrfica
tambm pautada em representaes realistas devido sua consolidao social,
pois, ao longo de sua histria e de maneira acentuada na sociedade moderna, foi
bastante usada para fins de entretenimento comercial. Desse modo, graas a sua
esttica que busca representar mimeticamente o mundo exterior, sem contrastes
com a transfigurao imaginativa, o dispositivo trabalha num processo de
intercmbio das posies entre seres fictcios e reais. O espectador de filme
suscetvel a aceitar como verdade o que percebe em imagens, como explicam
Martn-Barbero e Rey (2004, p. 70) acerca das relaes entre real e ficcional:
Intercmbio que confuso entre relato e vida, que conecta de tal maneira o espectador com a trama que este acaba alimentando-a com sua prpria vida. Nessa confuso, que talvez o que mais escandaliza a perspectiva intelectual, cruzam-se bem diversas lgicas: a mercantil do sistema produtivo, isto , a estandardizao, bem como a do conto popular, a do romance e da cano com estribilho, ou seja, aquela serialidade prpria de uma esttica em que o reconhecimento e a repetio fundamentam uma parte importante do prazer e , em consequncia, norma de valor dos bens simblicos.
Isso se d por existir um sentimento de conforto e segurana no que
j conhecido, o que a reproduo do real atende de forma prtica e funcional,
evitando riscos da no aceitao do pblico. Ela garante uma resposta positiva no
homem contemporneo por ser eficaz em produzir uma suave felicidade, na qual a
desordem semntica, ideolgica ou experiencial do mundo encontra um
reordenamento final e remansos de restaurao parcial da ordem. (SARLO, 1997,
p.63).
Nota-se, portanto, que a linguagem audiovisual, alm de originar-se
por um seguimento de elementos que contribuem para uma esttica realista, sofre a
ao da cultura de massa, a qual atua atravs do dispositivo para que se estabelea
26
uma homogeneizao do significante visual flmico, tornando-o uma manifestao
predestinada representao mimtica. Tnia Pellegrini (1999, p. 190) explica que
cada vez mais a imagem eletrnica insinua-se em todas as dimenses da vida
cotidiana, ubqua, surgindo como realidade autorreferencial, remetendo a si mesma,
numa infinita cadeia de significantes.
Luiz Fernando Carvalho (2002, p.33) mostra-se constantemente um
artista contestador quanto atual configurao cultural de nossa sociedade. O
diretor expressa seu entendimento sobre o homem contemporneo e sua relao
com a cultura de massa dizendo que
Esses objetos pseudoculturais, que geralmente no so a expresso do artstico, nem de um indivduo, nem muito menos de um povo, so manipulados pela mdia que procura aplacar, de alguma forma, a angstia da populao. Esses objetos de consumo exigem do pblico muito pouca bagagem cultural e, o que acho ainda mais grave nos dias de hoje, cuidam para que as crianas tenham acesso s diverses dos adultos. A consequncia disto tudo uma espcie de regresso dos adultos que, incapazes que so de enfrentarem as dificuldades e complexidade da vida moderna, recorrem ao kitsch, ao popularesco, ao apelativo, que, por sua vez, acentua sua infantilidade. [...] A realidade atual da nossa sociedade, que viu surgirem novos problemas sem estar preparada para enfrent-los, esta e no outra. At agora, a grande comunicao de massa, bem como a mdia, outros meios de comunicao e o tal cinema americano, foram os grandes responsveis por uma gigantesca operao de condicionamento do povo.
O mercado audiovisual supe e enxerga a todos como iguais, sendo
que esse culto impresso de realidade cinematogrfica no somente
determinado por suas faculdades tcnicas, mas tambm por normas comerciais
baseadas em lei de oferta e procura. Portanto, estabelece-se um pacto
subentendido entre o pblico e a narrativa flmica no qual reside a expectativa de
uma esttica predominantemente mimtica, algo de fcil assimilao e potencial
projetivo, diferenciando-se, nesse aspecto, da arte teatral.
A presente proposta de reflexo acerca da linguagem
cinematogrfica intenciona a compreenso da sua estrutura, fundamentos e
conjunto de elementos especficos, porm, dentro do limite que interessa anlise
da teatralidade em Capitu. Assim, pensando em nosso objeto de estudo
questionamos: o dispositivo audiovisual necessita ser pautado por uma esttica
realista?
27
Os signos que compem as cenas na obra audiovisual Capitu
pertencem ao campo artstico do teatro, ou seja, remetem a elementos da
representao teatral. Desta forma, o espectador, assim como no teatro, no
contempla os objetos em cena como objetos reais, mas como signo de signo ou
signo que se refere ao objeto do mundo visvel.
Para melhor entender a apropriao de Luiz Fernando Carvalho de
uma linguagem mais simblica, convm lembrar que mesmo no teatro, a montagem
de intuito mimtico se limita comunicao de significados, ao passo que aquela,
liberta de analogias da realidade e rica em artifcios cnicos, multiplica seu potencial
significante:
Se compararmos o teatro naturalista e o teatro no realista, veremos que o primeiro no utiliza as diferentes formas de arte [msica, dana, etc.] numa medida to grande quanto o segundo; por outro lado, o teatro no realista apresenta nas personagens, nos figurinos, no cenrio e nos acessrios, um nmero muito maior de signos do que o teatro naturalista, onde figurino e cenrio comportam to somente um. (BOGATYREV, 1977, p. 27-28).
Os elementos cnicos figurino, maquiagem e acessrios que
constituem os quadros em Capitu, ornam-se da liberdade expressiva do teatro e
assim no so o signo em si, mas sim um signo que remete a outros signos.
Portanto, evidencia-se a criao de uma mise-en-scne trabalhada nos fundamentos
da teatralidade, isto , naquilo que especificamente teatral, a circulao da fala, o desdobramento visual da enunciao (personagem/ator) e de seus enunciados e
principalmente a artificialidade da representao. (PAVIS, 2008, p.372). Para
Danilo Santos de Miranda (2011, p.17),
A complexidade do tema [discusso do conceito de teatralidade] de tal ordem que no permite estabelecer concluses fechadas; a teatralidade assume formas e expresses to variantes quanto o prprio ser humano, uma vez que lhe intrnseca. O que se pode depreender desse ciclo de debates, habilmente conduzido por Ana Lcia Pardo, justamente a amplitude da significao do conceito e a fartura de sua expresso corroborando, portanto, o largo sentido que lhe atribudo pela definio de Patrice Pavis.
Com isso, a presente pesquisa precisa salientar que est ancorada
na definio de teatralidade que se encontra ao analisar meios de revitalizao do
pblico e formas de encenao contestadoras ao longo da histria do teatro.
28
A histria do teatro confunde-se com o posicionamento do
espectador, que transita entre voyeur passivo, participante crtico e sujeito de
potencial interpretativo aguado. Em contestao passividade intelectual do
pblico, artistas do campo teatral desenvolveram formas de encenao que
proporcionam uma converso do espectador em agente ativo e pensante.
No final do sculo XIX, as convenes teatrais do Naturalismo
adotavam os recursos cnicos que colaboravam para a reproduo do real. At
mesmo pedaos de carne encharcados de sangue entram em cena na pea Les
Bouchers (1888) montada por Antoine. Subjetividade e dimenso imaginria no
eram ambies deste teatro.
Em plena atividade do movimento Naturalista encabeado por
Antoine, surge o Simbolismo para afirmar o potencial da arte cnica a partir da
teatralidade. neste momento que nascem as contestaes que marcam o teatro
moderno. A corrente simbolista resgatou os cenrios compostos por telas pintadas,
disseminando um questionamento sobre o mimetismo tpico do movimento
naturalista. Eles no mais se preocupam com a representao fiel do real, com o
pictorialista, mas sim, com a organizao de formas para sugerir coisas.
O teatro simbolista pretende renunciar a maioria das aquisies tcnicas herdadas dos dois ltimos sculos. No essencial, ir se limitar a marcar, o mais ligeiramente possvel, a estrutura de um espao. [...] O objetivo permanece o de evitar qualquer interferncia, visual, sobretudo, que pudesse prejudicar a comunho potica, a irradiao da palavra na imaginao devaneadora do espectador. (ROUBINE, 2000, p.123).
As peas teatrais perdem a relao direta com a materialidade do
mundo real e tornam-se elementos simblicos, como at mesmo as palavras, que
passam a compor o cenrio deliberadamente artificializado, tornando a arte teatral
uma estimuladora de sonhos e fabulaes.
O que o palco moderno deve essencialmente ao espetculo simbolista a redescoberta da teatralidade. A tendncia ilusionista, que prevalecia desde o sculo XVIII, preocupava-se antes de mais nada em camuflar os instrumentos de produo da teatralidade, para tornar sua magia mais eficaz. [...] Sob o impulso dado por Jarry, ela [encenao] reinventa aquilo que poderamos chamar o alarde da teatralidade. [...] Para estes, o signo teatral devia sugerir, fazer sonhar, suscitar uma participao imaginria do espectador... (ROUBINE, 1998, p. 35).
29
Ainda mais ousado, Jarry prope solues representativas que no
iam ao encontro das correntes teatrais da poca, o naturalismo e mesmo o
simbolismo, pois Ubu rei ultrapassa, em ousadia, essas correntes. De acordo com
Silvia Fernandes (2007, p. 20),
As inovaes formais da encenao do LOeuvre, pela primeira vez consciente de si mesma no uso dos recursos abertamente teatrais e antiilusionistas requeridos pelo texto de Jarry, seriam as grandes responsveis pela insurreio dos espectadores. O exrcito representado apenas por um soldado, os cavalos de papelo pendurados ao pescoo de Ubu na cena da guerra, a atuao estilizada do elenco, que imita gestos mecnicos de marionetes e recorre a uma composio vocal inusitada, adequada a cada papel, o uso de mscaras, os cenrios sintticos e no ilusionistas, [...] os cartazes indicando o lugar da ao, todas essas solues opunham-se frontalmente esttica teatral da poca.
Jarry vai alm: no apenas os elementos do cenrio so revestidos
de teatralidade, como tambm retoma o uso da mscara, aplicando na performance
do ator uma pesquisa da estilizao e o cultivo de todos os artifcios do gesto e da
voz, Jarry faz aparecer a teatralidade a descoberto, como refora Roubine (1998, p.
36):
Precursor do surrealismo, o cenrio de O rei Ubu, que pretende representar o Lugar Algum, [...] resulta sem dvida, [...] de um desejo de provocao, de negao e de destruio do teatro. Ao menos de um certo teatro. [...] E quando no existe mais nada no palco que tenha vestgio da figurao, da verossimilhana, da coerncia, ainda assim existe algo para ser visto: a teatralidade.
Um dos objetivos do teatro de Jarry e dos simbolistas era uma
criao voltada mais para as discusses sobre a prpria arte do que para questes
sociais. H, nos encenadores simbolistas, uma grande preocupao em conceber a
cena com beleza para atingir uma forma mais potica. As cores so exploradas de
modo que se criam efeitos cromticos de grande influncia sobre a sensibilidade de
quem contempla as peas. A iluminao, as cores, o movimento e mesmo o arranjo
cnico no deviam ser rejeitados, na medida em que serviam antes ao desgnio da
evocao que ao da verossimilhana. (CARLSON, 1995, p.284).
No artigo Da inutilidade do teatro no teatro de Alfred Jarry h a
proposta de uma forma cnica que atenda demanda de um pblico que est
disposto e pronto para o trabalho intelectual, contrariando a dramaturgia de seu
tempo que intencionava conquistar numerosos espectadores, trabalhando com
30
formatos mais bvios que agradam aqueles que querem ir ao teatro para se
distrair. Com cenrios hbridos, artificialidade exaltada, Jarry defende uma mise-en-
scne na qual o espectador pode imaginar por si mesmo o lugar que deseja, ou
melhor, que sabe que deseja, e o cenrio real pode aparecer no palco por
exosmose (CARLSON, 1995, p.284). Sua composio visa harmonizar a
imaginao com a materialidade teatral.
Tais questionamentos de Jarry e dos simbolistas franceses, como
Paul Fort e Lugn-Poe, alcanou a Rssia, influenciando posteriormente os
fundamentos antirrealistas do teatro. Assim, Meyerhold se ope ao seu mestre
Stanislavski a partir de reflexes semelhantes, como salienta Roubine (1998, p.37) a
esse respetio uma iluso ingnua acreditar que o teatro possa ficar a reboque
do real, a no ser que queira perder toda sua especificidade.
Em seu texto O teatro naturalista e o teatro de humor, Meyerhold
critica o fato de a encenao naturalista impedir que o espectador idealize por si
mesmo; por isso ele levou para os palcos russos um teatro estilizado a partir da
teatralidade, cuja preocupao era fazer do espectador um quarto criador, alm do
autor, do diretor e do ator. Suas encenaes buscavam um teatro universal, com
cenas que sugeriam elementos fsicos, e no os mostravam pura e simplesmente. O
pblico desempenhava o trabalho de empregar sua imaginao criativamente a fim
de preencher os detalhes sugeridos pela ao do palco (CARLSON, 1995, p. 308).
Assim, explorando vivamente seus prprios elementos, como a mscara, a atuao
improvisada, a dana, o gestual, a indumentria, etc., o teatro meyerholdiano
pretendia materializar no palco as questes mais abstratas, que marcam o mago
da existncia humana.
Posteriormente, na Alemanha, com inteno de trabalhar na esfera
poltica e tambm indagando sobre a participao do espectador do teatro, Bertolt
Brecht se ocupou em propor uma nova forma de dramaturgia e encenao, o teatro
pico, que busca o engajamento racional em detrimento do envolvimento emotivo do
pblico. Brecht instaura a prtica do distanciamento crtico que desloca o espectador
de um mergulho na iluso, provocando seu poder de juzo crtico diante dos
fenmenos representados ou discutidos na pea. O autor chama de teatro culinrio
pea que prioriza o mero entretenimento, e impe uma transformao nos
elementos cnicos, exigindo que esses perturbem o logro teatral. A forma de
encenao pica preconiza conseguir romper com as expectativas do tradicional
31
teatro culinrio e forar o espectador afeito aceitao passiva a um papel mais
comprometido. (CARLSON, 1995, p. 372).
Antonin Artaud, assim como Brecht, via o teatro como instrumento
de potencial revolucionrio, porm, Artaud tende a priorizar mudanas interiores do
homem, mais ligadas a sua psicologia, e no envolvimento poltico e social. Ele
rejeita o distanciamento, mas aspira engajar a capacidade interpretativa e levar o
espectador ao crculo mgico da ao teatral. Assim,
Brecht e Artaud acabaram representando posies diametralmente opostas, o primeiro estimulando o espectador ao raciocnio e anlise, o outro considerando o pensamento discursivo como uma barreira ao despertar do esprito aprisionado no corpo. Em Artaud, vislumbramos as inquietaes dos tericos simbolistas e surrealistas levadas mxima radicalizao. (CARLSON, 1995, p. 379).
A teatralidade, ao romper com o paradigma do teatro mimtico e/ou
naturalista-ilusionista, forte instrumento cnico para concretizar ideais
contestadores da arte teatral, e dessa mesma forma ainda permeia a encenao
contempornea.
Assim como qualquer representao artstica, o teatro pretende
comunicar a respeito do real, porm, ao atenuar a iluso e assinalar sua
teatralidade, a arte cnica conscientiza o pblico uma linguagem elaborada a partir
de um ponto de vista sobre a realidade. O que est em jogo no a assimilao
passiva, mas sim a significao elaborada intelectualmente por quem se coloca
diante da encenao.
Por conseguinte, verificamos que a teatralidade algo intrnseco ao
fenmeno teatral e se refere a elementos e recursos prprios da composio de um
espetculo. Porm, nosso olhar crtico debruar-se- sobre a forma de encenao
que no se preocupa em esconder os elementos de criao teatral, mas, ao
contrrio, os coloca em cena. Assim, fazendo aparecer os artifcios de sua
materialidade expressiva, faz com que o espectador no deixe de perceber o teatro
como teatro, os cenrios como objetos de teatro, o ator como um indivduo que est
representando ou atuando. (ROUBINE, 1998, p. 37).
Dessa forma, a teatralidade vista como um meio de representar os
artifcios e recursos da elaborao de um espetculo para assim engajar o potencial
criativo do espectador ao suscitar sua participao intelectual. O teatro indica que
32
leva em conta a percepo do espectador, e que ele teatro e somente teatro
(SARRAZAC, 2012, p. 179).
Considera-se sua capacidade metalingustica, ou seja, a
representao da representao, que lembra o pblico que se trata de fico,
portanto, requer a faculdade interpretativa para compreender o espetculo, que um
mundo parte, com regras prprias e lgicas internas. Em Capitu a imagem de um
cavalo, por exemplo, figura-se numa escultura artesanal feita de madeira e papel
sobre um suporte com rodas. Na cena referente ao captulo Tio Cosme, o narrador
descreve a personagem, o tio vivo, e seu ofcio, a advocacia. A narrao em voice-
over acompanha as imagens que iniciam com a personagem se preparando para ir
ao trabalho. Tio Cosme caminha em direo ao cavalo, toda a atuao carregada
de artificialidade, assim como a indumentria. Ele seguido pelas outras
personagens que alternam o caminhar com congelamentos bruscos e feies muito
expressivas. Sobe no cavalo com muita dificuldade devido a sua corpulncia, a
cmera d um close nas rodinhas com cata-vento do cavalo e Tio Cosme sai
acenando para as personagens que ficam.
Sequncia de imagens 1 Cavalo teatralizado.
Fonte: CARVALHO, Luiz Fernando. Capitu. Globo Marcas. Brasil, 2008.
Esse cavalo artesanal representa claramente seu papel de cavalo
para o desenvolvimento da trama, sua manifestao visual remete categoria
cavalo, mas no temos em cena a imagem fotogrfica de um cavalo num espao
33
aberto, no a imagem de um animal como o vemos em nosso mundo externo; o
que temos um referente visual, uma imagem que captamos visualmente e cujo
significado formulamos em nossa mente.
Quando lemos a palavra cavalo, buscamos o conceito mental que
possumos e trabalhamos o potencial da visualidade, imaginamos um cavalo. J no
dispositivo cinematogrfico, a imagem de um cavalo evoca diretamente sua
identificao, sem a interveno do entendimento pessoal. Ou seja, a palavra cavalo
possibilita a criao imaginria de infinitas formas do que pode ser aceito como
cavalo, mas a imagem flmica de um cavalo autoritria na medida em que no
oferece ao espectador outro cavalo seno aquele representado na tela.
J a representao teatral de natureza polissmica. O signo de um
cavalo em cena num palco , em geral, uma aluso ao conceito individual de cavalo
por ser livre de sua imagem natural. Sendo artisticamente elaborado para uma
representao, pode assim carregar consigo outros significados materializados em
sua cor, forma, volume etc.. A consequncia disso que vemos o cavalo de uma
forma, mas, possvel compreend-lo de diversas outras.
No teatro tudo faz parte de um jogo de imaginao que, apesar de
parecer complexo, lembra uma tenra infncia, quando podemos fazer de qualquer
objeto a projeo imaginativa de universos inteiros. A arte cnica se vale do jogo de
simbolizar: um objeto, um gesto cnico, uma msica, pode fazer-nos evocar
imediatamente a imagem de um cavalo e, como num passe de mgica da
imaginao, somos capazes de visualiz-lo em cena no na sua perfeio
mimtica, mas revestido de todos os vcuos metafricos e simblicos que tornam
essa experincia sinestsica, pessoal, intransfervel. H, ento, um signo, cuja
materialidade remete a quatro significados: temos a possibilidade de assimilao de
um cavalo, animal que puxa a carruagem; uma ao, a de ir ao trabalho; a
caracterizao da personalidade desjeitosa da personagem; e por fim, assinalar o
fato de que se trata de uma representao (pelo seu excesso de artificialidade).
Assim, tratando-se de um dispositivo audiovisual no qual o material
significante so imagens do mundo externo, o signo teatral passa a ser um signo
que remete no s a um objeto, como tambm a um objeto de representao
artstica, elaborando uma dupla representao, a da narrativa e tambm a
representao da ficcionalidade.
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Luiz Fernando Carvalho capaz de construir uma
metarrepresentao ao romper com os dados de base da linguagem audiovisual
(mimtica, ilusionista) e revestir sua mise-en-scne de teatralidade. Sua ambio
no fazer teatro, mas sim, traduzir estados, ideias e sensaes. O diretor encontra
na teatralidade o recurso que torna capaz a materializao de elementos mais
subjetivos, optando por recursos teatrais dentre uma vasta possibilidade de outros
meios, para a criao de uma linguagem rica e aberta a diferentes leituras. Assim,
em Capitu a narrativa no mais criada a partir de um referencial de verdade e
passa a ser uma metarrepresentao, uma linguagem que questiona o estatuto de
seu campo artstico. A obra audiovisual deixa de ser vista como uma representao
da realidade e assinala seu potencial autnomo, sua liberdade em criar um mundo
parte.
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2 ANLISE DA OBRA AUDIOVISUAL CAPITU PELO VIS DA TEATRALIDADE
O mundo inteiro um palco, E todos os homens e mulheres so meros atores:
Eles tm suas sadas e suas entradas; E um homem cumpre em seu tempo muitos papis.
William Shakespeare
Capitu a segunda realizao do Projeto Quadrante. Visando
levantar uma reflexo acerca da diversidade cultural brasileira, o Projeto de Luiz
Fernando Carvalho reuniu quatro obras literrias sendo cada uma de um canto do
pas. A obra de Machado de Assis representa o sudeste do Brasil, e, mais
precisamente, o Rio de Janeiro. A primeira cena da minissrie marca esta
caracterstica espacial de grande valor para o Projeto, contextualizando espao e
tempo tanto da obra literria Dom Casmurro quanto da audiovisual Capitu.
A obra cinematogrfica de Carvalho inicia-se com imagens do Rio de
Janeiro atual. Tomadas abertas colocam na tela um trem moderno com nuances de
imagens do Cosme Velho da primeira dcada do sculo XX. Esse procedimento o
que Eisenstein chama de cinema intelectual, no qual a montagem toda
determinada pela busca de relaes semnticas, como puro quebra-cabea.
(AUMONT, 2009,p.236).
Tal tcnica d acesso diretamente, e na forma sensvel (visual), a
ideias abstratas (AUMONT; MARIE, 2006, p. 198), sendo que em Capitu a distncia
temporal entre as imagens compostas em sucesso assinala a atemporalidade da
obra, assim como evoca uma homenagem ao Rio de Janeiro de Machado de Assis.
O trem grafitado, compondo uma imagem moderna e toda a cena acompanhada
pelo som de guitarras eltricas, no deixando dvida quanto sua
contemporaneidade.
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Sequncia de imagens 2 Cena de abertura da minissrie.
Fonte: CARVALHO, Luiz Fernando. Capitu. Globo Marcas. Brasil, 2008.
Alfredo Bosi (2007, p. 11) explica que
O objeto principal de Machado de Assis o comportamento humano. Esse horizonte atingido mediante a percepo das palavras, pensamentos, obras e silncios de homens e mulheres que viveram no Rio de Janeiro durante o Segundo Imprio. A referncia local e histrica no de somenos; e para a crtica sociolgica quase tudo. De todo modo, pulsa neste quase uma fora de universalizao que faz Machado inteligvel em lnguas, culturas e tempos bem diversos do seu vernculo luso-carioca e do seu repertrio de pessoas e situaes do nosso restrito Oitocentos fluminense burgus. Se hoje podemos incorporar nossa percepo do social o olhar machadiano de um sculo atrs, porque este olhar foi penetrado de valores e ideais cujo dinamismo no se esgotava no quadro espao-temporal em que exerceu.
Luiz Fernando Carvalho, deste modo, inicia sua obra deixando claro
o espao temporal em que ela est contextualizada, isto , sua atemporalidade.
Dom Casmurro pertence a todos os tempos por tratar de questes existenciais, tais
como as formas dos homens de se relacionarem, os limites da verdade na vida
social, a falta de conhecimento do eu e do outro, enfim, reflexes que permeiam a
humanidade nas mais diferentes realidades.
O diretor constri o efeito extemporneo partindo da contraposio
de imagens pertencentes atualidade e aquelas mais antigas, as quais indicam
serem do tempo de vida de Machado de Assis. Dessa forma, ele cria um paralelismo
temporal, pois, embora as imagens representem um certo tempo, a juno do
contemporneo ao antigo resulta num no-tempo ou em todos os tempos a partir do
momento em que o romance nasceu.
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2.1 DO TTULO: A REVELAO DA TEATRALIDADE NA OBRA AUDIOVISUAL
Assim como o narrador do romance Dom Casmurro comea seu
relato explicando a escolha do ttulo de seu livro, a presente pesquisa se inicia
enfocando a dimenso teatral da obra cinematogrfica com a anlise da teatralidade
na obra Capitu, uma vez que esta a trao fundamental da construo da minissrie
e foco da pesquisa.
No existe uma hierarquia que categorize os recursos cnicos e sua
importncia. Porm, ao quantificar os elementos significantes possvel afirmar a
relevncia das personagens na obra cinematogrfica Capitu.
A composio da personagem o aspecto fundamental no teatro
clssico; j na literatura e no cinema, apesar de no ser o alicerce, importante para
construo narrativa. O conceito de personagem traz em potencial o paradoxo de
estar entre a realidade e a fico, j que o irreal e o imaginrio fundamentado na
complexidade humana, que real. (CANDIDO, 1972). Assim como no teatro, a obra
audiovisual Capitu traz as personagens como elemento fundador da narrativa, por
serem
Contorno de ser humano feito por um criador, mais ou menos preenchido de detalhes, imitador de uma pessoa, que est destinado a cumprir um papel na pea de teatro, dizendo, fazendo, agindo, mostrando-se por gestos, atitudes, entonaes, levando adiante a ao dramtica que a essncia da obra teatral. (PALLOTTINI, 1989, p.13).
Destaca-se na forma audiovisual tradicional, principalmente nos
produtos da indstria cultural televisiva e cinematogrfica, a preocupao em
elaborar a personagem para que o pblico se identifique com ela, especialmente
com a protagonista da trama. Ismail Xavier (2005, p.34) afirma que o cinema
habitual se fundamenta em uma interao entre o ilusionismo construdo e as
disposies do espectador, ligado aos acontecimentos e dominado pelo grau de
credibilidade especfica que marca a chamada participao afetiva.
Compreende-se que ao assistir a uma obra cinematogrfica usual, o
espectador passeia pela breve experincia de ser o outro, de viver as emoes da
personagem. Sem se dar conta de sua ficcionalidade, possvel que o pblico
esquea-se de si mesmo e incorpore uma vida alheia que lhe proporcione novos
experimentos. A definio de personagem encontrada no Dicionrio terico e crtico
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de cinema afirma o uso marcante, nas narrativas audiovisuais, deste modelo
representacional que provoca a identificao:
A etimologia grega do termo latino persona designava a mscara, ou seja, o papel interpretado pelo ator. Este claramente destacado de sua personagem, da qual era apenas o executante e no a encarnao. A evoluo do teatro ocidental marcada por uma inverso completa dessa perspectiva, identificando a personagem cada vez mais com o ator que a encarna e transformando-o em uma entidade psicolgica e moral, encarregada de produzir no ato um efeito de identificao. O cinema herda dessa concepo da personagem, mesmo se durante a primeira dcada, aquela do filme dito primitivo: o ator encarna mais um tipo social, uma figura, um esteretipo [o militar e a bab, por exemplo], do que uma entidade psicolgica independente. Correlativamente, a encarnao por um ator [de carne e osso, mas representado filmicamente por imagens e por falas] o modo mais habitual de representao da personagem de cinema. (AUMONT; MARIE, 2006, p. 226).
Contrariando esta forma cinematogrfica hegemnica, a obra de
Luiz Fernando Carvalho direciona para novas percepes que colocam em xeque o
culto ao efeito de identificao. Passemos anlise da narrativa para explicar tal
fato, intrinsecamente relacionado constituio da teatralidade e importante para a
compreenso de toda narrativa.
Em meio a uma composio cinematogrfica que faz o mundo real
imagem na tela, ou seja, passageiros comuns e o trem moderno, Dom Casmurro
surge portando uma indumentria teatral fraque, cartola e maquiagem marcante
ao lado do jovem poeta, caracterizado de forma perecida. As duas personagens
dialogam de modo exagerado, diferenciando-se bruscamente tanto da locao
externa quanto das pessoas ao redor, que constituem imagens do mundo
contemporneo. Depois de narrar a eventualidade que lhe rendeu o apelido, Dom
Casmurro termina a cena dizendo: A vida tanto pode ser uma pera, quanto uma viagem de barca, ou uma batalha.
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Sequncia de imagens 3 Cena no interior do trem.
Fonte: CARVALHO, Luiz Fernando. Capitu. Globo Marcas. Brasil, 2008.
Na linguagem audiovisual o espectador toma como real as imagens
da tela. No filme clssico, o ato de criao dos artifcios narrativos cinematogrficos
estrategicamente ocultado a favor da impresso de realidade. Assim, a
teatralidade em Capitu suscitada por um contraste formulado a partir de imagens
que compreendem efeito de realidade e efeito de real em oposio ao efeito teatral.
Nota-se que
O efeito de realidade designa, pois, o efeito produzido no espectador pelo conjunto de ndices de analogia em uma imagem representativa. [...] Trata-se no fundo de uma variante, recentrada no espectador, da ideia de que existe um catlogo de regras representativas que permitem evocar, ao imit-la, a percepo natural. O efeito de realidade ser mais ou menos completo, mais ou menos garantido, conforme a imagem respeite convenes de natureza plenamente histrica. (AUMONT, 2009, p. 111).
Este efeito assiduamente usado na arte cinematogrfica. Mas em
Capitu, ao contrrio do cinema habitual, ele ardilosamente aplicado para destacar
a teatralidade em cena. Isto porque as pessoas no trem, ao integrarem a cena so,
de fato, representaes fictcias, ou seja, personagens figurantes, porm, a imagem
anloga que temos como referncia de mundo real, criando, portanto, o efeito de
realidade, sendo que no se v tais pessoas como personagens de uma obra
fictcia, mas sim como seres reais.
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A tomada externa mostra o trem, em seguida passa para a cena na
qual as personagens teatralizadas contracenam dentro do vago. Essa oposio de
imagem que porta o efeito de realidade e personagens caracterizados plasticamente
compe um momento esteticamente calculado num jogo de contrastes entre tais
efeitos (de realidade, real e teatral).
O espectador v esta cena como fenmeno natural, ou seja, ele a
percebe sem investimento mental para entend-la, uma imagem de seu cotidiano
com fcil identificao. Assim, esta imagem flmica do vago e seus passageiros
provoca um efeito de real, sendo que
Na base de um efeito de realidade suposto suficientemente forte, o espectador induz um julgamento de existncia sobre as figuras da representao e atribui um referente no real. Ou seja, o espectador acredita, no que o que v o real propriamente [...], mas, que o que v existiu, ou pode existir, no real. (AUMONT, 2009, p. 111).
O efeito de realidade intrnseco arte cinematogrfica, j o efeito
de real modulado de acordo com a vontade do diretor. O segundo decorrente do
primeiro, sendo o efeito de real um trabalho de inteno do artista em fazer com que
o espectador realmente tome aquilo como mais ou menos real. Isso fica evidente na
cena do trem, pois quando o espectador se depara com a imagem flmica daquelas
pessoas comuns e tambm com a do prprio trem, acredita em sua existncia e
que esto ali executando aes do seu dia a dia, e no representando.
O efeito de real predomina por um momento, at que entra a figura
de Dom Casmurro e sua ficcionalidade exaltada, que desestabiliza o espectador e o
coloca em situao de estranhamento. O efeito de real tambm interpretvel
como regulagem, entre outros possveis, do investimento do espectador na imagem
(AUMONT, 2009, p. 111), e esta ruptura, que provoca um entendimento da
existncia de fico, altera o estado de recepo do pblico, deixando-o numa
condio mais atenta. Com isso, verifica-se que a composio das personagens do
plano narrativo, ou seja, as que pertencem ao enredo de Dom Casmurro, assim
como a criao cnica do resto da obra, so edificadas por uma artificialidade
escancarada. Esta artificialidade alcana o efeito teatral, que
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Ope-se a efeito de real. Ao cnica que revela imediatamente sua origem ldica, artificial e teatral. A encenao e interpretao renunciam iluso: elas no mais se do como realidade exterior, mas salientam, ao contrrio, as tcnicas e os procedimentos artsticos usados, acentuam o carter interpretativo e artificial da representao. Paradoxalmente, o efeito teatral banido da cena ilusionista, pois lembra ao pblico sua situao de espectador ao enfatizar a teatralidade ou a teatralizao da cena. (PAVIS, 2008, p. 121).
Tal contraste a chave fundamental para a leitura de toda a obra. A
partir dessa oposio imagtica e performtica, o diretor Luiz Fernando Carvalho
deixa claro o seu propsito: no se trata de retratar, reproduzir ou adaptar um
romance para a tela, mas sim, de recriar no meio cinematogrfico parte do potencial
literrio de Machado de Assis.
Para estes signos serem apreendidos como signos propriamente,
isto , para que se possa assistir cena e saber que aquelas figuras teatralizadas
esto representando, participando de uma representao artstica, coloc-las
primeiramente em meio a imagens anlogas ao mundo real cria uma tenso que
facilita a assimilao dessas personagens como personagens. Sendo o cenrio
elaborado por signos cinematogrficos, que trazem em sua essncia o efeito de
realidade, as personagens se diferem bruscamente e deixam claro o propsito de se
apresentarem como personagens. Isto porque os figurinos das personagens Dom
Casmurro e Poeta so compostos por signos teatrais, e estes signos, em meio aos
signos cinematogrficos, ganham uma plasticidade escancarada. Desta forma,
maquiagem marcante, fraque, cartola, etc., so signos que representam no s uma
vestimenta, mas uma vestimenta que prpria a uma representao artstica.
A teatralidade um estado de saber do espectador. Por exemplo,
quando ocorre uma encenao em um local pblico, em meio rotina comum das
pessoas, essa performance pode ser recebida como um mero acontecimento ou, no
caso das pessoas que tenham conscincia de que aquilo uma ao cnica, o
conhecimento da inteno de teatro traz tona a teatralidade. Assim Paul Zumthor
(2007, p. 41) explica este fenmeno:
Num lugar pblico (artigo diz: no metr) algum fuma; um outro o agride, arranca seu cigarro ou comete uma outra ao violenta. Para a multido que enche o vago trata-se de um acontecimento. Mas algum nessa multido sabe que isso simplesmente um jogo, montado por uma associao antitabagstica. H ento teatralidade? Para a multido no. Mas para o espectador a par do plano sim. A teatralidade neste caso parece ter surgido do saber do espectador, desde que ele foi informado da
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inteno de teatro em sua direo. Este saber modificou seu olhar, forando-o a ver o espetacular l onde s havia at ento acontecimento. Ele transformou em fico aquilo que parecia ressaltar do cotidiano, ele semiotizou o espao, deslocou os signos que ele ento pode ler diferentemente... A teatralidade aparece aqui como estando do lado do performer e de sua inteno firmada de teatro mas uma inteno cujo segredo o espectador deve partilhar.1
A impresso de realidade do meio audiovisual, como dissertado no
primeiro captulo, permeada pelo fato de possuir uma linguagem fortemente
pautada em representaes mimticas. Este dado colabora para que a composio
cnica apresentada na cena inicial, quando em contraste com a imagem
cinematogrfica realista, proporcione a manifestao da teatralidade, ou seja, o
saber da inteno de arte. Isto porque o estranhamento causado pela quebra da
expectativa do pblico que est habituado a representaes mais naturalistas. Os
primeiros minutos do filme no fogem linguagem tradicional, porm, a entrada das
personagens teatralizadas em cena surpreende e desestabiliza o espectador,
convidando-o a reposicionar-se. Dessa forma, Luiz Fernando Carvalho cria uma
circunstncia favorvel e legvel para guiar o olhar do espectador que fica a par da
existncia de um espao ficcional.
A condio necessria emergncia de uma teatralidade performancial a identificao, pelo espectador-ouvinte, de um outro espao; a percepo de uma alteridade espacial marcando o texto. Isto implica alguma ruptura com o real ambiente, uma fissura pela qual, justamente, se introduz essa alteridade. (ZUMTHOR, 2007, p. 41) .
Essa teatralidade se desdobra ao longo de toda a obra, em particular
na ao das personagens que, de forma proposital, revelam que esto
representando e adotam a posio de seres ficcionais, rompendo com a tpica iluso
audiovisual. Carvalho sublinha a fronteira entre o real e o fictcio, realizando a
almejada teatralidade definida por Paul Zumthor (2007, p. 42): o que mais conta o
reconhecimento de um espao de fico. No caso da obra cinematogrfica Capitu,
justamente a ruptura marcada na cena do trem entre o que parece ser real e o
que indica ser representao que determina o posicionamento do espectador diante
do que lhe ser apresentado. Assim, o diretor cria o espao virtual do outro: o
espao transicional, isto , a teatralidade passa a ser uma colocao em cena do
sujeito, em relao ao mundo e a seu imaginrio. Logo de incio institui-se, portanto, 1 FRAL, Josette. La Thtralit. Potique, 1988, p.71 77.
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um acordo entre espectador e obra, no qual o observador deve aceitar que se trata
de um mundo ficcional que possui uma lgica interna divergente do seu ambiente
externo.
Quando a conveno est estabelecida, tudo o que o observado faz ou diz no mais vendido pelo preo que comprou, mas como ao ficcional que tem sentido e verdade apenas no mundo possvel no qual observador e observado convencionam se situar. (PAVIS, 2005, p.51).
A teatralidade no s estabelece que se trata de fico, mas
tambm traz consigo apoia-se na construo da cena a partir dos signos teatrais.
Como foi discutido no captulo I, o signo teatral permite a composio de uma
representao mais liberta de um mimetismo opressor como o do signo
cinematogrfico clssico. Com isso, a construo cnica de Carvalho possibilita uma
representao aberta que chama o espectador responsabilidade de atuar como
ser ativo na complementao do significado. Isso porque, assim como no teatro,
A percepo do espectador tende a buscar a forma mais equilibrada, simples e regular, a distinguir conjuntos com contornos nitidamente desenhados, hierarquizados, uns em relao aos outros, mas percebidos globalmente pelo olho e entendimento humanos. [...] O teatro no chega at algum, algum faz chegar o teatro a si mesmo (TINDEMANS, 1983)2. Quer se trate do pensamento conceitual, do olhar sobre a pintura ou sobre a representao teatral, o olho e o esprito so ativos e no registradores: Pensar tentar, operar, transformar, sob a nica reserva de um controle experimental no qual intervenham apenas fenmenos altamente trabalhados, e que nossos aparelhos produ
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