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LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
TEMA 1:
TEORIAS IMPLÍCITAS SOBRE O
DESENVOLVIMENTO
Docentes: Lina Morgado Angelina Costa
© Universidade Aberta, 2009 Psicologia do Desenvolvimento
U. C. PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO, UNIVERSIDADE ABERTA
1
Texto 1 :
As Grandes Questões sobre a Natureza Humana Observado de outro planeta, o comportamento humano pareceria muito surpreendente.
O Homem é uma das raras espécies animais que matam o seu semelhante de forma deliberada.
Mais ainda, nuns casos condena o crime individual, noutras condecora os responsáveis por
homicídios colectivos ou os inventores de atrozes máquinas de guerra. Este louco absurdo
persegueo ao longo da História, desde a invenção do machado de pedra lascada até à construção
de bombas termonucleares, e resistiu a todas as religiões e a todas as filosofias, mesmo às mais
generosas. Mas o Homem também pintou a Capela Sistina, compôs a Sagração da Primavera,
descobriu o átomo. Que quimera é este Homem? Que novidade, que monstro, que caos, que ser
contraditório, que prodígio! Quem será este Homo, que a si próprio atribui, sem vergonha, o
epíteto de Sapiens? J.‐P. Changeaux, O Homem Neuronal, 1985
Os humanos gostam mais de oferecer bombons aos filhos do que arrancar-lhes os dentes.
Assistem com muito mais agrado a desafios de ténis do que a cenas de tortura. Na maior parte dos
casos, o assassínio ou a vingança não são mais do que gestos desesperados. Os verdadeiros
sádicos, os assassinos e os carrascos, os que gozam cm o sofrimento, não estarão gravemente
doentes?
Muitos animais são carnívoros. O leão devora antílopes e gazelas, o gato contenta-se com
ratos e pardais, o homem come carne e peixe, por vezes até crus, ou marisco vivo. Mas a
antropofagia, onde quer que seja declarada, continua a ser um acto excepcional, singularizado,
ritualizado e carregado de conotações simbólicas: a carne humana não é de uso normal em
nenhuma sociedade conhecida.
Por que razão somos assim tão relutantes com o sangue e a carne dos nossos congéneres e
não com a carne do talho? Sem dúvida porque mantemos com eles laços privilegiados. E também
porque nos reconhecemos como semelhantes, como membros de uma mesma espécie definida por
caracteres estáveis.
Os homens não são idênticos, mas assemelham-se muito. Que os nossos olhos sejam em
bico ou não, que a nossa epiderme seja clara ou escura, o que nos une prevalece sobre o que nos
separa: todos temos uma boca, dois olhos, um nariz, um queixo, duas mãos, cinco dedos em cada
mão, o que nos confere uma aparência tipicamente humana, distinta da fisionomia dos cavalos,
por exemplo. Mas se sentimos pena ou até repugnância face ao homem cujos membros foram
amputados ou face ao homem-elefante no cinema, não os julgamos menos homens por isso. Uma
figura de cera do museu Grévin pode suscitar espanto e admiração. Porém, jamais lhe dirigiremos
3
a palavra. As semelhanças que nos unem não são, pois, unicamente físicas. Reconhecer no outro o
nosso semelhante é, também, reconhecer nele um certo número de caracteres psicológicos que,
pela mesma razão dos elementos-chave da nossa fisiologia, são comuns a todos os membros da
espécie e constituem a «natureza humana». Adaptado e J. Mehler e E. Dupoux, Nascer Humano, 1994
Quem sou eu?
Por um lado, sou um conjunto de células organizadas em ossos e em músculos, em
pele e cabelo, num cérebro, fígado e outros órgãos. Parte daquilo a que chamamos
comportamento e processos mentais são actividades destas células especializadas e da sua
capacidade de comunicar umas com as outras. Paremos de ler por um momento e sintamos o
nosso pulso.
Estamos vivos porque o nosso coração bate e os nossos pulmões respiram graças à
actividade das células do nosso cérebro. Mais ainda, foi graças às capacidades das nossas
células se dividirem e executarem funções específicas que evoluímos de uma célula
fertilizada para o ser complexo que somos hoje.
Algumas células especializadas tornam possível outro aspecto do comportamento e
dos processos mentais: a capacidade de receber informação vinda dos mundos externo e
interno. Paremos de ler outra vez e olhemos para a esquerda e para a direita. As imagens que
vemos, tal como aquilo que está impresso na página, são resultado de um processo através
do qual as células dos nossos olhos convertem a luz em actividade nervosa que chega ao
cérebro. Excepto quando existe alguma incapacidade, as células dos órgãos dos sentidos dão
ao nosso cérebro informação que nos permite não só ver o mundo, mas também ouvi‐lo,
cheirá‐lo, saboreá‐lo, senti‐lo. Mexemos um dedo. São células do nosso cérebro e do sistema
motor que nos permitem mexer os dedos como fizemos agora. Tal como nos permitem
produzir padrões de comportamento a que chamamos andar, dançar ou falar.
Então somos apenas um conjunto de células que recebe passivamente informação
automaticamente e reage a ela? Claro que somos muito mais do que isso. Também
interpretamos e construímos significados. Mais ainda, podemos pensar e tomar decisões.
Suponhamos que alguém está na nossa frente com uma faca. Reconhecemos a faca como um
objecto perigoso e percebemos o significado das palavras «Passa para cá o dinheiro». Nós
obedecemos. No entanto, se a pessoa sorri e diz «Parabéns!», provavelmente pensamos que
a faca serve para cortar um bolo. A nossa decisão sobre o que fazer nestas duas situações é
orientada não só pelas circunstâncias do momento, mas também pela capacidade de
aprendizagem e memória. Se não compreendemos as palavras ou não nos lembramos da
cara das pessoas da nossa família, ou o que aprendemos sobre ladrões e aniversários,
estamos perdidos.
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Parece que somos seres completamente racionais, capazes de processar friamente
informação em qualquer situação. Mas, no caso da faca, teremos apenas o pensamento lógico
a funcionar? Provavelmente não. Sentimos também emoções e sentimentos de medo ou de
felicidade. Somos capazes de sentir estes e muitos outros. De onde vêm as emoções e os
sentimentos e por que é tão difícil geri‐los? Podemos colocar as mesmas questões
relativamente aos nossos desejos e necessidades. Talvez alguns de nós façam trabalho
voluntário, adorem ler, tenham dois empregos ou comam mais do que deviam. Mas por que
razão nos comportamos desta forma? O que é que no nosso comportamento nos faz sentir e
como é que os sentimentos influenciam o nosso comportamento? Estas são outras
dimensões do ser e reflectem outros aspectos do comportamento e dos processos mentais.
Acima de tudo, cada um de nós é um indivíduo, de muitas formas diferentes de
qualquer outro na Terra. Temos a nossa própria identidade, capacidades, valores, atitudes,
crenças e até uma série de problemas de um tipo ou de outro. A nossa individualidade
emerge parcialmente de um conjunto único de características herdadas dos nossos pais e
parcialmente da experiência de crescimento numa família particular e numa cultura
específica. As diferenças individuais nos comportamentos, nos processos mentais e nos
processos de desenvolvimento parecem um caleidoscópio.
Finalmente, porque somos indivíduos num mundo social, colocamo‐nos a questão
«Quem sou eu?» o que inclui algo sobre como e onde estamos no mundo. Podemos
mencionar o tamanho da nossa família, o papel que desempenhamos nas organizações a que
pertencemos, as nossas atitudes face ao governo. Nenhuma definição de Homem estará
completa sem referência à forma como as pessoas pensam e se relacionam umas com as
outras. E não nos admiremos. As grandes realizações humanas, como uma sinfonia ou a
conquista do espaço, acontecem quando as pessoas trabalham em conjunto. Todas as
grandes tragédias, do Holocausto ao terrorismo, acontecem quando os preconceitos e os
ódios voltam as pessoas umas contra as outras. Adaptado de D. Bernstein, Psychology, 2000
Como todos os seres vivos, o homem recebe à partida um património de informações
genéticas que lhe confiam todos os segredos de que o seu organismo precisa para se
constituir, desenvolver e lutar para sobreviver. As substâncias complexas que vão fazer
parte do seu ser, os subtis mecanismos reguladores que o irão estabilizar, os relógios
internos que irão cadenciar o seu desenvolvimento são influenciadas pelo conjunto de genes
que recebeu em partes iguais do pai e da mãe.
Mas esses genes isolados são mudos, não se conseguem exprimir senão com a participação
do meio. A complexidade dos seres humanos manifesta‐se numa certa liberdade de reacção
que dá lugar a comportamentos novos. Torna‐se possível a inovação. Cada ser pode
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beneficiar da sua experiência pessoal para se comportar mais eficazmente em cada
circunstância. Quando as lições desta experiência são transmitidas à geração seguinte, foi
ultrapassada uma etapa decisiva. O indivíduo procriado beneficia de um período de
aprendizagem junto dos ses progenitores. A transmissão de informações desconhecidas do
património genético foi assegurada e este foi acrescido de um património cultural.
Na nossa espécie, a aprendizagem é mais decisiva e mais longa. Mais do que qualquer
outro animal, somos incapazes de sobreviver sozinhos. Embora menos aptos do que outros
animais, beneficiamos de um incomparável privilégio, o poder praticamente ilimitado de
aprender. Esta capacidade extraordinária foi aproveitada para inserir uma terceira linha de
informação. Devido à linguagem e à escrita, o homem criou uma memória exterior a si
próprio e capaz de lhe sobreviver. Ela encerra o conjunto da experiência humana. Apesar de
esquecidos por todos os homens durante séculos, os antepassados longínquos,
desaparecidos há muito tempo, podem ainda comunicar‐nos as suas aprendizagens se
soubermos decifrar a sua escrita. Isto permite afirmar, segundo a expressão do filósofo Jean
Paul Sartre, que cada homem é «feito de todos os homens». (…)
Eu não sou como os outros. A partir de um bebé inconsciente, inacabado, fomos,
pouco a pouco fabricados por todos os contributos do mundo que nos rodeia. Lançando mão
de todos os recursos, devorando tudo, desenvolvemo‐nos sem preocupações, às cegas,
empanturrados de papas, conselhos, de bandas desenhadas, de afecto, de repreensões e de
televisão.
Chega então uma idade em que olhamos para nós próprios: quem é este ser em que
me transformei? O que é que ele vale? Examinamos o olhar dos outros que, muitas vezes, no
trespassa sem nos ver (serei tão insignificante?), ou nos chega carregado de ironias e
desprezos (serei ridículo?). Vemo‐nos ao espelho. Serei belo? Serei inteligente? A resposta a
estas duas perguntas lancinantes é diferentes dos outros.
Eu não sou como os outros é claro, porque o meu património genético, fruto de uma
dupla lotaria, é único; como única é a aventura que vivo. O que tenho em comum com todos
os outros é o poder de, a partir do que recebi, participar na minha própria criação.
Mas é preciso que mo permitam
E para isso contribuíram os meus pais, cujo óvulo e espermatozóide continham todas
as receitas de fabricação das substâncias que me constituem.
E a minha família, pelo alimento, pelo calor, pelo afecto, que me permitem crescer e
estruturar‐me.
E a escola, que me transmitiu conhecimentos lentamente acumulados pela
Humanidade desde que esta procura conhecer‐se e conhecer o Universo.
E todos os que me amaram com o seu insubstituível amor.
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Mas sou eu que tenho de concluir a obra, que tenho de colocar a trave‐mestra.
Esqueçam o modelo que gostariam que eu fosse. Não sou obrigado a realizar o sonho que
imaginaram para mim; isso seria trair a minha natureza de Homem. Para que eu seja
verdadeiramente um Homem, devem oferecer‐me mais uma coisa: a liberdade de vir a ser o
que escolhi. Adaptado de A. Jacquard, O Meu Primeiro Livro de Genética, 1984
Texto 2 :
Diferentes Vertentes do Desenvolvimento Humano
A Psicologia do Desenvolvimento é uma das áreas de estudo e de intervenção da
psicologia e pretende, em termos gerais, responder à questão «O que é que muda em nós ao
longo da vida?». Deste modo, a psicologia do desenvolvimento tem por objectivo estudar a
génese e a evolução dos processos psicológicos ao longo do tempo, quer dizer, as mudanças
que acontecem com a idade.
Um bebé sorri para a mãe, uma criança de três anos compreende uma conversa, uma
outra, de seis anos, brinca com os amigos e inventa as regras de um jogo. As crianças de oito
e dez anos são capazes de memorizar a mesma lista de palavras, um adolescente consegue
resolver uma equação matemática, uma pessoa de trinta anos faz opções sobre a sua carreira
profissional, outra, de quarenta e dois resolve um problema emocional e outra, ainda, de
sessenta decide que vai reformar‐se. Estes são exemplos de comportamentos que
observamos no nosso quotidiano e que nos dizem o que as pessoas são ou não são capazes
de fazer. Considera‐se que o desenvolvimento é o processo contínuo de mudança psíquica
que ocorre ao longo da vida. Um processo contínuo, global e dotado de grande flexibilidade.
Na Psicologia do Desenvolvimento estuda‐se a forma como nos desenvolvemos ao
longo do ciclo de vida, da fecundação até à morte. Durante muito tempo considerou‐se que o
desenvolvimento terminava na idade adulta. O período da infância, em especial, atraía a
atenção dos investigadores e daqui surgiram muitas teorias a explicar o que é que acontece
durante esta fase de vida. Isto explica‐se pela razão de, na infância, ocorrerem mudanças
muito visíveis e acentuadas.
Hoje em dia, a idade adulta e a velhice são alvos de tanta curiosidade como a infância
ou a adolescência. As pessoas não param de se desenvolver quando atingem a idade adulta.
Progressivamente, foi‐se abandonando a ideia de imutabilidade dos adultos. As alterações
das condições de vida, especialmente nas sociedades ocidentais, reforçaram este facto.
Pensemos, por exemplo, que os jovens são inseridos cada vez mais tarde no mundo do
trabalho, na precariedade do estatuto profissional, no aumento de divórcios, nos casamentos
posteriores. Quer dizer que surgem continuamente novas exigências de adaptação que
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requerem o desempenho de novos papéis sociais. Mudamos mesmo depois de crescidos e
diferentes fases da vida implicam diferentes exigências biológicas, sociais e também
psíquicas que é importante conhecer. Por isso, muitas investigações se debruçam sobre o
modo como respondemos a elas.
Também as ideias sobre os mais velhos têm mudado, distanciando‐se de concepções
associadas à degradação. Factores como o aumento do tempo de vida, a deterioração de
algumas capacidades e a evolução de outras, o entrar na reforma quando se está apto para
um conjunto de tarefas e de relações permitem às pessoas manter capacidades de adaptação
a novas situações e estarem abertas à mudança e à vida. Por exemplo, a densidade de
neurónios corticais começa a diminuir desde o nascimento, tal como a acuidade perceptiva
que começamos a perder muito cedo. Por tudo isto é fácil perceber que nos desenvolvemos
ao longo da nossa existência. O corpo e as capacidades físicas evoluem, a vida afectiva
transforma‐se, o estatuto social muda.
A Psicologia do Desenvolvimento centra‐se nas mudanças ao longo da vida. Aqui,
mudança significa alterações quantitativas e qualitativas, do gatinhar ao andar, do balbuciar
ao falar, do raciocínio ilógico ao lógico, da infância à adolescência, à maturidade, à velhice, do
nascimento à morte. Por isso, parece importante perceber como é que o comportamento e os
processos mentais mudam ao longo da vida, tendo em conta factores físicos e biológicos,
cognitivos, afectivos e sociais que influenciam as diversas fases de crescimento e de
desenvolvimento. Como estes factores não actuam isoladamente, surgem questões
relativamente à interacção entre eles e ao papel que cada um desempenha no processo
global. Também os contextos, por exemplo o contexto histórico, socioeconómico, cultural ou
étnico, em que as pessoas se desenvolvem permitem compreender melhor a sua evolução.
Ao longo da sua história de mais de cem anos, têm surgido na psicologia do
desenvolvimento uma série de modelos teóricos que explicam de modo diferente o
fenómeno da mudança e o papel destes factores no processo de desenvolvimento. Cada
modelo tem explicações próprias e enfatiza diferentes vertentes do desenvolvimento.
Embora algumas destas explicações possam parecer contraditórias, esta diversidade de
ideias enriquece a compreensão que temos do ser humano e do seu desenvolvimento.
Historicamente, estas diferentes concepções têm‐se organizado muitas vezes em
dicotomias, ou seja, em ideias que se situam em posições extremas. Outras vezes tem‐se
tentado ir para além delas e integrá‐las permitindo uma visão mais alargada. Essas
dicotomias normalmente estão na base daquilo que as pessoas pensam sobre o
comportamento humano. Podemos referir as mais importantes através de uma série de
questões. Será o desenvolvimento humano consequência de factores hereditários ou de
factores adquiridos? O desenvolvimento é um processo contínuo ou haverá rupturas que
impliquem descontinuidade? O desenvolvimento dependerá mais de factores internos da
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pessoa ou de factores externos? O desenvolvimento é um processo que implica a
estabilidade da pessoa ou mudança contínua?
Há muitos séculos que se coloca a questão da origem das características dos seres
humanos, do que os leva a ser e comportar‐se de determinada forma. Muitos investigadores
e pensadores têm procurado responder a uma questão que pode variar de enunciado. O que
é que nos torna humanos? O que é que nos leva a comportarmo‐nos de determinadas
formas? Como se explica que nos comportemos de modo diferente uns dos outros? Para
responder a estas perguntas, diferentes autores colocaram‐se nos pólos extremos da
dicotomia: o pólo do inato, da hereditariedade, da natureza, e o pólo do adquirido, do meio,
da educação.
O Inato e o Adquirido
O pólo inato tem estado ligado a formas de ver o ser humano e o seu
desenvolvimento como sendo determinado pelas suas características biológicas e corporais.
Os defensores desta perspectiva defendem que há uma natureza em nós, no nosso corpo, nos
nossos genes (ou até na nossa evolução filogenética), que é responsável pelo que somos e
pela forma como nos comportamos.
O comportamento humano seria, fundamentalmente, determinado pela
hereditariedade. Seria o património genético herdado dos progenitores que definiria a
constituição orgânica e psíquica dos indivíduos, bem como o seu comportamento,
desenvolvimento, personalidade. Essas características seriam, portanto, inatas, isto é,
nasciam connosco. A maturação encarregar‐se‐ia de orientar o crescimento biológico do
corpo e o desenvolvimento segundo padrões definidos por determinados programas
genéticos.
No pólo adquirido, relativo à educação, à influência do meio ambiente, encontramos
perspectivas que defendem que são as nossas experiências sociais e culturais que
determinam a nossa forma de ser. Nós seríamos produto do que aprendemos e os ambientes
em que vivemos modelariam o nosso desenvolvimento. Os autores que defendem este
princípio procuram ligações entre determinados ambientes e os percursos de vida. A forma
como somos educados e aquilo que aprendemos são responsáveis pelo que somos e pelos
comportamentos que manifestamos.
Nas explicações que propõem, os autores favorecem as variáveis do ambiente (o que
está presente no contexto, o conjunto de estímulos) e os conceitos de adquirido (o que passa
a fazer parte do repertório de comportamentos de uma pessoa, o que é aprendido em
determinada situação) e de socialização (enquanto conjunto de experiências e
aprendizagens, vividas socialmente, por exemplo com a família).
Alguns autores procuram integrar elementos desta dicotomia, como é o caso de
Piaget que valoriza quer os factores maturativos, quer os factores socioculturais. Piaget
9
defende uma posição que não é nem inatista, nem empirista: a pessoa tem um papel activo
no seu desenvolvimento. Neste processo intervêm factores biológicos e factores relativos ao
meio, às acções sobre o meio e à transmissão social. A sua concepção interaccionista e
construtivista visa uma síntese possível entre os dois pólos.
A Continuidade e a Descontinuidade Cada um de nós está em permanente reconstrução. À medida que vivemos,
que crescemos, que vamos agindo, que nos relacionamos com as outras pessoas, vamo‐nos
transformando e vamo‐nos tornando quem somos, encontrando as nossa formas de pensar,
de sentir e de agir.
A dicotomia entre continuidade e descontinuidade relaciona‐se com a forma
como muitos autores vêm e explicam as transformações que as pessoas vão sentindo. As
perspectivas mais centradas na continuidade e as mais centradas na descontinuidade
produzem diferentes compreensões sobre as mudanças que ocorrem na vida de cada um.
Na sua definição mais elementar, a noção de continuidade diz respeito a algo
que continua a existir de modo semelhante ao que existia antes. Nesta perspectiva, a
mudança é gradual. A noção de descontinuidade aponta o aparecimento de algo que não
existia antes, para uma mudança abrupta. A questão da continuidade/descontinuidade tem
marcado a psicologia do desenvolvimento e diferentes modelos que a explicam as mudanças
e transformações ao longo do tempo.
Muitos modelos mais centrados na continuidade tendem a ver as mudanças
em determinados comportamentos como resultado de uma mudança quantitativa, isto é,
como uma mudança que ocorre através da acumulação de associações a estímulos. Mais
respostas condicionadas ou mais competências adquiridas aumentam o repertório de
comportamentos observados e modelados e, portanto, das diversas formas de agir.
Para os autores que defendem a descontinuidade as acções e as relações
conduzem ao surgimento de possibilidades de agir, sentir e pensar de modos novos e
diferentes. A existência destas maneiras novas de compreender e de agir no mundo, de criar
sentido para o que vai acontecer, torna necessária uma reorganização que resolva os
conflitos entre as compreensões mais recentes e as mais antigas. Quando esta reorganização
conduz a uma lógica global de organização de formas de pensar, de agir e de sentir nova,
ocorrendo uma transição para o estádio de desenvolvimento seguinte.
As teorias mais centradas na descontinuidade tendem a ver as
transformações como envolvendo momentos de reorganização. As novas formas de
organização apresentam‐se como qualitativamente diferentes das anteriores. As mudanças
não são vistas como quantitativas, mas como qualitativas. Em vez de haver acumulação de
respostas, há diferenciação e novidade nestas. Há sempre um modo de organização global
que não existia antes e que emerge.
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Para explicar o desenvolvimento humano tanto a continuidade como a
descontinuidade são importantes. Mudamos e vamo‐nos transformando tanto de forma
contínua como de forma descontínua. Experimentamos mudanças que se devem à integração
de novos conhecimentos, de novas respostas, de novos comportamentos e competências,
mudanças que se explicam pela continuidade e pela alteração quantitativa dos nossos modos
de pensar e de agir. Mas isso não explica como é que, em determinados momentos, as
transformações vão para além do mais ou do mesmo. A diferenciação, as novas respostas e
capacidades são devidas a reorganizações mais ou menos globais, são mudanças qualitativas
que modificam a organização subjacente aos nossos modos de ser e de nos desenvolvermos.
O Interno e o Externo
Ao longo da história da psicologia o interior tem aparecido ligado ao corpo e
à sua biologia, isto é, ao que se passa dentro de nós. Por outro lado, relacionamos interior às
cognições, às emoções e aos pensamentos que foram encarados, durante muito tempo, como
algo que se passa dentro de nós, frequentemente como algo que se passa no interior da
nossa cabeça.
Ao exterior associam‐se o contexto e a situação, as relações de socialização,
as influências da cultura. O exterior tem sido relacionado com os estímulos que nos afectam,
com os acontecimentos, com as condições em que vivemos. Pensar que o que somos, em
determinado momento, pode ser explicado apenas pelo que se passa no nosso interior é não
compreender que o interior e o exterior existem num permanente diálogo, na interacção que
a cada momento nós vivemos com o mundo que nos rodeia. Não só o nosso corpo dá forma
ao nosso estar numa situação, como os contextos moldam o nosso corpo e o que se passa
dentro dele. Basta pensarmos na plasticidade do nosso cérebro.
O que nós pensamos está presente nas situações: reflecte‐se, transporta‐se
para a forma como sentimos e nos relacionamos com as coisas e com o mundo. Mudamos os
contextos onde existimos através do modo como existimos. Mas está também lá, e também
em nós, o que os outros pensam, as palavras que usam, os sentidos que certas acções
adquirem, o que em certas situações aprendemos a fazer… sempre na relação em que o que
sentimos e o que pensamos, o que sabemos e o modo como agimos estão dentro e fora de
nós em permanente reconstrução.
A Estabilidade e a Mudança Ao falarmos da continuidade e da descontinuidade referimo‐nos
frequentemente à mudança, à transformação, quer quantitativa, quer qualitativa que
acontece em nós ao longo do tempo. As pessoas mudam, os seus corpos mudam, as suas
formas de ser e de estar mudam ao longo do tempo. Sabemos que não fomos sempre aquilo
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que somos hoje. Ao nosso lado, vemos outras pessoas a mudar. Reconhecemos que a
mudança faz parte de nós próprios.
Nem só a mudança explica o desenvolvimento que vamos experimentando.
Todos sabemos que há coisas que nunca mudam. Há pessoas que conhecemos bem e, sobre
elas, prevemos como se comportam em determinadas situações, o que tendem a pensar
sobre si e sobre o mundo. Podemos até deparar‐nos com momentos em que nos parece
estranha a forma como agem por não ser típica delas. Portanto, reconhecemos estabilidade
nos modos de ser.
Como nos ajuda a questão da estabilidade/mudança a compreender o
comportamento e desenvolvimento humanos? Se pensarmos em nós agora, há um ano atrás
ou há dez anos, o que parece mais importante? O que permaneceu ou o que mudou? A
dicotomia entre estabilidade e mudança refere‐se ao modo como diferentes autores foram
explicando o desenvolvimento como um processo que tem origem em elementos de
estabilidade ou de mudança.
Os autores que mais valorizaram o pólo da mudança foram aqueles que
abordaram, sobretudo, o comportamento das crianças e dos adolescentes. Foram
influenciados nas suas concepções gerais pelo que se passa nestas fases da vida humana em
que predomina a transformação e a mudança. Parecia que enquanto a mudança marcava a
infância e a adolescência, a estabilidade era a principal característica do adulto. Mas
sabemos hoje que a principal característica dos seres humanos é a plasticidade que os
acompanha ao longo da vida e que de modo algum termina na adolescência. Tudo quanto
sabemos acerca da plasticidade biológica, do modo como os seres humanos interagem uns
com os outros, como reorganizam as suas vidas, as suas concepções do mundo, a sua própria
identidade reforçam a ideia de que a mudança nos acompanha ao longo da vida.
É evidente que estas afirmações não são incompatíveis com a afirmação da
estabilidade. Reconhecemo‐nos e somos reconhecidos mesmo quando desempenhamos
diferentes papéis, quando nos movemos em contextos diferentes, com o passar do tempo.
Esta ideia conduz‐nos ao conceito de identidade. A identidade representa uma continuidade,
uma fidelidade, uma consistência e coerência no modo de ser e estar. Corresponde às
características pessoais, persistentes, dotadas de coerência interna. Contudo, não podemos
associar a estas características um carácter estático. A identidade constrói‐se ao longo da
vida e é um processo dinâmico que envolve necessariamente mudança. Os processos
biológicos, os factores sociais e as experiências pessoais são os motores das mudanças
inerentes a todos os processos de adaptação, portanto, de vida. Adaptado de M. Monteiro e P. Ferreira, Ser Humano, 2.ª Parte, 2006
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Texto 3 :
As Consequências da Teoria de Darwin na Perspectiva sobre o Homem
Todos os seres vivos que pululam sobre a Terra são aparentados. Retrocedendo
bastante na minha genealogia, descubro que os meus antepassados são comuns a qualquer
homem, bem como a qualquer mamífero, a qualquer peixe, a qualquer planta, a qualquer
bactéria. Claro que quanto mais afastado for da espécie humana a espécie a que o outro
pertence, mais atrás no passado é necessário retroceder para encontrar esses antepassados
comuns, alguns milhões de anos para um orangotango, 60 ou 70 milhões para um coelho ou
um cavalo, 400 ou 500 milhões para um peixe, mais de um milhar de anos para um
invertebrado e 3 milhares de milhão para uma alga.
O chimpanzé é, de longe, a espécie mais próxima da nossa. Alguns trabalhos recentes
indicam que, depois da separação destas duas espécies, a evolução do chimpanzé foi mais
rápida do que a do homem. Por outras palavras, o nosso antepassado comum estava mais
próximo do homem actual do que do chimpanzé. Esta expressão demonstra como a famosa
expressão «o homem descende do macaco», falsamente atribuída a Darwin, é o oposto da
realidade. De facto, homens e os macacos actuais descendem de um antepassado comum, o
que é completamente diferente. Adaptado de A. Jacquard, O Meu Primeiro Livro de Genética, 1986
Estamos em 1859. Sob o governo próspero e austero da rainha Vitória, formou‐se uma
classe burguesa rica que a si mesma impôs normas de vida resultantes de uma moral
fechada e preconceituosa. A Inglaterra parecia destinada a avançar em direcção a metas
seguras e gloriosas, nas quais o progresso científico, fundado sobre a razão e iluminado pela
religião tradicional, teria dissipado todas as dificuldades e contrariedades que afligiam a
sociedade.
Um relâmpago inesperado, seguido de um verdadeiro temporal, vem de súbito abalar
a boa sociedade vitoriana, aquela onde não era aconselhável fazer referências às pernas
(nem sequer às da mesa), onde não era admitido falar de negócios ou de dinheiro na
presença de senhoras. A 24 de Novembro, o editor londrino Murray publicava um livro, A
Origem das Espécies por meio da Selecção Natural, da autoria de um certo Charles Darwin. A
tiragem completa, de 1250 exemplares, esgotou‐se num dia. Foi um sucesso editorial
verdadeiramente espantoso, tanto mais se tivermos em conta que a publicidade estava
apenas nos seus inícios, e que se tratava de um livro especializado, um calhamaço, e não de
um texto de divulgação ou que seguisse uma moda.
O que afirmava este senhor Darwin para tanto apaixonar os leitores da Europa e do
mundo e para, de repente, lhe dar tanta fama? As suas ideias eram realmente audazes e não
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podiam deixar de escandalizar os bem pensantes europeus. Darwin contradizia
completamente a Bíblia, a narração da criação em seis dias, segundo a qual o mundo, o céu, a
terra e os seus habitantes, teriam saído das mãos de Criador tal qual os vemos hoje.
Afirmava, pelo contrário, que a Terra tem uma longa história de muitos milhões de anos e
que as espécies de animais e de plantas que vivem no planeta não são já as mesmas que
foram produzidas no momento da criação, mas as descendentes das que viveram em épocas
muito longínquas. A ideia central era a de que as espécies de animais e de plantas não são
fixas e imutáveis, não se repetem sempre iguais a si mesmas, mas que se modificam
lentamente no tempo e através de sucessivas gerações, isto é, evoluem. Daqui a dizer que
também o Homem descende de antepassados simiescos vai apenas um breve passo e Darwin
já o deixa pressentir na Origem das Espécies.
Para muitos, o livro de Darwin foi como uma autêntica luz no túnel. Nesse tempo, as
ciências naturais limitavam‐se a recolher e a acumular datas e descrições. Faltava um fio
condutor que as unisse numa visão teórica global. Darwin trouxe essa visão. Encontravam‐se
finalmente explicações, observações, constatações anteriormente isoladas e fragmentadas. À
luz da nova teoria podiam compreender‐se as semelhanças e as diferenças entre numerosas
formas de organismos vivos, a sucessão de animais e de plantas através das varias idades da
Terra e dos quais tinham sido encontrados traços fósseis de presença de órgãos
rudimentares que, numa certa fase do desenvolvimento de uma espécie, pareciam ter caído
em desuso. Para esclarecer determinados factos já não era necessário recorrer a espíritos
vitais ou a entidades metafísicas fora da experiência sensível.
Os bem pensantes, fiéis ao passado, não podiam deixar de se preocupar com as novas
ideias. Estavam em jogo os próprios fundamentos da sua moral, da sua sociedade, da sua
cultura. É certo que Darwin era um homem da alta sociedade, que vivia por meios próprios
na sua bela casa de Kent. É certo que havia estudado e reflectido mais de vinte anos e que
havia sido muito prudente nas suas afirmações. É certo, também, que jamais se havia
proclamado ateu. No entanto, a sua doutrina era perigosa, subversiva e, no que se referia à
origens da humanidade, verdadeiramente «indecente». Os homens preferem considerar‐se
descendentes caídos em desgraça de seres divinos, a criaturas mais humildes e simples.
Na virtuosa sociedade vitoriana, a teoria da origem do Homem a partir de símios viu‐
se refutada antes de mais por uma questão de gosto. O estadista Benjamin Disraeli declarou
preferir, de longe, ter anjos em vez de símios por antepassados. O conformismo da burguesia
da época está bem patente nesta exclamação de uma senhora, posta num beco sem saída
pelos argumentos de um defensor de Darwin: «Será talvez verdade que o Homem descende
de símios, mas ao menos não o digamos, é melhor que tal não se saiba!». Adaptado de G.Montalenti, Charles Darwin 1982
14
Charles Darwin (1809‐1882) nasceu em Shrewsbury, na Grã‐Bretanha e estudou
Medicina na Universidade de Edimburgo. Darwin nunca foi um aluno brilhante nem
aplicado, apesar do seu interesse pela história natural, coleccionando conchas, minerais ou,
por exemplo, besouros. Tudo indicava que a sua vida seria igual à de qualquer cavalheiro
ocioso com fortuna. Com um avô, Eramus Darwin, com nome na ciência, e um primo, Francis
Galton, considerado um génio desde pequeno e que se viria a tornar célebre na área da
psicologia, o pai, médico, preocupa‐se com aquele rapaz que poderia tornar‐se a desgraça da
família. Manda‐o estudar Medicina, o que foi uma grande maçada para o jovem, visto que
esta não o interessava nada. Posteriormente, envia‐o para Cambridge, para que se torne
clérigo anglicano. Mas Darwin caçava, pescava, bebia e jogava às cartas com os seus amigos.
Estava há três anos na universidade quando recebe um convite peculiar. Dado o seu
interesse pelas ciências naturais, foi‐lhe proposto embarcar como naturalista numa viagem à
volta do mundo, no navio Beagle. Esta viagem, iniciada em 1831 e que durou cinco anos, iria
mudar a sua vida. Com os dados recolhidos sobre a grande variedade de espécies animais e
vegetais de ilhas do Pacífico, elaborou uma teoria da evolução que daria brado muito para
além dos meios científicos. Darwin acabou por se tornar um cientista do seu tempo,
escrupuloso, prudente nas interpretações, pouco dado a discussões e à publicidade.
Perguntas como «Por que razão estes seres estão tão bem adaptados ao meio?» ou «O
que fará com que alguns indivíduos da mesma espécie sobrevivam e outros morram?»
intrigavam Darwin. O trabalho do cientista não se podia limitar a descrever a plumagem
brilhante do pavão ou as manchas coloridas do lagarto. Eu tinha que perceber como é que
estas características se relacionavam com a capacidade de sobrevivência. Com as perguntas
certas e o material recolhido na viagem, Darwin organiza as suas ideias na obra A Origem das
Espécies pela Selecção Natural, concluída em 1859, mais de vinte anos após a viagem.
Darwin sustenta que a vida é um processo de adaptação permanente. Os organismos
adaptam‐se ao meio com o objectivo de sobreviverem. Este processo implica uma luta pela
existência uma vez que nascem demasiados indivíduos face aos recursos alimentares
disponíveis. Esta luta, embora sendo mais severa entre indivíduos da mesma espécie, dá‐se
também com indivíduos de outras espécies e com as próprias condições do habitat.
Sem nada saber ainda de genes, Darwin intuía que as características dos progenitores
eram, de alguma forma, transmitidas às gerações seguintes. Mas que, às vezes, as
características alteravam‐se, por recombinação ou por mutação genética sabemos nós hoje,
surgindo assim novas características. O destino dos indivíduos possuidores destas mudanças
dependia do seu carácter adaptativo.
Então, se num certo meio os indivíduos com determinadas características tendem a
ter mais sucesso, por exemplo na procura de alimentos, em afastar os inimigos, em atrair
parceiros sexuais e sobreviverem até poderem reproduzir‐se, os seus genes tornam‐se cada
vez mais comuns naquela população. Pelo contrário, os indivíduos cujas características não
15
são tão adaptativas, tendem a morrer antes de se reproduzirem, ou reproduzem‐se menos e
os seus genes tendem a ser cada vez menos comuns ou tendem mesmo a extinguir‐se. Pode
questionar‐se se estas mudanças são graduais ou abruptas e se a competição pela
sobrevivência é um mecanismo prioritário de mudança. Mas os cientistas estão de acordo
sobre estes processos básicos da evolução. Darwin defendeu que as plantas e os animais
evoluíram ao longo de milhares e milhares de anos, acumulando características que os
tornaram mais capazes de sobreviver e de se reproduzirem.
O princípio da selecção natural constitui o mecanismo mais importante da evolução
dos organismos. Tudo se passaria à semelhança da criação de animais. Os criadores
seleccionam as vacas que dão mais leite, os carneiros que têm melhor lã ou os cavalos mais
rápidos. Na Natureza, não existem estes criadores com este objectivo de melhoramento, mas
na luta pela existência é a própria natureza que selecciona os melhores.
Qualquer indivíduo, na sua zona de subsistência, está em concorrência com os seus
semelhantes pela comida e pelo território. Os indivíduos portadores de características
vantajosas são os sobreviventes. São os mais rápidos na corrida, os mais resistentes nas
epidemias ou os mais sedutores no momento da procriação. Estas características são inatas
e, sendo benéficas, vão ser transmitidas à descendência.
A Origem das Espécies foi recebida pelos cientistas mais progressistas como o
conjunto de ideias científicas mais importantes do século XIX, comparável ao princípio da
gravidade de Newton. Para os conservadores, especialmente a igreja, como uma desgraça
para a humanidade, pelo que lançaram um vendaval de protestos.
A coisa piorou com a publicação de A Descendência do Homem (1871), em que se
aplicavam os princípios transformistas ao Homem afirmando a sua descendência de um
indivíduo simiesco, antepassado comum a nós e aos macacos actuais. Ideia implícita na oba
anterior, mas agora clara como água. Afinal, todos os seres vivos são nossos primos.
Caíamos do mundo dos deuses para um lugar, ainda que cimeiro, numa escala
evolutiva, descobrindo uma parentela que, ao que parece, nos incomodou bastante. Este
incómodo, ao que parece, continua a existir. Nos ainda recentes anos 90, nos EUA e em
alguns países da América do Sul, discutia‐se a legitimidade do ensino da teoria de Darwin,
nas escolas.
Apesar da feroz oposição da igreja, a teoria de Darwin foi rapidamente aceite pela
comunidade científica. As concepções mecanicistas subjacentes à teoria estavam de acordo
com o estilo de pensamento da Revolução Industrial. A teoria também fez sentido à
sociedade vitoriana, porque oferecia um modelo natural do sistema económico capitalista.
Na luta pela sobrevivência económica, tal como na Natureza, só o mais forte sobrevivia.
Ao conceber a teoria da evolução e a ideia de continuidade entre o mundo animal e o
mundo humano, configurando o ser humano como parte de um contínuo evolutivo, Darwin
não imaginava a revolução que iria fazer em muitas áreas do conhecimento e, especialmente,
16
na forma de olhar e de pensar o Homem. Entre outros escritos importantes, publica, em
1872, um estudo comparativo sobre o modo como os seres humanos e os animais expressam
emoções, A Expressão das Emoções nos Homens e nos Animais, mostrando que havia
semelhanças entre humanos e animais nas expressões de medo, de raiva e de prazer.
Darwin afirma que os seres vivos se adaptam ao meio com o objectivo de
sobreviverem. Como existe um excesso de indivíduos face aos recursos alimentares
disponíveis, há uma luta pela existência. Os indivíduos apresentam diferenças nas suas
características. Algumas dessas diferenças permitem uma melhor adaptação ao meio e,
portanto, maiores possibilidades de sobrevivência. A selecção natural e o mecanismo geral
da evolução, permitindo mudanças progressivas nas espécies. Opera permanentemente e de
forma universal. Qualquer variação que se mostre adaptativa e seja seleccionada manifesta‐
se nas gerações seguintes. A evolução apresenta um carácter mecanicista. É o acaso e a
selecção natural que intervêm na mudança. Os organismos vão‐se «aperfeiçoando» na
relação com as condições físicas e ambientais. Embora não tendo feito investigação
directamente no campo da psicologia, a obra de Darwin influenciou‐a indelevelmente tal
como a nossa concepção de Homem.
As principais ideias de Darwin são:
1. Continuidade evolutiva dos seres vivos. Sendo o Homem produto da evolução, o
comportamento humano e dos outros animais apresenta aspectos semelhantes. O estudo do
comportamento animal tornou‐se útil para a compreensão do comportamento humano.
2. Ênfase no funcionamento da mente. Mais importante do que a estrutura da
mente, é o modo como ela funciona. É percursor de um movimento de ideias em psicologia
que se preocupa mais com as funções da consciência do que com a análise do seu conteúdo.
3. Foco nas diferenças individuais. Mostrando a existência de variações entre os
membros da mesma espécie, desperta interesse para a forma como as pessoas se
diferenciam umas das outras.
4. Ampliação das metodologias de investigação utilizando a observação
naturalista. Para estudar as emoções, por exemplo, recolheu dados sobre o comportamento
emotivo de doentes mentais e também de exploradores que fizeram observações
antropológicas em sociedades tribais. Observou os seus próprios filhos, fotografou grande
variedade de indivíduos que reagiam emocionalmente ou actores que simulavam expressões
específicas.
17
Texto 4 :
As Teorias do Senso Comum sobre o Desenvolvimento Humano
Numa operação stop, o polícia de trânsito pediu os documentos ao condutor e,
simultaneamente, inquiriu‐o a propósito da sua profissão. O condutor, ligeiramente ansioso
pelo incómodo da paragem forçada, respondeu. «Sou psicólogo». O polícia olhou‐o, esboçou
um sorriso que indicava alguma ironia e retorquiu: «Oh homem, psicólogos somos todos!»
Apesar da ignorância deste hipotético agente de autoridade, a sua resposta demonstra um
profundo conhecimento da natureza humana. No nosso dia a dia tomamos decisões
complexas em situações ambíguas, antecipamos o comportamento social dos indivíduos com
quem interagimos e, frequentemente, tentamos induzir ou alterar o seu estado emocional. A
nossa vida seria penosa se não possuíssemos capacidades para categorizar, prever, avaliar,
fazer inferências e criar novas soluções para as questões triviais quotidianas. Estas
capacidades encontram‐se reflectidas na sabedoria popular, como, por exemplo, «cesteiro
que faz um cesto faz um cento».
Adaptado de A. Baptista, O que é a Psicologia, 2002
As teorias do senso comum assentam, muitas vezes, em estereótipos e em
preconceitos, sendo inferidas a partir de comportamentos pessoais e colectivos, avaliados de
modo acrítico, de acordo com crenças e tradições, sem outra preocupação que não seja a de
resolver problemas do quotidiano.
Vejamos alguns ditados populares ou afirmações aceites pela generalidade das
pessoas. «A primeira impressão é normalmente verdadeira». «Longe da vista, longe do
coração». «As pessoas nunca são velhas de mais para aprender». «Burro velho não aprende
ofício». «Os opostos atraem‐se». «Os pássaros da mesma plumagem voam juntos».
«Apanham‐se moscas com mel e não com vinagre». «A ausência fortalece os sentimentos».
Os adágios expressam informações ambíguas. E, curiosamente, uns contradizem os
outros. Num estudo, verificou‐se que 72% dos indivíduos inquiridos consideravam que «os
opostos se atraem». A psicologia social demonstrou que isto não é mesmo verdade. As
investigações sobre a atracção mostram que raramente somos atraídos por pessoas que são
muito diferentes de nós.
No entanto, é este saber que orienta a nossa vida e regula as interacções sociais. As
nossas teorias implícitas sobre as pessoas e o mundo baseiam‐se num conhecimento que é
empírico e ingénuo. É um conhecimento preso às aparências e subjectivo uma vez que
envolve os interesses, as emoções e os valores de quem observa. Trata‐se de um
18
conhecimento espontâneo, fragmentado, parcial e restrito, do qual se extraem
generalizações imprecisas e ilegítimas. Estas generalizações da experiência quotidiana, sem
qualquer grau de avaliação crítica, de sistematização e de verificação, vão‐se perpetuando ao
longo do tempo nas diferentes comunidades e culturas.
Por que razão é importante conhecermos as nossas teorias implícitas sobre o
desenvolvimento humano? Porque elas modelam o modo como vemos o mundo e como nos
relacionamos com os outros. Porque muitas vezes estão assentes numa sabedoria empírica e
não científica que contradiz os dados da ciência.
Termos consciência das nossas teorias implícitas permite‐nos ter uma atitude
reflexiva e crítica face às nossas concepções de ser humano. São estas concepções do ser
humano que determinam as relações que temos connosco próprios e com os outros. Como o
trabalho em educação, aos mais diversos níveis e com as mais diversas populações, implica
sempre o estabelecimento de relações, parece importante que examinemos as nossas teorias
e saibamos o que é que, na nossa prática, depende delas.
Um exemplo da importância das teorias implícitas
Para além dos estudos científicos sobre a inteligência, as teorias explícitas, muitas
outras concepções podem agrupar‐se em teorias implícitas. As teorias implícitas são
construções mentais que qualquer sujeito, investigador ou leigo, pode desenvolver acerca da
inteligência e que podem ser explicitadas (Faria & Fontaine, 1993). Estas perspectivas são
sobretudo intraculturais e descritivas, e embora, por vezes, se baseiem em teorias científicas,
não resultam de análises ou de observações presumivelmente objectivas.
O objectivo principal das investigações em torno destas teorias é descobrir as formas
e os conteúdos das concepções informais de cada um. As teorias implícitas veiculam as
representações das pessoas sobre a inteligência pelo que poderão ser consideradas teorias
de significados. Apesar das evidentes e inegáveis diferenças, poderemos considerar com
Sternberg (1985) que existe uma relação dinâmica e desenvolvimentista subjacente aos dois
paradigmas dado que tudo indica que frequentemente as teorias implícitas dos
especialistas/investigadores potenciam e dão origem às suas teorias explícitas.
Para além da importância das teorias implícitas como percursoras ou pontos de
partida para as teorias explícitas convém reforçar que aquelas teorias se revestem de grande
relevância em si próprias como objecto independente de estudo na medida em que se
apresentam como representações que as pessoas fazem de conceitos e de situações que são
utilizadas para identificar, avaliar e classificar tanto os seus próprios comportamentos e
atitudes como os de outras pessoas.
19
Por exemplo, Mugny e Carugati (1985;1989, citados por Faria & Fontaine, 1993) na
sequência de um estudo efectuado com pais e professores concluíram que o factor Teoria do
Dom Natural se destacava nas concepções pessoais que ambos os grupos apresentavam na
explicação da natureza da inteligência. Na base desta teoria está a representação da
inteligência como fenómeno desconhecido, como um dom inato e hereditário determinado
biologicamente e observável em diferentes graus de sujeito para sujeito. Desta forma, a
atribuição causal externa assumida por pais e professores permite‐lhes adoptar um
posicionamento de relativa distância, desresponsabilizando‐se das situações em que ocorre
o fracasso, e manter uma identidade social e profissional positiva. A organização das
representações dos professores sobre a inteligência e o seu desenvolvimento afecta não só as
relações informais que mantêm com os alunos, mas também as suas estratégias didácticas
explícitas (Parsons et al. 1983; Snellman & Raty, 1992 referidos por Faria & Fontaine, 1993,
p. 473).
Também para Doudin e Martin (1999) podemos identificar uma concepção inata
(inteligência como dom natural e hereditário) por oposição a uma concepção construtivista e
interaccionista (o sujeito desenvolve e constrói a sua inteligência através de um processo de
interacções que estabelece com os seus educadores). A opção por uma destas vias
influenciará não apenas a representação que o professor tem da inteligência e do seu
desenvolvimento, mas também o enquadramento pedagógico e as metodologias a adoptar.
Os resultados de muitos estudos indicam que as concepções ou representações de
inteligência se revestem de um forte cariz sociocultural. A multiplicidade de definições e
consequente relativismo que as caracterizam permite afirmar que o significado de
inteligência varia em função das sociedades, dos grupos sociais e dos indivíduos.
O relativismo e o pluralismo da definição de inteligência são complementados com a ideia de
inteligência enquanto processo de adaptação social e de adequação às regras e normas que
pressupõe um bom ambiente afectivo e relacional na escola. A este nível, os professores
identificam a influência do contexto familiar. No entanto, talvez porque confrontados com
dificuldades e dilemas diários que não conseguem solucionar ou compreender através de
representações e modelos científicos que constroem, os professores concebem a influência
familiar em contornos biológicos e herméticos, logo não sendo passíveis de modificação ou
de controlo através das práticas, mecanismos e metodologias adoptadas na escola. Esta
desresponsabilização, novamente centrada em atribuições causais externas, iliba os
professores de qualquer intervenção ou responsabilidade nas situações de fracasso escolar,
o que contribui para manter uma identidade profissional positiva.
A complexidade e contradições das representações dos professores podem constituir
um forte indicador da cultura de escola que pontua ainda as nossas práticas. De facto, essas
representações são simultaneamente influenciadas e influenciadoras das características que
definem a escola. Podemos mesmo afirmar que as contradições patentes nas representações
20
dos professores existem também na estrutura, metodologias e princípios do Sistema
Educativo, o que nos leva a considerar que se vive actualmente uma distorção muito nítida
nas relações entre meios e fins ou objectivos do ensino e da aprendizagem, sendo a avaliação
do rendimento dos alunos considerada, pela importância que lhe é atribuída, como um
verdadeiro, ou até exclusivo objectivo da prática pedagógica em vez de ser percepcionada e
vivida como um meio auxiliar ou um instrumento mediador de regulação, de aperfeiçoamento
e de adequação das actividades de ensino e de aprendizagem relativamente aos objectivos de
desenvolvimento global dos alunos (Abreu, 1991).
Quer os estilos pedagógicos e interacções escolares como os resultados dos alunos,
são influenciados pela concepção que os professores possuem de inteligência e das
possibilidades do seu desenvolvimento. A adopção de uma perspectiva inatista ou a
preferência por estratégias construtivistas influencia de forma determinante as
metodologias mobilizadas pelos professores (Doudin & Martin, 1999).
Os docentes que partem de uma concepção que visualiza o desenvolvimento como
uma questão de maturação fisiológica e que perspectiva o ritmo desse desenvolvimento
como sendo determinado por factores naturais e inatos, adoptam mais frequentemente
estratégias transmissivas que exigem a sua retenção e evocação posteriores do que aqueles
que defendem que os alunos constroem e desenvolvem a sua inteligência dimensionada e
situada num contexto de interacções favoráveis, em especial as que resultam da relação
professor‐aluno. Uma representação da inteligência como processo que se constrói e
desenvolve favorece também a tendência para utilizar estilos educativos baseados na
problematização e em questões abertas orientadas para um significado, o que por seu turno
conduz ao desenvolvimento das capacidades de representação da criança. De facto, um
posicionamento construtivista estimula o envolvimento dos docentes na procura de
estratégias de treino e de modificação da inteligência que, desta forma, se operacionalizam
em processos de desenvolvimento de estruturas que visam a resolução de problemas. Por
oposição, uma concepção inatista pressupõe um papel passivo do professor cristalizado na
representação da inteligência como capacidade intelectual genérica imutável.
Um outro aspecto referido por Doudin e Martin (1999) na distinção entre as
concepções inatistas e construtivistas/interaccionistas prende‐se com o papel do erro na
aprendizagem e no desenvolvimento intelectual. Estes autores concluem então que o papel
atribuído aos erros influenciará favorável ou desfavoravelmente o desenvolvimento da
criança, tanto no plano intelectual como no afectivo. A dimensão construtivista implica uma
visão desenvolvimentista da inteligência pelo que tanto a criança como os adultos
desempenham um papel activo e dinâmico na sua construção. Assim, o erro não é assumido
como demonstração de incompetência intrínseca mas como possibilidade de evolução ou
etapa de um processo de desenvolvimento. No sentido oposto a esta perspectiva, uma
concepção inatista que concebe a inteligência como sendo imutável, confere aos professores,
21
alunos e pais um papel passivo acentuando o erro como sinónimo ou sintoma de
incapacidade definitiva.
A relevância e a interpretação atribuída aos erros desempenham um papel
determinante no estilo atribucional (locus de controlo) dos alunos, isto é, na atribuição
causal conferida aos sucessos e fracassos.
Pela importância dada não apenas aos aspectos construtivistas e interaccionistas mas
também ao desenvolvimento das capacidades de auto‐monitorização e, consequentemente,
ao envolvimento de processos e mecanismos motivacionais, a metacognição constitui um
enquadramento teórico e prático que permite aos professores optimizar o desenvolvimento
das competências dos seus alunos (Doudin, Martin e Albanese 1999; Grangeat 1997, citados
por Doudin e Martin, 1999). De facto, a metacognição, conceito introduzido por Flavell no
início da década de 70 para definir o conhecimento sobre os próprios processos e produtos
cognitivos, confere à inteligência um carácter multidimensional abarcando aspectos tão
díspares como motivação, emoções, desânimo aprendido (Dweck, 1986) e auto‐regulação
(Zimmerman, 1989). Neste sentido, o treino metacognitivo dá especial importância à noção
de aluno como aprendiz activo, ou seja, que auto‐regula a sua própria aprendizagem. Assim,
o «bom aluno» deveria saber resolver problemas, avaliar e corrigir o seu desempenho
pessoal, ou seja, usar o pensamento metacognitivo na sua tripla atribuição: conhecimento
acerca dos seus próprios processos cognitivos tomada de consciência desses processos e
controlo sobre os próprios processos mentais.
Ensinar os alunos a utilizar a metacognição ou técnicas de auto‐regulação auxilia‐os
na monitorização das suas estratégias de aprendizagem. Para além disso, um sistema de
crenças positivo torna‐se necessário para que elas sejam eficazes assim como a motivação
para as usar. Crenças atribucionais externas e uma baixa auto‐estima são aspectos
fundamentais na explicação dos comportamentos metacognitivos de alunos com fracos
resultados escolares. Estes alunos não conseguem fazer um uso eficaz de estratégias e não
são suficientemente diligentes na mudança de estratégias de acordo com as características
da tarefa (Carr, Borkowsky & Maxwell, 1991). De acordo com Carr et al., as deficiências
apresentadas pelos alunos com insucesso escolar devem‐se, em parte, ao desenvolvimento
de crenças motivacionais e estados afectivos inapropriados. A natureza disfuncional do
sistema metacognitivo‐motivacional‐afectivo dos alunos com insucesso torna‐os estudantes
desamparados, isto é, com crenças de estratégia, perspectivas e objectivos de resultado
inapropriados.
Por oposição a uma concepção inatista, a perspectiva construtivista/ interaccionista
implica que os professores desenvolvam nos seus alunos a capacidade de aprender a
formular e seguir regras e procedimentos, a serem flexíveis na aplicação dessas técnicas e a
auto‐monitorizar as suas aprendizagens e comportamento no sentido de os tornar activos,
eficazes, responsáveis e independentes.
22
O desenvolvimento cognitivo é fruto de um desenvolvimento lento e gradual. Verifica‐
se ainda o facto de muitos adultos não manifestarem, de forma sistemática, uma grande
utilização das suas capacidades metacognitivas. Coloca‐se, assim, em questão se a sua
aquisição será uma mera e natural questão de desenvolvimento ou, antes, se está
dependente de um processo de instrução. Na realidade, parece claro que a criança adquire
competências metacognitivas através da aprendizagem mediada e que da qualidade desta
depende a aquisição daquelas.
De tudo o que foi até aqui referido, conclui‐se que o desenvolvimento intelectual é
largamente influenciado, e mesmo determinado, pelas interacções sociais e, em especial,
pelo sistema de relações e interacções que se estabelecem entre os sub‐sistemas professor e
aluno. Desta evidência ressalta o facto de ser necessário desenvolver determinados estilos
comunicacionais e métodos pedagógicos que promovam a autonomia cognitiva e
metacognitiva dos alunos. Assim, uma pedagogia que se quer eficaz e significativa deverá
preencher os seguintes critérios: 1) deverá ser construtivista, isto é, assumir a ideia de que
tanto o desenvolvimento intelectual como as aprendizagens são construídas e elaboradas
pelos próprios sujeitos de aprendizagem; 2) deverá ser interactiva no sentido de facultar um
contexto que estimule as interacções entre os alunos, entre estes e os professores e entre os
alunos e o objecto de conhecimento; 3) deverá desenvolver e promover a motivação dos
alunos para a aprendizagem e favorecer as suas percepções de competência e auto‐eficácia;
4) deverá contemplar e estimular uma perspectiva metacognitiva que promova a reflexão e
auto‐análise dos alunos, quer em relação aos conhecimentos que têm acerca do seu próprio
funcionamento cognitivo quer sobre a adequação das estratégias e processos que utilizam na
resolução de problemas (Martin, 1991, citado por Doudin & Martin, 1999).
Todo este enquadramento teórico‐prático inerente à concepção construtivista/
interaccionista pressupõe a reconceptualização dos percursos formativos dos professores no
sentido de favorecer não apenas uma reflexão e análise teórica aprofundada em torno do
conceito e desenvolvimento da inteligência, mas também uma reflexão pessoal sobre as suas
próprias concepções e representações. Doudin e Martin (1999) propõem que se inclua na
formação dos futuros professores uma dimensão pedagógica que estimule comportamentos
de investigação e pesquisa que permitam: a apropriação de orientações emanadas de
estudos na área das ciências humanas; utilizar nas suas práticas futuras os dados advindos
de trabalhos de investigação na área da educação; apreender e integrar a pesquisa e a
investigação como paradigmas passíveis de serem transferidos para os domínios de uma
prática educativa reflexiva; adoptar posicionamentos críticos e auto‐críticos face à forma
como normalmente compreendem e representam a realidade; modificar a representação
que têm da própria actividade acentuando o papel da reflexão e da análise fundamentadas
em enquadramentos teóricos.
23
Trata‐se de promover competências de reflexão mobilizadas em função de uma
dialéctica interactiva entre teoria e prática ou, se quisermos, entre teorias implícitas e
teorias explícitas, no sentido de uma (re)construção profissional e pessoal permanente.
Em síntese, os estudos que se integram na dimensão das teorias explícitas da inteligência são
construções teóricas dos investigadores enquanto as teorias implícitas da inteligência
constituem as representações que qualquer pessoa pode desenvolver acerca da inteligência
e passíveis de serem explicitadas.
No âmbito da teorias implícitas da inteligência observamos que as representações que os
professores têm de inteligência e do seu desenvolvimento irão influenciar favorável ou
desfavoravelmente a qualidade das interacções pedagógicas, quer se adopte uma
perspectiva construtivista ou se opte por uma visão inatista. Um enquadramento inatista
concebe a inteligência como algo de natural e imutável, pelo que o professor assume uma
postura passiva relativamente à adopção de estratégias com vista ao desenvolvimento
intelectual. Pelo contrário, uma concepção construtivista defende que a inteligência é
(re)construída e modificável e que tanto a criança como o professor desempenham um papel
activo no desenvolvimento intelectual.
Embora os professores reconheçam a pluralidade e relativismo na definição de inteligência e
admitam a influência de factores de ordem social, familiar e cultural no seu
desenvolvimento, e talvez porque a relação pedagógica seja complexa, imprevisível e
diversificada, tanto as diferenças intelectuais como as situações de fracasso são atribuídas a
instâncias sociais ou naturais que não podem controlar ou manipular.
A complexidade e a diversidade de perspectivas sobre a inteligência não existem apenas no
contexto científico. Importa também reconhecer o papel e o significado das teorias implícitas
de inteligência, isto é, as representações que as pessoas têm dos processos intelectuais em si
próprias e nos outros. Estas representações ou concepções permitem reconstruções e
comparações com as teorias explícitas e possibilitam elucidar, descrever e compreender
determinadas práticas no contexto educativo. Adaptado de http://www.esenviseu.net/Recursos/Download/Tema_41/DesenvolvimentoIntelectual.htm
1. Será a ciência apenas «senso comum organizado»? Ninguém duvida seriamente de que muitas das ciências particulares existentes se
desenvolveram a partir das necessidades práticas da vida quotidiana: a geometria a partir de
problemas de medição dos campos, a mecânica a partir de problemas suscitados pelas artes
arquitectónicas e militares, a biologia a partir de problemas da saúde humana e da criação
de animais, a química a partir de problemas suscitados pelas indústrias de tintas e de metais,
a economia a partir de problemas de gestão doméstica e de organização política, e assim por
diante. É certo que existiram outros estímulos para o desenvolvimento das ciências para
24
além daqueles que surgiram dos problemas das artes práticas. No entanto, estes últimos
tiveram, e ainda continuam a ter, um papel importante na história da investigação científica.
Nestas circunstâncias, os comentadores da natureza da ciência que ficaram impressionados
pela continuidade histórica entre as convicções do senso comum e as conclusões científicas,
têm proposto por vezes que se diferencie ambas através da fórmula que nos diz que as
ciências são simplesmente senso comum «organizado» ou «classificado».
Não há dúvida de que as ciências são corpos organizados de conhecimento, e de que em
todas elas uma classificação dos seus materiais em tipos ou géneros importantes (como a
classificação dos seres vivos em espécies na biologia) é uma tarefa indispensável. Mesmo
assim é claro que a fórmula proposta não exprime adequadamente as diferenças
características entre a ciência e o senso comum. Os apontamentos de um conferencista sobre
as suas viagens em África podem estar muito bem organizados para o objectivo de
comunicar informação de uma maneira interessante e eficiente, sem que isso converta essa
informação naquilo a que historicamente se tem chamado ciência. Um catálogo de um
bibliotecário apresenta uma boa classificação de livros, mas ninguém que respeite um pouco
o sentido histórico da palavra dirá que o catálogo é uma ciência. A dificuldade óbvia é a de
que a fórmula proposta não especifica que tipo de classificação é característica das ciências.
2. Explicações científicas
Vamos então virar‐nos para esta questão. Uma característica notável de muita da informação
que adquirimos ao longo da experiência comum é a de que, embora essa informação possa
ser suficientemente precisa dentro de certos limites, ela raramente é acompanhada por
qualquer explicação que nos diga por que se deram os factos alegados. Deste modo, as
sociedades que descobriram os usos da roda habitualmente não sabiam nada sobre forças de
fricção, nem sobre as razões que fazem com que os bens colocados em veículos com rodas
sejam transportados com mais facilidade do que os bens arrastados pelo chão. Muitas
pessoas aprenderam que era aconselhável adubar os seus campos agrícolas, mas poucas se
preocuparam com as razões para agir assim. As propriedades medicinais de plantas como a
dedaleira foram reconhecidas há séculos, embora habitualmente não se tenha oferecido
qualquer explicação das suas virtudes benéficas. Para além disso, quando o "senso comum"
tenta dar explicações para os seus factos — como quando se explica o valor da dedaleira
como estimulante cardíaco através da semelhança entre a forma da flor e a do coração
humano — as explicações carecem frequentemente de testes sobre a sua relevância para os
factos.
É o desejo de explicações que sejam ao mesmo tempo sistemáticas e controláveis através de
dados factuais que gera a ciência, e é a organização e classificação do conhecimento segundo
princípios explicativos que é o objectivo próprio das ciências. Mais especificamente, as
ciências procuram descobrir e formular em termos gerais as condições sob as quais ocorrem
25
acontecimentos de vários géneros, sendo as proposições sobre essas condições
determinantes as explicações desses acontecimentos. Podem descobrir‐se relações regulares
que abrangem vastos domínios de factos, de tal forma que com a ajuda de um pequeno
número de princípios explicativos pode mostrar‐se que um número indefinidamente grande
de proposições sobre esses factos constituem um corpo de conhecimento logicamente
unificado. Esta unificação assume por vezes a forma de um sistema dedutivo, como acontece
na geometria demonstrativa e na ciência da mecânica. Deste modo, através de poucos
princípios, como os que foram formulados por Newton, consegue‐se mostrar que
proposições sobre o movimento da Lua, o comportamento das marés, os percursos de
projécteis e a subida de líquidos em tubos estreitos estão intimamente relacionadas, e que
todas essas proposições podem ser rigorosamente deduzidas a partir desses princípios em
conjunção com várias informações sobre factos.
Explicar, estabelecer alguma relação de dependência entre proposições que
superficialmente não estão relacionadas, apresentar sistematicamente conexões entre
fragmentos de informação aparentemente heterogéneos, são características próprias da
investigação científica.
3. A indeterminação do senso comum
Muitas crenças quotidianas sobreviveram a séculos de experiência, o que contrasta
com o período de vida relativamente curto a que estão frequentemente destinadas as
conclusões avançadas em vários ramos da ciência moderna. Uma das razões deste facto
merece atenção. Consideremos um exemplo de uma crença do senso comum, como a de que
a água solidifica quando é suficientemente arrefecida.
Se pudermos considerar este exemplo como típico, podemos dizer que a linguagem
em que o senso comum está formulado e é transmitido pode exibir dois tipos importantes de
indeterminação. Em primeiro lugar, os termos da linguagem comum podem ser bastante
vagos, no sentido em que a classe das coisas designadas por um termo não está clara e
rigorosamente demarcada da classe das coisas que ele não designa. Em segundo lugar, os
termos da linguagem comum podem carecer de um grau de especificidade relevante. Por
esse motivo, as relações de dependência entre acontecimentos não estão formuladas de uma
maneira determinada com precisão nas proposições que contêm esses termos.
Devido a estas características da linguagem comum, o controlo experimental das
crenças do senso comum é frequentemente difícil, já que não pode traçar‐se facilmente a
distinção entre os dados da observação que as confirmam e os que as refutam. Deste modo, a
crença de que «em geral» a água solidifica quando é suficientemente arrefecida pode
corresponder às necessidades das pessoas cujo interesse pelo fenómeno do arrefecimento
está circunscrito ao seu interesse em atingir os objectivos habituais da sua vida quotidiana,
apesar de a linguagem utilizada na codificação desta crença ser vaga e carecer de
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especificidade. Essas pessoas podem por isso não ver qualquer razão para modificar a sua
crença, mesmo que reconheçam que a água do oceano não congela, embora a sua
temperatura seja sensivelmente a mesma do que a água de um poço quando começa a
solidificar, ou que alguns líquidos têm de ser arrefecidos a um grau maior do que outros para
mudarem para o estado sólido. Se forem pressionadas para justificar a sua crença perante
estes factos, essas pessoas podem talvez excluir arbitrariamente os oceanos da classe de
coisas a que dão o nome de água, ou, como alternativa, podem exprimir uma confiança
renovada na sua crença, defendendo que seja qual for o grau de arrefecimento que possa ser
necessário, os líquidos classificados como água acabam por solidificar quando são
arrefecidos.
4. A refutabilidade e instabilidade da ciência
Na sua procura de explicações sistemáticas, as ciências devem reduzir a
indeterminação indicada da linguagem comum ao remodelá‐la. A química física, por
exemplo, não se satisfaz com a generalização, formulada de uma maneira vaga, segundo a
qual a água solidifica quando é suficientemente arrefecida, já que o objectivo desta disciplina
é o de explicar, entre outras coisas, por que a água e o leite que bebemos congelam a certas
temperaturas, embora a essas temperaturas não aconteça o mesmo com a água do oceano.
Para atingir este objectivo, a química física deve então introduzir distinções claras entre
vários tipos de água e entre várias quantidades de arrefecimento. Várias técnicas reduzem a
vagueza e aumentam a especificidade das expressões linguísticas. Para muitos propósitos,
contar e medir são as técnicas mais eficientes, e talvez sejam também as mais conhecidas. Os
poetas podem cantar a infinidade de estrelas que permanecem no céu visível, mas o
astrónomo quer especificar o seu número exacto. O artesão que trabalha com metais pode
ficar satisfeito por saber que o ferro é mais duro do que o chumbo, mas o físico que quer
explicar este facto tem de ter uma medida precisa da diferença em dureza. Uma
consequência óbvia, mas importante, da precisão assim introduzida é a de que as
proposições se tornam susceptíveis de ser testadas pela experiência de uma maneira mais
crítica e cuidada. As crenças pré‐científicas são frequentemente insusceptíveis de ser
sujeitas a testes experimentais definidos, simplesmente porque essas crenças são
compatíveis de uma maneira vaga com uma classe indeterminada de factos que não são
analisados. As proposições científicas, como têm de estar de acordo com dados da
observação bem especificados, enfrentam riscos maiores de ser refutadas por esses dados.
A maior determinação da linguagem científica ajuda a esclarecer o facto de muitas
crenças do senso comum terem uma estabilidade, que se prolonga frequentemente por
muitos séculos, que poucas teorias científicas possuem. É mais difícil construir uma teoria
que, depois de confrontos repetidos com os resultados de observações experimentais
rigorosas, permanece inabalada, quando os critérios para o acordo que se deve obter entre
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esses dados experimentais e as previsões derivadas da teoria são exigentes do que quando
esses critérios são vagos e não se exige que os dados experimentais admissíveis sejam
estabelecidos por procedimentos cuidadosamente controlados. Na verdade, as ciências mais
avançadas especificam quase sempre o grau com que as previsões derivadas de uma teoria
se podem desviar dos resultados das experiências sem invalidar a teoria. Os limites desses
desvios permissíveis geralmente são bastante reduzidos, de tal modo que certas
discrepâncias entre a teoria e a experiência que seriam vistas pelo senso comum como
insignificantes são frequentemente consideradas fatais para a adequação da teoria.
Por outro lado, embora a maior determinação das proposições científicas as exponha
a riscos de se descobrir que estão erradas maiores do que aqueles que enfrentam as crenças
do senso comum (enunciadas com menos precisão), as primeiras têm uma vantagem
importante sobre as segundas. Elas têm uma capacidade maior para ser incorporadas em
sistemas de explicação amplos e claramente articulados. Quando esses sistemas são
adequadamente confirmados por dados experimentais, revelam muitas vezes relações de
dependência surpreendentes entre muitos tipos de factos experimentalmente identificáveis,
mas diferentes.
5. Conclusões
Nas diferenças entre a ciência moderna e o senso comum já mencionadas, está
implícita a diferença importante que deriva de uma estratégia deliberada da ciência que a
leva a expor as suas propostas cognitivas ao confronto repetido com dados observacionais
criticamente comprovativos, procurados sob condições cuidadosamente controladas. Isto
não significa, no entanto, que as crenças do senso comum sejam invariavelmente erradas, ou
que não tenham quaisquer fundamentos em factos empiricamente verificáveis. Significa que,
por uma questão de princípio estabelecido, as crenças do senso comum não são sujeitas a
testes sistemáticos realizados à luz de dados obtidos para determinar se essas crenças são
fidedignas e qual é o alcance da sua validade. Significa também que os dados admitidos como
relevantes na ciência devem ser obtidos através de procedimentos instituídos com o
objectivo de eliminar fontes de erro conhecidas. Deste modo, a procura de explicações na
ciência não conseguiste simplesmente em tentar obter «primeiros princípios» que sejam
plausíveis à primeira vista e que possam vagamente dar conta dos «factos» da experiência
habitual. Pelo contrário, essa procura consiste em tentar obter hipóteses explicativas que
sejam genuinamente testáveis, porque se exige que elas tenham consequências lógicas
suficientemente precisas para não serem compatíveis com quase todos os estados de coisas
concebíveis. As hipóteses procuradas devem assim estar sujeitas à possibilidade de rejeição,
que dependerá dos resultados dos procedimentos críticos, inerentes à pesquisa científica,
destinados a determinar quais são os verdadeiros factos do mundo. E. Nagel, The Structure of Science, 1961
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