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A presente tese trata da ética nicomaquéia
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Inara Zanuzzi
AO ALCANCE DA RAZO
- UMA INVESTIGAO SOBRE A AO LIVRE EM ARISTTELES -
Porto Alegre
2007
INARA ZANUZZI
AO ALCANCE DA RAZO
- UMA INVESTIGAO SOBRE A AO LIVRE EM ARISTTELES -
Tese apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Filosofia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul como
requisito parcial para obteno do ttulo de
Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Marco Antnio de
vila Zingano
Porto Alegre
2007
memria de meu pai, Zsemo Zanuzzi, e de Tlio Machado Cesa.
AGRADECIMENTOS
Essa tese foi possvel graas s bolsas de doutorado que obtive da CAPES e do
CNPq, instituies s quais agradeo; em especial, ao CNPq, que me proporcionou uma
bolsa de doutorado sanduche na Universit C Foscari, de Veneza.
preciso agradecer ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, que me permitiu
desenvolver meus estudos e levar o tempo que foi necessrio. Gostaria de agradecer,
principalmente, ao coordenador do Programa, Prof. Grson Louzado, e aos professores Lia
Levy e Alfredo Storck, pela ateno, compreenso e incentivo.
Este trabalho, no entanto, deveu-se mais fundamentalmente s orientaes e
discusses de dois professores: Balthazar Barbosa Filho e Marco Zingano. A interpretao
de Aristteles e a atividade acadmica de ambos foram valiosos guias para que eu chegasse
at este ponto e assim continuaro sendo.
Agradeo, ainda, ao professor Carlo Natali e sua equipe pela generosa acolhida na
Universidade em Veneza e ao professor Zingano por ter tornado minha ida possvel.
Esta tese pretende ser um exerccio de trabalho acadmico e, todavia, a conversa
com amigos pde me levar genuinamente a aprender pontos fundamentais sem os quais
este trabalho teria sido algo diverso do que . Agradeo, por isso, ao que aprendi das
seguintes pessoas: a Katarina Peixoto e Marco Weissheimer, que me ensinaram o que
significa dizer que a Poltica um conhecimento prtico, a Slvia Altman, Ftima Formoso,
Eduardo Forneck, Rodrigo Guedes, Tatiana Rosa, Lenara Verle, Slvia Zanuzzi, Maurcio
Tombini, que de um modo ou outro escutaram minhas preocupaes e cujas preocupaes
tambm me deram o que pensar.
Por ltimo, essencial que eu agradea a toda a minha famlia, especialmente
minha me, D. Nilva Zanuzzi, cujo apoio sem par e o amor, incondicional.
I prefer not to
Herman Melville, Bartleby the Scrivener
RESUMO
Aristteles considerado um precursor do problema da vontade livre. Apesar disto, ele tambm considerado por muitos de seus intrpretes ou um determinista, algum que negou precisamente a liberdade da vontade, e um compatibilista, isto , algum que procurou compatibilizar o determinismo com a responsabilizao ou um autor que iniciou a discusso, mas que no tinha muita clareza sobre o problema, pois este no apareceria com toda a sua fora seno aps os desenvolvimentos da filosofia estica. Esta tese pretende responder a ambas estas interpretaes. Para isso, feita uma anlise das passagens em que Aristteles trata da responsabilizao moral, na tica Eudmia II.6-11 e na tica Nicomaquia III.1-7. O objetivo mostrar que sua teoria da responsabilizao moral no apenas incompatvel com o determinismo da vontade, e, portanto, ele no pode ser um compatibilista, mas que a sua teoria dos atos voluntrios humanos coerente com isso, ou seja, ele produziu uma teoria dos princpios das aes que indeterminista. Aristteles pode assim ser considerado como tendo definido, sem confuses, o que significa para a vontade ser livre, mesmo que ele no tenha se valido e nem definido o termo vontade. Ele no faz uso deste termo, porque tem outro termo que cumpre esta funo: escolha deliberada. Aristteles, portanto, defende uma tese da escolha livre que necessria para sua teoria da responsabilizao moral no compatibilista.
ABSTRACT
Aristotle is taken to be a precursor to the free-will problem. In spite of that, he is considered also by many scholars to be either a determinist, someone who deny the freedom of the will, and a compatibilist, someone who tried to make cohere determinism and responsibility, or an author that begun this discussion, but did not have much clarity about it, because this would have to wait the developments of the Stoic School, in Antiquity. This thesis answers both these interpretations. To accomplish this, an analysis of the passages in which Aristotle deals with moral responsibility is done, in the Eudemian Ethics II.6-11 and in the Nicomachean Ethics III.1-7. The goal is to show that his theory of responsibility is not compatible with determinism of the will and, therefore, he cannot be sustained a compatibilist, and that his theory about voluntary acts is consistent with it: he left an indeterminist theory of the principles of actions. That is why Aristotle can be taken to have answered, without any confusions, what means to the will to be free, even though he has not used the term, will. He does not use this term, because he has another one that can play this role: deliberate choice. Aristotle, therefore, claims that free choice is necessary to his incompatibilist theory of responsibility.
SUMRIO
1 INTRODUO ................................................................................................................. 8 2 AO VOLUNTRIA ................................................................................................... 24 2.1 tica Eudmia II.6-9 ...................................................................................................... 33 2.1.1 Anlise do Texto ......................................................................................................... 36 2.2 tica Nicomaquia III.1-3 ............................................................................................ 107 2.2.1 Anlise do Texto ....................................................................................................... 113
3 A ESCOLHA DELIBERADA ...................................................................................... 154 3.1 tica Eudmia II.10 ...................................................................................................... 156 3.1.1 Anlise do Texto ....................................................................................................... 157 3.2 tica Nicomaquia III. 4-6 ........................................................................................... 192 3.2.1 Anlise de Texto ....................................................................................................... 192
4 VIRTUDES E VCIOS SO VOLUNTRIOS ......................................................... 233 4.1 tica Nicomaquia III.7 ............................................................................................... 237 4.1.1 Anlise de Texto ........................................................................................................ 237 4.2 tica Eudmia II.11 ...................................................................................................... 287 4.2.1 Anlise de Texto ........................................................................................................ 287
5 CONCLUSO ............................................................................................................... 296 REFERNCIAS .............................................................................................................. 299
1 INTRODUO
O presente trabalho nasceu de um projeto mais abrangente que pretendia comparar
a filosofia da ao de Aristteles com a estica. Esta questo mais abrangente conduziu
quela mais restrita acerca da liberdade e do determinismo, um tema dominante na
discusso da filosofia prtica estica. Este projeto acabou por mostrar-se insustentvel
dada enorme quantidade de questes envolvidas e de passagens que deveriam ser
analisadas. Decidiu-se, ento, perseguir este tema somente em Aristteles. Na discusso
dos estudiosos sobre o tema da liberdade e determinismo na Antigidade, embora
Aristteles seja considerado um precursor ao problema, a interpretao da sua posio
varia muito, principalmente porque no papel de um precursor admissvel que o
problema no aparecesse a ele de modo to delimitado quanto aquele em foi discutido ao
longo da histria e mesmo na Antigidade. Aristteles, sendo um precursor do tema, no
necessariamente o teria apreendido como um problema sobre a liberdade e o
determinismo. Encontramos no Corpus Aristotelicum diversas passagens em que se discute
e rejeita teses sobre a necessitao do mundo, seja de um ponto de vista lgico, como no
De Interpretatione 9, seja causal, como na Metafsica E.3 ou Da Gerao e Corrupo
II.11. As teses que ele se prope a responder podem ser consideradas como deterministas,
mas, ainda assim, para que suas discusses sejam chamadas de discusses acerca do
determinismo muito trabalho de interpretao tem de ser feito. Deste modo, a atribuio a
Aristteles de uma posio sobre o tema deve ser cautelosa e tem de levar em conta as
vrias passagens, em seus diferentes contextos, em que ele se aproxima do assunto e as
vrias possveis teses deterministas que ele poderia ter em mente, j que o determinismo
no se reduz a uma nica forma. Quanto liberdade, a atribuio a Aristteles de uma
posio acerca disto ainda mais precria, visto que ele no teve a mesma sorte que ns, a
de nascer em um perodo em que este conceito j tivesse sido desenvolvido claramente e
recebido inclusive este nome.
Apesar de tudo isto, Aristteles considerado um precursor ao tema. E com razo.
Esta razo nos levou a procurar investigar se no seria possvel dar uma resposta clara
sobre sua posio, mostrando-o ser, com respeito ao humana, um incompatibilista e
libertrio. Para faz-lo, era preciso restringir a quantidade de passagens investigadas, ou o
estudo se tornaria novamente ambicioso demais. Por isso, a investigao foi restringida ao
domnio prtico: aquele em que se discute acerca da responsabilizao sobre nossas aes.
O mtodo de investigao procura ser minucioso, seguindo o texto de Aristteles passo a
passo nos dois trabalhos ticos que so hoje atribudos sem reservas a este autor: a tica
Nicomaquia e a tica Eudmia. Ns nos ocuparemos dos trechos nestas obras em que
Aristteles anuncia estar tratando da questo do elogio e da censura para nossas virtudes e
vcios: o livro terceiro, captulos 1 a 71, da tica Nicomaquia e o livro segundo, captulos
6 a 11, da tica Eudmia. preciso ainda dizer algumas palavras acerca da identificao
da atribuio de elogio e censura s virtudes e vcios com o tpico da responsabilizao
moral. Ns o faremos nesta introduo, antes disso, preciso, todavia, que se d a razo
para supor, de sada, que Aristteles seja um incompatibilista e libertrio. Ora, esta razo
encontra-se no prprio fato de ser ele um precursor do debate.
Num artigo recente, The Inadvertent Conception and Late Birth of the Free-Will
Problem, Suzanne Bobzien (1998) procura esclarecer os termos do problema da liberdade
da vontade e traar o seu desenvolvimento desde Aristteles at Alexandre de Afrodsia, o
qual, segundo ela, foi o verdadeiro responsvel na Antigidade por articular claramente o
problema de um ponto de vista indeterminista. Alexandre situa-se na tradio aristotlica,
mas a expande de uma forma que somente foi possvel aps o desenvolvimento das teses
compatibilistas esticas. Segundo Bobzien, antes disso, o problema de fato no havia sido
concebido enquanto tal. Em poucas palavras, e vamos voltar a isso em breve, o problema
s se pe quando se capaz de atribuir s escolhas ou a alguma faculdade da alma como a
vontade a capacidade para determinar-se por um curso de ao sem que essa capacidade
seja por sua vez determinada para este curso. Dito de outro modo, mais prximo quele em
que o problema foi posto, trata-se de atribuir escolha a capacidade de tender a qualquer
um de dois cursos opostos de ao. Ora, sustenta Bobzien, em Aristteles, embora
encontremos a expresso chave depende de ns fazer ou no fazer, esta no se refere
escolha, no sentido de que depende de ns escolher fazer ou escolher no fazer, mas ao
escopo da escolha: a ao. Na medida em que agir ou no agir determinado por uma
escolha, agir ou no agir depende de ns, mas a prpria escolha de agir ou no agir no
algo que dependa de ns, ela determinada por nosso carter. Aristteles o primeiro a
usar a expresso depende de ns fazer ou no fazer, mas como ele no se d ao trabalho
de esclarec-la, ela ambgua entre depende de ns a escolha de fazer ou no fazer e
depende de nossa escolha que se faa ou no. Neste ltimo caso se a escolha for do sim, a 1 Esta diviso em captulos a de Bekker. Ao longo deste trabalho, utilizaremos esta capitulao.
9
ao ser feita, se for do no, no ser feita, mas no se trata de dizer que a escolha ela
mesma no tenha causas anteriores que a determinam a ser escolha do sim ou escolha do
no. Aristteles no se d ao trabalho de esclarecer essa ambigidade da expresso
simplesmente porque ele no reconhecia isto como um problema. Era preciso esperar pelo
estoicismo que se debateu com a questo da compatibilidade entre causalidade necessria e
ao responsvel porque desenvolveu uma teoria da causao necessria no mundo.
Bobzien destaca que, em grego, o nico termo que poderia traduzir liberdade
eleutheria, mas este s comea a ser usado tardiamente nas discusses que nos
interessam aqui. A maior parte da discusso acerca da liberdade da ao girou em torno da
expresso ephhmin (depende de ns). Somente somos responsabilizveis por aquilo
que depende de ns. Ora, esta expresso pode ter dois sentidos: um causativo e outro
potestativo (os termos so de Bobzien). O sentido causativo indica que x depende de y
se y causa de x, de tal modo que x no teria ocorrido no fosse por y. Este sentido
tambm importante para teorias acerca da liberdade, pois exclui que uma ao seja livre
se ela for compelida externamente, j que, neste caso, no dependia do agente. O agente
mantido causalmente responsvel pela ao se ele seu originador causal. Este sentido
compatvel tanto com um conceito indeterminista quanto com um conceito determinista de
liberdade, desde que, neste ltimo caso, as causas que determinam a ao sejam internas ao
agente. O sentido potestativo, segundo Bobzien, bem atestado pelos dicionrios Liddell
& Scott, bipolar, expresso em geral pela expresso completa depende de ns fazer ou
no fazer, e indica que est em poder de y causar ou no causar x. O sentido potestativo
inclui possibilidades no realizadas, visto que, por exemplo, se em certo momento
caminhar depende de mim, ento no caminhar tambm depende de mim no mesmo
momento, mas eu sou capaz de ou caminhar ou no caminhar, portanto, uma das
possibilidades permanecer no realizada. Ora, este segundo sentido de depende de ns
pode ser compatvel com o determinismo ou incompatvel com ele, de acordo com o modo
como se compreenda o que est em meu poder fazer ou no. possvel dizer, por exemplo,
que, em geral, depende dos homens caminhar ou no caminhar e isto permite que eles
escolham entre caminhar e no caminhar, todavia, esta escolha causalmente determinada.
Nesse caso, no possvel dizer que o mesmo agente nas mesmas circunstncias pode
escolher entre caminhar ou no caminhar, pois uma das duas alternativas est determinada
causalmente. O sentido de depende de ns fazer ou no fazer incompatvel com o
determinismo se for compreendido que em dado momento no est determinado se algum
10
vai caminhar ou no caminhar e, neste caso, caminhar ou no depende de uma escolha
livre. Ao invs de uma capacidade geral tida em um certo tempo, neste caso existe um
poder para decidir indeterminadamente entre e iniciar cursos de ao (id., ibid., p. 140).
Ora, como j observamos, Bobzien entende que em Aristteles a escolha deliberada
escolha de coisas que dependem de ns e no ela prpria uma das coisas que
dependem de ns. Segundo ela, uma tal idia seria bastante alheia ao pensamento de
Aristteles. Assim sendo, ela diz:
Todavia, o conceito de Aristteles do que depende de ns no implica indeterminismo. No temos nenhuma razo para assumir que ele tenha algo mais em mente seno que as coisas que dependem de ns so aquelas que num nvel genrico possvel para ns fazer e no fazer, dado que no sejamos impedidos externamente de faz-las. Nas duas ticas, tudo o que o conceito do que depende de ns de fato d o alcance geral de cursos de ao a partir do qual ns podemos escolher. O conceito independente de (e anterior a) o conceito de Aristteles da escolha deliberada, e de qualquer capacidade mental que tenhamos. tomado como um conceito bsico, no definido e genericamente compreendido, por meio do qual o escopo dos objetos da escolha deliberada determinado2. (id., ibid., p. 144).
A partir disso, Bobzien pretende reconstruir o desenvolvimento da noo de
liberdade at Alexandre de Afrodsia atravs da progressiva elucidao de conceitos
presentes em Aristteles, mas no desenvolvidos por ele com a finalidade de mostrar que a
ao humana tenha tais caractersticas. Aristteles , pois, o pai de um filho que ele no
reconheceu como tal. E isso talvez no nos devesse surpreender. bem possvel que isso
tenha acontecido muitas vezes na histria da filosofia. Por outro lado, tambm possvel
que Alexandre no estivesse to enganado assim com respeito posio aristotlica,
mesmo que, para que ele tenha desenvolvido sua interpretao, muita gua tivesse de ter
corrido sob a ponte das discusses filosficas, do mesmo modo como muita gua correu
sob esta mesma ponte para que Bobzien pudesse estar apta a usar a mecnica conceitual de
que faz uso para distinguir os vrios tipos de sentido de depende de ns e de liberdade.
Esta a razo, como dizamos, pela qual supomos que Aristteles pudesse ser um
indeterminista e libertrio, a saber, porque j na Antigidade ele foi considerado assim, por
seu grande comentador, Alexandre de Afrodsia. O que pretendemos, ento, analisar as
2 But Aristotles concept of what depends on us does not entail indeterminism. We have no reason to assume that he has anything more in mind than that the things that depends on us are those which on a generic level it is possible for us to do and not to do, given that we are not externally prevented from doing them. In the two Ethics, all the concept of what depends on us does give is the general range of courses of action from which we can choose. The concept is independent of (and prior to) Aristotles concept of deliberate choice, and of any mental capacity we have. It is taken as a basic concept, undefined and generally understood, by means of which the scope of the objects of deliberate choice is determined.
11
passagens em que Aristteles constri sua teoria da responsabilizao e ver em que medida
tudo de que ele precisa um conceito de depende dele no sentido alegado por Bobzien.
Uma outra interpretao de Aristteles deve ser salientada. Richard Sorabji, em
Necessity, Cause and Blame (1980), defendeu que Aristteles no negaria que aes
voluntrias so causadas e sim que so necessitadas. Ele admitiria, pois, a existncia de
causas que no necessitam seus efeitos. Sorabji sustenta: Uma criana pode tomar o
atrativo brinquedo de outra criana, a despeito de recordar-se que devia ter permisso. Ao
tomar o brinquedo, a criana est respondendo a um conjunto de sentimentos antes que
outro a ao no sem causa. Todavia, nem seus sentimentos nem nada mais precisa
necessitar a ao3 (id., ibid., p.232). E na nota em que explica essa afirmao, ele diz:
Nas mesmas precisas circunstncias, a criana poderia ter agido de outro modo. Todavia, sua ao tem uma explicao e uma causa, a saber, o conjunto de incentivos que favoreciam tomar o brinquedo. (Talvez ele sinta falta de um brinquedo similar que lhe pertencia e est perdido). Isto explicar sua ao, por exemplo, a algum que tenha visto o caso sob o outro aspecto (a criana quer obedecer seus pais), mas no tiver visto o que to atrativo no brinquedo (a criana tem muitos que lhe pertencem). verdade que no h uma resposta disponvel para algum que j conhece ambos os conjuntos de incentivos completamente e quer que lhe digam por que a criana agiu de acordo com um conjunto antes que com outro. Todavia, foi argumentado no captulo dois que uma demanda por explicao no precisa pressupor esta pergunta em particular4.
A sada encontrada por Sorabji para defender a no necessitao das aes e, ao
mesmo tempo, desviar-se da objeo que, neste caso, as aes voluntrias seriam
inexplicveis e arbitrrias distinguir causa e necessidade. As causas, neste caso, no so
compreendidas em termos de condies suficientes. Sendo assim, elas explicariam por que
algo ocorreu, mas no explicariam por que algo ocorreu ao invs de no ter ocorrido. Para
alm de discutir a correo da interpretao oferecida, o que chama a ateno nesta
explicao o exemplo usado: a criana. Na interpretao de Sorabji, os atos humanos
voluntrios infantis e adultos no se diferenciam: ambos so no necessitados. Este autor,
ademais, faz questo de diferenciar a sua questo daquela da liberdade da vontade. O
motivo para isto simples: a liberdade da vontade, num sentido indeterminista, no requer 3 A child may take another childs attractive toy, in spite of remembering that he is supposed to get permission. In taking the toy, the child is responding to one set of feelings rather than another the action is not uncaused. But neither these feelings nor anything else need necessitate the action.4 In the very same circumstances, the child could have acted in other way. Yet his action has an explanation and a cause, namely, that set of incentives which favoured taking the toy. (Perhaps he misses a similar toy of his own which was lost). This will explain his action, for example, to someone who has seen the case on the other side (the child wants to obey his parents), but has not seen what is so attractive about this toy (the child has plenty of his own). Admittedly, there is no answer available to someone who already knows both sets of incentives in full and wants to be told why the child acted on the one set rather than the other. But then a call for explanation need not presuppose this particular question, so it was argued in Chapter Two.
12
apenas a no necessitao, ela requer tambm o controle do agente sobre as alternativas
tomadas, de modo tal que o agente possa responder no s pela alternativa que tomou, mas
por aquela que no tomou. Quando se atribui liberdade a um agente o que se quer dele o
controle por ter feito a ao A ao invs da ao no A e a no necessitao por si mesma
no satisfaz esta condio. por isso que uma tese sobre a liberdade parece to paradoxal.
A liberdade indeterminista requer, ao mesmo tempo, que o agente no seja necessitado e
que ele escolha racionalmente uma das opes ao invs da outra, e com racionalmente
aqui quer-se dizer que ele tinha razes para tomar uma alternativa ao invs da outra, e,
portanto, que ele tenha tomado uma alternativa enquanto alternativa. A soluo de Sorabji
resulta em atribuir a no necessitao a todo ato voluntrio, no somente aquele que
depende do sentido propriamente racional de escolha entre alternativas.
Ora, se quisermos, ao contrrio, distinguir o ato voluntrio racional daquele no
racional, devemos poder atribuir ao agente alguma capacidade de desejo ligada
capacidade racional, tal como a vontade. Marco Zingano, no artigo Deliberao e Vontade
em Aristteles (1997)5, mostrou como seria possvel em Aristteles atribuir esta funo
justamente capacidade de escolha deliberada. Zingano defende que no preciso situar
em um dos tipos especficos de desejo, tal como a boulsis, uma capacidade estritamente
racional e sim na escolha deliberada. Por essa mesma razo, tambm no preciso eliminar
algum dos outros tipos de desejo, tal como a epithumia e o thumos, do domnio da ao
racional. A escolha deliberada funciona como uma capacidade de escolha para qualquer
dos tipos de desejo postos para o homem como desejos de um fim a ser alcanado. Cada
um deles tm caractersticas especiais no que concerne ao modo de apresentao do objeto,
mas nenhum deles se encontra fora da esfera da racionalidade humana. Desta forma,
Aristteles pode considerar todas as aes provenientes destes desejos, na medida em que
so voluntrios, como aes passveis de responsabilizao.
Para compreender esta concluso e poder atribui-la a Aristteles, deve-se precisar a
resposta a duas questes. A primeira diz respeito ao modo como este filsofo compreende
a responsabilizao. A segunda trata da relao entre o voluntrio e o que pode ser
responsabilizado. Quanto primeira questo, preciso observar que as exigncias de uma
teoria da responsabilizao dependem de que tipo de responsabilizao se quer fazer. Na
medida em que se quer atribuir a Aristteles a defesa da liberdade de escolha, ou seja, a
no necessitao atribuda a uma capacidade racional de tomar uma alternativa entre
5 Cf. tambm a respeito da noo de vontade em Aristteles, IRWIN, 1992.
13
opostas, como uma condio necessria da responsabilizao, preciso mostrar que ele
sustentou uma teoria da responsabilizao tal que requeria a liberdade de escolha. Quanto
segunda questo, preciso esclarecer a relao entre agir voluntariamente e ser passvel de
responsabilizao.
Vamos nos deter um pouco sobre o significado de responsabilizar algum por
algum ato cometido. Digamos, ento, que atribuir responsabilidade a algum por algo que
fez consiste em i) imputar-lhe a ao, ou seja, atribuir ao agente a causalidade sobre ela e
ii) pressupe que o agente esteja apto a responder por sua ao, e com isso quer-se dizer
que pressupe-se que ele seja um sujeito passvel de atribuio de retribuio pelo ato
cometido da seguinte forma: se o ato for considerado bom, o agente passvel de alguma
forma positiva de recompensa e se o ato for mau, de alguma forma negativa de
recompensa. Esta forma bsica de responsabilidade pode ser extensiva a agentes no
racionais na medida em que i) seja possvel atribuir a agentes no racionais a causalidade
sobre a ao e ii) seja possvel atribuir a eles alguma forma de relao entre seu ato e uma
recompensa pelo ato, considerado bom ou mau, de forma que isso possa ter um efeito
sobre seu comportamento futuro. preciso diferenciar esta forma extensvel a seres no
racionais de responsabilizao daquela que, em sentido mnimo, se atribui a seres
racionais, pois para (i), a causalidade que se atribui poder ser uma que envolve a
possibilidade de fazer de modo diverso ou seja, envolve no necessitao, e isto estar
ligado ou no sua capacidade racional de tomar qualquer uma entre duas alternativas de
ao, ou seja, envolve ou no a liberdade de escolha e para (ii), o agente compreende
racionalmente a atribuio de atitudes tais como elogio, censura, castigo, punio, honra ao
seu ato e capaz de responder pela ao diante destas atitudes, seja para defender-se, seja
para justificar-se, seja para valer-se racionalmente disto em atos futuros. A
responsabilizao moral envolve que o ato praticado seja avaliado moralmente como bom
ou mau e por isso requer que i) o agente seja considerado a causa da ao com respeito
mesmo ao carter bom ou mau do ponto de vista moral e ii) que ele seja passvel de
atribuio de um valor moral a ele prprio na forma de elogio e censura, isto , no apenas
com o fim de modificar seu comportamento ou melhorar seu comportamento, mas
simplesmente de qualific-lo como uma boa pessoa ou como uma m pessoa. Neste ltimo
caso, ele deve ser capaz de compreender a si mesmo e ao seu ato como uma pessoa e um
ato de um certo valor moral tal que este ato e ele como pessoa so passveis de elogio ou
censura. A responsabilizao moral no pode ser atribuda a agentes no racionais, tanto
14
porque exige que eles sejam causas do ato enquanto ato de um certo valor moral, quanto
porque a avaliao moral que se faz dos agentes s possvel na suposio que os prprios
agentes sejam capazes de avaliar seu ato moralmente, ou seja, sejam capazes de
compreender o tipo de avaliao na forma de censura e elogio que lhes est sendo
endereada, e esta uma avaliao moral, pois se queremos que os agentes possam
responder moralmente pelo que fizeram, preciso supor que eles tambm sejam capazes de
avaliar moralmente suas aes e a eles prprios.
Visto que a primeira condio da responsabilizao envolve causalidade e que a noo
de liberdade est ligada a esta, vale a pena resumir o que est em jogo neste caso para
efeitos de responsabilizao. A liberdade pode ser caracterizada de dois modos. Posies
deterministas acerca da liberdade sustentam que uma ao livre se ela no forada por
algo externo. Neste sentido, qualquer ao cujo ponto de partida seja algum estado interno
ao agente pode ser qualificada como livre, mesmo que o agente no pudesse ter feito de
modo diverso, isto , mesmo que ele fosse determinado por alguma causa interna a fazer o
que fez. Visto que a imputabilidade uma exigncia da noo de responsabilidade, ou seja,
exigido que o agente seja causa, nesta concepo de ao livre preciso mostrar como
causas internas que necessitam a ao ainda podem permitir que as aes sejam
qualificadas como aes do prprio agente. Posies indeterministas acerca da liberdade
sustentam que uma ao livre se ela no necessitada de modo algum e, por isso, o
agente em todos os casos poderia ter feito de outro modo. j uma forma comum de
caracterizar a questo dizer que, do ponto de vista determinista, o agente poderia ter feito
de outro modo, se quisesse, visto que nada externo a ele o determina a fazer o que faz, mas
que o agente no poderia querer de outro modo e, por isso, no poderia fazer de outro
modo6. A perspectiva indeterminista nega at mesmo essa determinao. Para que uma
ao seja atribuda a um agente preciso que sua prpria escolha de fazer a ao no seja
causada por algo, de modo que ele possa escolher tanto faz-la quanto no faz-la.
Posies indeterministas precisam explicam como um agente poderia ter feito nas mesmas
circunstncias uma ao diversa e ainda assim agir racionalmente e no arbitrariamente,
6 Cf. AYER, 1997 e a discusso de AUSTIN, 1979 (2). Para diferentes concepes da liberdade contemporaneamente defendidas cf. CHISHOLM, 2000; KANE, 2000; HONDERICH, 2000; VAN INWAGEN, 1997; FRANKFURT, 1997. Para diferentes concepes de liberdade atribudas aos filsofos gregos antigos, cf. FURLEY, 1967 que discute as teses de Aristteles e Epicuro; ROSS, 1987; EVERSON, 1990; NATALI, 2004; ZINGANO, 2004; MUOZ, 2002 que discutem as teses de Aristteles; SORABJI, 1980; BOBZIEN, 1998 (1) que discutem as teses de Aristteles e dos Esticos. Cf. tambm a discusso em MOURA, 2004, sobre a irracionalidade da noo de liberdade segundo a crtica de Leibniz a Descartes.
15
isto , precisam explicar que um agente tome uma alternativa porque lhe parecia a melhor,
mas poderia, nas mesmas circunstncias, ter tomado a outra.
Naquilo que concerne ao fato de esperar-se do agente uma responsabilidade por
seus atos de tal modo que ele seja passvel de elogio ou censura por eles, possvel
tambm distinguir duas sadas de acordo com a posio determinista ou indeterminista, de
acordo com a relao entre a primeira e a segunda condies, isto , os modos de
compreender a causalidade do agente refletem-se nos modos de compreender as
atribuies de elogio e censura. Uma posio indeterminista pode sustentar que se o
agente, sendo causa do ato, poderia ter feito de outro modo, ento ele merece elogio e
censura. O elogio e a censura so concebidos, pois, como retribuies ao ato praticado. Se,
por outro lado, numa perspectiva determinista, o agente no poderia ter feito de modo
diverso, qual o sentido em dizer que ele passvel de elogio ou censura? Elogio e censura
so aplicados, neste caso, supondo-se no que o agente os merea, mas que estes tero de
algum modo um efeito sobre seu comportamento futuro. Elogio e censura so concebidos,
pois, como corretivos ao comportamento do agente. Ora, ocorre que, do ponto de vista da
responsabilizao moral, quando se censura ou elogia, no se est apenas fazendo-o com
vistas correo do comportamento futuro, mas se est atribuindo ao agente do ato um
certo valor moral que merece censura ou elogio. Assim, aparentemente, a
responsabilizao moral incompatvel com a perspectiva determinista.
Mostrar, portanto, que Aristteles requer para sua teoria da responsabilizao a
liberdade de escolha exige do intrprete mostrar que ele tem uma teoria da
responsabilizao moral no sentido antes definido, isto , uma responsabilizao em
termos de mrito. Supondo, pelo momento, que isto possa ser feito, temos ainda outra
dificuldade a enfrentar, que diz respeito segunda questo colocada pargrafos acima, a
saber, aquela concernente relao entre o voluntrio e o responsvel. Aristteles diz que
ao que voluntrio elogio e censura so atribudos. Ora, se elogio e censura se atribuem
em termos de mrito, ento animais e crianas no recebem elogio e censura, visto que no
podem ser responsabilizados nestes termos. Ainda assim, Aristteles defende
expressamente, ao menos na tica Nicomaquia, que animais e crianas agem
voluntariamente. De outra parte, se elogio e censura so atribuveis em termos de mrito e
se este tipo de responsabilizao requer a liberdade de escolha, ento aparentemente
somente atos escolhidos deliberadamente so passveis de responsabilizao por mrito.
Todavia, Aristteles tambm defende, novamente explicitamente na tica Nicomaquia e
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na tica Eudmia, que os atos escolhidos deliberadamente so somente um dos tipos de
atos voluntrios, pois o voluntrio mais amplo do que o escolhido deliberadamente.
Ora, se o voluntrio nos homens aquilo que passvel de responsabilizao, ento
deve haver algo que distinga o voluntrio humano do voluntrio animal ou infantil, visto
que estes ltimos no so passveis de responsabilizao. As condies do voluntrio so a
internalidade do princpio que origina o movimento e o conhecimento das circunstncias
em que ocorreu o movimento. Se considerarmos a segunda destas condies, vemos que se
esta definio aplica-se tambm a animais e crianas, ento conhecimento dever ter um
sentido adequado quando atribudo aos movimentos de seres voluntrios no racionais,
pois suas capacidades cognitivas referentes apreenso de circunstncias so, de todos
os modos, diversas das capacidades cognitivas de um ser racional. Se para a condio de
conhecimento reconhecemos que so diferentes as exigncias cognitivas que se faz de
acordo com o tipo de ser ao qual se atribui o voluntrio, nada impede que o mesmo ocorra
para a condio da internalidade do princpio, ou seja, que aqui tambm o tipo de princpio
que d incio a uma ao voluntria nos seres racionais seja diverso daquele que d incio a
um movimento voluntrio no caso de seres no racionais. Do mesmo modo como, com
respeito condio do conhecimento, alguma capacidade cognitiva exigida para executar
uma discriminao de circunstncias, e esta capacidade pode ser racional ou no de acordo
com o tipo de capacidades que o ser voluntrio tenha, tambm com respeito ao princpio
interno de movimento o que h em comum entre este princpio interno para animais
racionais e no racionais que, ao contrrio de outros princpios internos de movimento, o
princpio de movimento voluntrio algo determinado pelo agente atravs de uma
representao do movimento a ser executado. Esta representao objeto de desejo. O
desejo, que princpio do movimento voluntrio, tem por objeto algo que representado
pelo agente como seu objeto de desejo e a ao o movimento determinado por este desejo
para obter o seu objeto, e, como tal, ela tambm objeto de desejo e representada. Se todo
o voluntrio tem um princpio deste gnero e princpios deste gnero envolvem
representaes, e se representaes tambm dependem de capacidades cognitivas distintas
para seres racionais e seres no racionais, ento no que se refere ao princpio interno de
movimento voluntrio este tambm diverso para seres racionais e seres no racionais.
Este tipo de raciocnio, ainda que apresentado de forma vaga nesse momento, mostra como
possvel atribuir o voluntrio igualmente a homens, animais e crianas e ainda assim
sustentar que somente o voluntrio humano passvel de responsabilizao por mrito.
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possvel faz-lo na medida em que o princpio do movimento voluntrio para os homens
seja diverso do princpio de movimento voluntrio para os animais e na medida em que
este princpio no caso dos homens seja passvel de responsabilizao por mrito. Se isso
for mostrado, ter-se- mostrado que todo voluntrio humano passvel de tal
responsabilizao e passvel disto justamente na medida em que o seu princpio tenha as
caractersticas necessrias para ser objeto desta responsabilizao, coisa que no ocorre no
caso dos demais seres voluntrios.
Ocorre que, como vimos, um tal princpio deveria ser a escolha livre e isso
significaria dizer que todo voluntrio humano objeto de escolha livre. Dita deste modo,
esta tese pareceria esbarrar na tese aristotlica segundo a qual o ato escolhido
deliberadamente somente um dos tipos de atos voluntrios. No entanto, possvel
observar que uma teoria da responsabilizao moral no precisa exigir que todos os atos
voluntrios sejam exercidos na forma acabada de uma escolha entre alternativas
racionalmente apresentadas (isto , de uma escolha aps deliberao). Uma teoria da
responsabilizao por mrito somente se sustenta se uma tal escolha e se aes
provenientes deste tipo de escolha forem possveis, mas no precisa requerer que somente
atos escolhidos desta forma sejam responsabilizveis. Para uma tal teoria, basta que todos
os atos humanos voluntariamente feitos tenham como princpio algo que passvel de uma
escolha na direo contrria, ou seja, que todo princpio interno seja tal que com respeito
ao ato por ele originado o agente poderia ter escolhido no faz-lo. Assim sendo, os atos
originados por outros tipos de desejo diversos da escolha deliberada, so atos tais que, com
respeito a eles e aos princpios que lhes deram origem, estava em poder do agente no
fazer o que fizeram, ou seja, escolher no agir de acordo com aqueles princpios. Se os atos
provenientes de apetite ou mpeto no fossem sujeitos ao controle da capacidade de
escolha do agente, ento com respeito a eles no seria possvel sustentar o mesmo tipo de
responsabilizao moral que se sustenta com respeito aos atos escolhidos deliberadamente.
Eles estariam excludos do domnio da responsabilizao moral. Todavia, se alguns atos
por apetite e por mpeto so atos que no so feitos por escolha deliberada, isto no
significa que o agente no pudesse ter escolhido deliberadamente nas mesmas
circunstncias seja agir de acordo com estes mesmos apetites e mpetos de modo que seu
ato no seria um ato proveniente do apetite ou do mpeto, mas da escolha deliberada,
embora em aparncia fosse o mesmo ato seja agir contrariamente a estes mesmos apetites
e mpetos. Assim, ao agir por mpeto ou apetite age-se voluntariamente e num sentido
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passvel de responsabilizao moral, porque tais princpios no homem esto sujeitos ao
controle da escolha racional, mesmo que no tenham sido feitos por escolha deliberada. O
apetite e o mpeto, portanto, so princpios internos de atos voluntrios que no excluem o
controle racional da escolha e, por isso, so passveis de responsabilizao moral.
Procuraremos defender esta soluo no curso da anlise dos textos aristotlicos.
Neste momento, queremos apenas levantar alguns dos problemas principais no que
concerne interpretao de Aristteles e introduzir o caminho que optamos para solucion-
las. Neste sentido, podemos nos perguntar qual o papel da escolha livre na definio do
voluntrio. Devemos responder se a escolha entre alternativas uma condio do ato
voluntrio ou uma condio da responsabilizao do ato voluntrio. Em primeiro lugar,
deve-se voltar a observar que a escolha livre no condio do ato voluntrio em geral,
pois se fosse, os animais e crianas no agiriam voluntariamente. Tambm no condio
do voluntrio humano, pois se fosse o ato voluntrio no escolhido deliberadamente no
seria voluntrio. Vamos colocar esta questo no em termos de escolha, mas em termos da
clusula depende do agente fazer ou no. Segundo a interpretao que damos desta
clusula na tica Nicomaquia e na tica Eudmia, ela significa que depende da escolha
do agente fazer ou no fazer. Ora, para que alguma coisa dependa da minha escolha, no
preciso que eu, de fato, escolha deliberadamente. Um ato pode ser passvel da minha
escolha e eu o tomar, no por escolha, ou seja, considerando este ato como uma alternativa,
aps ter deliberado a respeito das razes para faz-lo ou no, mas tom-lo por impulso, no
furor do momento. O fato de eu t-lo tomado impulsivamente no exclui este ato do
domnio daqueles com respeito aos quais eu poderia ter escolhido no faz-los. Portanto, a
clusula depende do agente fazer ou no, embora diga respeito possibilidade de
escolha, vlida mesmo para os atos no provenientes de escolha deliberada, desde que
sejam atos provenientes de princpios sob o controle dos agentes racionais. Se a clusula
depende do agente fazer ou no for compreendida de modo a fazer referncia
possibilidade de controle livre que tem o agente sobre aquilo de que princpio, ento no
preciso compreend-la como condio de responsabilizao dos atos voluntrios, mas
como condio dos prprios atos voluntrios humanos. Se Aristteles no a introduz
explicitamente na tica Nicomaquia como caracterstica do princpio interno dos atos
voluntrios porque ali sua definio deve ser ampla o suficiente para abranger todo o
voluntrio e porque ela uma caracterstica apenas dos princpios internos propriamente
19
humanos. Esta caracterstica permite que todo ato voluntrio humano seja passvel de
responsabilizao em termos de mrito.
Uma ltima dificuldade deve ser brevemente mencionada. Em interpretaes
deterministas da posio aristotlica a causa interna que determina a escolha a ser do sim
ou do no , em geral, o carter, a disposio moral. Em nossa interpretao, o fato que
Aristteles defenda que as disposies morais so voluntrias e que elas dependem do
agente mostra que elas no podem ser o fundamento ltimo da responsabilizao moral.
porque podemos dizer sim ou no que somos responsabilizveis, e porque podemos dizer
sim ou no que nossas disposies so voluntrias. Assim, nossa capacidade de dizer sim
ou no est na base da responsabilizao. Se assim, a base da responsabilizao no pode
ser uma causa interna tal como as nossas disposies morais. Algo anterior a elas que
torna elas prprias dignas de censura ou elogio, isto , torna seus agentes passveis de
responsabilizao por mrito.
Estas so as dificuldades para as quais pretendemos investigar a soluo de
Aristteles. A investigao da soluo acompanhar a anlise do texto aristotlico e, por
isso, estas solues no aparecero todas reunidas e dadas em conjunto de uma s vez.
Algumas das mais importantes respostas tero de esperar at os ltimos trechos
pesquisados. Alm disso, o fato de estarmos utilizando passagens da tica Eudmia e da
tica Nicomaquia no pode deixar de merecer algum comentrio prvio. A relao entre
estes dois trabalhos uma questo delicada e que tm sido objeto de discusso. No h
como negar que elas se afastam em alguns momentos e no apresentam a mesma soluo.
De outra parte, nosso intuito mostrar como elas tambm no se afastam tanto assim e que
a mesma tese geral sobre a responsabilizao sustentada em ambas. inevitvel, todavia,
observar que encontramos, no curso de nossa investigao, solues mais claras, mais
satisfatrias e mais bem acabadas na tica Nicomaquia. Contudo, isso no diminui a
importncia da investigao da tica Eudmia, pois para fins de compreenso da
articulao do pensamento aristotlico, os argumentos, as teses e as dificuldades que elas
provocam e que, ao nosso ver, so sanadas na tica Nicomaquia, ajudam a fazer uma
idia mais slida do pensamento aristotlico e das dificuldades com que ele se viu
envolvido.
Faamos, ento, um resumo das dificuldades com que nos depararemos e o lugar
em que elas sero tratadas no estudo que vm a seguir. A dificuldade mais fundamental
para a questo da atribuio a Aristteles de uma posio quanto liberdade corresponde a
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saber como ele compreendeu a responsabilizao, isto , elogio e censura. Que tenha sido
na forma de mrito ser objeto da terceira parte deste estudo, aquela dedicada s passagens
em que Aristteles defende que virtudes e vcios so voluntrios. A dificuldade
concernente definio do voluntrio e sua relao com a clusula depende de ns fazer
ou no ser objeto da primeira parte deste trabalho, dedicada s passagens em que
Aristteles procura definir o voluntrio. Aqui, sobretudo, a tica Eudmia tem importncia
fundamental, pois os argumentos pelo voluntrio so diferentes e a definio do voluntrio
inclui a clusula depende de ns fazer ou no. Uma terceira dificuldade que foi levantada
nesta introduo encontrar respostas na segunda e terceira parte deste estudo. Ela diz
respeito ao modo como podemos compreender o funcionamento da escolha, seja como, de
um lado, uma escolha racional, portanto determinada por razes e, de outro, uma escolha
no necessitada entre alternativas opostas. Para a compreenso desta dificuldade e de sua
soluo, na verdade, no s preciso compreender claramente o que Aristteles entende
como escolha deliberada, e este o objeto da segunda parte deste estudo, mas tambm
como ele compreende a afirmao prtica na qual consiste uma escolha, e isto objeto
tambm da terceira parte.
de se observar, todavia, que a argumentao de Aristteles na tica Eudmia e na
tica Nicomaquia no coincide inteiramente. Assim, embora as duas ticas procedam
aparentemente pelas mesmas etapas, a saber, o voluntrio, a escolha deliberada e a
voluntariedade das virtudes e vcios, a tica Eudmia tem uma passagem inicial acerca do
princpio dos atos voluntrios cujo tema coincide em parte com o tema dos atos
voluntrios, mas em parte coincide tambm com a questo da voluntariedade das virtudes e
vcios. Por isso, mesmo que possamos dizer em linhas gerais que dificuldades
encontraremos em cada parte de nosso estudo, a deciso de seguir o texto aristotlico passo
a passo faz com que algumas das dificuldades sejam tratadas em mais de uma das partes da
nossa diviso e que muitas outras no mencionadas aqui tambm sejam objeto de
discusso. Se fizemos a escolha de seguir Aristteles to de perto, foi na crena que
conceitos filosficos so construdos na base de argumentos e argumentos so enunciados
de acordo com contextos. Assim, pensamos ns, seguir Aristteles significaria
compreender seus conceitos atravs de seus argumentos e seus argumentos nos seus
devidos contextos. Esse tipo de crena pode ser julgado ingnuo no que se refere quilo
que sabemos das edies das obras de Aristteles. Qual, afinal de contas, a base para
justificar que os contextos nos quais estes argumentos aparecem foram montados pelo
21
prprio Aristteles e no por um editor? Mesmo sem ter uma resposta para esta questo, o
fato que o texto que temos de Aristteles este e quaisquer hipteses sobre a sua
montagem ou desmontagem fica a cargo daquele que pensa poder mostrar que as ticas
no formam um todo ou que este todo no foi montado pelo prprio Aristteles.
Em razo desta escolha metodolgica, a saber, a de analisar os textos passo a passo,
tambm nos dispusemos tarefa de tomar o texto no original grego e fornecer dele uma
traduo. Esta traduo tem o objetivo limitado tarefa de anlise e no se pretende que
ela possa se manter como um bom texto sem o recurso explicao que a consegue.
Os textos em grego foram retirados do Thesaurus Linguae Graecae. As edies,
portanto, so as deste material bibliogrfico, a saber, a edio de Susemihl para a tica
Eudmia e a de Bywater para a tica Nicomaquia. A leitura do texto grego e a utilizao
de notas crticas, referentes s edies e s variedades de lies dos manuscritos, fazem
com que o pesquisador iniciante perca um pouco sua ingenuidade com respeito solidez
do texto. O que temos diante de ns uma edio, portanto, em muitas passagens o editor
faz uma preferncia por uma lio ao invs da outra. A tarefa do pesquisador iniciante,
mesmo se ele no tem a mesma capacidade que o editor, a de ao menos conferir as outras
lies referidas nas notas crticas das edies, principalmente quando o editor prefere uma
lio que no se encontra em nenhum manuscrito ou ainda quando ele prefere uma lio
no presente em nenhum manuscrito contra a unanimidade dos manuscritos, e reconhecer
que tipo de preferncia fez o editor. Eventualmente o pesquisador iniciante pode sentir-se
autorizado a discordar do editor ou a preferir a leitura de um outro editor. Algumas vezes
nos sentimos autorizados a fazer isso e, por esta razo, ns apresentamos, em seqncia a
todas as passagens traduzidas, o texto grego e fornecemos em notas de rodap todas as
informaes que consideramos importantes com respeito leitura dos manuscritos, em
especial, quando preferimos uma lio diferente daquela fornecida por nosso editor de
referncia7. Consultamos para esta tarefa, a edio de Bekker para ambas as ticas, com 7 Para evitar uma grande quantidade de notas de rodaps desnecessrias, s foram referidas as correes em que ns tnhamos algo importante a dizer sobre a preferncia dos editores ou em que fizemos uma preferncia entre edies ou leituras. Uma grande quantidade de preferncias feitas pelos editores e, muitas vezes, de alteraes de manuscrito, principalmente na tica Eudmia, no sero referidas. Cabe ainda fazer uma observao sobre os sinais de pontuao utilizados para indicar o acrscimo ou eliminao de um termo no texto grego ou na traduo em portugus. O uso corrente dos sinais de pontuao nestes casos o colchete para indicar elementos introduzidos no texto e os parnteses para os que devem ser eliminados. Todavia, os parnteses tambm tm a cumprir sua funo mais tradicional de marcar uma palavra, frase ou perodo que veicule informao adicional. Preferiu-se, por isso, adotar os colchetes para indicar as palavras introduzidas e as chaves para aquelas que foram eliminadas. O leitor encontrar, assim, com freqncia, palavras entre colchetes na traduo do grego. Quis-se com isto indicar que tais palavras no estavam explcitas no texto, mas podiam ser subentendidas dele. Os manuscritos da tica Eudmia sero referidos pelas siglas introduzidas pela edio de Walzer e Mingay.
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suas notas crticas, a edio de Walzer e Mingay, da tica Eudmia, com suas notas
crticas, e a edio de Susemihl e Appelt da tica Nicomaquia, com suas notas crticas, e
as notas crticas tambm de Bywater para a tica Nicomaquia.
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2 AO VOLUNTRIA
Nesta primeira etapa de nosso estudo, vamos concentrar a ateno na discusso
aristotlica sobre os atos voluntrios, levada a cabo tanto na tica Nicomaquia (EN)
quanto na tica Eudmia (EE). Sendo o tema em questo o voluntrio, gostaramos de,
em primeiro lugar, fazer algumas observaes sobre o uso desta traduo. Ao nosso ver,
voluntrio capta a gama variada dos sentidos de hekousion correntes no perodo em que
viveu Aristteles, sentidos estes que conhecemos na medida em que foram investigados a
partir das obras escritas naquele perodo e registrados nos dicionrios da lngua grega
clssica. Para hekn, cognato de hekousion que qualifica o agente, parece ser possvel
agrupar diversos sentidos em dois principais1: i) aquele que age por sua vontade, ou por
sua livre vontade, ou, ainda, aquele que age prontamente, no a contragosto, e ii) aquele
que age propositadamente ou com inteno. possvel diferenciar estes dois grupos visto
que, por exemplo, no caso de uma ao feita para evitar males maiores, a pessoa que a fez,
para escusar-se, pode alegar que no queria faz-lo, mas no pode alegar que no tinha a
inteno de faz-lo.
O uso destes termos, todavia, est longe de ser to claro a ponto de podermos fazer
distines muito precisas. Louis Gernet, em seu livro Recherche sur le dveloppement de
la pense juridique et morale en Grce (2001, p.374-5), observa que o termo akousios
passa a ter um papel fundamental no perodo em que a cidade grega se desenvolve
juridicamente e necessrio estabelecer leis para reger a aplicao de penas aos delitos2. O
termo akousios usado inicialmente para casos de homicdio (akousios phonos). O
homicdio involuntrio oposto ao homicdio ek pronoias (premeditado). Havia,
entretanto, um largo espectro de casos considerados no premeditados e, portanto,
involuntrios: desde os acidentais at aqueles cometidos num acesso de ira. um
desenvolvimento subseqente e particular filosofia aristotlica aquele de distinguir os
casos de atos hekousia daqueles de atos deliberados (prohaireta)3. Aristteles, portanto,
insere-se no desenvolvimento do pensamento moral e jurdico procurando tornar mais
distintos os usos destes termos do que at ento teriam logrado a s-lo. E bastante
1 Cf. Liddell & Scott.2 Isso significa que a prpria noo de delito passa a ser elaborada intelectualmente com o fim de regular os julgamentos nos tribunais e a conseqente penalizao do delito.3 O que permitia maior preciso distino entre atos voluntrios premeditados e no premeditados.
provvel que a investigao aristotlica tivesse como fim justamente delimitar claramente
o que se quer dizer quando se diz que uma ao foi feita hekn ou akn.
Se essa realmente a inteno de Aristteles, s podemos sab-lo pela evidncia
que nos apresentada nos livros dos tratados ticos que discutem o tema. A evidncia para
isso deve ser arregimentada, todavia, a partir de uma suposio bsica, a saber, que o
interesse de Aristteles nestes termos se deve ao seu interesse na questo da
responsabilizao moral. Isso assim porque todos os sentidos para akousion, akn,
hekousion e hekn que encontramos nos lxicos da lngua grega, que, por sua vez, esto
baseados nos usos destes termos em obras de diversos gneros (tragdia, pica, filosofia),
so sentidos que parecem estar conectados com a questo da responsabilizao e se
Aristteles procurou tornar estes termos mais claros foi com a finalidade de esclarecer a
prpria responsabilizao. Um tal raciocnio mais facilmente defensvel nos tratados
ticos, pois a responsabilizao moral seguramente um tema da tica. Todavia,
Aristteles no usa o termo voluntrio somente nos tratados ticos, ele tambm usa estes
termos no tratamento do movimento animal em geral no De Motu Animalium. E, ali, no
est em questo a responsabilizao, mas a caracterizao do movimento especificamente
animal, por oposio aos outros tipos de movimento. Nesse caso, parece que o uso destes
termos est conectado no somente a uma teoria da responsabilizao, mas tambm a uma
teoria geral da ao e do movimento animal. Assim sendo, no deveramos supor que os
termos em questo carreguem consigo j uma pretenso responsabilizao moral. Seria,
ento, prefervel atribuir a Aristteles uma investigao do movimento intencional, uma
investigao que, verdade, servir de base para uma teoria da responsabilizao, mas que
no se reduz a ela. David Charles (1984) defendeu que o movimento intencional seria um
movimento determinado teleologicamente pelo prprio agente do movimento e seria
realizado somente no caso em que realiz-lo correspondesse a atualizar as capacidades
internas do agente para aquele movimento4.
preciso levar em conta duas objees a esta razo para que hekousion denote o
intencional e no o voluntrio5. Em primeiro lugar, na anlise de David Charles do
movimento intencional h um papel determinante a ser cumprido pelo desejo do agente. O
4 CHARLES, 1984, cap.2. A explicao do movimento intencional muito mais complexa do que isso, mas, num nvel muito geral de explicao, o movimento intencional deve satisfazer estas duas condies: i) ser tomado pelo agente como o primeiro passo na consecuo de um certo objetivo e ii) estar entre suas capacidades de produo de efeitos. Isto, verdade, so condies satisfeitas por aes teleologicamente bsicas, ou seja, aes que envolvem o movimento do corpo.5 Para outra objeo relevante, a saber, a diferena de posies na EE e na EN sobre as aes feitas sob ameaa de mal maior, cf. HEINAMAN, 1986.
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que diferencia o movimento intencional de um processo qualquer em Aristteles, que, no
primeiro caso, o movimento no ocorre sem que o agente queira ou deseje que ele ocorra.
Ora, se o desejo tem papel fundamental na definio de um tal movimento papel que, na
definio resumida dada linhas acima, era cumprido pela expresso determinado pelo
prprio agente ento o movimento intencional s se explica porque um movimento
desejado, querido, ou seja, voluntrio. O problema de Charles com a traduo voluntrio
se reduz, segundo ele prprio, ao fato que nem todas as aes intencionais so queridas por
elas mesmas. Em alguns casos de uso do termo hekousion, as aes assim referidas no
expressam o que o agente queria fazer, mas o que foi obrigado a fazer, dadas as
circunstncias. Elas so intencionais, mas no so voluntrias. E, todavia, mesmo aqui, se
elas so intencionais, ento foram determinadas pelo desejo do agente. Parece, portanto,
que a pergunta mais geral que se pode fazer a respeito da ao humana ou do movimento
animal o que significa agir querendo agir?, ou seja, o que significa agir
voluntariamente. Se agir voluntariamente significa agir intencionalmente, ento agir
intencionalmente a resposta para a questo que queremos responder.
A segunda objeo traduo de hekousion por intencional e no por voluntrio
antes uma defesa da segunda traduo. Se voluntrio um termo que estabelece
pretenses responsabilizao moral, isto depende, todavia, do contexto em que usado.
Para contextos em que se est desenvolvendo uma teoria geral da ao ou movimento, esta
pretenso pode ser desconsiderada. Alm do mais, o mesmo parece ocorrer com o termo
intencional. Este ltimo termo tambm no parece ser desprovido de pretenses
responsabilizao, pois assim como posso usar como desculpa para algum ato o fato que
agi sem querer, posso tambm usar o fato que agi sem inteno. Portanto, ambos os
termos, de acordo com o contexto, podem ser usados de forma neutra ou de forma a supor
a imputabilidade (moral) do agente.
Ora, ligada a esta ltima razo, pareceria haver uma dificuldade na reduo da ao
voluntria ao intencional. Aristteles define o voluntrio atravs de duas condies:
aquilo que tem a origem interna ao agente e do qual ele conhece as circunstncias. Pela
hiptese que estivemos desenvolvendo essa seria a definio de agir querendo que
corresponderia a estabelecer que toda ao voluntria uma ao intencional. E, todavia,
Aristteles pretende que o agente embriagado, que age sem conhecer as circunstncias, age
hekn. Se ele no conhece as circunstncias, ento no pode ser intencional. Ora, de fato,
se ele no conhecesse as circunstncias como podemos dizer que ele queria fazer o que
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fez? Portanto, este agente tambm no pode ser voluntrio. Em ambas as compreenses de
hekn, h aqui um problema quanto a saber como este agente satisfaz as condies
requeridas pelo prprio Aristteles. Como observa, com razo ao nosso ver, Charles, no
a prpria ao feita que satisfaz estas condies, mas a ignorncia que origem desta ao
que satisfaz estas condies. Ainda assim, podemos ver que porque Aristteles est
interessado na responsabilizao do agente que tais casos se tornam dignos de
considerao e as respostas aos problemas que sugerem visam responder em que condies
responsabilizamos. Em nenhum momento dos tratados de tica a questo sobre as
condies do que hekousion deixa de conectar-se com as condies sob as quais podemos
responsabilizar algum por fazer o que fez. Sendo assim, a teoria do ato hekousion na tica
pode servir para esclarecer aspectos da teoria aristotlica mais geral da ao, ainda assim o
seu problema aqui o problema da responsabilizao e no simplesmente da ao. Por
outro lado, essas teorias devem ser compatveis, pois somente uma diferena de contexto
que faz com que se considere uma ao sob o aspecto das suas condies de
responsabilizao.
Assim, se a mesma teoria que est sendo posta aqui a servio da questo da
responsabilizao e se o mesmo termo usado aqui e em geral para tratar da ao humana
e animal (embora estes termos apaream muito mais nas ticas do que nos tratados mais
genricos, como no De Motu, na Physica ou no De Anima), ento a mesma teoria e os
mesmos termos servem a ambos os propsitos. E se os termos aqui devem ter pretenses
responsabilizao, ento nos demais contextos eles devem poder tambm ser preservados
como um tal tipo de termo. Ora, como vimos, estes termos eram usados, sobretudo, como
termos para responsabilizao e, como tal, o sentido de intencional era apenas um dos
vrios sentidos em que se pretendia responsabilizar. Portanto, o termo voluntrio parece
servir melhor a estes diversos propsitos e, dada a possibilidade que estes diversos sentidos
no captem um s tipo de ato, parece servir melhor tambm para colocar um problema
sobre as condies de responsabilizao, sem que a soluo aristotlica para o problema da
definio do ato voluntrio exclua o que modernamente se entende por ao intencional.
Existe ainda uma objeo traduo de hekousion por voluntrio, a saber, esta
pressuporia um conceito de vontade no desenvolvido por Aristteles. Na verdade,
discutvel que este autor no tivesse desenvolvido algo similar a um conceito de vontade,
ou seja, uma capacidade racional para determinar aes. Seria, todavia, precipitado partir
de um tal conceito. Alm do mais, como vimos, tambm os movimentos dos animais no
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racionais so considerados hekousia e a eles no faz sentido atribuir tal capacidade. Se,
como defendemos, o sentido do termo grego e de seus cognatos pode ser reduzido a um
sentido amplo de um ato feito porque o agente queria faz-lo, estes termos expressariam,
pelo menos, um uso bastante corriqueiro de atribuio de responsabilidade, como quando
dizemos que foi por querer ou foi sem querer6. Assim, podemos usar o termo
voluntrio para nos referirmos a atos gerados a partir de estados desiderativos, sem
prejulgar quais estados sejam estes.
Se compreendermos que o ponto de partida para o sentido de voluntrio e de
involuntrio so expresses ordinrias como por querer e sem querer, podemos
compreender a gama variada de atos que podem ser ditos voluntrios e involuntrios e
tambm as dificuldades que encontramos para responder se o agente fez ou no
voluntariamente algo. Dificuldades estas que Aristteles procurar resolver com sua
definio.
Quando Aristteles estabelece as condies do ato voluntrio ele est explicitando
o que significa dizer de uma ao que o agente quer ou deseja fazer que ela seja voluntria.
preciso explicitar este sentido, pois a compreenso mais ordinria pode levar a
dificuldades na atribuio de elogio e censura ou, mesmo, a atribuies contraditrias de
voluntariedade. Um exemplo do primeiro tipo de dificuldade so as aes mistas. No caso
das aes mistas, se definimos as aes voluntrias to somente como aquelas que
queremos ou desejamos, podemos hesitar em dizer que o agente queria fazer o que fez,
pois ele fez constrangido por certas circunstncias fora de seu controle. Um exemplo do
segundo tipo de dificuldade apresentado na tica Eudmia. Se definimos as aes
voluntrias simplesmente como aquilo que o agente quer, na medida em que o desejo do 6 A expresso fez sem querer foi-nos sugerida por Muoz (2002, p.19), embora ele no esteja ali defendendo o mesmo que ns, a saber, que podemos tomar estas expresses da lngua portuguesa como ponto de partida para uma defesa de voluntrio como uma traduo que reflita o uso ordinrio dos termos hekousion e akousion. Quando dizemos um uso ordinrio queremos nos referir a um uso no necessariamente refletido, diverso daquele que feito numa compreenso filosfica dos termos, mas que comum entre os falantes historicamente situados de uma certa lngua. O que permite, entretanto, pensar que uma expresso do nosso uso corrente como por querer e sem querer (supondo que estivssemos justificados a dizer que existe, de fato, um uso ordinrio para estes termos) tenha o mesmo valor que tem uma expresso de uso ordinrio entre os gregos do sculo IV a.C? Em resposta, s podemos dizer que, se no for nos concedida a possibilidade de procurar compreender nos nossos termos o pensamento dos gregos no sculo IV a.C, dificilmente poderemos encontrar algum ponto de partida para compreend-los. Dito isso, o que nos resta a fazer esperar que estas expresses prejulguem o menos possvel a questo do voluntrio em Aristteles. Na verdade, trabalhos como o de Gernet, op.cit., mostram que a compreenso do voluntrio no foi uma nica durante o perodo clssico e, portanto, que no podemos partir de uma compreenso fixa do voluntrio, se queremos saber como os gregos e, em especial, Aristteles o entendiam. Todavia, dizer que no podemos partir de alguma compreenso fixa no significa que no podemos partir de algum termo, como por querer e sem querer, que marquem ordinria e significativamente para ns a atribuio ou iseno de responsabilidade, tal como estamos supondo que hekousion e akousion marcavam para os gregos.
28
agente pode ter vrias fontes, os desejos de um agente podem estar em conflito. o caso
do continente e do incontinente. O incontinente, por exemplo, no faz o que quer (no
sentido preciso de boulsis em Aristteles), mas faz aquilo de que tem apetite. Nesse caso,
podemos hesitar em atribuir a ele voluntariedade, visto que, de acordo com um tipo de
desejo, ele faz o quer, mas de acordo com outro tipo de desejo, ele no faz o que quer.
Existe ainda um terceiro tipo de dificuldade ligado definio ordinria da ao voluntria.
Esta dificuldade est conectada com aquilo que o agente sabe estar fazendo e com aquilo
que ele ignora estar fazendo. Se o agente produziu a ao de matar algum, utilizando,
todavia, um instrumento (um remdio, por exemplo) que ele pensava iria curar a pessoa,
no podemos dizer que ele quisesse matar a pessoa e, todavia, parece que ele foi causa da
morte dela. Assim, a explicitao das condies do ato voluntrio no visa negar que o que
voluntrio aquilo que queremos, desejamos ou fazemos com inteno, mas,
simplesmente, resolver os problemas que essas definies podem ocasionar.
Assim, tanto a EE quanto a EN esto procura de uma definio mais precisa do
ato feito por querer ou, melhor dizendo, do ato voluntrio7. Essa definio tem um fim
em vista na execuo do qual a preciso desta definio pode ser avaliada: a
responsabilizao, ou, nas palavras de Aristteles, o elogio e censura. Parece ser uma
opinio geral e comumente aceita que os atos voluntrios so aqueles que so elogiados e
censurados, enquanto os atos involuntrios so desculpados. A definio mais precisa do
voluntrio, portanto, deve incluir os casos que queremos ver includos e excluir os que
queremos ver excludos, ou seja, aqueles para os quais concedemos elogios e censuras e
aquelas para os quais concedemos desculpa8. Aristteles vai fazer isso isolando duas
condies (ao menos na EN), satisfeitas as quais podemos dizer que um certo homem tinha
uma causalidade sobre sua ao de um tipo tal que relevante para fins de
responsabilizao. Esse tipo de causalidade, cuja origem interna ao agente, diferencia-se
de outros tipos na medida em que este tipo de causalidade relevante para fins de
responsabilizao enquanto as demais no so. Como diferenciamos uma tal origem de
7 Dizer que um ato voluntrio um ato que o agente fez por querer, pode ser um idioma corriqueiro, mas no aristotlico, justamente porque parece envolver o conceito de querer, ou seja, de boulsis, que, em Aristteles, somente um dos tipos de desejo. Por isso, a partir deste ponto no mais usaremos o idioma fez por querer para falar do ato voluntrio, visto que querer para Aristteles um dos tipos de desejo, mas o voluntrio deve aplicar-se a todos.8 bem verdade que discordncias podem ocorrer quanto necessidade de atribuio de elogios, censuras e desculpas, como no caso das aes mistas, por exemplo. Ora, uma definio mais precisa do voluntrio deve permitir resolver tambm estas discordncias. Assim, a definio do voluntrio deve permitir que os casos normais de atribuio de elogio, censura e desculpa sejam justificados e tambm que os casos de discordncia nestas atribuies sejam resolvidos.
29
outras? O critrio de Aristteles, desenvolvido com mais vagar na EE, que depende do
agente fazer ou no a ao. Para fins de responsabilizao, somente nos interessam os
resultados tais que dependiam do prprio homem9.
Por que Aristteles insiste que aquilo que depende de ns fazer ou no fazer?
preciso diferenciar movimentos naturais que ocorrem nos homens de outros movimentos
de que eles so causas. Os movimentos dos quais eles so causas, eles podem fazer ou no,
isto , eles tm a capacidade tanto para inici-los quanto para no inici-los, isto , est
neles prprios a capacidade para isto. Um movimento natural tal que o seu incio est em
alguma causa interna no homem ou animal, mas a presena ou ausncia desta causa que
determina se o movimento ocorre ou no. No homem, ao contrrio, existe um princpio
tanto para o movimento quanto para seu oposto. Que princpio este? o princpio dos
movimentos voluntrios. Neste sentido, tanto homens quanto animais movem-se a si
prprios10.
Uma forma de identificar tais atos, que no utilizada nas ticas, mas no De
Anima, observar que eles so produtos de uma apreenso cognitiva de um objeto a ser
obtido ou evitado atravs deste ato11. Se ns colocssemos em palavras que Aristteles no
usa exatamente, poderamos dizer que o princpio dos movimentos que o homem pode
tanto fazer quanto no fazer, isto , que depende, neste sentido, dele prprio, so os
movimentos que dependem de uma representao realizada pelo homem.
Aqui, possvel diferenciar trs sentidos em que depende dos prprios agentes
fazer ou no uma ao ou movimento, na medida em que a ao ou movimento depende de
uma representao. Num primeiro sentido, ao ou movimento depende dos agentes
porque eles tm a capacidade para representar dois movimentos opostos. Animais e
crianas agem voluntariamente porque podem representar tanto a ao de buscar algo 9 Ou que podiam depender. Quando temos dvida se uma ao foi voluntria ou involuntria, no sabemos se o ato de fato dependia do agente fazer ou no fazer, mas s porque ele tal que podia depender do homem fazer ou no fazer que podemos ficar em dvida se ele poderia ter sido voluntrio. Resultados que, em geral, no poderiam depender do homem fazer ou no fazer, no so resultados sobre os quais temos dvida se foi voluntrio ou involuntrio, visto que no poderia ter sido voluntrio de modo algum.10 Cf. Fsica VIII.4, 255a6-10, e as discusses sobre a noo mover-se a si mesmo em Aristteles por FURLEY, FREELAND, GILL e MEYER reunidas em um mesmo volume organizado por GILL, 2004.11 Por que Aristteles no utiliza precisamente este tipo de explicao do ato nas ticas? Aqui s podemos remeter investigao de outros pesquisadores. Irwin, em seu Aristotles First Principles (1988), defende que o De Anima est interessado em mostrar como podemos explicar teleologicamente o comportamento de certos seres atribuindo-lhes um certo tipo de alma. A melhor explicao disponvel para alguns dos comportamentos dos seres que possuem uma alma sensitiva e dos que possuem uma alma racional fazer apelo a esta mesma alma como uma capacidade para apreenso cognitiva, na forma da sensao ou da razo. A tica tem uma perspectiva diferente, embora no incompatvel. Aqui no nos preocupamos com a melhor forma de explicar o comportamento de alguns destes seres, mas de responsabiliz-los por seu comportamento.
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quanto a de fugir de algo, mas isso no significa que numa mesma situao eles possam ter
ambas as representaes. Ao contrrio, parece que a capacidade puramente perceptiva e a
representao do objeto a ser obtido ou evitado (phantasia) que derivada desta e que
permite a representao do movimento no capaz de representar ambos os movimentos
com respeito a uma mesma situao. Isto se deve ao fato da percepo e da representao
perceptiva serem passivas12 com respeito aos objetos que aparecem aos animais e s
crianas. Se o objeto apreendido pela percepo como bom ou, mais exatamente, como
prazeroso, a aparncia (phantasia) que gera o desejo de buscar ou fugir uma aparncia de
busca, se o objeto apreendido pela percepo como doloroso, ento a aparncia que gera
o desejo de buscar ou fugir aparncia de fuga. Eles so capazes de representar busca ou
fuga, mas no com respeito ao mesmo objeto e na mesma situao13.
Num segundo sentido em que uma ao depende do agente fazer ou no na medida
em que depende de sua representao, esta representao uma representao racional e,
por isso, o objeto apreendido como bom ou mau e a imaginao (phantasia) que conduz
ao que o busca ou evita uma imaginao deliberativa, e, como tal, apresenta os
prprios objetos como passveis ou de busca ou de fuga. Neste caso, a representao do
movimento aberta aos contrrios, pois o agente apreende o movimento como um que
pode ser feito ou no. Assim, depende dele fazer ou no porque ele pode se representar
dois movimentos opostos com respeito ao mesmo objeto e na mesma situao. No De
Anima, quando Aristteles est se referindo ao movimento dos seres racionais, ele diz que
o bem apreendido um bem prtico, e este aquele que pode ser de outro modo. A
aparncia do bem, portanto, a aparncia de algo que pode ser de outro modo, isto , algo
que pode tanto ser feito quanto no ser feito. Isto deve significar que os seres racionais
apreendem o bem prtico como algo que pode ser de outro modo, ou seja, como algo que
podem tanto buscar quanto no buscar (ou algo que podem tanto evitar quanto no evitar).
O terceiro sentido similar ao segundo, mas acrescenta que se o agente pode
representar-se dois movimentos opostos com respeito ao mesmo objeto e na mesma
situao, ele pode escolher indiferentemente qualquer um destes movimentos. A sua
aceitao ou negao de um dos movimentos opostos depende de uma escolha sua. Existe
12 Cf. a este respeito ZINGANO, 1998.13 Para uma explicao mais detalhada do funcionamento da phantasia traduzido aqui indiferentemente como representao, aparncia e, a seguir, imaginao ver IRWIN, ibid., p.318-320. A noo de phantasia reaparecer nas ticas, seja na forma do phainomenon agathon o bem aparente (EE II.10, 1227a22; EN III.6, 1113a15ss.; 1114a31), seja na forma mesmo de phantasia, para falar do modo como o fim nos aparece (EN III.7 1114a32).
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um terceiro elemento da teoria da ao de Aristteles no De Anima que pode servir para
justificar esta atribuio de escolha aos seres racionais. Segundo Aristteles, o desejo que
d incio ao uma afirmao ou negao. Para que este terceiro sentido seja atribudo a
Aristteles, preciso dar uma explicao de afirmao e negao tal que estas no sejam,
em uma dada circunstncia, determinadas a serem afirmao ou determinadas a serem
negao.
O primeiro tipo de explicao parece ser adequado tanto aos movimentos
voluntrios de animais e crianas quanto aos dos homens, mas, nesse caso, a expresso
depende dele fazer ou no no deve significar algo to forte quanto possvel para ele
agir ou abster-se de agir. Tanto os animais quanto os homens movem-se a si prprios,
neste sentido, ou seja, o movimento depende de uma representao.
Seria ainda possvel e mesmo necessrio diferenciar o movimento voluntrio dos
homens do movimento dos animais. Na medida em que queremos responsabilizar os
primeiros pela virtude ou vcio com que agem, mas parece que no o podemos fazer quanto
aos ltimos, ento, ainda que todo movimento voluntrio dependa do prprio animal,
somente o movimento voluntrio dos homens depende deles prprios no que diz respeito
virtude ou vcio com que feito. Assim, somente os dois ltimos sentidos poderiam
fornecer algo necessrio para a responsabilizao, pois o agir depende da sua representao
e esta representao passvel de apreenso de opostos. Isto necessrio para que o agente
se represente uma ao como virtuosa e a outra como viciosa. Caso contrrio, no
poderamos nem comear a falar em responsabilizao pelas virtudes e vcios. Se o agente
capaz de ao menos se representar duas possibilidades de ao, ele pode representar-se
uma como a boa e a outra como a m. Esse requisito para a responsabilizao parece ser
suprido pelo segundo sentido de depende de ns fazer ou no fazer. O que esse sentido
ainda no d a satisfao de uma outra requisio da responsabilidade moral: que
dependa dos prprios agentes o agir de acordo com aquela representao ou abster-se de
agir de acordo com ela. Se este for o significado da expresso depende deles fazer ou
no, ento os homens podem representar ambos os movimentos ao mesmo tempo e, em
uma precisa situao, eles tm o poder tanto para afirmar um deles quanto para neg-lo.
Podemos dizer que todos estes sentidos so relevantes para algum tipo de
responsabilizao. O que temos que responder com qual destes sentidos Aristteles est
prioritariamente trabalhando e, portanto, qual a responsabilizao que ele tem em mente.
Comecemos pelo tratado dos atos voluntrios na tica Eudmia.
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2.1 tica Eudmia II.6-9
A doutrina dos atos voluntrios da tica Eudmia (EE) exposta de um modo
diferente daquele da tica Nicomaquia (EN). Isso gera, sem dvida, a questo quanto a
haver alguma diferena nas teses elas mesmas. Mesmo que no exista, todavia, sendo a
argumentao diferente, resta perguntar em que consiste esta diferena e qual a razo dela.
A observao esquemtica da argumentao deve ser um primeiro passo para lanar luz s
demais questes. Vejamos em linhas gerais, ento, como procede o argumento sobre os
atos voluntrios na EE.
Aristteles concluir ao fim do captulo 6, captulo que, nas suas palavras, inicia
uma nova investigao, que esta consistir em descobrir de quais tipos de aes o prprio
homem causa e princpio (1223a15-16). A argumentao que conduz a esta concluso
uma que i) introduz a noo de causa e princpio, ii) explica o modo prprio de ser causa e
princpio que o homem, a saber, o homem causa e princpio somente daquilo do qual
senhor de fazer ou no fazer, iii) defende que somente pelas coisas de que propriamente
causa e princpio o homem pode ser elogiado ou censurado e visto que as virtudes e vcios
e as aes resultantes destes estados so censurveis e elogiveis, o homem deve ser causa
e princpio destes. Desta linha de raciocnio resultaria que deve ser investigado, ento, de
quais tipos de aes o homem causa e princpio de tal forma que por elas possa ser
justificadamente elogiado e censurado. Ao final do captulo 6 ainda sustentado ser
evidente que o homem causa e princpio das aes voluntrias e das escolhidas
deliberadamente, de modo que a investigao tomar a forma de uma busca pela definio
das aes voluntrias, visto que so estas aquelas das quais o homem causa e princpio.
O argumento, a seguir, prosseguir investigando a definio de ao voluntria a
partir de uma hiptese para a qual Aristteles no apresenta argumento algum, a saber, que
a ao voluntria deve ser identificada ao de acordo com uma entre trs coisas: ou bem
de acordo com o desejo, ou bem de acordo com a escolha deliberada, ou bem de acordo
com o pensamento. Embora Aristteles no apresente a razo desta hiptese ele usa a sua
frmula comum para introduzir noes geralmente aceitas ou defendidas por alguns
(doxeien). E, com efeito, os argumentos que discutem a primeira hiptese, isto , que o ato
voluntrio seja de acordo com um dos tipos de desejo, so argumentos aparentemente
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baseados em opinies recebidas. Alm disso, os argumentos exploram razes para a
identificao do voluntrio ao de acordo com o desejo e contradies que estas teses
envolvem. O mesmo vale para a identificao do voluntrio ao escolhido deliberadamente.
Aristteles conclui que, visto que nenhuma das definies anteriores d conta do que
pretende explicar, o voluntrio somente pode ser identificado opo restante: aquilo que
de acordo com o pensamento.
Antes de prosseguir na investigao desta alternativa de definio, Aristteles se
prope a responder a algumas das dificuldades que surgiram at o momento e, para isso,
vai investigar a ao forada. A ao forada, cuja negao comparecer na definio de
ato voluntrio, discutida, em primeiro lugar, para defender que atos continentes e
incontinentes aqueles que de fato colocavam problema para a definio dos atos
voluntrios em termos de desejos so voluntrios. Assim, a discusso desta que ser uma
caracterstica essencial dos atos voluntrios, a saber, que no sejam forados, tambm
feita com base na discusso de opinies aceitas sobre a continncia e a incontinncia. A
seguir, a ao forada discu
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