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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
UM HORIZONTE DA INTERPRETAÇÃO: O CONCERTISTA NO UNIVERSO DIGITAL
FELIPE DE OLIVEIRA AMORIM
Salvador 2010
II
FELIPE DE OLIVEIRA AMORIM
UM HORIZONTE DA INTERPRETAÇÃO: O CONCERTISTA NO UNIVERSO DIGITAL
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Música. Área de concentração: Execução Musical Orientador: Prof. Dr. Lucas Robatto
Salvador 2010
De Oliveira Amorim, Felipe A524u UM HORIZONTE DA INTERPRETAÇÃO: o concertista no
universo digital / Felipe de Oliveira Amorim – 2010. X, 153 p. :il. UFBA Orientador: Prof. Dr. Lucas Robatto Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de Música. 2010. 1. Flauta Transversal. 2. Interpretação Musical. 3. Eletroacústica. I. Robatto, Lucas. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Música. III. Título.
CDD 786.74 CDU 631.317.35
TERMO DE APROVAÇÃO
FELIPE DE OLIVEIRA AMORIM
UM HORIZONTE DA INTERPRETAÇÃO: O CONCERTISTA NO UNIVERSO DIGITAL
Tese aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Música, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte
banca examinadora:
IV
para minha mãe Flávia
e meus amores Tacy e Iasmim
que além de ajudarem a encontrar o meu caminho a muito o percorrem comigo.
V
"A verdade é transparente e não a notamos, mas a mentira é opaca e não deixa passar nem a luz nem o olhar. Existe um terceiro estado, onde as duas estão misturadas e é o mais frequente. Com um olho olhamos através da verdade, e este olhar se perde para sempre no infinito; com o outro não vemos nem mesmo um dedo através da mentira, e este olhar não pode ir mais longe, permanece sobre a terra e completamente nosso; assim, de soslaio, vamos abrindo um caminho pela vida. Por causa disto, a verdade não pode ser compreendida de modo direto, como a mentira; apenas, pela comparação entre os espaços em branco e as letras de nosso Livro. Pois os espaços em branco do Dicionário Kazar correspondem às janelas transparentes da verdade e do nome do divino (do Adão Kadmon), e as letras negras entre os espaços em branco são os lugares onde nosso olhar tropeça na superfície... As letras podem igualmente ser comparadas às diversas peças do teu vestuário. No inverno, tu te cobres de lã e peles, colocas um cachecol, uma touca forrada e agasalhas-te bem; no verão, tu te vestes de linho, abres as roupas e rejeitas tudo o que é pesado; mas entre o verão e o inverno acrescentas ou retiras partes do teu vestuário - assim também se dá com a leitura. Nas diferentes estações da tua vida, o conteúdo dos teus livros parecer-te-á diferente, pois combinarás tuas roupas de diferentes maneiras. No momento, o Dicionário Kazar é apenas um amontoado de letras, de nomes e pseudônimos do Adão Kadmon, em desordem. Mas com o tempo tu te vestirás e obterás mais coisas... O sonho é uma sexta-feira para o que, na realidade, é chamado de sábado. Conduz a Ele e torna-se um com esse dia, e é preciso proceder do mesmo modo com os outros dias (quinta para domingo, segunda para quarta etc). Aquele que souber ler os sonhos em conjunto possuirá e terá uma parte do corpo (de Adão Kadmon)..." kazares, livro amarelo, Dicionário Kazar.
Mirolad Pavitch
VI
AGRADECIMENTOS
Ao professor Lucas Robatto, pelo conhecimento, atenção e confiança. Aos professores, colegas e amigos que me acolheram em Salvador.
VII
RESUMO Este trabalho estuda aspectos da relação entre o concertista e a música eletroacústica sob o ponto de vista do intérprete, tendo o repertório para flauta transversal como base de análise. São apresentadas obras em que a eletroacústica está fixada em um suporte de reprodução de áudio, obras em que o intérprete controla a eletroacústica através de alguma interface e obras em que a eletroacústica é gerada pela máquina no momento da performance. O suporte teórico fornecido por Adorno confronta o repertório com uma teoria de interpretação desenvolvida antes da eletroacústica, que tem como alicerce três pontos: a historicidade intrínseca das obras, a mimese e o aspecto idiomático. O processo de observação deste repertório, através do estudo e performance das obras, levantou uma série de questões e necessidades específicas para a construção de uma interpretação, que quando vistas sob a ótica de Adorno, nos apontam para a compreensão de uma mudança na prática interpretativa, um novo capítulo nesta história, que é a busca pelo equilíbrio e fusão das vozes do intérprete e da eletroacústica.
VIII
ABSTRACT This study deals with aspects of the relationship between electroacoustic music and its interpreter, taking the transverse flute repertoire as a basis for analysis. The study presents three kinds of specific repertoire: (1) music in which the electroacoustic resources are supported by audio reproduction; (2) eletroacoustic music controlled by the interpreter through the use of some kind of interface; (3) electroacoustic music generated by the machine during performance. The theoretical support of the study, based on Adorno, offers an interpretation of the electroacoustic phenomenon considering three points: the intrinsic historicity of the pieces of music; its mimesis and its idiomatic aspect. The process of observation generated by the practice and performance of the pieces of music in connection with the theoretical support offered by Adorno lead to an important consideration: the need for the construction of an interpretation of electoacoustic music that seeks balance, as well as the fusion between the voice of the interpreter and the voice of the electroacoustic resources.
IX
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS.................................................................................................VI
RESUMO...................................................................................................................VII
ABSTRACT..............................................................................................................VIII
1. INTRODUÇÃO 1
2. A INTERPRETAÇÃO 7
2.1. O percurso.......................................................................................................9
2.2. O intérprete....................................................................................................13
2.3. Uma leitura de Adorno...................................................................................22
2.3.1. A historicidade......................................................................................22
2.3.2. A obra musical e o objeto notado.........................................................28
2.3.3. O sentido..............................................................................................37
2.3.4. O sentido em Adorno............................................................................44
2.3.5. O idiomático..........................................................................................47
3. A INTERPRETAÇÃO FIXADA 54
3.1. A gravação....................................................................................................56
3.2. A performance construída.............................................................................58
3.3. Flauta e Fita Magnética.................................................................................64
4. A INTERPRETAÇÃO FLEXIBILIZADA 73
4.1. A Interface.....................................................................................................75
4.2. O Pedal..........................................................................................................77
4.3. A Hiper-Flauta...............................................................................................81
4.4. Score following..............................................................................................85
X
5. A INTERPRETAÇÃO VIRTUAL 95
5.1. Interação........................................................................................................95
5.2. As máquinas..................................................................................................98
5.3. O virtual.......................................................................................................101
5.4. O instrumento virtual...................................................................................102
5.5. O intérprete e o computador........................................................................106
5.6. Obra em Movimento....................................................................................118
6. O GESTO 121
6.1. Gestos individuais.......................................................................................124
6.2. Gesto orquestral..........................................................................................126
6.3. Gesto vetorial..............................................................................................129
6.4. A integração das vozes...............................................................................132
7. CONCLUSÃO 139
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 146
9. ANEXOS 151
9.1. Lista de gravações das obras citadas.........................................................151
9.2. Lista de partituras das obras citadas...........................................................151
9.3. CD com gravações das obras citadas.........................................................153
9.4. CD com arquivos das partituras em PDF das obras citadas………………..153
1. INTRODUÇÃO
Na metade do século XX surge a música eletroacústica, fruto das grandes
transformações tecnológicas ocorridas no século passado. Esta nova forma de fazer
música ampliou os horizontes do timbre - qualquer som passa a poder ser
controlado e transformado musicalmente - do ritmo e das alturas, que praticamente
não têm limites de exequibilidade; das dinâmicas, que podem ir do inaudível ao
ensurdecedor, entre outros fatores. A eletroacústica foi vista, a princípio, como uma
grande solução para o serialismo integral, que era de grande dificuldade de
execução pelo intérprete em virtude da criação de séries para todos os parâmetros
musicais.
Entretanto, a música eletroacústica deparou-se com o problema da falta de
expressividade decorrente da fixidez da fita magnética, que era o meio de difusão
desta nova música, como relata Stockhausen (STOCKHAUSEN apud MOTTA, 1997,
p. 7). O processo de composição consistia em gravar ou produzir sons em
laboratório, editá-los em uma fita magnética, para posteriormente apresentar o
resultado ao público. A difusão da música através de um gravador de rolo, máquina
que transforma os impulsos eletromagnéticos da fita em som, é sempre a mesma,
sem as variações performáticas do intérprete, o que imediatamente despertou os
compositores para a busca de soluções que incrementassem a expressividade
musical na eletroacústica.
A solução encontrada na época foi criar obras eletroacústicas que
envolvessem seus sons e formas de difusão com o intérprete instrumentista
tradicional. Esta junção deu origem à música eletroacústica mista - obras compostas
2
para um instrumento tradicional e sons eletroacústicos - formação que é o objeto de
estudo deste trabalho.
Este primeiro passo foi significativo, sendo esta, talvez, a forma de
composição mais utilizada até hoje. No entanto, os esforços continuaram no
desenvolvimento de novas práticas, paralelamente ao desenvolvimento tecnológico
da humanidade. O resultado foi o aparecimento de várias formas de interação entre
o intérprete e os meios eletroacústicos: formas simples de controle da máquina
através de pedais; ou mais complexas, como programas capazes de ouvir e
acompanhar o intérprete em relação à partitura e até mesmo de executar ações em
relação ao ponto em que se encontra o intérprete na partitura.
A explosão tecnológica também ampliou o horizonte dos instrumentos. Foram
inventados inúmeros novos instrumentos eletrônicos, capazes de interagir com o
intérprete das mais variadas formas que se possa imaginar. Dos antigos Theremim e
Ondas Martenot, passando por luvas capazes de produzir sons de acordo com o
movimento das mãos até o uso de sensores, presos no corpo ou não, podemos
construir instrumentos controladores do som praticamente a partir de qualquer objeto
e utilizar qualquer parte do corpo para controlá-los.
No entanto, a intenção dos primeiros compositores de obras eletroacústicas
mistas era acrescentar toda uma tradição interpretativa acumulada ao longo de
séculos da história àquela que era então uma nova prática musical. Por isso, um
delimitador deste trabalho é a utilização da flauta transversal europeia como
representante da tradição. Portanto, são sempre abordadas obras mistas que
envolvam a flauta, sendo o choque entre a tradição interpretativa e as novas
necessidades interpretativas o objeto de investigação específico.
3
A tradição e o novo levantam questões como: O que ocorre entre o intérprete
flautista e os meios eletroacústicos? Quais as necessidades específicas para se
montar uma interpretação e realizar uma performance? Como se relacionar com os
meios eletroacústicos?
Como forma de imersão nestas questões, realizei pequenos estudos de caso
que abrangem todo o período da história da música eletroacústica mista para flauta,
da década de 1960 até os dias de hoje. Estas obras apresentam diversas técnicas
de composição quanto à forma de relação com a eletroacústica, constituindo uma
amostra rica das possibilidades mais comuns de interação praticadas.
A escolha do repertório não obedeceu um critério científico mais específico, a
dificuldade de se conseguir o material eletroacústico é em grande parte dos casos
um obstáculo. No entanto o repertório estudado abrange a primeira obra para flauta
e fita magnética composta na história e obras para tape compostas mais
recentemente, com processamento de áudio, com acompanhamento da partitura
pelo computador e sua participação na criação de parte do material composicional
em tempo real. Outro fator importante é a proximidade com alguns compositores1.
O estudo das obras envolveu não somente o processo de estudo tradicional
de uma obra musical - leitura, construção da interpretação e apresentação em
concerto - como também a participação no processo composicional, sendo que duas
das obras foram compostas por mim e tive a oportunidade de desenvolver e estrear
junto com os compositores João Pedro Oliveira e Rogério Vasconcelos suas
respectivas obras. O resultado da experiência está exposto em cinco capítulos que
1 Uma lista abrangente do repertório para flauta e eletroacústica pode ser encontrada em http://www.subliminal.org/flute/
4
apresentam alguns aspectos envolvidos na interpretação de obras para flauta e
meios eletroacústicos.
O capítulo “A Interpretação” apresenta e delimita o conceito de intérprete e
interpretação, segundo a teoria de Adorno (2006). O ponto de partida são os
conceitos de historicidade intrínseca e sentido da obra, que nos permitem considerar
que ela modifica-se no transcorrer da história em virtude das ações de intérpretes,
ouvintes e compositores. Estes conceitos nos levam às lacunas da partitura, que
devem ser completadas pelo intérprete, cuja função é resgatar suas características
miméticas - capacidade da música de imitar o movimento - e realizar a conversão do
elemento simbólico, a escrita musical, em som. Ao mimético e ao simbólico é
adicionado o idiomático, a maneira de tocar de uma época ou intérprete, que juntos
completam a ideia de interpretação de Adorno.
“A Interpretação Fixada” traz a discussão sobre a primeira forma de interação
entre o intérprete e a eletroacústica, obras para flauta e fita magnética ou tape. Um
pequeno histórico do processo de gravação do início do século XX é apresentado,
assim como seu resultado, que é a música eletroacústica - a obra totalmente fixada,
segundo Freire (2004). Como solução à fixidez é levantada a questão da
necessidade do intérprete tradicional junto com a eletroacústica, a partir de
Stockhausen (1997) e Bassingthwaighte (2002). Por fim, são apresentadas duas
obras, Synchronisms nº1 (1963), de Mário Davidovsky, e a Escada Estreita, de João
Pedro Oliveira, e são abordadas questões relativas à interpretação desse tipo de
obra.
“A Interpetação Flexibilizada” trata da flexibilização da parte eletroacústica
das obras mistas. São apresentadas interfaces, formas de conexão entre o
5
intérprete e a máquina que permitem interferir no processo de geração do material
eletroacústico. Dentre as inúmeras interfaces existentes, foram escolhidas o pedal, a
hiper-flauta e o score following, por sua praticidade e acessibilidade. Este capítulo
mostra como as interfaces atuam na obra musical e quais novas necessidades criam
para o intérprete.
As interfaces na música eletroacústica podem ser comparadas com os órgãos
sensoriais humanos. O microfone funciona como o ouvido e as caixas de som como
o sistema vocal, por isso são chamadas de máquina sensórias por Santaella (1997).
Essas máquinas, associadas ao computador, a máquina cérebro, ampliaram
infinitamente os horizontes de possibilidades do som e da música. Esta associação
transforma a flauta, com suas possibilidades sonoras, em um instrumento virtual,
capaz de produzir e controlar qualquer som. A virtualidade, segundo Lévy (2000), é
uma nova qualidade musical criada pela máquina cérebro, capaz não apenas de
acompanhar a posição do intérprete na partitura, como de criar vozes paralelas ao
intérprete em tempo real, no momento da performance. “A Interpretação Virtual”
apresenta este contexto através da obra Três janelas, de minha autoria, resgatando
em seu final um conceito de Eco (1986): a obra em movimento.
Por fim, no “Gesto”, recuperamos a ideia de mímese de Adorno (2006), por
meio do conceito de gesto musical. Sendo o equilíbrio o amálgama entre sons
eletroacústicos e acústicos, uma das questões fundamentais para compositores e
intérpretes, o conceito de gesto é apresentado como um objeto que ajuda na
compreensão da obra mista como composta de linhas sonoras, e não por vozes
determinadas segundo os instrumentos. Defende-se que esta forma de pensamento
traz para o intérprete uma compreensão um pouco diferente no relacionamento
6
camerístico entre os instrumentos, acústicos ou não, que privilegia mais a dualidade
separação/amálgama que a dualidade voz principal/secundária, defendida por
Wagner (1989) e Adorno (2006) em relação à música clássico-romântica.
Este trabalho foi escrito com a intenção de atingir aos flautistas,
principalmente os estudantes de graduação. Este pequeno panorama da música
eletroacústica mista é apresentado com o objetivo de levantar questões sobre um
repertório relativamente novo e suas implicações para o concertista. Um repertório
que permanece distante dos desejos dos jovens intérpretes e dos cursos de flauta
transversal no Brasil, que pode ser tachado como difícil em razão das necessidades
tecnológicas. Mas talvez sejam justamente estas necessidades que possam
acrescentar novas qualidades ao intérprete, na compreensão da música de hoje e
na música de outros tempos.
2. A INTERPRETAÇÃO
A interpretação é uma atividade intrínseca do homem. Nós a
realizamos continuamente ao longo de nossas vidas. Ainda na barriga de
nossas mães, somos provocados por uma série de sensações externas, os
primeiros sons, gostos, a luminosidade, as sensações de movimento, de tato,
por exemplo. Os primeiros sinais externos que recebemos são os sonoros,
compostos pelas batidas regulares do tímpano-coração, pelos sons
borbulhantes do sistema digestivo ou pelos seus quasi-trombones. Aos
poucos, outros sons vão sendo associados e formam nossa primeira
paisagem sonora.
Paralelamente, outros sentidos vão se formando, incorporando novas
sensações, que trazem junto nossas primeiras interpretações. Em sua rotina
no útero, os bebês já se movimentam, esticam e encolhem as pernas,
demonstrando estar em plena atividade. Um impacto qualquer que sofra o
útero, como uma queda da mãe, é interpretado pelo bebê como uma
ameaça à vida, o que o leva a cessar os movimentos, como forma de
prevenir um nascimento precoce. Por sua vez, a mãe, acostumada com a
rotina dos movimentos em sua barriga, interpreta esta parada como algo ruim
e se pergunta se o bebê está vivo.
O nascimento nos desvela um mundo novo, recheado de novas
sensações, novos sons, cores, formas, criaturas, objetos naturais e
artificiais... Partindo das interpretações mais básicas, passamos a formar o
conhecimento, a elaborar relações, até criar sistemas abstratos, como a
escrita e a matemática. Esses sistemas estão em expansão pelo mundo, com
8
seus suportes próprios, multiplicam-se à medida que são inventados novos
meios de produção, reprodução, divulgação e armazenamento. Sua rapidez
de crescimento e complexidade exigem que nossa interação não se dê mais
apenas de forma intuitiva. Cada vez mais, sua interpretação necessita de um
nível crítico e reflexivo.
Peirce diz que "percebemos o que estamos preparados para
interpretar" (PEIRCE, 2005, p. 227), ou seja, que a capacidade de alguém
compreender algo depende de sua familiaridade com este objeto. Já
Gombrich defende que "se confiamos em nossos olhos, e não em nossas
idéias pré-concebidas sobre como as coisas devem parecer, de acordo com
as regras acadêmicas, faremos as mais excitantes descobertas"
(GOMBRICH, 1993, p. 406). Peirce remete a interpretação a um universo
particular. Gombrich, por sua vez, estende as possibilidades ao infinito,
conferindo um caráter mais criativo e ilimitado à interpretação. Porém, ambos
os autores concordam que a percepção é essencial para a interpretação.
A percepção dos fenômenos à nossa volta é o ponto de partida da
interpretação. Tudo o que possa vir à nossa mente, seja sonhado, imaginado,
concebido ou vislumbrado, possui três elementos formais universais: o
primeiro está relacionado aos aspectos qualitativos do fenômeno; o segundo,
às relações de ação e reação, de causa e efeito, à experiência; e o terceiro
elemento refere-se à mente, ao pensamento, a tudo que diz respeito à
representatividade, à mediação entre duas coisas (Netto, 1983, p. 61)
9
2.1 O percurso
Segundo a semiótica de Peirce e roteiro de análise desenvolvido por
Vieira (1997), nosso processo de perceber um fenômeno, de perceber a
música, pode passar por três etapas.
A primeira é a contemplação, ou seja, devemos apenas estar abertos
ao que nos chega através de nossos sentidos. Devemos, na medida do
possível, nos relacionar com o fenômeno sem qualquer tipo de juízo,
conclusão ou qualquer outra reação. Contemplar significa desarmar os juízos
da percepção, deixando apenas que as coisas entrem. Aus den sieben
Tagen (Dos Sete Dias) de Stockhausen, composto em 1968, é um bom
exemplo de busca por um estado contemplativo pleno. O compositor pede ao
intérprete:
"Vive completamente só durante quatro dias guardando jejum em silêncio absoluto,
com a possível imobilidade. Dorme apenas o necessário, Pensa o menos possível.
Depois de quatro dias, bem tarde da noite, Sem prévia conversação Toca sons
simples. SEM PENSAR no que está tocando Fecha os olhos, Simplesmente ouve."
Goldstaub (Pó de Ouro) - Aus den sieben Tagen (GRIFFITHS, 1998, p. 168)
O desejo do compositor é o que poderíamos considerar uma
interpretação contemplativa, ou seja, a mais espontânea possível. O nível
contemplativo é o que poderíamos desejar como ideal para a escuta musical,
pois busca a apreensão da música apenas por suas qualidades, sem se
preocupar com outros significados que ela possa ter.
10
Da contemplação passamos para a observação, que é a percepção
das particularidades dos fenômenos, de sua existência, de suas
características próprias que o tornam único e o separam de um contexto.
Neste estágio, nossa atenção está voltada para o fenômeno em sua
realidade física, corporificado, observando suas características existenciais.
Podemos falar a respeito da Sonata ao Luar de Beethoven. Se
ouvimos a interpretação musical de um pianista, sua interpretação da obra é
a corporificação, faz com que a obra exista no mundo físico e seja acessível
à nossa percepção. A partir de então, podemos observar o fraseado, o toque,
as relações dinâmicas, os andamentos, a articulação, a forma, como as
estruturas temáticas se desenvolvem, como caminha a tensão musical.
Porém, a forma como estes elementos estão dispostos e se
relacionam é segundo a interpretação de Nelson Freire, por exemplo, se
escutamos a versão de Wilherm Kempf, observaremos outras formas de
equilíbrio entre os elementos musicais, estaremos de fato diante de outro
objeto sonoro. Como nesta etapa observamos o objeto físico, seria mais
correto dizer que não escutamos a sonata de Beethoven, mas a interpretação
de Nelson Freire da Sonata ao Luar.
A terceira etapa de percepção do fenômeno é a generalização, ou
seja, ser capaz de retirar o geral do particular, extrair de um fenômeno
particular o que ele tem em comum com todos o outros e assim identificar
uma classe geral a que ele pertença. A generalização é a capacidade que
temos de associar coisas em classes, conjuntos, grupos nos quais seus
componentes têm características comuns.
11
Ao compararmos as interpretações de Freire e Kempf da Sonata ao
Luar, somos capazes de identificá-las como duas versões de uma mesma
obra. Ao identificarmos, por meio da escuta, que as interpretações possuem
a mesma forma, os mesmos temas, tonalidades, notas, ritmos, perfil
dinâmico, entre outros aspectos, dizemos tratar-se da mesma obra. A
generalização não está interessada nas diferenças dos objetos, nas suas
particularidades, mas nas suas semelhanças, para obter um objeto genérico
que inclui, neste exemplo, todas as interpretações da Sonata ao Luar de
Beethoven. Da mesma forma, poderíamos falar de todas as obras do
período clássico romântico, ou de todas as músicas de concerto, e assim por
diante.
Obviamente, a percepção da música é uma condição básica para que
possamos interpretá-la, assim como qualquer outro fenômeno. São três os
níveis em que podemos interpretar algo. O primeiro é o imediato, trata-se do
potencial da música de produzir certos efeitos e não outros. São as
possibilidades interpretativas latentes, prováveis, que estão à espera de uma
mente que as realize. O potencial da música é provocar emoções,
sensações. Ela pode até produzir outras coisas, porém não se espera ver
cores ou se descobrir a distância entre a terra e o sol, pelo menos não
atualmente, na audição de um concerto.
O segundo nível é o fechado. Este é o caso em que o que vemos e
ouvimos estão conectados diretamente, portanto o potencial interpretativo é
reduzido à relação. No caso da música, ao vermos alguém pressionar a tecla
da nota “Lá” em um piano, em condições normais, ouviremos o som relativo à
12
tecla pressionada e não um estouro de um pneu ou o surgimento de uma
imagem divina.
Por último, o nível inexaurível é incompleto e está no território dos
elementos simbólicos da escrita musical. Uma partitura de música clássica
ocidental, que era interpretada de uma forma no século XVIII, adquire novos
ares no mundo moderno. Sua interpretação está em contínua mutação, de
acordo com a percepção de quem a lê. A tentativa de uma reprodução da
forma como se tocava no século XVIII, hoje, pode até resultar em um objeto
idêntico fisicamente, porém, a percepção por parte de uma sociedade
altamente ruidosa, que vive mergulhada em velocidades astronômicas,
rodeada de informações novas a cada segundo, nunca será a mesma.
Portanto, nunca se interpretará a música do passado como se fazia no
passado.
No processo interpretativo, a análise da partitura com o objetivo da
compreensão da obra deve visar o levantamento do máximo de
possibilidades interpretativas, para num segundo passo fazermos as
escolhas, optarmos por uma interpretação, assumimos uma posição única.
Quando chegamos a este ponto, quando um intérprete toca uma música no
palco, apresentamos todos os níveis interpretativos reunidos e as diferentes
faces que a partitura efetivamente produz no intérprete (Santaella, 2002, p.
40). Ou seja, podemos dizer que o intérprete-músico revela no palco os
efeitos que a partitura produziu e está produzindo nele naquele momento.
13
2.2 O intérprete
O intérprete é quem, ou o que, reage ao contato com determinado
objeto. No caso do intérprete-músico, sua função básica é criar uma ligação
entre a obra musical e a partitura, fazendo escolhas entre as várias
possibilidades que a escrita pode apresentar. Neste processo, o intérprete
não pode fazer escolhas arbitrárias, tem que seguir uma série de preceitos
que os elementos escritos determinam, além de outras ações que não estão
escritas mas são necessárias para que, no momento da performance, haja a
compreensão de que a obra que estamos ouvindo é a que está escrita no
papel, que o intérprete está respeitando seus preceitos.
O momento da performance, da execução da obra, é quando todos os
elementos que a envolvem estão atuando e se relacionando
simultaneamente. Ou seja, a partitura, um objeto simbólico, produto da
seleção feita pelo compositor de certas variáveis pertencentes ao universo
sonoro (NATTIEZ, 1990, p. 78), está delimitando ao intérprete as ações que
deve realizar. Este, por sua vez, está apresentado o resultado de suas
escolhas, dentre as possíveis proporcionadas pela partitura e pela obra, por
meio da ação física de tocar um instrumento, ao produzir o som que torna
possível o estabelecimento de relações que são entendidas como música
pelo ouvinte. O intérprete é quem faz escolhas, redimensiona a idéia musical
delimitada pelo compositor em som, em algo físico, e apresenta o resultado a
alguém. Ele "apresenta o sentido da composição musical na performance"
(WALLS, 2002, p. 17).
14
Considerando os níveis interpretativos, ao tocarmos ou ouvirmos uma
música, podemos simplesmente sentir emoções, sermos compelidos a reagir
a uma ação, ou produzir algo a partir de instruções dadas. O intérprete, seja
ele músico ou simplesmente ouvinte, sempre estará em contato com estes
três níveis, em maior ou menor intensidade. A interpretação na música,
portanto, ocorre nestes três níveis: o das qualidades, o da ação e reação e o
dos símbolos.
É fácil observarmos estes níveis na imagem clássica de um músico
que interpreta um concerto com seu instrumento. Ele lê ou memoriza uma
partitura, geralmente um objeto confeccionado de papel branco com manchas
pretas, ou colorido, como ocorre na música do ocidente na Idade Média e a
partir do século XX. As manchas são símbolos, convenções criadas pelos
homens que tornam possível a compreensão por parte do intérprete de uma
idéia musical proposta pelo compositor. Existe toda uma cadeia de ações e
reações físicas e mentais por parte do intérprete, para que o som seja ouvido
e a música aconteça, quando ele fricciona a corda de um violino e produz
uma nota, por exemplo.
Por fim, a expressividade musical, entendida como "um conjunto de
qualidades perceptivas que refletem relações psicológicas entre propriedades
objetivas da música e impressões subjetivas do ouvinte”, (JUSLIN, 2003, p.
276) é responsável pelas qualidades, sensações e emoções, parte
fundamental para o entendimento da música como arte.
No entanto, quando avaliamos um caso limite, como a obra 4'33''
(Quatro Minutos e Trinta e Três Segundos), de John Cage (19912-1992), qual
o papel do intérprete numa peça em que o compositor pede apenas que ele
15
suba ao palco e fique em silêncio? A música de Cage pode ser tocada em
qualquer instrumento e possui três movimentos, 30″, 2′23″ e 1′40″. A
realização do pianista David Tudor2, que a estreou e para quem a obra foi
dedicada, acontece da seguinte forma: ele sobe ao palco, ajeita a partitura e
toma nas mãos um cronômetro. Ao disparar o dispositivo, ele fecha a tampa
do piano e fica em silêncio, repetindo a ação de abrir e fechá-la aos 30″, 2′23″
e 1′40″, marcas que determinam os três movimentos da obra. Tudor passa as
páginas da partitura e ao fim de 4'33'', ele abre a tampa do piano pela última
vez, pega a partitura e o cronômetro e se levanta. A partitura original foi
perdida, mas existem várias versões. Basicamente, o que ela mostra é o
número do movimento seguido da palavra tacet (pausa).
A análise mais comum que se faz das intenções do compositor, em
relação a esta obra, é de que o silêncio do músico no palco permite ao
ouvinte prestar atenção em outros sons, provenientes do ambiente que os
envolve. No vídeo de Tudor podemos supor dois ambiente sonoros
diferentes. O primeiro é o do local em que está sendo realizada a obra.
Ouvimos o tic-tac do cronômetro, as páginas sendo passadas, a tampa do
piano abrindo e fechando, sons do corpo de Tudor e um pequeno burburinho
da platéia. O segundo ambiente é o que envolve quem está assistindo o
vídeo e varia conforme o lugar.
Se consideramos a interpretação musical como uma "realização
sonora de uma obra ou trecho musical – com existência anterior ao ato da
interpretação musical – por parte de um indivíduo ou grupo de indivíduos,
2 Link para o vídeo da performance de David Tudor: http://www.youtube.com/watch?v=HypmW4Yd7SY&feature=PlayList&p=9C649354FDF43658&playnext_from=PL&playnext=1&index=14
16
sendo esta realização sonora reconhecida por um indivíduo ou grupo de
indivíduos como interpretação musical da tal obra” (ROBATTO, 2005, p. 6-7),
4'33'' pode ser entendida como tal. Sua realização sonora são os sons
ambientes, ainda que aleatórios. A obra existia antes de sua realização, não
se trata de uma improvisação espontânea, e sua realização é notadamente
reconhecida pela comunidade. Apesar de outros compositores terem tratado
o silêncio de forma semelhante à de Cage, sua obra dificilmente não é
reconhecida nos meios musicais cultos.
A figura central da obra é o intérprete. Há todo um referencial
simbólico que ele representa, a forma como se veste, sua postura no palco, o
instrumento à sua frente, além de seu currículo pessoal no mundo da música,
que o qualifica como um intérprete musical. Um aspecto importantíssimo é a
presença da partitura, o objeto que melhor representa a música de concerto
ocidental. Ao contrário de uma interpretação de um concerto de Mozart, os
sons não são produzidos pelo intérprete diretamente. Porém, é ele quem
conduz a atenção dos ouvintes à paisagem sonora presente, sua não-ação é
de fato uma ação para a produção sonora resultante. Por fim, as sensações e
interpretações dos ouvintes são fruto do que Eco chama de interpretação
semântica, que é "o resultado do processo pelo qual o destinatário, diante da
manifestação linear do texto, preenche-a de significado" (ECO, 2004, p. 12).
Há interpretação como realização sonora e viva de uma partitura, mas,
também, interpretação como ato de compreensão (Nattiez, 2005, p. 143). Ao
analisarmos os motivos que levam o público a ouvir os sons ambientes
através de 4'33'', estamos realizando uma interpretação crítica, que é "aquela
por meio da qual procuramos explicar por quais razões estruturais pode o
17
texto produzir aquelas interpretações semânticas" (ibidem, p. 12), ou mesmo
interpretar o texto musical de outra forma, visando levantar outros tipos de
conhecimentos extra-musicais. Levison propõe conceitos semelhantes,
porém especificamente voltados para música, quando fala de interpretação
performática - o momento da performance na música, e interpretação crítica,
que “tem a intenção do entendimento, por parte do intérprete, do sentido da
obra” (LEVINSON: 1993, 37).
Inúmeras interpretações, performáticas ou críticas, existem sobre
4'33''. Em uma delas, o próprio Cage interpreta a obra em cima de um
caminhão em praça pública. Ele simplesmente se senta em frente ao piano,
abre a tampa, dispara o cronômetro, fecha a tampa e se levanta após o limite
do tempo.
Porém, algumas vezes os intérpretes costumam provocar
intencionalmente sons durante a performance da obra com o objetivo de criar
um ambiente sonoro "aleatório". Eco diz que o texto interpretado impõe
restrições aos seus intérpretes, que "os limites da interpretação coincidem
com os direitos do texto (o que não quer dizer que coincidam com os direitos
de seu autor)" (ECO, 2004, p. XXII). Será que a atitude destes intérpretes
não vai contra a intentio operis, a intenção da obra? Os sons produzidos
intencionalmente podem ser justificados pelo fato de que dentro de uma sala
de concertos não temos muitos sons ocasionais, mas uma interpretação mais
coerente não seria deixar o silêncio quase total destes ambientes? Esse
conflito nos remete à discussão travada por Eco com alguns pensadores a
respeito da validade de uma interpretação (Eco, 2004), sobre qual o limite do
intérprete em relação à obra.
18
Segundo Eco, "interpretar um texto significa explicar porque essas
palavras [os sons para a música] podem fazer várias coisas (e não outras)
através do modo pelo qual são interpretadas" (ECO, 2005, p. 28). Ele
acrescenta: "o texto é um dispositivo concebido para produzir seu leitor-
modelo. Repito que esse leitor não é o que faz a 'única' conjectura 'certa'. Um
texto pode prever um leitor-modelo com o direito de fazer infinitas
conjecturas" (ibidem, p. 75).
Temos, então, dois aspectos delimitadores da interpretação. O
primeiro é o que pode ser feito. O segundo, a expectativa de como a obra vai
ser compreendida. O ouvinte-modelo da obra de Cage é alguém com
mínimos conhecimentos da música de concerto. Sua expectativa ao ver um
piano, com uma pessoa sentada à sua frente, é de que ela vá tocar alguma
coisa, produzir algum som. Se esta pessoa produz o som, a expectativa do
ouvinte é confirmada; se não, há um aumento de tensão, devido ao
rompimento da expectativa.
A expectativa do ouvinte confirma o limite do que o intérprete pode
fazer em 4'33''. Ele pode, por exemplo, ficar em uma posição que indique que
pode tocar o instrumento a qualquer momento, mas se ele produz algum
som, o ato faz com que o ouvinte perceba o fato como mais uma "música
tradicional", talvez com ritmos muito lentos, sons em pianíssimo. A intenção
desta obra é de gerar tensão através da não-ação do intérprete. Fazer algo
que contrarie isto pode levar ao questionamento sobre interpretações válidas
ou não.
Porém, vivemos num tempo sem muitos limites com relação ao fazer
artístico, com a multiplicação de linguagens muito diversas no início do
19
século XX. As obras muitas vezes adquirem funções que não foram previstas
pelo autor, pela intentio auctoris (intenção do autor), como diria Eco. Os
intérpretes sentem-se muito livres, apropriam-se da obra e nem sempre
respeitam sua intenção, que "desempenha um papel importante enquanto
fonte de significados que, embora não sejam redutíveis à intentio auctoris
pré-textual, funcionam mesmo assim como restrição à liberdade da intentio
lectoris" (intenção do leitor) (COLLINI, 2005, p. 11).
Os impulsos incontroláveis dos intérpretes atuais produzem dois tipos
de interpretações extremas. Primeiro, versões de uma obra que
simplesmente desrespeitam a intentio operis. A versão em ritmo de discoteca
da 5ª Sinfonia de Beethoven, muito popular na década de 70, por exemplo,
desfigura toda a estrutura da obra elaborada pelo compositor, toda a
narrativa e expressividade harmônico-melódica deixa de existir em função de
uma melodia metronomicamente achatada. Considerando o conceito de
interpretação de Eco e a intentio operis, podemos dizer que este caso não é
de uma interpretação musical, mas de um uso da obra de Beethoven.
No outro extremo, temos interpretações que criam uma nova obra de
arte. Deleuze, em Platão e o Simulacro (DELEUZE, 1998, p. 259-271),
apresenta o ideal dos modelos e cópias do universo platônico, no qual as
coisas dos homens sempre têm um modelo no mundo das idéias. Ele propõe
uma expansão e transformação desta relação modelo-cópia, dizendo que à
medida que fazemos muitas cópias de um modelo, elas se modificam tanto
que, por fim, produzem um simulacro, coisa que vagamente se assemelha a
outra, um objeto tão distante do modelo que passa a ser entendido como
uma nova coisa. Deleuze rebaixa a noção de modelo de Platão para uma
20
relação cópia-cópia ad infinitum. Como exemplo, podemos tomar o III
movimento da Sinfonia, de Luciano Berio (1925-2003), que é a resultante de
uma estrutura, uma textura formada por trechos que vão de citações de obras
importantes da história a formas de vocalizes mais simples, tudo ligado por
um narrador. Ou ainda a música eletrônica, em que muitos compositores
utilizam como matéria prima de suas obras outras músicas e sons que são
transformadas pelos processos digitais.
Boulez (1925-) diz: "todas as obras que escrevo nada mais são, no
fundo, do que as diferentes facetas de uma só obra central, de um conceito
central" (BOULEZ, 1975 apud NATTIEZ, 2005, p. 91), o que coloca sua obra
como um bom exemplo da filosofia de Deleuze. A idéia de Boulez é
considerar seus conceitos a respeito da música e seus meios compositivos,
suas estratégias composicionais como os elementos temáticos das obras, e
não os objetos sonoros.
Podemos considerar o tema beethoveniano um modelo central que vai
sendo "copiado" ao longo da sinfonia, sofre transformações, porém sem
nunca deixar de estar ligado ao tema. As variações que o tema sofre no
desenvolvimento da forma sonata não são nada mais do que cópias do
modelo e, por serem cópias, sempre sofrem algum tipo de transformação.
Uma cópia xerox não é nunca idêntica ao original.
Boulez unifica sua música a partir de um nível mais profundo. Ao
contrário de uma harmonia, ele pensa em processos de organização
harmônica, como um sistema harmônico pode ser estruturado por exemplo.
Processos de estruturação dos parâmetros musicais, e não modelos sonoros,
constituem o fundamento do sistema que permite ao compositor utilizar um
21
mesmo procedimento e gerar músicas diferentes em sua superfície auditiva.
Comparando com o DNA, que contém as informações genéticas dos seres
vivos, sempre temos uma mesma estrutura, o reconhecemos como similar
em todos os seres, porém a recombinação de seus elementos constituintes
produz espécies completamente diferentes. Podemos dizer que a música
produzida por Boulez é produto de um sistema a-centrado, não proveniente
de um núcleo específico, mas sim composto por conexões múltiplas que
podem ser estabelecidas em qualquer parâmetro, tanto na estrutura interna
da música como entre obras diferentes.
Para estas e outras situações mais radicais em que a interpretação
extrapola a intentio operis, Eco propõe a idéia de “superinterpretação”. Se
"compreender é fazer as perguntas e encontrar as respostas em que o texto
insiste. [...] Supracompreender, por outro lado, consiste em fazer perguntas
que o texto parece não colocar a seu leitor-modelo" (CULLER, 2005, p. 135).
Isto é, perguntar-se que outras coisas pode um objeto prestar ao fazer
artístico. Para Eco, “superinterpretação” é a prática de fazer exatamente
aquelas perguntas que não são necessárias à comunicação normal, mas que
nos possibilitam refletir sobre seu funcionamento" (ibidem), perguntas que os
artistas têm feito e respondido com obras cada vez mais inusitadas.
Podemos dizer que a superinterpretação é uma expansão da abertura
de interpretação presente em qualquer objeto, sendo que a interpretação é
limitada pela intenção da obra, e a superinterpretação extrapola seus limites.
Comentando sobre seu livro A Obra Aberta, escrito entre 1952 e 1962, Eco
diz que sua intenção era de demonstrar as múltiplas interpretações presentes
nas obras criativas, nas obras de arte de qualquer natureza, e não apenas
22
nas declaradamente abertas à interferência do intérprete em sua composição
estrutural (Eco, 2004, p. 27) (Eco, 2005, p. 5).
A preocupação com a abertura interpretativa do discurso artístico já é
presente na Estrutura Ausente, 1ª edição de 1968, em que ele prevê um
modelo de comunicação que contempla um tipo específico de mensagem,
uma "mensagem com função estética [que] é, antes de mais nada,
estruturada de modo ambíguo em relação ao sistema de expectativas"
(ibidem, p. 52), uma mensagem aberta.
Se Peirce diz que "um signo deve deixar que seu próprio intérprete o
dote de parte de seu significado" (CP 5.449), Eco organiza e define limites
para a ação do intérprete, limites para que não haja uma desfiguração da
obra, não no sentido de tolher sua liberdade, mas de organizar seu fazer no
infinito universo da arte.
2.3 Uma leitura de Adorno
2.3.1 A historicidade
No século XVIII, François Couperin (1668-1733) escreveu a respeito
de um problema particular com a música:
"Na minha visão há algumas deficiências no caminho da notação
musical que estão relacionados com a maneira como escrevemos nossas
idéias. Escrevemos algo diferente do que está sendo tocado. Isto é porque
os estrangeiros tocam nossa música pior do que nós o fazemos" (WALLS,
2002, p. 18).
23
Vivemos um momento histórico no qual o músico deve ser capaz de
tocar um repertório de grande diversidade estética e cultural e de períodos
históricos muito diferentes. Diferentemente de hoje, os músicos que
trabalhavam com Johann Sebastian Bach (1685-1750) tinham o hábito de
tocar obras compostas em seu momento histórico, sempre de acordo com
concepções estéticas similares e em um mesmo ambiente sócio-cultural. À
medida que retrocedemos na história, temos cada vez mais um maior contato
do compositor com o intérprete. De fato, na música antiga não há uma
separação do compositor, que é também intérprete de sua obra, o que não
cria a necessidade de uma partitura muito específica, pois o compositor está
ali para dizer o que quer.
No curso da história, a figura do compositor se separa do intérprete e a
partitura se distancia de seu criador, fazendo com que ela cada vez mais
ganhe detalhes de escrita das dinâmicas, dos andamentos e marcas de
expressão, o que pode ser facilmente comprovado comparando a partitura de
Bach com a de Claude Debussy (1862-1918), ou mesmo Pierre Boulez
(1925-). Os compositores modernos têm uma maior necessidade de detalhar
a escrita, por estarem afastados fisicamente do intérprete. O pensamento é
de que quanto maior a quantidade de informação escrita, maior será a
fidelidade da interpretação.
No entanto, o intérprete em frente à partitura é confrontado com
questões que não podem ser imediatamente resolvidas "nem pelo recurso às
obras, nem pelas exigências da própria execução, mas sim somente pelo
conhecimento da relação essencial entre ambas" (ADORNO, 2001 apud
CARVALHO, 2005, p. 204). Isto significa dizer que, mesmo a partitura mais
24
minuciosamente escrita, com a maior quantidade possível de informações
relativas à sua forma de execução, como as de muitos compositores
contemporâneos, permite de imediato uma interpretação adequada. Ao
mesmo tempo, não há princípio interpretativo, práticas pessoais do intérprete,
quanto à abordagem do material, que bastem para conferir à interpretação
"aquele caráter de verdade que, enquanto idéia, rege necessariamente
qualquer realização musical" (ibidem).
A chave para o conhecimento da relação essencial entre os dois
planos, a partitura e as práticas do intérprete, está no conceito de História,
segundo a teoria de interpretação de Adorno (2006). A história não deve ser
aqui entendida como uma sucessão de fatos coletados, mas sim como "o
modo fundamental das empiricidades, aquilo a partir de que elas são
afirmadas, postas, dispostas e repartidas no espaço do saber para eventuais
conhecimentos e para ciências possíveis" (FOUCAULT, 1999, p. 300),
entendendo que empiricidades remetem a um sistema que só reconhece a
experiência como guia seguro, que atribui exclusivamente à experiência dos
sentidos a origem dos conhecimentos, ou seja, a história como algo prático e
vivenciado.
Quando uma obra é escrita e interpretada, ela traz consigo o seu
momento inserido na história. O surgimento desta consciência, em meados
do século XIX, contribui para distinguir uma interpretação verdadeira de uma
falsa, separando o que parece ser determinado pelo texto do que se
apresenta como arbitrário. Para Adorno, "reconheceu-se a mudança histórica
enquanto tal", e esta "foi posta em relação com a idéia de interpretação
verdadeira" (ADORNO, 2006, p. 215).
25
Mais importante do que a classificação de uma interpretação
verdadeira ou falsa, é o que Richard Wagner (1813-1883) destaca em seus
escritos sobre a regência de orquestra (Wagner, 1989), destacando a
mudança da interpretação em função das mudanças das técnicas
composicionais e históricas da música.
Na leitura de Adorno, Wagner atrela as mudanças das técnicas
composicionais à necessidade de mudança na maneira de tocar - uma está
em função da outra. O compositor toma como exemplo a música de
Beethoven e todo o classicismo vienense que tem sua origem histórica com a
introdução do que Adorno chama de cantabile, mais conhecido como tema
nos manuais de análise: "uma construção que se constitui, através de um
processo mediado dialeticamente, a partir de figurações temáticas
qualitativamente diferentes" (CARVALHO, 2005, p. 205).
Segundo Wagner, as práticas interpretativas oriundas dos
kappelmeister da tradição barroca ignoravam a existência deste novo canto.
Esta prática de regência não buscava revelar melodias enfronhadas na
textura sonora de Beethoven, criando, nas palavras de Adorno, um conflito
entre a nova música e o "crispado e inflexível bater do compasso dominante
na era do baixo contínuo" (ibidem). Para Wagner, a correspondência entre a
estrutura da composição dos clássicos e sua execução musical consistia em
deixar claro o novo tecido temático em seu movimento ao longo da obra. Isso
só era possível através do tempo musical, ou seja, o caminho para o desvelar
da nova música não estava escrito no texto, mas no momento da execução.
Sob uma partitura com uma mera indicação de andamento, nascia
uma nova necessidade interpretativa: o classicismo vienense impunha uma
26
nova prática, diferente da exigida na música pré-clássica, e se estabeleceria
como princípio geral até a época de Wagner. Desta forma é que Wagner
relacionava a verdade da interpretação e a história. Uma verdade que não
está presente na história; pelo contrário, a história é que está na "verdade da
interpretação como algo que se desenvolve segundo as leis imanentes da
própria interpretação" (ADORNO, 2006, p. 217-219).
Esta idéia de que o movimento da história é inseparável da "verdade
da interpretação", e não algo que impõe uma determinada interpretação a
partir do exterior, configura uma idéia de que "não há obra em si que exista
em si mesma" (ibidem, p. 259) e de que ela pode ser compreendida em
épocas diferentes, porém com limites para cada uma de suas concepções.
Desta forma, a história não é exterior, mas parte da obra, é um substrato,
uma categoria que Adorno denomina de "desenvolvimento no tempo" e que é
importante na sua definição de "essência da obra" ; é uma lei permanente e
inseparável que faz a obra mudar ao longo do tempo. Esta historicidade
interior das obras musicais provoca mudanças na interpretação, que então
são testemunhas do "conteúdo das obras", assim como, inversamente, o
"conteúdo das obras" é testemunha da história.
Adorno, portanto, distingue uma interpretação verdadeira - a que capta
a essência da obra no seu movimento histórico - da interpretação falsa, que
se impõe à obra a partir do exterior através de meras contingências, como o
gosto puramente pessoal do intérprete ou a moda, incorporando coisas
estranhas à obra interpretada. Esta submissão a um gosto puramente
subjetivo do intérprete, ou ao gosto dominante de um contexto histórico-
social, abre caminho para um relativismo estético baseado em uma relação
27
arbitrária com a obra, o que vai contra a idéia da relação entre os planos da
partitura e da interpretação mediadas pela história.
Assim, se existem mudanças históricas nas práticas interpretativas,
estas mudanças só correspondem a uma interpretação verdadeira se forem
determinadas pela própria historicidade interna das obras. Neste sentido,
observamos que a interpretação é um processo em mudança permanente em
função do movimento da história, o que nos remete à idéia de que a obra
também é algo inconcluso. As obras modificam-se no tempo; as novas
transformam as antigas, uma vez que criam novas tendências de percepção
ao apresentarem novos problemas e soluções interpretativas, como o
exemplo descrito por Wagner.
Isso nos leva a duas constatações importantes para a interpretação
musical: a primeira é que a obra musical não é idêntica ao texto notado; a
segunda, que o gesto imanente da música é sempre atualidade, ou seja, os
mais antigos signos musicais não são para o agora, nem para qualquer outro
tempo (Adorno, 2006, p. 250). Dahlhaus argumenta que o que fez a história
da música diferente de outros tipos de histórias é o fato dela não somente dar
importância às coisas do passado - eventos, documentos - mas olhá-las com
a estética do presente (Dahlhaus, 1983, p. 5).
As idéias de que a obra é algo não concluído, em estado de
permanente transformação devido ao movimento da história, e de que os
signos musicais são atuais, são idéias próximas da teoria da História da
Walter Benjamim. Ele considera a obra como um evento histórico, por isso
um processo sem conclusão, e diz que "articular o passado não consiste em
conhecê-lo como realmente foi, mas sim ganhar a transmissão do novo ao
28
conformismo que dela [da obra] pretende apoderar-se" (BENJAMIM, 1991
apud CARVALHO, 2005, p. 207).
Não conhecer o passado como ele realmente foi pode ser entendido
como a impossibilidade de se retornar à música de Bach ou Beethoven.
Mesmo que fosse possível reproduzir fielmente a forma de se tocar da época,
não é mais possível ouvir estas obras como se ouvia. No entanto, o conceito
de historicidade interna torna esta música viva, uma vez que a dialética da
contemplação pode ser sempre de novo subtraída pela interpretação ao
continuum do academismo, porque a própria obra mudando intrinsecamente,
confere objetividade à interpretação (Adorno, 2006, p. 213).
2.3.2 A obra musical e o objeto notado
O século XX trouxe uma grande quantidade de transformações para a
estética musical. Se na produção da música tonal os compositores produziam
a partir de um único sistema, a nova música ampliou os sistemas, permitindo
ao compositor a tarefa de criar o seu próprio sistema.
A profusão de novas formas de organização da música teve reflexo
nos intérpretes, que se viram diante de um repertório novo, sem muito tempo
para adaptações. Trata-se de um intérprete proveniente da prática romântica,
acostumado à textura tonal, aos temas, à melodia bem definida, ao percurso
de tensão musical muito claro, elementos musicais que, se não foram
totalmente erradicados, sofreram transformações muito drásticas. Se hoje
ainda temos dificuldades em interpretar a música do século passado, os
intérpretes responsáveis por este repertório então contemporâneo
29
certamente tinham também. Ravel bradava que "não estava pedindo para a
música ser interpretada, mas somente tocada" (WALLS, 2002, p. 17).
Esta dificuldade em entender o novo repertório, aliada à prática da
interpretação do repertório romântico, provoca duas reações por parte dos
compositores: houve um aumento acentuado do detalhamento do texto
musical, as partituras passaram a apresentar um número maior de signos e
os compositores passaram a defender mais veementemente uma leitura mais
literal da partitura.
Podemos tomar Stravinsky como um representante destes
compositores, que muitas vezes viam suas idéias completamente
"destruídas" nas mãos de determinados intérpretes, alertando : "o pecado
contra o espírito da obra sempre começa com um pecado contra sua
literalidade, e leva às intermináveis loucuras que uma literatura sempre
florescente, do pior mau gosto, faz o possível para sancionar"
(STRAVINSKY, 1996, p. 113). Ele continua, dizendo que "a música deve ser
transmitida e não interpretada, porque a interpretação revela a personalidade
do intérprete mais do que a do autor, e quem pode garantir que um
determinado executante refletirá a visão do autor sem distorção?” (WALLS,
2002, p. 17). Stravinsky estava propondo uma mudança na interpretação
vigente, formada pelo romantismo. Ele propunha uma leitura mais literal, a
restrição à personalidade do intérprete, defendendo que não há o que
procurar nas notas senão o que está lá, bastando tocá-las corretamente para
se realizar a obra.
Entretanto, as diferenças entre compositores e intérpretes sempre
existiram ao longo da história, pois estes desvios fazem parte da música: "o
30
desvio entre a partitura e o resultado sonoro é tão grande que a notação não
pode ser pensada como uma imagem válida da obra" (NATTIEZ, 1990, p.
79). Nas palavras de Adorno, "nunca e em passagem alguma o texto musical
notado é idêntico à obra"; para ele ser fiel ao texto é preciso captar aquilo
que está oculto, senão "a fidelidade transforma-se em traição" (CARVALHO,
2005, p. 210). A busca deste sentido oculto deve ser uma preocupação da
interpretação, pois não se pode considerar que um texto musical revela-se a
partir de si mesmo. Deve-se considerar que ele é "algo que ainda tem de
constituir-se a si próprio" (ibidem, p. 210-211).
Se fizermos uma comparação com a poesia, poderemos entender um
pouco melhor o que se quer dizer com "constituir-se a si próprio". A poesia
permite uma performance; no entanto, ela não é absolutamente necessária,
visto que o texto poético escrito já está num formato sensivelmente captável:
qualquer um pode tomar o livro, ler e interpretar de acordo com seu universo
cultural.
Já o texto musical precisa de algo de fora, precisa necessariamente da
performance para converter os signos da partitura, sem sacrificar o que está
e o que não está escrito, o oculto. O texto musical precisa do intérprete, que
é o responsável pela zona de indefinição na notação musical. Desta forma,
não podemos dizer que o texto musical está completo, uma vez que, sem o
intérprete, ele não passa de uma folha de papel; isso quer dizer que a música
só se constitui verdadeiramente como texto através da interpretação (Adorno,
2006, p. 181).
Mas a necessidade do intérprete lança um problema para a escrita
musical, inexistente na poesia, fazendo com que a partitura seja um "enigma
31
insolúvel" e, ao mesmo tempo, o "princípio da resolução do enigma" -
expressões de Adorno. É um enigma, pois nunca se encontrará uma solução,
cada intérprete achará a sua; e o princípio da resolução está nos próprios
signos, que são o que permite alcançar a música propriamente dita. O
trabalho do intérprete, em relação à escrita, é mergulhar no texto notado e
adquirir um conhecimento que torne possível transformar a indefinição, que é
uma essência do texto, em uma definição que torne a obra legítima (ibidem,
p. 241) e concreta. Assim, pelo caminho inverso, a obra, no momento de sua
execução, não se confunde com o texto notado. O texto é um componente; a
obra, porém, possui uma objetividade, uma existência que legitima a
definição do texto escrito, ou seja, cria uma identidade entre a partitura e a
performance.
A partitura como um enigma; seu estado de definição ou indefinição; a
objetividade (existência) da obra e sua historicidade interna são os pontos
que servem de referência para a abordagem da interpretação como um
problema, segunda a análise de Adorno.
Se compararmos a escrita musical com a escrita da fala temos em
comum que ambas são sistemas de signos. Entretanto, a diferença básica
entre elas é que a escrita musical não tem a possibilidade de formar
complexos sonoros que possam significar coisas ou objetos, o que é possível
com as palavras. Adorno considera a escrita musical como uma escrita não-
intencional, o que faz da música uma linguagem não-intencional, pois sua
interpretação/performance ocorre no terreno qualitativo e não no simbólico,
ou seja, a música atua no nível das sensações (ibidem, p. 168). Mas para a
música se organizar é preciso um elemento articulador que possa ser
32
organizado sob o ponto de vista de uma certa lógica; Este elemento é o
mimético.
Em grego, mimeses que dizer imitação ou representação, e tanto para
Platão como para Aristóteles significava a representação da natureza.
Entretanto, para Platão, qualquer criação é uma imitação das coisas
verdadeiras que estão no mundo das idéias. Dessa forma, o processo de
criação artística seria uma imitação de segunda mão, pois a arte imita a
natureza do mundo dos homens. Já Aristóteles via o drama como sendo a
imitação da uma ação. Como rejeita o mundo das idéias de Platão, ele
considera a arte como representação do mundo (Auerbach, 1996, p. 522).
Podemos tomar a música dos Pigmeus como exemplo de como era
sua relação com o mundo que estava ao seu redor. Se a música de concerto
de hoje é algo abstrato e sem um simbolismo direto, para os Pigmeus era a
forma de se relacionar com a natureza e ao mesmo tempo tentar
compreendê-la. Sua atitude era bem simples: copiar as ações de seu
cotidiano. Desta forma, músicas como "Chegada da chuva no
acampamento", ou "A caçada do elefante", tentavam recriar sonoramente
estas situações.
Sob este aspecto, para Adorno a música é uma linguagem puramente
mimética, tanto livre de um objeto concreto como da significação. Ela é um
gesto organizado segundo uma lei, um gesto acima do mundo corporal, um
gesto sensorial. No entanto, quando a música subiu aos palcos das salas de
concerto européias, deslocou o elemento mimético para a periferia da
construção musical. Mesmo assim, os traços deste elemento ainda podem
ser encontrados no nível partitura, da notação. Assim, segundo Adorno, os
33
signos musicais, tomados pela ambiguidade e pela transitoriedade do gesto,
são "imagens de gestos" e a notação teria surgido para fixar a prática
mimética, quando a memória desta já começava a desaparecer das práticas
musicais (Adorno, 2006, p. 171).
O surgimento da notação da música da Igreja Católica na Idade Média
demonstra esta transformação. Os primeiros sinais desta escrita do século
IX, que evoluiria até a escrita da música ocidental moderna, eram traços
pequenos e curtos, que indicavam apenas se a voz deveria ir para o agudo
ou para o grave. Até então, a memória dos padres cantores era suficiente
para manter a tradição do canto gregoriano. No entanto, sua difusão pelo
continente europeu e seu uso como instrumento unificador da doutrina
católica começaram a prescindir de uma notação mais esclarecedora. Nas
palavras de Candé, "resolveu-se ajudar a memória dos cantores, colocando
acima das sílabas do texto signos que sugeriam o movimento da melodia".
Os chamados Neumas primitivos não eram mais do que lembretes, mas, "no
início do século X, em razão de um curioso sentimento de analogia entre
sensações visuais e auditivas, imagina-se colocar os signos em alturas
diferentes, conforme correspondam os sons mais ou menos agudos. Com
este processo obteve-se uma "uma guirlanda de Neuma cujo movimento
pode provocar a 'curva' da linha melódica" (CANDÉ, 2001, p. 205-206).
Uma questão importante, da notação no processo de unificação do
culto católico em torno do canto gregoriano, é a necessidade de dominação
de classes. Mais do que preservar um passado musical, passado que nunca
poderia ser recuperado pela notação extremamente vaga da época, a escrita
tinha a função de disciplinar a prática musical, ou seja, fazer com que todos
34
falassem "a mesma língua". A intenção era que a tradição musical - devemos
lembrar que a missa era totalmente cantada - não fosse modificada pela
necessidade de expressão das massas, forçando-as à mera transmissão da
tradição, o que era chamado de escola da obediência (Carvalho, 2005, p.
213).
Se retornarmos à defesa de Stravinsky por uma leitura mais fiel da
partitura, podemos traçar um paralelo com o canto gregoriano. Mas neste
caso temos uma defesa de uma estética, um pensamento muito
individualizado dos compositores do século XX, que na maioria das vezes
não era compreendido por intérpretes impregnados dos maneirismos
românticos. Estes fatos levam Adorno a acrescentar um elemento
antimímico, definindo a notação com uma síntese de elementos divergentes;
se por um lado ainda restam traços do mimético, por outro ele acrescenta o
antimímico como sendo o significacional e racional.
O racional, na música, são os elementos da escrita que se
desenvolvem ao longo de sua história e a aproximam da escrita da fala. A
presença de elementos simbólicos - os sinais gráficos de alturas, ritmos,
dinâmicas... - afasta definitivamente o elemento mimético e aumenta a
autonomia da partitura em relação ao criador. Esta autonomia provoca uma
perda da memória e é fundamental para a interpretação:
A notação expropria a memória, na medida em que a auxilia: ela
constitui o primeiro passo para a socialização da memória. A notação quer
que a música seja esquecida, para fixar e gravar na memória: trata-se de a
transformar na repetição idêntica, na reificação, transformação em coisa, do
gesto, À eternização da música pela escrita pertence um momento mortal:
35
aquilo que ela, escrita, detém, torna-se simultaneamente irrecuperável
(Adorno, 2006, p. 172). Siohan reforça este pensamento ao considerar a
partitura um mero artefato auxiliar à memória. Ele diz que "o signo musical,
enquanto elemento gráfico, não é música, nem um reflexo, mas somente uma
ferramenta mnemônica" (SIOHAN, 1962 apud NATTIEZ, 1990, p. 71)
A notação pretensamente assume para si a responsabilidade de
manutenção da memória musical. Acredita-se que ela tenha o poder de
transmitir um pensamento musical sem a necessidade da presença do
compositor. Elemento virtualizador da música e da memória, a partitura
começa a ser editada e distribuída em larga escala no classicismo.
O esquecimento da música é o esquecimento das práticas
interpretativas pertencentes a ela, de forma que, neste ponto, Adorno
concorda com Gadamer, que defende uma absoluta coincidência temporal
entre a obra e o ouvinte, acreditando que, por maior que seja a consciência
histórica, esta relação ainda assim permanece imutável. Para ele,
praticamente não há uma herança histórica em uma obra quando ela está
fora de seu tempo, sendo que o ouvinte sempre deve ser um contemporâneo
do compositor (Gadamer apud Carvalho, 2005, p. 208-209).
A impossibilidade de se recuperar a música em sua origem através da
escrita cria uma situação de utopia para a interpretação. No entanto, esta
impossibilidade é justamente a chave para a dialética entre o "rigor" da
partitura e a "liberdade" da interpretação; ou seja, a música só se
desenvolveu em direção à autonomia e agregou toda uma gama de
expressividade através da mediação gráfica, da partitura, que a tornou
disponível, praticável, acessível às pessoas em geral e desmemoriada, o que
36
cria um horizonte para a interpretação. Por outro lado, a partitura "reifica" a
música, a transforma em uma coisa qualquer, privada de qualidades e
individualidades, em um objeto de consumo sem personalidade que, sem a
presença da memória como suporte, torna-se algo para uso.
O desenvolvimento da notação, na tradição musical européia, acentua
esta dialética e apresenta uma "visualização", herdada dos antigos Neumas,
que está ligada à idéia de gesto musical. A escrita torna possível
visualizarmos o gesto, descrevê-lo no espaço, estando aí justamente o
elemento mimético. Desta forma, temos um paradoxo: o elemento racional -
os símbolos da escrita musical - que torna possível a tradição e a própria
história, e em certo sentido é inimigo da expressão, é aquele que torna
possível e sob o qual está o mimético. Ao contrário, a música propriamente
dita, no momento da execução, pura gestualidade se formando e se diluindo
no tempo, é absorvida pela escrita através de seus elementos simbólicos.
A racionalização, que corresponde ao desenvolvimento dos elementos
simbólicos na notação, permite organizar fatores como alturas, ritmos e
instrumentação, com o objetivo do controle das estruturas musicais, e
representa a invasão do intencional na notação. Para Adorno, a
racionalização impossibilita uma experiência musical mais sincrética que
envolva, além do som, gesto e movimento, como ocorria antes da ingerência
da igreja nos cantos dos primeiros cristãos.
Já o gestual, o não-intencional, é temporário, efêmero, não sobrevive à
história e não está preocupado com isso. Por outro lado, na escrita, a
intenção é a eternidade, ela mata a música como fenômeno natural e
espontâneo, para a conservar fragmentada no mundo das idéias. Desta
37
forma, o elemento mimético da música está ligado aos elementos simbólicos
introduzidos pela notação, aproximando-a da escrita da fala, mas com o
custo de perder sua própria homogeneidade como música (Adorno, 2006, p.
178). Entretanto, o elemento da expressividade está tão ligado ao seu
oposto, ao dos símbolos musicais, que isso torna a racionalização da escrita
um organismo de subjetividade.
Nesta duplicidade entre o elemento mimético, não-intencional, e o
simbólico, intencional, reside o problema da interpretação no sentido mais
rigoroso do termo: a fidelidade gestual-visual da escrita contém algo da
rigidez dos signos linguísticos, assim como a indicação da execução mais
rígida e rigorosa contém algo de necessariamente ambíguo. Esta
característica de duplicidade da escrita como mimese e como linguagem
torna necessária a interpretação musical, cujo objetivo é resolver a questão:
"Como pode a mímica tornar-se linguagem e, inversamente, o signo
transformar-se em imagem?" (ADORNO, 2006, p. 180)
2.3.3 O sentido
Uma primeira noção de sentido é um efeito que um objeto gera
quando entramos em contato com ele de alguma forma. Uma definição geral
pode ser formulada como sendo "um objeto qualquer gera sentido em uma
apreensão individual deste objeto, assim que o indivíduo o coloque em uma
relação com áreas de sua experiência vivida - isto é, em relação à coleção de
outros objetos pertencentes à experiência do indivíduo no mundo" (NATTIEZ,
1990, p. 9). Nesta definição, "objeto" se refere a qualquer coisa, sejam
38
elementos simbólicos como as palavras, coisas materiais ou imateriais, fatos
sociais, etc. O uso do "individual" é importante para a compreensão de que o
efeito dos objetos deve ser estudado nos indivíduos como prioridade em
situações de análise de um fenômeno em relações interpessoais ou coletivas.
Por fim, a palavra "apreender", diferentemente de "produzir" ou "perceber",
indica que "o sentido de um objeto existe não só para quem o recebe, mas
também para seu produtor" (ibidem).
Em relação ao objeto, a noção de sentido é um horizonte, é o futuro
que surge e dá vida ao objeto. Horizonte pode ser entendido como destino;
neste caso, o significado que será atribuído pelo indivíduo ao objeto, que sem
esta relação não é nada, só existe no momento em que o objeto é percebido
por alguém.
O horizonte é também um limite da visão, o máximo que ela alcança,
compreendido como o limite da nossa percepção, em função da nossa
experiência de vida. Se estamos num quarto vazio, vemos as paredes, a
porta, as tomadas elétricas, a lâmpada no teto, ou seja, não temos muito o
que ver, nosso horizonte de visão é pequeno. No entanto, ao olharmos pela
janela e avistarmos toda uma cidade, o alcance da visão amplia-se
consideravelmente, temos muito mais coisas que podem ser observadas.
Desta forma, o sentido é uma constelação de significados, de efeitos que um
determinado objeto possui. A capacidade de percebê-los, todos, vai depender
da experiência individual, de cada um.
Porém, no território da música, especificamente, quais horizontes uma
obra musical pode evocar? Obviamente são inúmeros, heterogêneos,
abrangem dimensões diferentes do sentido musical, podendo estar ligados a
39
aspectos biológicos, sociais e culturais do homem. Podemos encontrar todo
tipo de sentido para uma música, alguns mais aceitos por uma coletividade e
outros absolutamente individuais, mas eles podem ser classificados em
categorias, de acordo com o julgamento de quem o faz, segundo Francès
(1988, p. 259-260).
A primeira categoria é a Normativa, quando se produz avaliações
pessoais, julgamentos de gosto, o que praticamente é impossível de não
ocorrer na música de concerto ocidental. Em praticamente qualquer fato
musical, incluindo a música das tradições orais, a reação mais comum das
pessoas é avaliar se gostaram ou não.
A segunda é a Objetiva, quando os julgamentos são de natureza
técnica, como analisar alguma propriedade física da música (timbre, tempo,
vibrato); a forma (estrutura, gênero, estilo histórico); ou o tipo de escrita. Esta
categoria é importante em relação à discussão a respeito da música: ela é
apenas uma pura estrutura formal, não se refere a nada a não ser a si
mesma, ou é capaz de inspirar associações externas? A resposta para esta
pergunta é que a música pode ter tanto referências intrínsecas como
extrínsecas (Nattiez, 1990, p. 103). Desta forma, os julgamentos objetivos
são os que envolvem as referências internas da obra, assim como a próxima
categoria está relacionada às referências externas.
Julgamentos a respeito de significados extra-musicais são produzidos
por sujeitos que atribuem à obra fatos extra-musicais. Esta terceira categoria
é dividida em três tipos:
40
a. em relação a uma referência individual: o significado está relacionado com
alguma experiência pessoal; esta música é igual a um passeio com meu
carro pelo centro da cidade, por exemplo, podendo ser acompanhado ou não
por imagens.
b. sentido concreto: um aspecto específico da natureza, um fenômeno do
mundo externo ou uma situação dramática. La Mer, de Debussy, pode ser
considerada um exemplo, deixando claro, porém, que é preciso se esclarecer
o contexto ao ouvinte antes da escuta, para que seja possível a
compreensão da obra de acordo com o seu roteiro dramático.
c. sentido abstrato: estado psicológico (alegria, entusiasmo, serenidade); ou
representações generalizadas (ordem, desordem, hierarquia). Uma obra é
alegre ou triste, é caótica ou não.
A quarta categoria são os julgamentos que levam ao relato de
aspectos psicológicos interiores do sujeito em relação à experiência. Neste
caso, os sentimentos que possam ser generalizados são considerados
individualmente. Nem sempre uma obra triste é compreendida como tal por
todos; se a apresentamos a pessoas de uma cultura diferente, teremos
opiniões pessoais muito mais diversificadas, por exemplo.
De forma geral, as opiniões verbais a respeito de uma música são
feitas a partir do mundo próprio de cada um, de sua experiência pessoal, de
forma que sua reação será em função de sua bagagem sócio-cultural. Mas
41
outro elemento está também fortemente ligado à produção de sentido na
música, que é o biológico (Nattiez, 1990, p. 104).
Molino divide a apreensão de sentido sob o ponto de vista biológico
em duas dimensões. A primeira é denominada "coenestésica", entendida
como a impressão, ou emoções que se revelam a partir de um conjunto de
sessões internas, não específicas, que habitam em nosso corpo. Molino diz
que gostar ou não de uma obra é uma forma de simbolizar uma reação
corporal, representada pelas emoções. A segunda dimensão é a
"kinestésica", que é a impressão de movimento que alguém sente em
determinado ponto do corpo. Se a música nos desperta, é porque ela está
nos incitando a mover (ibidem).
As categorias de Francès e as dimensões de Molino nos colocam de
frente para o debate a respeito da oposição entre Natureza e Cultura,
presente em inúmeras áreas de estudo do conhecimento humano. No
entanto, elas demonstram que na música não são uma oposição, mas
componentes de uma mesma experiência, que pode produzir conhecimentos
técnicos musicais, a partir dos julgamentos objetivos; conhecimentos a
respeito de aspectos históricos, sociais, ou psicológicos; até a incitação do
movimento e de reações emocionais específicas e individuais.
Ao longo da história, o estudo do sentido na música produziu uma
série de correntes e formas de pensamento. O próprio conceito de música se
modifica, refletindo e sendo reflexo das sociedades nas quais foi elaborado.
Segundo Gilson, a história da estética é dividida em quatro grandes famílias
que se sucedem, sendo que uma é sempre a reação contra a anterior e que
elas podem coexistir em algum momento. As três primeiras são a imitação, o
42
expressionismo e a simbólica, nas quais a música é capaz de reproduzir,
expressar ou simbolizar significados, sentimentos e alguma realidade exterior
à obra. Na quarta e última, o formalismo, o sentido da música acontece nela
mesma, é intrínseco à forma, à estrutura e suas relações sonoras, rejeitando
qualquer elemento exterior (ibidem, p. 107).
A doutrina da imitação explica-se pelo próprio nome. Seu princípio
está baseado na poética de Aristóteles: as artes são cópias, representações
da natureza. No universo musical, o princípio da imitação está ligado à
relação entre a música vocal cristã da Idade Média e sua escrita, os Neumas,
que eram inicialmente imitações das inflexões vocais, como apresentado no
tópico anterior, segundo Adorno. Na música vocal é fácil se identificar a
imitação.
Porém, para os filósofos, a chegada da música instrumental autônoma
dificulta este entendimento, por isso o expressionismo gradualmente se
impõe, agora como uma imitação das emoções: "uma importante questão é
saber se o trabalho do artista é ou não uma expressão da emoção e dos
sentimentos, [ser a obra] uma expressão, uma tradução artística destes
sentimentos" (GILSON, 1963, p. 67). Esta questão nos remete ao próximo
passo, que é definir onde está o sentimento, na consciência do artista ou na
obra.
A corrente simbólica define a obra musical como uma forma simbólica,
ou seja, ela simboliza, representa algo. Retomando a corrente expressionista,
poderíamos imaginar que o sentimento está representado na obra, mas
nesta nova corrente a obra pode representar muito mais e, principalmente,
não representa uma única coisa ou fato. Langer diz que a música é um
43
"símbolo não consumado" (LANGER, 1957, p. 240), o que quer dizer que é
um objeto que representa algo, mas sem que esta representação se realize
de forma convencional, sem que remeta a um sentido específico. Ela diz que
é um processo que "direciona alguma luz ao obscuro conflito de julgamentos
que são evocados a partir de uma performance" (LANGER, 1957, p. 241)
Considerada uma reação contrária às concepções semânticas das
música, que pressupõem uma ligação da música com algo externo, a
doutrina formalista defende a música por ela mesma. A virada decisiva nesta
direção é marcada pelas idéias de Hanslick, segundo as quais a "beleza da
obra é especificamente musical, produto apenas das combinações de sons e
independente de qualquer coisa externa, qualquer noção extra-musical"
(Hanslick apud Nattiez, 1990, p. 108). Para Varèse, a música não é capaz
expressar nada, senão ela mesma. Stravinsky considera música, em sua
natureza, incapaz de expressar qualquer coisa, seja um sentimento, uma
atitude, um estado psicológico, um fenômeno natural, etc. “Expressividade
nunca foi algo imanente na música" (ibidem). É importante notar que os
formalistas não necessariamente afastam as emoções da música. Stravinsky
não disse que a música não pode provocar associações; o que ele diz é que
em seu nível imanente, enquanto um objeto, a música não é expressiva, ou
seja, a música provoca o nascimento de sentimentos em nós, mas como uma
consequência do ato musical.
A história da estética musical pode ser comparada com um pêndulo
oscilando entre as concepções semânticas, que consideram referências
externas à música, e os formalistas. Neste longo percurso histórico, muitas
vezes as concepções coexistem, às vezes muito proximamente, como no
44
século XX de Boulez, que defende uma música livre de relações externas; e
Stockhausen, com toda a sua visão cosmológica e relações espirituais.
2.3.4 O sentido em Adorno
Em Adorno, a imitação é o ponto de partida para se obter o sentido
musical. Em sua teoria da interpretação, a noção de sentido não está ligada à
produção e apreensão de significados, como descrito anteriormente, ou como
resultado de uma combinação de signos que produzam um significado como
na linguagem. Para ele, o sentido da música corresponde ao gesto global
que é recomposto a cada performance de uma obra. Desta forma, os
elementos de uma partitura não dão sentido à música, eles fornecem
caminhos a partir dos quais se realiza a imitação da música, os signos da
partitura como mimese. Este gesto global é o todo, é a forma musical
(Adorno, 2006, p. 191).
Imitar é ter algo como modelo e tentar reproduzir, é fazer algo
semelhante. Se pensamos em seu uso comum, compreendemos que ao
imitarmos algo não estamos realizando uma cópia fiel. O uso da palavra por
Adorno está na base da idéia de que nesta relação música - partitura -
intérprete, um imita o outro. Assim, a partitura imita a música e o seu
movimento, somente sendo capaz de fazê-lo através de um sistema de
signos, que por sua vez é imitado pela interpretação.
Este processo pode ser melhor entendido se tomarmos um desenho
como exemplo: Como fazemos para desenhar uma casa que está à nossa
frente? Analisamos sua forma; se ela é quadrada desenhamos um quadrado,
45
se é vermelha colorimos de vermelho. A chave do processo é a análise das
estruturas e das características da casa que possam ser transpostas para o
papel. Da mesma forma, no processo de imitação da música, a partitura
simplesmente apresenta alguns aspectos fundamentais da música. Em uma
partitura gráfica, a relação com o movimento do som é mais próxima, mas
essa relação também está presente na partitura tradicional, na qual o
movimento é representado pelos símbolos musicais. Desta forma, cabe ao
intérprete imitar a partitura. Cada elemento da relação imita o outro: no
entanto, um na dimensão das idéias- a música enquanto composição; outro
na dimensão simbólica- a partitura e o intérprete na realização sonora.
Mesmo não estando preocupado com a capacidade ou incapacidade
de produção e apreensão de significados, podemos notar na teoria de
Adorno aspectos marcantes de duas correntes de Francès, a imitação e a
formalista. Se voltamos ao exemplo dos Pigmeus, temos uma música feita
para se relacionar com a natureza; ela busca imitá-la e podemos dizer que,
para os Pigmeus, sua música tem como modelo a natureza. Temos aqui uma
relação de significação direta: ao ouvir sua música, o pigmeu é remetido a
algum aspecto de sua vida.
Já na música de concerto atual, o processo de imitação ocorre, porém
sem um modelo; são cópias de um original que não existe. Adorno não
credita à música uma capacidade de representar algo e nem discute este
aspecto, o que o aproxima dos formalistas. Podemos, entretanto, propor que
quando ele sugere a idéia de "mimese", deixa uma porta aberta à
significação, pois a música pode se ligar a qualquer significado, devido à sua
46
característica mimética; podemos relacionar qualquer coisa de acordo com
uma lógica pessoal no processo de escuta.
À interpretação cabe atuar nestes dois aspectos do texto escrito: o
simbólico e o mimético, que são absolutamente ligados, de maneira que um
não existe sem o outro. Na definição da escrita da música atual, estes dois
pólos são uma linguagem sígnica no singular e gestual ou figurativa no todo.
Cada nota e indicação expressiva têm que ser traduzidas em representação
mental e realizadas sonoramente, como parte integrante da imitação do gesto
da escrita na sua totalidade (Adorno, 2006, p. 205-206).
Devemos observar que a idéia do gesto como figura significa uma
espacialização do percurso do tempo (Carvalho, 2005, p. 218). Uma figura é
uma imagem visual, desta forma podemos ver o que acontece do ponto de
vista do movimento da música no tempo, como em uma partitura gráfica. O
gesto transformado em figura vai contra a idéia de mimeses original. Perde-
se a atualidade do gesto, já que ele é um acontecimento, ele simplesmente
existe, é um momento presente, o que deixa de acontecer para ser
eternizado numa figura. A fixação do gesto em figura permite que ele seja
relacionado a outros, tanto na sucessividade quanto na simultaneidade,
deixando de ser, em certo sentido, "o gesto musical" para ser "o gesto
concreto", passível de análise e de princípios de organização (ibidem).
Ser linguagem sígnica e figurativa aprisiona a escrita musical e sua
insuficiência num paradoxo de ser "signo linguístico do não-linguístico,
significante do não-conceitual, concretização do inconcreto, fixação do não-
fixável" (ibidem, p. 219) e, principalmente, o paradoxo de ser uma coisa, um
objeto que se modifica na história. A interpretação como problema revela
47
essa historicidade ao captar e procurar resolver o paradoxo presente no
duplo caráter da escrita musical. É importante realçar que não se trata
simplesmente de se adaptar a obra ao momento histórico em que foi
concebida, mas sim compreender nela própria sua regras interpretativas,
suas leis internas.
Além dos elementos mimético e simbólico, a interpretação ainda
depende de um terceiro elemento, o idiomático. A relação entre estes três
meios é que torna claro o caminhar das obras na história.
2.3.5 O idiomático
O elemento idiomático é ligado à partitura, porém não está escrito, ele
é tudo que, por ser óbvio na prática musical, não aparece na notação, sejam
aspectos dos signos ou aspectos miméticos. O idiomático é ligado à maneira
de tocar aceita por uma maioria, seja no contexto em que a obra nasce ou no
local onde é executada. O idiomático é também a subjetividade do intérprete,
seu estilo pessoal de execução. "O idioma é o contexto que sustenta a obra
no momento histórico em que ela surge e/ou naquele em que ela é
interpretada" (ibidem, p. 220).
É uma cultura de escuta e interpretação que define um coletivo de
coisas a se fazer em determinada música. Sua ligação com a partitura se dá
através desta cultura, que diz como devem-se realizar os elementos da
partitura, não apenas os pertencentes à micro-forma, como ornamentos em
geral, mas também os da macro-forma : andamentos, dinâmicas, articulação
da estrutura formal, instrumentação, entre outros. Adorno considera que "as
48
maneiras de tocar e frasear dominantes" (ibidem) asseguram uma
interpretação "correta", que não vai contra a coletividade, considerando esta
prática como uma espontaneidade aparente, que demonstra, efetivamente,
uma ingenuidade.
De fato, o idiomático reflete um pensamento dominante de um meio
musical, o que muitas vezes não permite uma leitura e uma performance
mais críticas da partitura. O problema é que este pensamento dominante
sustenta a obra, o que tende a fazer com que se acredite em uma
coincidência entre a obra e a forma de compreendê-la e interpretá-la; ou seja,
não necessariamente a forma de compreensão de uma obra de determinado
momento é a forma como a obra deva ser interpretada. Este descompasso
entre o idiomático e a obra provoca, segundo Adorno (2006, p. 212), uma
crítica da História a uma tradição interpretativa que oculta ou distorce a
concepção verdadeira da obra, que impede a capacidade de transformação
da obra. Para Mahler, a "tradição é desleixada" (ibidem, p. 67).
Se por um lado o idiomático é efêmero, por outro, os signos musicais,
a escrita da partitura, são permanentes. Mesmo que tenhamos algumas
mudanças nos diapasões de cada época, ou que a construção dos novos
instrumentos possibilite novas relações dinâmicas, o sistema continua o
mesmo. A partitura é o esquema da obra, o que garante sua identidade sobre
o curso da história (Ingarden, 1989 apud Nattiez, 1990, p. 69-70).
A relação do elemento permanente com os variáveis, o mimético e o
idiomático, propicia o dinamismo da obra, revela sua historicidade interna. Se
a escrita é permanente, a carga histórica está presente nos dois outros
elementos. O mimético apresenta a história interna, de certa forma o
49
pensamento do compositor; e o idiomático, a história externa, o momento
histórico da época em que a obra foi composta ou que é tocada. A relação
entre a escrita e os outros dois elementos é conflituosa, ou melhor, negativa,
pois a necessidade do idiomático e do mimético mostra o seu vazio
significacional, mostra que os signos precisam de ser completados,
necessitam da interpretação, responsável pelos outros dois elementos, para
serem de fato uma obra musical. Devido ao vazio significacional do elemento
escrito, Adorno o considera "a identidade da não-identidade" (ADORNO,
2006, p. 199), ou seja, a partitura que tendemos a considerar como a obra a
identifica, mas de fato não a representa em sua totalidade. Hans-Joachin
Koellreutter (1915-2005) costumava dizer que o mapa não é o território;a
escrita é este mapa, a interpretação percorre o território.
O idiomático, efêmero, não está registrado na escrita. Desta forma, ele
é uma coisa de fora, sendo, no entanto, o elemento capaz de fazer com que
o texto produza sentido. A efemeridade do idiomático e sua ausência no
sistema de codificação do texto o levam a ser perdido, em função das
mudanças das sociedades no decorrer da história. Como ele é o responsável
pelo sentido, isso cria um problema para o texto notado. Órfã do idiomático, a
obra só tem como possibilidade de reconstrução do gesto musical seu
elemento permanente, os signos da escrita. Isso implica também a
reconstrução do elemento idiomático a partir do texto notado, através da
busca do gesto oculto nos símbolos musicais. Todo este processo de
reconstrução, no entanto, só é possível através da análise.
Podemos dizer que esta é uma proposta de mudança de paradigma
para as práticas interpretativas. O comentário de Mahler - a "tradição é
50
desleixada"- é a marca de um momento problemático da linguagem musical,
um momento em que o discurso da tradição deve ser substituído por um
discurso analítico-construtivo (Carvalho, 2005, p. 221). Este, por sua vez,
passa a ser o responsável pela reconstituição do gesto musical da obra como
um todo, devido ao fato da escrita levar-nos ao elemento mimético e vice-
versa, como foi dito anteriormente.
O desleixo da tradição é uma crítica, mais do que isso, uma
condenação da distorção provocada pelo elemento idiomático cristalizado,
que rejeita as transformações históricas, sociais e culturais; um idiomático
que tem como base regras externas à obra, formadas por uma consciência
coletiva e que são usadas sem um juízo crítico, quase que como um manual
do proprietário. Esta prática destrói a verdade dinâmica da obra, sua
propriedade de estar em constante transformação ou adaptação a novos
tempos.
Adorno cita como exemplo as práticas de interpretações históricas da
música que negam a história por serem unicamente baseadas na tradição do
momento de nascimento da obra, que buscam reconstruir o idioma do antigo
ideal de execução (Adorno, 2006, p. 229). Este tipo de prática obstrui a
verdade da obra, de sua dinâmica, de três formas:
1. objetiva: o texto notado é confundido com a obra, ou seja, o intérprete
atual, com sua ideologia, busca realizar o mais fielmente as instruções dos
símbolos musicais, o que equivale a aplicar a interpretação objetiva do
pensamento de Stravinsky à música de Monteverdi.
51
2. historicista moderna: a leitura de uma partitura de acordo com as
convenções de uma época pode anular a leitura crítica do material em si, ou
seja, não necessariamente o que um compositor pensou e escreveu está de
acordo com a prática interpretativa de seu tempo. Os inovadores,
principalmente, têm grandes conflitos com este descompasso, como
constatamos nas críticas de Stravinsky e Varèse. Adorno, no seu texto Em
defesa de Bach contra seus adeptos, diz que ao falar de Bach, na verdade,
falavam de Telemann, bem mais famoso na sua época; ou seja, ao fazer isto
não estavam captando a verdade dinâmica que projetava suas obras no
futuro, mas simplesmente reproduzindo-a através de meras convenções ou
ideologias dominantes do contexto em que o compositor viveu. A redução de
Bach às convenções de sua época liquida seu estilo; uma interpretação
verdadeira precisa, mais do que de conceitos, de uma razão fria da
musicologia (Carvalho, 2005, p. 222).
3. subjetiva: oposta à objetiva, é extremamente subjetiva, defende um
relativismo estético, na medida que a sua legitimação é a convicção íntima do
intérprete. Cabe a ele julgar o que é mais musical, mais expressivo ou o que
deve ser feito e expor suas convicções ao público.
Segundo a Teoria de Adorno, todos estes caminhos impedem uma
interpretação verdadeira. Seja uma obra do passado ou atual, para o
intérprete escapar do elemento idiomático como ideologia, como convenção,
é preciso um distanciamento da obra, é preciso que ela provoque um
estranhamento. Para se conhecer de fato uma obra, para se construir uma
52
interpretação verdadeira, é preciso reconhecer nela o não-idêntico, o que a
torna singular em relação à sua tradição idiomática.
É preciso também que o intérprete encontre e demonstre a sua
singularidade pessoal, o que o distingue da tradição idiomática em que se
formou e que é dominante nas práticas musicais de seu tempo. Desta forma,
a interpretação do sentido da obra, da escrita, é mediada pela subjetividade
do intérprete como condição para a sua compreensão. Portanto, a chave
para a verdade está na compreensão da escrita como algo incompleto, como
portadora de uma historicidade interna, na voz do intérprete e na sua própria
historicidade e subjetividade.
O desafio do intérprete é realizar a historicidade interna da obra contra
a tradição que a encobre e oculta. Para isso, é preciso um domínio da análise
e execução do elemento simbólico, apesar do elemento idiomático que tende
a afastar as descobertas em função de um lugar comum. É preciso a
capacidade de intuir, de experimentar o elemento mimético, apesar da
análise que desconhece o subjetivo. Em poucas palavras, é preciso captar o
outro lado dos elementos musicais.
A obra como algo incompleto só é verdadeira, na sua singularidade,
quando o intérprete nadar contra a correnteza, contra os preceitos frios da
musicologia, contra a segurança proporcionada por um idioma já sepultado,
contra a tradição interpretativa pregada e continuada pelo academicismo.
"As grandes interpretações (...) conseguem, de imediato, situar-se acima dos
conflitos entre preconceitos estéticos, dos enfoques demasiadamente novos
e sobrecarregados da erudição musicológica, em suma, consignam algo de
universal à obra. O sentido, assim revelado, não é mais para este ou aquele
53
tipo de homem de tal e qual época, porém, um sentido para o Homem e sua
História" (IMBERTY apud NATTIEZ, 2005, p. 152).
3. A INTERPRETAÇÃO FIXADA
A escrita musical, mais do que um instrumento transformador da
música de concerto ocidental, é uma das fundadores desta música. Desde os
primeiros neumas até as partituras atuais, ela proporcionou uma capacidade
de representação, de gerenciamento das idéias composicionais. A escrita
acrescentou à obra musical a partitura e seus símbolos. A memória coletiva
das culturas orais, transmitida de forma pessoal, passou a ser registrada
nestas páginas. Assim, as pessoas não precisavam mais estar em contato
umas com as outras para obter uma informação; a escrita afastou a
informação do contexto e diminuiu a mediação humana.
Beethoven, por exemplo, considerava um grande benefício, e um
alento, saber que sua música podia chegar a mãos distantes e interessadas
em sua arte, já que, ao seu redor, a competição com a invasão da música
ligeira italiana o deixava em segundo plano na sociedade vienense. Neste
universo, a interpretação passou a ter importância muitas vezes maior que o
próprio texto. Surgiram as escolas, os grupos intelectuais e seus tratados e,
junto, as disputas pelos significados, "desde então, o mundo [a música] se
oferece como um grande texto a ser decifrado" (LÉVY, 1993, p. 89). A escrita
tornou possível o fortalecimento das teorias, aplicáveis de forma universal -
acessível a quem dominasse a técnica; criou a partitura como um objeto
auto-suficiente, e com os sistemas de impressão, o saber, que já podia ser
estocado, pôde ser também distribuído e comparado, possibilitando a
existência de uma cronologia e o surgimento da história.
55
A escrita é uma das esferas que interage, através de seus
componentes simbólicos, com as esferas do compositor e dos intérpretes,
dos músicos e ouvintes, resultando na obra como um fato musical total. Ela é
o traço resultante das estratégias do compositor e o guia para as estratégias
de interpretação (Nattiez, 1990, 70). A escrita foi fundamental na constituição
deste modelo de obra musical que imperou até metade do século XX, e que
sofreu uma modificação profunda com o surgimento de uma outra tecnologia:
o amazenamento do som, a gravação que torna possível se armazenar uma
interpretação.
De fato, a intepretação já podia ser fixada através de instrumentos e
artefatos automáticos como carrilhões, caixinhas de música, realejos, órgãos,
relógios, pianolas, etc. Falamos em interpretação fixada nestes instrumentos
pois, para o seu funcionamento, uma interpretação foi elaborada por alguém
e armazenada de alguma forma, sem que houvesse necessariamente a
performance prévia desta interpretação. A cada instante em que o artefato
toca uma música, ele está reproduzindo a mesma interpretação, com as
mesmas notas, na mesma afinação, com as mesmas relações temporais
previamente estabelecidas. Podem haver pequenas alterações no diapasão e
no andamento, pois estes artefatos sofrem a ação do tempo, mas são
alterações progressivas, ou seja, o instrumento vai perdendo sua eficiência
mecânica, sem modificar as relações sonoras definidas. Em alguns
instrumentos mais complexos, como a pianola, pode-se obter um resultado
musical mais expressivo, devido à sua maior capacidade de controle e
mudança dos parâmetros musicais, inclusive da dinâmica. No entanto, em
artefatos com mecanismos mais simples, o resultado musical parecerá mais
56
automatizado (Freire, 2004, p. 14). Cada um destes instrumentos tem seu
encanto e é capaz de cumprir relativamente bem o papel de reproduzir uma
música.
Em 1877, Thomas Edison (1847-1931) inventa o fonógrafo, que torna
possível capturar, mais do que a interpretação, o som no momento da
performance. Se a escrita foi uma revolução na história da música, a
gravação será outra, com impacto direto em todas as esferas da obra.
3.1 A gravação
"Escritor de sons": poderia ser o outro nome do fonógrafo, palavra
derivada do grego, composta por phoné (voz, sons) e graphé (escrita). O
invento de Edison consistia em um cilindro com sulcos, coberto por uma folha
de estanho. À medida que vibrações do ar eram convertidas em impulsos
mecânicos pelo sistema do aparelho, uma ponta aguda se movimentava em
sua extremidade, desenhando um sulco na folha de estanho. Quando a
gravação estava completa, a ponta era substituída por uma agulha que lia os
sulcos, produzindo o som. Outros "escritores e leitores de sons" foram
inventados logo em seguida, como os desenvolvidos por Alexander Graham
Bell (1847-1922) e o "grafofone", ou gramofone, de Emile Berliner (1851-
1929), que estabeleceu a técnica de gravação e reprodução do som que
imperou até os anos de 1950 (Mumma, 2010).
Inicialmente, o fonógrafo era visto como um armazenador de
informação, assim como a escrita ou a fotografia. A sugestão do fabricante
57
era utilizá-lo como produtor de cartas faladas, na gravação de conversas
telefônicas, na criação de brinquedos falantes, no registro da fala de pessoas
importantes ou mesmo da família, em anúncios comerciais, etc. Apesar da
simplicidade de uso dos aparelhos, sua qualidade sonora era muito ruim, o
que o afastou da música num primeiro momento. Somente após campanhas
publicitárias agressivas é que passou-se a utilizar o fonógrafo como uma
curiosidade que tocava música em hotéis e outros lugares públicos (Iazzetta,
1996, p. 48).
Com uma pequena melhora na qualidade de reprodução do som,
principalmente com o avanço do gramofone, que apenas reproduzia o som, a
música gravada começou a substituir a apresentação ao vivo. É claro que
nunca um aparelho destes poderia chegar próximo de uma qualidade sonora
comparável à do instrumento tocado ao vivo. No entanto, a música do século
XIX dividiu a atividade de interpretação e performance da música. As
composições daquela época atingiram uma complexidade muito alta, o que
exigia um intérprete com grande capacidade de compreensão da partitura e
de controle do instrumento musical.
Isso leva a uma clara distinção entre a música apresentada nas salas
de concerto e a de uso doméstico, a música amadora. Os amadores,
amantes da música, não tinham a condição de competir com os profissionais,
o que leva este termo a ganhar, com o passar do tempo, um ar pejorativo,
como sinônimo de incapacidade, de falta de talento para se executar a boa
música. Neste cenário, o fonógrafo surge como um substituto do músico
profissional nas casas e reuniões familiares. Aos poucos, as pessoas foram
se acostumando a ouvir seus sons distorcidos e ruidosos, até que esta
58
prática tornou-se um padrão de escuta. Se Adorno afirma que a música
ocidental perdeu sua mímese na Idade Média devido à partitura, com os
artefatos de reprodução do som "o público em geral passa a se conformar
com essa nova espécie de fazer musical descorporificado, já que, ao ganhar
a portabilidade da gravação, a música perde o significado corpóreo que
estava associado com a performance ao vivo" (ibidem).
As técnicas de gravação e reprodução do som e o fazer musical
descorporificado provocam o surgimento de uma nova modalidade de
reprodução, chamada de transmissão aural. Nesta nova modalidade, os
ouvintes passam a ter contado direto com gravações produzidas de uma
forma diferente da performance ao vivo, devido aos cortes e edições no
processo de montagem, o que cria uma qualidade sonora específica gerada
no estúdio de som (Freire, 2004, 17).
3.2 A performance construída
Se o fonógrafo e seus sucessores tornaram possível "levar para casa"
uma interpretação profissional, com a substituição da gravação mecânica
pela elétrica começa a surgir, ainda nos anos 1920, uma nova tecnologia que
marcaria a entrada dos meios de gravação e reprodução nos palcos de
concerto: a fita magnética.
O processo de gravação em fitas magnéticas envolve a conversão dos
sinais sonoros captados pelos microfones em impulsos elétricos que são
armazenados analogicamente como fluxos magnéticos ao longo da fita
(Mumma, 2010). A patente deste processo já havia sido requerida em 1898,
59
porém, por motivos econômicos e políticos, somente na segunda década do
século XX as pesquisas em torno desta tecnologia avançam. Elas tomam um
grande impulso nos anos 1930 nos Estados Unidos, que desenvolviam
técnicas próprias de gravação em fita magnética em firmas como a Bell
Laboratories e a Brush Soundmirror, com finalidades militares. Durante a II
Grande Guerra, em 1944, os americanos tomam a Rádio Luxembugo,
ocupada pelos alemães, e encontram uma versão aprimorada do
magnetofone AEG, de tecnologia germânica. Este aparelho inspiraria a
criação do primeiro modelo de gravação por fita magnética de alta fidelidade
para uso em estúdios, produzido pela Ampex Corporation, em 1947 (ibidem).
A disponibilidade de uma tecnologia de gravação e reprodução em fita
magnética de alta fidelidade tornou possível a música eletroacústica. De seu
surgimento na década de 1950 até hoje, temos várias definições para o
termo, que foi se transformando à medida que tecnologias de manipulação do
som surgiram. Podemos simplesmente considerar a eletroacústica como "a
tecnologia que converte a energia acústica em energia elétrica e vice-versa
para o uso artístico" (WHITTALL, 2010), mas neste trabalho vamos preferir
considerar a eletroacústica como "a música que envolve a combinação de
sons vocais ou instrumentais com a manipulação eletrônica destes sons, ou
com sons pré-gravados em uma fita magnética"(ibidem).
Nos anos 1950, no entanto, havia uma clara divisão entre as práticas
de composição que utilizavam a fita magnética como suporte. Uma primeira
forma estava ligada a um rigoroso controle das vibrações eletro-magnéticas
(Freire, 2004, 22); era a chamada música eletrônica, composta pela criação,
manipulação e edição de sons em laboratório, sons artificiais. A segunda
60
forma era a música concreta, também conhecida como eletroacústica em sua
primeira definição, que manipulava e editava sons acústicos, captados por
microfones e posteriormente difundidos através das caixas de som. Com a
evolução dos meios de manipulação, armazenamento e difusão do som,
estas duas vertentes se fundiram em um só conceito.
Este novo processo composicional, em que a música é montada numa
fita magnética e posteriormente apresentada para o público, através de um
equipamento de amplificação sonora, modifica a relação
compositor/partitura/intérprete, que é substituída pela relação compositor/fita.
A figura do intérprete é trocada pela fita que, mesmo com todo o
equipamento de difusão do som, não podemos considerar que realiza algum
tipo de intepretação, não do ponto de vista musical. Se considerarmos em
sentido amplo, os toca-fitas interpretam as informações contidas na fita
magnética e as transformam em sinal acústico; porém, prefirimos considerar
este processo como mera transformação do sinal. Desta forma, a música
eletroacústica, na sua forma mais primitiva, elimina o intérprete e atribui uma
nova função para o compositor, que passa a ser responsável não só pela
construção do material sonoro enquanto estrutura formal, mas também como
um objeto físico que contém latente a performance da obra.
A dispensa do intérprete significa também a ausência da partitura, o
que poderia representar a solução para compositores como Stravinsky e
Schoenberg. O último dizia:"minha música não é difícil, ela é apenas mal
tocada" (COELHO, 2009). A confecção da fita significa que o compositor
passa a construir uma interpretação, na medida em que fica responsável por
definir como serão realizados todos os aspectos físicos do som, como
61
andamentos, dinâmicas e timbres . "O criador termina sua obra e satisfaz
plenamente o desejo de coerência, de unidade, estabelecendo um laço entre
a forma da obra e o material utilizado, entre macro-estrutura e micro-
estrutura" (SAMUEL apud MOTTA, 1997, p. 6).
Outra vantagem em defesa deste processo, assim como ocorreu com
a partitura, foi a difusão da música sem a presença do compositor ou de
qualquer pessoa ligada à confecção da obra. Assim como Beethoven
enviava seus trabalhos para lugares e pessoas desconhecidas, a música
eletroacústica também pode ser enviada, com a vantagem de que não
haverá uma mudança na performance, o que poderia modificar o sentido da
obra - qualidade considerada fundamental por alguns compositores em
momentos de grande instabilidade estética, como o século XX.
A música gravada em uma fita e apresentada para uma platéia é uma
obra totalmente fixada. Alguns compositores só consideram válida a
apresentação deste tipo de música num ambiente de concerto, com todos os
seus rituais envolvidos, o que é um pouco estravagante, "uma obra
totalmente pré-fixada destinada a concretizar-se unicamente ao vivo"
(FREIRE, 2004, 30). Alguns autores defendem que, mesmo nesta situação,
há a figura do intérprete, que tem a incubência de avaliar e tomar as decisões
que influenciem na melhor projeção da obra, tais como posição e tipo das
caixas de som, volume, equalização do som de acordo com o ambiente
acústico, entre outras. (Oliveira, 2009, p. 49).
Se compararmos estas funções, deste intérprete-eletroacústico com o
intérprete de Mozart, por exemplo, poderemos dizer que também em Mozart
é necessária uma adequação acústica do instrumentista à sala; o equilíbrio
62
da dinâmica ou o andamento depende do nível de ressonância do ambiente,
equilíbrio que em ambos os casos será conquistado por meio do aspecto
idiomático. Mas a ausência da partitura como um objeto simbólico, e suas
possibilidades interpretativas, nos levanta uma dúvida sobre a real função
deste personagem que opera os equipamentos de difusão sonora no
momento da apresentação eletroacústica.
A eletroacústica expandiu os limites sonoros da música acústica. Se
observarmos as transformações que a música sofreu do Canto Gregoriano
até hoje, constataremos um aumento do contraste de dinâmica, andamento,
densidade, registro, timbre; uma maior subdivisão do ritmo, incluindo valores
assimétricos; a harmonia incorpora todas as notas, o que resulta na música
atonal. Podemos considerar a música eletroacústica como o ponto final desta
evolução das propriedades físicas do som, pois seus recursos técnicos
permitem explorar todo o universo sonoro de forma contínua, devido ao
controle de dinâmicas - das mais pianíssimas até sons que podem ser
ouvidos a distâncias quilométricas; à sua capacitade de gravar e manipular o
timbre, que permite usar qualquer som disponível na natureza, ou mesmo
fabricar um inédito. A música eletroacústica é capaz de executar com
perfeição qualquer subdivisão do ritmo e mesmo tocar em qualquer
velocidade.
Apesar de toda a riqueza de novos sons e possibilidades de seu
controle, Karlheinz Stockhausen (1928-2007), um dos pioneiros da música
eletroacústica, observa que o controle e a fixação da interpretação e
performance resultavam em algo pouco expressivo; a "precisão" da máquina
diminuía a expressividade da música. Segundo Motta, Stockhausen até
63
conseguiu resolver alguns problemas de expressividade do timbre com novas
formas de síntese sonora. Porém, o compositor se entregava à
impossibilidade de se determinar, precisa e rigorosamente, a totalidade dos
aspectos constituintes do fato sonoro. Stockhausen diz que
"na música mais severa, aparentemente 'pensada até o fim' e 'precisa'
em princípio nos seus mínimos pormenores, sobrevêm coisas sobre as
quais não temos qualquer poder, que escapam ao pensamento do
ordenador, como a inspiração súbita, como o desejo, em geral, de
fazer música" (STOCKHAUSEN apud MOTTA, 1997, p. 7).
Hoje a música eletroacústica já é mais compeendida e aceita.
Podemos supor que o tempo decorrido de seu surgimento até os dias de
hoje, proporcionaram uma aprendizagem de escuta desta música. A grande
dificuldade de aceitação desta música na década de 50 certamente estava
ligada à novidade estética, novidade que não se apresenta mais.
Logo após seus primeiros passos, a eletroacústica começa a
perseguir a expressividade. Apesar da expansão do universo sonoro que ela
provocou - o que significa até hoje uma série de mudanças nos paradigmas
da música- a ausência do intérprete, e do aspecto idiomático, em seu sentido
estrito, foi notada. Desde então, seus criadores propõem alternativas para
tornar a música da interpretação fixada em algo tão poderoso quanto a
música em sua acepção tradicional. O primeiro passo dado nesta direção foi
a proposta de uma nova formação camerística, a do intérprete que toca junto
com a fita magnética. Nas palavras do compositor argentino Mário
64
Davidovsky (1934-), "a introdução do instrumento eletrônico de mãos dadas
com o intérprete ao vivo iria diminuir o impacto de caixas de som gritando
para você. A mistura de sons eletrônicos com instrumentos, que são mais
familiares, torna os eletrônicos mais aceitáveis por parte do ouvinte
(BASSINGTHWAIGHTE, 2002).
3.3 Flauta e fita magnética
A música para instrumento e fita - neste trabalho vamos apresentar
sempre casos que envolvam a flauta - apresenta aos intérpretes, e também
aos compositores, algumas necessidades. A primeira diz respeito ao
conhecimento tecnológico necessário para a interpretação e a performance
deste tipo de repertório. Aparentemente não é preciso muito neste caso,
apenas apertar o play de um reprodutor de som qualquer. No entanto, cuidar
para que o som tenha a melhor qualidade possível também é de
responsabilidade do intérprete. Assim como há a preocupação no estudo do
instrumento, com o objetivo de se obter seu melhor rendimento, na música
para flauta e sons pré-gravados é preciso um conhecimento que permita a
escolha de caixas de som, seu posicionamento, a equalização do som e seu
equilíbrio com o instrumento acústico. Estas decisões nem sempre são
facultadas a quem toca, pois em muitas salas de concerto não é possível se
fazer todos os ajustes, mas alguns deles sempre serão possíveis.
Um segundo aspecto diz respeito à interação entre o intérprete e a fita:
como podemos sincronizar temporalmente as duas vozes e como ocorre a
interação tímbrica entre elas. No caso de uma fita magnética, não temos
65
muito controle sobre seu andamento; uma vez fixado o material, ele sempre
será tocado na mesma velocidade. Pode-se no máximo parar e recomeçar a
fita, apertando o pause/play. Justamente este recurso, de parar e continuar,
foi o utilizado por Davidovsky em Synchronisms nº1 (1963) (Gravação e
partitura anexos), uma das primeiras obras para flauta e fita magnética
(ibidem), em que cinco pequenas partes do tape devem ser disparadas em
momentos assinalados na partitura. Este artifício garante a sincronia da
macro-forma entre o intérprete e a fita, sendo que, na micro-forma, o
compositor não exige uma sincronização rigorosa. Como não há
especificação quanto à sincronia da micro-forma, cabe ao intérprete o estudo
da composição sonora da fita para estabelecer ou não pontos de referência.
Esta liberdade interpretativa é uma forma de combater a performance rígida
da parte eletroacústica e, consequentemente, garantir uma maior
expressividade à obra e a maior participação de seu elemento idiomático.
É preciso também pensar a interação entre os sons eletrônicos e os
acústicos do instrumento, para que o resultado não seja apenas uma
superposição de vozes. Além de todos os procedimentos da composição
tradicional, tais como relações temáticas, harmonias e rítmicas, a interação
tímbrica é um elemento-chave nesta relação. Como foi dito anteriormente, a
eletroacústica permitiu à música explorar toda a sua potencialidade sonora,
dos limites auditivos mais graves aos mais agudos, em qualquer velocidade,
ritmo ou timbre sendo que qualquer parâmetro é passível de modulação. Esta
nova cultura sonora tem uma influência direta nos instrumentos acústicos,
que passam a pesquisar e utilizar mais frequentemente o que hoje se
66
denominam técnicas estendidas, formas de tocar o instrumento que vão além
das intenções originais do construtor (Davies, 2010).
Em Synchronisms nº1 já podemos observar um uso, ainda que
discreto, em que o compositor pede para que as chaves da flauta sejam
percutidas, simultaneamente ou não, à emissão do som. Este efeito
percussivo aproxima a flauta de alguns sons produzidos sinteticamente na
fita de Davidovsky. Ao falarmos de Synchronisms nº1, estamos falando de
uma obra com pouco menos de quatro minutos, na qual a atuação simultânea
da fita com o instrumento não ocorre em toda a obra. Em sua última parte,
Synchronisms permite ao flautista tocar solo, o que remete o músico aos
cânones da interpretação tradicional. Nos segundos finais, a eletrônica se
junta para finalizar a obra.
Já em A Escada Estreita (1999), do compositor português João Pedro
Oliveira (1959-) (gravação e partitura anexos), temos outra situação. Trata-se
de uma peça de 8 minutos e 30 segundos, em que a fita toca
ininterruptamente e exige uma grande sincronização com o intérprete. Sob o
ponto de vista do conhecimento tecnológico, necessário para a performance,
não há diferença da obra de Oliveira com relação à Synchronisms nº1. De
forma geral, a formação instrumento/tape é extremamente simples sob este
aspecto, o que a torna mais acessível ao intérprete, que normalmente não é
preparado tecnologicamente para a abordagem do repertório da música
eletroacústica.
No entanto, existem outras questões numa obra desta natureza. A
primeira diz respeito justamente à sincronização do tempo entre as duas
vozes. Na obra A Escada Estreita, a escrita é tradicional e a parte da
67
eletroacústica é quase toda escrita no pentagrama superior, de forma a
possibilitar ao intérprete acompanhar o que está acontecendo e manter a
sincronia. Os sons eletroacústicos, em sua maior parte, seguem as
delimitações rítmicas dos compassos, com suas relações proporcionais
métricas, ou seja, estão construídos ritmicamente a partir de semínimas,
colcheias, etc, e não valores de duração absolutos, o que facilita sua
compreensão e controle no fluxo do tempo. Além disso, o compositor fornece
duas partes gravadas: uma apenas com os sons que ele preparou, editou e
gravou; e outra que acrescenta um click, uma batida de metrônomo sobre os
sons gravados. Estes artifícios são bastante eficazes para o controle da
sincronização por parte do intérprete, sendo que muitos costumam
apresentar-se ao vivo ouvindo o click em um fone de ouvido individual.
Todo este aparato, porém, é contrário à liberdade do intérprete, tolhe
muito o aspecto idiomático e a mimese da música. Seria possível imaginar
um grande concertista tocando com um metrônomo um concerto de Mozart,
por exemplo? Na música contemporânea podem até existir alguns casos em
que tocar ouvindo o metrônomo seja necessário, mas não é o caso da obra
de Oliveira e nem da maioria deste tipo de repertório. Mas mesmo que o
intérprete escolha tocar sem o click, a questão da sua liberdade ainda
persiste.
Uma decisão interpretativa que pode ser tomada é a utilização de
pequenos rubatos, pequenas flutuações rítmicas na voz do intérprete, que o
permitam criar uma flexibilidade melódica sem perder o controle do tempo e
da posição dos sons pré-gravados. Pode-se começar ligeiramente antes do
68
pulso uma figura, acelerá-la até alcançar o tempo novamente, como no
exemplo abaixo:
fig. 1 – Rubato. João Pedro Oliveira, A Escada Estreita, comp. 9
Pode-se também fazer um rubato mais livre, como neste caso, em que
a flauta toca sem a eletrônica, tanto no início como no final do gesto:
fig. 2 - Rubato. João Pedro Oliveira, A Escada Estreita, comp. 24
69
Ou mesmo realizar um pequeno ralentando em situações como esta:
fig. 3 - Ralentando. João Pedro Oliveira, A Escada Estreita, comp. 96
Estas pequenas alterações, combinadas com as possibilidades da
dinâmica, que se mantêm abertas ao intérprete, como na música tradicional,
diminuem a impressão de se estar tocando com um metrônomo incrustado
nos sons pré-gravados. Também os sons eletroacústicos embaçam o
contorno do pulso, pois muitos deles não têm um ataque muito definido, e
mesmo seu corpo é bastante confuso ritmicamente.
Podemos questionar o motivo da escolha deste tipo de formação e
tecnologia que dificulta a expressividade do intérprete, pois não tem
nenhuma flexibilidade, devido à rigidez da fita e sua interpretação fixada pelo
compositor. Porém, alguns motivos são indicativos desta escolha:
primeiramente, a disponibilidade tecnológica: só é preciso um equipamento
capaz de reproduzir um CD de áudio, numa intensidade que rivalize com o
instrumento acústico em questão. Este CD também é mais fácil de distribuir e
não apresenta muita margem de erro no momento de sua execução. De
forma geral, os intérpretes atuais não têm uma formação que os permita
manipular equipamentos e programas de computador mais complexos, como
70
os necessários para o uso em composições nas quais o computador reage
aos gestos musicais do intérprete. Para o compositor é mais fácil elaborar os
sons e fixá-los na fita do que inventar todo um sistema que os crie e
transforme em tempo real, no momento da performance.
Por fim, a defesa que o compositor da Escada Estreita faz da
eletroacústica pré-gravada é composicional. Segundo ele, com este
procedimento pode-se facilmente realizar na fita idéias musicais que serão
completadas pelo intérprete e vice-versa; pode-se criar um diálogo em que os
dois falam e respondem. Isso quer dizer que um motivo qualquer, que tenha
seu início partindo dos sons pré-gravados, pode ser completado ou
transformado pelo instrumentista, o que não é muito comum em outros
sistemas tecnológicos. Nos sistemas em que o computador reage ao
intérprete, sempre é preciso que este produza algo para que aconteça a
reação, mesmo que ela ocorra num momento muito à frente na forma. Não é
a prática comum, neste tipo de repertório, inverter-se a ordem dos fatores;
em certos momentos, isso é até mesmo impossível.
O início da Escada Estreita já demonstra esta possibilidade. Seus três
primeiros compassos são uma miniatura do início de um concerto, onde a
orquestra de sons eletroacústicos se apresenta e, no final, sobra a linha do
intérprete solista que vai se apresentar.
71
fig. 4 - Os três primeiros compassos. João Pedro Oliveira, A Escada Estreita,
comp. 1-3
O gesto musical iniciado pela eletroacústica e concluído pelo intérprete
é uma grande solução para a integração entre as duas vozes. Pode-se
utilizar qualquer procedimento composicional da tradição sem o
comprometimento da continuidade, nem qualquer interrupção da linha do
gesto. Esta solução permite ao compositor criar texturas contrapontísticas
imitativas sem qualquer problema de sincronização e com total integração
entre as vozes, uma característica que delimita esteticamente este tipo de
obra.
No entanto, a prática de se agrupar o intérprete com sons pré-
gravados tem seus aspectos limitadores da perfomance. Se Eco diz que "não
é possível 'manter' a "essência" de uma obra, mas sim "revelá-la" a partir das
diversas leituras que cada executante imprime a sua interpretação" (ECO
apud APRO, 2006, p. 29), a capacidade de ser revelada a cada leitura ainda
está presente graças à presença do intérprete de seus ritos tradicionais de
decodificação da partitura. Porém, o elemento idiomático tem a sua ação
diminuída em razão da fixação da interpretação, criada pelo compositor.
A história também tem uma ação diferente sobre estas obras que
envelhecem de um jeito próprio. Por causa da alta velocidade de
72
transformação dos equipamentos e softwares utilizados no processamento do
som, A Escada Estreita apresenta uma riqueza tímbrica e gestual muito maior
do que Synchronisms nº1. Apesar de atualmente se utilizarem aparelhos
novos para a difusão do som, o que foi gravado não se modifica, não é o
mesmo que tocar Bach em uma flauta moderna. Estas obras trazem a
história não apenas nas idéias, mas em seu objeto concreto; elas não têm
mais a partitura que amarelava e ficava carcomida com o passar dos anos.
Anteriormente, a obra musical era composta por relações entre o
compositor e o intérprete mediadas pela partitura- dimensão composta pelos
signos musicais dispostos no papel ao gosto do compositor e interpretados
ao entendimento do intérprete. A música para instrumento e sons pré-
gravados acrescenta um novo elemento, que por um lado restringe o aspecto
idiomático, mas por outro aproxima mais o compositor do intérprete, que não
somente lê, como também ouve suas idéias.
4. A INTERPRETAÇÃO FLEXIBILIZADA
O território da música eletroacústica mista, obra que envolve
conjuntamente os sons eletroacústicos e os produzidos por um instrumento
acústico, pode ser separado em dois. De um lado, temos obras em que os
sons eletroacústicos são fixados pelo compositor, cabendo ao intérprete a
tarefa de tocar seguindo a rigidez da parte dos sons pré-gravados, tema
apresentado no capítulo anterior. A outra parte do território é composta pelas
obras em que o intérprete manipula, ao vivo, os meios eletroacústicos.
Tradicionalmente, a música de concerto eletroacústica é dividida em
três categorias: as obras sonoramente pré-fixadas, em que todos os sons e a
forma estão registrados e fixados num suporte como a fita magnética
(chamada de acusmática); obras que mesclam o intérprete tradicional com
meios eletroacústicos (obras mistas); e as que utilizam instrumentos não-
tradicionais, que podem ser desde microfones, filtros de áudio ou sistemas
digitais interativos (live-electronics ou eletrônica ao vivo) (Freire, 2004, p. 96).
Esta divisão é baseada nos elementos físicos da música: se tem sons pré-
gravados, se há a presença do intérprete ao vivo ou se há a presença de
aparelhos modificadores do som ao vivo.
Para a música praticada hoje esta classificação é, na maioria das
vezes, difícil de ser aplicada. Em uma obra mista, o intérprete pode apenas
tocar junto com sons pré-gravados; ter seu som amplificado por um
microfone, às vezes apenas com o objetivo de amalgamar melhor as duas
vozes; ou pode ter seus sons captados e processados em tempo real pelo
computador. Podemos ainda apontar a possibilidade de uma mesma obra
74
apresentar partes pré-gravadas e processadas ao vivo, ao mesmo tempo.
Isso nos leva a concluir que é impossível a divisão entre obra mista e live-
eletronics, conforme esta classificação tradicional, no momento atual.
Freire também considera esta classificação ineficiente e propõe uma
metodologia que aborda os elementos presentes num concerto
eletroacústico: alto-falantes, obras ou partes pré-gravadas, a performance
instrumental tradicional, os novos instrumentos controladores (Freire, 2004, p.
96). Ele propõe ainda uma subdivisão deste último elemento em live-
electronics (uso de microfones, filtros, reverbs, delays) e sistemas interativos,
que utilizam a informática como suporte (ibidem, p. 153). Esta proposta é
interessante, pois permite uma composição entre os diversos elementos, de
acordo com a música apresentada. No entanto, não se utilizam mais
aparelhos de filtragem ou produção de reverberação no palco. Toda esta
parafernália foi substituída pelo computador, assim como toda obra
eletroacústica utiliza de alguma forma um alto-falante.
A velocidade de transformação dos equipamentos utilizados, tanto na
composição como na performance da música eletroacústica, rompe com
qualquer possibilidade de classificação, o que nos remete ao termo música
para flauta e meios eletroacústicos, sejam eles quais forem. No entanto, do
ponto de vista do intérprete, podemos apontar a forma como ele se relaciona
com estes meios, no momento da preparação da interpretação e da
performance.
75
4.1 Interface
No universo da música feita com computadores, um termo é comum e
importante no estabelecimento da relação da máquina com o homem: a
interface.
Interface é um dispositivo, material e/ou lógico, que permite a troca de
informações entre dois sistemas; ela "conecta dois agentes ou objetos,
permitindo que comuniquem entre si" (IAZZETA, p. 105). A interface tem a
função de codificar e traduzir a informação a ser trocada entre dois agentes,
ou seja, possibilita que a informação atinja seu receptor e possa ser
compreendida por ele.
Embora o termo tenha sido popularizado com a ascensão do
computador, em virtude das suas interfaces de áudio, vídeo ou texto (placas
de som, monitores de vídeo e teclado), sua importância é notada em
qualquer sistema de comunicação. Na música de concerto, talvez a mais
importante e eficaz seja a partitura, uma interface de duplo sentido. De um
lado permite que o compositor registre suas idéias em um suporte, do outro
torna possível alguém resgatar estas idéias sem a presença física do
compositor. Como discutido anteriormente, sua eficácia está justamente na
sua incompletude, na necessidade do intérprete lhe conferir os elementos
ausentes do sistema. Outra interface de destaque na música de concerto é o
instrumento, que traduz as ações físicas e mentais do intérprete em som, o
que torna possível o acontecimento musical.
Dos anos 50 para cá, houve um grande desenvolvimento das
tecnologias eletrônicas, em especial as digitais, o que transformou o cenário
76
da música eletroacústica mista. Ao longo de sua curta história, as novas
tecnologias disponibilizadas têm sido resultado da busca de músicos e
engenheiros por soluções que ofereçam ao intérprete pleno domínio dos
meios eletroacústicos e permitam que ele realmente possa ter uma atuação
interpretativa e performática completa, como na música puramente acústica.
Em sua primeira configuração, a obra mista somente exigia o
acionamento de um botão, apertar o play de um reprodutor de som. A
interface do intérprete com a máquina se resumia a este comando, em alguns
casos sendo necessário o uso da tecla pause, como em Synchronisms nº1.
Essas obras para flauta e sons pré-gravados também exigiam a presença de
um técnico responsável pelos acionamentos, pois o intérprete estava
ocupado com o instrumento.
Hoje são inúmeras as possibilidades de interfaces entre o músico e a
máquina. Dos mais simples pedais até a capacidade do computador decifrar
comandos vindos diretamente do cérebro, podemos nos fazer entender pelas
máquinas praticamente através de qualquer um de nossos sentidos, e algo
mais. No entanto, muitas destas interfaces são caras e dependem de
conhecimentos e sistemas tecnológicos muito sofisticados, que não estão
disponíveis para o concertista comum. Mesmo assim, as que são de fácil
acesso oferecem um leque variado de formas de comunicação com a
máquina.
Considerando que o flautista tem suas mãos comprometidas com o
controle e a sustentação do instrumento, algumas interfaces que dependem
do acionamento manual de botões não são práticas; elas necessitam de um
tempo relativamente grande entre tirar a flauta da posição, acionar o
77
comando e retornar à posição inicial. É possível que o compositor preveja
este tempo e coloque na parte do flautista um silêncio que permita executar
esta operação. No entanto, a estética da música poderia ficar comprometida
em função da necessidade de um grande número de silêncios operacionais.
Outras interfaces mais sofisticadas como flautas MIDI controladoras,
aparelhos eletrônicos que têm a capacidade de controlar um banco de som e
são tocados de forma semelhante a uma flauta doce ou saxofone, não se
encaixam na proposta do trabalho, que é sempre ter a figura do flautista e
sua flauta de concerto na formação eletroacústica.
Desta forma, são três as interfaces mais práticas e acessíveis ao
flautista: os pedais controladores, o hiper-instrumento e o computador com o
processo de score-following.
4.2 Pedal
O uso de pedais é uma simples troca do acionamento de controles
pelos pés em substituição às mãos, que estão ocupadas com o instrumento.
Em obras com sons pré-gravados, seu uso permite ao intérprete acionar e
parar a reprodução da parte eletroacústica com extrema precisão, no
momento desejado. Esta foi a solução utilizada na obra A Atra Praia de
Saturno (2002), do compositor mineiro Rogério Vasconcelos (gravação e
partitura anexos).
A duração aproximada da obra é de dez minutos e, no processo de
composição, a intenção era de que se produzisse apenas uma faixa com todo
o material eletroacústico gravado. Depois de discussões com o intérprete,
78
que trabalhou junto ao compositor no processo de criação, decidiu-se dividir a
faixa eletroacústica em dez fragmentos, acionados pelo intérprete através de
um pedal. Sem esta estratégia seria praticamente impossível tocar a peça,
por causa de trechos relativamente longos em que o flautista toca sem a
companhia da eletroacústica. A parte "C", por exemplo, tem um trecho de
seis compassos em que a flauta toca solo, sem a referência externa dos sons
pré-gravados. Caso não se utilizasse o pedal, a única solução para este caso
seria decorar o tempo disponível para se tocar este trecho.
Além de facilitar a sincronia entre partes maiores sem sacrificar a voz
da flauta - que não precisa ser tocada mais rápida ou lentamente para
começar um novo trecho junto com a eletroacústica - a fragmentação em
faixas permite também uma sincronia dos pequenos gestos, momentos em
que a partitura exige uma grande precisão de entrada, como nos fragmentos
3 e 7.
fig. 5 - fragmento 3. Rogério Vasconcelos, A Atra Praia de Saturno, letra C, p. 2.
Antes da entrada do fragmento 3, podemos observar grandes
alterações no andamento com a presença de um poco accelerando, uma
respiração e um calmo subito, seguido de uma fermata. As mudanças no
tempo e suas suspensões, respiração e fermata, conferem à Atra Praia uma
expressividade típica da música instrumental solo, e este efeito só é possível
79
graças ao pedal. Ele permite ao intérprete tomar o tempo desejado para se
expressar, realizar todas as indicações da forma sem estar preso ao
"metrônomo" dos sons pré-gravados, e iniciar o próximo trecho da música
sincronicamente com a eletroacústica.
fig. 6 - fragmento 7. Rogério Vasconcelos, A Atra Praia de Saturno, letra D, p.
4.
No caso do fragmento 7, observamos um procedimento típico da
composição para instrumento e sons pré-gravados. O compositor coloca uma
respiração com fermata antes do início de uma parte eletroacústica, de forma
a permitir que o intérprete espere até o momento certo, garantindo a
sincronia na entrada do próximo trecho. No entanto, há uma pequena parte
em que o flautista toca solo após a fermata. Além disso, a entrada do
fragmento 7 ocorre na metade do tempo, o que é um dificultador. Outra
questão é que tanto a eletroacústica como a flauta têm um tipo de ataque
muito marcado, o que torna mais necessária uma sincronia perfeita, pois
neste caso é mais fácil se perceber a defasagem entre as vozes.
O uso do pedal nesta obra confere uma liberdade ao intérprete muito
maior do que se a obra apresentasse apenas uma faixa com os sons pré-
gravados. Mesmo assim, há vários outros trechos que exigem muita precisão
do tempo por parte do intérprete para garantir a sincronia.
80
fig. 7 - trecho da parte "B". Rogério Vasconcelos, A Atra Praia de Saturno, letra B, p. 1.
O exemplo acima inicia-se no oitavo compasso da parte "B" da Atra
Praia. Ao ouvirmos a gravação, vamos perceber que há um som bem
acentuado na eletroacústica que preenche a pausa de colcheia da quiáltera
do compasso 10. Os sons que antecedem este momento constituem uma
textura de notas longas que torna impossível ao intérprete perceber qualquer
tipo de pulso. Desta forma, resta ao intérprete apenas o ritmo de sua parte
como referência do tempo. Como ele não tem a precisão do relógio, tem que
realizar um grande esforço para conseguir sincronizar suas colcheias de
quiáltera com a da máquina. Seria até possível criar uma programação para a
utilização do pedal neste momento, mas existem várias outras situações
semelhantes na obra que tornariam seu uso pouco prático.
Na composição da obra, Vasconcelos utiliza muito uma situação em
que a flauta é imitada em seguida pela eletroacústica. Do ponto de vista da
composição é bastante interessante, pois o efeito obtido é que os sons do
instrumento estão sendo transformados em tempo real. Como não é isso que
está acontecendo realmente, cria-se um dificultador para o intérprete, que
tem que tocar e terminar sua frase precisamente antes destes gestos pré-
gravados, de forma a criar a ilusão de imitação. Em todos estes momentos,
exige-se um controle do tempo muito grande do flautista, pois não há como
se interferir na máquina através do pedal.
81
Em uma obra para flauta e sons pré-gravados, o uso do pedal é
bastante prático como articulador da forma, como delimitador e iniciador de
grandes partes, mas seu uso na micro-forma não se mostra muito prático.
Teoricamente, pode-se até disparar nota por nota através desta interface,
mas além de inviável em razão do número excessivo de acionamentos, isso
prejudicaria completamente a expressividade por parte do instrumentista.
Como interface, suas qualidades ainda podem ser estendidas pela
simplicidade do uso e programação, disponibilidade de compra e flexibilidade
e pelo preço baixo. Junto com o computador, um pedal pode virtualmente ser
programado para fazer qualquer coisa. Outro aspecto importante é sua forma
de funcionamento: não é preciso o desenvolvimento de uma habilidade física
específica para utilizá-lo, apesar de ser necessário alguma prática para o
intérprete conhecer bem sua sensibilidade ao toque.
4.3 Hiper-flauta
O hiper-instrumento é um instrumento acústico acrescido de sensores
que o conectam ao computador ou a qualquer outro aparelho, tornando
possível controlar os parâmetros de processamento do som digital durante a
performance ao vivo.
A idéia de colocar sensores em um instrumento surgiu nos anos 80,
com o trabalho de Tod Machover e Joseph Chung. A idéia dos dois
pesquisadores era expandir as técnicas instrumentais existentes, construindo
instrumentos capazes de oferecer uma série a mais de controles, além dos já
presentes em uma flauta; ou seja, se era possível controlar a altura das notas
82
ao mover as chaves, os sensores permitiram também controlar a mudança
do timbre à medida que se aproxima ou se afasta da luz, por exemplo. Desta
forma, toda uma técnica adquirida ao longo de anos de prática do
instrumento tradicional seria aproveitada, associada às novas formas de
controle passíveis de serem exploradas pelos sensores.
Machover e Chung acreditavam que a expansão técnica do
instrumento, o conhecimento adquirido do performer e a nova música iriam
redefinir a expressão musical. Sua ênfase era num instrumento que fosse de
fácil aprendizado, funcional, dentro de um conceito de simplicidade que
favorecesse o aprendizado e o interesse dos músicos profissionais
(Machover e Chung, 1989, p. 186).
A intenção dos criadores do hiper-instrumento é confirmada pelo
depoimento da flautista Cléo Palacio-Quintin. Ela diz que quando decidiu
tocar flauta com live-electronics queria preservar a intimidade da relação
entre seu corpo, seu instrumento e o som produzido. Esta preocupação de
Palacio se deve ao fato de que muitos instrumentos eletrônicos,
desenvolvidos a partir dos anos 80, não guardavam uma relação direta entre
a forma de tocar e a produção do som. Como exemplo podemos citar um
instrumento desenvolvido por Machover, a exos dexterous hand master.
Trata-se de uma luva que tem a capacidade de controlar sons, assim como
um instrumento tradicional, porém sem uma relação direta do movimento com
a produção do som; ou seja, ao mexer um dedo podemos tocar a nota “Lá”,
uma escala indiana, ou mesmo fazer uma luz acender remotamente. Através
da hiper-flauta, desenvolvida por Palacio, ela afirma: "queria manter intacta a
riqueza acústica da flauta, e meu jeito de tocar. O computador se transformou
83
numa extensão virtual do instrumento acústico" (PALACIO-QUINTIN, 2003, p.
206).
A hiper-flauta de Palacio, além de funcionar como uma flauta
tradicional, conta com os seguintes recursos:
- sensores magnéticos, que detectam a posição da chave do sol# e do dó#
grave,
controlados pelos dedos;
- um tradutor de ultra-som, que monitora a distância entre a flauta e o
computador;
- um sensor de movimento, ativado pelo inclinar ou rodar a flauta;
- sensores de pressão, colocados próximos aos pontos de apoio das mãos
direita e esquerda da flauta;
- sensor de luz, que reage à quantidade de luz do ambiente;
- interruptores, que enviam comandos de ligar e desligar algo.
Como observamos, a hiper-flauta é relativamente complexa de ser
montada, se comparada com o pedal, por exemplo. É um instrumento
personalizado, o que dificulta o trabalho do compositor, que tem de escrever
especificamente para aquele instrumento. Mas a proximidade entre
compositor e intérprete possibilita a criação de obras, o que nos remete à
prática interpretativa do período barroco, quando esta situação era a mais
comum.
84
fig. 8 – Cleo Palácio-Quintin, Academia de Música da Noruega, setembro de
2009 e uma hyperflute.
A sofisticação da hiper-flauta de Palacio torna seu acesso distante e
difícil para o intérprete comum. A solução encontrada por Matthias Ziegler,
de potencializar o som da flauta, pode ser também categorizada como uma
hiper-flauta. Por ser um especialista e entusiasta das flautas graves, Ziegler
depara-se com uma catacterística destas flautas, que é o baixo volume
sonoro. Isso poderia facilmente ser contornado com o uso de microfones,
porém sua intenção não era apenas amplificar o som tradicional das flautas,
85
mas amplificar também outros sons inaproveitados no repertório tradicional,
que fazem parte das técnicas estendidas do instrumento.
Desta forma, com o auxílio da construtora de flautas Eva Kingma,
Ziegler fez vários furos em locais estratégicos de seus instrumentos e soldou
pequenos tubos, que funcionam como encaixes de microfones de lapela.
Este procedimento permite que Ziegler obtenha sonoridades novas no
instrumento, além de amplificar as já utilizadas de uma forma mais eficiente.
Por isso, ele defende que não sejam utilizados metais nobres na fabricação
das flautas, para que não “doa muito em seu coração” na hora de pesquisar
novos lugares a serem perfurados no instrumento (Ziegler, 2007).
4.4 Score-following
Seguir a partitura nada mais é do que um processo no qual o
computador ouve o intérprete ao vivo e é capaz de identificar sua posição na
partitura, em tempo real. Neste caso, temos pelo menos três interfaces
conectadas: o microfone, que capta o som; o computador, que transforma o
sinal do microfone em números; e o programa, responsável pela tarefa de
comparar as informações que chegam do microfone com a partitura.
De fato, a interface neste caso é o computador, mas sua complexidade
nos permite colocá-lo tanto nesta categoria como em outras, dependendo do
uso que lhe é conferido. Se consideramos a partitura uma interface entre o
compositor e o intérprete, o software é uma interface entre o intérprete e o
computador e, no caso do score-following, uma interface entre o intérprete e
a partitura arquivada na máquina.
86
Existem infinitas possibilidades de se programar um processo de
score- following, mas basicamente o que ocorre é o seguinte: o microfone
envia um sinal de áudio que é digitalizado pelo computador, ou seja,
transformado em números. No programa existem ferramentas capazes de
identificar qual nota está sendo ouvida; portanto, elas recebem o áudio,
identificam qual nota está sendo tocada e soltam a informação. Por exemplo,
“a flauta tocou a nota dó3”. Esta nota é comparada com uma partitura
numérica arquivada na memória do programa que, por sua vez, executa a
ação prevista para o momento em que a flauta tocar a nota dó3. Esta ação
pode ser tocar um trecho musical pré-gravado, acionar algum dispositivo de
filtragem ou mesmo de síntese do som que está entrando no computador.
fig. 9 - score following. Kaija Saariaho, NoaNoa, comp. 3.
No exemplo fica mais fácil visualizar o funcionamento. Como
observamos na partitura, o intérprete tem que tocar a nota sol bemol. No
momento em que isso ocorre, o computador registra esta nota e realiza a
ação de número 2, ligar a reverberação. Desta forma, o que o intérprete
precisa saber, a princípio, é que cada número dentro de um círculo, abaixo
de sua linha na partitura, corresponde a um comando que será dado pelo
computador quando a nota correspondente estiver sendo tocada, no caso o
sol bemol.
87
É claro que em obras grandes existem várias notas que se repetem.
Nestes casos, o computador vai lendo todas, à medida que são tocadas, e
contando até a marca correta. Entretanto, apenas definir as ações do
computador por meio da nota aumenta a possibilidade de erro: o intérprete
pode tocar uma nota a mais ou mesmo errar alguma e atrapalhar a
contagem. Por isso, outros parâmetros também são considerados.
Um deles é uma margem de tempo aproximada. Na programação, se
imagina mais ou menos quanto tempo se leva para chegar a um evento
determinado e se define uma margem para mais e para menos, de forma que
o evento ocorra dentro do limite determinado. Esta janela de tempo deve ser
bem ampla e serve apenas para determinar um campo amplo de ação.
Um segundo parâmetro é o ritmo. Pode-se determinar a duração
aproximada da nota para o computador reconhecer se é ela mesma que deve
ser tocada ou não. Pode-se simplesmente criar na programação duas
categorias, um valor curto e outro longo.
Outro parâmetro é a dinâmica. Pode-se criar uma correspondência
entre um som piano e um volume sonoro de forma que, se a nota é tocada no
volume sonoro correspondente, o computador entende a nota como correta.
Podem-se estabelecer outros parâmetros que comandem a máquina,
como o timbre, o movimento do intérprete, do instrumento, entre outros. No
entanto, a combinação da altura com a duração e a dinâmica já proporciona
uma carga de informação suficiente para que o computador possa seguir o
intérprete.
O score-following foi desenvolvido em 1984, de forma independente,
por Barry Vercoe e Roger Dannenberg, sendo que a primeira obra para flauta
88
que faz uso deste processo é Jupiter (1987), de Philippe Manoury (1952-).
Em NoaNoa (1992), de Kaija Saariaho (1952-), podemos observar o
funcionamento do score-following e as possibilidades de interação do
computador com o som do intérprete que este tipo de interface controladora
pode proporcionar numa música para live-electronics.
A mais comum é disparar uma faixa com sons pré-gravados. O evento
de número 16, que inicia-se no compasso 46 e termina no compasso 53, é
composto por uma voz acrescida de sons de flauta processados em
laboratório, ou seja, não são provenientes da flauta que toca ao vivo.
Diferentemente da música para instrumento e sons pré-gravados, em que o
intérprete tem que seguir o tempo da parte eletroacústica, neste caso, assim
que ele chegar ao ponto de acionamento do evento 17, o 16 será desligado
imediatamente. Este processo garante ao intérprete uma liberdade de
andamento que não ocorre no caso da música para flauta e sons pré-
gravados.
fig. 10 - sons pré-gravados. Kaija Saariaho, NoaNoa, comp. 46-47.
Uma segunda possibilidade é a de modificação do som através de
processadores de efeitos. Logo na primeira nota da peça, a compositora
determina a presença de uma reverberação "infinita", que na prática significa
uma reverberação que dura muito tempo. O que é importante para o
89
intérprete saber, neste caso, é que a nota disparadora do evento é o dó
porém a nota que a compositora deseja que seja reverberada é o mi. Na
partitura observamos que o dó fusa, sem indicação de dinâmica, e o mi com
um sforzatto. Como o dó aciona o efeito, portanto é também capturado, cabe
ao intérprete equilibrar a dinâmica das duas notas de forma a realçar o mi,
além de tocar o dó com uma duração curta suficiente para que fique mais
discreto e sua reverberação termine rapidamente. O resultado que se tem é a
impressão que apenas o mi foi prolongado.
fig. 11 – reverberação. Kaija Saariaho, NoaNoa, comp. 1.
Por fim, no compasso 163, há um efeito de modificação do som da
flauta através da ação de filtros e processamentos que resultam numa
espécie de acorde distorcido.
fig. 12 - som processado. Kaija Saariaho, NoaNoa, comp. 163-165.
90
O score-following é, sem dúvida, uma grande ferramenta para o live-
electronics. Sua capacidade de resposta à ação do intérprete e a dispensa de
outros artefatos, como o pedal, dão para o intérprete quase uma sensação de
estar tocando com um grupo de câmara, em virtude das reações imediatas
do computador.
No entanto, a diferença fundamental é que no score-following toda a
responsabilidade pelas ações interpretativas e performáticas cabe ao
intérprete, ou seja, cabe a ele não só conceber sua interpretação da partitura
tradicional, como também preparar a interpretação eletrônica da máquina.
Isso significa dizer que ele deve calibrar o programa para entender o que está
tocando, assim como calibrar a saída de som; quanto de efeito sofrerá uma
nota, por exemplo.
A fig. 13 é uma página secundária resultado da programação em Pure
Data, um ambiente de programação, feita para a realização do score
following de NoaNoa. Cada figura tem uma função e estão conectadas de
forma a realizar a tarefa esperada. Não é preciso que o intérprete
compreenda quais são é como interagir em todas, no entanto é importante
compreender algumas poucas.
Quanto à entrada do som, é fundamental ajustar os parâmetros para
que o programa responda corretamente. Em NoaNoa, o programa está muito
focalizado na leitura das alturas, para se certificar de que não está lendo
errado. Ele permite ajustar a precisão da afinação, a variação do vibrato, se
está havendo uma repetição da nota, se existe uma pausa (comandos
marcados em vermelho na fig. 13). Todos esses elementos são ajustáveis
pelo intérprete, que deve experimentar várias regulagens durante o processo
91
de estudo da peça até descobrir quais são as mais adequadas para sua
forma de tocar. Podemos ficar um pouco assustados com a quantidade de
ajustes, mas o que ocorre na prática é se corrigir discretamente um ou outro
item; o intérprete pode também tocar se adequando à regulagem já
estabelecida.
Em NoaNoa, a calibragem do pitch-accuracy (na fig. 13) é a que mais
tem efeito no sentido de garantir uma resposta precisa do computador.
Apesar de todas estas caixas interligadas, que conferem um aspecto de
coisa complicada, o que se faz é simplesmente escrever um novo valor em
frente ao comando. Como podemos ver, o padrão é "1.2"; pode-se escrever
“1.1”, “0.9”, “0.5”, etc., até se encontrar o que melhor responde à sua
afinação. Em tese, quanto mais preciso melhor. Do contrário, pode-se
extrapolar o limite e o dó pode ser confundido com um dó sustenido pelo
computador. Apesar da simplicidade da mudança do parâmetro, devemos
reconhecer que descobrir qual número deve ser ajustado não é tarefa fácil
para um intérprete não iniciado, ainda mais se considerando que a fig. 13 é
uma página interna do programa, e por isso não é vista no momento de
inicialização do mesmo.
92
fig. 13 - ajustes de programação. Kaija Saariaho, NoaNoa, página secundária.
A fig. 14 é a página que vemos quando inicializamos o programa. Para
o intérprete tocar a peça basta clicar em start piece e começar a ler a
partitura; mas alguns ajustes podem ser feitos para um melhor resultado
sonoro. O principal deles é o equilíbrio entre o som da flauta e os
eletroacústicos, que pode ser feito inserindo-se um valor positivo na caixa
que tem o número "0", em “s amp” (ajuste de volume). Ajustes de
reverberação, transposição do som, reverberação da sala e um volume geral
de efeitos também podem ser feitos.
93
fig. 14 - página inicial. Kaija Saariaho, NoaNoa.
Quando se toca uma peça do repertório tradicional da flauta, o
intérprete faz pequenos ajustes, dependendo do lugar onde está tocando -
se a sala é grande ou pequena, se tem muita ou pouca reverberação. O
mesmo deve ser feito pelo intérprete eletroacústico: pode-se até tocar com os
valores padronizados, porém uma regulagem fina garante um resultado
melhor.
Os recursos das interfaces não só flexibilizaram a rigidez da música,
em relação à formação para instrumento e sons pré-gravados, como
modificaram alguns dos conceitos tradicionais da música. A principal
modificação diz respeito à partitura. Em NoaNoa, por exemplo, não podemos
considerar que apenas o que está escrito no papel com símbolos musicais é
a partitura. Toda a programação escrita no computador também são
comandos executados no momento da performance, em razão do uso das
interfaces e principalmente do processo do score-following.
Podemos inclusive atribuir elementos idiomáticos à parte
eletroacústica. Desta forma, no nível neutro de Nattiez, temos não só o traço
ajustes de efeitos ajuste de volume
94
da escrita simbólica musical, como também as listas de números organizadas
e arquivadas na memória da máquina, apenas aguardando a ordem do
intérprete para serem transformadas em som.
Como consequência da expansão do conceito da partitura temos a
expansão da função do intérprete, que precisa também estudar a parte
eletroacústica. O live-electronics preserva toda a sua técnica de controle e
expressividade do instrumento, porém exige uma compreensão de aspectos
do programa por parte do intérprete, que deve assumir a eletroacústica
também como parte fundamental na construção da interpretação e
performance.
5. A INTERPRETAÇÃO VIRTUAL
5.1 Interação
Um segundo termo muito utilizado no território da informática, e em
nossas vidas atuais, é a interação. Se a interface é um dispositivo, a
interação é um processo, é a influência recíproca que ocorre entre dois ou
mais elementos. A interação é "um processo de semiose que não é
unidirecional, mas pode ocorrer virtualmente a partir de qualquer um dos
agentes envolvidos" (IAZZETTA, 1996, p. 118). Por semiose entende-se o
processo segundo o qual um signo, que representa algo, age sobre quem
entra em contato com ele, ou seja, a partitura, representante das idéias do
compositor, ao entrar em contato com o intérprete produz uma interpretação,
provoca a reação do intérprete no momento de leitura da partitura, por
exemplo. A não unidirecionalidade do processo significa dizer que, a cada
mensagem recebida, o intérprete elabora uma nova resposta que é enviada
de volta ao compositor.
Iazzetta chama a atenção para o fato de que a resposta tem uma
influência nas ações futuras do compositor, o que estabelece um processo
que não é somente de causa e efeito, mas está baseado no crescimento e na
transformação contínua do signo, neste caso, da partitura. Em um sistema
interativo, cada agente tem a capacidade de modificar o comportamento dos
outros agentes envolvidos.
Desta forma, a transmissão unilateral da informação não constitui um
sistema interativo. Ao olharmos as horas, por exemplo, estabelecemos uma
96
relação em que apenas o receptor é modificado: ele adquire o conhecimento
da hora certa, contudo, sem afetar em nada o relógio. Para os "processos
interativos, essa questão de direcionalidade é extremamente importante
porque implica em que os agentes estão constantemente trocando seus
papéis de emissor e receptor sendo, portanto, igualmente afetados pelo
processo de comunicação como um todo" (ibidem).
Por isso, apesar da interação ser um aspecto da moda nas artes de
hoje, podemos considerar a tradicional relação entre a partitura e o intérprete
um processo que funciona nas duas direções. Segundo Nattiez, a partitura
constitui o esquema da obra, que garante sua identidade no curso da história.
Ela garante que a obra será tocada várias vezes. Citando Ingarten, ele parte
da idéia de obra como um "objeto puramente intencional, imutável e
permanente, cuja existência não é mais do que um reflexo de seu ser: a
existência da obra procura sua fonte no 'ato criativo' do performer e seu
alicerce na partitura" (NATTIEZ, 1990, p. 69). Mais à frente, ele diz existir um
processo do compositor que resulta num esquema escrito como a partitura,
que, por sua vez, admite múltiplas interpretações obtidas através de práticas
do intérprete (ibidem, p. 70).
Podemos até não ser capazes de modificar a partitura fisicamente,
apesar do esforço de alguns editores. Porém, a necessidade do intérprete e
toda sua carga idiomática modificam o olhar e a escuta do texto musical.
Outro aspecto transformador deste olhar é a historicidade intrínseca,
defendida por Adorno, que é produto não só da ação do intérprete, mas de
toda a cultura musical pela qual a partitura passa ao longo de sua história.
Por isso, uma partitura de Bach que vagou nas mãos e ouvidos de vários
97
intérpretes em três séculos de música não é a mesma. Se pudéssemos
colocá-la no mundo das idéias de Platão, como um objeto isolado, ela
permaneceria intacta, mas sem o olhar do músico a partitura não existe, sua
existência está condicionada a esta relação, que a vem modificando ao longo
dos tempos. A partitura modifica o intérprete, à medida que disponibiliza as
idéias do compositor, capazes de modificar a mente de quem entra em
contato com elas; e o intérprete modifica a partitura, em razão de seu aspecto
idiomático e da historicidade que ajuda a construir.
No palco da música de concerto, a interação pode ser observada nas
relações do intérprete com os compositores, com a platéia, com a mídia, etc.
Entretanto, o processo interativo tem reservado para si uma categoria própria
no palco da música eletroacústica. No capítulo anterior, apresentamos a
forma tradicional de classificação da música eletroacústica e a proposta de
Freire, que defende a classificação de elementos presentes numa
performance de música eletroacústica. O último deles, novos instrumentos
controladores, está subdividido em live-electronics (uso de microfones, filtros,
reverbs, delays) e sistemas interativos, que utilizam a informática como
suporte (ibidem, p. 153). Vamos considerar a interação segundo a
perspectiva de Freire, ou seja, a relação entre o intérprete e o computador,
apesar de podermos identificar vários outros sistemas interativos na música.
98
5.2 As máquinas
Em um palco preparado para a realização de uma obra eletroacústica,
que faça uso de sistemas interativos, vamos encontrar uma série de
equipamentos básicos, diferentes tipos de máquinas com diferentes funções.
Apesar da idéia de máquina estar muito identificada com algum
equipamento que disponha de motor, num sentido amplo as máquinas são
definidas como "uma estrutura material ou imaterial, aplicando-se a qualquer
construção ou organização cujas partes estão de tal modo conectadas e
interrelacionadas que, ao serem colocadas em movimento, o trabalho é
realizado como uma unidade" (SANTAELLA, 1997, 33). Elas são projetadas
para realizar um trabalho ou uma tarefa, têm um propósito determinado e
certa autonomia. De forma específica, "no termo está implicado algum tipo de
força que tem o poder de aumentar a rapidez e energia de uma atividade
qualquer" (ibidem).
No palco da eletroacústica vamos identificar três tipos de máquinas. O
primeiro são as musculares, que têm a capacidade de ampliar a força,
mecanizar o movimento e aumentar a precisão humana (ibidem, p. 36).
Existem várias destas no palco; a mais próxima do intérprete é a estante de
partituras, capaz de segurar inerte por horas uma quantidade razoável de
papel. Entretanto, num sistema interativo, as máquinas sensórias e a
máquina cérebro são as de fundamental atuação.
As máquinas sensórias, como o próprio nome sugere, são dispositivos
envolvidos com os sentidos humanos - audição, fala, visão, etc. São,
portanto, máquinas que funcionam como extensões destes sentidos,
99
amplificam seu poder, simulando o funcionamento do órgão sensório (ibidem,
p. 37-38). A primeira com que o intérprete tem de lidar é o próprio
instrumento, que amplifica a capacidade de emissão e controle do som,
funcionando como uma ampliação da voz ou de suas formas de expressão.
As outras mais específicas são o microfone, com sua capacidade de ouvir, as
diversas interfaces e as caixas de som, aparelhos que falam pela
eletroacústica. Se as máquinas musculares produzem objetos, como a
estante de partituras, as sensórias produzem e reproduzem signos, como a
música.
No ponto extremo desta família encontra-se a máquina cérebro, ícone
do século XXI. Com capacidade sensória de ver, ouvir e emitir sons, graças
aos softwares, o computador pode também interpretar símbolos e tomar
decisões. O computador é um equipamento eletrônico para guardar e
processar dados, em linguagem binária, de acordo com instruções dadas por
um programa qualquer. Ele amplifica as habilidades mentais, notadamente as
processadoras e as da memória; trata-se de um dispositivo capaz de
processar e interpretar símbolos.
Ao escrever uma tese num computador pessoal, lida-se com símbolos,
letras, palavras, frases e sentido. Para o escritor-usuário, não interessa o que
torna possível esta ação. Pouco importa como se dá a interação entre o
hardware e os softwares, a relação entre o processador de texto e o sistema
operacional, e dele com a bios da máquina. Se pensarmos nas pessoas que
desenvolvem constantemente estes sistemas e em como as informações
transitam entre o ciberespaço e o teclado da máquina, podemos dizer que é
difícil estabelecer as fronteiras de onde começa e termina o computador.
100
Cada vez mais miniaturizado fisicamente e universalmente integrado,
o computador é um artefato que apresenta “um agenciamento instável e
complicado de circuitos, órgãos, aparelhos diversos, camadas de programas,
interfaces, cada parte podendo, por sua vez, decompor-se em rede de
interfaces” (Santaella, 1997, p. 41). Por isso, todo o sistema interativo é uma
rede formada pelo intérprete, a flauta, as interfaces, o hardware e software do
computador.
Edgard Varése sonhava com “o dia em que o compositor, uma vez
realizada graficamente a sua partitura, poderá confiá-la a uma máquina que
se encarregará de transmitir fiel e automaticamente o conteúdo ao ouvinte”
(VARÉSE, 1996, p. 37). Esta poderia ser uma primeira função do
computador, um realizador musical - a mesma função cumprida pelo
gramofone ou qualquer outra máquina de reprodução sonora, mas que, como
percebeu Karlheinz Stockhausen, não atenderia à expressão musical para a
qual são imprescindíveis as coisas que escapam ao pensamento do
ordenador e acontecem no momento da interpretação (Motta, 1997).
Ordenador de números, atualmente o computador pode funcionar na
área da composição, por meio de softwares que criam situações musicais a
partir de escolhas pré-definidas, ou na área da análise de interpretações,
classificando o grau de perfeição técnica que um intérprete alcançou em
relação à afinação e ritmo, por exemplo. Pode também funcionar até como
um “intérprete”, tomando decisões, seguindo a partitura e ouvindo seu
“companheiro” de grupo de câmara em uma interpretação ao vivo.
Diferentemente de uma flauta ou do violino, que têm características
sonoras claras e definidas, o universo sonoro deste novo instrumento é
101
infinito. Capaz de atuar como modificador de sons acústicos, processador ou
mesmo criador de áudio em tempo real, não podemos definir sonoramente o
que ele é, nem em que naipe da orquestra se encaixaria. A infinidade de
possibilidades sonoras e de execução define a principal característica do
computador: a virtualidade.
5.3 O virtual
Usualmente nos referimos à virtualidade como algo ausente ou irreal.
A expressão “realidade virtual” é empregada de forma a estabelecer que o
objeto que dela participa não é real, não existe, e por isso não pode possuir
as duas qualidades ao mesmo tempo: ser real e virtual.
Para a filosofia “é virtual aquilo que existe apenas em potência e não
em ato, o campo de forças e de problemas que tende a resolver-se em uma
atualização” (Lévy, 2000, p. 47). O virtual é um complexo de problemas,
tendências e forças; o atual é uma resolução para estes problemas. O virtual
existe e o atual acontece. Entre os dois termos há os processos de
atualização, em que uma das infinitas possibilidades existentes no virtual -
ocorre em um dado momento; e o processo de virtualização, no qual uma
solução do atual remonta a uma problemática.
Existir enquanto potência significa que uma coisa pode se transformar
em algo, e que para o mundo virtual esta transformação não
necessariamente tem uma relação causa-efeito direta. Se adotarmos uma
forma de deduzir os signos de forma analógica, um grande embrulho
esconde um grande objeto, algo que produza som de água é um líquido, ou
102
alcançar um objeto a uma longa distância toma mais tempo que um próximo.
Considerando a virtualidade das coisas, de uma pequena semente pode
nascer uma grande árvore ou o percurso entre Salvador e Belo Horizonte
pode ser mais curto de avião que o percurso a pé de Salvador para Feira de
Santana.
O primeiro grau de virtualização é a invenção de novas velocidades
(Lévy, 1996, p. 23), que no caso do último exemplo é proporcionada pelo uso
de um dispositivo de virtualização: o avião, que encurtou a distância entre
Salvador e Belo Horizonte. Vários outros dispositivos estão presentes em
nosso dia-a-dia cumprindo diferentes formas de virtualização, como a escrita,
a máquina fotográfica, o telefone, a televisão etc, que têm a capacidade de
virtualizar o corpo, por exemplo3.
De todos os dispositivos, a técnica da informática de se reduzir tudo a
“0 e 1” é a mais virtualizante de todas (Lévy, 1996, p. 88). Ser possível
representar qualquer coisa, criar qualquer simulacro, transformar algo em
outra coisa completamente diferente, cumpre a máxima do estado virtual que
não é um conjunto de possibilidades, mas um universo sem fronteiras e leis
fixas, um universo habitado pelo computador.
5.4 O instrumento virtual
Para inserirmos o computador no universo da música, basta operar
com softwares voltados para esse fim e ele passa a ser um instrumento
3 Na época de Fernando Pessoa, era elegante enviar uma foto própria com alguns dizeres no verso, como sinal de consideração e status. O poeta português abominava este ritual, pois considerava que a foto representava a pseudo-presença da pessoa e denotava sua real ausência.
103
musical virtual. O termo instrumento pode aqui significar muitas coisas, como
um instrumento para análise, para composição, um modificador do som, uma
máquina de escrita, etc. Para o nosso propósito é preciso qualificá-lo como
um instrumento de performance musical ao vivo, como o piano, o violino ou a
flauta.
Na performance seu uso mais corriqueiro é como simulador de
instrumentos tradicionais, sons de orquestra ou violinos por exemplo,, que
são controlados por um teclado mecanicamente similar ao piano. Este
teclado já é uma virtualização do modo de produção do som dos
instrumentos tradicionais, já que, no mundo acústico, o som do violino é
produzido pela fricção do arco e o do trompete pela vibração dos lábios
provocada pelo ar, e não pela pressão de uma tecla em um dispositivo
eletrônico.
Para a música de concerto este uso não interessa muito, pois o som
de um instrumento real sempre superará qualitativamente seu simulacro. O
que interessa são novos sons, novas possibilidades de combinações
temporais e acústicas e novas formas de construção da linguagem musical. A
busca destes novos processos para a música vem sendo feita desde o
surgimento da música eletrônica, na década de 1950, e cunhou o termo live
electronics com o surgimento dos sintetizadores na década de 1960 (Griffths,
1978, p. 149). Atualmente, uma série de dispositivos são usados na
eletrônica ao vivo, em sua maioria dispositivos virtualizantes de vários tipos.
O computador pode ser considerado o mais poderoso deles, por ser
capaz de virtualizar todos os processos que envolvem o fazer musical. Para
exemplificar vamos citar um programa muito utilizado na área, o Max/Msp,
104
produzido pelo Cycling’74. Trata-se de um ambiente de programação em que
o usuário pode montar, através da escolha e do agrupamento de algoritmos
com funções específicas, um patch que realize algo de interesse do
programador.
Podemos comparar o processo de programação do Max com o ato da
escrita. Primeiro, pegamos uma folha em branco e começamos a escrever
letras, palavras e partes maiores do texto até completar uma idéia geral. No
processo de escrita, as palavras têm significação e função próprias; não
podemos escrever um texto comum somente usando verbos, ou qualquer
outra função sintática. No Max, o início da programação é também uma
página em branco, que vai sendo preenchida por objetos, as “palavras”, que
têm funções específicas e uma sintaxe própria. A ligação dos objetos cria
uma funcionalidade, um objeto que recebe o som do microfone o envia a
outro que analisa o espectro, por exemplo. Com uma idéia do que se quer
que aconteça com o som dentro do Max, o programador cria esta teia de
objetos que processa o áudio da entrada, soltando para as caixas de som o
resultado desejado. Assim como na página em branco o autor apresenta
suas idéias, na página do Max o programador/compositor cria um caminho
que modifique o som de acordo com seu desejo pessoal.
A possibilidade de criar a função que o programa vai executar já é o
primeiro estágio do virtual no programa, o que não acontece nos programas
musicais tradicionais que têm as funções pré-definidas no seu processo de
confecção. Apesar de o Max/Msp ter seus objetos próprios, existem na
internet inúmeros sites de programadores independentes que criam e
disponibilizam seus objetos. Isso torna o programa um ambiente de
105
informação compartilhada em que, no final do processo, uma composição
criada com objetos recolhidos nos diversos pontos da rede será um produto
da atualização do virtual; uma composição realmente coletiva, se
considerarmos que um objeto é um conjunto de atividades a serem
executadas, ou seja, um conjunto de instruções a serem realizadas
similarmente ao que ocorre com a partitura tradicional.
Em um instrumento como o violino, o arco é o objeto que provoca e
controla o som. No computador, estas duas operações são distintas. O som é
sempre produto dos circuitos eletrônicos, mas o seu acionamento pode
ocorrer de diversas formas. Um mesmo som pode ser tocado a partir de um
dispositivo de sopro, de arco, através de um teclado, de uma luva com
sensores, da luz ou da imagem. Quando se fala do uso da imagem para
controlar um som, pode-se pensar em eventos aleatórios, mas não é isso o
que acontece. Através de uma câmara de filmagem digital e um software
como o Max/Msp, pode-se perfeitamente transformar os movimentos
corporais em controladores de um piano virtual, por exemplo.
Quanto à possibilidade de transformação sonora, no momento em que
o som é digitalizado, transformado em conjuntos de “0 e 1”, pode sair
qualquer outro som pelo alto-falante, se falamos de música, ou transformá-la
em imagens, etc. Qualquer som pode, portanto, ser um controlador de
qualquer outra coisa; uma escala de dó maior pode controlar o subir e descer
de um guindaste – claramente essa não é a melhor forma e fazê-lo.
106
5.5 O intérprete e o computador
Para se alcançar uma interação plena é necessário que intérprete e
computador sejam capazes de agir de forma a causar mudanças nos estados
presente e futuro de um determinado objeto, em nosso caso, na obra
musical. Neste processo é preciso que ambos tenham conhecimento de pelo
menos dois aspectos do sistema.
Primeiramente é preciso conhecer o estado do objeto. É preciso que o
intérprete conheça não só a dimensão da partitura escrita como também da
partitura programada, ou seja, das possíveis ações previstas para o
computador. Isso é fundamental para a tomada de decisões e para a
condução da forma musical no momento da performance, cabendo ao
intérprete ter uma memória de estados presentes e previsões de estados
futuros da música em questão. Este processo ocorre também em uma
formação camerística tradicional, em que cada instrumentista tem que saber
o que o outro está tocando e ter na memória o que vai acontecer no percurso
da música. Tanto nesta formação tradicional quanto com o computador,
espera-se um tipo de informação pré-determinada para haver uma reação: se
o intérprete tocar algo não previsto, poderá travar o sistema, seja ele qual for.
É importante alertar para o fato de que num processo de interação com o
computador não é necessário o conhecimento da programação ou do que
ocorre com a máquina; é preciso somente conhecer suas reações e como
provocá-las, - da mesma forma que ao escrevermos um texto somente
precisamos acionar as teclas.
107
Um segundo aspecto é a necessidade de conhecimento do
comportamento do sistema. Quando escrevemos um texto, precisamos saber
qual tecla acionar e que efeito ela produzirá. Ao tocar uma peça, é preciso
também interagir com o computador no momento de construção da
interpretação; é preciso conhecer os comandos a usar para obter uma melhor
interação com a máquina, assim como descrito no processo do score
following (Iazzetta, 1996, p. 123-124).
Vamos apresentar dois casos com níveis diferentes de interação entre
o intérprete e o computador, ambos construídos com o programa Max/Msp.
Existem muitos outros programas capazes de proporcionar um processo
interativo na música. A escolha do Max/Msp é puramente pessoal, porém
pode ser creditada à sua popularidade, que proporciona grande e variada
produção artística; à sua estabilidade, eficiência e principalmente à baixa
latência; isto é, o programa permite que o som percorra o caminho de entrar
no computador, sofrer um processamento e sair pelas caixas de som quase
que instantaneamente, sem que o intérprete perceba qualquer tipo de atraso.
Outra qualidade fundamental é sua abertura estética. É muito comum
as pessoas perguntarem o que determinado programa faz por você e daí
aprenderem a utilizar suas funções. No Max/Msp, cabe ao usuário criar as
funções, o que proporciona uma liberdade de escolha de acordo com suas
necessidades pessoais. Ou seja, a pergunta não é o que o programa faz,
mas o que você quer que ele faça.
Ele é composto de objetos, pequenas "caixas" com funções
específicas, que são ligadas criando um circuito de ações.
108
fig. 14 - exemplo do Max/Msp
Na fig. 14 podemos compreender a composição e o funcionamento do
programa. A caixa "adc~ 1" tem a função de receber o sinal de áudio do
microfone. Ela está ligada à "vst~ MasterVerb", que produz uma
reverberação no som que vai para uma caixa que controla o volume. - Por
fim, o som? é devolvido ao ambiente acústico através de "dac~". As caixas
"wet/dry", "room size" e "decay time" são controladoras da reverberação. O
processo de composição do patch (nome dado a este tipo de estrutura) parte
de uma tela em branco, assim como a tela de um documento de texto a ser
escrito, que vai sendo preenchida por essas caixas e suas conexões, em
função do desejo do programador.
Na fig. 15 temos o patch principal de Almas (2005) (gravação e
partitura anexos), composição própria, para flauta e meios eletroacústicos.
109
fig.15 - patch principal de Almas (2005)
Esta é uma obra que apresenta um sistema interativo que podemos
classificar como básico - além de ser controlado pelo intérprete
manualmente, não cria muitas ações musicais mais autônomas por parte do
computador.
A idéia inicial para a composição da obra era criar um coral,
microtonal, gerado a partir de uma única flauta. Com o desenrolar do
processo composicional surgiram outras necessidades:manter o som do
instrumento enquanto o intérprete fala um texto e criar uma textura que
110
caminhasse da melodia solo a uma multiplicidade de vozes simultâneas. O
primeiro passo foi criar um dispositivo que funciona como um pedal tonal do
piano; aperta-se o pedal e a nota que está sendo tocada é reproduzida
infinitamente e continuamente até um novo comando.
fig.16 - Felipe Amorim, Almas, comp. 6-7.
Na fig. 16 temos um exemplo do funcionamento do pedal tonal.
Quando o intérprete toca a nota lá (com som eólio), ele aciona o pedal que
mantém esta nota; o mesmo ocorre com a nota mi bemol. Os números que
vemos abaixo da pauta indicam o acionamento do pedal: 1 para a primeira
vez, 2 para a segunda, etc. No entanto, o pedal muda de função ao longo da
obra: se em 1 e 2 ele mantém o som, em 3 ele extingue. Um exemplo do uso
do pedal tonal com o som tradicional da flauta pode ser ouvido a partir do
compasso 24. Neste ponto da peça começam também as falas do flautista,
que se sobrepõem ao som do instrumento e não ficam descobertas em
virtude da presença do pedal tonal.
Foram criados dois corais, um composto por trinados e outro por notas
lisas. O de trinados tem seu início no compasso 11, número 4 do pedal.
Entretanto, neste momento não há qualquer alteração na música: o intérprete
aperta o pedal e nada acontece; o número 4 apenas envia para a máquina o
comando de gravar e arquivar este trinado. Somente no compasso 36, pedal
número 18, inicia-se de fato a audição do coral de trinados.
111
O segundo coral, feito a partir de notas lisas, começa no compasso 46
e a amostra do som do flautista é gravada no pedal 31, nota si. Esta nota é
enviada para três sub-patchs que a transpõem e aplicam pequenos
glissandos, dando a idéia de desafinações microtonais. A intenção é fazer
uma referência ao coral das rezadoras que serviu de inspiração na
composição da obra.
A programação de Almas permite que, a partir da linha da flauta, se
produzam outras oito vozes simultâneas à do solista, todas geradas em
tempo real no momento da performance, sem auxílio de qualquer parte pré-
gravada.
Apesar da complexidade de programação envolvida na composição da
obra, cabem ao intérprete algumas funções simples para sua execução. A
primeira e mais freqüente é o manejo do pedal. O computador grava em torno
de duzentos milisegundos do som do flautista no momento de acionamento
do pedal. Isso significa que é preciso certa estabilidade no som, para que não
sejam gravados outros ruídos como os produzidos no ataque das notas. Ou
seja, ele deve esperar alguns instantes para acionar o pedal. Ainda a este
respeito, é preciso memorizar suas funções, que podem ser de acionar o
pedal tonal, extingui-lo, gravar e acionar os corais. São 50 acionamentos do
pedal ao longo da peça, a grande maioria ligada à função de pedal tonal.
Outro aspecto que cabe ao intérprete é equilibrar o volume do som do
computador com o volume da flauta acústica. Para isso, basta ajustar o
controle do computer master gain para os sons do computador, e o direct
voice para os sons da flauta. É possível fixar os valores escolhidos para
facilitar o processo de escolha em novas apresentações. O resto do trabalho
112
de interpretação é como outro qualquer: estudar e tocar várias vezes a peça
para entender o que se passa, como obter o melhor resultado sonoro e
assim por diante.
Em Almas temos um processo de interação totalmente previsível para
o intérprete, tanto do ponto de vista da macro como da microforma. Assim
como numa música tradicional, a forma da música sempre será repetida
tantas vezes quantas ela for tocada, não importando quem seja o intérprete.
O que ocorre no sistema interativo é que as ações do intérprete são
reproduzidas pelo computador, ou seja, o intérprete não só imprime uma
interpretação própria à obra, sem qualquer tipo de restrição musical, como
também o que o computador reproduz é um reflexo de seus aspectos
idiomáticos. Por isso a capacidade de controle da expressividade musical,
neste tipo de obra, é bastante próxima de uma obra tradicional.
Interatividade "não é meramente a habilidade de navegar no mundo
virtual, é o poder do usuário modificar seu ambiente" (RYAN, 1994, p. 99).
Esta é uma propriedade nativa das obras de arte em relação ao ouvinte: o
intérprete tem o poder de modificar a platéia por intermédio de sua
interpretação, quando sobe no palco. Com a incorporação do computador à
música, o processo interativo passa também a atuar no nível da estrutura
física da obra, ou seja, a forma não é mais planejada, mas prevista. Ela é
prevista porque a programação do software pode criar limites para a
intervenção da máquina no processo estrutural da obra, o que garante uma
expectativa de resultado final. Porém, neste caso, lidamos de fato com a
virtualidade em seu stricto sensu, ou seja, pode-se esperar qualquer coisa.
113
Em Três Janelas para flauta em sol e meios eletroacústicos (2008)
(gravação e partitura anexos), a relação entre o intérprete e a máquina é
instável visto que, neste caso, o computador cria sua linha melódica em
tempo real no momento da performance. A estrutura de programação da obra
é composta por três módulos que interagem entre si a partir da melodia
tocada pelo flautista ao vivo. Um módulo tem a função de controle de todo o
processo, o outro da criação dos materiais musicais do computador e o
terceiro cuida da distribuição espacial do som através de quatro caixas de
som.
O módulo controlador cuida dos volumes das vozes, tanto as
produzidas pelo computador como a do flautista, recebe e direciona os
acionamentos do pedal e o sinal de áudio do flautista. Podemos dizer que
este módulo é a parte sensória do intérprete virtual, uma vez que ele está
ligado às interfaces. Ele é também o pedal, o microfone e as caixas de som,
o "ouvido" e a "voz" do sistema; coordena suas ações, controlando os
volumes de entrada e saída do som, além de enviar os acionamentos do
pedal para os módulos de criação e espacialização.
O módulo de espacialização distribui as vozes em um sistema
quadrifônico. Nas tradições da música medieval e renascentista, as vozes
eram colocadas em pontos diferentes da igreja, criando um sistema
completamente espacializado, o que tornava mais clara a escuta da polifonia.
Em Três Janelas, a distribuição das vozes através de quatro caixas de som
tem esta mesma intenção- separar mais as vozes e criar para o ouvinte a
sensação de outro intérprete além do que está no palco. Se "a performance
da eletroacústica ao vivo é um tipo de música de câmara, na qual alguns dos
114
membros do grupo estão invisíveis” (McNUTT, 2003, p. 299), o módulo
espacializador ajuda na sua separação do visível, individualizando mais sua
presença sonora.
Se podemos falar em forma da espacialização, Três Janelas começa
com o flautista real posicionado no palco, tendo seu som reproduzido pelas
duas caixas de som frontais; e um flautista virtual nas costas da platéia, cujo
som é reproduzido por duas caixas posicionadas no fundo do teatro. Até o
acionamento de número 4 do pedal- números dentro de quadrados que
aparecem abaixo da pauta- não há alteração deste cenário. O objetivo do
compositor, com essa disposição espacial, é claramente criar uma imagem
polifônica de duas vozes em contraponto. Cabe ao intérprete realizar um
fraseado típico de uma textura deste tipo, mostrando seus momentos
importantes e deixando espaço para os do flautista virtual.
No número 4 do pedal, há uma articulação da forma: sai de cena o
virtual, deixando o flautista real tocando sobre uma nota pedal que não tem
uma origem espacial definida. Nos números 7, 8 e 9 do pedal acontecem
novas entradas de flautistas virtuais, criando um quarteto espacializado na
forma de um quadrado: o flautista real no palco, um virtual no fundo e os
outros dois nos lados. No entanto, essas posições não são fixas e as vozes
vão se movendo até o seu final.
No número 10 do pedal, surgem sons múltiplos virtuais que se
movimentam sobre a platéia formando uma nuvem, uma massa sonora de
contorno e posição pouco definidos. A escuta de uma obra como esta em um
aparelho de reprodução em stereo não permite a compreensão do processo
espacial. Acredito, inclusive, que mesmo num equipamento quadrifônico o
115
resultado não seja o mesmo, pois devemos sempre considerar a presença do
intérprete real que emite o som acusticamente, o que tem impacto no
resultado auditivo final.
O módulo de criação é o responsável pela geração do material sonoro
do computador. Este módulo é na verdade um software capaz de aprender
em tempo real as características do estilo musical do intérprete e tocar junto
com ele de forma interativa, qualificando a improvisação do computador com
os aspectos idiomáticos do intérprete. O programa chamado de OMax, foi
desenvolvido por Gerard Assayag, Shlomo Dubnov, Marc Chemillier e
Georges Bloch e utiliza o Max/Msp e o OpenMusic como plataformas.
O OMax é um parceiro virtual do intérprete; ele obtém todo seu
conhecimento ao escutar o músico que está tocando, sem nenhum tipo de
supervisão ou controle externo, e se ajusta em tempo real à música. Os
autores do programa chamam este processo de Stylistic Reinjection. Sua
hipótese é de que quando um músico toca e improvisa, ele está ouvindo
material musical proveniente de uma série de fontes, algumas envolvidas
num complexo processo de eterno-retorno do material. O músico ouve seus
parceiros e a si próprio enquanto toca, seus julgamentos sobre o que está
fazendo interferem em seus planos iniciais, influenciados pelas outras fontes,
fazendo com que ele se abra para novas direções. Imagens sonoras sobre
seu momento da performance e dos outros músicos são memorizadas, todas
caminhando na memória, do presente para o passado. Depois de um longo
período memorizando essas imagens, elas passam a agir como fontes
inspiradoras do material musical, que pode ser eventualmente recombinado,
formando novos padrões de improvisação.
116
Os autores do OMax acreditam que os padrões musicais não são
arquivados na memória de forma seqüencial, mas como modelos
comprimidos, que ao retornarem da memória para a música aparecem de
forma similar, mas não idêntica aos modelos. Para eles, esta é a questão
chave por trás do processo de recorrência e a inovação que traz interesse à
improvisação.
A idéia do stylistic reinjection é materializar, usando o computador
como uma memória externa, num processo que reinjeta objetos musicais do
passado recombinados dentro de uma característica idiomática, gerando
sempre uma reconstrução renovada do passado (Assayag e Bloch, 2008, p.
3-4). Na prática, o OMax ouve o músico, extrai suas características
idiomáticas e segmenta o sinal de áudio em eventos e frases. Durante este
processo ele constantemente vai construindo um modelo memorizado da
seqüência dos eventos; este modelo é chamado de Oracle. Deste momento
em diante, o programa está apto a criar uma improvisação contínua, feita
através da busca no modelo memorizado dos eventos que são recombinados
e, transformados em som, são tocados.
O OMax é, portanto, o programa responsável pelas vozes dos
flautistas virtuais. No início de Três Janelas, sua programação garante uma
linha melódica muito semelhante à do flautista real; a memória do programa
arquiva tudo o que flautista real toca. Até o pedal de número 3, o programa
pode utilizar qualquer parte do que foi tocado desde o início da música, ou
seja, do ponto em que o flautista real estiver tocando até o início da música,
toda a música foi memorizada e qualquer material pode ser utilizado como
fonte para a recriação. No número 3 há uma modificação neste lapso de
117
tempo: ele passa a ser muito curto em relação ao que o intérprete toca- cerca
de 5 segundos- o que significa que apenas os últimos 5 segundos tocados
pelo flautista são processados. Há também alteração na continuidade da
linha melódica, que anteriormente era mais contínua e passa a ser um pouco
mais fragmentada.
No número 4 do pedal, o OMax para de processar e sua memória é
apagada. Deste ponto, até o número 7 do pedal, não há qualquer atividade
audível do programa. Porém, nos números 6 e 7 do pedal há uma
memorização de dois trechos que serão utilizados como matriz para os
flautistas virtuais que surgem nos números 7, 8 e 9 do pedal. Os flautistas
virtuais somem na nuvem de multifônicos por volta do número 10 do pedal.
Três Janelas não é uma obra de improvisação, pelo menos não para o
intérprete que tem a sua frente uma partitura tradicionalmente escrita e sem
possibilidades de escolha, a não ser aquelas que imprimem à música seu
aspecto idiomático. Como controlador do computador, cabe a ele apenas
apertar o pedal nos momentos indicados pela partitura. No entanto, como sua
voz é que serve de matriz para a criação dos flautistas virtuais, é de suma
importância sua forma de tocar. Todos os aspectos que não estão escritos na
partitura e que são função do intérprete fornecer, como prescreve Adorno,
são elementos fundamentais para o melhor desempenho do instrumento
virtual.
Mais uma vez, temos uma grande complexidade e sofisticação no
aparato da informática; porém, para o intérprete, Três Janelas apresenta um
sistema de relativa simplicidade, uma vez que sua interação com o
computador se dá através da própria flauta, em sua maior parte. Seu poder
118
de captar os aspectos idiomáticos do intérprete torna este sistema mais
próximo de um conjunto de câmara. No caso das Três Janelas, podemos
argumentar que o flautista real está tocando junto a virtuais com seus
mesmos aspectos idiomáticos; são verdadeiros simulacros do flautista real.
Porém, o OMax tem a capacidade de lidar com memórias de outros
intérpretes, o que torna mais rica a expressividade da música.
5.6 Obra em movimento
A partir da década de 1950, o intérprete de certas obras de concerto
também passa a gozar de uma autonomia na qual não só dispõe da
liberdade de interpretar as indicações da partitura, como também de interferir
na forma da composição, estabelecendo desde valores rítmicos até a
sonoridade geral da peça. Observador deste momento da música e dessas
novas atribuições do intérprete, Umberto Eco (1932-) elaborou a idéia da
Obra Aberta.
Segundo ele, a obra de arte "é uma mensagem fundamentalmente
ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante"
(ECO, 1986, p. 22). Isso quer dizer que uma mesma obra é compreendida
diferentemente pelas pessoas. Eco alerta para a confusão que se faz com
seu conceito de Obra Aberta, dizendo que sua intenção com o livro foi tratar
da multiplicidade interpretativa das obras de arte e não somente das que
facultam ao intérprete interferir em sua estrutura (Eco, 2004, p. 27) (Eco,
2005, p. 5). Hoje não podemos negar que o termo obra aberta define as
obras que não têm uma forma fechada, que permitem interferências neste
119
aspecto, o que foi reforçado pelo próprio Eco - na exposição do conceito, o
autor sempre utiliza exemplos musicais que permitem a interferência.
Como todas as obras de arte permitem uma multiplicidade de
interpretações, todas as obras seriam abertas, o que não justificaria o
conceito. Diante deste impasse, podemos propor que este tipo de obra
apresenta uma ambigüidade, o que é natural na arte. Já a abertura
conquistada na música de concerto a partir da década de 1950 é definidora
do conceito, indicando obras abertas como as que prescindem da
interferência do intérprete em algum aspecto estrutural.
Com base neste princípio, o interesse da Obra Aberta de Eco "não é a
obra-definição, mas o mundo das relações de que esta se origina; não a
obra-resultado, mas o processo que preside a sua formação; não a obra-
evento, mas as características do campo de probabilidades que a
compreende (CUTOLO in ECO, 1986, p. 10). Uma obra do tipo de Três
Janelas levanta este tipo de problema. Seu interesse está na relação entre o
intérprete e o computador, nas possibilidades de criação em tempo real de
um material musical inédito, que não soa como uma cacofonia, mas preserva
uma unidade estrutural e principalmente estilística com o intérprete.
Se Eco e vários outros autores estão preocupados com o respeito à
intenção da obra- considerando a interpretação como múltipla, porém dentro
deste limite de respeito - em Três Janelas esta relação é transposta para o
computador; este mantém o que poderíamos considerar a intenção do
intérprete, ou seja, ele não só se mantém dentro de um limite que não
desfigure a melodia do flautista real, como sua intenção é também respeitada
enquanto estilo e em seus aspectos idiomáticos.
120
O processo improvisador da máquina cérebro, dentro dos limites
impostos pelo compositor, trata a forma, principalmente o seu nível menor,
não como um evento, um objeto definido, mas como um campo de
probabilidades não aleatórias, conduzidas pela linha da voz real. Mas
diferentemente da uma obra aberta tradicional, em que o intérprete interfere
na forma, neste caso sua atuação fica restrita à leitura e interpretação de
uma partitura tradicional. O processo improvisador da máquina é o
responsável pela indefinição da forma, o que confere a Três Janelas um
estado mais restrito dentro do conceito de Eco. Em virtude da sua
capacidade de assumir várias estruturas imprevistas, fisicamente irrealizadas,
podemos definir Três Janelas como uma obra em movimento (Eco, 1086, 50-
51).
6. O GESTO
O início do século XX marca para compositores e intérpretes um novo
desafio, novos territórios musicais em que a sintaxe não é previamente
conhecida. Até então acostumado com a música tonal e suas formas de
organização consolidadas, o intérprete caminhava por um terreno conhecido,
com limites estabelecidos, em que os objetos mudam de lugar, porém as
funções se mantêm as mesmas. A sintaxe tonal era uma forma de linguagem
falada com diferentes sotaques por todos. O rompimento da discursividade
tonal e de sua estrutura de sintática fundada nas funções tonais perturba este
cenário e lança um novo desafio ao intérprete: mais do que caminhar por
territórios desconhecidos, cada terrítório, cada música, pode apresentar uma
sintaxe própria, uma regra própria de organização do material musical.
Na primeira metade do século XX houveram alguns esforços no
sentido de criar novos sistemas que substituíssem o tonalismo. O mais
relevante deles foi o dodecafonismo de Arnold Schöenberg (1874-1951).
Apesar da expectativa do compositor austríaco de que este sistema garantiria
a supremacia da música germânica por mais cem anos, ele logo se
desfigurou nas mãos de outros compositores, sendo o embrião do serialismo
integral, que não só organiza séries de alturas, como serializa ritmo,
dinâmicas, timbres e qualquer outro parâmetro musical. Apesar do serialismo
integral também não se estabelecer como referência, ele é um indicativo de
um foco da música contemporânea, o estabelecimento de sintaxes por meio
do controle dos parâmetros musicais.
122
Embora imanente em toda a música, o gesto musical emerge neste
contexto relacionado às questões da música contemporânea e sobretudo à
sua sintaxe, tornando-se uma possibilidade de organização do discurso. A
coerência gestual de uma obra pode funcionar como um fator de unidade
para o compositor e orientar o intérprete quanto aos fatores da tensão
musical.
Segundo Adorno, os signos musicais, tomados pela ambiguidade e
pela transitoriedade do gesto, são "imagens de gestos" e a notação teria
surgido para fixar a prática mimética quando a memória desta já começava a
desaparecer das práticas musicais (Adorno, 2006, p. 224-225). Como foi
apresentado no segundo capítulo, Adorno define a escrita musical como a
linguagem dos signos no particular, os símbolos musicais, e a linguagem
gestual (ou figurativa) no todo, "onde cada altura ou indicação da partitura
tem que ser traduzida em representação mental e realizada sonoramente
como parte integrante da imitação do gesto em sua totalidade" (AMORIM e
ASSIS, 2009, p. 1).
Podemos distinguir representação mental e realização sonora em
partitura e gesto, em simbólico e mimético, em interpretação e performance,
ou mesmo em reflexão e ação. Para Brian Ferneyhough (1943-) estes dois
estados são divididos em figura e gesto, sendo que a figura "não existe em
termos materiais; ela representa, sobretudo, uma maneira de perceber, de
categorizar e de mobilizar as constelações gestuais concretas"
(FERNEYHOUGH, 2000, p. 136). Segundo esta concepção, o conceito de
figura é um gesto que foi extraído de seu contexto original para se tornar “um
radical significante livre para se recombinar, para se solidificar em novas
123
formas gestuais” (ibidem, p. 26). A figura é uma representação; na partitura,
ela é constituída pelo conjunto dos intervalos, dinâmicas, ritmos, pelos
parâmetros musicais, assim como uma figura geométrica é formada por
linhas e ângulos. A figura é abstrata e para que possamos percebê-la sua
manifestação sonora é preciso realizá-la no tempo. Esta realização, que põe
em ação de forma coordenada os parâmetros musicais, é o gesto musical.
Em sua origem, a palavra gesto significa uma ação que controla, que
sustenta, mantém, ou mesmo produz algo voluntariamente. Souza resume os
múltiplos significados da palavra gesto como uma "ação que revela uma
intenção" ou "um movimento que significa". Gesto é um conceito que
apresenta duas faces: por um lado, é um movimento, uma ação intencional;
por outro lado, opera um processo de significação a partir da forma que nele
percebemos (Souza, 2004. p. 39-40), ou seja, a figura de Ferneyhough.
Devemos observar que a idéia do gesto como figura significa uma
espacialização do percurso do tempo (Carvalho, 2005, p. 218). Uma figura é
uma imagem visual; desta forma, podemos ver o que acontece do ponto de
vista do movimento da música no tempo, como em uma partitura gráfica. O
gesto transformado em figura vai contra a idéia de mimese original; perde-se
a atualidade do gesto, já que ele é um acontecimento, ele simplesmente
existe, é um momento presente, o que deixa de acontecer para ser
eternizado em uma figura. A fixação do gesto em figura permite que ele seja
relacionado a outros, tanto na sucessividade quanto na simultaneidade,
deixando de ser, em certo sentido, "o gesto musical" para ser "o gesto
concreto", passível de análise e de princípios de organização (ibidem).
124
Podemos reconhecer também em Adorno esta divisão de estados do
gesto, sua formação ou representação, quando ele diz que a natureza
mimética da música pode ser divida em expressão e construção, que se
sustenta no aspecto gestual puro, materializado sem expressão, sem
subjetividade. Desta forma o gesto é único, podendo, porém, assumir dois
estados: o expressivo, no momento da performance; e o estrutural, em que
podemos lidar com o gesto para fins de composição, análise e construção de
uma interpretação. Segundo Adorno, "música como arte é uma tentativa, a
qual transforma a expressão em construção e a construção em expressão"
(ADORNO, 2006, p. 63).
Reconhecida a possibilidade de análise do gesto, não só no tempo
como no espaço da partitura, podemos considerá-lo como um objeto
organizador do discurso musical. A coerência gestual de uma obra pode
funcionar como fator de unidade para o compositor, orientar o intérprete
quanto à construção da interpretação e proporcionar ao ouvinte, senão uma
linguagem, uma referência para a escuta.
6.1 Gestos individuais
Partindo da idéia de Smalley que afirma "estar o gesto relacionado
com uma ação a partir de uma meta previamente atingida ou em direção a
uma nova meta; [e ainda] estar relacionado com a aplicação da energia e
suas conseqüências, podemos propor dois tipos de gestos baseados no fluxo
da energia (SMALLEY, 1986, p. 61). Os exemplos a seguir são retirados da
125
obra Entre o ar e a perfeição (2009), para flauta, piano e eletrônica, de João
Pedro Oliveira (gravação e partitura anexos).
O primeiro é o gesto anacrústico, que apresenta um aumento da
energia, do início da anacruse até o som final, a meta do gesto.
fig. 17 - Gesto anacrústico. João Pedro Oliveira, Entre o ar e a perfeição, comp. 9.
Já o gesto desinência cumpre o caminho contrário: parte de um som
estável e termina com acciacaturas, que cumprem a função de diluir a
energia proveniente do primeiro som.
fig. 18 - Gesto desinência. João Pedro Oliveira, Entre o ar e a perfeição, comp. 74-75.
A mistura dos dois tipos básicos pode levar ao gesto transição, que é
definido pela ação de partir de uma meta previamente atingida e se dirigir a
uma nova meta.
126
fig. 19 - Gesto transição. João Pedro Oliveira, Entre o ar e a perfeição, comp. 96-97.
A análise geral de Entre o ar e a perfeição mostra que a linha da flauta
é praticamente toda construída com gestos anacrústicos; há apenas um
gesto desinência. Isto não significa que todos tenham o mesmo conteúdo
musical. Não devemos confundir gesto com tema; o que todos apresentam é
o mesmo caminho da energia, que cresce em direção a uma meta sonora, ao
som principal do gesto. A constatação de um tipo de gesto majoritariamente
predominante na obra de Oliveira é um indicador que comprova a hipótese de
Coker (1972) e Wishart (1996), que defendem o gesto como um elemento
unificador da forma. Podemos até questionar esta idéia, porém é inegável
que uma unidade gestual é diretamente ligada a uma coerência
interpretativa, facilitando para o intérprete o entendimento da condução da
forma e do fraseado musicais.
6.2 Gesto orquestral
Estudos sobre a dimensão estética do homem, baseados em
conceitos da psicologia, demonstram que nossa mente tem uma tendência de
perceber as coisas de maneira gestáltica. Nossa percepção procura sempre
compor, com os estímulos que lhe chegam, uma gestalt que se torna o foco
de nossa atenção (Duarte 1991: 65-66). O ouvinte constrói uma imagem
perceptiva ou um sentido musical por meio da fusão das alturas e durações,
127
mas também, principalmente, pelo movimento dos gestos musicais. Na obra
Entre o ar e a perfeição para flauta, piano e eletrônica (2009), o compositor
João Pedro Oliveira conta com a percepção da gestalt para criar uma trama
musical na qual o espaço orquestral, formado pelas três vozes, está
interligado pela complementaridade e imitação gestual. A busca do
compositor pelo amálgama entre os instrumentos acústicos e a eletrônica, de
forma que o ouvinte tenha dificuldade de distinguir as vozes, é alcançada por
meio de uma escrita de gestos orquestrais em que uma voz continua o gesto
da outra, formando um tecido complexo. Assim como a klangfarbernmelodie,
levada ao extremo por Anton Webern (1883-1945), as dimensões melódica e
harmônica perdem seu perfil bidimensional e são substituídas por uma
dimensão multidirecional.
Nos quatro primeiros compassos da peça podemos observar este
procedimento: os gestos são sempre compostos por instrumentos diferentes.
O primeiro é um gesto anacrústico, em que a flauta e a eletrônica realizam
um crescendo que é interrompido pelo piano. Na seqüência, temos a
anacruse da eletrônica para o compasso 2, que é continuada pela flauta, e a
anacruse para o compasso 3, que é continuada pelo piano. Já no compasso
3 há uma inclusão da flauta com sons harmônicos que se superpõem ao
piano e à eletrônica, esta responsável por iniciar e finalizar o gesto. Da
mesma forma, no compasso 4, o piano é substituído pela flauta, mas a
eletrônica mantém sua função original. Ou seja, nestes quatro compassos
podemos perceber a coerência composicional em relação à gestualidade,
observando que o compasso 4 (eletrônica-flauta-eletrônica) é uma variante
do compasso 3 (eletrônica-piano-eletrônica). No que diz respeito a todo o
128
trecho, temos um adensamento dos gestos, responsável pelo aumento de
tensão:
fig. 20 - João Pedro Oliveira, Entre o ar e a perfeição, comp. 1-4.
Oliveira ainda busca a integração das vozes através de semelhanças
entre os timbres. Na anacruse do compasso 2, a eletrônica realiza sons
flautísticos que são completados pela flauta e na anacruse do compasso 3
sons pianísticos são completados pelo piano. O uso de técnicas estendidas
também alcança o mesmo resultado, como no compasso 39, em que o
pianista deve tocar nas cordas, realizando um glissando que será continuado
pela eletrônica e flauta.
Analisando a linha melódica da flauta e tape podemos observar que,
como procedimento padrão, há acciacaturas seguidas por notas longas com
frullato ou trêmulos. Temos aqui dois tipos de gestos, os móveis evolutivos
(acciacaturas) e os móveis não evolutivos (linhas). Na obra, estes dois tipos
cumprem funções muito claras: um é responsável pelo movimento no sentido
do caminhar, do desenvolvimento da forma, da geração de movimento; o
outro pelo preenchimento do espaço sonoro, gerando polarizações
129
harmônicas. A escolha por esta gestualidade garante uma unidade, visto que
os gestos não-evolutivos têm um potencial de integração entre as vozes na
dimensão harmônica, e os evolutivos, na melódica.
Entre o ar e a perfeição é formada por “constelações gestuais” que, na
sucessão, formam o tecido musical. A tendência em toda a obra é que os
gestos móveis evolutivos sejam iniciados pela eletrônica, tornando-se
balizadores importantes no momento da performance.
Para Peirce, "uma coisa sem oposições de fato não existe" 4? (C.P.,
1.457). Na obra observada podemos identificar claramente a existência de
oposições gestuais, seja por tipologias ou funções diferentes. Oposições ou
semelhanças "criam tensões locais, impõem direcionalidades e estriam a
superfície sonora com linhas de força expressiva" (Vasconcelos, 2008, p.56).
Do ponto de vista de sua realização, "O GESTO musical corresponde a uma
VARIAÇÃO em um OBJETO SONORO" (Souza, 2004, p.156). Se a figura de
Ferneyhough é algo abstrato, o gesto é a materialidade da música, cuja
expressão é de responsabilidade do intérprete, que tem o papel de ajustar o
rigor da escrita às pequenas variações presentes na performance.
6.3 Gesto vetorial
Como foi definido por Souza, o gesto é uma ação com intenção, que
produz algo intencionalmente. Ele tem duas faces - por um lado é um
movimento e por outro significa algo (Souza, 2004, p. 39-40). Ele pode ser
observado em dois estados: como figura, quando está descrito de alguma
130
forma na partitura; e como gesto, quando está sendo realizado em seu
estado material fundamental (Ferneyhough, 2000, p. 136).
A afirmação de que o gesto como figura significa uma espacialização
do percurso do tempo (Carvalho, 2005, p. 218) enfatiza uma qualidade
importante para a música, que é o deslocamento no tempo. O gesto cumpre
uma trajetória que tem valores quantitativos: pode, por exemplo, ser medida
em segundos ou pulsos; e valores qualitativos, que são obtidos a partir da
performance do músico. Ao executar uma frase musical o intérprete trabalha
com a tensão musical, ele conduz o aumento da tensão para um ponto e
depois diminui até a conclusão da frase, por exemplo. Este controle da
condução da música é basicamente o aspecto qualitativo do gesto, o que vai
ser compreendido como fator de expressividade do intérprete.
Esta forma de percepção da música, como uma linha que conduz a um
ponto, pode ser representada por um símbolo físico-matemático: o vetor que
é "utilizado para representar o módulo, a direção, e o sentido de uma
grandeza física vetorial" (BRASIL, 2008). A palavra vem do latim, vector, que
significa condutor. Das três informações que o vetor contém, o módulo
representa uma intensidade; a direção, o caminho traçado; e o sentido, qual o
percurso desenvolvido no caminho.
Para a física, o módulo é uma grandeza, um número real não-
numérico. Se você está dirigindo um carro a 80 km/h, a velocidade é o
módulo. Fica difícil, no entanto, definir grandezas para a percepção artística -
não somos máquinas de precisão, capazes de identificar uma dinâmica
executada no violino a 67 decibéis, ou uma nota lá tocada a 443 Hz. Com um
certo treinamento até podemos reconhecer estas grandezas físicas. Bons
131
profissionais de suas áreas são capazes de fazê-lo, porém as artes não estão
interessadas nelas. As artes estão interessadas mais em nossa capacidade
de perceber qualidades e relacioná-las. Portanto, nossos vetores artísticos,
não científicos, podem associar o módulo a grandezas relativas existentes na
música, tais como dinâmicas e andamentos. Esta definição pode parecer um
paradoxo em relação à definição do conceito físico, mas, de fato, a precisão
da intensidade está presente em ambas definições. A diferença é que para a
física a intensidade é medida com grandezas, com graus diferentes de
precisão, e para as artes a intensidade é uma medida absolutamente
pessoal, captada por nossos sensores, nossos ouvidos, e avaliada por nossa
mente, em graus maiores ou menores de impacto.
Basicamente relacionamos a direção, na música, com as mudanças de
alturas - se deslocamos do grave para o agudo e vice-versa. No entanto, há
outras possibilidades de se relacionar a direção com o deslocamento de uma
tonalidade à outra, a transformação do tema A no B durante a ponte de uma
sonata clássica, ou mesmo a direção temática de uma determinada forma.
Estas várias possibilidades demonstram que o gesto deve ser considerado
não somente no nível mélódico do intérprete solista, mas também em níveis
maiores da forma.
Por fim, o sentido significa qual o percurso tomado. Dizemos que um
gesto partiu do grave e foi para o agudo, por exemplo. Do ponto de vista do
intérprete, sempre haverá um só sentido; seja ele qual for, fisicamente o
gesto não pode ter dois sentidos ao mesmo tempo. No entanto, esta verdade
é válida somente para a realização física, podendo ter outro comportamento
na escuta. Se tocamos as notas lá e sol, nesta ordem, o sentido é da primeira
132
para a segunda nota. Ao ouvirmos esta pequena frase, somos compelidos a
ouvir também no sentido contrário à execução. Somente somos capazes de
identificar que foi tocada a nota lá depois que ouvimos o sol e comparamos
com o que foi ouvido; retroagimos no tempo e no sentido da execução,
conseqüentemente. Outra possibilidade de mudança do sentido original
realizada pelo intérprete é o que faz o programa Omax na obra Três Janelas.
A operação mais básica executada pelo programa é gravar a linha melódica
do intérprete e modificar seu sentido original, criando variações das frases.
Todos estes componentes do vetor, o módulo, a direção e o sentido,
nos mostram que um gesto, como vetor, considera seus aspectos
mensuráveis. O vetor é o componente que orienta como, quanto e para onde
está sendo conduzida a energia da música. Imaginar uma música sob o
ponto de vista dos vetores significa visualizar linhas de energia, com
capacidade de mudar suas constituições internas a qualquer momento,
podendo se fundir ou separar sem preparação, típicas representantes do
mundo virtual. Diferentemente de um tema da sonata, comprometido com a
unidade da obra, o vetor é apenas comprometido com a condução da
energia.
6.4 A integração das vozes
O vetor é um condutor, mas não podemos considerar que uma voz da
partitura seja um vetor. O grau de separação ou união das diversas fontes
sonoras presentes na obra define a composição do gesto.
133
Ao longo da curta, porém intensa história da música eletroacústica, a
questão da integração das dimensões acústica e eletrônica sempre foi um
item chave neste tipo de formação. Do lado do flautista e do instrumento
acústico, o uso das técnicas estendidas aproximou esta dimensão dos sons
eletrônicos; por outro lado, a eletrônica sempre pode produzir simulacros dos
instrumentos acústicos.
No primeiro gesto de Towdah (2009) de João Pedro de Oliveira
(gravação e partitura anexos), podemos observar que as vozes da eletrônica,
flauta e clarone são aproximadas pelo fator timbre; todas realizam sons de
ar, o que torna muito difícil identificar estas vozes separadamente. Junto com
o piano e a percussão, temos o gesto de abertura da obra.
fig. 21 - Sons de ar. Towdah, João Pedro Oliveira. comp. 1-3.
O timbre, porém, não é o único elemento capaz de promover a
integração das vozes. Outros elementos, tais como freqüências dinâmicas,
ritmo, desenho temático e acentuação também são utilizados, com o objetivo
134
de que a escuta de uma obra eletroacústica mista não seja separada em
faixas acústicas e faixas eletrônicas tocadas simultaneamente.
No trecho que vai do compasso 102 ao 105, o compositor aproxima o
registro das freqüências da eletrônica e da flauta, de forma que nos
compassos 103 e 104 não possamos separar as vozes. Ao contrário do que
ocorreu nos compassos 99 a 101, neste trecho a flauta realiza os glissandos,
o que ajuda no amálgama das vozes. O compositor escreve a eletrônica
como se fosse um instrumento tradicional, incapaz de fazer glissandos,
deixando para a flauta a tarefa de fazer o papel do tape.
fig. 22 - Freqüências próximas - Towdah, João Pedro Oliveira. comp. 103-105.
Apesar da busca pelo amálgama, observamos que Oliveira tem como
padrão na composição dos gestos não escrever o mesmo movimento para as
vozes, não realizar uníssonos. Nas figuras 21 e 22, por exemplo, cada voz
tem contornos rítmico e melódico próprios, mas mesmo assim a mistura é
garantida. Um elemento que invariavelmente é tratado desta forma é o ritmo,
sendo que na superposição das vozes o padrão é de figuras com valores
aproximados, mas não iguais. Na página 8 da partitura, compasso 22, a
percussão executa quiálteras de 5, o piano quiálteras de 6, o clarone duas
135
semicolcheias, e a flauta e o tape sons rápidos com ritmo livre, tudo em um
tempo de colcheia. Neste caso, a velocidade do gesto dificulta uma escuta
individualizada das vozes e a multiplicidade rítmica uma textura complexa
que não é um contraponto e nem um uníssono homofônico.
fig. 23 - Ritmos. Towdah, João Pedro Oliveira. comp. 22.
Poderíamos mostrar uma série de outros procedimentos de integração
entre as vozes em Towdah. Procedimentos com dinâmicas, tipos de
movimentos das vozes, da harmonia tímbrica, de frequências, etc. Toda esta
atenção em criar um amálgama dos sons na obra resulta para o ouvinte em
136
um grande gesto, que vai sendo subarticulado na medida da escuta. O
amálgama é responsável pela escuta dos vetores e linhas de energia, que se
juntam e separam a todo momento, sofrem mutações tímbricas ineperadas e
conduzem à tensão musical.
Obras como Lontano (1967) e Atmosphères (1961) , ambas para
orquestra, de György Ligeti (1923-2006), ao contrário, necessitam de uma
interpretação em que não se escute individualmente os instrumentos, mas
somente uma massa que vai se modificando na harmonia, no timbre e na
dinâmica. Ligeti participou do início da música eletrônica em Colônia, na
Alemanha, e o que ele fez em várias de suas obras foi trazer para o mundo
acústico técnicas eletroacústicas.
Em Towdah temos uma diferença importante para a música de Ligeti,
que é a composição das linha melódicas individuais dos instrumentos.
Oliveira constrói uma textura em que as vozes individualmente realizam
melodias com um alto grau de variação de seus elementos constituintes.
Temos, neste caso, vozes que podem ser compreendidas quando tocadas de
forma isolada, ao contrário de Ligeti, com suas texturas de notas longas ou
mesmo em ostinato em outras obras.
Outra diferença é o uso da voz eletroacústica, coisa que Ligeti não
utiliza em suas obras; ele apenas traz as técnicas composicionais da
eletroacústica para a acústica. Oliveira não só utiliza este mesmo
procedimento como o contrário - técnicas composicionais típicas da escrita
tradicional são utilizadas na voz da máquina, o que também é um fator
agregador das vozes.
137
A integração da eletroacústica com os instrumentos acústicos através
de um pensamento gestual, e principalmente pelos gestos orquestrais que
amalgamam os dois tipos de fontes sonoras, tem como produto uma textura
semelhante à das obras de Ligeti, em que as notas longas e os ostinatos são
procedimentos que tendem a anular o individualismo dos instrumentos em
favor do conjunto.
Em Towdah, o que escutamos é também uma tendência a favorecer o
grupo em detrimento do individual, porém com uma diferença: a velocidade.
A forma é articulada rapidamente, a todo tempo, por meio de uma
diversidade de elementos rítmicos e melódicos. O que poderia sugerir uma
textura polifônica soa como movimentos sonoros, gestos constituídos pelos
amálgamas que se juntam ou se separam, formando vozes nas quais, em
grande parte, não podemos identificar seus componentes tímbricos
individuais. A compreensão desta qualidade de Towdah pede ao intérprete
uma postura de busca pela imersão de seu instrumento nestas linhas
gestuais, sem fazer com que ele desapareça ou tenha lugar de destaque,
mas que se movimente e faça parte dos vetores sonoros que conduzem a
tensão musical.
Durante a gravação não só de Towdah, como de outras obras de
Oliveira, realizada pelo grupo de música contemporânea Oficina Música Viva,
de Belo Horizonte, em 2009, sempre houve uma discordância entre
compositor e regente. No curso natural do processo de gravação, o
compositor realizava a edição e a mixagem do material gravado e dos sons
eletroacústicos e apresentava ao regente. Este sempre considerava que o
material acústico estava escondido e pedia ao compositor que aumentasse o
138
seu volume; seu argumento era de que a expressividade dos instrumentos
acústicos era prejudicada em função da eletroacústica.
A discordância entre regente e compositor sugere uma encruzilhada:
do lado do regente, o senso de hierarquia das vozes, vozes principais e
linhas que devem ser destacadas, como na concepção clássico-romântica.
Do lado do compositor, a possibilidade de amálgama dos instrumentos, no
sentido de produzir novas resultantes, como em um caleidoscópio que, ao
mexer, muda os objetos de lugar, produzindo novas formas visuais.
A gravação anexa a este trabalho é o resultado final desta discussão.
Cada um cedeu um pouco, porém a recorrência do compositor em mixar os
sons extremamente misturados - foram gravadas cinco obras e o regente
sempre discordou da mixagem - nos aponta para uma mudança em relação à
regência defendida por Wagner. Towdah nos aponta para a necessidade do
intérprete tocar com um outro equilíbrio das vozes, se considerarmos que o
repertório clássico-romântico ainda é muito presente em nossos ouvidos;
mais ainda, para a necessidade do intérprete estar atento à historicidade
intrínseca das obras, de que nos fala Adorno, para se aproximar o máximo
possível da verdade da obra em seu tempo.
7. CONCLUSÃO
Este trabalho teve o objetivo de levantar alguns aspectos
interpretativos em obras eletroacústicas mistas, especificamente para flauta.
O repertório estudado abrange todo o período de existência deste tipo de
obra, sem, no entanto, ter a preocupação de fazer um levantamento histórico
ou exaurir todos seus aspectos. As obras escolhidas apresentam tipos de
interação e mediação entre os sons acústicos e eletroacústicos que julgamos
serem as mais comuns e de fácil acesso ao intérprete, formando um
panorama representativo sobre características de dispositivos técnicos,
necessidades interpretativas e estéticas das obras eletroacústicas mistas.
Do ponto de vista do aparato técnico necessário à prática da música
eletroacústica, vimos três grupos básicos: da fita magnética, das interfaces e
do uso do computador. Podemos apontar uma evolução natural dos artefatos
tecnológicos entre os grupos, sendo que para se tocar uma obra para fita
precisa-se apenas de um reprodutor de som qualquer, que não é comparado
à potencialidade, ou melhor, à virtualidade infinita do computador. Neste
processo evolutivo, foi fundamental o surgimento das interfaces, as máquinas
sensórias, que tornaram possível o relacionamento das máquinas cérebro
com o mundo externo. A fita magnética representou a possibilidade de
armazenamento do som, as interfaces, o controle dos dispositivos técnicos e
o computador, a manipulação do som em tempo real.
Contudo, hoje não podemos mais criar ou classificar as obras mistas
sob o ponto de vista do aparato técnico, uma vez que o computador
praticamente cumpre qualquer função. O que temos em uma configuração de
140
palco para obras mistas é a flauta e o computador, mediado por alguma
interface como o microfone e as caixas de som. A associação dos
instrumentos acústicos com estes dispositivos rompeu com os limites sonoros
dos instrumentos, e as qualidades de uma flauta, tais como timbre
característico, capacidade polifônica, limites de velocidade e dinâmica,
deixaram de ser definidas e limitadas, de certo modo.
A virtualização da flauta, através do computador, é apenas uma forma
de nos lembrar que o instrumento é apenas mais uma interface. A mais
antiga, e por isso a que tem um maior desenvolvimento tecnológico, o que foi
decisivo para sua inclusão junto à eletroacústica pura. De fato, a obra mista
não apenas agrupou duas dimensões sonoras diferentes, como incorporou a
tradição técnica no instrumento, em favor da expressividade musical na
eletroacústica.
Hoje não devemos separar a flauta dos dispositivos técnicos, mas
considerar que estes dispositivos são uma extensão do instrumento ou até
mesmo utilizar o termo hiper-flauta em um contexto mais amplo, de um
instrumento virtualizado, associado ao computador. Se classificamos uma
flauta em virtude das suas características sonoras, a hiper-flauta pode ser
classificada por suas características enquanto interface: um instrumento que
se segura transversalmente, com embocadura livre, determinado dedilhado,
forma de produção do som através do sopro, etc. Identificar a flauta através
da resultante sonora não é mais possível neste contexto em decorrência da
capacidade de manipulação do som pelo computador.
Neste ambiente eletroacústico, a relação mais importante para o
intérprete é entre a flauta e o computador, que conforme o exposto pode se
141
dar de três maneiras: De uma forma quase passiva, no caso de obras em que
os meios eletroacústicos estão pré-gravados e não é possível sua
modificação, a não ser de forma indireta. Não podemos atuar diretamente
modificando as ações da eletroacústica pré-gravada, mas, através da ação
do intérprete, podemos criar resultantes sonoras diferentes, modificar
dinâmicas, andamentos, ritmos, impingir toda flexibilidade do instrumento ao
pré-gravado, dando a sensação de flexibilidade ao ouvinte. No entanto, não
podemos deixar de frisar que neste tipo de relação o intérprete tem que
seguir a eletroacústica.
Uma segunda forma de relacionamento é a do intérprete controlador,
na qual ele manipula os controles da máquina através de alguma interface.
Podemos dizer ser um tipo de controle mecânico, que pode se dar pelo
apertar de teclas no computador, ou de um pedal que aciona seus comandos.
Na função de controlador da máquina, o intérprete reverte sua posição em
relação à forma anterior, sendo agora o comandante das ações musicais.
Das formas de controle apresentadas, podemos dizer que o pedal tem uma
resposta mais fácil, basta apertar o dispositivo. Já o processo de score-
following, que funciona a partir dos sons emitidos pelo instrumento, necessita
de uma acuidade do intérprete no sentido de emitir as notas certas, com a
afinação e as dinâmicas pedidas, o que torna o processo a princípio mais
instável. No entanto, com o score-following temos quase uma situação de
música de câmara, em que um instrumento reage ao outro. A diferença é
sempre que o computador vai reagir ao intérprete, neste caso.
A interação é a terceira forma de relação entre intérprete e máquina.
Proporcionada pelo ambiente virtual do computador, neste caso há uma
142
reciprocidade, sendo o computador capaz de compreender e criar fatos
novos em função dos estímulos recebidos.
É importante notar que em nenhum caso temos dois intérpretes no
palco. Até então, considerando processos de interação digitais amplamente
acessíveis e não pesquisas de laboratório, consideramos os dispositivos
como uma nova parte da flauta, uma extensão que rompe com suas
potencialidades sonoras. Levando em conta a teoria de Adorno, não
podemos identificar um aspecto idomático próprio no computador, o que
existe é sempre emprestado do intérprete que está ao vivo ou de outro
qualquer, o que descredencia a máquina cérebro de uma posição de
intérprete de algo para o posto de uma ferramenta de valor inestimável a
serviço do concertista.
Para o uso desta ferramenta, o estudo das obras apresentadas
levantou algumas questões importantes para a construção da interpretação e
performance das obras mistas. Do ponto de vista da operação dos
dispositivos, é importante saber quais aspectos devem ser conhecidos pelo
intérprete e como este conhecimento pode produzir uma melhor execução
deste repertório. Ainda com relação ao uso dos dispositivos eletroacústicos,
foram levantadas questões sobre como ocorre a sincronização, o equilíbrio
entre o intérprete e a máquina e como o intérprete pode conduzir a máquina.
Mais do que respostas a estas questões, o importante é tomá-las
como as perguntas básicas que um intérprete deve fazer ao estudar este
repertório. O surgimento destas questões, recorrentes no repertório
apresentado, mostram a importância de um estudo, preliminar à performance,
que as responda minimamente. Em minha experiência como observador de
143
montagens de obras eletroacústicas, pude constatar um sem número de
problemas técnicos inesperados, que em grande parte das vezes prejudica
completamente um concerto.
A presença de um grande virtuose do instrumento, que não tenha
estudado minimamente a parte eletroacústica das obras, não garante uma
grande apresentação, necessariamente. Se consideramos os dispositivos
eletroacústicos como parte do instrumento, é preciso que se dispense a esta
parte um estudo, assim como se dispensa ao instrumento.
Mesmo com a presença de um técnico, que conheça profundamente
os aparelhos eletroacústicos, vimos casos em que o controle está na mão do
flautista, e que abdicar deste controle significa também abdicar do controle da
expressividade da música. Não é preciso ser um grande entendedor para
controlar o equilíbrio do volume, é muito comum esta função estar a cargo de
um técnico; porém, de que valem anos de estudo, se no momento da
performance o controle da dinâmica está nas mãos ou ouvidos de outra
pessoa? Por melhor que ela seja, é um outro intérprete, com seus aspectos
idiomáticos particulares. Se a função do intérprete é preencher lacunas
deixadas pela partitura, estas questões nos ajudam a compreender algumas
das perguntas que são levantadas pela eletroacústica, que acrescentam
novos aspectos na construção de uma interpretação de obras mistas.
A qualidade de memória e compreensão de símbolos de alguns
dispositivos eletroacústicos, em especial do computador, estende o conceito
de partitura. As informações armazenadas na máquina têm a mesma função
das contidas na partitura tradicional; ambas contêm instruções de quais
ações o intérprete deve executar para se obter a obra, a diferença é a forma
144
como se apresentam. Na escrita tradicional, ou mesmo nas partituras gráficas
desenvolvidas individualmente pelos compositores, o elemento simbólico é o
alicerce desta linguagem. No ambiente digital do computador temos listas de
números, em um nível mais submerso, e uma interface visual gráfica, que
pode ser vista através da tela, no nível mais superficial. Porém, os tipos de
escrita, simbólica ou digital, são interfaces lógicas para as idéias do
compositor com o intérprete. Melhor que a partitura é o traço, segundo a
teoria de Nattiez (1990), em que são reconhecidos neste nível não apenas os
objetos simbólicos, como a partitura tradicional, mas também quaisquer
outros que armazenem a obra em outro estado que não o sonoro.
Todos estes objetos, materiais ou não, incorporados à música de
concerto, operam mudanças na forma de interpretar e ouvir música.
Responder à pergunta sobre o equilíbrio entre intérprete e máquina pode
apontar neste sentido. Se a associação do intérprete com a fita magnética
tinha o objetivo de conferir uma maior expressividade, esta associação trouxe
uma importante questão: como tocar de forma que não tenhamos
simplesmente duas fontes sonoras sendo tocadas simultaneamente?
Cada obra mista é uma resposta a esta pergunta. Quando
comparamos a primeira obra Synchronisms nº1 (1963) com Towdah (2009),
identificamos uma diferença grande: o nível de mistura entre os sons, sejam
eles quais forem, aumenta consideravelmente. Na obra de Davidovsky,
apesar da qualidade da gravação não ser boa, ouvimos mais claramente uma
flauta solista acompanhada pela eletroacústica. O que não ocorre com a obra
de Oliveira, em que não há um ator principal, não temos vozes, mas sons em
permanente mutação, que se unem ou se separam gerando o movimento e
145
estruturando a forma musical, uma obra na qual tanto a dimensão acústica
como a eletroacústica atuam como protagonistas. Se Wagner apontou para a
necessidade de uma nova compreensão da interpretação da música em
função das necessidades da melodia clássica, a obra eletroacústica mista
pode representar uma outra opção que, ao contrário do destaque solista,
busque a fusão.
É importante sublinhar que vivemos em um momento histórico plural,
em que várias tendências e pensamentos diferentes coexistem em perfeita
harmonia, especialmente na arte. Isto quer dizer que a eletroacústica não vai
ditar uma nova forma de interpretar ou ouvir a música de concerto, mas
apenas sugerir uma possibilidade, que, por sinal, já ocorreu em outros
momentos da história da música.
Lévy diz que
“vivemos hoje em uma dessas épocas limítrofes na qual toda a antiga
ordem de representações e dos saberes oscila para dar lugar a
imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação social
ainda pouco estabilizados. Vivemos um destes raros momentos em
que, a partir de uma nova configuração técnica, quer dizer, de uma
nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade é
inventado” (LÉVY, 1993, p. 7).
A eletroacústica é um sinal desta mudança da humanidade, ela traz
para a música novos sons, novos instrumentos e técnicas de se tocar, novas
formas de organizar as idéias composicionais. Ela não é muito tocada, mas é
impossível não considerar seus efeitos para a música e as práticas
interpretativas atuais.
146
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151
9. ANEXOS
9.1 Lista de gravações das obras citadas (CD com as gravações na
próxima página)
1. Almas, de Felipe Amorim. Flauta: Felipe Amorim (7’35)
2. Três Janelas, de Felipe Amorim. Flauta: Felipe Amorim (9’04)
3. Synchronism nº1, de Mário Davidovsky. Flauta: Cynthia Folio (3’54)
4. A Escada Estreita, de João Pedro Oliveira. Flauta: Felipe Amorim
(8’29)
5. Entre o Ar e a Perfeição, de João Pedro Oliveira. Flauta: Felipe
Amorim; Piano: Ana Cláudia Assis. (9’05)
6. Towdah, de João Pedro Oliveira. Flauta: Felipe Amorim; Clarineta:
Flávio Ferreira; Piano: Ana Cláudia Assis; Percussão: Bruno Santos;
Regência: Rubner de Abreu (12’54)
7. NoaNoa, de Kaija Saariaho. Flauta: Camila Oitenga (8’52)
8. A Atra Praia de Saturno, de Rogério Vasconcelos. Flauta: Felipe
Amorim (9’58)
9.2 Lista de partituras das obras citadas (CD com os arquivos na
próxima página)
AMORIM, Felipe. Almas. Obra não editada. 2005.
____________. Três Janelas. Obra não editada. 2008.
DAVIDOVSKY. Mário. Synchronism nº1. New York, McGinnis & Max, 1977.
OLIVEIRA, João Pedro. A Escada Estreita. Obra não editada. 1999.
________________. Entre o Ar e a Perfeição. Obra não editada. 2009.
152
________________. Towdah. Obra não editada. 2009.
SAARIAHO, Kaija. NoaNoa. London, Chester Music, 1992.
VASCONCELOS, Rogério. A Atra Praia de Saturno. Obra não editada. 2002
153
9.3 CD com gravações das obras citadas 9.4 CD com arquivos das partituras em PDF das obras citadas
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