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8/15/2019 TEXTO 01 - Gazolla Introdução à Tragédia Editado
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Capítulo I
NTRODUÇÃO Ã TRRGÉD R
E QUESTÃO DE MÉTODO
“É depressa transitório- tudo o que é celeste,mas não vão. Sempre conhecedor da medida,
com mão moderada, toca um deus as moradasdos homens, um momento apenas.”
Hölderlin
Há mais de vinte e cinco anos, quando pela primeira vez tentei
escrever sobre uma tragédia grega, ainda estudante universitária,foi-me dito sobre a pouca expansão de minhas colocações, umavez que esse gênero literário era de tal modo abrangente que setornava difícil falar devidamente sobre ele em todos os seus aspectos. Com o tempo, percebi a extensão da dificuldade. E bemverdade que nossos dias não conseguem apanhar o que foi a
tragédia grega em toda a sua amplitude, não só porque a estrutura cultural que temos é outra, como porque ela está bastantedistanciada no tempo, ao menos uma parte dela, uma vez que
l. Esta segunda parte foi, originalmente, publicada como volume autônomo, com o mesmo título, por Edições Loyola em 2001.
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outra parte persiste na memória moderna. Ainda experimentamos
encená-la, fazê-la paradigma para novos dramas, pensá-la.
Somos modernos, com fortes raízes medievais mais que gre-
co-romanas. Pelo solo iluminista que temos, pelos fundamentosdo cristianismo e de sua leitura específica do mundo de que somos
herdeiros, a tragédia grega só nos fala de perto naquelas coloca
ções que consideramos universais, ou seja, quanto à fragilidade
humana exposta no que nos ultrapassa, e quanto ao desconhe
cimento de nós próprios e das determinações incompreensíveis a
que estamos sujeitos. Ao adentrarmos nos textos clássicos, temos
a tentação de tratá-los como produção de um passado distante,
e acreditamos dogmaticamente que nossa medida do tempo é
indiscutível. Cronologicamente, temos razão, pois inventamos
nosso próprio calendário, mas só cronologicamente. Em virtude
disso, o drama trágico pode impor-se como um texto de época
para uns, ou como criação que aprofunda a psicologia huma
na, para outros, ou, ainda, como rica fonte filológico-literária.Alguns pesquisadores leem a poesia trágica como uma
excelente ocasião para seus estudos antropológicos e filosófi
cos. Provavelmente, todas essas posturas têm boas razões para
se estabelecer. Creio, porém, que o drama trágico, nascido de
contingências históricas gregas específicas, dificilmente será
inteligível para nós com alguma profundidade, ou trará algu
ma novidade que possa ser importante para nossos dias, scnão houver a seu respeito um exercício de distanciamento e
aproximação constante por parte do leitor estudioso. Quando
sobre ele escrevemos, são ensaios o que fazemos, como este que
pretendo agora expor, tentativas de tocar algo de essencial do
trágico como se estivéssemos próximos a um grego e a seu modo
de compreensão. Se assim não fizermos, nenhum conhecimentoinesperado nos trará um texto antigo, bem ao contrário, vamos
conhecê-lo como se estivéssemos diante de um espelho, refle
tindo sobre nosso modo atual de ler o mundo.
Em que pesem dificuldades ao tentar não refletir totalmente
a própria época do leitor atual do texto trágico antigo, deve-se
188 IPara náo ler ingenuamente uma tragédia grega
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buscar esse jogo de distanciamento necessário e proximidade
esforçada: a história grega da época e a língua grega são os
parâmetros fundamentais para isso. Pode-se argumentar que
não há razão para deixar de ler os gregos com nossos próprios
olhos, transportando os textos clássicos para nosso próprio
ideário. Por que não? Sim, é uma postura metodológica possível.
Há outras, todavia. Trata-se, afinal, de interpretações, marca da
nossa época. Não é o caso de contrapor, aqui, as hermenêuticas,
pois adentraríamos na extensa problemática das filosofias da
história, mas é importante assinalar essa abertura para muitoscaminhos aos estudiosos-intérpretes.
Esta investigação, este caminho aqui proposto, é um exer
cício intelectual difícil que, certamente, não conseguirá muito
mais dos textos estudados que projeções de nosso próprio
ideário, mas é possível encontrar alguns pontos que atinjam
o texto antigo naquilo que ele é, e não no que cada época diz
que ele é, ao tomar-se como paradigma o texto datado. Dizer isso é afirmar que um texto antigo encerra algo de atemporal.
Sim, pois ele pode falar por si mesmo e trazer a época em que
foi escrito, para o espanto daquele investigador que se posta na
fixidez das estruturas de seu próprio tempo. Por crer que seja
viável esse método agora sugerido, por aceitar essa abertura é
que passado tanto tempo ouso escrever sobre a tragédia, umavez mais. A sensação de estar limitando o que é o trágico grego
ao estudá-lo persiste, não propriamente por tentar indicar algo
distante e difícil de apreender —de fato, assim é —, mas porque
o trágico está idealizado entre nós como produção humana tão
vigorosa, que se torna quase inefável, dada sua transcendente
grandiosidade. Assim representamos as tragédias gregas, assim
nos afastamos ou não delas.Tendo a discordar dessa representação que intérpretes acei
tam. A imagem de imponência e abrangência da tragédia grega
dificulta a aproximação dela em tal grau, que acreditamos ser
impossível tocar o simples nela presente. Ora, o simples é sempre
difícil, sabemos. Mas não parece impossível apanhar algo do “ser'’
Introdução a tragédia e questão de métQdo I 189
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trágico mesmo assumindo nossas próprias representações, e não
me persuadem as teses da impossibilidade da busca atemporal de
algo que se possa doar nele mesmo. Negar a persistência de umacultura que chegou até nós por meio da linguagem de muitos
recolhedores, ou criar uma instransponível barreira (idealizada)
sobre ela, já é, de antemão, fixar o desenho rígido do campo de
onde se fala e como se deve falar por adequação. A idealização
da cultura grega, no caso, é datada, pertence aos intérpretes que
a leram e a aceitaram como a “infância dourada do Ocidente''
(penso nos românticos alemães e nas interpretações deles herdeiras). Podemos divergir sobre os valores “infância” e “dourada” e
nem por isso desconsiderar o enorme valor que a cultura grega
antiga teve ou tem para nós, ocidentais, ainda.
Por vezes, o que temos a buscar nessa cultura é ciaramente
mais complexo do que pode alcançar nossa atual racionalida
de, principalmente se pensarmos nos textos filosóficos. Quemsabe, a cronologia progressiva dos historiadores (e filósofos da
história) enquadrem demasiadamente as expressões culturais
antigas, não só a grega, em paradigmas que facilitam a herme
nêutica mas deixam escapar muito do essencial dessas culturas
que facilmente se oculta, como se sabe. Ou não aceitem, tais
historiadores, o que nomeamos “essencial”, por não acreditarem
na possibilidade de união do ser, do dizer e do pensar, passível de sinalizar-se em leituras atentas de uma época, mesmo
que de modo limitado. Realmente, tal possibilidade não está
bem acomodada em nossos dias, apesar de existir.
O trágico pode estar muito perto de nós se consideramos
que, enquanto humanos, vivenciamos —e não necessariamente
teorizamos —as emoções e parte dos valores que perpassam esse
drama, como se fôssemos assistentes do teatro grego do séculoV a.C. Basta que não nos fixemos no tempo “crono-lógico” e
lembremos que os grandes temas mítico-trágicos ainda nosdizem respeito de modo muito próximo: afinal, a alma humana
tem um lógos tão profundo que nada impede pensar que o tem
po das vivências lógico-psíquicas seja marginal aos calendários
190 I Para nãD 1er ingenuamente uma tragédia grega
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inventados, de modo que o trágico da Grécia clássica não é umtempo passado, mas presente contínuo em nós, em muitos de
seus aspectos, e que reconhecemos na alma.É preciso, ademais, apontar que ao escrever este ensaio não
pretendo seguir os estudos acadêmicos quanto ao modo atual deinterpretar o que foi uma tragédia grega. Não me seria possível,
já que são muitos os acadêmicos de literatura grega —uma áreabem delineada nas universidades —que têm estudos detalhadossobre a poesia trágica, abordagens específicas à própria área,rigorosas e pertinentes ao que nomeamos estudos literários.Tais perspectivas nãò foram, necessariamente aqui consideradas.O trágico interessa-me bem além dos campos universitários,apesar de neste ensaio ele ter sido focalizado também a partirde meu principal campo investigativo, a filosofia, como nãopoderia deixar de ser.
Então, falemos sobre o trágico, introdutoriamente. Mas nãoingenuamente.
1. □ que é □ drama trágico?
Os dias de hoje não são lidos como sagrados, bem ao contrário.
Nossos estudos são muito mais informativos que reflexivos, eas interpretações que fazemos passam, inevitavelmente, porexcessivas representações que outros fizeram dos textos clássicos que nos chegaram. Apesar desses limites, há uma espéciede “porto seguro” que se deve ter em mente, no que concerneà Grécia das tragédias: ela nos deixou um legado escrito, e,
mesmo ao levar em conta os possíveis acréscimos e decréscimosa ele impostos, deve ser sobre esse legado o exercício de compreensão, bem como sobre as notícias mais próximas à épocadas encenações trágicas. A Grécia Antiga, é preciso repetir, nãoé a Idade Média, não é a Modernidade. Nossos olhos têm debuscá-la originariamente, na medida do possível, no exercíciode distanciamento e aproximação de nós mesmos, de nossos
Introdução à tragédia e questão de método I 191
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significados e valores. Não há como substituir esse barco que
somos nós, nesse porto que são os textos em outra língua que
nomeamos “morta”. Somos intérpretes, sim. Por isso, estudar os
textos trágicos é sempre fazer um “ensaio”.
Obvio o que está sendo dito? Não tanto. Não rarasvezes,
lemos e ouvimos estudiosos afirmarem, por exemplo, o “cien-
tificismo” e o “empirismo” de um Aristóteles, o “cristianismo”
e o “reencarnacionismo” de um Platão, a “ingenuidade física” dos
primeiros sábios gregos, a “irracionalidade” do mito. Ou, ao revés,
o “dionisismo” de um Nietzsche, o “trágico” de um Shakespeare,
o “aristotelismo” de um Tomás de Aquino. O que querem dizer
exatamente tais expressões aplicadas ana- cronicamente? Não se
sabe, não se explicam bem aqueles que as usam, dando comoassentado que são, por todos, plenamente inteligíveis. São, se
adotarmos uma chave significativa retirada de nosso próprio
ideário ao elegermos uma ou duas características de um
Aristóteles, de um Platão ou do que os poetas falaram dos deuses
e que nos seja mais compreensível. Estaremos, evidentemente,
tomando a parte pelo todo, erigindo um sentido de época eexpandindo-o a toda nossa história. Parece ser de nossos dias, afinal,
buscar grandes sínteses e criar palavras com sufixo em “isrrio” que
as acompanhem. O fato é que esse legado —os textos gregos —está
ainda entre nós, ainda o consideramos importante na medida em
que dele falamos
e em que nos trazem urn sentido que nos importa. Por quê?
Estudemos a tragédia grega para tentar responder.
O primeiro drama trágico2 foi encenado provavelmente por volta de
530 a.C, na tirania de Pisístrato, durante as Grandes
2. Sobre a palavra “drama”, diz Aristóteles, na Poética (cap. III, 4, 1448a):“Os dois (Sófocles e Aristófanes) apresentaram sua imitação por personagens
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Dionisíacas (ou nas Dionísias), festas realizadas durante osmeses de março e abril em homenagem a Dioniso Eleutério.
Tal início, sob o governo de um tirano, tem levado a crer queteria havido uma intenção de Pisístrato na popularização deseu governo, que antecedeu a pólis isonòmica. É possível, poishá notícias de que não só os homens iam ao teatro, mas também as mulheres, os escravos e as crianças. Segundo algunshelenistas, os pobres recebiam algum pagamento para assistiràs encenações trágicas, daí inferindo-se que a assistência eranumerosa. A primeira entre as tragédias que chegaram até nósfoi Os persas , de Ésquilo, mas não foi ele o primeiro trágico3.Alguns documentos indicam Téspis como o primeiro trágico, ehouve outros que a ele se seguiram, como Quérilo e Frínico4.
A tradição helenista considera que a tragédia tem seuapogeu, como expressão cultural da Grécia isonòmica, no sé
culo V a.C, e ajudou a firmar o novo étbos exposto nas novasformas institucionais da cidade. Suas raízes, acredita-se, sãogeradas nos arcaicos rituais ao deus Dioniso. Um sinal distoé o fato de o nome "tragédia” guardar a raiz de tragos (= bode;trago + aoidé = canto do bode), em referência a um antigo ritualde sacrifício de um bode ao deus nas antigas comunidades5. No
em açào diante de nós. Daí vem que alguns chamam as obras de dramas(idrdmata ) porque fazem aparecer e agir os 'próprios personagens”’.
3.
Epígenes, de Sición, talvez tenha sido o primeiro, mas seu sucessor teria sido Téspis. Sua tragédia teria sido encenada na 61* Olimpíada (536/535/533/523), durante as grandes reformas de Pisístrato, já como parte dos cultosda pólis. Dos outros trágicos que se seguiram a Téspis, Ésquilo foi, segundolistas recuperadas dos vencedores, o décimo poeta trágico (in A. Lesky,História
da la literatura griega, p. 254 ss.).4.
A palavra étbos significa primariamente casa, morada; daí, costumes. Não será traduzida neste trabalho, como não o será a palavra lógos, que significa palavra, argumento, pensamento exposto articuladamente e que podeser recolhido pelos que ouvem (ou leem) porque tem sentido.
5.
A referência a essa raiz acha-se nas obras da maioria dos intérpretes;
porém, segundo alguns, não é indiscutível tal origem. Vide, principalmente,as obras de J.-P. Verkant a respeito (cf. bibliografia ao final).
Introdução à tragédia e questão de método I 193
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encanto, não se deve pressupor que tal ritual tivesse persistido naGrécia das póleis , e a ligação da poesia trágica com os rituais de
sacrifícios está no campo da simbolização, assinalado pela escolhado período em que é encenada: nas festas dionisíacas, quandoa dança, a festa, o riso, os jogos e o delírio ruidoso que o corode sátiros se empenha em mimetizar nas ruas são indicadoresdas antigas orgias do culto dionisíaco. É claro que, ao falar emorgia, não se está indicando o significado assentado entre nós
dessa noção, mas o sentido grego antigo da palavra, ou seja, decelebração dos mistérios. Uma festa dionisíaca é, portanto, umaforma de celebrar os mistérios, e quando isso ocorre na pólis como mimetização é uma espécie de laicização dos baqueumas6.Os cidadãos mimetizam nas ruas a celebração específica dos iniciados nos templos, para aproximar-se do deus.
A poesia trágica não mantém na Modernidade seu significado mais profundo, de festa religiosa. Seus temas, sim, forampreservados na literatura, indicativos dos grandes sofrimentos eda fragilidade dos homens, mas a celebração a Dioniso não pôdepersistir, dada sua especificidade mítico-religiosa. Tratando-se deuma festa ao deus, por que a referência contínua ao sofrimentodos homens, aos seus limites dolorosos sempre apontados nogênero trágico? O que a figura de Dioniso e seus rituais libatórios,suas festas e procissões têm a ver com tais aspectos emocionaisdo homem? A. Lesky7, intérprete cuidadoso das tragédias, notasobre essa questão:
Por mais elementos dionisíacos que contenha a tragédia, há
um que quase nunca o c, seu tema. “Isto nada tem a ver comDioniso” já era um provérbio comum entre os antigos, c as fre-
6. Baqueumas são os atos rirualísdcos exigidos dos iniciados para acelebração dos mistérios de Dioniso ou Baco.
7. Op. cit., p. 253.
19M I Para não 1er ingenuamente uma tragédia grega
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quentes intenções para explicá-lo mostram quanto estava vivo
neles nosso problema.
Mesmo que compreendamos que a festa a Dioniso não im
plica divertimento e que é um ritual sagrado, não são também
compreensíveis os temas trágicos que seguidamente misturam
crimes de sangue e mortes terríveis dos heróis-personagens.
Assim, é preciso atentar para o fato de a tragédia grega não ter a
conotação que, em geral, lhe damos, de um. drama que pretende
mergulhar no sofrimento, conotação que se estruturou historicamente e que aponta para a criação do adjetivo “trágico”. Tragédia
é um substantivo, é um ritual religioso-político apresentado na
forma da encenação, num espaço de grande visão —o teatro —
para os homens que vivem nas póleis, e faz parte de uma série de
outros eventos em homenagem ao deus Dioniso.
Nessa encenação, os gregos já sabem sobre as históriasmíticas que serão repetidas pelos poetas —esses seres criadores
de novas palavras e ritmo, capazes de trazer o já conhecido na
forma do novo, que conseguem surpreender e comover todos os
presentes. O conteúdo do drama trágico são os temas míticos
passados de geração em geração e mantenedores da memória da
raça grega. São eles parte formadora da própria representação
que essa raça tem de si mesma. O sentido que hoje temos detragédia e que se vincula ao adjetivo “trágico” —uma qualifi
cação direcionada ao triste, aos grandes sofrimentos —faz que
esqueçamos sua conotação cívica e mítica enquanto substantivo,
como será abordado adiante.
Comenta, ainda, Lesky8 que a tragédia grega converteu-se
em trauerspid , em uma peça triste, expressão ao gosto do roman
tismo alemão, a quem tanto a tragédia grega falou de perto. O
estudioso da cultura clássica lê, nos textos trágicos, que não é
necessariamente assim.
8. A. Lesky, A tragédia grega (Die gricschiscbc tragòdie), p. 37.
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2. Nietzsche e sua
leitura do dionisismo
Do século XIX, herdamos sobre a tragédia e suas relações como dionisismo as colocações firmadas por Rohde e Nietzsche9,
bem-aceitas em nosso século pelo vigor que ainda persiste do
pensamento romântico alemão quanto ao “redescobrimento”
do brilho da cultura grega10 ou de certa interpretação des
sa cultura. Através das leituras nietzschianas da Grécia, por
exemplo, foram assentados certos significados peculiares dopar Dioniso-Apolo, o que nos acostuma a uma visão específica
do trágico como sendo dionisíaco. E o dionisismo suigeneris de
Nietzsche que nos leva a assim pensar, pois não há, necessa
riamente, esse par divino e quase antinômico nas tragédias, ao
menos ao modo como o filósofo o estruturou.
Nietzsche quis ver nas tragédias a polaridade entre essas divindades, Apoio e Dioniso, em função de sua própria interpretação de
“dionisíaco” e de “apolíneo”, fundamental para a. boa compreen
são de suas reflexões. Ele lê a tragédia, em 1871, como expressão
dessas duas divindades: quer pela bela forma e pela medida, no
caso de Apoio, quer pelas máscaras e pela desmedida, no caso
de Dioniso. Este, sendo a própria expressão do teatro trágico, é
também o cerne do trágico propriamente dito, segundo pensa o
filósofo, e é ele, o Dioniso trágico, quem transporta os helenos “ao
fundo das coisas”, como diz, a esse fundo metafísico que para essa
9. Erwin Rohde, Psique, e, Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia no espirito da música.
10. Não é o caso de analisarmos as colocações de F. W. Hegel -- uinestudioso das tragédias gregas e do brilho dessa cultura —, pois sua reflexão
se insere em seu próprio sistema reflexivo, advindo daí que suas interpre
tações, por vezes de extremo interesse, estão, entretanto, mergulhadas em
sua filosofia. Nietzsche faz o mesmo, e é o exemplo que escolhemos paraapontar essa questão.
196 ! Para nao 1er ingenuamente uma tragédia grega
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filosofia é o dionisíaco enquanto pura aremporalidade, “vir-a-ser”,
instante, saída da medida de tempo que o cotidiano carrega. O
cotidiano é o tempo medido, categoria!, compreendido, valorado;é a historicidade que sufoca o fluxo. Diz o filósofo:
[...] o consolo metafísico —em que nos deixa, como já indico
aqui, toda verdadeira tragédia —de que a vida no fundo das
coisas, a despeito de toda mudança de fenômenos, é indestru-
tivelmente poderosa e alegre. O consolo aparece com nitidezcorporal corno coro de sátiros, como coro de seres naturais que
vivem inextinguivelmente como que por trás de toda civilização
e, a despeito da mudança das gerações e da história dos povos,
permanecem eternamente os mesmos11.
Evidentemente, nenhum poeta grego está pensando, ao
escrever um poema trágico e encená-lo, que está levando os
gregos ao “fundo das coisas”, nem Nietzsche imagina isso. Ele
fala aos leitores modernos, e em sua interpretação a tragédia
é expressão privilegiada para que os espíritos históricos que
somos nós —iluministas que edificamos em pedra a nossa ra
cionalidade —afirmemos a potência originária quase perdida.
Essa potência apresenta-se na historicidade humana, sim, não
se perdeu, porém está excessivamente estruturada pelas másca
ras civilizatórias, esquecida da própria origem. A Modernidade
transformou profundamente essa força dionisíaca primária em
representações excessivas de medida e de valores, de modo que
ela não mais é reconhecida. Essa é a perspectiva nietzschiana de
abordagem da tragédia grega como expressão de Dioniso.Nietzsche visa ao processo civilizatório e aos valores que
desumanizaram o humano, que fizeram o homem enregelar e
esquecer essa força que ele nomeou também Dioniso, da qual a
11. Op. cie., parágrafo 7.
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tragédia é uma expressão clara. Dioniso como a Wille zurMacbte
nietzschiana, a vontade de poder, pode emergir mais “puro” na
poesia trágica grega, que, segundo ele, é uma expressão estéticapoderosa porque mais próxima à própria constituição primeira
do ser. A historicidade mascaradora e seus valores não teriam
ainda enfraquecido o poeta trágico grego —como irão enfra
quecer outras expressões criativas do homem12 —, pois, pensa
o filósofo, ele foi capaz de pensar e falar sobre o herói trágico,
esse ser que apresenta sua vontade de poder de modo grandioso, bem exposta na inspiração dos versos trágicos e vivenciada
pelos gregos do século V a.C.
Nessa leitura, Nietzsche aponta o poeta trágico como aquele
que soube vislumbrar, ao encenar sua poesia no teatro, a potência
do humano sem as máscaras excessivas da historicidade, soube
assumir o próprio Dioniso como única máscara aceitável e menosdistanciada do humano ao transformar em versos, diante de todos
e sob os auspícios do deus, os valores e ações mítico-trágicos.
O filósofo nomeou essa força originária do ser vivo “vontade
de poder” e, sensível ao drama trágico como expressão estética
captadora dessa força, seu gênio filosófico nos presenteia com
inesquecíveis intuições sobre essa poesia (como será visto adiante), apesar de sua concepção de tragédia ter se originado bem
mais para adaptar-se à própria articulação de sua filosofia. Crê
Nietzsche que a tragédia é um transporte ao atemporal, retira-
nos —pela visão do instante (ou pela saída da cronologia coti
diana) que propicia, pela capacidade que têm os versos e imagens
trágicos de nos transformar —de nossa valorada historicidade
e da interpretação demasiadamente logicizada do mundo a que
estamos acostumados. O mascaramento civilizatório, como ele
12. Como se sabe, Nietzsche pensa, nessa época em que escreve essa
obra, que há na Alemanha um possível ressurgimento do dionisismo trágico
na música de R. Wagner.
198 I Para não 1er ingenuamente uma tragédia grega
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considera a historicidade e sua hermenêutica, leva o homemmoderno —porém não levou o grego —a afastar-se do “coro de
sátiros, como coro de seres naturais”.As máscaras construídas ao longo da civilização, diz ele,
podem destruir-nos, pois ao tentarmos afastar a força primordialque sempre permanece, “a despeito da mudança das geraçõese da história dos povos”, perdemos a nós mesmos enquantoidentidade primeira. Ele pensa os modernos como rumina-
dores de uma racionalidade despotencializada, maldigerida, eo grego trágico como aquele que, de afiado olhar, conseguiumanter o que hoje perdemos, isto é, o "consolo metafísico”necessário que redime o homem de seu fatal direcionamentopara a fixidez, sempre uma falsa fixidez, afinal13, pois se tratada fixidez das máscaras sobrepostas, máscaras interpretadas
como o próprio rosto.Mas é a tragédia grega o que o pensador alemão do século
XIX diz que ela é? Podemos compreendê-la a partir dessa matrizda vontade de poder contraposta à história? Quando o pensador articula-a ao desenvolvimento de seu próprio pensamento,consegue resgatá-la em sua especificidade? Como responder?
Essa é, na verdade, uma falsa questão, e Nietzsche não cogitourespondê-la, pois não pretendeu compreender a tragédia greganela mesma, apesar de ter apontado ângulos de extrema importância para um investigador dos clássicos. A visão metzschianaé de grande interesse para o estudioso da tragédia grega, mas éfundamental tentar compreender a manifestação grega a partir
de seu próprio solo. É bem verdade que a força discursiva deNietzsche influencia o investigador da tragédia grega, e talvezsua marca esteja presente neste ensaio de modo silencioso.
13. Para compreender melhor tais aspectos de historicidade versus a-historicidade no pensamento nietzschiano, as obras Considerações extemporâneas e Genealogia da moral, principalmente, são de grande ajuda.
Introdução à tragédia e questão de método I 199
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Algo da filosofia nietzschiana facilita a compreensão da
tragédia —o que o filósofo capta de universal ao pensar o ho
mem —, mas sua reflexão muito peculiar não chega a explicitar
o trágico grego. Doa-lhe, porém, certo sentido que, poder-se-iadizer, é a concepção trágico-romântica, lista pode auxiliar-nos, e
certamente o faz, mas não só a ela se deve recorrer. Hoje, todos
somos intérpretes. No entanto, ao assumir a poesia trágica em
seu solo originário, na medida do possível, talvez seja viável
encontrar algo de sua especificidade, só e somente só porque
estaremos buscando o novo, e não uma projeção do que re
presentamos que somos. Se a tragédia fosse simplesmente um
fato passado não dialogaria conosco, nao persistiria como fato
e sentido interrogativos.
Por que nos falam, nos interrogam tão de perto as tragé
dias? Porque há nelas o drama humano, demasiado humano,
da existência, há o drama universal do homem envolto em suas
afecções, na natureza, no sagrado e no profano, em seus limitese deslimites. Nietzsche adivinhou essa força e reconheceu-a
como Dioniso atravessando a tragédia e desnudando o que há
de eterno e ilogicizável no homem, um ser dividido, tensional,
limitado, por isso mesmo frágil. Isto é o atemporal, aquilo que é
sempre reconhecido. O que na tragédia nao nos diz mais nada,
forçosamente? O que concerne à encenação teatral como ritualmítico, político e religioso. Nesse ponto, há um distanciamento
que não se pode ultrapassar.
3. 0 sac rifíc io e a cata rse comunitá rios
resgatados pela poesia trágica
A tragédia é portadora de mitos e lamentos e aparenta estar
distante do lado alegre e festivo exigidos nos rituais dionisíacos,
como foi dito. Esses ri tuais a Dioniso têm a necessária presença
200 I Para não 1er ingenuamente uma tragédia grega
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do vinho, dos grupos de dança, do canto e da perda dos limites
—urna difícil, porém desejada, experiência humana recolhidaà época das Dionísias. Algumas de nossas atuais ciências, ealgumas linhas da psicologia e da antropologia principalmente, explicam serem necessários ao homem os rituais sagradoscíclicos, pois as celebrações desse tipo expurgam mimeticamenteos males de uma comunidade. Há uma sabedoria humana que
se mantém na preservação dos rituais, permanência essa quaseinexplicável para nossa época racionalista e laica, que não conseguiu extirpar, no entanto, todos os ritos sagrados14.
É interessante lembrar que os rituais dionisíacos da Grécia
não lhe são todos específicos. Nos grupos primitivos hebreus(mas não só neles) havia o sacrifício ao bode quando, ritualis-
ticamente, todos os erros vividos pela comunidade durante umciclo eram expurgados por transposição ao animal sacrificado.
E havia lágrimas, e havia risos, uma vez que todo rito comporta con- trdnos l5j única forma de vivênciapurificatória. Também as tragédiasestão plenas de situações sacrificais, como será abordado, quecomportam tensões de contrários, geradas pela hybris , ou seja,
pelo excesso, pela ação desmedida. Tais situações remetem ohomem que as comete ao que a modernidade nomeou culpa ,noção a ser aprofundada e que, como será argumentado, seriapreferível não usar para a tragédia. As noções de falha ou erro(bamartía) são mais adequadas à cultura grega.
14. A questão da importância da mimética para o ser humano é importante e difícil. Platão analisou a mimesis de modo que criou, para o Ocidente,uma tradição investigativa a respeito, que não é o caso de aprofundar nessaocasião, apenas apontar.
15. Conforme K. Jung (.Natureza e psique, Psicologia do insconsciente , Psi cologia e alquimia e outras obras), o que diz respeito ao inconsciente nuncadeixa de ser contraditório, sendo uma situação humana contraditória adifícil vivência do que compreendemos por consciência e não-consciência,
ou razão e não-razão.
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Na tragédia, toda situação que implica a ação desmedida
de um personagem expressa a hamartía, a falha ou erro daquele
que agiu de modo excessivo e gerou uma difícil situação. O erro
tem um valor e uma vivência comunitária expressos na figura do
herói trágico, e os assistentes do teatro sabem quando uma ação
se apresenta como bybris heroica, como excesso, podendo prever o
peso do sacrifício que virá ao herói, como expiação, para a devida
purgação do comunitário. A tragédia, portanto, resgata o que há
de fundamental a pensar nas relações humanas em comum.Primitivamente, não resta dúvida de que o erro —e é pre
ciso pensar por que e quando o Ocidente substituiu a noção
de erro pela de culpa —é expiado no sacrifício primariamente
comunitário, apresentando-se como certo sentimento pertinente
a cada homem do grupo que se vê em débito com a totalidade
comunitária. Essa visão de si mesmo enquanto pertencente
ao grupo, e dele retirando a própria identidade, cria o débito
comunitário e é proporcionada, também, pelo ritual sacrifical,
mas não só por ele. Todas as ações são conjuntas, sacrificais ou
não, todos os valores das antigas comunidades são estruturados
no conjunto e assim vivenciados, não havendo nenhuma indi
vidualidade manifesta, nenhum poder singular, nem mesmo a
do rei-herói. Os erros são expiados e exorcizados nesses ritosde sacrifício, quando são renovadas as emoções concernentes
aos possíveis males vividos durante um intervalo de tempo
pela comunidade, em geral um ciclo anual. E sendo sempre
comunitários, provenientes do modelo de identidade que cada
homem tem e que emana da própria comunidade, estão eles na
dependência —para tratar-se de um “erro” —do modo de valorardo conjunto. A identidade de cada um é a do todo, de modo
que o erro cometido não é responsabilidade de um homem,
mas é previsível por todos, aceito e expurgado conjuntamente,
apesar de ser praticado por alguns.
Ora, o trágico presentifica essa estrutura comunitária mí
tica, por isso é importante atentar para o fato de que não há o
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que nomeamos culpa trágica (questão que voltará a apresentar-
se para discussão, adiante), na medida em que o que nomeamos e representamos como culpa é sempre compreendido emseu sentido individual, ou seja, como um sentimento interiordilacerador, pertinente apenas àquele que se sente em dívidacom o todo e/ou consigo próprio. Esse sentimento está no silêncio de cada um. E mesmo se externalizada a possível “culpa”de um criminoso, por exemplo, apontada pelas sentenças de
nossas instituições jurídicas, ela não está sendo necessariamente vivenciada pelo sentenciado como sentimento de dívidacomunitária a ser paga; muitas vezes, ele, individualmente, nãosente a dilaceração interior por ter efetivado uma ação contraa comunidade. O “culpado” nem sempre sente culpa.
Nas antigas comunidades, porém, ninguém pode perma
necer manchado por um erro sem atingir a si mesmo e a todaa comunidade de uma só vez, independentemente de qualquersentimento de interioridade, tão conhecido pela época moderna.Sua identidade não lhe é específica, nem a expiação comunitária é vingança contra ele, mas purgação para si mesma. É acomunidade quem dá referência àquele que errou (e o vice-versa,
aqui, é válido) sobre a mancha que carrega e que pode trazerinfelicidade a todos, razão por que tem de ser purgada. Dirimirum erro é salvar a comunidade e nunca a si mesmo, questãode difícil compreensão para nossa época.
Se uma sociedade manchada vem a sentir-se purificada, oerro cometido por um de seus membros desaparece, à margem
do modo de sentir daquele que o cometeu (o que não está em jogo neste caso), assim como desaparece o poder daquilo peloque a mancha foi possível. Sobre tais considerações, temos nastragédias alguns traços claros da inexistência da culpa individual, e os estudos antropológicos mais atuais têm demonstrado a importância desses aspectos que diferenciam nossa vidacomunitária da das sociedades primitivas.
Introdução à tragédia e questão de método I 203
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No que se refere à ação trágica, há algo nela que preserva os
antigos rituais sacrificiais expiatórios para o desaparecimento
da mancha, no conteúdo e na forma. A encenação como ho
menagem a Dioniso guarda referência dos mais antigos sacri
fícios ao bode, que, como foi apontado, é uma interpretação
cabível e assentada entre os intérpretes. Sabe-se, por notícias
de Aristóteles na Poética, que a purgação é uma kdtharsis ou
purificação e faz parte do teatro trágico. Os gregos do século
V a.C. sabiam bem disso ao escolher o período das festas dio
nisíacas para encenar as tragédias, pois as homenagens arcaicasa Dioniso necessitavam, também, do acompanhamento dos
ritos sacrificiais purificatórios. Nesse ângulo, o teatro trágico
é, também, uma forma de ritual purificatório.
A kdtharsis não deixa de ser um modo de retirar a mancha
comunitária, uma forma quase laica de fazê-lo porque simbólica
em comparação com os efetivos rituais sacrificiais primitivos.Os sacrifícios passam a manifestar-se na encenação e nas pa
lavras, são récitos e interpretações rituais através dos versos,
e a expiação do erro do herói, trágico ou épico, é cantada e
encenada. Desse modo, o ritual de sacrifício não deixa de ser
metafórico, porque en lógos. Mas a purificação não se efetiva en
lógos : a encenação trágica é, ela mesma, purificatória, na medida
em que faz que os assistentes do drama vivenciem as problemáticas dos personagens que estão, geralmente, relacionadas
à própria vida política da cidade, ao dia a dia de cada um, aos
valores de ontem e aos daquele momento, repassados durante
a encenação. A memória de uma raça é reconstruída no teatro
para ser orgulhosa de si ou para interrogar-se. Isto significa
dizer que o grego assistente do drama trágico reconstrói, suaprópria identidade cívica e como pessoa, no teatro.
Queremos focalizar o fato de que tanto o sacrifício como
a catarse têm um valor específico na tragédia, e a hamartía , o
erro, é a pedra de toque para pensá-los. Voltando, então, à noção
de erro afastada da noção de culpa —que lhe é historicamente
204 | Para não ler ingenuamente uma tragédia grega
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posterior —, devemos guardar-nos de ler claramente um Édipo,por exemplo, como “culpado” por erros imperdoáveis, como
normalrnente se ouve dizer. É possível falar em erro ou falhade Édipo por ter matado o pai, tido geração com a mãe e, semouvir as boas palavras de Tirésias, ultrapassar o que está à margem da senda dos homens, ou seja, o lote que lhe designaramos deuses, sua destinação humana.
Exemplifiquemos o que está sendo apresentado nessa
tragédia. Laio, pai de Édipo, afasta-o de si desde o nascimentoem consequência da sentença oracular: o filho mataria o pai.De início, tenta-se fugir ao que é destinado. Para que não secumpra o lote de Moira, tudo passa a ser feito em direção aoseu cumprimento, sem saber-se disso. Édipo matará o pai egerará com a mãe ao voltar a Tebas. Tirésias o adverte, mas suas
palavras não fazem sentido a Édipo. Sem poder compreenderos conselhos do adivinho, ele trouxe a mancha para a cidadee para si mesmo, cumpriu o lote do qual se afastara. Ao erro,todos os homens estão sujeitos, e quanto mais sublime umhomem —no caso de um herói como Édipo —maior será seupoder de errar ou acertar16. Próximo ao divino, ele tem a força
de, pela bybris , pelo excesso ou desmedida (sempre presente noherói), transcender os homens comuns pelo lado do divino,ou afundar-se aquém da animalidade17. Enquanto os homenscomuns estão entre os deuses e as feras e não ultrapassam essazona intermediária, os heróis, como é o caso de Édipo, irão aléme aquém do humano: ao decifrar o enigma da Esfinge, Édipo
16. Esse tema será aprofundado neste ensaio quando for analisada afigura de Medeia.
17. Um zoo, um ser vivo, é sempre uma organização que implica a própriavida para um grego antigo, e estar aquém da animalidade significa afundar-se na desorganização, mergulhar na ausência de regramentos mínimos. Nocaso do homem, estar aquém da animalidade significa estar desorganizadoem tudo o que lhe é próprio, e seu mais próprio é ter lógos.
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tocou o divino, mas tocou também aquém da animalidade,em grau de que nenhum dos homens é capaz, ao matar o pai
e dormir com a mãe. Por isso ele é Édipo, é o herói que decifrao que nenhum homem consegue, ao mesmo tempo em que éa fera. que rompe as regras básicas da ordem da physis.
Esse exemplo demonstra que é preciso atentar para osaspectos da cultura grega que se expõem nas figuras heroicas, do contrário leremos Édipo como um Hamlet romântico
ou, na pior das hipóteses, um homem com graves problemaspsicológicos (o que nem Sigmund Freud pretendeu)18. Édiponão é culpado, ele não é uma interioridade moderna responsável por seus atos, ele não é o indivíduo moderno: é um heróimítico redimensionado na poesia trágica da pólis , que cometeuo pior dos erros e está sujeito à expiação necessária por sua
terrível hamartia , expiação que terá de ser comunitária. Nãose pode esquecer que o poeta trágico tem o sentido forte doque é comum na pólis do século V a.C, e o mito ressurgido noteatro não deixa o cidadão esquecer o sentido do comunitário.Tal sentido manifesta-se na noção de bómoios —semelhante —,fundamento da cidadania.
Sabe Édipo que, para retirar a mancha que trouxe a Tebas,somente o fará pela expiação, pela purgação —no seu caso, a cegueira e o exílio sem sandálias, com os pés inchados e descalços,daí seu nome Édipo. A kdtharsis como purificação relaciona-se,indissoluvelmente, à hamartia, que, por seu lado, pode ter assentona hybris, na ação excessiva. Esse feixe de significados não se podeperder de vista quando se lê uma tragédia. Ele está sempre onde
o herói está e é sempre vivenciado pelos assistentes como formade aprender sobre si mesmos e a própria comunidade.
18. Para expandir esse assunto, há um interessante artigo de J.-P.Vernant, Oedipe sans complexe, in Mythe et tragédie en Grèce ancienne , Paris,Maspero, 1972.
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M. R épica e a lírica v is ta s pela tragédia
Enquanto gênero poético específico, e quando comparada a
outras expressões poéticas, a tragédia guarda, pelo menos,
uma importante diferença com a poesia lírica e épica, que
pode auxiliar a compreensão do que seja o trágico. Do pon
to de vista do conteúdo poético, a poesia de Homero e a de
Hesíodo demonstram a época da sociedade das fratrias, com
seus mitos dos deuses e dos heróis, enquanto os poetas líricos
como Arquíloco, Mimnermo, Safo e outros se inspiram nos
valores comportamentais dos homens das póleis, privilegiando
a manifestação dos sentimentos e de seus significados, e não
suas aventuras, deixando à mostra uma comparação entre os
atos valorados pelo cívico e as emoções impulsionadoras de
comportamentos mais próprios a cada um, quer singularmente,
quer enquanto totalidade humana. A morte, o amor, o prazer
do vinho e dos amigos são temas básicos na lírica.
O cívico nem sempre está em consonância com os desejos
mais íntimos de uma pessoa, e a palavra “pessoa" exprime, aqui,
aquele que se sabe diferente entre diferentes19, mesmo que não
19. Muitos intérpretes consideram possível falar em “pessoa” na lírica,
mas não ainda em indivíduo. Outros acreditam que há a individualidade
emergente nesse período, tese parcicularmente aceita por B. Snell (cf. biblio
grafia). Se a noção de pessoa aproxima-se, hoje, da noção de indivíduo, esta
emerge na Modernidade fundada na significação de “pessoa”, embrionariamente. Para Snell, na lírica já é possível detectar algumas das características
do que nomeamos “indivíduo”, isto é, do que diz respeito à pessoa como
lugar de uma vontade mínima expressa por uma parte de si mesma, ou de
sua alma. Mínima porque a totalidade onde se insere a pessoa é mais ampla
que a possibilidade de fazer valer uma vontade livre, como hoje entendemos.Não se trata, portanto, da pessoa como “consciência de si” responsável por
seus atos, fundamento da própria vontade livre. A pessoa, apesar de saber-se
diferente entre diferentes, tem dependência fundamental com o conjuntoem que vive, com a exterioridade. Há uma interioridade nascente, porém não
apartada totalmente do político. Já em Demócrito, na concepção de átomo,
Introdução à tragédia e questão de método I E?G7
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Il
haja, ainda, plena consciência da própria individualidade e de
sua extensão como interioridade, como de fato não há.
Nos fins do século VII a.C, a Grécia vivência o início da
formação das póleis, com o gradual desaparecimento das fratrias,das antigas comunidades estruturadas como génos (tribo, grandes
famílias, fratrias). A lírica, nesse início, manifesta algo da força do
que já podemos nomear, sem rigor, interioridade humana, isto é,
a diferenciação da pessoa como um ser que olha “para dentro” desi, em suas possíveis partes diferenciadas. Essa expressão poética
pode focalizar em seus versos as próprias emoções, vasculhar partedos móbiles de nossas ações, mesmo sem ter clareza quanto a
uma unidade psíquica —ainda inexistente nos escritos da época
—, como se pode depreender da leitura dos poemas líricos. Talunidade da psycbé , também ausente em Homero e Hesíodo, surgirámais tarde nos textos filosóficos.
Apesar do cuidado ao buscar os tipos de emoções, descrevê-lase sobre elas tecer muitos comentários, nada há nos versos líricos
essa força está expressa no modo de um ser indivisível, único (o átomo). Esseser está relacionado, todavia, kphysis e depende dos outros átomos —e dasarticulações naturais —para a atração ou repulsão entre eles mesmos (não há,todavia, o pensamento sobre o átomo social moderno). Tal reflexão atomista
servirá de amparo para a concepção moderna de indivíduo. Trata-se de umaquestão nada simples, e não é o caso de analisá-la aqui. Há um recolhimentode textos efetuado por Jacqueline de Romilly (in Pacience, mon coeur , Paris,Belles Lettres) pelos quais ela procura demonstrar uma espécie de “redobrosobre si mesmo”, que assinalaria uma espécie de “consciência interior” masnão de uma independência da intimidade, que já vê em Homero quandodas palavras de Ulisses ao apontar para a vivência de seu próprio coraçãocomo outro ser que o habita (por exemplo, nos cantos XIX e XX). Na obra
já cirada, B. Snell vê a emergência do indivíduo na lírica e na tragédia. É, noentanto, um assunto longe de estar acordado entre os estudiosos clássicos.Na análise posterior que será feita da tragédia Medeia, tal questão reaparecerá,quando será estudada a possibilidade dessa semente do indivíduo moderno jána tragédia. Acredito que, se ela emerge —o que não me parece —, isto seriamais claro nas cragédias que na lírica, principalmente em Eurípides.
208 ! Para não ler ingenuamente uma tragédia grega
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que possa indicar a consciência de uma interioridade individua
lizada, dessa unidade psíquica que será o solo da interioridade
como um saber sobre si que se separa da exterioridade, ao menos
parcialmente. Claro está que esse tema tem provocado muitas
discussões entre os intérpretes e nada está efetivamente assen
tado. Somente a filosofia no desenvolvimento de suas reflexões
éticas, políticas e epistemológicas terá a possibilidade de pensar
e argumentar sobre uma interioridade unitária, dando margem
ao nascimento do que será nomeado, muito depois, “indivíduo”.
Essa questão é relevante, pois, se aceitarmos que a lírica já apresenta a emergência de uma individualidade, os heróis trágicos
poderão ser lidos como indivíduos que sabem de seus atos, são
responsáveis por eles e, portanto, podem ser “culpados” porque
distanciados, de certo modo, da própria comunidade. Creio ser
difícil fundamentar tal interpretação, pois seu pressuposto está
na aceitação da individualidade já no século da lírica e no das
tragédias, e não há textos que assinalem com clareza essa pos
tura. Há, no máximo, leves traços do que, posteriormente, será
denominado interioridade, solo da autonomia, da autarquia. Esse
leves traços são, certamente, as raízes da individualidade.
Sabemos que, enquanto os líricos cantam as emoções e os
valores vitais como o amor, a vida, a morte, a amizade, os épicos
cantam os deuses e as figuras heroicas em suas aventuras, semprivilegiar as emoções; discorrem sobre os grandes feitos e valores
dos melhores homens gregos, os aristoí ’ e sobre os deuses, seus
poderes e suas relações com os homens. Em Hesíodo, por exemplo,
lemos sobre o extremo sofrimento a que o homem está sujeito
porque é mortal, porque depende do trabalho, das estações, da
possível decadência cíclica dos valores, como explicita na obra Os
trabalhos c os dias. No entanto, seu canto nada manifesta sobre as
emoções de cada um, seu teor, suas consequências, mas preocupa-
se o poeta em descrever as agruras dos homens em sua insistente
labuta pela vida Ele canta os deuses, seus nascimentos e gerações,
na Teogonia , enquanto Homero narra os combates dos grandes
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heróis20, suas relações com os deuses, marcando a identidade da
raça grega, detalhando ricamente as guerras e os valores que as
permeiam sem apontar para possíveis pensamentos e sentimentos
recônditos dos heróis, a não ser em algumas poucas passagens,
quando ele ajuíza sobre suas ações21.
Por outro lado, o exemplo da poesia lírica de Safo, dc extre
ma beleza, ensina sobre o sentir amoroso —o que não se encontra
em nenhum épico —sem no entanto indicar o campo da indi
vidualidade como sendo o recôndito, o íntimo e consciente decada um. O que se lê é bem mais a exposição de uma emoção
sabidamente intangível — o amor — e a possibilidade de essa
emoção expressar-se no corpo e nas palavras, mesmo se aquele
que sente amor se apresente enquanto um “eu-amoroso” diferente
daquele “eu” que nada sente. Ela canta e descreve esse “aconte
cimento” que não pode ser chamado, rigorosamente, de psíquico—porque não se tem a unidade do ser psíquico na lírica —, mas
que é físico-emocional-perceptivo, é um “estado”:
Sim, isso
me atordoa o coração no peito:
tão logo te olho, nenhuma voz me vemmas calada a língua se quebra,
leve sob a pele um fogo me corre, com os olhos nada vejo,
sobrezumbem os ouvidos [...]
mas tudo é ousável e sofrível22.
20. Note-se, contudo, que a Ilíada move-se ao redor da cólera de Aquiles,
e a Odisseia ao redor da astúcia de Odisseu, o que merece estudo à parte.21. Nesse ajuizamento, como não há uma unidade psíquica cm Homero,
o herói usa de seu noüs, expressão de uma força vital ajuizadora, orgânica,
que todos os homens têm, como têm o thymós (o ímpeto “cardíaco’), o pbrén (as percepções das membranas, das entranhas em todo o corpo). O noüs não
tem lugar exato no texto homérico.22. Ode, in Lyrica Graeca Sclecta, Oxford, fragmento 199 (tradução do
Prof. Jaa Torrano).
PIO I Para não 1er Ingenuamente uma tragédia grega
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A diferença entre a epopeia e a lírica é marcante quantoao conteúdo. Quanto à tragédia, ela tem seu pdtbos específicorecolhido pelo poeta: as ações dos personagens fazem brotaras vivências humanas em toda a sua potência e em toda a suafragilidade, em todos os seus contrários, quer pensados comoimpressivos, quer como expressivos. Foi essa exuberância quetranscendeu a própria datação do trágico. No entanto, a tragédiaafasta-se e aproxima-se da épica e da lírica. Em que medida?
Afastando-se do épico e lírico no conteúdo e na forma, aomesmo tempo em que se aproxima parcialmente deles, a tragédiafala no teatro circular e ao ar livre, de modo que sua expressãose dá de modo completo, e resgata a oralidade e a escrita doaedo arcaico e lírico. Permanece como uma forma de canto quepretende expressar os valores de um conjunto cívico e seus feitos,
como faz a épica; é também pessoal (no sentido anteriormenteapontado) como a lírica, na medida em que pretende manifestar,através dos personagens, as emoções que possivelmente estãopresentificadas em cada um dos assistentes. É uma forma, portanto, que quer preservar na memória grega os ritos miméticoscomunitários, quer manter o mito no teatro, e, ao mesmo tempo,
já evidencia a singularidade que persiste em cada cidadão que,enquanto cidadão, deixa à sombra partes de sua pessoa. É àpessoa que a tragédia endereça as emoções, e é ao cidadão queexpõe os valores comuns em conflito nos personagens.
Com a visão larga das encostas da Acrópole, e aproveitando-se da sonoridade privilegiada, toca as emoções e as lembranças,
delineia a própria cidadania e seus fundamentos. Apesar deexpor-se a um conjunto de assistentes, o fato de alcançar valores em tensão nas falas dos personagens faz que alimente, emcada urn, interrogações quanto às próprias ações e seus valores.Tais particularidades sustentam o páthos trágico como um feixede afecções e acontecimentos que fez que Aristóteles considerasse esse gênero o melhor, porque educativo por excelência,
Introdução à tragédia e questão de método ! 211
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comparativamente à comédia23. Os trágicos não narram os feitos
heroicos ao modo épico, como foi dito, que ademais todos os
gregos sabem de memória e devem, servir-lhes de paradigma
para o agir. Utilizando-se desses feitos, acrescem-lhes, porém,as indecisões, os erros, as angústias dos heróis memoráveis
reverenciados pelo étbos da tradição, já em conflito com o
étbos que se estrutura no momento histórico das póleis. Estas
transformaram alguns dos valores arraigados na mentalidade
grega desde a época das fratrias, que se mostram, agora, sem
o mesmo vigor de antes, dadas as novas necessidades de umainédita estrutura política de sobrevivência. Essa problemática
específica —o conflito dos valores novos e dos mais antigos —é
recorrente nas peças trágicas.
5. Kátharsis
Quando o poeta trágico humaniza os heróis, com isso aproxima-
os dos cidadãos presentes no teatro. Estes sentem, também, as
paixões e a fragilidade desses homens incomuns, ao verem expos
tos os móbiles de suas ações titubeantes ou excessivas como se
fossem as próprias. Todavia, de um lado o poeta faz questão de
sustentar os personagens distantes dos espectadores porque são
heróis lendários, e nenhum cidadão é herói; de outro, apresenta-
os nessa humanização pelo viés passional e consegue a tensão
entre o imaginário do passado e o do presente, entre o que o
cidadão conhece como valor melhor no herói paradigmático e
o que ele, enquanto pessoa, experimenta em sua vida cotidiana
como problema. A tragédia lança as sementes no campo de umsaber nascente, um saber sobre o agir que, posteriormente, com
Aristóteles, foi denominado “ética”.
23. In Poética, 1449 a, 32; b, 20.
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As dores humanas, os erros e incertezas, bem como a arrogância, a inveja, a vingança, o medo, a piedade, a vergonha, asexpressões emocionais do ser vivo, enfim, estão presentes nasfalas dos personagens. Enquanto assiste à encenação trágica,cada cidadão movimenta seu pdthos na direção de uma kdtbarsis ,de uma purificação das emoções pelo “re-vivenciar através”,ou seja, por um movimento perceptivo-emocional que passa erepassa valores e critérios durante todo o espetáculo, coteja-os,escolhe, volta atrás, pondera. É esse o sentido de purificação.
O assistente está exposto ao intenso reconhecimento de suaidentidade veiculada pelo éthos vigente, de modo perturbador.
Nenhum condimento, no entanto —é preciso frisar —, domovimento purificatório no sentido de limpeza das própriasculpas (ou pecados), fixado pela tradição, que parece usar paraa catarse trágica um sentido ético propiciado pelo termo lati
no da medicina purgatio24. O purificatório trágico é sagrado,é educativo, ritualístico e cívico. Ao mesmo tempo, é pessoal,diz respeito ao modo de sentir de cada um dos assistentes emconsonância com o comunitário. Ele purifica no sentido de que,ao aproximar o homem da vivência de seus limites e deslimites,propicia-lhe a visão do sagrado interdito e do profano objeti
vados no teatro. Presenteia o assistente com a possibilidade deexpandir seus julgamentos, sua capacidade de pensar sobre suapessoa e suas relações com as outras pessoas.
Sabe o espectador-participante que, como Édipo, também elepode tocar, ao menos potencialmente, o divino, ou estar aquémdos animais. A catarse auxilia nesse conhecimento. O mesmosacrifício catártico do bode nas comunidades primitivas está
24. Purgatio significa retirar algo doente, que precisa ser limpo, purificado. Na medicina é uma técnica médica, um tipo de procedimento, comotambém o rito é um procedimento que retira a mancha. No campo comercial, purgatio tomou o sentido de quitação de dívida, por exemplo de retirada doque é devido, aproximando-se do sentido médico.
Introdução à tragédia e questão de método I 213
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simbolizado na tragédia como revivescência potencializadora de
certas emoções de redenção; porém, se no antigo rito a redenção
é proveniente da retirada da mancha, na tragédia é o coroamento
de um combate emotivo-reflexivo expresso em versos.
Ensina Aristóteles que a tragédia é a imitação de uma ação
que nos traz experiências emocionais de tal vigor, que provo
cam essa purificação pela vivência delas (tem toioútnn pathemdtôn
kátharsin)25. Akdtharsis trágica está entranhada, portanto, no saber
sobre a fraqueza e a força humanas: por ela revivem-se as tensões
mais difíceis a que se sujeita o homem, o que lhe dá plena consciência da própria fragilidade. Nem a épica, nem a lírica têm tal
característica. Todavia, se essa trilha catártica enfraquece aquele
que já se vê tão frágil, também lhe dá a abertura que o fortifica
quanto à clareza de seu próprio motus. Por isso, a tragédia é um
gênero o mais elevado. Trata-se de uma experiência emocional-
perceptiva e ajuizadora próxima aos rituais religiosos, e quandose entende kdtharsis como purificação no sentido assentado entre
nós, de expurgo ou limpeza individualizados, não se conserva o
aprendizado que a tragédia quer veicular.
A catarse na significação que lhe deu o cristianismo, por
exemplo, mantém muitas das formas de culto ditas pagãs, como
é o caso da crença na purificação pelo ritual da confissão, onde
não há exatamente a repetição das vivências emocionais, mas a
descarga da culpa, uma vez que já se tem, nessa época, a visão
da própria interioridade como fonte parcial de responsabilidade
(pelo livre-arbítrio). Levando em conta que algo de purificatório
todos os ritos sempre conservam, novos rituais serão criados
na história para redimir as falhas humanas: utilizam-se rituais
para a purgação das dívidas, institui-se o pagamento de dízimos,
inauguram-se alguns momentos rituais dentro das institui
ções cívicas que sejam propícios ao homem para se purificar.
25. In Poética , 1449 b, 27.
21M I Para não ler ingenuamente uma tragédia grega
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Os rituais, quaisquer que sejam suas formas e seus objetivos,propiciam o momento catártico. Tais momentos sempre sãocontemplados, sabiamente, pelas religiões. Até mesmo a busca
do saber, na filosofia, traz alguma espécie de purificação, decatarse, enquanto modo de ascese que repassa argumentos emdireção a algo novo. E algumas instituições cívicas apresentam-nos o poder de repetir normativamente o ritual sagrado, como éo caso do modo ritualístico de o aparelho judiciário exercer-se,com seus procedimentos fixos e hierárquicos. Mas nem sempre
elas podem mostrar sua face educativa.Temos, assim, que o rito purificatório, em qualquer desuas figurações, é sempre contemplado nas religiões, apesarde desprezado na vida cívica moderna que, quer saiba, quernão, ainda os mantém dentro de si. Pelo rito garante-se umaespécie de “limpeza” dos erros, ou ameniza-se o sentimento doindivíduo quanto à sua “culpa interiorizada” —como é o caso
do cristianismo em relação aos pecados. Enquanto purificaçãodos erros para aliviar as agruras de uma comunidade, não hácomo haver tangência do rito mítico arcaico com outros modosrituais mais recentes, ou mesmo aquele de conotação cristã. Akdtkarsis trágica não pretende purgar a culpa de alguém, e o quenela há de ritual catártico é cívico-educativo e cívico-religioso
de uma só vez. Nós, modernos, não podemos alcançá-la em suacompletude significativa, pois separamos o cívico do religiosoe este do educativo. Fundamentalmente formadora do espíritogrego, não se espera que a tragédia, em seu movimento catártico,venha a expressar qualquer tipo de redenção. Como foi dito,isto não lhe cabe. A catarse não redime, ela ensina.
Lembremos que a palavra kátbarsis significa, rigorosamente,
limpeza —de katbarós , limpo, puro, no sentido do que não estámisturado a, como o joio já separado do trigo. É purificaçãonecessária em virtude do contágio impuro, de algo que semisturou ao que não devia ser misturado — o sagrado como profano, por exemplo. É o caso das mulheres no período
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menstrual, que para muitos povos antigos não podem exercer
o plantio pois misturariam o que não pode ser misturado.
Necessitam da kátharsis posterior a esse período para exercer
seus trabalhos comunitários; ou, ainda, há a kátharsis de uma
habitação que se tornou impura por algum motivo c deve passar por um ritual de purificação. Sempre é mantido, nesses casos, o
sentido da purgação de um erro, de uma falha, contraído pela
comunidade através de um de seus membros, não relacionado
à culpa no sentido pessoal.
No caso da encenação trágica, adivinha-se que há mistura
de valores que se apresentam conflitivos nas ações dos heróis,titubeantes quanto ao que desejam, ao que determinam os deuses
e ao que eles mesmos se impõem como heróis e que a comuni
dade deles espera. Por estarem em situação de tensão de valores
quanto ao agir, é necessário o ajuizamento diante dessa falta de
clareza, dessa mistura de tendências que devem estar manifestas
claramente para que a ação se efetive de modo excelente. Os
textos trágicos oferecem a necessidade da ponderação antes do
agir, sendo exatamente esse o ensinamento principal que o final
da situação catártica anuncia: o passar e repassar a questão que
apanha o herói (e os cidadãos) na rede dos acontecimentos e
que não se apresenta pura, não se dá de modo claro, sem mistura.
Bem ao contrário. Assim, podemos dizer que a encenação trágica é,
também, uma catarse ético-política que a cidade faz, expandindoa vivência de si mesma e de suas potencialidades.
6. Dioniso na pó lis dos concursos
Aristóteles26, como foi dito, é uma das fontes mais importantese mais próximas da tradição trágica. Segundo ele, a tragédia
26. In Poética , 1449 a, 11.
216 I Para não íer ingenuamente uma tragédia grega
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vem dos que conduziam o ditirambo, às vezes para Dioniso,
mas nem sempre. Para a dança dos seguidores-sátiros, sem bom
ritmo, a tragédia utiliza para a criação dos seus versos a harmo
nia da métrica jâmbica. Essa métrica é a mais adequada à forma
dialogada. Quanto ao som que acompanha a movimentação dospersonagens, a tragédia prefere a monotonia do ditirambo, o
que demonstra outra de suas características diferenciadoras em
relação aos outros gêneros poéticos (o épico e o lírico).
Se a procissão satírica nas ruas mostra a dança e o som mo-
notônico e ruidoso dos instrumentos, a tragédia sustenta os
gestos cênicos e o ritmo cadenciado do ditirambo, aliados àspalavras dialogadas. O ditirambo, as procissões e os sacrifícios
rituais são mimetizados no palco, e no uso de uma coreografia
mínima dos atores mascarados as possíveis emoções são indica
das pela entonação das falas, uma vez que as máscaras, sendo
sempre vazias quanto às expressões, nada podem sinalizar sem
a manifestação corporal e a força da voz do ator.
O cidadão grego tem a procissão de máscaras sob seus
olhos, o drama no centro do teatro, que, necessariamente, ele
associa em seu imaginário ao hierós 17, ao lugar sagrado do trono
do sacerdote dos antigos ritos. Arcaicamente —ou seria melhor
dizer arquetipicamente? —havia a articulação das mais primiti
vas festas dionisíacas, quando o sacrifício de um bode era um
momento ritual entre outros ri tuais realmente efetivados, como
já foi apontado. Para J.-P.Vernant2728, um refinado estudioso da
tragédia, ela “é a cidade que faz teatro”. Segundo esse autor, não
27. Hierós tem uma significação mais primitiva que o sagrado. L Ghunet
(Legéniegrec àans lareligion, cap. I) afirma que hierós , antes um substantivo que
um adjetivo, é o lugar que indica o sagrado, isto é, o santuário, e somentecom o tempo torna-se um adjetivo. Para E. Benveniste, hierós é primeiramente
adjetivo; indica rapidez, ligeireza, força, vivacidade (maiores detalhes em Le vocahulaire des instituitions indo-européennes , Paris, Minuit, v. II).
28. In Mito e tragédia II , São Paulo, Brasiliense, p. 24.
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há, como já se disse, nenhum sacrifício ao bode à época trágica
como havia em épocas arcaicas, mas permanece um ritual de
purificação como se fosse um rito de dádiva através do sacrifício.
A tragédia, nota ele, insere-se na política das póleis e preserva
em si as normas impostas pelas instituições cívicas.
Já na Grécia dos séculos VI e V a.C, uma procissão iniciava as
Dionísias ocupando o templo onde permanecia a velha estátua
de Dioniso Eleutério, quando, solenemente, a transportavam ao
teatro, com todos os seguidores, em geral coreutas, numa espécie
de mimetização das antigas solenidades religiosas com sua hierar
quia sagrada. As normas que a cidade exigia dos poetas durante
as Grandes Dionísias eram, basicamente, as seguintes:
1. inscrição dos poetas nos concursos públicos;
2. formação de um juizado através do recrutamento de cidadãos
com fortuna;
3. formação do coro trágico pelo juizado (12 antes de Sófocles
e 15 após);
4. providências, pelo juizado, das roupas e dos equipamentos
para a encenação;
5. escolha dos atores entre os coreutas designados por listagem,
corn decisão na assembleia, pela sorte, para que escolhessementre as peças vencedoras qual gostariam de encenar (algumas
vezes, o próprio poeta era ator)29.
Não há somente regras exteriores ao texto e à encenação.
Poeticamente, cria-se um novo ritmo que possa suportar o diálogo
c a mínima coreografia dos atores, além de uma retórica poéticaeficaz, dada a ausência da mimética facial em virtude das máscaras
fixas. A tragédia tem, obrigatoriamente, uma medida interna:
29. Segundo vários intérpretes; cf. bibliografia.
218 I Para nãn 1er ingenuamente uma tragédia grega
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a. prólogo —momento inicial antes da primeira entrada do
coro;
b. canto do coro —compreendendo o párodos, primeira entrada
do coro;c. episódio —as partes entre as falas do coro;
d. êxodo —a saída e a parte final, onde não há mais qualquer
fala do coro;
e. stásimon —falas do coro ao longo da peça; quando há um
canto fúnebre, é chamado kómmos.
Com tais regras, o poeta busca estruturar sua comunicação
para que o belo, o majestoso seja apreendido. A qualidade es
sencial da tragédia —o dizer imitativo do belo —talvez seja o
resgate da beleza e da medida efetivado também ao avesso, ou
seja, na explicitação do que não é belo nem medido, pois os
móbiles dos pensamentos, das ações e paixões humanas —por
que vivemos sempre mergulhados nas indigências fundamentais
que nos concernem — são quase sempre indefiníveis em sua
adequação ao éthos vigente. Bem diferente da épica, assentada
na celebração dos valores das ações dos heróis, a tragédia desliza
entre os extremos do comportar-se humano.
Se a poesia homérica é afirmadora das aretai\ a tragédia é
questionadora —como o é a filosofia —da areté 30. Exatamente
por esse aspecto, emerge da tragédia o campo para a filosofia
interrogar-se, no século IV a.C, sobre os fundamentos de um
saber sobre o éthos, dando origem a uma reflexão específica
sobre o agir na história do Ocidente nomeada ética, um saber
30. A palavra areté é normalmente traduzida por virtude. Para um grego,virtude é excelência, daí dizer-se que há uma areté dos olhos, dos cabelos e
também de nossas ações. As ações diras excelentes sào aretai , são vircuosas no
sentido de que são potências expostas que cumpriram perfeitamente a finalidade
de sua gênese. Tal significação é usada por Platão e Aristóteles com referência
à potência de algo desenvolver-se em conformidade com seu télos.
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sistematizado sobre o fundamento da açào humana. Esse tipo
de interrogação já está presente nas falas dos personagens trá
gicos. Parece claro, diante de tais fatos, que a tragédia é social,
é política, é religiosa, não é um espetáculo visando à fruição,
como será, no futuro, uma encenação teatral como a entende
mos, Afinal, a cidade grega apresenta a unificação de muitos
aspectos que, hoje, vi vendamos separadamente.
7. Dioniso, as máscaras e a ilusão
Se formas ritualísticas estão presentes na encenação trágica— aliás, em todas as expressões teatrais que a humanidade
conhece —, deve-se perguntar: como se manifesta o próprio
Dioniso, a quem os poetas homenageiam nas festas da pri
mavera? A estátua do deus que está presente nas encostas da
acrópole durante todo o período das encenações trágicas é,
como foi dito, Dioniso Eleutério, figurado como um homemmais velho, cujo epíteto significa livre, generoso. Pelas máscaras,
pelo poder de personificar-se em todos os rostos e coisas e ser
terrível na possessão, o deus amedronta e deve ser homenageado.
Mas não é só isso que se mostra: o modo de reverenciá-lo pela
encenação dos versos de um poema sinaliza que o teatro é a
forma laica e política da presença de Dioniso. Assim o grego
considerou, assim ele viveu Dioniso na tragédia.
O teatro trágico confirma e nega, por meio da personificação
dos heróis trágicos, os paradigmas da memória grega edifi
cados, agora, na ilusão da encenação, no uso das máscaras que
escondem aquele ator que os assistentes conhecem no dia a dia,
que encontram no mercado, na dgom, nas ruas. Joga, portanto,
com o imaginário do espectador, com a ausência e a presençatão pertinentes a esse Dioniso mascarado e mascarador, que
se manifesta nos esconderijos escolhidos ao seu bel-prazer
220 I Para não lar ingenuamente uma tragédia grega
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(grutas, florestas, ruas, praças, casas, aposentos de casais),
que anuncia esse jogo de presença-ausência próprio do teatro
e sustenta o drama anunciando valores em tensão expostos
nos personagens. Isto é a ação-paixão trágica. Mesmo quando
Dioniso não é efetivamente citado como deus nas peças trágicas—e raramente o é31 —, a temática das peças e a encenação são
o sinal definitivo de sua presença.
Diante do mascaramento teatral dionisíaco —que é imita
ção, ilusão, ficção —, há uma pergunta fundamental que emerge
proveniente do pensamento platônico sobre a arte poética
—no diálogo República — e merece alguma reflexão, pois nos
diz respeito hoje: o fingimento, a mentira das máscaras, essa
ficção que é fazer passar algo que não é como sendo pode e
deve educar?, pergunta Platão ao criticar o modo como criam
os poetas. Como a mentira pode educar, formar o espírito?
Tratando-se de imitação, é preciso questionar o modelo, diz
ele. Placão responderá ao seu modo, questão que será abordada
mais adiante. E nós?A tragédia, como poesia que é, bate às portas do ilusório e
nele quer entrar. Por que a educação grega prestigiou, e também
toda a história do Ocidente, uma expressão cultural que se
funda na encenação, no fazer crer que o que se passa deve ser
esquecido como encenação e vivido como presença? Afinal, a
verdade tem sido o solo percorrido e procurado pela nossa cultura. Será preciso compreender por que esse gênero único que a
pólis produzi u, a posteridade jamais pôde repetir na essência por
mais que tentasse, destruídas as raízes que se fizeram necessárias
para seu nascimento. As épocas que vieram apresentaram outros
31. Na tragédia As Bacantes, Eurípides, já idoso, parece querer homena
gear especialmente o teatro ao colocar Dioniso como personagem principalde seu poema, algo inédito ao gênero trágico. Em luta com Penreu —e que
luta pouco trágica! —, o deus pode revelar-se em toda a sua força ilusória e
subterrânea, e expondo sua genealogia parcialmente olímpica.
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solos, outras sementes, e tentar exprimir uma tragédia grega
em nosso teatro, em nossa atual cidade, seria a má imitação da
imitação da imitação; perde-se a força originária, pois o teatro
não é mais uma encenação político-religiosa.Entretanto, exprimindo algo da essência grega, da ver
dade grega, a tragédia continuou preservando um pouco de
sua origem para a história, mesmo que na forma da imitação
malfeita. Não poderia ser de outro modo. A tragédia grega diz
dos fundamentos do humano, por isso consegue eternizar-se
ultrapassando a especificidade de um período. A chamada
Modernidade não tem mais a reverência a Dioniso, bem sa
bemos, e não recebe em seu horizonte as tensões do passado
e do presente ao modo de um combate de dimensões sociais,
políticas, religiosas, econômicas. O ensinamento pela ilusão,
uma ilusão de fundo religioso e cívico, não lhe concerne. A
ilusão no teatro tem, para nós, bem mais o gosto do desírute
que o da catarse pedagógica.
Sistemática quanto ao uso do que nomeia sua racionalida
de, a Modernidade não é essencial mente pagã, não tem deuses
e nem sempre é religiosa. Porém, recusar o sagrado não basta
para retirá-lo de nós. Desatentos a nossos fins últimos, pouco
sabemos sobre a formação de nosso próprio ser, titubeamos na
prática à falta de uma paideia , de uma formação de nós mesmos.Custoso, então, compreender o trágico a não ser parcialmen
te, difícil tocar de modo profundo essa expressão universal e
particular datada. Embaraçoso responder a certas perguntas
sem deixar de utilizar nossas próprias máscaras, um resto de
Dioniso que carregamos.
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Capítulo II
□ TRRG CO E O POLÍT CO
Se a poesia épica é a vitória da palavra sobre a música mono-
tônica —poder-se-ia dizer, a prioridade do vigor na narrativa
sobre a música —, a lírica coral da corte de Lesbos, por exemplo,é poesia que representa a recuperação do elemento musical nas
palavras. Nela apresentam-se a cítara e a flauta, principalmente,
que dão o tom encadeador dos belos versos. Ora, no gênero
trágico, o elemento dialógico e a música di tiràmbica devem ser
apanhados em conjunto como propiciadores de um novo pathos
poético, de uma nova afecção. Em Hesíodo, cuja inspiração
épica é diferente da homérica, o ritmo poético está adequado
ao próprio conteúdo imagético do discurso, corno se nota na
Teogonia ou em Os trabalhos e os dias. A tragédia disso se utilizará
quando o poeta quiser informar (a.o modo de uma mensagem
aconselhativa ou inquestionável, em geral presente nas falas
do coro) o que deseja que os assistentes percebam quanto aos
valores das ações dos personagens.
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