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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
DANILO BRANDÃO DE LIMA
O PAPEL DO OUTRO NA ESTRUTURAÇÃO DA FALA NA AFASIA
CAMPINAS
2016
DANILO BRANDÃO DE LIMA
O PAPEL DO OUTRO NA ESTRUTURAÇÃO DA FALA NA AFASIA
Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de
Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de
Campinas para obtenção do título de Mestre em
Linguística.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry.
Coorientadora: Profa. Dra. Fernanda Maria Pereira Freire.
Este exemplar corresponde à versão final da
Dissertação defendida pelo aluno Danilo Brandão de
Lima e orientada pela Profa. Dra. Maria Irma
Hadler Coudry.
CAMPINAS
2016
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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624
Brandão, Danilo Lima de, 1986-
L628p BraO papel do outro na estruturação da fala na afasia / Danilo Brandão de
Lima. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.
Bra Orientador: Maria Irma Hadler Coudry.
Bra Coorientador: Fernanda Maria Pereira Freire.
Bra Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.
Br 1. Neurolinguística discursiva. 2. Afasia. 3. Afásicos - Linguagem. 4. Fala. 5.
Análise da conversação. I. Coudry, Maria Irma Hadler,1949-. II. Freire,
Fernanda Maria Pereira,1961-. III. Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Estudos da Linguagem. IV. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: The role of the other in the speech restructuring in aphasia
Palavras-chave em inglês:
Discursive neurolinguistics
Aphasia
Aphasiacs - Language
Speech
Analysis of conversation
Área de concentração: Linguística
Titulação: Mestre em Linguística
Banca examinadora:
Maria Irma Hadler Coudry [Orientador]
Maria Judith Ismael Righi Gomes
Rosana do Carmo Novaes Pinto
Sonia Maria Sellin Bordin
Michelli Alessandra Silva
Data de defesa: 16-06-2016
Programa de Pós-Graduação: Lingüística
BANCA EXAMINADORA:
Maria Irma Hadler Coudry
Rosana do Carmo Novaes Pinto
Maria Judith Ismael Righi Gomes
Sonia Maria Sellin Bordin Michelli
Alessandra Silva
IEL/UNICAMP 2016
Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de
vida acadêmica do aluno.
[...]
Sociedade e discriminação,
cabeça erguida a enfrentar,
nenhum patriarcado ou família te fizeram calar.
[...]
Forte, viva e a sorrir.
Sua vitória deve insultar
a todos que preferem te ver a chorar.
Acredite, aprendi demais,
seu silêncio constrangedor,
liberdade é muito mais que palavras a dizer.
Gostaria de agradecer.
Espero, um dia, retribuir,
coração do meu céu, por favor, seja feliz!
[...]
Música: Tango
Álbum: Afasia
Autor: Dead Fish
AGRADECIMENTOS
Agradeço às minhas orientadoras, Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry e Profa. Dra.
Fernanda Maria Pereira Freire, que me receberam na Unicamp e me guiam pela área da
Neurolinguística Discursiva. Agradeço à Betina Barthelson e à Isabella Moutinho por terem
me incentivado a começar o curso de Mestrado. À minha mãe, Maria Suzeth Brandão dos
Santos Lima, que cultivou em mim o gosto pela leitura, e aos meus irmãos, Douglas e Daniel,
pela amizade e o suporte de cada dia. Agradeço também à Laura, à Patrícia, ao Paulo Castro e
ao Hélio Oliveira, pela atenção e pelos diálogos sinceros. Agradeço à Bruna, à Stephanie, à
Cinthia e à Sylvia pela parceria em tantas sextas-feiras e a todos do CCA e do CCAzinho.
Agradeço também aos sujeitos desta pesquisa e à Capes, pela bolsa de estudos. Obrigado, foi
um prazer imenso estudar com vocês!
RESUMO
Esta pesquisa analisa dados de fala de três sujeitos afásicos em práticas discursivas com/sobre
a linguagem, no CCA, Centro de Convivência de Afásicos, da Unicamp, a fim de reafirmar o
papel do outro na estruturação da fala na afasia. Para tanto, confrontam-se 1) classificações e
sintomas dessa patologia; 2) funções de áreas do cérebro e teorias da linguagem; 3) a fala em
contextos enunciativo-discursivos. Tríade observada à luz de estudos de autores como Freud
(1891) e Luria (1966, 1992, 1970), que tratam, respectivamente, de características funcionais
da linguagem e do cérebro, e de concepções linguísticas a respeito da afasia, da fala e da
subjetividade da linguagem, conforme Jakobson (1956/2003), Benveniste (1976, 1989) e
Coudry, em “Diário de Narciso” (1986/88), obra que marca o ponto que inaugurou a
Neurolinguística Discursiva. A partir desse campo teórico, ressalta-se a importância do outro
para estruturação da fala afetada pela afasia, patologia que, originada por uma lesão no
cérebro, se revela com marcas próprias de cada sujeito, tal como se dá na interação com CF,
AM e BM, que têm lesões em localizações parecidas do cérebro. Além disso, o trabalho da
linguagem, segundo Sacks (2010) e Pires (1997), convocados para salientar a posição dos
afásicos e seus percursos singulares na organização da linguagem, é levado em conta e
discutido.
Palavras-chave: Neurolinguística. Afasia. Fala. Interlocução. Discurso.
...
ABSTRACT
This research analyzes speech data from three aphasic subjects in situations where the
language is put into practice in CCA, Community Center for Aphasics, from Unicamp, in
order to reaffirm the role of the other in the speech restructuring in aphasia. For that, we
confront 1) ratings and symptoms of this condition; 2) functions of some areas of the brain
and theories of language; 3) speech in enunciative and discursive contexts. This triad is
observed especially enlighted by studies by authors as Freud (1891) and Luria (1966, 1992,
1970), which investigated the functional characteristics of the language and the brain. Also we
assume conceptions about aphasia, speech and subjectivity of language discussed by Jakobson
(1956/2003), Benveniste (1976, 1989) and Coudry, this last one in “Diário de Narciso”
(1986/88), a work that marks the first step that founded the Neurolinguística Discursiva. So,
from this theoretical field, we emphasize the importance of the “other” for the speech
restructuring affected by aphasia, pathology caused by a brain injury that is revealed
differently in each patient, although their injuries are in similar locations in their brains. It
occurs in the cases of CF, AM and BM, whose speeches are analyzed for this work. And,
further, some assertions about the language, according to Sacks (2010) and Pires (1997),
called to emphasize the position of the aphasics and their unique paths in the organization of
language, is taken into account and discussed.
Keywords: Neurolinguistics. Aphasia. Speech. Interlocution. Discourse.
LISTA DE FIGURAS E DADOS DE FALA
Figuras
Figura 1: Revistas e jornais dispostos na área de espera do CCA .......................................... 24
Figura 2: Voluntary movement ………………………............................................................ 28
Figura 3: Ex-presidente da Petrobras: Graça Foster ............................................................... 32
Figura 4: Esquemas do processo de linguagem de Wernicke ................................................. 36
Figura 5: Centres et voies conductrices de la parole .............................................................. 39
Figura 6: Esquema psicológico do conceito de palavra de Freud ........................................... 40
Figura 7: Tarefa de uma fonoaudióloga para trabalho com afásico ........................................ 65
Figura 8: Pato sobre a água ..................................................................................................... 87
Figura 9: Tiranossauro ............................................................................................................ 89
Figura 10: Falta de rango ........................................................................................................ 90
Figura 11: Carteado.................................................................................................................. 92
Figura 12: Simon’s cat – Snow business ................................................................................. 95
Figura 13: Cazuza ................................................................................................................. 106
Figura 14: Falta de água ........................................................................................................ 110
Figura 15: Professores ........................................................................................................... 112
Dados de fala
1. A Petrobras graças a Deus ............................................................................................... 32
2. A compra de um computador ........................................................................................... 71
3. Não, é feriado! ................................................................................................................. 75
4. Repetição impulsiva ......................................................................................................... 80
5. Adivinhe! Papai Noel! ..................................................................................................... 82
6. Concepção de “normalidade”........................................................................................... 84
7. A sombra do pato ............................................................................................................. 87
8. Tiranossauro ..................................................................................................................... 89
9. Passarinho atro... “amassado” .......................................................................................... 90
10. A luz está pegando o carteado ......................................................................................... 93
11. Recontando o vídeo .......................................................................................................... 96
12. Para que serve a televisão .............................................................................................. 100
13. A gente diz: Professora, presente! ................................................................................. 101
14. Vou fazer farmácia ......................................................................................................... 103
15. Falando sobre Cazuza .................................................................................................... 106
16. Dizer planejado .............................................................................................................. 109
17. Explicando a charge ....................................................................................................... 110
18. Meu tempo de escola ..................................................................................................... 112
SUMÁRIO
PARTE I – VIÉS TEÓRICO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
1. O OLHAR DA MENTE EM VALSA LENTA ................................................................. 15
2. DE FREUD A LURIA: O QUE SE USA DA LINGUÍSTICA? ........................................ 26
3. JAKOBSON: AFASIA POR UM LINGUISTA ................................................................ 48
4. TRATADOS DE AFASIA: DE LEBRUN (1983) A COUDRY (1986) ........................... 56
4.1 Lebrun: Neurologia e [...] Linguística ......................................................................... 56
4.2. Coudry: afasia, interlocução e discurso ....................................................................... 62
PARTE II - SUJEITOS, AS PALAVRAS, A AFASIA
5. AFASIA: SUJEITOS DA PESQUISA .............................................................................. 69
5.1. CF: Subjetividade na afasia ......................................................................................... 70
5.2. AM: Interlocução, a linguagem que manipulo ............................................................ 85
5.3. BM: a fala que eu (não) controlo .............................................................................. 105
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 120
Referências eletrônicas ......................................................................................................... 124
...
PARTE I – VIÉS TEÓRICO
...
12
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo reafirmar a importância que tem o papel do outro, na
interlocução, para a (re)estruturação da fala na afasia. Para tanto, foram observados três
sujeitos afásicos em atividades de práticas com a linguagem no CCA1. Dessa forma, buscou-
se mostrar que, em atividades em que o outro, quase sempre um não afásico, participa
ativamente em cada episódio dialógico, CF, AM e BM, sujeitos desta pesquisa, chegam mais
próximo ao que querem dizer. Para este trabalho, no qual se destaca a mediação que o outro
tem para a fala na afasia, tem-se como alicerce a concepção teórica da Neurolinguística
Discursiva (ND): área de estudos que analisa a afasia por meio da linguagem em
funcionamento e fornece possibilidades de explicitar que, embora CF, AM, e BM tenham
sofrido lesões em áreas parecidas de seus cérebros, sintomas e classificações da afasia não
devem ser preponderantes para classificá-los em níveis ou padrões de capacidades de fala ou
de compreensão. Em seus dados de fala, discutidos no capítulo 5, nota-se que, ainda que seus
problemas linguísticos venham a se mostrar semelhantes, a afasia se manifesta em cada
sujeito de maneira e com intensidade variadas. E isso se dá por um fato óbvio, mas que testes
clínicos para afasia subtraem, devido à singularidade dos percursos sócio-históricos de cada
sujeito e pelas suas diferentes relações que têm com o outro e com o mundo. Vale dizer ainda
que este trabalho apresenta e analisa dados de fala desses três sujeitos à luz de uma
perspectiva qualitativa e não quantitativa de produção da fala. E, quanto à sua estrutura, este
trabalho está organizado em duas partes.
A primeira está dividida em quatro capítulos. Nela se discutem pontos que foram
considerados importantes de obras que trataram sobre afasiologia e linguística. No capítulo
um, destaca-se a concepção de linguagem afetada pela afasia; ou seja, destaca-se o modo
como linguagem e afasia são exploradas nas obras de Sacks (2010) e Pires (1997). Esses
autores põem em relevo a posição e a experiência de quem convive ou conviveu intimamente
com a afasia; e, desse modo, chama atenção a obra de Pires (1997), autor que, valendo-se de
ter estado na condição de afásico, relata o desarranjo que sofre a linguagem. As descrições e
considerações que faz em sua obra trazem uma focalização que recai sobre si e sobre a afasia.
1 Centro de Convivência de Afásicos, da UNICAMP, introduzido no Departamento de Linguística pela Profa.
Dra. Maria Irma Hadler Coudry, desde 1989, onde acontecem acompanhamentos coletivos e individuais, nos
quais afásicos e não afásicos dividem experiências e trabalham com e sobre a linguagem, por meio de práticas
sociais de uso da linguagem.
13
Além disso, a escolha desses dois autores se deu justamente por esse motivo: era preciso
contar os efeitos da afasia vistos por um olhar interno, experimentado, um olhar da mente.
No capítulo dois, recupera-se - de modo diacrônico - o trajeto científico de Freud
(1891) sobre o caráter manipulável da linguagem e sobre as características da unidade
funcional que é a palavra. A partir de “La afasia” (1891) de Freud, decidiu-se passar pelos
autores localizacionistas do século XIX e por suas concepções que visavam delimitar a área
de formação da fala no cérebro. A motivação para apresentar detalhes das pesquisas desses
autores é mostrar como a Neurologia, com Freud, passou a considerar aspectos linguísticos e
não apenas neurológicos para análise da afasia. Dessa forma, o capítulo dois, De Freud a
Luria, mostra, ainda que de forma modesta, a relação estabelecida entre Linguística e
Neurologia. E, se os estudos de Freud (1891) trataram de ver como a unidade da palavra
revela como a afasia afeta a linguagem, as pesquisas de Luria, tangendo a Linguística,
demonstraram um entendimento do cérebro com um sistema complexo. Luria analisava, por
meio de testes e atividades linguísticas, como produções de seus sujeitos se relacionavam com
lesões sofridas no cérebro de cada sujeito.
Nesse caminho de verificar como a Neurologia, muitas vezes, recorria aos estudos
linguísticos, dedicou-se o terceiro capítulo a apresentar a importância de um linguista,
Jakobson (1956/2003), para a afasiologia. Esse autor, em “Lingüística e comunicação”
(1956/2003), chama atenção de linguistas para a análise da linguagem na afasia. Nessa obra,
Jakobson analisa como a fala na afasia se estrutura pelos eixos de similaridade e
contiguidade, relacionando aspectos de estruturação da fala a partir de como afásicos
selecionam e combinam os termos de seus enunciados. É interessante perceber como sua ideia
de que há um contexto verbal, que joga a favor da estruturação da fala, favorece o sujeito para
que encontre, na fala do outro, suporte para seus enunciados. Essa ideia de contextura parece
de fundamental importância para a observação de como o outro contribui para produção da
fala na afasia.
Além disso, a investigação de Jakobson (1956/2003) sobre recursos linguísticos
manipulados por esses sujeitos e de como a Linguística entra para os estudos de afasia,
possibilitou que se arrolassem conceitos para que, no quarto capítulo, fosse explicitado a
partir de quais conceitos surgiu a Neurolinguística. Esta que, ao que parece, foi iniciada por
Luria e levada adiante por autores como Lebrun.
No quarto capítulo, comenta-se o trabalho de Lebrun em “Tratado de afasia” (1983).
Esse autor, influenciado por Goldstein, desenvolveu, em suas pesquisas, bases para uma
14
Neurolinguística que, embora tratasse mais de Neurologia do que de Linguística, contribuiu
diretamente para a inauguração da Neurolinguística Discursiva. Seu trabalho demonstra
grande preocupação em apontar como afásicos se saíam em atividades metalinguísticas,
destacando em seus enunciados características que se relacionavam a um pensamento abstrato
ou categórico. Para Lebrun, afásicos perdiam ou tinham, por exemplo, dificuldades para
abstrair ou categorizar objetos; e isso podia ser notado pela modo como respondiam a
perguntas como “Para que serve um lenço?”.
Sua forma de trabalho, tal como se vê nessa questão metalinguística, ainda não
mencionava a importância de um investigador/interlocutor ativo para o acompanhamento e
análise da afasia. No entanto, suas pesquisas em Neurolinguística já pontuavam de forma
coordenada recursos dessas duas grandes áreas sobre o sujeito: Neurologia e Linguística. E é a
partir de reflexões como as de Lebrun, que se desenvolve a pesquisa intitulada “Diário de
Narciso” (1986/88), de Maria Irma Hadler Coudry. Obra, discutida também no quarto
capítulo, que questiona a afasia dos manuais e a coloca em uma perspectiva enunciativo-
discursiva, que a analisa pela linguagem em funcionamento. A fala na afasia passa a ser,
então, analisada pela mediação do outro, por meio de práticas discursivas e não por meio de
testes ou análises que visam pontuar aspectos estruturais da língua. Pesquisado por
Maingueneau (2008), e empregado por Coudry (1999/2001), o conceito de práticas
discursivas aborda o discurso em seus dois aspectos, textual e social, nos quais ocorrem as
relações entre língua e cultura. A afasia, a partir de Coudry (1986/88), é, portanto, uma
questão de discurso e não unicamente de Neurologia e de classificações de afasias.
Por fim, na segunda parte desta pesquisa, apresentam-se os sujeitos, seus dados de fala
e também as análises de suas falas, com o objetivo de entender o que a afasia altera na fala de
cada um e como seus enunciados se estruturam diferentemente a partir de uma materialidade
também diferente. Ou seja, a partir de fotografias, vídeos e episódios dialógicos, pretendeu-se
observar como a fala na afasia, mediada pelo outro, pode ter também características da “fala
normal”.
Os dados de fala de CF, AM e BM são discutidos de acordo com pontos teóricos
apresentados na primeira parte desta pesquisa. No entanto, conceitos de diferentes autores são
usados em cada análise: afinal, como dito, cada sujeito, embora afetado pela afasia, mostra-se
singular e também diferente em cada situação, tal como não afásicos. Assim, cada
consideração teórica é feita ao passo que se sente a necessidade de enfatizar um ou outro
aspecto referente à afasia, à fala ou aos diversos produtos que compõem a linguagem humana.
15
Nesse sentido, “o que busco decifrar e compreender é como se dá o acesso do sujeito afásico
na linguagem, como, pelo processo de interlocução, esse sujeito se reconstituirá em conjunto”
(1986/88, p. 100) com o outro. E, para que se perceba como a relação afásico e não afásico
propicia o desenvolvimento da fala afetada pela patologia,
[...] é indispensável que estes dois indivíduos estejam integrados na unicidade da
situação social imediata, quer dizer, que tenham uma relação de pessoa para pessoa
sobre um terreno bem definido. É apenas sobre este terreno preciso [o da linguagem]
que a troca lingüística se torna possível [...] (BAKHTIN, 1929/2006, p. 69-70).
...
1. O OLHAR DA MENTE EM VALSA LENTA
O funcionamento da mente é algo que desperta curiosidade mesmo naqueles que não
se dedicam aos estudos da linguagem e do pensamento, motivados pelo interesse nas
alterações dos comportamentos sociais ou pela ideia astuciosa de prever as ações de outras
pessoas. E, quando nos deparamos com sujeitos que apresentam alterações em aspectos
socialmente construídos como fala, compreensão, leitura e escrita, esse interesse pelos
caminhos do cérebro tende a ser ainda mais minucioso e instigante. Tanto que, ao longo da
história, não apenas médicos (psicanalistas), como Freud e Charcot, trataram de investigar
detalhes e alterações de comportamentos humanos, mas também outros autores como Guy de
Maupassant, por exemplo, contista e romancista francês do século XIX, também se
questionaram sobre problemas relacionados à mente humana. Em um de seus contos,
“Madame Hermet” (1887/1979, p. 875), Maupassant diz:
Les fous m’attirent. Ces gens-là vivent dans un pays mystérieux de songes bizarres,
dans ce nuage impénétrable de la démence où tout ce qu’ils ont vu sur la terre, tout
ce qu’ils ont aimé, tout ce qu’ils ont fait recommence pour eux dans une existence
imaginée en dehors de toutes les lois qui gouvernent les choses et régissent la pensée
humaine.2
Título do conto e personagem principal de sua narrativa, Madame Hermet, tal como
seu nome indica, - Hermet, hermético, - guarda em si uma força vital que se contrapõe a
2 (Tradução nossa). Os loucos me atraem. Essas pessoas vivem em um país misterioso de sonhos estranhos,
nessa nuvem impenetrável da demência, onde tudo o que eles viram sobre a terra, tudo o que eles amaram, tudo
o que eles fizeram recomeça para eles em uma existência imaginada fora de todas as leis que governam as coisas
e regem o pensamento humano.
16
concepções clínicas sobre o sujeito. Hermético, adjetivo que também aparece na afasia, já que
um sujeito afásico faz menções de compreender o que lhe é dito, mas não encontra palavras
para expressar seus pensamentos. Vê-se que esses “indivíduos”, diferente do que a
desinformação a respeito dessa patologia estipula, continuam na verdade sendo sujeitos. Em
muitos casos, não se expressam conforme as expectativas do outro, mas não deixam de existir
interiormente, convivendo com a patologia e as sequelas da lesão que a originou. Há uma
linguagem em funcionamento, por meio da qual, motivados por um interlocutor ativo, podem
encontrar diferentes entradas para o discurso. E é para investigar a linguagem, que suporta o
pensamento e a comunicação, que este capítulo se vale de duas obras que tratam de situações
de desenvolvimentos pessoais marcados por problemas inerentes à afasia: “O olhar da mente”
(SACKS, 2010) e “De profundis: valsa lenta” (PIRES, 1997), as quais se mostram como
textos esclarecedores no que se refere à relação construída entre investigador e sujeitos, em
casos descritos por Sacks (2010), e do próprio sujeito e seus enfrentamentos quotidianos,
narrados a partir dos efeitos produzidos pela afasia, como se vê nas descrições feitas por Pires
(1997), que narra seu estado afásico transitório.
Em “O olhar da mente” (SACKS, 2010) e especificamente em “De profundis”
(PIRES, 1997) o que se encontram são relatos de sujeitos que, uma vez conscientes de suas
reais situações, encontraram maneiras de enfrentar suas afasias, através do trabalho de
entender os novos percursos assumidos por suas mentes e corpos para se relacionarem com o
mundo. Pires (1997) passa de uma afasia transitória para um exterior linguisticamente
modificado para ele, valendo-se de um olhar mnemônico3 para refazer semanticamente suas
palavras e, então, participar de cenas discursivas apresentadas a ele.
Esse olhar, como também se observa no acompanhamento de sujeitos afásicos no
CCA, é notado por uma lentificação ou interrupções que a afasia traz para as diferentes
associações que o cérebro necessita efetuar para se ter compreensão ou expressão da fala.
Esse olhar - reflexivo - corre pelos túneis luminosos da mente em busca de elementos para
construir enunciados, porém, quando não os encontra ou quando há fortes perturbações entre
associações de conceitos e suas imagens acústicas, o retorno do sujeito afásico ao ambiente
físico que espera por suas palavras é trabalhoso; é, por vezes, silente.
3Em crianças e adultos, o ato de atar um nó como um evocador mnemônico é apenas um exemplo de um
princípio regulatório amplamente difundido no comportamento humano, o da significação, através do qual as
pessoas, no contexto de seus esforços para solucionar um problema, criam ligações temporárias e dão significado
a estímulos previamente neutros. (VYGOTSKY, 2007, p. 64, grifo nosso).
17
Momentos de silêncio são característicos da afasia e também da fala “normal”; “o real
da linguagem - o discreto, o um - encontra sua contraparte no silêncio.” (ORLANDI, 2013, p.
13). Dessa forma, o investigador deve ser instruído o suficiente para intervir ou perceber que,
em determinado momento de silêncio, seu interlocutor afásico trabalha internamente, ajusta
peças de um quebra-cabeça: significantes, significados e articulação do dizer. No ajuste desse
quebra-cabeça, o pensamento4 vai em suspensão, o sujeito é um contemplador da enunciação,
sem poder entrar no discurso por meio da fala, mas trabalhando em atividade epilinguística,
que,
em síntese, [...] recobre operações diversas sobre a linguagem, como transformar,
segmentar, reordenar, reiterar, inserir, fazer escolhas e, mesmo, pensar sobre a
linguagem e os processos de construção em que está envolvida. Nas situações
fatuais, o conhecimento mútuo, as intenções do locutor, a imagem de cada um para o
outro, etc., pode-se até falar em uma atividade epidiscursiva: muitas passagens do
discurso envolvem uma “negociação” explícita destas condições, um ajuste e
reajuste recíproco para garantir a eficácia da interação (COUDRY, 1986/88, p. 16).
Nesse sentindo, “De profundis” (PIRES, 1997) é marcante justamente por ter sido
escrito pela consciência e pela voz de quem se tornou afásico. Seu autor descreve os espaços
percorridos por uma mente e corpo que passeiam silenciosos. Pires (1997), conforme ele
mesmo esclarece, após superar uma afasia transitória e ter condições mínimas de fala, relata
as limitações do mundo em que vivia e como se sentia como afásico, observado e
desenganado pelos outros, de forma que se via dividido: um homem (ele) apagado para seus
familiares e um outro (o eu), vivo, que seguia reflexivamente, segmentando, reordenando
palavras em busca de embasamentos para se fazer entender e entender a si mesmo. Pires
(1997) trabalhava para reorganizar sua linguagem, retomar não apenas sua fala, mas
concepções e representações de regras e costumes sociais.
É esse o trabalho que é destacado nesta seção, a atividade de manipulação da
linguagem por parte desses sujeitos, a fim de se reafirmar que não perderam a linguagem por
estarem afetados pela afasia. Nesse sentido, no de pesquisar sobre a importância de se olhar
para a linguagem na afasia, Françoso, em sua tese de Doutorado, “Linguagem interna e
afasia” (1987, p. 20), apresenta um percurso crítico sobre as reflexões de neurologistas do
século XIX. Revela, por exemplo, que para Jackson, grande influenciador das pesquisas de
Freud em “La afasia” (1891), essa patologia poderia ser entendida como alterações na
4 O pensamento não é senão esse poder de construir representações das coisas e de operar sobre essas
representações. É, por essência, simbólico. A transformação simbólica dos elementos da realidade ou da
experiência em conceitos é o processo pelo qual se cumpre o poder racionalizante do espírito. (BENVENISTE,
1976, p. 29).
18
representação interna da linguagem. Já Sacks (2010), que acompanha como seus sujeitos
voltavam seus olhares para suas representações internas, para a linguagem, acrescenta que
Jackson,
pioneiro no estudo de afasia nos anos 1860 e 1870, dizia que esses sujeitos não
dispunham da “fala proposicional” e que haviam perdido também sua fala interior,
não sendo, portanto, capazes de falar ou proposicionar sequer para si mesmos. Ele
supôs então que a faculdade do pensamento abstrato era perdida na afasia e, nesse
sentido, comparava os afásicos aos cães (SACKS, 2010, p. 41, grifo nosso).
Essa reflexão de Jackson parece discutível à luz da ND. Por exemplo, comenta
Françoso (1987, p. 20) que, de acordo com Bouillaud, “a linguagem interna é algo que faz
parte das capacidades intelectuais da mente humana (a memória das palavras), e que pode
tornar-se aparente por meio da linguagem externa”. Ainda que Françoso não trate de “fala
interior”, sua análise parece se aproximar do que descrevem Sacks (2010) e Pires (1997) a
respeito da linguagem na afasia. E o que se compreende pela leitura destes dois últimos
autores citados, e principalmente pelo acompanhamento de sujeitos afásicos no CCA, é que a
linguagem não necessita ser expressada pela fala para existir, pois o sujeito se revela por
gestos, sorrisos e outros processos de significação, ainda que prejudicados pela afasia. Esta
que
se caracteriza por alterações de processos linguísticos de significação de origem
articulatória e discursiva (nesta incluídos aspectos gramaticais) produzidas por lesão
focal adquirida no sistema nervoso central, em zonas responsáveis pela linguagem,
podendo ou não se associarem a alterações de outros processos cognitivos. Um
sujeito é afásico quando, do ponto de vista lingüístico, o funcionamento de sua
linguagem prescinde de determinados recursos de produção ou interpretação
(COUDRY, 1986/88, p. 5).
É em vista desse funcionamento alterado, dessa falta de recursos para produções
enunciativas e interpretativas, que as descrições de Sacks (2010) e Pires (1997) abordam a
necessidade de que o sujeito compreenda suas “limitações” para que haja uma (re)organização
da linguagem desarranjada pela afasia. De acordo com esses autores, se instruídos a respeito
dos problemas acarretados por suas lesões, sujeitos afásicos tomam consciência de como
ocorre o funcionamento da linguagem e do que se mantém preservado em relação às suas
falas. Desse modo, podem alcançar melhores condições para suprir as carências linguísticas
ocasionadas pela afasia. Entender os trajetos de seus processos mentais, reconstruir a palavra
mentalmente, acompanhar conscientemente essa atividade, são processos que se assemelham,
por exemplo, a jogos de soletração. Nestes, vê-se que o sujeito, impossibilitado de falar o
19
nome de determinada letra, lança no ar um olhar penetrante. Usando um dedo, escreve, apaga,
reescreve a letra no ar e, desse modo, constrói sua fala, vem a dizer o nome da letra.
Perceber como a linguagem constitui o sujeito parece ser uma das maneiras que
permite ao sujeito refletir e compreender os arranjos ocorridos em seus enunciados e também
as dificuldades que enfrenta no processo de organização da fala. Para Kussmaul (1884), que
discute o surgimento da fala nos seres humanos, a formação da fala se elevaria a partir de um
estado imitativo, de representação, a uma segunda etapa, na qual estaria contida em palavras.
“A ce degré, la parole n'est plus un miroir d'intuitions purement sensibles.” (KUSSMAUL,
1884, p. 14). Esse espelho de intuições muito se assemelha ao trabalho de suspensão da
palavra para soletração, por exemplo, sendo essa suspensão uma das características do que se
assume nesta dissertação como trabalho de manipulação da linguagem.
No que se relaciona a esse espelho intuitivo, Freud, em “La afasia” (1981, p. 76),
conta que se lembra de ter estado duas vezes sob perigo de morte; momentos nos quais, a
consciência do perigo se apresentou de modo súbito e, em ambas ocasiões, pensou: “este é o
meu fim”. Por meio desse relato, Freud conta que escutou essas palavras como se alguém as
estivesse gritando em seu ouvido e, ao mesmo tempo, também as podia ver, como se
estivessem escritas em um pedaço de papel. Nesse sentido, as reflexões sobre a linguagem de
Sacks (2010) e de Pires (1997), este sobre seu próprio quadro afásico, mostram que, apesar de
a fala ou a compreensão estarem comprometidas, palavras ouvidas ou pronunciadas podem
ser, por exemplo, lidas, sentidas internamente. Esse trabalho de ver e refazer a palavra
internamente contribui com a reorganização do funcionamento cerebral e para a reformulação
de atividades linguísticas e subjetivas de cada sujeito.
Pela leitura de “O olhar da mente” (SACKS, 2010), nota-se que essa obra vai além de
um caráter pedagógico sobre descrições de sintomas, tipos de lesões e sequelas decorrentes de
danos cerebrais para explicitar a relação entre Sacks e seus sujeitos, a qual era marcada não
apenas por diagnósticos e tratamentos, mas por cumplicidade e pelo modo com que ele,
médico, acompanhava cada caso. Seus sujeitos são descritos pelo modo como se mostravam
através dos recursos de linguagem, pela qual encontravam entradas/saídas5, portas para o
mundo.
Sacks mostra, a partir dos sujeitos descritos em sua obra, como esse processo
investigativo do olhar da mente ocorre do externo (expressão) ao interno (compreensão).
Relata que, entre os sujeitos que acompanhava, “tanto Dennis como Arlene falaram de modo
5 E seu interlocutor pode possibilitar que essa entrada seja feita com naturalidade - embora permeada de
situações difíceis de transpor - e não pelas portas da patologização e do trauma. (COUDRY, 2012a, p. 19).
20
semelhante [...] do que parecia ser uma transferência muito mais imediata de informações
provenientes da descrição verbal [...] para uma forma visual” (SACKS, 2010, p. 192). Os
sujeitos descritos em seu livro falam de uma transferência de informações que passa do visual,
do interno, para o verbal; isto é, do campo reflexivo ao ato de fala. Este que “entra no quadro
das construções simbólicas: ele [o discurso] expressa as intenções significativas que os
participantes trazem à interlocução, no sentido de agir um sobre o outro e sobre a própria
situação” (COUDRY, 1986/88, p. 64).
Nesse aspecto, de agir sobre a própria situação, Pires (1997) descreve seus sentimentos
e percepções após recuperar-se de uma afasia que o impedia de ler, escrever, pentear-se e até
mesmo acessar os nomes de sua esposa ou de amigos próximos. Em seu livro, narra um
estado de quem sentia pertencer unicamente a si, sem conseguir fazer com que os outros lhe
compreendessem, relatando o mistério que provoca e leva linguistas, neurologistas,
afasiologistas a se questionarem sobre as condições impostas pela afasia. Porém, se se espera
descobrir quais vias Pires percorreu para superar seu quadro afásico, Lobo Antunes,
neurologista e seu amigo, prefaciador de sua obra, tira esperanças de seu leitor, ao dizer que a
afasia
seca a fonte de onde brota o pensamento ou perturba o rio por onde ele se escoa, e
assim é difícil, se não impossível, explicar aos outros como se dissolve a memória,
se suspende a fala, se embora a sensibilidade, se contém o gesto. E, muitas vezes, a
agressão, como aquela que o assaltou, deixa cicatriz definitiva, que impede o retorno
ao mundo dos realmente vivos (ANTUNES in PIRES, 1997, p. 5).
Explicações que fazem justiça ao tema deste capítulo, que valora o funcionamento
mental daquele que já não domina a expressão de sua fala e os sentidos de suas palavras; “o
tema desta seção é o poder das imagens mentais e da memória para “transportar” uma pessoa
[...].” (SACKS, 1997, p. 150). Assim como Freud (1891, p. 76), que narrou um episódio de
sua vida em que percebeu a ocorrência do que chamou de lenguaje interior, Lordat (1773-
1890), neurologista francês, relata sua experiência de estar afetado pela afasia.
Como se lê em Sacks (2010), em Coudry (1988/86) ou em Kussmaul (1884), Lordat
conta que perdera, em vinte e quatro horas, o acesso às palavras e, as poucas que haviam lhe
sobrado, não conseguia coordená-las para expressar suas ideias e tampouco entender as dos
outros. Interiormente, diz ele, sentia-se a mesma pessoa de sempre, mas, em tal estado,
percebia que o funcionamento interno de sua mente já não dependia das palavras e, então,
voltava-se interiormente para si e atentava-se para o que havia de preservado em sua fala
interna, o que o constituía como sujeito.
21
Já Patricia, sujeito de Sacks (2010), entendia perfeitamente o que lhe diziam, mas não
podia se expressar por meio da fala. Tentava, ansiava por falar, mas, como não se fazia
entender, entristecia-se cada vez mais. Sua situação só mudou à medida em que passou a
perceber o papel da imitação em sua vida, o qual ganhava, pouco a pouco, a função de fio
transmissor entre as imagens em sua mente e o que ela pretendia expressar. Eram fortificados,
pela imitação, outros sentidos de seu corpo, os quais estariam relacionados aos gestos que
conseguia produzir.
Sobre esse trabalho de imitação, Kussmaul (1884) acreditava que a linguagem
imitativa era um dos pilares na estruturação da fala e comparava essa característica humana a
dos animais. Sacks dizia que os grandes primatas
[...] são capazes de “macaquear” ou arremedar [...], a mimese tem uma representação
muito mais extensa e mais forte no cérebro do que a linguagem, e isso talvez
explique porque é preservada em muitos sujeitos que perderam a linguagem. Essa
preservação pode permitir uma comunicação notavelmente rica, ainda mais se for
elaborada, intensificada e combinada com um léxico, como fazia Pat” (SACKS,
2010, p. 53, grifo nosso).
Ressalta-se, desse trecho, o fato de Sacks supor que haja uma perda da linguagem,
algo que parece, de certo modo, equivocado. Se o sujeito gesticula, vale-se de sua
subjetividade mimética e comunicar-se com outras pessoas, não se pode pensar em perda de
linguagem, pois seus gestos também são atividades enunciativas. Atividades que, para
Benveniste (1976, p; 28), são suficientes para diferenciar o homem do animal, pois a
“capacidade representativa da essência simbólica que está na base das funções conceptuais só
aparece no homem. Desperta muito cedo na criança, antes da linguagem, na aurora da sua
vida consciente. Mas falta no animal” (BENVENISTE, 1976, p. 28). Coudry, por exemplo, dá
ainda mais importância à mímica, aos gestos e sua relação com a linguagem, acreditando que
Para que o sujeito seja capaz de realizar gestualmente um pedido [...] é preciso que
outras funções e processos cognitivos sejam mobilizados – como a memória que
evoca a percepção ou o reconhecimento do gesto, além do uso atribuído
culturalmente a esse gesto. Dessa forma, entra em jogo a relação que o sujeito
demonstra com o uso social do gesto que, por sua vez, demanda conhecimento e uso
de processos cognitivos que, neste caso, envolve uma memória visual [...]
organizada pela linguagem e pela experiência (COUDRY, 2007, p. 75, grifo
nosso).
Como ainda diz Coudry (COUDRY, 2007, p. 75), há a possibilidade de compreender
como um gesto se forma na relação que o sujeito estabelece com o ato de gesticular, quais os
significados que este ganha por meio de suas relações sociais. E é exatamente desse modo que
22
o trabalho reflexivo de Patricia, que consultava sua linguagem, trazia as imagens de sua mente
por meio da imitação, contribuiu, segundo Sacks, para o que ela pretendia comunicar. Sacks
(2010) revela que, um ano depois de atendê-la, encontrou-a muito melhor. Patricia
representava “o que pensava e sentia com eloquentes gestos e mímica, sem falar. [...] Isso
representava uma excelente melhora na esfera social, melhora na capacidade de se comunicar
[...]” (SACKS, 2010, p. 46). Apesar disso, para Sacks, a melhora de Patricia não se tratava,
infelizmente, de uma evolução neurológica concreta, mas de um processo em que ela
encontrava e adaptava mecanismos para estabelecer-se novamente como uma “pessoa
normal6” e, assim, compartilhar outras situações e experiências com seus familiares.
Lobo Antunes, em “De profundis” (1997), traz conclusões interessantes a respeito de
uma evolução de um quadro afásico. Segundo Antunes, poderiam ser elaboradas sobre esses
sujeitos asserções sobre cada uma de suas situações clínicas, esclarecer seus sintomas iniciais,
pormenorizar os quadros estabelecidos pela enfermidade, sua evolução, extrair conclusões
relacionadas ao tipo de lesão e sua localização, porém, assim como ocorreu com a
recuperação de Pires, um resultado animador só pode ser alcançado graças a um cérebro
otimista7.
A experiência relatada por Pires (1997) não só explora seu caso pessoal, mas também
divulga sua reflexões e conta como seus pensamentos não condiziam com as palavras que
pronunciava: ele pensava no que queria, mas tinha plena consciência de que suas palavras não
representavam exatamente o que era de conhecimento dos outros. Pires (1997), por exemplo,
comenta como suas associações, relações estabelecidas internamente entre significantes e
significados, ocorriam em seu quadro de afasia:
[...] como era desvairada a nomenclatura que ele atribuía aos objectos questionados
ou àqueles que, de longe em longe, pretendia enunciar. “Simosos”, por exemplo,
funcionava a vários significados. Tanto podia ser “gilete” como “óculos” ou
“arrastadeira”, dependia de qualquer indecisão de momento [...]. “Cachimbo”, uma
peça que nunca na vida teve alguma coisa a ver comigo, tomou-a ele como sinónimo
de “chinelas, chinelas de quarto” (PIRES, 1997, p. 26-27, grifo nosso).
É curioso notar, nesse excerto, a maneira como o autor se divide, chamando-se de
“ele”, o que parece significar uma divisão entre “interno” e “externo”, sendo que “eu”, nesse
6 É certo que, em medicina, o estado normal do corpo humano é o estado que se deseja reestabelecer. Mas será
que se deve considerá-lo normal porque é visado como fim a ser atingido pela terapêutica, ou, pelo contrário,
será que a terapêutica o visa justamente porque ele é considerado normal pelo interessado, isto é, pelo doente?
(CANGUILHEM, 1978, p. 96). 7 Kussmaul (1884) já apostava em uma ação regenerativa do tecido cerebral e alertava que “les conditions par
suite desquelles l'aphasie dispariat avec légèreté ou difficulté son encore innconues.” (1884, p. 190).
23
caso, seria aquele que manipulava sua linguagem e “ele” referia-se ao corpo físico, àquele que
falava, que era enxergado pelos outros. Diferenciação entre “eu/ele” que revela fatores
negativos, como o estranhamento causado pelos que estavam próximos a Pires, afásico, que o
tomavam como alguém em vias de desaparecer, que já não representava o homem que era.
Ou, talvez, isso se dava pelo fato de Pires não aceitar suas próprias alterações linguísticas,
práxicas, fazendo com que as transferisse e “ele”, a um outro, àquele visto pelas pessoas, já
que internamente se sentia íntegro.
Além disso, em relação ao ponto principal deste capítulo, que trata de
manipulação/reflexão sobre a linguagem, vê-se que esta funciona pelo descobrimento e
organização de seus recursos, refazendo o significado de palavras; é desse modo que o sujeito
afásico se reassume novamente como maestro de suas relações, já que a linguagem é “[...] ela
mesma um trabalho pelo qual, historicamente, social e culturalmente, o homem organiza e dá
forma a suas experiências. [...], na medida que se constitui a si próprio como locutor e como
interlocutor” (FRANCHI, 1987, p. 164).
Em vista da relação afasia/linguagem, pretende-se ainda ressaltar indícios que exaltem
as atividades reflexivas de sujeitos afásicos, isto é, a maneira como recolhem da linguagem o
que precisam para a interlocução. Pois, assim como demostram Sacks (2010) e Pires (1997), a
linguagem é o campo a ser cultivado para a (re)estruturação da fala alterada pela patologia. E,
nesse sentido, destaca-se, como exemplo, o que produz CF, sujeito que tem uma afasia severa,
discutida no capítulo 5 desta pesquisa. A cena demonstrada no dado a seguir, destaca certo dia
que CF chegava ao CCA, apoiando-se no braço de um cuidador. E, antes mesmo de cruzar a
porta de entrada para a sala de reunião, depara-se com um panfleto da 9ª Semana de Educação
da Unicamp. CF, que lê apenas algumas palavras e quase nunca as pronuncia por si só, chama
o cuidador. Abaixa-se com dificuldade para a mesa de revistas, exemplificada na imagem a
seguir, cobre com os dedos algumas sílabas - aqui marcadas em negrito - da palavra
Educadora, e diz: “Dentista! Edu-ardo!”, e manda beijos para os céus, relembrando a falta
que sente dessa pessoa.
24
Figura 1: Revistas e jornais dispostos na área de espera do CCA
Este dado exemplifica, de uma maneira particular, como a manipulação da linguagem
pode ser observada na afasia, ainda que o sujeito tenha sua fala ou leitura severamente
desorganizadas pela patologia. CF, por exemplo, exerce nesse caso, um trabalho linguístico de
reflexão e de criação, mostrando como o pensamento pode ser expressado por diferentes vias.
Na verdade, sua narrativa é facilitada pelo fato de seu interlocutor conhecer a parte de sua
história que se relaciona com o nome evocado por CF. Logo, o gesto de mandar um beijo ao
céus torna-se mais significativo, mais subjetivo para o caso de CF.
Além disso, o ato de cobrir com os dedos as sílabas da palavra Educadora e usar Edu-
para recuperar o nome de alguém serve para explicitar o quanto funções da língua e da fala se
mantêm ativas para CF. E vê-se que ela promove a tradução de sua fala (COUDRY, 2008)
pelo gesto, traduz o que não pode explicar com palavras: manda um beijo ao céus. Assim,
olhar para esse dado de CF é perceber que, como diz Bakhtin (2006, p. 72), “1. A língua é
uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção (“energia”), que se materializa
sob a forma de atos individuais de fala. 2. As leis da criação lingüística são essencialmente as
leis da psicologia individual.” No entanto, há que se considerar que a afasia, muitas vezes,
compromete esse processo criativo.
Nesse dado, identifica-se como se dá o processo de criação linguística de CF. Sua
linguagem se torna pública por questões individuais, mas surge sobretudo pelo papel que o
outro representa na estruturação de sua fala. A presença do outro traz a necessidade de contar
de CF, há para quem narrar as situações que marcaram sua vida. E ver as expressões do outro
diante do que conta serviria, segundo Caneppele (2010, p. 137) “como marcador de uma certa
realidade significativa”; o fato de ver como o outro reage diante de seus sentimentos, marca-o
25
como um igual para CF. Além disso, é na interlocução, como mostra esse dado, que se
percebe o papel do outro para o desenvolvimento de atividades linguísticas, e também
“epilinguísticas e metalinguísticas que se embrenham no funcionamento discursivo e indicam
um trabalho linguístico em andamento, assentado em um quadro de referências ântropo-
culturais” (COUDRY, 2012a, p. 27).
É sobre esse conceito “ântropo-cultural” que se destaca o acompanhamento desses
sujeitos, o qual é marcado ainda por questões do investigador e de suas leituras teóricas, por
seu conhecimento sobre o sujeito afásico e por atividades enunciativo-discursivas8 entre
ambos. O “investigador não é um sujeito exterior e distante que ‘observa, analisa e teoriza’,
mas um verdadeiro interlocutor que participa do espaço de linguagem em que o afásico se
constitui como sujeito” (COUDRY,1986/88, p. 196).
Conforme diz Coudry, o discurso participa do quadro de estruturações simbólicas e
por meio destas - como o caso de CF, exemplificado no dado anterior, figura 1 - se
manifestam importantes intenções de seus integrantes, que são movidos também pela
interlocução, atuando com e sobre o outro e sobre o próprio contexto discursivo que
vivenciam.
Se o sistema da língua conta com um conjunto amplo de formas a serem
selecionadas e combinadas para produzir sentido, há processos de significação a
explorar na interlocução com afásicos [...]. Se a afasia afeta certas estruturas e usos
da língua e de outros sistemas não verbais, por sua vez o sujeito afásico busca outros
arranjos para significar, ou seja, produz processos alternativos de significação
(COUDRY, 2008, p. 9).
Tendo esse aporte teórico da ND9 como norte, promove-se nos capítulos subsequentes
deste trabalho, um brevíssimo percurso a respeito de concepções teóricas sobre afasia, com o
objetivo de compreender como neurologistas como Freud, Luria e Lebrun e linguistas como
Jakobson e Coudry analisaram casos de afasia. Patologia que incide sobre a fala e também
sobre a língua, as quais mesmo em seus funcionamentos “normais” estão, como diz Orlandi,
sujeitas a falhas e afetadas pela incompletude. Essa autora ainda afirma que “[...], o lugar da
falha e da incompletude não são defeitos, são, antes, a qualidade da língua em sua
8 Enunciativo porque importa a enunciação para o outro, em meio a contingências próprias de uso social da
linguagem; discursivo porque é a forma da linguagem expor-se como atividade significativa, condicionada por
fatores ântropoculturais dissimulados ou aparentes (COUDRY, 2002, p. 111). 9 A Neurolinguística Discursiva enraíza seus fundamentos teóricos em concepções sobre a linguagem e sobre a
anatomia funcional do cérebro. E, ao optar pela inclusão de uma prática de pesquisa que busca seus dados em um
exercício discursivo da linguagem - partidária dessa noção como evento imbricado na rede das relações sociais e
como momento de interlocução -, ela desloca seu campo de pesquisa para realidade efetiva dos sujeitos que dão
corpo a essas relações. (CANEPPELE, 2010, p. 129).
26
materialidade [...]” (ORLANDI, 2005, p. 51). É justamente na falha que a ND observa que
“os afásicos ‘não esqueceram’ ‘os signos’ certa vez impressos ‘na folha’ da sua psique
(Heller-Roazen)” (COUDRY, 2012a, p. 72).
Este trabalho, que se baseia sobre as concepções da ND, credita à linguagem
ferramentas que regulariam não apenas a fala, mas influenciariam a plasticidade cerebral do
sujeito cérebro lesado; a qual só pode ser sequenciada se permitido a esse sujeito que, na
presença do outro, busque meios de significar, de se expressar, o que não ocorre em
perspectivas de estudos tradicionais, visto que o peso de diagnósticos desconsidera o sujeito e
remonta ao princípio de estudos neurológicos do século XIX.
...
2. DE FREUD A LURIA: O QUE SE USA DA LINGUÍSTICA?
Discute-se, neste capítulo, um olhar que alerta para a entrada dos estudos linguísticos
na neurologia que se dedicava aos estudos de afasia, os quais alertavam para a presença do
sujeito e da linguagem. Temas que foram investigados por Luria, neuropsicólogo que, diante
de uma clínica localizacionista por tradição, estudou as ações e a recuperação do cérebro a
partir do funcionamento da linguagem e do comportamento humano. Luria, influenciado por
Vygotsky, entendia que a língua estava relacionada ao âmbito social e não somente à clínica e
aos testes, o que fez com que suas pesquisas considerassem aportes da Linguística para o
tratamento da afasia, assim como se verifica, por exemplo, em “A construção da mente”
(1992).
Salienta-se o quão vanguardista foram as publicações desse autor, que, em suas
pesquisas, tratou de demonstrar que atividades cerebrais e ações de cada sujeito não se davam
unicamente pelo emprego de áreas determinadas do cérebro. Nesse sentido, destaca-se o
trabalho de Luria em apresentar o funcionamento do cérebro em três blocos, relacionando-os
a funções específicas de acordo com cada ação humana, mas revelando-os como partes
fundamentais de um aparelho que trabalha em conjunto. Luria descreveu um cérebro
sistêmico e dinâmico, que revela seu funcionamento pelos usos que o sujeito faz da língua,
27
pelas experiências do sujeito na esfera social. Em seu tempo, promovendo aproximações entre
Neurologia e Linguística para o estudo de casos de danos cerebrais, Luria afirmava que
La Linguistique [...] n’accordé qu’une attention très insuffisante au rôle que joue la
langue non seulement dans la transmission d’informations mais aussi dans
l’influence qu’elle exerce sur l’homme qui perçoit le langage et, en définitive, sur le
sujet même qui le manie (LURIA, 1966, p. 12, grifo nosso)10.
Esse trecho em destaque, extraído de “Problémes et faits de la neurolinguistique”
(1966), ressalta as concepções de Luria sobre a importância de uma Linguística que observe
língua, fala e sujeito, considerando a linguagem como algo imanente ao homem e que é
manipulada por ele. De acordo com Luria, em “Pensamento e linguagem: as últimas
conferências” (1987), o homem existe e vive além de um mundo de impressões imediatas;
vive em um mundo no qual conceitos abstratos o compõem de maneira tão intensa quanto o
espaço físico do qual faz parte. Nessa obra, ele comenta que há ainda uma experiência social
sendo formulada por esses conceitos abstratos e que, dessa maneira, (re)construindo-se, o
homem manipula objetos e seus relacionamentos. E a linguagem, que corresponde a essa
intersecção entre mundo físico e abstrato, compõe-se e se mostra por jogos linguísticos, nos
quais o sujeito afásico percorre sua memória, investiga fatos e conceitos para enfrentar os
problemas trazidos pela patologia e se fazer presente no mundo. O afásico, como descrito por
Sacks (2010) e Pires (1997), deambula pelo invisível, e
comme il est profond, ce mystère de l'Invisible ! Nous ne le pouvons sonder avec
nos sens misérables, avec nos yeux qui ne savent apercevoir ni le trop petit, ni le
trop grand, ni le trop près, ni le trop loin, ni les habitants d'une étoile, ni les habitants
d'une goutte d'eau... avec nos oreilles qui nous trompent, car elles nous transmettent
les vibrations de l'air en notes sonores11 (MAUPASSANT, Le Horla, 1887, p. 914).
São as palavras essas notas sonoras. E suas significações internas, como diz
Maupassant, foram esmiuçadas por Freud em “La afasia” (1891). Sons/palavras que
trabalham como representações que permitem que sejam pesquisados os sintomas da afasia,
que sejam percebidos os elos rompidos ou desestruturados na linguagem, na fala. Graças às
investigações de Freud (1891) a respeito do conceito psicológico de palavra, sabe-se que
10 (Tradução nossa). A Linguística outorgou apenas uma atenção muito insuficiente ao papel que a língua
desempenha, não só na transmissão de informações, mas também na influência que ela exerce sobre o homem,
que percebe a linguagem, e, em última instância, sobre o sujeito mesmo que a manipula. 11 (Tradução nossa). Como é profundo esse mistério do invisível! Nós não o podemos sondar com nossos
sentidos miseráveis, com os nossos olhos que não percebem nem o muito pequeno, nem o muito grande, nem o
muito perto, nem o muito longe, nem os habitantes de uma estrela, nem os habitantes de uma gota d'água... Com
os nossos ouvidos que nos enganam, pois nos transmitem as vibrações do ar em notas sonoras.
28
essas notas sonoras são compostas por hastes auditivas, visuais e cinestésicas. Segmentadas
dessa maneira, percebe-se que tais características não apenas constituem a palavra ou um
objeto psicologicamente, mas que mostram os sentidos dos quais estes são feitos, como estão
internalizados e desestruturados em cada sujeito afásico. Esse entendimento a respeito da
palavra e dos sentidos que a compõem é um conhecimento que, segundo Freud,
lo debemos a la patología, la cual demuestra que las lesiones orgánicas que afectan
al aparato del lenguaje ocasionan una desintegración del lenguaje correspondiente a
tal constitución. Hemos aprendido a considerar la pérdida de cualquiera de estos
elementos como el indicador más importante de la localización del daño (FREUD,
1891, p. 85-86).
É sobre a localização do dano cerebral e o que da linguagem aparece afetado na afasia
que este capítulo comenta, além das pesquisas de Freud (1891), questões sobre afasia da
vertente localizacionista - de neurologistas do século XIX. Essa breve apresentação do
percurso científico-temporal visa comentar também os usos da Linguística por Luria, este que
passa a atentar para a importância que se deve dar aos usos da língua e à presença de um
sujeito nas investigações acerca da afasia. Luria, diferente de seus predecessores, à medida
que observava o comportamento e o trabalho de afásicos em atividades linguísticas, concluía
que, para que estes desenvolvessem suas produções, certamente haveria um remanejamento
de funções entre cada área do cérebro. Esse remanejamento de funções ocorrido entre áreas
afetadas e áreas preservadas do cérebro parece poder ser visto no caso do sujeito AM,
discutido no capítulo 5 desta pesquisa. Além disso, comenta-se um exemplo dado por Luria
por meio na imagem a seguir, figura 2, em que esse autor discute sobre as áreas que são
usadas no cérebro para um simples movimento do corpo.
Figura 2: “Voluntary movement” (LURIA, 1970, p. 68)
A descoberta de que uma forma complexa de atividade mental [...] vista como
função de uma área localizada do cérebro causou um entusiasmo nunca antes
visto nas ciências neurológicas. [...]. Na década de 1880, os neurologistas e
psiquiatras eram capazes de organizar “mapas funcionais” do córtex cerebral.
29
Achavam que haviam resolvido o problema da relação entre a estrutura cerebral e a
atividade mental. Esse tipo de pesquisa persistiu até a década de 30 (LURIA, 1992,
p. 127, grifo nosso).
De acordo com a parte pintada em vermelho nessa imagem, um único movimento
voluntário do corpo demanda que diferentes áreas do cérebro trabalhem em conjunto. E é essa
relação ativa e intensa entre “zonas” do cérebro que permite, por exemplo, que um
determinado sujeito escreva, ainda que tenha sofrido um dano “na parte posterior do giro
frontal médio esquerdo” (LURIA, 1992, p. 127), área identificada como o centro da escrita.
Luria, como ilustrado na figura 2, compreendia, pelo acompanhamento dos sujeitos de
suas pesquisas, que, em um simples movimento voluntário, diferentes áreas do cérebro
trabalhavam para executar tal ação. Na escrita, por exemplo, Luria (1970, p. 72) explica que
há uma requisição geral, que envolve o aparato do terceiro bloco do cérebro (lobo frontal)
como um todo e não apenas um ponto específico como o lobo occipital, que corresponde à
área da escrita. Ou seja, o ato de escrever ou um simples movimento de braço se realizam
graças ao envolvimento de diferentes áreas do cérebro, coordenadas pelo frontal.
De acordo com Luria (1970), os lobos frontais, ligados ao tronco cerebral, trabalham
para ativar o cérebro, e não desenvolvem funções sensoriais ou motoras. E, ainda que venham
a ser lesionados, embora o paciente não venha a ser capaz de expressar seus pensamentos pela
fala ou pela escrita, sensações de movimento, percepção, fala e outros processos relacionados
a essas funções permanecem “preservados”. Luria ainda diz que se essas ações - como a
escrita - se tornam impossíveis, isso se dá justamente porque os lobos frontais, que coordenam
todo funcionamento cerebral, estão afetados. Com base em Luria, Coudry e Freire (2005, p.
29), tratando de processos cerebrais envolvidos no ato de escrever, explicam que o lobo
frontal, ligado às funções executivas, “desempenha um papel crucial no planejamento e
checagem da aprendizagem. Além de monitorar a atenção, a região pré-frontal também
controla as informações que chegam ao cérebro pelas vias que se ligam aos órgãos dos
sentidos”.
A respeito do lobo frontal, mais especificamente sobre o córtex pré-frontal, Goldberg
(2015), orientando de Luria, comenta que essa região do cérebro tem as funções de: a)
estabelecer metas e objetivos e conceber os planos de ação necessários para alcançar tais
finalidades (função considerada a principal); b) selecionar as habilidades cognitivas
necessárias para implementar os planos concebidos, coordenar tais habilidades e aplicá-las na
ordem correta; e c) avaliar o êxito ou o fracasso de nossas ações em relação às nossas
intenções. Para esse autor, o córtex pré-frontal é o responsável pela noção do “eu” (e da
30
consciência) nos grandes símios e nos humanos; nestes, seu surgimento foi concomitante com
o da linguagem, o que possibilitou um “salto quântico” para a espécie.
Goldberg (2015) comenta ainda que a linguagem, com sua característica
gerativa/recursiva, e o lobo frontal – cujas funções são comparadas as de um diretor de uma
orquestra ou as de um general – permitem ao homem planejar não apenas com base nas
experiências prévias, mas projetar elementos futuros. Por sinal, uma característica do cérebro
é “olhar adiante” (GOLDBERG, 2015, p. 40).
Goldberg, analisando funções do lobo frontal, dedica-se a especificar estruturas
subcorticais, como tálamo, hipotálamo, gânglios basais, hipocampo e córtex cingulado. Suas
análises proporcionam ao leitor um entendimento de como o funcionamento desses
“dispositivos cerebrais” está implicado em aspectos de controle motor, memória, emoções e
temperatura corporal. Essas estruturas correspondem, segundo esse autor, a linhas de
comunicação, que são coordenadas pelo córtex pré-frontal. Além disso, essa
integração/cooperação de estruturas internas do cérebro, diz Goldberg, revela condições para
uma plasticidade cerebral, já que indicam como um elemento, uma estrutura do cérebro pode
“ajudar” uma outra.
Tais considerações de Goldberg (2015) mostram, sobretudo, a influência que suas
pesquisas têm recebido das ideias de seu Professor, Luria. Como se vê em grande parte de
seus trabalhos, Luria dedicou-se a compreender como estruturas cerebrais se relacionam e se
“complementam” em casos de danos cerebrais. Ao desenvolver sua teoria do cérebro como
um sistema funcional complexo, entendia que era
[..] obvious that these processes [comportamentais], being social in origin and highly
complex in structure and involving the elaboration and storage of information and
the programming and control of actions, are not localized in particular centers of the
brain12 (LURIA, 1970, p. 66).
Por outro lado, essa importante análise científica (que para ele era óbvia), embasada
em uma série de pesquisas, parece ter sido realizada em uma época anterior à sua. Isto é,
ainda que não se possa afirmar uma influência de Freud nas pesquisas de Luria, vê-se, nas
reflexões do primeiro, argumentos que já sinalizavam para o fato de que não bastava associar
a localização da lesão no cérebro a um problema de fala. Freud (1891, p. 81-82) comenta que
“[...] los centros del lenguaje son [...] partes de la corteza que tienen derecho a arrogarse un
12 (Tradução nossa). É óbvio que esses processos [comportamentais], sendo sociais em sua origem e altamente
complexos em estrutura, envolvendo elaboração e armazenamento de informações, programação e controle de
ações, não estão localizados em centros particulares do cérebro.
31
significado patológico pero ningún significado fisiológico especial”. E ainda discute, em “La
afasia” (1981), sobre as implicações de se enumerar tipos de afasia para cada comportamento
peculiar.
Segundo Freud (1891), é preciso investigar o funcionamento do cérebro atrelado à sua
organização, aos usos da linguagem de cada sujeito. Fatos que levaram esta pesquisa a, neste
capítulo, ressaltar pontos dos trabalhos de Freud e de Luria que se comunicavam teoricamente
sobre linguagem e sujeito. Nesse sentido, busca-se explicitar o que da Linguística era
observado por esses autores em seus estudos Neurológicos.
Em “La afasia” (1891), por exemplo, nota-se como a posição crítica de Freud a
respeito dessa patologia o impeliu a redefinir a numerosa classificação de tipos dessa
patologia. Freud contribuiu para que se repensasse o modo de estudá-las, de olhar para o
sujeito. Como ele diz,
Creemos estar justificados al rechazar la diferenciación entre las así llamadas afasias
centrales o corticales y las afasias de conducción (asociación), y sostenemos que
todas las afasias se originan en la interrupción de las asociaciones, es decir, de
las conducciones (FREUD, 1891, p. 81-82, grifo nosso).
A partir do que afirma Freud, posicionando-se aí frente a argumentos das pesquisas de
Wernicke, verifica-se que, pelo acompanhamento de afásicos, o que se mostra afetado - na
linguagem - é a condução (FREUD, 1891) das associações de palavra e de representações de
palavra que ocorrem no cérebro para que o sujeito compreenda ou se expresse pela fala ou
pela escrita. Pelo que se nota, há um desarranjo no percurso feito pelo raciocínio alterado pela
afasia. Assim como descreve Pires (1997), as associações feitas interiormente não encontram
“ganchos” que unam pensamentos com a articulação motora necessária para a composição da
fala, da escrita ou da leitura. E, quando encontrados, o engate desses “ganchos” vem, muitas
vezes, desorganizado, o que revela o estado da linguagem.
Partindo de pressupostos de Freud (1891) a respeito de condução de associações,
verifica-se como se saiu o sujeito BM em uma atividade no CCA, na qual afásicos e não
afásicos deveriam escrever e ler em voz alta uma manchete de jornal. Essa manchete deveria
ser formulada com base em uma foto da ex-presidente da Petrobras, Graça Foster, que, na
época, tinha seu nome diretamente relacionado ao escândalo de corrupção da estatal,
investigado pela Operação Lava Jato.
32
Figura 3: Ex-presidente da Petrobras: Graça Foster.
No decorrer dessa atividade, soube-se que BM estava ciente das notícias veiculadas
sobre o caso de corrupção da Petrobras e que se indignava com mais uma crise de corrupção
enfrentada pelo Brasil. Além disso, percebeu-se que BM havia entendido bem a discussão
desenvolvida a respeito de Foster e sobre sua posição dentro da empresa. Assim, a foto
escolhida por uma das investigadoras, na qual a ex-presidente aparece com um semblante
preocupado, serviu como um bom mote para BM, que escreveu e leu a seguinte manchete
para o grupo, transcrita no turno 4:
Dado 1. A Petrobras graças a Deus – 13/03/2015
Turno
Sigla do
locutor
Transcrição
Observações sobre o
enunciado verbal
Obs. sobre o enunciado
não-verbal
1
Inv.
BM, você fez uma
manchete? Da foto daquela
mulher?
2 BM Sim.
3 Inv. Qual é?
4 BM A Petrobras graças a Deus. Fez a leitura do que tinha
escrito.
33
Figura 3: Manchete escrita por BM sobre a foto de Graça Foster
De acordo com sua produção, pode-se dizer que, se sua manchete fosse analisada
unicamente para se questionar a estrutura gramatical de seu enunciado, vê-se que BM omite
certas estruturas da língua. No entanto, essa omissão não prejudica em nada seu trabalho
linguístico e tampouco o entendimento de sua manchete. Conforme apresenta Jakobson, em
“Aspectos lingüísticos da tradução” (1956/2003, p. 67), “a ausência de certos processos
gramaticais na linguagem para a qual se traduz nunca impossibilita uma tradução literal da
totalidade da informação conceitual contida no original.” Além disso, a fala, a manchete de
BM, mostra não apenas sua opinião crítica, já que pede a eliminação da corrupção na
Petrobras, como também se mostra como um primoroso jogo linguístico.
BM faz um trocadilho em “A Petrobras graças a Deus”. Promove um grande trabalho
com os sentidos das palavras que usa, com os sentidos que quer transmitir. Articula o
contexto político da época com termos e expressões da língua. BM brinca com a linguagem e
com a língua. Produz um enunciado que é desenvolvido pelos sentidos que estão atrelados à
corrupção, à Petrobras e relacionados a conceitos que se referem ao nome Graça e à expressão
“Graças a Deus”. A manchete de BM, “A Petrobras graças a Deus”, traz muitas
interpretações, sobretudo relacionadas ao fato de Graça ter sido a desgraça da Petrobras e de
que a Petrobras, então, graças a Deus, não contava mais com Graça e assim por diante.
Ressalta-se ainda como a palavra “graças” foi bem pronunciada por ele, já que que havia
escrito “graça”, como se vê na figura 3. BM, na fala, corrige sua escrita, a fim de reforçar a
ideia de seu enunciado.
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Nesse dado, destacam-se, inclusive, pontos que se aproximam e dialogam com a teoria
de Freud (1891), pois há um esforço, um trabalho que se focaliza na condução dos sentidos
que BM deu à sua manchete. Por meio desse dado 1, identifica-se um dos grandes destaques
da Neurologia de Freud (1891) em relação a de outros pesquisadores de seu tempo, trata-se do
fato de que esse autor discutiu a ideia de que atividades associativas realizadas pelo cérebro
ocorrem e se mostram pela/na palavra. Freud reflete sobre esta, observando-a como uma
estrutura que, quando afetada pela afasia, é sensibilizada em uma ou mais partes dos
elementos que a constituem.
A afasia, como se vê em atividades de BM, pode se mostrar exatamente assim,
conturba a linguagem e causa alterações no cerne da palavra. Por outro lado, nota-se, nesse
dado 1, em sua manchete fundamentada no nome e na expressão “Graça(s)”, que BM - afásico
- brilhantemente manipula os conceitos que compõem as palavras escolhidas por ele. Embora
afásico, BM trabalha e se mostra como qualquer sujeito não afásico, reafirmando, por meio de
sua manchete, que a afasia não anula sua subjetividade. Nesse dado, conforme investiga
Jakobson, há uma seleção de significações que relaciona símbolos de uma expressão
metalinguística (graças a Deus) com os símbolos da linguagem a que BM se refere (Graça
Foster). Percebe-se aí como “a similitude relaciona um termo metafórico com o termo a que
substitui.” (JAKOBSON, 1956/2003, p. 61).
Além disso, por meio dessa manchete de BM, entende-se como Freud (1891) buscava
investigar o sujeito e a patologia por meio do uso da palavra. Freud lançou seu olhar para o
subjetivo e essa sua forma de trabalho não só debate conceitos sobre afasia, como também
salienta a importância que a Linguística teria para acompanhamento e análise dessa patologia
Freud, em “La afasia” (1891), como dito, contrapõe-se a análises como as de
Wernicke e, em suas pesquisas, trata de excluir as muitas enumerações de tipos de afasia.
Traz, por exemplo, a hipótese de que a representação de palavra, sua imagem mental, e sua
imagem motora/acústica estão diretamente ligadas à representação de objeto. Essa associação,
dos elementos acústicos que compõem a palavra e o objeto que a representa, estaria, para
Freud (1891), prejudicada na afasia em três ordens diferentes: 1) afasia verbal, na qual estão
alteradas as associações entre os distintos elementos da representação da palavra; 2) afasia
assimbólica, na qual está perturbada a relação entre a representação de palavra e a
representação de objeto; 3) afasia agnósica, na qual está prejudicada a relação entre o objeto e
sua ideia.
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E, apenas para que se tenha melhor ideia dessa reorganização (nova disposição) das
afasias a que Freud (1891) se dedica, apresenta-se a seguir a tipologia de Kussmaul (1884):
1º L'aphasie ataxique ou l'impossibilité de la coordination motrice de mots ; 2º
L'aphasie amnésique ou l'impossibilité de se rappeler les mots comme complexus de
son acoustiques ; 3º La surdité verbale ou l'impossibilité malgré l'intégrité de l'oreille
et de l'intelligence de comprendre les mots comme auparavant ; 4º La paraphasie ou
l'impossibilité de relier convenablement les images de mots avec leurs idées de telle
façon qu'à la place des images répondant au sens il en surgit d'autres contraires ou
incompréhensibles ; 5º L'agrammatismus et l'acataphasie ou l'impossibilité de
former grammaticalement les mots et de les arranger dans la phrase suivant la
syntaxe (KUSSMAUL, 1884, p. 198).
Kussmaul define classes de afasia, as quais são delimitadas pelos sintomas e déficits
apresentados por sujeitos cérebro-lesados. Os estudos de Freud, influenciados por Hughlings
Jackson, autor que já apostava nas possibilidades do cérebro se rearranjar após uma lesão,
destinavam-se a compreender como afásicos se saiam linguisticamente em atividades de uso
da linguagem. Para análise da fala, Freud considerava as muitas diferenças entre cada sujeito
e o caráter manipulável da linguagem. Seu trabalho contribuiu não apenas para delimitar os
tipos da afasia, mas para mostrar o funcionamento do cérebro e da linguagem pela palavra.
Nesse sentido, a partir do que se lê em “La afasia” (1891), vê-se que os comentários de
Freud sobre as pesquisas de Jackson revelavam descobertas que apontavam para o que Luria
(1970) chamaria de um sistema funcional13 complexo.
As áreas do cérebro responsáveis pelas funções da linguagem e também pelas funções
dos nervos deveriam ser consideradas de modo dinâmico, apostando-se em uma organização
do sistema cerebral. Análises que não mostravam a lesão como algo definitivo para a perda da
linguagem ou para a delimitação de um tido de afasia pontual. Dessa forma, Freud (1891, p.
112) menciona que Jackson, há tempos discutia o fato de que “en diferentes personas,
diferentes cantidades de ordenamientos nerviosos en diferentes posiciones se destruyen con
diferente rapidez”.
Teorias que já reclamavam a importância de se avaliar longitudinalmente cada sujeito,
sem se valer de uma avaliação sistêmica e determinista. Freud (1891, p. 44) concluiu que, se
lesões no cérebro dão origem a algum sintoma, podem ser feitas proposições sobre sua
localização, porém, diagnósticos e processos patológicos devem ser presumidos por meio de
circunstâncias especiais, de acordo com cada caso e o curso da enfermidade.
13 “Sistema funcional” foi um termo introduzido por Anokhin, segundo Luria (1981, p.13).
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Já Kussmaul, Wernicke e Lichtheim, alguns dos autores lidos por Freud para sua
teorização a respeito da afasia, pareciam desconsiderar hipóteses subjetivas e se dedicavam
com afinco em estudos objetivos sobre áreas e meandros das regiões do cérebro. Esses autores
desenvolveram modelos de centros da linguagem que tencionavam descrever o percurso de
condução do som até a representação de seus significados na mente, trajetos que eram
marcados pelas conexões ocorridas/interrompidas nos limites das áreas corticais receptiva e
motora. Tais áreas aparecem marcadas nas figuras a seguir: pelos parênteses ( ), na pesquisa
de Wernicke, e pelas letras “B” e “J”, nas pesquisas de Lichtheim e Kussmaul,
respectivamente.
Quanto à importância desses esquemas de linguagem desses autores, é frente às suas
classificações das afasias que Freud, além de reordenar as afasias, analisava, em relação à
hipótese sobre a afasia de condução e sobre o trabalho de Wernicke, que o esquema
desenvolvido por este apresentava alguma relação com outras atividades de outras partes do
cérebro. Para Freud (1891, p. 21), o esquema de Wernicke poderia estar relacionado à
capacidade do sujeito de repetir palavras ouvidas. Porém, as delimitações do esquema
mostrado a seguir excluíam outras tantas atividades cerebrais que são indispensáveis para a
linguagem espontânea. Freud, portanto, acreditava que havia a necessidade de uma pesquisa e
apresentação mais complexas a respeito do aparelho da linguagem.
Figura 4: Esquemas do processo de linguagem de Wernicke (FREUD, 1891, p. 20-21).
De acordo com Freud, Wernicke acreditava que a destruição do centro motor (a), área
de Broca, eliminaria as imagens dos movimentos de fala, o que impossibilitaria a inervação
dos nervos do crâneo e consequentemente a produção da fala, causando uma afasia motora.
Por outro lado, uma lesão na terminação do nervo auditivo (b), área de Wernicke, provocaria
a perda das imagens dos sons e traria, portanto, incapacidade de compreensão da linguagem,
resultando em uma afasia sensorial. De acordo com esse esquema de linguagem, a área
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delimitada pelos parênteses, a partir de estudos anatômicos de Wernicke, corresponderia a um
feixe de fibras, relacionadas à ínsula, que circundam a circunvolução de Silvio. E, por fim, a
destruição dessas fibras ocasionaria um transtorno consistente de linguagem que prejudicaria
a compreensão e a articulação, trazendo confusão e insegurança nos usos das palavras,
denominado por esse autor como afasia de condução.
Para Freud (1891, p. 18-19), as observações de Wernicke foram apenas um passo
inicial para o que se chamaria de afasia de condução. Do trabalho de Wernicke surgiu a
estrutura da qual se organiza o projeto de Lichtheim, autor que organizou em seu esquema
sete tipos de afasias, configuradas por problemas de condução. Para Freud, embora muito
tivesse criticado Lichtheim, este foi o responsável por dar um passo a mais diante da
necessidade de uma representação melhor organizada do aparelho da linguagem.
De acordo com Freud (1891), o esquema de Lichtheim não podia ser validado por um
motivo simples: seu modelo associativo não estava embasado na anatomia do cérebro, como o
fez Wernicke, e não correspondia precisamente a casos de afasia ou transtornos de linguagem
então conhecidos. Além disso, as hipóteses levantadas por Lichtheim sobre interrupções entre
os centros associativos do cérebro não levariam a uma perda de linguagem específica. Para
Freud, Lichtheim não assumiu a possibilidade de que para se repetir algo não se faz
necessário que a fala seja manifesta, visto que o sujeito tem/recria a imagem da palavra em
sua mente.
Nota-se, dessa forma, o olhar que Freud lança sobre o caráter da linguagem e sobre os
modos como o sujeito a manipula, destacando a relação fala/linguagem. Segundo Freud,
palavras escutadas, mas que por uma interrupção/lesão não foram transportadas diretamente
de um centro a outro no cérebro, poderiam ser repetidas, fazendo um rodeio, passando por
outras áreas do cérebro; conclusão que parece ser suficiente para se pensar em uma
reorganização cerebral, para se pensar que processos da linguagem não apenas permanecem
preservados, mas se reorganizam.
Freud, em “La afasia” (1891, p. 19), faz considerações a respeito de Lichtheim que
seriam úteis também para comentar o esquema de Kussmaul. Freud criticava o pensamento de
que não se podia falar em perda de linguagem, justamente porque a fala espontânea, que
ocorre por meio de imagens acústicas, mostrava-se preservada. Nesse sentido, uma afasia
sensorial, que engloba as percepções do sujeito, deveria apresentar não apenas uma
perturbação, mas também perda de linguagem. Freud arg
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