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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE
FACULDADE DE FILOSOFIA DOM AURELIANO MATOS – FAFIDAM
FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL – FECLESC
MESTRADO ACADÊMICO INTERCAMPI EM EDUCAÇÃO E ENSINO – MAIE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO – NÍVEL MESTRADO
ANTONIO OZIÊLTON DE BRITO SOUSA
IDENTIDADES (DES)COLONIAIS NAS PRÁTICAS DE LETRAMENTO DO PROJOVEM
CAMPO – SABERES DA TERRA
LIMOEIRO DO NORTE - CEARÁ
2015
1
ANTONIO OZIÊLTON DE BRITO SOUSA
IDENTIDADES (DES)COLONIAIS NAS PRÁTICAS DE LETRAMENTO DO
PROJOVEM CAMPO – SABERES DA TERRA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação e Ensino. Área de concentração: Educação, Escola e Movimentos Sociais. Orientadora: Profª. Drª. Claudiana Nogueira de Alencar.
LIMOEIRO DO NORTE - CEARÁ
2015
2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho
SOUSA, Antonio Oziêlton de Brito.
Identidades (des)coloniais nas práticas de
letramento do Projovem Campo – Saberes da Terra/
Antonio Oziêlton de Brito Sousa. – 2015
1 CD-ROM. 135 f. : il (algumas coloridas) 4 ¾
“CD-ROM Contendo o arquivo no formato PDF do
trabalho acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim
(19 x 14 cm x 7 mm)”
Dissertação (Mestrado Acadêmico) – Universidade
Estadual do Ceará, Faculdade de Filosofia Dom Aureliano
Matos, Faculdade de Educação Ciências e Letras do
Sertão Central, Mestrado Acadêmico Intercampi em
Educação e Ensino, Limoeiro do Norte, 2015.
Área de concentração: Trabalho, Educação e
Movimentos Sociais
Orientação: Profª Ph. D. Dra. Claudiana Nogueira de
Alencar
1. Discurso 2. Identidades 3. (Des)Coloniais 4.
Letramento 5. Educação do Campo. I. Título.
3
ANTONIO OZIÊLTON DE BRITO SOUSA
IDENTIDADES (DES)COLONIAIS NAS PRÁTICAS DE LETRAMENTO DO
PROJOVEM CAMPO – SABERES DA TERRA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação e Ensino. Área de concentração: Educação, Escola e Movimentos Sociais. Orientadora: Profª. Drª. Claudiana Nogueira de Alencar.
Aprovada em: 06 de março de 2015
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Profª. Drª. Claudiana Nogueira de Alencar (Orientadora)
Universidade Estadual do Ceará - UECE
________________________________________________
Profª. Drª. Ana Lúcia Silva Souza
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB
________________________________________________
Profª. Drª. Sandra Maria Gadelha de Carvalho
Universidade Estadual do Ceará - UECE
4
A Felipe Bandoni de Oliveira que
verdadeiramente acreditou na minha
vocação ontológica de ser mais e
possibilitou as condições concretas
para minha autonomia.
Aos moradores do campo que lutam
por terra, trabalho e educação.
5
AGRADECIMENTOS
Acredito que a única coisa que nos torna iguais é o fato de sermos
diferentes, como afirma Irandé Antunes “A diferença é a parte mais significativa
daquilo que nos torna iguais”. Desse modo, as nossas conquistas devem ser
consideradas como frutos da nossa vontade e da interação com o outro. A
todos que contribuíram para a realização desse projeto, muito obrigado!
Meus agradecimentos a Deus, por me acompanhar por toda a vida,
conceder talentos e proporcionar que eu vivesse essa experiência incrível.
A todos os meus professores desde os anos iniciais à pós-
graduação, especialmente, aos professores do Mestrado Acadêmico Intercampi
em Educação e Ensino – MAIE, representados pelo empenho, estímulo e
exemplo de ser humano que é a minha orientadora, Drª Claudiana Nogueira de
Alencar.
À CAPES por viabilizar as condições materiais para realização desta
pesquisa.
Às professoras Drª. Ana Lúcia Silva Souza e Drª. Sandra Maria
Gadelha de Carvalho pelas grandiosas contribuições no exame de qualificação
e por terem aceitado o convite para a defesa.
Aos colegas do MAIE, com os quais convivi e troquei experiências
pessoais e profissionais, contribuindo para o meu crescimento intelectual.
Destaco o convívio e o companheirismo destes grandes amigos: Raquel Lima,
Ivânia Maria, Paulo Pio, Gabrielle Nascimento, George Amaral, Joyce Santana,
Leiliana Freire, Maria Edleuza e Ozirene Maia.
Aos companheiros do grupo de estudos Por uma Pragmática
Cultural: Cartografias Descoloniais e Gramáticas Culturais em Jogos de
Linguagem do Cotidiano (PRAGMA CULT), vinculado ao Programa de Pós-
Graduação em Linguística da UECE (PosLa).
Toda a minha família, pelo exemplo de vida, humildade, honestidade
e atenção que dedicaram para me proporcionar uma formação cidadã e
intelectual promissora. Agradeço a meus pais Elza e Oziel pelo apoio e
dedicação, às minhas irmãs Valcicleia, Vanderleia e, em especial, à Vanesca
que sempre me acompanhou nesta trajetória, ao meu primo-irmão Tarcílio
6
Nobre, aos meus dois tesouros Victória Régia e Eloá, sobrinhas queridas, que
a cada dia me dão novas alegrias e me ensinam novas lições e aos meus
cunhados, Pedro e Berg.
À Francisca Gleicia Ferreira Sobrinho, com quem eu divido os
momentos mais importantes da minha vida e todas as minhas conquistas.
A todos os educadores de Ocara, especialmente aos gestores e
amigos da Secretaria de Educação, que sempre acreditaram no meu trabalho e
estiveram sempre ao meu lado: Regivaldo Freires da Silva, e Maria Leivanir
Peixoto Farias.
À Fundação Victor Civita pelo Prêmio Educador Nota 10 em 2012,
quando dei passos significativos para entrar no mestrado.
À Rita Jover Faleiros e a Felipe Bandoni de Oliveira, dois anjos da
guarda.
Aos alunos das turmas de graduação em Pedagogia e da
Licenciatura em Educação do Campo, com os quais eu tive a oportunidade de
ensinar e aprender. Também a turma de Letras na qual realizei meu estágio do
mestrado na disciplina Projeto Especial.
Aos companheiros e amigos do Projovem Campo – Saberes da
Terra: Eva Amorim, Maria Cleonilde, Ana e Edvaldo. Também aos educandos e
educandas queridas, com os quais aprendi a valorizar mais a vida.
De forma carinhosa aos amigos que prestaram auxílio em alguns
momentos, e sempre me deram força para continuar a caminhada: Francisca
Leiliane Souza Lopes Anjos, Vanusa Benício Lopes, Francisco Chaves
Fernandes e Matilde Vieira dos Santos, José Edilson de Lima, Francisco
Silvestre da Costa e José Clementino de Oliveira.
A todos vocês meus sinceros agradecimentos!
7
“Quando a educação não é
libertadora, o sonho do oprimido é
ser o opressor.”
(Paulo Freire)
8
RESUMO
Esta dissertação é resultado de uma pesquisa que visou à analise de como
ocorrem os processos de construção de identidades dos moradores do campo
a partir das práticas linguísticas educacionais, considerando o letramento como
uma interface entre linguagem e (des)colonialidade no Projovem Campo –
Saberes da Terra na turma situada na comunidade Jurema dos Vieiras, Ocara-
CE. De modo geral, questionamos como se dão os processos de construção de
identidades dos moradores do campo a partir das práticas linguísticas
educacionais. Para esse fim, delimitamos para análise um corpus constituído
por trechos do Projeto Base do Projovem e uma ampliação etnográfica
composta por observação participante, notas de campo e entrevistas realizadas
com os sujeitos que participam do Programa. Desenvolvemos uma pesquisa
conduzida pelo programa de estudos linguísticos críticos elaborado e difundido
por Fairclough (2001, 2003) e Chouliaraki e Fairclough (1999). Buscamos aliar
uma compreensão sobre Educação do Campo aos Letramentos Críticos e à
Análise de Discurso Crítica (ADC). Proporcionamos, também, a possibilidade
da ampliação dos estudos na área da Educação por meio da articulação entre
Educação do Campo com as temáticas da Identidade e da Descolonialidade.
Considerando a atuação simultânea e dialética dos três tipos de significados –
acional, representacional e identificacional - os quais estão relacionados às
dimensões constituintes do discurso – texto, prática social e prática discursiva
(FAIRCLOUGH 2001,2003), o corpus foi analisado considerando uma categoria
para cada significado. Para o significado acional, analisamos a categoria
intertextualidade; para o significado representacional focamos na
representação de atores sociais; para o significado identificacional,
investigamos a categoria avaliação. Os dados gerados indicam que os diversos
sentidos construídos para os sujeitos do campo fazem com que a identidade do
camponês seja múltipla, não temos um perfil identitário homogênio para os
moradores e moradoras do campo. Identificamos na análise tanto a presença
de identidades legitimadoras, através das práticas alienadoras, quanto as
identidades de resistência, criadas pelos próprios camponeses diante das
contradições. Os processos de letramentos vivenciados nas práticas
educacionais desenvolvidas no Projovem se materializaram tanto como
9
representativas do modelo ideológico quanto do modelo autônomo, temos,
assim, um espaço de disputas, onde os letramentos têm contribuído com os
processos de opressão e libertação, colonialidade e descolonialidade. Portanto,
embora o Projovem Campo seja um programa construído com base em
diversas experiências dos povos do campo não chega a construir um processo
emancipatório ou libertador semelhante ao que Freire postula, mas se constitui
como uma iniciativa de mediação, na medida em que oferece as condições
necessárias para que os sujeitos reflitam sobre a realidade em que estão
inseridos.
Palavras-chave: Discurso. Identidades. (Des)Colonialidade. Letramento.
Educação do Campo.
10
ABSTRACT
This dissertation is the result of a research that aimed to analyze how occur the
identity construction processes of camp residents of the field educational
linguistic practices, considering literacy as an interface between language and
descolonialidade in Projovem field - Knowledge of Earth in the classroom
located in the community of Jurema dos Vieiras, Ocara-CE. In general, we
question how to give the identity construction processes of residents of the field
educational linguistic practices. To this purpose, we delimited to analyze a
corpus corporate of the excerpts Projovem Base Project and an ethnographic
expansion compost for of participant observation, notes of the field and
interviews with the subjects participating of the Program. We developed a
survey conducted by the program of the critical language studies program
prepared and disseminated by Fairclough (2001, 2003) and Chouliaraki and
Fairclough (1999). We seek to ally an understanding about Education field to
Critical Literacies and Critical Discourse Analysis (CDA). We provide also the
possibility of expansion of studies in Education through the joint between
Education of the field with the themes of Identity and Descolonialidade.
Considering the simultaneous acting and dialectic of the three types of
meanings - ational, representational and identificational - which are related to
the constituent dimensions of speech - text, social practice and discursive
practice (Fairclough 2001, 2003), the corpus was analyzed considering a
category for each meaning. For the ational meaning, analyzed the category
intertextuality; for the representational meaning we focus on the representation
of social actors; for the identificational meaning, we investigated the evaluation
category. The dados generated indicate that the various meanings constructed
for subjects of the field make that the identity of the peasant is diverse, we don’t
have an profile homogeneous identity for residents of the field. Identified in the
analysis as the presence of legitimizing identities, through the alienating
practices, as the resistance identities, created by the peasants themselves in
the face of the contradictions. The literacies processes experienced in
educational practices in Projovem materialized as much as representative of the
ideological model as the autonomous model, we have thus a dispute space,
where literacies have contributed with the processes of oppression and
11
liberation, colonialism and descolonialidade. Therefore, although the Projovem
Field is a program built on diverse experiences of residents of the field is not
enough to build an emancipatory or liberating process similar to what Freire
posits, but is constituted as an initiative of mediation, as it provides the
conditions necessary for the subjects to reflect on the reality in which they live.
Keywords: Discourse. Identities. Descolonialidade. Literacy. Education of the
Field.
12
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................. 14
2 COLONIALIDADE E DESCOLONIALIDADE: AS RELAÇÕES DE
OPRESSÃO E LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA....................
26
2.1 EUROCENTRISMO E AMÉRICA LATINA........................................ 26
2.2 COLONIALIDADE – UMA NOVA FACE DA OPRESSÃO................ 32
2.3 TEORIAS DESCOLONIAIS – O PENSAMENTO DE PAULO
FREIRE............................................................................................
37
2.4 MOVIMENTOS SOCIAIS E AS PRÁTICAS EDUCACIONAIS DOS
CAMPONESES...............................................................................
44
3 ESTUDOS DOS LETRAMENTOS 57
3.1 CONCEITOS E PRÁTICAS DE LETRAMENTOS NUMA
PERSPECTIVA CRÍTICA.................................................................
57
3.1.1 Letramento numa perspectiva funcionalista................................ 58
3.1.2 Novos estudos do letramento....................................................... 61
3.1.3 Letramento da população camponesa.......................................... 65
4 ESTUDOS DA LINGUAGEM NA PERSPECTIVA CRÍTICA............ 67
4.1 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CRÍTICOS DA LINGUAGEM......... 67
4.2 TEORIA SOCIAL DO DISCURSO..................................................... 72
4.3 ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA.................................................. 82
4.4 CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA ENQUANTO PROCESSO DE
IDENTIFICAÇÃO............................................................................
92
5 CAMINHO METODOLÓGICO.......................................................... 97
5.1 PESQUISA QUALITATIVA................................................................ 97
5.2 A ADC COMO MÉTODO DE ANÁLISE........................................... 99
5.3 PESQUISA ETNOGRÁFICO-DISCURSIVA...................................... 102
6 ANÁLISE DO PROJETO BASE DO PROJOVEM CAMPO –
SABERES DA TERRA, DO DIÁRIO ETNOGRÁFICO E DAS
ENTREVISTAS..............................................................................
105
6.1 TRAJETÓRIA DO OBJETO DE PESQUISA.................................... 105
6.2 SIGNIFICADO ACIONAL: INTERTEXTUALIDADE......................... 106
6.3 SIGNIFICADO REPRESENTACIONAL: REPRESENTAÇÃO DE
ATORES SOCIAIS............................................................................
111
13
6.4 SIGNIFICADO IDENTIFICACIONAL: AVALIAÇÃO........................ 117
7 CONCLUSÕES................................................................................. 123
REFERÊNCIAS 128
APÊNDICES 133
APÊNDICE A 134
APÊNDICE B 135
14
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta um estudo dos processos de construção de
identidades dos moradores do campo a partir das práticas linguísticas
educacionais: o letramento como uma interface entre linguagem e
(des)colonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra.
O Projovem Campo - Saberes da Terra foi implementado no Brasil
em 2005 como Saberes da Terra, a ação integrou-se, dois anos depois, ao
Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), cuja gestão é da
Secretaria Nacional de Juventude. Ao definir as identidades dos participantes,
o projeto base do Programa coloca como sendo necessário:
Criar mecanismos que possibilitem a reconstrução da identidade pessoal: suas histórias familiares, pessoais, suas formas de resistência ao longo de suas vidas, a construção do sujeito de direitos. Descobrir-se como ser histórico (BRASIL, 2009, p.53).
Discutir a educação do campo vinculada ao referido Programa
assume importância porque em seu projeto base afirma-se que ele foi
construído pautado “em iniciativas educacionais desenvolvidas pelos
movimentos sociais e organizações não-governamentais do campo (ANARA,
CONTAG, CUT, MAB, MST, RESAB, entre outros)1” (BRASIL, 2009, p.13).
O projeto base do Projovem Campo (BRASIL, 2009, p.06) postula
que ao integrar as experiências já existentes para consolidar o Programa em
nível nacional, foi resguardada a autonomia político-pedagógica das
experiências acumuladas nas diversas iniciativas de educação do campo.
Isso nos permite inferir que os representantes do poder público
entendem a ação como algo que faz parte dos resultados das lutas dos
movimentos sociais, os quais há décadas lutam pelo direito à educação,
buscando um ensino contextualizado e vinculado ao campo. A coordenadora
do Programa no Ceará apresenta um discurso pautado no que diz o documento
supracitado:
1 ANARA – Associação Nacional pela Reforma Agrária. CEFFA’s – Centros Familiares de
Formação em Alternância. CONTAG – Confederação dos Trabalhadores na Agricultura. FETRAF – Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar. CUT – Central Única dos Trabalhadores. MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens. MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. RESAB – Rede de Educação do Semi Árido Brasileiro.
15
Oziêlton: É (++) existe alguma relação entre o Projovem Campo – Saberes da Terra e os movimentos sociais ... mais especificamente com o MST? Lúcia: Bem /.../ sabemos que faz tempo que os moradores do campo tem lutado por uma educação contextualizada, o Projovem Campo é resultado das lutas dos movimentos e do MST SIM! Principalmente no sentido de que adota metodologias e propõe um currículo baseado em experiências desenvolvidas no interior do MST, né? Como, por exemplo, a pedagogia da alternância e o currículo integrado. Certo?
Assim, vale salientar que a partir de 1970 e, mais especificamente,
na década de 1990 os movimentos sociais ganham força no Brasil e em toda
América Latina reivindicando as necessidades da população, inclusive do
campo, fazendo surgir ações transformadoras, capazes de promover o
processo de descolonialidade nos países nomeados periféricos e vítimas do
padrão de poder eurocentrado.
O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) ganha
visibilidade e prestígio por reivindicar a posse da terra e outras necessidades
da população do campo. Uma das lutas frequentes tem sido por uma Educação
do Campo que atenda as reais necessidades dos moradores do campo.
Diante disso, estaria o Projovem Campo – Saberes da Terra entre as
conquistas dos camponeses ou seria, apenas, mais uma ação governamental
para cumprir metas? E nas atividades, desenvolvidas cotidianamente, que
envolvem leitura e escrita, denotam-se ideologias próprias do letramento
funcionalista, para o qual indivíduos letrados possuem uma maior capacidade
cognitiva, tendo maior possibilidade de ascensão social e econômica ou
prevalecem ideologias pertinentes aos novos estudos do letramento, os quais
ligam as práticas de letramento às práticas sociais? E as identidades, como
estão sendo construídas dentro dos processos educativos do Programa?
Nos documentos, o Projovem Campo - Saberes da Terra tem como
objetivo oferecer qualificação profissional e escolarização aos jovens
agricultores familiares de 18 a 29 anos que não concluíram o ensino
fundamental. O Programa visa ampliar o acesso e a qualidade da educação a
essa parcela da população historicamente excluída ou precariamente incluída
no processo educacional, para isso, propõe-se a respeitar as características,
necessidades e pluralidade de gênero, étnico-racial, cultural, geracional,
política, econômica, territorial e produtiva dos povos do campo.
16
Durante os dois anos iniciais (2005-2007), o Programa Saberes da
Terra2 atingiu a formação de jovens agricultores/as que vivem em comunidades
ribeirinhas, quilombolas, indígenas, assentamentos e de pequenos agricultores,
escolarizando adultos na etapa inicial do ensino fundamental.
Essa diversidade étnico-cultural e de gênero vivenciada pelo
Programa, aparece nos debates e produções realizadas durante os quatro
Seminários Nacionais de Formação de Formadores/as, dezenas de Seminários
Estaduais de Formação de Educadores e na produção de materiais
pedagógicos. Essas experiências pedagógicas realizadas viabilizaram a
escolarização em Nível Fundamental integrada à qualificação social e
profissional em Agricultura Familiar e Sustentabilidade.
Devido às iniciativas consideradas promissoras pelo poder público, o
Programa Saberes da Terra passou a integrar a Política Nacional de Inclusão
de Jovens – PROJOVEM, passando a se denominar Projovem Campo –
Saberes da Terra. Vale ressaltar que o PROJOVEM foi instituído pela Medida
Provisória nº 411/07 e representa um indutor de política pública educacional na
modalidade EJA, que vem sendo colocado nos discursos oficiais e dos próprios
movimentos como uma vitória da população do campo.
No escopo dos documentos, materiais do programa e no discurso
hegemônico em torno dele, destaca-se a questão da identidade ou
identificação dos moradores do campo em processo de escolarização. O
propósito maior é sinalizar, por meio das práticas linguísticas educacionais, que
os moradores do campo possuem suas especificidades e que há um programa
de elevação da escolaridade e qualificação profissional que vem respeitando
isso. Mas na prática como isso vem se configurando?
O Projeto Base do Projovem Campo - Saberes da Terra, edição
2009, pontua que a educação é uma forma de unir as pessoas e fortalecer
grupos, inclusive os que se encontram excluídos do sistema formal de ensino,
vistos por nós como os marginalizados pelo padrão de poder eurocêntrico.
2 Projeto piloto do Governo Federal que se coloca como parte da construção de uma política
educacional de Estado adequada aos povos do campo. O Programa Saberes da Terra foi iniciado em dezembro de 2005 em 12 Unidades da Federação (BA, PB, PE, MA, PI, RO, TO, PA, MG, MS, PR e SC) em colaboração com secretarias estaduais de educação, representações estaduais da União Nacional dos Dirigentes Municipais em Educação – UNDIME, Associação de Municípios Cantuquiriguaçu, entidades e movimentos sociais do campo integrantes dos comitês e fóruns estaduais de Educação do Campo.
17
A partir de um processo definido para identificação dos moradores do
campo, o Programa propõe-se a oferecer uma “educação contextualizada, promotora
de emancipação, de superação das desigualdades e de acesso aos bens econômicos
e sociais, que respeitasse os modos de viver, pensar e produzir dos diferentes povos
do campo”. (BRASIL, 2009, p. 11). Resta-nos saber como isso vem ocorrendo na
prática.
Em nosso trabalho, optamos por utilizar como ponto de partida o discurso
presente no Projeto Base Projovem Campo – Saberes da Terra 2009, mas procuramos
ir além da estrutura considerando os elementos desviantes, cuja identificação só pode
se dar na prática, considerando as vozes dos sujeitos do campo em processo de
escolarização. Vale salientar que, de acordo com os documentos, o Projovem se
configura da seguinte forma:
[...] uma opção político-pedagógica de oferecer ensino fundamental integrado à qualificação social e profissional para os jovens agricultores do Brasil, num esforço de reunir princípios político-metodológicos acumulados ao longo das últimas décadas, desde as primeiras ações da educação popular, até as recentes e importantes iniciativas de educação do campo protagonizados pelos diferentes movimentos sociais e alguns governos locais, sem a pretensão de abranger as suas totalidades (BRASIL, 2009, p.15).
Considerando que o Programa analisado traz em seu Projeto Base
determinada concepção de emancipação/libertação, além de discutirmos
questões inerentes à identidade, abordarmos as construções de sentido acerca
da emancipação/libertação, não só do ponto de vista do texto, mas também do
ponto de vista dos sujeitos do campo envolvidos no processo.
Por essa razão, conforme veremos na seção Metodologia, nosso
trabalho não se esgota na análise documental, mas conta com uma abordagem
etnográfica e discursiva junto aos moradores do campo em processo de
escolarização classificados como beneficiados pelas lutas dos movimentos
sociais.
A escolha desse Programa como objeto de estudo, se deu em
virtude da percepção de sua relevância no processo de construção de
identidades para os moradores do campo, processo que, como a constituição
de toda identidade, se dá discursivamente, pois as identidades se configuram
como construções reflexivas. Assim, não há conhecimento neutro, por isso nos
18
posicionamos a favor daqueles que dentro de uma totalidade assumem ou são
colocados numa posição social de oprimidos, subalternos, dominados.
O interesse pela temática aqui desenvolvida se justifica, em primeira
instância, pela inserção em um contexto em que o contato direto com os
movimentos sociais foi constante. Como educador de escola pública, tivemos
vivências com integrantes do MST que estudavam em escolas regulares, os
quais sempre se mostravam inquietos e questionadores diante do ensino
oferecido.
Em uma segunda vertente de justificativa, destacamos a
participação no Projovem Campo – Saberes da Terra como professor e
formador, além da ligação com os integrantes do movimento por meio das
pastorais eclesiásticas que atuam nas comunidades.
Cabe aqui uma confidência, o criador das várias vozes que vos
falam neste trabalho encontra-se em um movimento dialético com a realidade
em análise, transita pelo que Bhabha (1998) denomina entre-lugar, ou seja,
possibilidade estratégica que permite a ativação de elementos às vezes
incompatíveis, ou união de situações distintas, representando o movimento em
que vive o ser humano no mundo contemporâneo.
Como aluno do Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e
Ensino-MAIE, pude aprofundar meus estudos na área da Educação do Campo
e na Análise de Discurso Crítica. Como o MST e outros movimentos sociais
são colocados como parceiros para o processo de construção do Programa,
entendemos que ter esse contato prévio possibilitou uma melhor aproximação
com o objeto de pesquisa e, consequentemente, com os possíveis
colaboradores, uma vez que a pesquisa teve um viés etnográfico-discursivo.
Canclini (2005, p. 23) afirma que adotar o ponto de vista dos menos
favorecidos como forma de transformação pode servir como uma etapa de
descoberta, de gerar hipóteses que desafiem os saberes constituídos, para
tornar visíveis alguns campos do real descuidados pelo conhecimento
hegemônico.
Além da relevância do tema, julgamos que nossa pesquisa pode
colaborar no cenário acadêmico por aliar uma compreensão sobre Educação
do Campo aos Letramentos Críticos e à Análise de Discurso Crítica (ADC),
vertente que vem sendo cada vez mais difundida na América Latina por
19
considerar a possibilidade de duas dimensões críticas para examinar o papel
da linguagem: na reprodução das práticas sociais e das ideologias e na
transformação social. Além disso, proporcionamos a possibilidade da
ampliação dos estudos na área da Educação por meio da articulação entre
Educação do Campo com as temáticas da Identidade e da Descolonialidade.
Atualmente, muitos pesquisadores latino-americanos têm se
dedicado à difusão da ADC como teoria e método de investigação
(MAGALHÃES, 2012; RAMALHO, 2007; RESENDE, 2005, 2008). Muitos deles
vinculam a ADC aos estudos sobre a pobreza na América Latina, como os
trabalhos, ou à questão das pessoas em situação de opressão, como as
pesquisas de Resende e Ramalho (2006). É exatamente aí que nosso trabalho
se situa, propondo-se a investigar a perspectiva identitária dos moradores do
campo dentro de um contexto específico.
Esta pesquisa, ao envolver a ADC, apresenta um esforço
interpretativo, o qual sinaliza um caminho que não é único, nem melhor que
outros, mas apenas uma forma de perceber e entender mundos possíveis.
Dessa maneira, em um contexto educacional situado é possível analisar, ao
mesmo tempo, os discursos que contribuem para a manutenção das
desigualdades e os que colaboram para transformação social.
Neste estudo, almejamos propor uma forma de ver a realidade dos
povos do campo3 em processo de escolarização, com intuito de criar um canal
de escuta ao que eles têm a dizer sobre si e o mundo. Para isso, realizamos
um estudo sobre as práticas discursivas educacionais do Programa Projovem
Campo - Saberes da Terra, focalizando a construção de
significados/representações sobre a emancipação/libertação das populações
do campo e as construções identitárias dos/das jovens participantes nas
práticas de letramento promovidas pelo Programa.
Trata-se de uma pesquisa engajada e comprometida com a melhoria
da qualidade de vida dos moradores do campo; melhoria que entendemos ser
3 No Projeto Base 2009 do Projovem Campo - Saberes da Terra está sendo considerado como
povos do campo: agricultores/as familiares, assalariados, assentados ou em processo de assentamento, ribeirinhos, caiçaras, extrativistas, pescadores, indígenas, remanescentes de quilombos, entre outros povos que lutam pela afirmação dos seus direitos do campo no diversos biomas do território nacional.
20
possível também no simples gesto de acolher suas vozes e repercuti-las em
nosso meio, acadêmico e social.
Em consonância com o ponto de vista que defendemos, está o fato
de que na sociedade contemporânea, onde as desigualdades sociais se tornam
latentes, ganha espaço as faces reivindicatória e propositiva de vários grupos
minoritários ou subalternizados pelo sistema-mundo eurocêntrico.
Historicamente, têm ocorrido tentativas para que as ditas minorias sejam
esquecidas e silenciadas cada vez que agem contra a realidade posta.
A partir da década de 1990, quando entram em cena, os novos
movimentos sociais, os quais expressam novas maneiras de luta e de
resistência, as desigualdades enfrentadas pelos diversos grupos discriminados
na sociedade brasileira são evidenciadas e denunciadas.
Com isso, intensificam-se as discussões sobre a atual conjuntura do
capitalismo, a partir do qual apenas uma minoria detentora dos bens de
produção pode usufruir das oportunidades geradas pela globalização. Para os
demais, pobres e marginalizados, restam apenas os riscos.
Como, atualmente, os estudos da linguagem como forma de ação e
interação social vêm ganhando destaque, intentamos o desafio de analisar o
linguístico integrado ao social em um contexto de agencias dos sujeitos até
então pouco explorado na Linguística Aplicada. Sujeitos que não são
meramente reféns do sistema, mas que resistem a esse quadro de injustiças
sociais realçado pela conjuntura do capitalismo globalizante.
Neste trabalho de resistência, velhas identidades são subvertidas e
novas práticas identitárias são instauradas. Referimos-nos aos processos de
construção de identidades dos moradores do campo a partir das práticas
linguísticas educacionais: o letramento como uma interface entre linguagem e
descolonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra.
O Projovem Campo é um programa de educação do campo que se
diz pensado com os sujeitos do campo por meio dos movimentos sociais,
sistematizado e colocado em prática pelo poder público em parceria com eles.
O discurso institucionalizado sustenta que a construção do programa se deu
em:
21
[...] parceria com estados, municípios, organizações populares da sociedade civil e movimentos sociais de uma metodologia de Educação de Jovens e Adultos - EJA, integrada à qualificação social e profissional, realizando práticas pedagógicas de fortalecimento da Agricultura Familiar, da Economia Solidária e do Desenvolvimento Sustentável contextualizadas nas diferentes realidades e necessidades regionais e culturais (BRASIL, 2009, p.06).
Outro ponto a ser destacado é a vertente dos estudos do letramento
que nos apropriamos para servir de base para a presente pesquisa. Referimo-
nos aos Novos Estudos do Letramento, por meio da Teoria Social do
Letramento, a qual coaduna com os pressupostos teóricos da Teoria Social do
Discurso, mais notadamente por meio da Análise de Discurso Crítica (ADC),
base deste trabalho.
Com isso, esperamos contribuir para a construção de
conhecimentos que vão além dos fundamentalismos eurocêntricos. A ideia não
é negar o conhecimento produzido na modernidade pela Europa, mas mostrar
que os outros conhecimentos são tão válidos quanto aqueles hegemônicos.
Assim, devemos considerar as contribuições da modernidade, mas jamais
colocá-la como a única realidade possível.
Considerando que a atual conjuntura denota novos papeis e ações
para os movimentos sociais no Brasil e na América Latina, entendemos que
após anos de luta eles têm algumas de suas reivindicações atendidas em
forma de programas ou políticas públicas. Assim, é imprescindível, para o meio
acadêmico, constatar se na prática essas conquistas mantém as ideologias dos
movimentos ou tiveram seus pressupostos modificados pelo poder público,
visando à manutenção da hegemonia do sistema-mundo capitalista, patriarcal e
eurocêntrico, violento e conflitivo, que tende à sustentação das relações de
poder dominado/dominante com vistas à supremacia do capital.
Diante disso, a presente pesquisa se justifica por considerarmos que
diante da atual organização social, na qual as práticas neoliberais são
hegemônicas e buscam manter um padrão global, há formas de resistências
provenientes dos espaços sociais que o padrão eurocêntrico do poder
convencionou chamar de periférico. Então, quais seriam esses espaços?
22
Baseados em Grosfoguel (2010), propomos que esta pesquisa seja
produzida não sobre a perspectiva subalterna, mas com essa perspectiva e a
partir dela.
Para tanto, utilizaremos pensadores que pensam a partir do sul, ou
seja, discutem ideias e práticas contra-hegemônicas, Resende e Ramalho
(2006), Quijano (2002; 2005), Dussel (2005), Walsh (2007), Freire (1997) e
outros, integrados aos teóricos e pensamentos ocidentais, pois também nos
apropriamos das ideias de Fairclough (2001; 2003) e Hobsbawn (1995).
Aqui, o saber produzido, aproveitável e necessário, o cânone, é
muito maior que o ocidental, a verdade e a universalidade cedem lugar a
ecologia de saberes, na qual, segundo Santos (2010, p.57), “[...] a busca de
credibilidade para os conhecimentos não-científicos não implica o descrédito do
conhecimento científico. Implica, simplesmente, a sua utilização contra-
hegemônica”. Isso implica, necessariamente, no diálogo entre culturas, no
aproveitamento dos diversos saberes, ampliando os conhecimentos aceitos e
sistematizados pela humanidade.
Com a realização desta pesquisa, ao discutir os processos de
construção das identidades dos camponeses, esperamos contribuir com o
fortalecimento de uma educação do campo que penosamente vem sendo
conquistada e que há muito tempo é esperada pelos moradores e moradoras
do campo.
Assim, ao intentar realizar uma apreciação crítica do discurso
educacional, tivemos como objetivo geral analisar como se dão os processos
de construção de identidades dos moradores do campo a partir das práticas
linguísticas educacionais, considerando o letramento como uma interface entre
linguagem e (des)colonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra.
A partir de um corpus constituído por documentos oficiais produzidos
para o Projovem Campo – Saberes da Terra e de uma ampliação etnográfica,
com base no referencial teórico-metodológico da ADC, buscamos investigar: os
recursos discursivos que contribuem para um processo mediado de construção
identitária nos depoimentos e vivências em momentos pedagógicos dos
moradores do campo; as práticas de letramento que possam contribuir para
essas formulações identitárias, tanto na fala dos sujeitos do campo, quanto no
discurso do programa; como a presença de múltiplos letramentos no cotidiano
23
do Projovem Campo – Saberes da Terra se configura como processos a
serviço da dominação e/ou da libertação, da colonialidade e/ou da
descolonialidade, percebendo, assim, a construção das identidades a partir das
práticas de letramento.
Assim, posicionamos nossa pesquisa como uma tentativa de
compreensão de um fenômeno bastante profundo, a questão da dialética entre
a opressão e a libertação dos moradores do campo na contemporaneidade e
possíveis soluções para essa problemática. Para isso, consideramos que o
discurso contribui para a construção de identidades e sua análise pode mostrar
as causas ocultas, possibilitando intervir socialmente para produzir mudanças.
Salientamos, porém, que nossa análise encerra uma visão parcial sobre o
assunto e não tem a pretensão de esgotá-lo, nem de gerar proposições
generalizadoras.
Diante disso, nossas questões de pesquisa podem ser assim
definidas: Como se dão os processos de construção de identidades dos
moradores do campo a partir das práticas linguísticas educacionais? De que
forma os depoimentos e vivências em momentos pedagógicos dos moradores
do campo, enquanto discursos, mediados pelas ações cotidianas do Projovem
Campo – Saberes da Terra, revela um novo posicionamento identitário? Que
práticas de letramentos presentes tanto na fala dos moradores do campo como
nos documentos do programa contribuem para a formulação de identidades?
As práticas de letramentos, se configuram como processos a serviço da
dominação e/ou da libertação, da colonialidade e/ou da descolonialidade?
Sendo assim, compreender como vem se estruturando a construção
de uma nova identidade discursiva para os moradores do campo, no âmbito
das práticas educacionais do Projovem Campo - Saberes da Terra, implica que
investiguemos os contextos econômico e social subjacentes ao modelo de
sociabilidade hegemônico na contemporaneidade; os modos de identificação e
fixação de identidades; a forma como a linguagem opera dialogicamente e
dialeticamente através dos discursos, reproduzindo práticas sociais e, ao
mesmo tempo, agindo ativamente na construção da sociedade, promovendo
transformação social.
Considerando que as bases constituintes desta pesquisa estão
compostas pela discussão dos elementos contextuais que colaboram para
24
algumas situações de desigualdade e estigmatização vivenciada pelos
moradores do campo, sentimos a necessidade de articular nossas reflexões em
cinco capítulos.
No primeiro, tratamos, de forma sintética, das ações hegemônicas e
contra-hegemônicas presentes no mundo moderno que tem gerado os
processos de libertação/opressão, colonialidade/descolonialidade. Para isso,
construímos três seções: Colonialidade: uma nova face da opressão; Teoria
descoloniais – o pensamento de Paulo Freire; Movimentos sociais e as práticas
educacionais dos camponeses. Nesse último ponto, realizamos uma análise da
conjuntura e do problema social que norteou este estudo.
No segundo, discutimos sobre o conceito e as práticas de
letramentos numa perspectiva crítica, aqui foram construídas três seções:
Letramento numa perspectiva funcionalista; Novos Estudos do Letramento;
Letramentos da população camponesa.
No terceiro, discorremos sobre a Análise de Discurso Crítica
enquanto perspectiva teórica que alinhada à etnografia discursiva é capaz de
oportunizar que repensemos os velhos caminhos em face de uma nova
realidade. Para isso, torna-se necessário os seguintes tópicos: Teoria Social do
Discurso com a Análise de Discurso Crítica proposta por Norman Fairclough
(2001; 2003); Construção identitária enquanto processo de identificação na
visão de Castells (1999).
Vale ressaltar que com essa fundamentação teórica, nosso objetivo
é traçar um breve panorama, alinhando determinadas causas a efeitos, como
forma de posicionar nossa visão em relação ao tema - Os processos de
construção de identidades dos moradores do campo a partir das práticas
linguísticas educacionais: o letramento como uma interface entre linguagem e
(des)colonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra.
No quarto, é o momento dedicado para a apresentação do caminho
metodológico do trabalho. Isso se dá, relacionando a pesquisa qualitativa, a
análise de discurso crítica, a pesquisa etnográfico-discursiva e apresentando
as categorias específicas de análise. Dessa forma, procuramos explicitar os
procedimentos adotados como percurso para geração e análise de dados
representativos da realidade estudada.
25
As análises estão disponíveis no quinto capítulo. Inicialmente,
delineamos o percurso realizado para construção do objeto de pesquisa;
passamos para uma breve apresentação das materialidades linguísticas que
serviram de base para análise (Projeto Base do Projovem Campo – Saberes da
Terra, diário etnográfico, entrevistas com educandos e educandas, educadores
e educadoras e coordenadora do Programa); por fim, nos detemos à análise
dos três significados: acional, representacional e identificacional. Para cada
significado, atribuímos, respectivamente, uma categoria: intertextualidade,
representação de atores sociais e avaliação.
Nossas considerações finais e reflexões a partir das análises
realizadas tem a intenção de contribuir com os processos de transformação
social, uma vez que as mudanças podem ter início nas práticas discursivas.
Buscamos abrir espaços para processos emancipatórios via conscientização,
pois tornar-se consciente é o primeiro passo para os sujeitos atingirem a
emancipação humana, prova disso, é que de acordo com Freire (1997)“Quando
a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor”.
Esperamos, assim, contribuir para realização de novas pesquisas que venham
enfocar a construção das identidades dos camponeses em práticas discursivas
educacionais.
26
2 COLONIALIDADE E DESCOLONIALIDADE: O ESTABELECIMENTO DAS
RELAÇOES DE OPRESSÃO E LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
No primeiro capítulo, tratamos dos processos de opressão e
libertação na América Latina, da forma como são compreendidos na sociedade
contemporânea, ou seja, por meio da colonialidade e descolonialidade.
Começamos abordando aspectos inerentes à modernidade como:
neoliberalismo, novo capitalismo, eurocentrismo e América Latina. Na segunda
seção, apresentamos os processos de colonialidade como a materialização de
uma nova face da opressão. Na terceira seção, tratamos do pensamento de
Paulo Freire como elemento constituinte das bases para uma teoria
descolonial. Na quarta seção, abordamos os movimentos sociais e as práticas
educacionais dos camponeses. Discutimos o Projovem Campo – Saberes da
Terra como uma política pública que tem se firmado em um discurso de que
sua construção se a partir das lutas e reivindicações dos movimentos sociais
do campo.
2.1 EUROCENTRISMO E AMÉRICA LATINA
A realidade do Brasil, enquanto país situado na região hoje
denominada América Latina, é resultado dos efeitos de um processo histórico
e, atualmente, estão inclusas nesse processo as políticas neoliberais, as quais
tendem a ser mais perversas nos países periféricos do que nos países centrais
em relação ao capitalismo.
O aumento das desigualdades, fruto da concentração de renda tem
sido considerado um dos maiores prejuízos causados pelas iniciativas
neoliberais.
Nesse contexto, as políticas públicas tem continuado, sem sucesso,
o intento de sanar as desigualdades criadas pelo próprio padrão de
organização social neoliberal. Vale destacar que é nas contradições geradas
no interior do neoliberalismo que surgem as resistências e consequentemente
as possibilidades de mudanças.
A nova forma hegemônica, sob a qual a sociedade vem se
organizando, prioriza o bem estar do capital em detrimento da qualidade de
27
vida. Assim, Com a adoção do neoliberalismo como forma de ver e organizar o
mundo:
[...] o que é tentado é a manutenção do fundo público como pressuposto apenas para o capital: não se trata, como o discurso da direita pretende difundir, de reduzir o Estado em todas as arenas, mas apenas naquelas onde a institucionalização da alteridade se opõe a uma progressão do tipo ‘mal infinito’ do capital (OLIVEIRA, 1998, p.44)
Com isso, buscamos compreender a constituição do atual modo de
organização social e para isso, devemos considerar que a modernidade tem
suas bases gestadas no decorrer da Idade Média e sua consolidação ocorre
nos séculos XVII e XVIII, quando a burguesia constrói uma concepção
moderna do mundo, passando a questionar veemente o mundo medieval.
Com a ascensão dos burgueses ao poder via Revolução Francesa,
tem-se a gênese da concepção liberal que permeia a sociedade até hoje por
meio de inúmeras reestruturações e adequações com vistas à manutenção do
sistema-mundo de base capitalista, que tem como princípio organizador e
estruturador das hierarquias a concepção de raça e influencia nas diversas
esferas da sociedade – econômica, cultural, política e social. A ideia chave do
liberalismo é que:
[...] a sociedade nada mais é que a essência dos indivíduos. Esta essência, por sua vez, é compreendida como a natureza que distingue o indivíduo humano dos animais naturais. A determinação do que é a sociedade e, portanto, do que é a história, passa pela determinação do que é a natureza do indivíduo. Como se trata de uma concepção desenvolvida na luta da burguesia contra o mundo feudal, a concepção de natureza humana que assim vem a ser traz como marca indelével o caráter de classe de quem a criou: o indivíduo humano é, antes de qualquer coisa e acima de tudo, o proprietário privado burguês. Ser humano é ser proprietário [...] (LESSA, 2005, p.89).
Do século XXVIII até a contemporaneidade, o capitalismo enfrenta
diversas crises e passa por inúmeros processos de reestruturação visando
manter sua hegemonia, chegando a vertente neoliberal globalizada. Assim,
entendemos que o neoliberalismo é uma redefinição do liberalismo clássico,
influenciado pelas teorias econômicas neoclássicas e é entendido como um
produto do liberalismo econômico clássico.
28
O neoliberalismo ou novo capitalismo pode ser uma corrente de
pensamento e uma ideologia, ou seja, uma forma de ver e julgar o mundo. Esta
teoria, que foi baseada no liberalismo, nasceu nos Estados Unidos da América
e teve como alguns dos seus principais defensores Friedrich A. Hayeck e
Milton Friedman.
O novo capitalismo, termo adotado por Fairclough (2003), dá conta
das sucessivas reestruturações pelas quais o capitalismo tem passado nos
últimos anos como estratégia para se manter como modelo econômico e de
organização social hegemônico.
A partir do século XIX, com a consolidação da concepção moderna
de mundo, a Europa passa a ser colocada como elemento fundamental na
constituição da sociedade. Mais especificamente, o eurocentrismo, enquanto
visão de mundo que coloca a Europa como elemento fundamental e
protagonista na constituição da sociedade moderna, configurou-se a partir do
conhecimento produzido na Europa e imposto ao restante do mundo como uma
postura cultural universal.
Hoje, esse padrão de poder que se propõe global, se constitui como
um dos obstáculos à promoção da igualdade, pois a doutrina eurocêntrica
continua se difundindo por diversos meios, literatura, cinema, ciência, música,
política, educação, tornando-se inclusive um obstáculo para uma formação que
verdadeiramente possibilite a emancipação humana, uma vez que está a
serviço da manutenção do capital e não do bem-estar dos diversos grupos que
constituem a humanidade.
Entendendo o eurocentrismo enquanto um sistema ideológico que
deu sustentação a passada colonização e às atuais formas de dominação
cultural, destacamos a América Latina como um lócus de dominação endógena
e exógena que desde a sua criação vem sendo colocada como a base
periférica do mundo europeu e norte-americano.
Ao nos remetermos ao surgimento da América Latina, fazemos uma
reflexão acerca da criação e imposição do referido nome. Para isso, importa
compreendermos que os povos originários da região e os africanos,
transplantados para cá, foram levados em consideração apenas na perspectiva
de uma dominação que não os compreende como agentes do processo de
formação de identidade do continente.
29
Em consonância com Farret e Pinto (2011), destacamos que o termo
América Latina não é gerado no discurso dos grupos excluídos, mas no da elite
político-econômica criolla da América Espanhola.
Esse processo está coadunado com a perspectiva de mundo
construída pela Europa, na qual a América Latina foi se estabelecendo no
mundo ocidental moderno como periférica, inferiorizada e explorada.
Sabendo que a nomeação dos habitantes de parte do continente
americano está associada a processos de dominação mantidos pelas elites
internas e externas, isso configura que a ideia de América Latina foi forjada por
uma minoria no início do século XIX e permanece forte até os nossos dias.
Diante disso, a ideia de América Latina, enquanto construção ideológica,
precisa ser ampliada e alterada, possibilitando a abertura de espaço nessa
identidade que se propõe coletiva para os grupos excluídos historicamente.
Vale salientar que antes de ser chamada de “América”, a extensa
faixa territorial conquistada pelos europeus foi denominada, primeiramente, de
“Índias” e, posteriormente, de “Novo Mundo”. Para Farret e Pinto (2011, p.33):
O nome “América” somente nasce em 1507, quando o geógrafo alemão Martin Waldseemüller publica Introdução à Cosmografia, contendo um mapa no qual o autor refere-se ao Novo Mundo como “América”, em uma clara homenagem a Américo Vespúcio.
A categoria América não serviu de imediato aos interesses da elite
colonial, só durante os processos de luta pela independência é que essa
identidade é assumida pelos colonos com intuito de se diferenciarem do inimigo
europeu, por isso:
[...] tanto a criação, quanto a divulgação desse conceito representavam a necessidade de se implantar uma identidade continental nas ex-colônias, pois assim se estabeleceria a criação de uma grande força responsável pela defesa contra possíveis ataques das antigas metrópoles europeias (FARRET E PINTO 2011, p.33).
América Latina, propriamente dita, é uma construção identitária da
primeira década do século XIX que também se deu em decorrência dos grupos
dominantes das repúblicas da região, os quais buscavam se firmar como
nações independentes frente às antigas metrópoles europeias e à potência
regional recém-formada, Estados Unidos.
30
Ainda hoje, a América Latina é vitima do padrão de sociabilidade
moderno, que continua se reestruturando e mantendo posição hegemônica,
apoiando-se na concepção eurocêntrica, ou seja, no ponto de vista de que a
Europa e os Estados Unidos ainda se constituem como centro hegemônico do
mundo e persistem se colocando como parâmetro único ou o melhor para o
modo de vida contemporânea.
Assim, precisamos construir o entendimento de que o ápice da
modernidade encontra-se no que se convencionou chamar de globalização,
pois pela primeira vez na história da humanidade um padrão de sociabilidade
concentra o controle do poder mundial nas mãos de um grupo restrito, o qual
tem como base para sua constituição a acumulação de capital.
Dentro de um escopo amplo de modificações, está a adoção do
neoliberalismo que, de acordo com Resende (2005, p. 53), pode ser entendido
como um:
[...] projeto político facilitador dessa reestruturação, em consonância com as demandas de um capitalismo global cujas consequências mais evidentes são o aumento da distância entre ricos e pobres (seja no interior de um país ou entre países), da insegurança econômica para os trabalhadores e da exploração no trabalho.
A partir da hegemonia da ideologia neoliberal, o Estado de Bem-
Estar social foi considerado oneroso por garantir proteção ampla aos cidadãos.
Dessa forma, foi liquidado ou de alguma forma reformado, para evitar as crises
econômicas.
O efeito foi grave nos países de Primeiro Mundo, mas ainda mais
desastroso nos países periféricos que nunca chegaram a ter um Estado de
Bem-Estar Social, assim como o Brasil, considerado um “monumento à
negligência social” por Hobsbawn (1995, p. 555).
Resende (2005, p. 58) aponta que o discurso neoliberal classifica as
reestruturações recentes do capitalismo como uma evolução natural, isenta da
ação humana e inescapável. Essa visão fatalista é ressaltada por Bordieu
(1998, p. 42), que afirma que esse discurso dominante, repetido à exaustão,
gera a ideia de fatalismo, que leva à submissão. É como se não houvesse
outra possibilidade em termos econômicos e sociais e, crendo na inexistência
31
de outra possibilidade, as pessoas se submetem à realidade tal qual se
apresenta e se constrói discursivamente.
Esse discurso perpetua a ideia de que a sociedade deve se basear
no consumo e que é natural que os “menos aptos” não consigam se sair tão
bem no jogo e fiquem de fora da sociedade de consumo. Resende (2005, p.
60) aponta que “o resultado dessa representação parcial é uma naturalização
da injustiça social em escala global, que passa a ser vista como etapa
transitória e necessária rumo ao desenvolvimento”.
Na contemporaneidade, o neoliberalismo se torna hegemônico em
decorrência do processo de globalização, pois a manutenção do sistema
capitalista, diante da sua crise estrutural, se dá em decorrência, principalmente,
da globalização da economia.
Em um processo dialético, a globalização se dá a partir das reformas
neoliberais que passam a ser em escala mundial, essas reformas só ocorrem
por meio do processo de mundialização, internacionalização do capital. A
supremacia do capital neoliberal globalizado faz com que o Estado passe a ser
um instrumento a serviço da manutenção do capital, pois passa a regular o
mercado com o intuito de tirá-lo das crises e não de conter seus excessos.
Nessa conjuntura, fica claro que os bens e oportunidades produzidos
pela sociedade moderna são para uma minoria, para a maioria restam apenas
os riscos, implicando diretamente no processo de construção de identidades na
sociedade contemporânea, uma vez que os grupos deixados à margem não
tem disponível para escolha uma diversidade de possibilidades para compor
seu estilo de vida.
Como a escolha se torna um privilégio apenas das classes
dominantes, aqueles que vivenciam os processos de exclusão e
subalternização produzem formas de resistência, gerando ações contra-
hegemônicas. Isso acontece, inclusive, no atual contexto dos moradores do
campo em processo de escolarização.
Diante disso, as populações do campo se configuram como um dos
grupos mais prejudicados, pois as ações concretas preconizadas pelo
capitalismo na sua fase atual com vistas a proporcionar o bem-estar do povo,
realizando a satisfação de necessidades básicas e minimizando as
desigualdades de acesso aos bens e serviços produzidos pela humanidade
32
não tem chegado para todos, e a população das áreas rurais, historicamente,
tem sido o grupo que vem tendo acesso mais tardiamente e de maneira
precarizada aos benefícios do capitalismo. Prova disso, é que no campo
encontramos os maiores índices de desemprego e analfabetismo.
Assim, podemos refletir sobre como os chamados moradores do
campo, que necessitam diariamente se preocupar, muitas vezes, com a própria
sobrevivência, podem ocupar-se da escolha auto-reflexiva de estilos de vida?
Apoiados em Resende e Ramalho (2006, p.33), questionamos: “Que estilos de
vida têm disponíveis para escolhas pessoas que vivem à margem dos ‘bens’
produzidos pela modernidade?”
2.2 COLONIALIDADE - UMA NOVA FACE DA OPRESSÃO
Considerando que a modernidade que hoje vivenciamos se apoia
numa concepção eurocêntrica de poder, a qual coloca a Europa como o centro
da história mundial, entendemos que seu ápice encontra-se no que se
convencionou chamar de globalização, pois pela primeira vez na história da
humanidade um padrão de poder se torna mundialmente hegemônico,
concentrando o controle da sociedade nas mãos de um grupo restrito que
detém o capital. Diante disso é preciso compreender que:
[…] a “Modernidade” da Europa será a operação das possibilidades que se abrem por sua “centralidade” na História Mundial, e a constituição de todas as outras culturas como sua “periferia”, poder-se-á compreender que, ainda que toda cultura seja etnocêntrica, o etnocentrismo europeu moderno é o único que pode pretender identificar-se com a “universalidade-mundialidade”. O “eurocentrismo” da Modernidade é exatamente a confusão entre a universalidade abstrata com a mundialidade concreta hegemonizada pela Europa como “centro” (DUSSEL, 2005, p.60).
Considerando os pressupostos defendidos pelo autor supracitado,
concebemos que o eurocentrismo se configura como um mito criado a partir
dos interesses europeus, que passaram a considerar a história da
humanidade como um percurso que parte de um estado de natureza e tem
como ápice a Europa, passando a diferenciar Europa de não-Europa a partir
da categoria raça e não das questões de poder.
33
Assim, a raça passou a ser um construto mental em torno do qual
se constituiu um sistema de dominação mundial que transcende a
colonização, colocando até hoje o europeu como o centro do poder mundial.
Diante disso, o eurocentrismo, enquanto perspectiva cognitiva não se vincula
apenas aos europeus, mas aqueles povos que foram educados sob a
hegemonia europeia.
O processo de colonização realizado pela Europa foi marcado por
processos de dominação que se firmavam prioritariamente pela
desconstrução das identidades já existentes nos territórios que os
colonizadores chamaram de África e América.
Terminado o período colonial ou colonialismo, teve fim a
colonização oficial, mas mantêm-se até a contemporaneidade práticas de
dominação, opressão e exploração que Quijano (2005) denomina como um
processo de colonialidade4, a qual deve ser entendida como as relações
coloniais de exploração que se mantém no mundo contemporâneo ou
modernidade tardia em que a dominação se dá pelas elites locais e mundiais,
fazendo com que a exploração, muitas vezes implícita, ocorra interna e
externa ao povo dominado, de maneira que as estruturas subjetivas, os
imaginários e a colonização epistemológica do colonizador continuam
presentes.
Enquanto a discussão acerca da colonização se insere nos
modelos capitalistas que postulam o direito de povos colonizarem outros em
razão da supremacia civilizatória, cultural, bélica, tecnológica, econômica,
étnica e social, a colonialidade discute a imposição de uma única lógica
hegemônica sobre todas as outras culturas, epistemologias, possibilidades e
modelos civilizatórios.
Em decorrência da globalização, os processos de dominação vêm
ganhando novos espaços e atingindo os diversos grupos, inclusive os
constitutivos das realidades camponesas como os moradores do campo,
4 Em consonância com o pensamento de Quijano (2005), a colonialidade constitui-se em
prática da hierarquização do poder e da economia, do conhecimento, dos próprios indivíduos numa perspectiva global e nacional. Hierarquização no sentido de que esses elementos são utilizados para demarcar as relações coloniais no mundo contemporâneo, as quais são constituídas por processos de dominação endógena e exógena a partir da hierarquia presente em cada sociedade.
34
povos indígenas, os quilombolas, os pescadores, os ribeirinhos, os
extrativistas, etc.
As formas de dominação estão tão arraigadas na América Latina
que é possível atribuirmos diversos aspectos da colonialidade, pois ela se
manifesta nas diversas práticas sociais, merecendo atenção àquelas que
mais contribuem para a manutenção da exploração, a saber: colonialidade do
poder, colonialidade do saber e colonialidade do ser.
A colonialidade do poder pode ser compreendida como o processo
de soberania baseada na imposição da ideia de raça como instrumento de
dominação. Trata-se do estabelecimento de um padrão de poder que se
propõe universal e se constitui juntamente com o capitalismo moderno/colonial
eurocentrado, que teve início com a conquista da América em 1492 (Quijano,
2005).
Já a colonialidade do saber, refere-se às heranças eurocêntricas e
coloniais presentes no campo intelectual, onde, por meio de uma geopolítica do
conhecimento, são valorizados, a priori, certos lócus de enunciação, ou seja, o
lugar de onde se fala, em especial a Europa, em detrimento de outros. Há, na
verdade, um processo de naturalização da ideia de que existem lugares de
fala/produção de conhecimentos superiores e universais. Assim, o processo de
dominação se dá via legado epistemológico do eurocentrismo, para o qual a
racionalidade é única e o único saber válido é aquele produzido na Europa e
nos Estados Unidos (Mignolo, 2003).
Como a ideia de classificação da população em raças se propaga,
tanto os colonizadores como os subalternizados acreditam nesta ideia. É nesse
movimento que identifica-se a Colonialidade do Ser, que de acordo com Walsh
(2008, p 138), “es la que se ejerce por medio de la inferiorización,
subalternizacion y la deshumanización [...],” construindo o discurso e a práticas
da não-existência, da existência, da resistência e da reexistência. É a negação
sistemática da pessoa outra, nega-se o estatuto de humanidade aos povos
subalternizados. É, também, o reconhecimento quando se tem interesses ou
ocorre pressão por meio de ações contra-hegemônicas.
Essa multiplicidade de formas de dominação, exploração e
opressão se configura em decorrência da hegemonia do sistema-mundo
patriarcal/capitalista/colonial/moderno europeu.
35
Assim, “a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não
derivada” (MIGNOLO, 2005, p.75), de maneira que para entendê-la, devemos
levar em conta os nexos com a herança colonial e as diferenças étnicas
produzidas na e pela modernidade.
A modernidade e a colonialidade complementam-se e possibilitam
a constituição, expansão e manutenção da hegemonia do eurocentrismo. A
sustentação da colonialidade se dá por meio das relações de poder, é o
poder, pois, que permite a construção de espaços e seres dominados. É
preciso conceber que:
[...] colonialidade do poder estabelecida sobre a ideia de raça deve ser admitida como um fator básico na questão nacional e do Estado-nação. O problema é, contudo, que na América Latina a perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos grupos dominantes como própria e levou-os a impor o modelo europeu de formação do Estado-nação para estruturas de poder organizadas em torno de relações coloniais (QUIJANO, 2005, p. 247).
Considerando o eurocentrismo, enquanto padrão de poder mundial,
de modo que a Europa, pretensamente, tem sido a produtora original e
singular da modernidade, e que a colonialidade possibilita a construção e
manutenção de identidades dominadas e dominantes. Ressalta-se que por
ser a América Latina um território formado por povos diversos, construiu-se
um espaço contra-hegemônico e, portanto, com fortes movimentos de
descolonialidade. Nessa conjuntura, fica claro que:
[...] a racionalidade eurocêntrica pode ser levada a admitir a crítica e o debate de seus elementos de distorção, e mais recentemente de sua colonialidade. Nessa medida e nessas condições foi um dos fundamentos centrais da legitimação mundial das ideias de igualdade social, de liberdade individual, e de solidariedade social que legitimou as lutas dos explorados, dos dominados, dos discriminados, não só contra seus opressores, não só para mudar de lugar no poder, mas também contra a opressão, contra o poder, contra todo poder (QUIJANO, 2002, p.17).
De acordo com o autor, fica evidente que as lutas dos explorados
se legitimam pela busca de igualdade social, liberdade individual e
solidariedade social. É isso que valida as lutas dos oprimidos contra seus
opressores, haja vista que está em fluxo, na América Latina, um movimento
de descolonialidade, construindo novos papeis para os diversos sujeitos que
36
historicamente foram assumindo os lugares de dominados impostos pelos
senhores do capital.
Essa estrutura contraditória se constitui como um espaço gerador
das resistências, é o movimento das relações hegemônicas em concorrência
com as contra-hegemônicas que gera as possibilidades de burlar o sistema e
constrói os espaços de luta, possibilitando ações descoloniais.
Na colonialidade de poder, de acordo com Grosfoguel (2010), a
ideia de raça e racismo se torna o princípio organizador que estrutura todas
as múltiplas hierarquias do sistema-mundo, afetando diversas áreas da
existência social: sexualidade, autoridade, subjetividade, trabalho,
localização.
Podemos dizer que a colonialidade do poder, e também a
descolonialidade, vêm se configurando por meio das ações em rede. A
primeira tem como base as hierarquias globais produtoras das formas de
dominação e exploração sexual, política, epistêmica, econômica, espiritual,
educacional, linguística e racial, de maneira que toda a estrutura social passa
a ser configurada considerando as diferenças entre o europeu e o não-
europeu. A segunda tem como aporte os movimentos sociais e suas lutas
contra os diversos tipos de desigualdade e opressão.
Além da colonialidade do poder, as formas de dominação se
materializam também por meio da colonialidade do saber, pois,
historicamente, a opressão se deu, inclusive, através da premissa de que
existe apenas uma única tradição epistêmica a partir da qual pode alcançar-
se a verdade e a universalidade, dando preferência aos pensadores
ocidentais, considerando como conhecimento válido apenas as
epistemologias eurocêntricas, o conhecimento não-ocidental é dispensável
por ser particularístico, tornando-se incapaz de alcançar a universalidade e a
neutralidade. Assim:
Ao esconder o lugar do sujeito da enunciação, a dominação e a expansão coloniais europeias/euro-americanas conseguiram construir por todo o globo uma hierarquia de conhecimento superior e inferior e, consequentemente, de povos superiores e inferiores (GROSFOGUEL, 2010, p.460-461).
37
Associado a colonialidade do saber, temos a colonialidade do ser,
ambas ocorrem integradas a colonialidade do poder, enquanto matriz de poder
do sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno/europeu hegemônico
na sociedade contemporânea.
A colonialidade do ser se concretiza por meio das experiências de
vida dos dominados, mais do que introjetado na mente, aquele que oprime está
nas práticas cotidianas dos oprimidos. Assim, a colonialidade do ser se
configura como um processo de negação, desconstrução e ocultação das
identidades periféricas ao sistema-mundo eurocentrado.
2.3 TEORIA DESCOLONIAIS – O PENSAMENTO DE PAULO FREIRE
De acordo com Walsh (2007), entendemos que a colonialidade do
ser é pensada como a negação de um estatuto humano para determinados
grupos criados durante a modernidade, tal negação implica problemas reais em
torno da liberdade do ser e da história do indivíduo em processo de
subalternização por uma violência epistêmica.
Hoje, os grupos vitimados transcendem a categoria racial, porém a
dominação ainda é fortemente influenciada por suas bases, de maneira que
esta ideia de que aqueles tidos como não-europeus ou fora do padrão
eurocêntrico são inferiores vem produzindo formas de desumanização para
alguns sujeitos que constituem estes grupos: negros, ribeirinhos, caiçaras,
extrativistas, pescadores, indígenas, remanescentes de quilombos, mulheres,
homossexuais, moradores do campo, entre outros.
Em torno desses povos e com eles, construiu-se a concepção de
que não são, fazendo com que fossem instituídas as condições objetivas e
subjetivas de negar ao ser humano sua própria humanidade.
O não ser apresentado por Walsh (2007) apresenta-se não como
uma construção, mas como um fatalismo naturalizado sob a forma de
colonialidade do ser.
Essa perspectiva defendida por Walsh (2007) de que o não ser se
trata de um fatalismo naturalizado, essencializado é contestada por Paulo
Freire, em seus estudos sobre a opressão. Freire (1997) afirma que a
desumanização é uma distorção possível na história, mas não uma vocação
38
histórica e, por isso, a luta pela humanização faz sentido. A desumanização é,
segundo ele, resultado de uma ordem injusta, que precisa ser combatida.
Nesse sentido, concordamos com Freire (1997) para quem a
essencialização do não ser é inviável porque o mesmo é fruto das contradições
humanas, é o resultado do processo histórico e não algo natural, inerente ao
homem. É preciso entendermos que:
Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ordem injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos (FREIRE, 1997, p. 16).
Sobre a superação da contradição entre opressores e oprimidos,
Freire ensina que a luta apenas tem sentido se os oprimidos não se convertem
em opressores dos opressores durante o processo de transformação social,
mas, ao contrário, firmam-se como restauradores da humanidade de si próprios
e dos que oprimem.
Para ele, o cerne da questão é estabelecer de que forma os
oprimidos, que “hospedam” ao opressor em si, conseguirão participar da
elaboração da pedagogia de sua libertação. Porque, para Freire, é
indispensável que a libertação ocorra a partir dos oprimidos e seja por eles
desenvolvida.
O primeiro obstáculo definido por Freire é que o homem oprimido
não deseja superar a contradição e se tornar um novo homem. Seu desejo é,
antes de tudo, transformar-se no opressor, o que Freire chama de aberração:
“um dos pólos da contradição pretendendo não a libertação, mas a
identificação com o seu contrário” (1997, p.18).
Sobre o opressor, o autor aponta que não basta se perceber
opressor e sofrer por isso. Solidarizar-se exige uma atitude material, objetiva,
que vai além de prestar atendimento a tantos quantos precisem. Para ele,
solidarizar-se é uma atitude radical, que implica em, junto com o oprimido, lutar
para a transformação e superação de situação de opressão, mudar a realidade
39
que faz do oprimido apenas um “ser para outro”, sem identidade própria e sem
liberdade.
Em diversos momentos em sua obra, Freire reitera que uma
pedagogia que liberte o oprimido em nada se assemelha com um trabalho
humanitário ou revestido de generosidade. A razão disso é que, para ele, uma
pedagogia que faça dos oprimidos objeto de humanitarismo encarna a própria
opressão. Nesse raciocínio, nenhum projeto formulado pelos opressores
poderia ser libertador.
Diante disso, buscamos saber se, por ter sua sustentação totalmente
no orçamento público, mas tendo sido pensado em parceria com os
movimentos sociais representativos dos moradores do campo, seria possível
pensar o Projovem Campo - Saberes da Terra como uma iniciativa que tem a
intenção de promover uma transformação identitária para os moradores do
campo?
Justifica-se a escolha da Pedagogia do Oprimido em nossa revisão
teórica, porque nessa obra, constrói-se os pressupostos de que o trabalho
pedagógico tem dois momentos: o primeiro, de conscientização e
comprometimento dos oprimidos com uma práxis libertadora. Num segundo
momento, transformada a realidade opressora, a pedagogia passa a ser a dos
homens em processo de permanente libertação.
Vale salientar que diante de uma sociedade desigual,
preconceituosa e permeada por práticas que denotam exploração, onde uns
mandam e outros obedecem, uns oprimem e outros são oprimidos, a prática
educativa pode ser um meio para promover uma transformação social em
busca da igualdade e valorização do gênero humano, considerando os
aspectos universais e locais.
É nesse contexto que a educação, materializada na escola ou em
outras práticas cotidianas, não pode continuar sendo um aparelho ideológico
do estado, deve ser, portanto, o espaço para discussão e luta pela mudança.
Partindo disso, ela pode servir tanto à manutenção da realidade opressora
como à mudança.
A partir dessas reflexões e de alguns estudos, observamos que, há
algumas décadas, muitos educadores tem trabalhado nesse sentido,
merecendo destaque um dos precursores dessas ideias, o educador Paulo
40
Freire, grande nome da pedagogia crítica dentro de uma corrente de
pensamento libertador, pois construiu um pensamento descolonial acerca da
educação, colocando o oprimido no centro do discurso educacional, propondo
que as práticas educacionais sejam libertadoras e não mais alienadoras.
Para Freire (1981), a educação deve levar o homem a fazer
escolhas, a transformar, a criar, e isso acontece porque o homem está
constantemente transformando a si e ao outro.
A medida que a educação se torna autêntica, proporcionalmente se
desenvolve a necessidade de criar, entretanto a acomodação, a domesticação
e a imitação são a oposição do ato de ensinar, contribuindo para a produção de
uma sociedade submissa e alienada. A obra de Freire é um discurso e uma
práxis que se propõe a promove a descolonialidade.
Isso se justifica, pois a ação educacional que ele nos convida a
exercer é consciente de seu papel de refletir sobre as estruturas ideológicas
que alimentam a dominação e a opressão em nossa sociedade, buscando
promover a humanização e a libertação de todos os envolvidos no processo.
Dessa maneira, ele identifica as formas de exploração e poder que
atuam em processos ocultos por meio de ideologias que mantém a alienação, o
desconhecimento, a ingenuidade, a mistificação e a acomodação
desempenhadas de maneira ostensiva sobre o oprimido.
Na nossa concepção, a ingenuidade também é uma forma
desarmada, acrítica de enxergar, desconsiderando o mundo como um núcleo
dialético de lutas entre o poder que gera as dominações endógena e exógena,
e a resistência que gera a descolonialidade, a qual se materializa através da
criação de uma cultura própria que favoreça à cultura e aos interesses dos
oprimidos e expulse a cultura imposta pelo opressor.
Enfim, para alcançar a meta de transformar a sociedade em que nos
inscrevemos, precisamos ser capazes de compreendê-la. Desenvolvendo a
consciência crítica, os oprimidos podem perceber como “suas maneiras de
pensar e de visualizar o mundo [...] se encontram marcadas pela ideologia dos
grupos dominantes na sociedade global de que fazem parte” (FREIRE, 1997, p.
37).
É preciso desenvolver uma prática educativa que funcione como
uma contra-ideologia, ou seja, a partir do momento que se identifica os meios
41
de opressão, a solução é trabalhar com o seu oposto, mostrando que o saber,
o poder e próprio ser que se constituem numa perspectiva individual ou social
podem estar a serviço de determinados grupos que detém o poder. Desocultar
esses aspectos por meio do estudo crítico da realidade é o melhor caminho
para promover a libertação.
Diante disso, se o opressor aliena, mistifica, preza pelo seu
desconhecimento, o silêncio e a imitação, uma educação radical estabelecerá
uma relação dialógica entre educador e educando, trabalhando com a
consciência crítica e seletiva, o estudo e o criar, a igualdade e a confiança no
convívio cotidiano. Aos poucos estas sementes se espalharão no meio social, e
os oprimidos esclarecidos da realidade que os cerca e das mudanças
necessárias, serão os pilares que sustentarão a transformação social.
Embora o período colonial tenha passado, as bases ideológicas de
uma sociedade opressora continuam. Freire (1997, p. 111) diz que quando “o
colonizador é expulso [...] permanece no contexto cultural e ideológico,
permanece como ‘sombra’ introjetada no colonizado”.
O racismo ainda persiste, bem como as ideologias, os privilégios de
pequenos grupos dominantes e os efeitos de séculos de exclusão educacional,
econômica e política de grande parte da população brasileira, o processo de
descolonização das mentes é mais demorado do que o da expulsão física do
colonizador.
Com isso, defendemos que o processo de descolonialidade vem
desvendar as amarras da exploração aos menos favorecidos, demonstrando
que o cerne da libertação é a tomada de consciência da realidade que os
cerca; é a exteriorização de mitos, valores, crenças e a criação de uma cultura
que favoreça aos seus próprios interesses.
Para Freire (1969, p. 124-125), o homem é um ser da práxis, é um
agente social e por isso não pode reduzir-se a um mero expectador da
realidade, pelo contrário, sua vocação é a do sujeito que opera e transforma o
mundo. A educação em Freire visa despertar para a consciência dessa
vocação e dá voz aos que foram calados por um sistema opressor.
Na Pedagogia do Oprimido Freire (1997), direciona a sua opção
político-pedagógica “aos esfarrapados do mundo, e aos que neles se
42
descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com
eles lutam” (FREIRE, 1997, p. 05).
Advoga uma pedagogia revolucionária, que tenha por objetivo, ação
consciente e criativa a reflexão das massas oprimidas sobre sua libertação. O
papel central no processo de libertação seria dos oprimidos e não mais, como
explicitou em Educação como Prática da Liberdade, das elites comprometidas
em diálogo com o povo.
No que diz respeito à relação entre educação e política, confirma a
tese de que a mudança social deveria partir das massas e não de indivíduos
isolados. Dessa forma, afirmou que “ninguém liberta ninguém, ninguém se
liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 1997, p.71).
Com isso, Freire apresenta alguns aspectos do que para ele constitui o que
vem chamando de pedagogia do oprimido:
[...] é aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, e esta pedagogia se fará e refará (1997, p.43).
A essência da sua pedagogia é a libertação, a qual tem como
caminho a práxis de sua busca. A práxis é reflexão e ação dos homens sobre o
mundo para transformá-lo, sem ela, é impossível a superação da contradição
opressor-oprimido.
Freire apresenta o grande problema de como poderão os oprimidos,
que hospedam o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos,
inautênticos, da pedagogia de sua libertação:
Somente na medida em que se descobrem hospedeiros do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido, que não pode ser elaborada pelos opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestações de desumanização (FREIRE, 1997, p. 43).
43
É preciso que o povo tome consciência da realidade em que vive,
objetive-a, submetendo-a a sua reflexão para perceber os condicionantes que
ela criou e o envolvem.
A necessidade que se impõe para superar a situação opressora
implica o reconhecimento crítico, a razão desta situação, para que, através de
uma ação transformadora instaure-se outra, que possibilite aquela busca do ser
mais.
Os métodos da opressão não podem, contraditoriamente, servir à
libertação do oprimido. Nas sociedades governadas pelos interesses de
grupos, classes e nações dominantes, a educação como prática da liberdade
postula, necessariamente, uma pedagogia do oprimido.
A educação libertadora é incompatível com uma pedagogia que, de
maneira consciente ou mistificada, tem sido prática de dominação. Assim,
buscaremos, no capítulo da análise (3.5) identificar no corpus analisado
indícios de onde estaria o Projovem, ou seja, em que medida se configura
como uma prática educacional que está a serviço da opressão e/ou da
libertação?
A educação, a escola e as práticas de letramentos cumprem um
papel nesse processo de conscientização e de movimento de massas. Pelo
conceito de consciência transitiva crítica, é possível entender como a
consciência é articulada com a práxis. Para se chegar a essa consciência, que
ao mesmo tempo é desafiadora e transformadora, são imprescindíveis o
diálogo crítico, a fala e a vivência.
O diálogo proposto pelas elites é vertical, rígido, impeditivo do
educando-massa dizer a sua palavra. Na pedagogia dominante, ao educando
cabe apenas escutar, obedecer, e um dos elementos básicos na mediação
opressor-oprimidos é a prescrição, a qual se configura como a imposição da
opção de uma consciência a outra.
Na concepção de Freire (1997), o dialogo é uma relação horizontal,
nutrindo-se de amor, humildade, esperança, fé e confiança. Nesta relação
dialógico-libertadora, parte-se dos conhecimentos e da experiência dos
educandos para construir um conhecimento novo, uma cultura vinculada aos
seus interesses e não à cultura das elites.
44
É fundante que o educador revolucionário não se utilize dos mesmos
métodos antidialógicos de que se servem os opressores, trata-se de buscar a
coerência entre a teoria e a prática. A coerência que ele defende como primeira
virtude do educador revolucionário parece ser sua virtude principal, mas nos
adverte com frequência que a coerência absoluta é burrice, pois torna as
pessoas incapazes de mudar. E, para mudar, é preciso desrespeitar as
verdades já adquiridas, os próprios preconceitos.
Freire (1997) deixa claro que não é pela força da palavra, do
discurso que se fará a superação da opressão, mas da inserção na realidade
concreta e a correspondente transformação econômica, político-ideológica.
Assim, a educação não é a alavanca da transformação social, mas sem ela
essa transformação não se dá.
Em consonância com o pensamento de Freire (1996), o professor
favorece a construção do conhecimento e da formação do aluno e o aluno
também possibilita ao professor uma aprendizagem. O docente deve perceber
as experiências e saberes do aluno e o que ele traz consigo, e partir daí
ensinar. Partindo do conhecimento de mundo a curiosidade ingênua, poderá
ser transformada em curiosidade epistemológica.
Dentro desse contexto, é necessária uma prática, através da qual o
educador crie uma metodologia que questione seus ensinamentos, não
colaborando assim para a alienação ao sistema vigente. Veremos como isso
ocorre no Programa em análise através da observação participante, momento
em que acompanharemos as práticas pedagógicas e as interações do grupo.
Por fim, sabemos que uma das maneiras de explorar a consciência
da dominação é utilizar palavras geradoras do contexto sociocultural do
educando e desenvolver seu olhar crítico em relação à realidade que se
encontra.
2.4 MOVIMENTOS SOCIAIS E AS PRÁTICAS EDUCACIONAIS DOS
CAMPONESES
Considerando que o nosso objeto de estudo está relacionado com
as identificações dos moradores do campo, nesta pesquisa enfocaremos, de
45
forma mais específica, a questão dos movimentos sociais e as práticas
educacionais dos camponeses.
Levamos em conta que muitos problemas enfrentados nesse
contexto são comuns a todos os camponeses, mas consideramos que quando
se trata do direito à educação os mais afetados são os jovens e adultos.
Questões como: evasão, desistência, falta e estigmatização social são
obstáculos frequentes no contexto educacional quando se propõe aos jovens e
adultos do campo práticas educacionais formais.
Inúmeras lutas tem se configurado para garantir uma educação que
atenda as necessidades da população do campo e elas são decorrentes da
organização dos movimentos sociais, os quais vêm se organizando em
diversas categorias no campo e na cidade para reivindicar e propor soluções
para os problemas da sociedade contemporânea.
Assim, o enfrentamento da modernidade eurocentrada ocorre por
meio de inúmeras respostas críticas descoloniais, provenientes dos lugares
subalternos e dos povos colonizados. A maior expressão desse processo está
nas lutas dos movimentos sociais populares, os quais são bastante
expressivos na América Latina.
Considerando os pressupostos teóricos defendidos por Gohn
(2011, p.13), “vemos os movimentos sociais como ações sociais coletivas de
caráter sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas da população se
organizar e expressar suas demandas”.
Através dos discursos e práticas, os movimentos sociais criam
identidades e ressignificam às práticas. Por outro lado, o discurso também
pode ser usado como instrumento de dominação e opressão quando coloca os
camponeses numa condição subalterna e dependente dos detentores do
poder.
No contexto de dominação, surgem ações contra-hegemônicas
materializadas nas ações dos diversos movimentos sociais, essas ações são
consideradas descoloniais, pois se impõem contra as formas de dominação e
contra o próprio poder eurocêntrico, ou seja as formas de dominação e
exploração que contribuem para a manutenção das desigualdades, acabam
constituindo também, por meio da práxis cotidiana, práticas libertadoras, com
isso, fazem a história a partir uma nova visão de mundo, por meio de uma
46
concepção emancipada acerca da construção das relações sociais,
transcendendo o padrão eurocêntrico.
É a partir de 1970, com os novos movimentos sociais que as
mobilizações da sociedade civil ganham aspecto de continuidade e têm a
possibilidade de dissolver as diversas formas de opressão e dominação das
elites internas e externas à região. Diante disso, concordamos que:
Levando-se em consideração outros momentos de mobilização da sociedade civil (como antes de 1930, com o anarquismo; antes de 1964, com alguns setores sindicais e as esquerdas tradicionais; logo após 64 com a nova esquerda e grupos de resistência armada), verifica-se como estes não apresentaram garantia de continuidade e de capacidade de corrosão das formas autoritárias e excludentes das elites no poder (SCHERER-WARREN, 1996, p.50-51).
Passado esse longo período de ausência de mobilização ou
repressão da sociedade civil em decorrência da opressão do Estado, surgem
novos movimentos sociais que vão além da luta por melhores condições de
vida, eles se configuram como verdadeiros produtores da história e contribuem
significativamente para a construção de uma nova forma de sociabilidade.
Isso passa a ser feito a partir da luta constante dos diversos grupos
organizados contra o autoritarismo expresso no Estado, nos partidos e nas
relações sociais.
Novas relações são estabelecidas a partir das condições reais e os
próprios movimentos – antigos e novos - se configuram distintamente
dependendo da região em que se desenvolvem.
Se considerarmos, por exemplo, o Brasil, veremos que as
organizações sindicais, os movimentos feminista, sem terra, de bairro,
ecológico, étnicos e outros se configuram diferentemente em cada região, pois
mesmo vivendo em um país com modelo econômico, social e político único, as
práxis cotidianas mostram que é no fazer que o local e o universal dialogam e
constituem novas práticas.
Os movimentos sociais que se constituem no Brasil e na América
Latina a partir da década de 1970 caracterizam-se por possuírem um potencial
transformador alicerçado no fortalecimento da sociedade civil. Eles
contribuíram para o processo de criação de uma nova cultura, o que antes era
lutar para suprir as necessidades, as carências, a partir de 1970 passou a ser a
47
luta por direitos, pela conquista da cidadania, o foco passou a ser a busca pelo
direito a ter direitos. Isso fez com que o ideal norteador dos movimentos sociais
passasse a ser:
[...] o da criação de um novo sujeito social, o qual redefine o espaço da cidadania. O sentimento de uma tripla exclusão relativa – econômica, política, e cultural/ideológica – sempre presente na história brasileira, mas que se acentua consideravelmente durante os anos mais duros do regime militar, está no bojo dos movimentos que vão se organizando. Assim, defende-se o direito de participar do consumo de bens e equipamentos coletivos, através dos Movimentos Sociais Urbanos; o direito a permanecer na moradia e na terra ocupada, pelo Movimento dos Favelados; o direito à terra para o trabalho, pelo Movimento dos Sem-Terra ou de preservar as terras produtivas, pelo movimento das barragens; o direito a uma vida mais sadia, pelo Movimento Ecológico; o direito a não serem discriminados culturalmente, pelos Movimentos Étnicos e assim por diante (SCHERER-WARREN, 1996, p.54).
As ações desenvolvidas se constituem por meio da participação
popular e, ao negar o modelo político existente, contribuem para a criação de
uma nova sociabilidade. Muitas das decisões tomadas pelo Estado passam a
ser contestadas por meio de inúmeras formas de protestos, os quais
materializam a luta pelo direito a ter direitos, fortalecendo a força comunitária
para a constituição histórica de grupos.
A postura dos novos sujeitos sociais tem como base a Teologia da
Libertação, movimento descolonial que se constitui a partir da realidade
endógena da América Latina e tem como princípio norteador a opção
preferencial pelos pobres e o engajamento na luta contra a opressão,
desencadeando um processo de libertação, que se dá via movimentos sociais,
os quais defendem que:
[...] as lutas pela redefinição da cidadania, (num sentido mais pleno: econômico, político e social), a deslegitimação de decisões tomadas autoritariamente pelo Estado, o fortalecimento das relações comunitárias em seu sentido político, a forma de agir pela resistência ativa não violenta, a tentativa de democratização das práticas cotidianas e a busca de autonomias relativas são espaços que os NMS estão abrindo para a construção de uma sociedade mais democrática (SCHERER-WARREN, 1996, p.60).
O que a teórica denomina de Novos Movimentos Sociais (NMS),
configura-se como as formas de organização que surgem a partir da segunda
48
metade da década de 1970. Os quadros sociais criados a partir de então
servirão de base para a constituição dos movimentos sociais emergentes no
século XXI, momento histórico a partir do qual, segundo Gohn (2011), passarão
a conviver antigos e novos atores no interior dos movimentos sociais, os quais
mudam suas ações de reivindicatórias para propositivas.
Na atualidade, os movimentos sociais atuam por meio das redes
sociais e se estabelecem a nível local, regional, nacional e internacional, tendo
como principal meio de comunicação e interação via internet. A continuidade e
a ruptura no interior dos movimentos são latentes, pois ao se tornarem
atividades criativas e inovações socioculturais, resgatam as lutas do passado
para significar as do presente, mas a experiência de cada movimento é
construída nos enfrentamentos do cotidiano, e não herdada do passado. A
respeito dos movimentos sociais no século XXI, concordamos com a autora ao
defender que:
A experiência que são portadores não advém de forças congeladas do passado – embora este tenha importância crucial ao criar uma memória que, quando resgatada, dá sentido às lutas do presente. A experiência se recria cotidianamente na adversidade de situações que enfrentam (GOHN, 2011, p.14).
Vale salientar que os denominados Novos Movimentos Sociais, em
cena a partir da segunda metade de 1970, contribuíram para realização de
mudanças na conjuntura política de diversos países da América Latina,
inclusive o Brasil.
As mudanças ocorridas foram decorrentes de inúmeras ações
reivindicatórias em um período em que os movimentos se colocavam como
antagônicos ao Estado. A nova situação política, em que diversos setores da
esquerda passaram a ter seus representantes ocupando cargos públicos,
possibilitou que o perfil dos movimentos sociais se alterasse no século XXI.
A ressignificação se deu principalmente na mudança de postura,
pois os movimentos tornaram-se ativos e propositivos, passando a ter ações
voltadas para a formação humana e construção de agendas emancipatórias,
nas quais as realidades sociais são diagnosticadas, propostas são construídas
e discussões são realizadas para que possam ser incluídas nas agendas
governamentais.
49
Na contemporaneidade, o trabalho dos movimentos sociais não para
por aí, pois seus atores se incluem nos conselhos, audiências, seminários,
palestras e encontros sobre as temáticas pertinentes à luta de cada grupo
organizado, e mais do que propor, eles passam a fiscalizar e a acompanhar as
ações do poder público, garantindo que as necessidades dos sujeitos
historicamente oprimidos pelo sistema sejam atendidas.
Com o avanço das políticas neoliberais surgem inúmeros
movimentos sociais, e outros já existentes tem suas lutas fortalecidas pela
necessidade de se impor contra o modelo de sociedade proposto pelo
capitalismo globalizado e propor uma nova forma de sociabilidade, combatendo
as desigualdades sociais geradas pelo capitalismo.
Na América Latina e, mais especificamente, no Brasil, a partir de
1970, ganham destaque os movimentos sociais populares no campo e na
cidade. Dentre os que tiveram e tem maior repercussão pela organização e
conquistas realizadas está o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), cuja dimensão espacial transcende o território nacional, uma vez que
integra a rede de movimentos sociais Via Campesina formando uma
articulação internacional de organizações camponesas de pequenos e médios
agricultores, trabalhadores agrícolas, mulheres rurais e de povos indígenas,
representando, até certo ponto, o enfrentamento da modernidade
eurocentrada.
A rede de movimentos sociais Via Campesina, e, portanto, o MST,
apresentam ideologias afins que os coloca como movimentos que visam
promover a descolonialidade do poder, do ser e do saber no mundo moderno.
Mesmo surgindo no período dos Novos Movimentos Sociais, a partir dos quais
a participação cidadã ganha ênfase, é preciso ficar claro que:
[...] o MST não se enquadra na tradicional categoria acadêmica ‘novos movimentos sociais’, cuja inserção na sociedade implica renuncia à política de partidos. Pelo contrário, o MST é um movimento cujas novidades residem na estruturação nacional, na permanente mobilização, na autonomia política e na crítica radical do latifúndio capitalista e do Estado neoconservador (VENDRAMINI, 2000, p.15).
Assim, as ideologias do MST são frutos da construção de uma
consciência descolonial, cuja constituição ocorre por meio da percepção de que
50
o padrão eurocêntrico de poder se estabeleceu a partir da exploração e
dominação da América Latina.
Com a manutenção da colonialidade, fica claro que o sofrimento
atinge principalmente os povos e grupos etnicamente marcados por ela como
subalternos: negros, índios, quilombolas, agricultores, ribeirinhos, moradores
de rua. Muitos deles foram recrutados pelo MST para participarem de
acampamentos e ocupações rurais.
Esse movimento apresenta suas contradições e desvios, e nos
últimos tempos vem se afastando dos seus afins políticos e ideológicos
originários em decorrência, por exemplo, de muitos dos seus militantes terem
assumido cargos políticos e adotado ideologias neoliberais, da realidade
objetiva ter sido modificada e de novos elementos terem permeado a realidade
camponesa.
Podemos pontuar o caso da reforma agrária, pois o MST tinha como
um de seus fundamentos um modelo de reforma agrária que deveria modificar
a estrutura da propriedade da terra, transformando o modo de produção e as
relações de trabalho no campo. Hoje, ao mesmo tempo em que o MST diz lutar
para superar o capital, percebemos alianças políticas, capitalistas e neoliberais
no interior do movimento, visando beneficiar interesses pessoais ou
determinados partidos políticos.
Com a consolidação do agronegócio, o Movimento tem voltado sua
atenção não tão somente para o latifúndio, pois Bancos e companhias
transnacionais desenham-se como o novo inimigo a ser enfrentado, sem que o
antigo, o fazendeiro do latifúndio tradicional, tenha sido derrotado.
Atualmente, modificou-se para o MST a luta de classes na
agricultura e os sujeitos que tem se envolvido na luta são múltiplos. Diversos
setores da sociedade tem tido a oportunidade de fazer parte do Movimento,
mas alguns não tem a luta pela terra como princípio norteador das ações.
Toda essa dinâmica possibilita que o MST comporte características
dos antigos e novos movimentos sociais, constituindo-se como um movimento
singular, isso é possível uma vez que:
O MST surge em nosso cenário político e econômico propondo-se a lutar por mudanças sociais no país e pela construção de uma “sociedade sem exploradores e explorados” a partir da superação da
51
propriedade privada dos meios de produção, o que considera ser a estrutura central que sustenta a constituição das relações sociais nos moldes necessários para a manutenção do modo de produção capitalista (GOHN, 2011, p.114).
No entanto, o MST e outros movimentos sociais tem dado novos
rumos para a luta, e a partir dela, das contradições que eles vivenciam e das
transformações ocorridas na sociedade, ainda, tem conseguido lutar por terra,
trabalho, saúde, educação, elementos que possibilitem uma vida melhor no
campo.
Com isso, ganha ênfase no Brasil diversos projetos e programas
educacionais com intuito de atender às demandas reivindicadas pelos diversos
setores da sociedade, inclusive as necessidades expressas nas lutas do MST,
que desde 1970 e de maneira mais expressiva na década de 1990 se
fortalecem em toda América Latina.
Questionamos até que ponto esses programas são representativos
das ideologias dos movimentos sociais no que concerne a educação
reivindicada e proposta para/pelos camponeses?
Considerando que entre outros mecanismos utilizados para manter o
padrão eurocêntrico de poder está a educação tradicional, materializada na
instituição social que se convencionou chamar de escola, entende-se que ela
pode contribuir para a manutenção do processo de colonialidade.
Sendo o MST um movimento, até certo ponto, contra-hegemônico,
que tem como principal bandeira a reforma agrária, iniciou uma luta pelo direito
à educação do campo e no campo, de modo que a educação foi conquistando
lugar no interior do próprio MST, que tinha as estratégias políticas e a
ocupação da terra como prioridades.
Isso se deu porque o modelo de educação adaptado do espaço
urbano para o rural não vem atendendo as necessidades da população do
campo, e notavelmente o modelo educacional hegemônico contribui para a
manutenção da colonialidade do poder, do ser e do saber. Diante disso,
podemos defender que:
[...] a educação do campo não emerge no vazio e nem é iniciativa das políticas públicas, mas emerge de um movimento social, da mobilização dos trabalhadores do campo, da luta social. É fruto da organização coletiva dos trabalhadores diante do desemprego, da
52
precarização do trabalho e da ausência de condições materiais de sobrevivência para todos (VENDRAMINI, 2007, p.123).
Muitas têm sido as conquistas dos camponeses, no que concerne à
construção de um projeto educacional para o campo que visa à libertação dos
oprimidos, ou seja, se impondo como um antagonista às forças dominantes
vigentes, buscando a construção das bases de um projeto de descolonialidade.
Com tudo isso, e considerando a fato da participação do MST na
elaboração do Projeto Base do Programa em análise, é possível evidenciar no
Projovem Campo – Saberes da Terra algum aspecto que denote processos de
descolonialidade/libertação/emancipação numa perspectiva freiriana? Sobre
essas e outras questões abordadas nesta seção, nos deteremos na análise dos
dados ao realizar um estudo mais aprofundado dos documentos do programa e
das práticas cotidianas.
As discussões sobre educação do campo se intensificam no Brasil a
partir de 1990, com a realização de encontros nacionais, conferências,
seminários, culminando com a criação de leis e programas que demonstram o
fortalecimento da educação do campo na política educacional.
Porém, apenas com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira em 1996 (LDB 9394/96) é que a educação do campo
começa a ganhar espaço nas políticas públicas, pois a lei afirma, em seu artigo
28, a possibilidade de adequação curricular e metodologias apropriadas ao
meio rural.
Posteriormente, com o Plano Nacional de Educação, abre-se a partir
de 2001 um espaço para conquistas resultantes da força dos movimentos
sociais, ocorrendo a aprovação das Diretrizes Operacionais para a Educação
Básica nas Escolas do Campo, nas quais fica claro que:
A educação do campo, tratada como educação rural na legislação brasileira, tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro não-urbano, é um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações de sociedade humana (BRASIL, 2001, p. 1).
53
Além de estabelecer o que é a educação do campo, enquanto
modalidade de ensino, as diretrizes reafirmam o discurso do MST, propondo a
possibilidade e necessidade de elaborar propostas pedagógicas que:
Valorizem, na organização do ensino, a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso do avanço científico e tecnológico e respectivas contribuições para a melhoria das condições de vida e a fidelidade aos princípios éticos que norteiam a convivência solidária e colaborativa nas sociedades democráticas (BRASIL, 2001, p. 25).
Merece destaque o Programa Nacional de Educação em áreas de
Reforma Agrária (PRONERA), a Pedagogia da Terra, e mais recentemente a
Licenciatura em Educação do Campo e o Projovem Campo – Saberes da
Terra.
Dentre os programas supracitados, voltamos à atenção para o
Projovem Campo – Saberes da Terra, por estar destinado, segundo Brasil
(2009), à população do campo que já passou por processos iniciais de
alfabetização, não concluíram o ensino fundamental e necessitam dar
continuidade aos estudos.
Ratifique-se que esse se constitui em um Programa que se propõe
oficialmente a atender as necessidades educacionais por meio da elevação da
escolaridade associada à qualificação social dos agricultores ou filhos de
agricultores, visando ampliar o acesso e a qualidade a essa parcela da
população historicamente excluída dos diversos processos educacionais,
respeitando as peculiaridades locais, considerando as necessidades e
pluralidades de gênero, etnia, cultura, economia, política, territorial e produtiva
dos moradores do campo.
De acordo com Brasil (2009), o Projovem Campo – Saberes da
Terra se configura numa ação integrada entre o Ministério da Educação, por
meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
(SECAD) e da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC); o
Ministério do Desenvolvimento Agrário por meio da Secretaria de Agricultura
Familiar (SAF) e da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT); o
Ministério do Trabalho e Emprego por meio da Secretaria de Políticas Públicas
de Emprego (SPPE) e da Secretaria Nacional de Economia Solidária
54
(SENAES); o Ministério do Meio Ambiente por meio da Secretaria de
Biodiversidade e Floresta (SBF); o Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS) e a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) vinculada
à Presidência da República.
O programa está centrado nos jovens camponeses de 18 a 29 anos,
pois a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2006 aponta
para um total de 6.276.104 jovens nesta faixa etária que vivem nas áreas
rurais. Desses, 1.641.940 jovens não concluíram o primeiro segmento do
ensino fundamental, representando 26,16% do total e 3.878.757, (61,80%) não
concluíram a segunda etapa do ensino fundamental.
Esses jovens são vítimas de um sistema que diz oferecer educação
para todos, mas não dá condições para que os sujeitos das classes populares
tenham o acesso e a permanência garantidos. Isso é visto por nós como uma
violência epistemológica proveniente do eurocentrismo.
É preciso salientar que o processo de dominação e os atos de
colonialidade passam necessariamente pelo (des)conhecimento. Assim,
entendemos que o Projovem Campo – Saberes da Terra poderia ser uma
conquista da população do campo, tendo a possibilidade promover uma
educação libertadora, possibilitando o processo de descolonialidade. É isso
que tentaremos evidenciar no capítulo V.
Para um fortalecimento dos movimentos sociais e a transformação
da sociedade, é preciso que a educação seja realizada numa perspectiva
emancipadora, e para tanto, deve-se considerar que:
Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele. Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo?(FREIRE, 1981, p.31).
Considerando a educação e o Projovem como um processo de
construção social, especificamente humano, que contribui para mudanças,
concordamos com Freire (1981) ao postular que todo processo educacional é
uma forma de intervenção no mundo. Além do conhecimento dos conteúdos
55
bem ou mal ensinados e/ou aprendidos, implica tanto o esforço de reprodução
da ideologia dominante como o seu desmascaramento.
Por meio de iniciativas que contribuam para a emancipação, é
possível constituir sujeitos críticos e resistentes à dominação imposta pelo
padrão de poder eurocêntrico, promovendo o processo de descolonialidade,
contribuindo para a libertação tão necessária à nossa sociedade vítima da
colonialidade.
Construir uma educação visando à emancipação, implica,
necessariamente, no reconhecimento das diferenças, negar as diferenças é
uma maneira de não atender as necessidades dos diversos grupos que
compõem a sociedade contemporânea.
Se a educação passa a ser oferecida considerando a existência de
grupos específicos, então, torna-se possível pensar novos modelos
educacionais e consequentemente realizar novas práticas, distintas do que
preconiza o padrão imposto pelo modelo educacional hegemônico. Tais
particularidades são consideradas no Projeto Político Pedagógico do Projovem
Campo ao conceber o:
[...] campo como um universo socialmente integrado ao conjunto da sociedade brasileira e ao contexto atual das relações econômicas internacionais, mantendo particularidades históricas, sociais, culturais e ecológicas que o diferenciam de qualquer espaço social e produtivo (BRASIL, 2009, p.27).
Novos sujeitos requerem novas formas de ensinar e aprender. Com
os jovens e adultos do campo não funcionam métodos tradicionais
provenientes da escola regular, eles querem aprender, mas, para a vida, e
esperam que a aprendizagem tenha significado.
Torna-se imprescindível que as práticas educacionais que se
propõem a contribuir para a libertação considerem o cotidiano dos alunos, pois
é a partir da construção de uma consciência crítica sobre a realidade em que
estão inseridos que os sujeitos podem começar a se impor contra os diversos
tipos de dominação.
Constituindo-se parte do processo, os moradores do campo têm a
possibilidade de terem uma maior compreensão da realidade, evitando a
56
afirmação e reprodução das formas de dominação local, promovendo o caráter
emancipatório nas lutas e ações do dia a dia.
Podemos contribuir significativamente para promover a
descolonialidade do saber, que por sua vez, impacta diretamente na
descolonialidade do poder e do ser através de práticas de letramentos.
Sabemos que é por meio dos usos sociais que somos capazes de fazer com a
linguagem que podemos contribuir para manter e/ou transformar a realidade
constituída historicamente.
57
3 ESTUDOS DOS LETRAMENTOS
Neste capítulo dedicamos nossos esforços para realizar uma
contextualização das diversas perspectivas através das quais os letramentos
podem ser abordados. Em 3.1, atentamos para o delineamento dos conceitos e
práticas de letramento numa perspectiva crítica. Na seção 3.1.1, tratamos dos
letramentos numa perspectiva funcionalista. Já na 3.1.2, apresentamos os
novos estudos do letramento com base em Street (2014). Por fim, destacamos
a diversidade de letramentos que permeiam a vida dos camponeses, deixamos
claro que ao lado das práticas de letramentos já escolarizadas, estão os
letramentos alternativos, aqueles que fazem parte do cotidiano do camponês,
mas não foram sistematizados e disseminados de maneira homogênea.
3.1 CONCEITOS E PRÁTICAS DE LETRAMENTOS NUMA PERSPECTIVA
CRÍTICA
Coadunando com o pressuposto de que o letramento tem como
ponto de partida compreender os usos sociais que fazemos da oralidade, da
leitura e da escrita, percebemos que, em linhas gerais, as teorias dos
letramentos buscam entender como as pessoas leem e escrevem, assim como
quais os processos utilizados para compreensão de textos diversos.
Para além disso, as teorias do letramento numa perspectiva crítica
consideram que essas práticas de leitura e escrita possuem significados
culturais, alegações ideológicas e se inserem em relações de poder.
Assim, passemos a uma reflexão acerca da teoria social do
letramento, destacando desde os modelos funcionalistas até os novos estudos
do letramento com foco na vertente crítica.
Faremos um percurso desde um aporte teórico funcionalista (modelo
autônomo), que teve grande aceitação nos anos 1970 e 1980, permeando a
sociedade ainda hoje, em que o letramento é entendido como o conjunto de
habilidades transferíveis que seriam responsáveis pelo sucesso de alguém ao
dotar o ser humano de capacidades mentais mais abstratas e complexas, até
os Novos Estudos do Letramento (modelo ideológico) que desde os anos 1980
vem se consolidando como uma sólida corrente de estudos nas áreas da
58
linguagem e da educação, pois a partir da teoria social do letramento, é que o
mesmo passa a ser visto como uma prática social.
Antes das questões técnicas, devemos voltar nossa atenção para
questões derivadas de um modelo alternativo, ideológico. A presente discussão
ganha importância porque:
Dentro do quadro do modelo ‘autônomo’ de letramento, a questão para as agências e para os que conduzem campanhas de alfabetização se torna: como ensinar as pessoas a decodificar sinais escritos e, por exemplo, evitar problemas de ortografia? Essa abordagem pressupõe que as consequências sociais do letramento são pontos pacíficos – maiores oportunidades de emprego, mobilidade social, vidas mais plenas, etc. – e que o que as agências precisam decidir é como o letramento deve ser transmitido. Ela, porém, lida com um excesso de falsas obviedades no que diz respeito às implicações sociais do processo de aquisição do letramento [...] (STREET, 2014, p.43).
No atual contexto, em que o capitalismo globalizado vem se
mantendo hegemônico, o letramento, enquanto prática social, constitui-se
como uma interface entre linguagem e descolonialidade, uma vez que as
práticas cotidianas de letramento, ao contribuírem para a constituição de novas
identidades ou possibilitar formas de resistência, se materializam como
instrumentos capazes de promover processos emancipatórios/libertadores.
3.1.1 Letramento numa perspectiva funcionalista
A escrita, colocada como principal instrumento de uso da linguagem
na sociedade contemporânea, traz consequências para grupos e indivíduos
específicos, pois essa maneira de interagir tem sido colocada como condição
sine qua non para se ter acesso aos bens produzidos na modernidade, os que
não detém as competências e as habilidades consideradas pelos grupos
dominantes como necessárias para o exercício da cidadania são, muitas vezes,
colocados à margem e excluídos de inúmeras práticas sociais. Isso se dá
porque desde os:
[...] anos setenta e em boa parte dos anos oitenta, teóricos funcionalistas do letramento consideravam que essa atividade estava ligada a determinadas habilidades de raciocínio que, por sua vez, eram desenvolvidas de forma individual. Para esses teóricos, ligados
59
à área da cognição, texto, significado e pensamento estão diretamente relacionados às maneiras com as quais diferentes tipos de texto demandam uma menor ou maior complexidade de pensamento (FONTENELE, 2014, p. 42).
Fica evidente que, sob tal enfoque, o trabalho com textos e,
consequentemente, a aprendizagem é direcionada, considerando a hierarquia
entre os textos e o nível das habilidades e competências, ou seja, o grau de
raciocínio que cada sujeito é capaz de desenvolver.
Na compreensão de Street (2014), o letramento, nessa vertente, se
expressa por meio da concepção dominante, a qual o reduz “a um conjunto de
capacidades cognitivas, que pode ser medida nos sujeitos (STREET, 2014,
p.9)”.
Esse modelo é denominado, pelo referido autor, de autônomo e
busca medir as capacidades cognitivas individuais de cada sujeito ao lidar com
textos escritos. Isso se materializa quando encontramos expressões como:
[...] ‘grau de letramento’, ‘nível de letramento’, ou ‘baixo letramento’[...]. As avaliações em rede, as políticas públicas de desenvolvimento da leitura, os concursos públicos e os exames vestibulares são bons exemplos de ações sociais que mobilizam e legitimam tal concepção, uma vez que se baseiam na crença da possibilidade de ‘avaliação’ do letramento dos sujeitos (STREET, 2009, p.9).
Tais aspectos permitem que, na contemporaneidade, seja
hegemônica a ideia de que a escola moderna e as políticas públicas devem ter
como princípio norteador desenvolver o letramento numa perspectiva
internacional, todos precisam ser avaliados e devem atingir os mesmos
resultados. Por isso, esse modelo:
[...] tende a se basear na forma de letramento do ‘texto dissertativo’, prevalente em certos círculos ocidentais e acadêmicos, e a generalizar amplamente a partir dessa prática restrita, culturalmente específica. O modelo pressupõe uma única direção em que o desenvolvimento do letramento pode ser traçado e associa-o a ‘progresso’, ‘civilização’, liberdade individual e mobilidade social (STREET, 2014, p.44).
O foco é saber o que os sujeitos sabem sobre determinados textos
escritos, com ênfase na homogeneidade, deixando o contexto social sempre de
lado, o que faz com que o letramento na perspectiva autônoma seja restrito,
60
pois está voltado apenas para competências e habilidades restritas a grupos
específicos.
Com isso, privilegia-se uma única forma de letramento em
detrimento de muitas outras e questões complexas como poder, identidade,
agência não são incorporadas a essas discussões, prevalecendo o princípio da
universalidade e da objetividade, próprios das construções epistemológicas da
ciência moderna.
Passa-se, então, a valorizar os “mais” letrados em detrimento dos
“menos” letrados, gerando implicações diretas na forma de organização da
sociedade.
Os grupos letrados são vistos como mais dignos e por isso passam
a exercer os papeis e/ou assumem identidades mais valorizadas pela
sociedade, enquanto os grupos que não dominam essa forma única de
letramento são vistos como indignos e sem competência para atuar nos
espaços valorizados socialmente, a eles resta apenas o que é desprezado
pelas elites, as posições consideradas subalternas dentro do modelo de
sociabilidade hegemônico na atualidade.
Podemos compreender que as práticas de letramento impactam na
construção das identidades. No caso do letramento numa perspectiva
funcionalista delineado por meio de um modelo autônomo, há uma hegemonia
das possibilidades de se estabelecer padrões identitários legitimadores, com
intuito de naturalizar os processos de exploração e dominação via usos da
linguagem, contribuindo para manutenção da colonialidade. Nessa vertente:
[...] se encontra normalmente uma imagem muito ocidentalizada e estreita do que seja o ‘letramento’, um modelo fundado nos usos e associações particulares do letramento na história recente da Europa e da América do Norte. Sugiro que esses pressupostos restritos sobre letramento podem oferecer uma explicação para o fracasso de tantas campanhas de alfabetização nos anos recentes (STREET, 2014, p.30).
Ainda hoje, encontramos essas concepções funcionalistas do
letramento, mas elas não constituem mais um consenso, pois há uma nova
possibilidade, capaz de entender o letramento numa perspectiva mais completa
e abrangente, nos referimos aos Novos Estudos do Letramento, que serão
discutidos a seguir.
61
3.1.2 Novos estudos do letramento
Essa vertente dos estudos do letramento inclui uma quantidade
considerável de pesquisas desenvolvidas a partir dos anos oitenta e vem se
propagando e ganhando espaço até hoje, pois se contrapõe às noções
tradicionais de letramento discutidas anteriormente.
Com os Novos Estudos do Letramento, denominados por Street
(2014) de Letramentos Críticos, construídos com base no modelo ideológico,
compreende-se a cultura escrita para além de um olhar psicolinguístico,
considerando os pontos de vistas histórico, antropológico e cultural, leva-se em
conta que os usos que fazemos da linguagem não são fenômenos naturais e
universais, ao contrário, são construções sociais e políticas, trazendo implícitas
relações de poder.
De acordo com o modelo ideológico de letramento postulado por
Street, os Letramentos Críticos se referem a uma prática social de linguagem,
na qual os interlocutores utilizam formas de linguagem de diversas fontes e
recursos para construir e negociar significados com uma variedade de
interlocutores. Questões de raça, etnia, sexualidade, gênero, diversidade
cultural e grupos sociais, intensificam a luta por interesses próprios num jogo
de linguagem que mescla ideologias, paradoxos e relações dinâmicas de
poder.
A partir do momento em que as culturas escritas tornam-se
hegemônicas na sociedade capitalista, aumentou o interesse dos estudiosos
pelas questões inerentes à língua escrita e a relação que a mesma mantém
com questões referentes ao poder.
O letramento é compreendido como uma prática social e mais do
que avaliar o que os sujeitos sabem sobre textos escritos leva em consideração
como as pessoas usam determinados textos e o que fazem com eles em
contextos históricos e culturais diversos. Por isso, devemos compreender que:
[...] vivemos práticas sociais concretas em que diversas ideologias e relações de poder atuam em determinadas condições, especialmente se levarmos em consideração as culturas locais, questões de identidade e as relações entre os grupos sociais (STREET, 2014, p.9).
62
A concepção de letramento numa perspectiva crítica adota o modelo
ideológico e compreende o letramento por meio de práticas concretas e sociais,
de maneira que resultam da cultura, da história e dos discursos.
De um ponto de vista mais amplo a leitura e a escrita em sua
natureza social e o caráter múltiplo e diverso das práticas letradas constituem-
se a partir de perspectivas transculturais, fazendo com que vejamos:
[...] as práticas de letramentos como múltiplas e historicamente situadas. Longe de serem homogêneas, pois modeladas e construídas culturalmente, são marcadas pela heterogeneidade e estão relacionadas aos papéis e aos lugares sociais que ocupamos, ou somos impelidos a ocupar na sociedade (SOUZA, 2011, p.34).
A perspectiva social ou letramento ideológico, enfatizado por Street
e base para o presente trabalho, se constitui em oposição ao letramento numa
perspectiva autônoma. Nessa nova possibilidade de tratar os usos da
linguagem “as práticas de leitura e escrita estão sempre inseridas não só em
significados culturais, mas em alegações ideológicas sobre o que conta como
‘letramento’ e nas relações de poder a ele associadas” (STREET, 2014, p.13).
A vertente teórica que tende a realizar considerações mais amplas a
cerca das práticas de leitura e escrita denominada Letramentos Críticos
constitui-se como uma prática social e transcultural e ao adotar o modelo
ideológico:
[...] força a pessoa a ficar mais cautelosa com grandes generalizações e pressupostos acalentados acerca do letramento ‘em si mesmo’. Aqueles que aderem a este segundo modelo se concentram em práticas sociais específicas de leitura e escrita (STREET, 2014, p.44).
O autor citado anteriormente enfatiza a necessidade de
constantemente fazermos uso do que denomina reflexividade por meio da qual
é possível refletir de forma dialógica a respeito das interações que emergem de
uma determinada prática social. No campo educacional, o modelo ideológico
de letramento permite, inclusive, refletir acerca do padrão de ensino oferecido e
o seu papel no controle social e na hegemonia de uma classe dominante.
Percebemos no pensamento de Street influências de fonte freiriana,
na medida em que salienta o poder de transformação da condição social do
63
interlocutor por meio da capacidade de renegociar significados na luta pelo
poder.
Embora Freire (1987, 1997) não tenha usado o termo letramentos,
sua concepção de linguagem transpassa as práticas sociais. Estas possibilitam
aos agentes, usuários da linguagem, transformar a sua própria condição social,
isto é, promover ações e deslocamentos com escolhas informadas visando à
mobilidade social. Nesse sentido, constrói-se uma relação, a do eu com os
outros, implicando na responsabilidade incomensurável que esse eu tem pelo
outro e por si mesmo, inclusive no processo de libertação.
Assim, por meio de uma concepção mais ampla, envolvendo
práticas ideológicas, os novos estudos do letramento dispensam as
explicações universalistas acerca da língua oral e escrita e passam a
considerar as diferenças com base no contexto. De maneira que:
Nessa perspectiva, a relação entre língua escrita e língua oral difere segundo o contexto – não existe nenhuma explicação universal sobre ‘o oral’ e ‘o escrito’. As condições sociais e materiais afetam (se é que não determinam) a significação de uma dada forma de comunicação, e é inadequado (se não impossível) deduzir do mero canal quais serão os processos cognitivos empregados ou as funções que serão atribuídas à prática comunicativa (STREET, 2014, p.17).
O letramento além de ser concebido como um fenômeno de
natureza social possui um caráter múltiplo, situado e com interesses
específicos. Por isso, a necessidade de refletir sobre a hegemonia da escrita
sobre a fala e tentar construir a presente pesquisa colocando os textos
selecionados para análise, sejam os oriundos da escrita ou os provenientes da
fala, em um mesmo patamar de importância para compreensão da realidade.
A nova visão de letramento numa perspectiva crítica seguindo o
modelo ideológico proposto por Street (2014) ao reconhecer a multiplicidade de
práticas letradas em vez de supor um letramento único possibilita uma abertura
para que as ideologias contra-hegemônicas ganhem espaço, aumentando as
possibilidades de se estabelecer padrões identitários de resistência e/ou de
projetos, contribuindo para os processos de emancipação/libertação via usos
da linguagem, promovendo a descolonialidade do saber, do ser e do poder.
Os letramentos críticos assumem linguagem, identidade,
conhecimento, cultura, poder, ensino-aprendizagem e realidade como noções
64
que se modificam e se apresentam ideologicamente, fazendo com que estejam
sujeitos às constantes reinterpretações.
A linguagem, enquanto complexo social, também se modifica, não
captando completamente a realidade devido a sua natureza heterogênea e
dinâmica, como afirma Bakhtin (2000). Ao contrário, ela constrói e reconstrói
realidades de forma pluralizada.
Quanto ao conhecimento, esse é sempre reconstruído localmente e
nunca está pronto como um produto fechado. É, antes, um processo
incompleto e gerador de constantes modificações influenciado por uma gama
de valores culturais, políticos, econômicos e sociais, que também são passíveis
de mudanças.
Diante disso, cada contexto exigirá um trabalho com um letramento
específico, apropriado, de maneira que a opção é uma decisão política e jamais
neutra. Cada população local possui suas práticas letradas anteriores a
execução de qualquer programa para elevação da escolaridade, e essas não
podem ser desvalorizadas e marginalizadas pelo padrão a ser introduzido.
Com isso, questionamos a respeito das escolhas em relação à
vertente do letramento que vem norteando as propostas e práticas
educacionais voltadas para os moradores do campo, pois as mudanças
operadas em programas educacionais podem atingir profundamente as raízes
de crenças culturais, as quais, também, são reinventadas nas práticas
cotidianas.
Assim, leitura e a escrita jamais devem ser percebidas apenas como
meras habilidades técnicas, precisam, na verdade, ser vistas como um
conjunto específico de convenções próprias de uma cultura, de maneira que “o
letramento, portanto, não precisa ser associado com escolarização ou com
pedagogia” (STREET, 2014, p.127).
Ao considerar as diversas variedades de letramentos podemos
entender os ricos e plenos significados das práticas letradas na sociedade
contemporânea, inclusive as dos moradores do campo.
65
3.1.3 Letramentos da população camponesa
Em consonância com Street (2014, p. 140), defendemos que, em
alguns contextos, a concepção de letramento relacionada à escolarização e à
pedagogia está transformando a rica variedade de práticas letradas existentes
nas comunidades em uma prática única, homogeneizada.
No contexto educacional camponês, podemos encontrar formas de
resistência e letramentos alternativos ao lado das práticas letradas já
escolarizadas. Na presente pesquisa, entendemos o letramento como uma
interface entre linguagem e (des)colonialidade, pois os usos sociais que
fazemos da linguagem por meio das práticas de letramento podem contribuir
tanto para manutenção quanto para transformação da realidade.
A contribuição desta pesquisa será evidenciar as práticas
linguísticas dos moradores do campo presentes nos letramentos, com isso,
estaremos dando o primeiro passo para “modificar as práticas linguísticas, para
não reproduzir o ciclo de opressão, evitando assim que nossas palavras
contribuam para discriminar os mais fracassados” (MAGAGALHÃES, 2012,
p.62) dentro do atual sistema de sociabilidade.
As práticas de letramento inerentes aos moradores do campo, sejam
elas de origem autônoma ou ideológica, mantém relação direta com os
modelos de identidades propostos por Castells (2009) - identidade
legitimadora, identidade de resistência e identidade de projeto.
Isso se confirma ao considerarmos que letramentos, para além de
ler e escrever, se constitui como “um conjunto de práticas sociais, cujos modos
específicos de funcionamento têm implicações importantes para as formas
pelas quais os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de
identidade e de poder” (KLEIMAN, 1995, p.11, apud. SOUZA, 2011, p.35).
Assim, as práticas discursivas cotidianas assumem grande
importância para o desenvolvimento dos letramentos nos diversos contextos,
inclusive entre os moradores do campo.
Nesse contexto, quais letramentos vem se formando e/ou se
fortalecendo dentro da nova realidade, o Projovem Campo – Saberes da Terra
e como as identidades vem se reconfigurando nesse contexto, que ao mesmo
tempo sofre movimentos de colonialidade e de descolonialidade?
66
Uma característica marcante da cultura camponesa é a forte
presença da oralidade, a palavra falada, ainda tem intensa influência na vida
dos moradores e das moradoras do campo. Nesse universo convivem práticas
letradas oriundas do contexto escolar com aquelas produzidas no cotidiano.
Como o Programa a que nos propomos analisar está inserido em
uma realidade diversa, o campo, coadunamos com o pensamento de que:
No que se refere a ler, escrever e interpretar textos ou usar a oralidade letrada, de acordo com os cânones escolares, os jovens nem sempre são considerados como usuários autônomos da língua escrita. No entanto, fora da escola, existem situações outras – ainda que nem sempre reconhecidas ou autorizadas – que se realizam nas mais diversas esferas de atividade: a casa, a rua, o trabalho, a religiosidade. Espaços que ganham diferentes sentidos e apresentam distintas formas de engajar os sujeitos ou grupos sociais. Por isso, os letramentos são múltiplos e, além disso, são críticos, pois englobam usos tão variados quantas são as finalidades dessas práticas (SOUZA, 2011, p.36).
Considerando que os integrantes do Projovem Campo – Saberes da
Terra são jovens de 18 a 29 anos, apreendemos que ao analisar suas práticas
de linguagem por meio dos eventos de letramento, poderemos contribuir para
desconstrução dos discursos já cristalizados e ampliar a valorização das
práticas letradas para além daquelas sistematizadas pela escola.
Para isso, realizamos uma análise integrando a Teoria Social do
Letramento de Street à Teoria Social do Discurso de Fairclough, possibilitando
a compreensão de que a articulação de discursos distintos é central para
perceber a presença dos letramentos no cotidiano dos diversos sujeitos, assim
como os impactos do letramento na legitimação, resistência e/ou
(re)constituição das identidades dos moradores do campo.
67
4 ESTUDOS DA LINGUAGEM NA PERSPECTIVA CRÍTICA
Neste capítulo, delineamos o objeto que é o fio condutor desta
pesquisa, a linguagem. Em todo o trabalho ela, é tratada numa perspectiva
crítica e aqui nos detemos a especificamente às abordagens que melhor
viabilizam isso. A seção 4.1, contém uma introdução aos estudos críticos da
linguagem. Na seção 4.2, expomos os desdobramentos da Teoria Social do
Discurso, enfatizando o modelo tridimensional proposto por Fairclough(2001).
Em 4.3, realizamos uma abordagem da Análise de Discurso Crítica,
enfatizando os três principais tipos de significados que atuam simultaneamente
no discurso e destacando três categorias de análise, uma correspondendo a
cada significado. Por fim, em 4.4, como a discussão das categorias de análises
tem como ponto central o significado identificacional, tratamos da construção
identitária enquanto processo de identificação.
4.1 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CRÍTICOS DA LINGUAGEM
Levando em conta as reflexões empreendidas até aqui, nas quais
objetivamos desvelar um pouco da realidade que envolve a vida dos moradores
do campo, passamos agora à discussão do escopo teórico que orientará a
análise dos textos que constituem nosso corpus.
A Análise do Discurso Crítica (ADC) é uma abordagem teórico-
metodológica de estudo da linguagem em sociedade. O primeiro ponto
relevante em relação à ADC é que ela assume que todos os discursos são
historicamente situados, razão pela qual o estudo de textos e de outras
manifestações linguísticas tem como imperativo a necessidade de se conhecer
a fundo o contexto no qual são produzidos.
Nesta seção, traçaremos um panorama geral dessa abordagem
teórica, indicando suas influências e principais características. Em nossa
análise posterior, essa fundamentação será primordial, como suporte para as
reflexões, mas também como modelo metodológico.
Serão utilizadas as categorias demandadas por cada texto, sendo
que ao nos referirmos a identidades, a ênfase recairá, obrigatoriamente, sobre
o significado Identificacional, mas como os significados possuem uma relação
68
dialética, tomamos como principais categorias de análise a intertextualidade, a
representação de atores sociais e a avaliação.
Nessa abordagem, a linguagem possa a ser tratada como ação
(Austin, 1962) e como forma de vida (Wittgenstein, 1958), o que nos permite
considerar que as diversas práticas sociais que a constituem, e que também
são constituídas por ela, precisam ser analisadas a partir das perspectivas
etnográfica, discursiva e descolonial, pois possibilitam estudar a significação
por meio de uma abordagem situada, crítica e libertadora dos estudos
linguísticos.
A partir desse pressuposto, entendemos que uma abordagem
teórico-metodológica capaz de dar conta da língua em uso necessita constituir-
se em um enfoque interdisciplinar, capaz de operacionalizar conceitos e
práticas oriundos da Linguística e das Ciências Sociais. Discutimos, portanto, a
teoria e o método em ADC para o estudo das práticas discursivas do contexto
educacional a partir das considerações teóricas de Resende e Ramalho (2006)
e Fairclough (2001).
Entendendo que discurso e prática social se constituem como
conceitos básicos da teoria em ADC, torna-se possível localizá-la entre os
discursos teóricos da linguística contemporânea, destacando as relações entre
discurso e poder.
A maneira como as práticas discursivas se configuram no âmbito
social pode contribuir para reprodução ou transformação do sujeito social e
consequentemente do atual estado de sociabilidade. Mais do que reproduzir as
práticas sociais e as ideologias, a linguagem, materializada nos discursos,
pode configurar-se como um mecanismo de transformação social.
Ao mesmo tempo em que a estrutura social edifica o discurso, ele se
configura como elemento constitutivo da estrutura social, possibilitando uma
relação dialética entre discurso e práticas social.
Ao destacarmos as práticas discursivas do campo educacional, no
caso, o Projovem Campo – Saberes da Terra, torna-se eminente discutir a
serviço de quem estão as transformações propostas e os processos de
identificação. Para isso, é preciso construir uma visão crítica acerca do papel
da linguagem na manutenção ou desconstrução da hegemonia das ideologias
de determinados grupos sociais em detrimento de outros.
69
No caso da realidade brasileira, esse processo se intensifica em
decorrência de fatores que expressam processos de dominação endógena e
exógena, os quais são materializados por meio da distinção das classes
sociais, etnia, gênero, chegando à separação dos indivíduos em letrados e
analfabetos, prevalecendo um processo de supervalorização dos primeiros e
manipulação dos segundos.
Diante disso, a transformação ou a manutenção das práticas sociais
passa, necessariamente, pela transformação das práticas linguísticas, o
problema é que as vezes aquilo que é visto como mudança não implica
necessariamente em processos emancipatórios, ao contrário, configura-se
como ações superficiais que possibilitam a rearticulação das práticas sociais
conservadoras, mantendo grupos específicos no poder. Seria esse o caso do
Projovem?
Como as mudanças no uso linguístico estão ligadas a processos
sociais e culturais e como, consequentemente, as mudanças sociais resultam,
em parte, dos usos linguísticos, configurando um processo dialético, podemos
utilizar a análise da linguagem por meio dos discursos como um método para
entender a mudança social.
Isso denota a necessidade de se compreender a Teoria Social do
Discurso - TSD proposta por Norman Fairclough (2001), pois ele constituiu uma
abordagem interdisciplinar de análise teoricamente adequada e viável na
prática, possibilitando investigar as práticas discursivas de maneira crítica e
situada por meio do estudo das mudanças na linguagem e nos aspectos social
e cultural, fatores aos quais as mudanças no uso linguístico estão relacionadas.
De acordo com Fairclough (2001), a TSD reconhece a importância
que a linguagem tem na vida social e configura-se como uma possibilidade
teórica de síntese entre os estudos linguísticos e a teoria social. Para esse fim,
o teórico em questão propõe uma análise de discurso de cunho tridimensional,
ao postular que todo evento discursivo é simultaneamente: um texto, uma
prática discursiva e uma prática social. É importante entendermos que:
[...] qualquer ‘evento’ discursivo (isto e, qualquer exemplo de discurso) é considerado como simultaneamente um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social. A dimensão do ‘texto’ cuida da análise linguística de textos. A dimensão da ‘pratica discursiva’, como ‘interação’, na concepção ‘texto e
70
interação’ de discurso, especifica a natureza dos processos de produção e interpretação textual - por exemplo, que tipos de discurso (incluindo ‘discursos’ no sentido mais socioteórico) são derivados e como se combinam. A dimensão de ‘pratica social’ cuida de questões de interesse na analise social, tais como as circunstâncias institucionais e organizacionais do evento discursivo e como elas moldam a natureza da prática discursiva e os efeitos constitutivos/construtivos referidos anteriormente (FAIRCLOUGH, 2001, p.22).
Realizar análise de discurso numa perspectiva tridimensional, mais
do que tratar os aspectos linguísticos integrados ao social e ao cultural, é uma
atitude crítica que atribui à linguagem um lugar mais central na vida social,
reconhecendo a importância social da linguagem, pois mesmo que as
mudanças sociais não envolvam só a linguagem, elas são construídas por meio
de mudanças nas práticas linguísticas.
As tentativas de mudança nos aspectos social e cultural pressupõem
mudanças nas práticas de linguagem, inclusive, no âmbito das práticas
educacionais, para que isso ocorra se torna necessário:
[...] o desenvolvimento prático de uma consciência linguística crítica ou uma prática de intervenção que possa contribuir para a transformação social, através da educação linguística de nossos alunos e do fortalecimento das práticas discursivas libertadoras em nossas comunidades (ALENCAR, 2009, p.18).
Nessa perspectiva, ao considerarmos a análise de discurso como
uma área bastante diversificada e com abordagens variadas, nos posicionamos
teoricamente na linha teórica proposta por Fairclough (2001) ao selecionar
abordagens que, de algum modo, combinam a análise detalhada de textos
linguísticos com uma orientação social para o discurso.
Para isso, divide os enfoques teóricos de acordo com sua orientação
social para o discurso, constituindo dois grupos com posicionamentos distintos
em relação ao mesmo objeto. Assim, distingue as abordagens não-críticas e
críticas, postulando que:
Tal divisão não é absoluta. As abordagens críticas diferem das abordagens nao-críticas não apenas na descrição das práticas discursivas, mas também ao mostrarem como o discurso é moldado por relações de poder e ideologias e os efeitos construtivos que o discurso exerce sobre as identidades sociais, as relações sociais e os sistemas de conhecimento e crença, nenhum dos quais e normalmente aparente para os participantes do discurso. As
71
abordagens que classifiquei como basicamente nao-críticas são: os pressupostos para a descrição do discurso de sala de aula, de Sinclair e Coulthard (1975); o trabalho etnometodológico da ‘analise da conversação’; o modelo de discurso terapêutico de Labov e Fanshel (1977); e uma abordagem recente da analise de discurso desenvolvida pelos psicólogos sociais Potter e Wetherell (1987). As abordagens críticas que incluí são: a ‘linguística crítica’, de Fowler et al. (1979), e a abordagem francesa da analise de discurso desenvolvida com base na teoria de ideologia de Althusser por Pecheux (Pecheux, 1982) (FAIRCLOUGH, 2001, p.31-32).
Salienta-se que não será realizado um panorama das abordagens
não-críticas e críticas citadas a priori porque o presente estudo adota um
enfoque teórico construído a partir das questões-chave retiradas das diversas
possibilidades da análise de discurso inerentes às duas abordagens, trata-se
de uma nova e mais completa possibilidade de análise de discurso numa
perspectiva crítica proposta por Norman Fairclough, pois configura-se como a
construção de uma síntese de concepções de discurso social e
linguisticamente orientadas, constituída pelas dimensões textual, discursiva e
social.
Fairclough realiza uma síntese das abordagens críticas e não-
críticas, reunindo um conjunto de afirmações que podem ser julgadas
desejáveis para uma abordagem crítica adequada à análise de discurso.
Ao final, considera que, mesmo diante do importante legado dessas
duas linhas teóricas, é necessário fortalecer a tradição de análise de discurso
por meio da adoção de pressupostos da linguagem e do discurso na teoria
social, pois o discurso contribui tanto para a reprodução como para a
transformação das sociedades. A dualidade crítica e não-crítica assumirá
importância central na perspectiva teórica tridimensional de Fairclough, daí o
presente estudo tê-la como princípio norteador.
Vale destacar que as abordagens numa perspectiva crítica
encontram seu ápice em Fairclough, que a partir da década de setenta,
desenvolveu uma forma de análise do discurso e do texto que identificava o
papel da linguagem na estruturação das relações de poder na sociedade, a
Teoria social do Discurso. Assim é preciso entender que:
Diante do fato de existirem diferentes abordagens de análises críticas da linguagem, o representante que se destaca na ADC é Norman Fairclough, a ponto de se ter convencionado chamar sua proposta teórico- metodológica, a Teoria Social do Discurso, de ADC – Análise
72
de Discurso Crítica – mas vale ressaltar que os estudos em ADC não se limitam ao trabalho de Fairclough (LOPES, 2009, p. 15).
Anterior à década de setenta destacam-se dois movimentos que
consolidaram os estudos sobre a importância das mudanças sociais como
perspectiva de análise. Na Grã-Bretanha, um grupo de linguistas desenvolveu
uma “Linguística Crítica”, ao articular as teorias sobre ideologias aos estudos
do texto, tendo como contribuição o destaque dado à análise linguística, porém,
é limitada porque dá pouca ênfase nos conceitos de ideologia e poder.
Já na França, Pêcheux e Jean Dubois desenvolveram uma
abordagem da análise de discurso, tendo por base, especialmente, o trabalho
do linguista Zelling Harris e a reelaboração da teoria marxista sobre a ideologia,
feita por Althusser, que ficou conhecida como Análise do Discurso Francesa
(ADF). A abordagem em questão enfatiza a perspectiva social, relegando a
análise linguística a um segundo plano.
Ao mostrar que as lutas e as transformações de poder não
receberam a atenção necessária tanto nos estudos críticos realizados na Grã-
Bretanha quanto nos que se desenvolveram na França, Fairclough constrói
uma crítica a essas duas vertentes de abordagens de análise de discurso e
passa a considerar a linguagem em si e seu papel, no processo dialético de
constituição, manutenção ou transformação das estruturas sociais,
apresentando, assim, a sua Teoria Social do Discurso.
4.2 TEORIA SOCIAL DO DISCURSO
Após identificar várias realizações e limitações das análises teóricas
crítica e não crítica, Fairclough propõe uma concepção de discurso e um
quadro teórico para análise de discurso, no qual busca:
[...] reunir a analise de discurso orientada linguísticamente e o pensamento social e político relevante para o discurso e a linguagem, na forma de um quadro teórico que será adequado para uso na pesquisa cientifica social e, especificamente, no estudo da mudança social (FAIRCLOUGH, 2001, p.89).
Assim, Fairclough (2001) realiza uma discussão sobre o termo
discurso, em seguida, analisa o discurso num quadro tridimensional composto
73
por texto, prática discursiva e prática social, e finaliza estabelecendo uma
abordagem apropriada para investigar criticamente a mudança discursiva e sua
relação com a mudança social e cultural. Esta será, também, a base para o
percurso traçado daqui por diante.
Considerando que o uso da linguagem contribui significativamente
para a constituição, reprodução e mudança da sociedade, entendemos que
propriedades do uso da linguagem como as relações entre classes, a
articulação das instituições para formação social, interferem diretamente na
estrutura social, fazendo com que o discurso seja socialmente constituído.
O termo discurso é utilizado por Fairclough (2001, p. 90)
considerando “o uso de linguagem como forma de pratica social e não como
atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais”. Isso tem
várias implicações.
Primeiro, implica ser o discurso uma forma de ação, na qual as
pessoas podem agir sobre o mundo e sobre os outros, como também um modo
de representação. Segundo, sugere uma relação dialética, entre o discurso e a
estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre prática social e
estrutura social.
Por outro lado, além do discurso ser um elemento de constituição,
reprodução e mudança da sociedade, ele é moldado, restringido e constituído
dentro da estrutura social. Assim, considera-se o discurso como uma entidade
socialmente constituída, fazendo com que a formação discursiva de objetos,
sujeitos e conceitos adquira importância ao reconhecer que:
O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado (FAIRCLOUGH, 2001, p.91)
A partir desses pressupostos, distinguem-se três aspectos dos
efeitos construtivos do discurso: em primeiro lugar, coopera para a construção
do que variavelmente é referido como identidades sociais e posições de sujeito
para os sujeitos sociais e os tipos de eu; em segundo lugar, o discurso contribui
74
para construir as relações sociais entre as pessoas; por fim, o discurso
colabora para a construção de conhecimento e crença.
Esses aspectos coexistem em todo discurso, possibilitando que as
relações entre discurso e estrutura social sejam consideradas como dialéticas,
e correspondam respectivamente a três funções da linguagem identitária,
relacional e ideacional, as quais são significadas considerando que:
A função identitária relaciona-se aos modos pelos quais as identidades sociais são estabelecidas no discurso, a função relacional a como as relações sociais entre os participantes do discurso são representadas e negociadas, a função ideacional aos modos pelos quais os textos significam o mundo e seus processos, entidades e relatos (FAIRCLOUGH, 2001, p.92).
O percurso e as mudanças teóricas sofridos por essas funções será
melhor discutido ao abordarmos a construção dos significados em substituição
às funções. Por enquanto, basta considerarmos a relação entre discurso e
estrutura social como dialética e entender que a constituição discursiva da
sociedade não surge de uma atividade idealista, realizada na mente dos
falantes, mas de uma prática social que está firmemente enraizada em
estruturas sociais materiais, concretas orientando-se para elas.
Sabendo que em uma perspectiva dialética a prática social possui
diversas orientações – econômica, política, cultural, ideológica – mas é o
discurso como prática política e ideológica que norteia este estudo, uma vez
que:
O discurso como prática política estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) entre as quais existem relações de poder. O discurso como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder (FAIRCLOUGH, 2001, p.94).
Assim, ao considerar que a ideologia são os significados construídos
nas relações de poder como dimensão do exercício do poder e da luta pelo
poder, enfatizamos que a prática política e ideológica são interdependentes.
Isso faz com que os discursos precisem ser analisados nas práticas
discursivas, pois elas os compreendem em três dimensões: discurso como
75
texto, discurso como prática discursiva, discurso como prática social. A referida
concepção de discurso é representada da seguinte maneira:
Figura 1 - Concepção tridimensional de discurso
Fonte: FAIRCLOUGH (2001, p. 101).
Ao remeter-se ao discurso como texto, o autor citado a priori
defende que a análise textual deve estar voltada para o vocabulário, o qual
pode ser considerado e analisado de diversas maneiras.
A língua não pode ser concebida numa perspectiva reducionista, em
que o vocabulário válido seja somente aquele encontrado no dicionário, uma
vez que na prática discursiva há uma variedade de vocabulários concorrendo
entre si, e cada vocabulário representa domínios sociais específicos.
Adotando essa concepção de língua, torna-se mais coerente falar
em lexicalização e significação do que em vocabulário, pois tais termos indicam
a constituição de sentidos que ocorrem diferentemente em tempos e épocas
por grupos distintos. Diante disso, é preciso entender que:
Um foco de análise recai sobre as lexicalizações alternativas e sua significância política e ideológica, sobre questões, tais como a ‘relexicalização’ dos domínios da experiência como parte de lutas sociais e políticas, ou como certos domínios são mais intensivamente lexicalizados do que outros. Outro foco é o sentido da palavra, particularmente como os sentidos das palavras entram em disputa dentro de lutas mais amplas. Um terceiro foco recai sobre a metáfora, sobre a implicação política e ideológica de metáforas particulares e sobre o conflito entre metáforas alternativas (FAIRCLOUGH, 2001, p.105).
A análise textual, ao considerar o vocabulário, deve focar também no
sentido da palavra, pois os sentidos construídos para as palavras entram em
disputas, fazendo com que as formas de hegemonia se configurem a partir das
relações entre palavras e das relações entre os sentidos. O terceiro foco é
76
referente à metáfora, considerando sua implicação política ideológica e seus
aspectos conflitivos.
Além do vocabulário, outro fator relevante é a estrutura textual, a
qual ao referir-se à arquitetura do texto trata, especificamente, da maneira
como se planeja a escritura dos diferentes tipos de textos. Ao planejar o que
será escrito é que se decidem as maneiras e a ordem, configurando então a
estrutura através de elementos linguísticos, gerando diversos tipos de textos
para atender objetivos específicos.
Fairclough (2001, p.106) defende, ainda, que “tais convenções de
estruturação podem ampliar a percepção dos sistemas de conhecimento e
crença e dos pressupostos sobre as relações sociais e as identidades sociais
que estão embutidos nas convenções dos tipos de texto”.
Já o discurso como prática discursiva considera os processos de
produção, distribuição e consumo textual. Como os textos são produzidos de
maneiras particulares em contextos sociais específicos, a natureza dos
processos entre diferentes tipos de discursos, de acordo com fatores sociais, é
variável.
Na abordagem crítica, o conceito de produtor de texto é concebido
como um conjunto de posições que pode ser ocupado pela mesma pessoa ou
por pessoas diferentes, o que dificulta estabelecer tal conceito. Goffman (apud
FAIRCLOUGH 2001, p.107), “sugere uma distinção entre ‘animador(a)’, a
pessoa que realmente realiza os sons ou as marcas no papel; ‘autor(a)’,
aquele(a) que reúne as palavras e é responsável pelo texto; e ‘principal’,
aquele(a) cuja posição é representada pelas palavras”.
Partindo do pressuposto defendido por Fairclough (2001) de que não
se leem receitas como textos estéticos ou artigos acadêmicos como textos
retóricos, embora ambos os tipos de leitura sejam possíveis, entende-se que a
Teoria Social do Discurso considera que os textos são consumidos de acordo
com os contextos sociais em que eles forem explorados, ou seja, a partir do
tipo de trabalho interpretativo que neles se aplica e com os modos de
interpretação disponíveis.
Fica claro que não se leem receitas como textos estéticos ou artigos
acadêmicos como textos retóricos, embora ambos os tipos de leitura sejam
possíveis. E, como as instituições possuem rotinas específicas para o
77
processamento de textos, tanto o consumo como a produção pode ser
individual ou coletivo.
Os processos de produção, distribuição e consumo são variáveis
porque alguns textos são registrados, outros não são, há os que são
transformados em outros textos e, além disso, os textos apresentam resultados
variáveis de natureza extradiscursiva, como também discursiva. “Alguns textos
conduzem a guerras ou à destruição de armas nucleares; outros levam as
pessoas a perder o emprego ou a obtê-lo; outros ainda modificam as atitudes,
as crenças ou as práticas das pessoas” (FAIRCLOUGH, 2001 p.108).
Sabendo que há dimensões sóciocognitivas específicas de produção
e interpretação textual, entende-se, segundo Fairclough (2001), que os
processos de produção e interpretação são socialmente restringidos num
sentido duplo:
Primeiro, pelos recursos disponíveis dos membros, que são estruturas sociais efetivamente interiorizadas, normas e convenções, como também ordens de discurso e convenções para a produção, a distribuição e o consumo de textos do tipo já referido e que foram constituídos mediante a prática e a luta social passada. Segundo, pela natureza específica da prática social da qual fazem parte, que determina os elementos dos recursos dos membros a que se recorre e como (de maneira normativa. criativa, aquiescente ou opositiva) a eles se recorre (FAIRCLOUGH 2001, p.109).
Isso implica que, necessariamente, tanto o efeito de uma produção
quanto o de uma interpretação textual será sempre dependente do contexto
situacional cujo texto está inserido.
Dentre as sete dimensões de análise acerca da prática discursiva –
lexicalização, sentido da palavra, metáfora, coesão, força, coerência,
intertextualidade – merece destaque a intertextualidade, por ser “[...]
basicamente a propriedade que tem os textos de ser cheios de fragmentos de
outros textos, que podem ser delimitados explicitamente ou mesclados e que o
texto pode assimilar, contradizer, ecoar ironicamente, e assim por diante”.
(FAIRCLOUGH 2001, p.114).
A partir dessa propriedade inerente aos textos, o referido autor faz
uma distinção entre ‘intertextualidade manifesta’, em que, no próprio texto, se
recorre a outros textos específicos, elucidando a presença de diversas vozes,
de maneira que a constituição heterogênea de textos ocorre por meio de outros
78
textos específicos, e a ‘interdiscursividade’ ou ‘intertextualidade discursiva’, na
qual a intertextualidade é tratada a partir do primado da ordem de discurso,
aqui, a constituição heterogênea de textos ocorre por meio de tipos de
convenção das ordens de discurso.
Ao tratar do discurso como prática social, Fairclough (2001) explica
aspectos relevantes da terceira dimensão da sua teoria tridimensional. Para
isso, discute o conceito de discurso em relação à ideologia e ao poder e situa o
discurso em uma concepção de poder como hegemonia e em uma concepção
da evolução das relações de poder como luta hegemônica.
Ao discutir sobre a ideologia como um importante conceito para a
constituição de um campo interdisciplinar para a Análise de Discurso Crítica,
Fairclough (2001) reconhece na leitura que Althusser fez de Marx as bases
teóricas para o debate. Para isso, parte de três asserções sobre ideologia.
Na primeira, ele afirma que a ideologia tem existência material nas
práticas institucionais, abrindo caminho para investigar as práticas discursivas
como formas materiais de ideologia.
Na segunda, defende que a ideologia ‘interpela os sujeitos’, que
conduz à concepção de que um dos mais significativos ‘efeitos ideológicos’ é a
constituição dos sujeitos.
Por último, preconiza que os ‘aparelhos ideológicos de estado’
(instituições tais como a educação ou a mídia) são locais e limites
delimitadores na luta de classe e que apontam para a luta no discurso e
subjacente a ele como um ponto de convergência para uma análise de discurso
orientada ideologicamente. Diante disso, defende-se que:
[...] as ideologias são significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação. [...] As ideologias embutidas nas práticas discursivas são muito eficazes quando se tornam naturalizadas e atingem o status de ‘senso comum’; mas essa propriedade estável e estabelecida das ideologias não deve ser muito enfatizada, porque minha referência a ‘transformação’ aponta a luta ideológica como dimensão da prática discursiva, uma luta para remoldar as práticas discursivas e as ideologias nelas construídas no contexto da reestruturação ou da transformação das relações de dominação. Quando são encontradas práticas discursivas contrastantes em um domínio particular ou instituições, há
79
probabilidade de que parte desse contraste seja ideológica (FAIRCLOUGH, 2001, p.117).
Diante disso, considera-se que a ideologia investe a linguagem de
várias maneiras e em vários níveis, constituindo-se tanto como uma
propriedade de estruturas quanto uma propriedade de eventos, ou seja, ela
está localizada nas ordens de discurso e nos eventos quando esses
reproduzem e transformam as estruturas condicionadoras.
Perceber esse fenômeno numa perspectiva dialética privilegiando o
aspecto da transformação ideológica e não a da reprodução constitui-se como
a base da Análise Crítica de Discurso.
Neste trabalho, a ideologia é entendida como “uma orientação
acumulada e naturalizada que é construída nas normas e nas convenções,
como também um trabalho atual de naturalização e desnaturalização de tais
orientações nos eventos discursivos.” (FAIRCLOUGH, 2001, p.119). Isso faz
com que os aspectos ou níveis do texto e do discurso, que podem ser
investidos ideologicamente, sejam entendidos como questões essenciais
acerca da ideologia, de maneira que:
Não se deve pressupor que as pessoas tem consciência das dimensões ideológicas de sua própria prática. As ideologias construídas nas convenções podem ser mais ou menos naturalizadas e automatizadas. E as pessoas podem achar difícil compreender que suas práticas normais poderiam ter investimentos ideológicos específicos. Mesmo quando nossa prática pode ser interpretada como de resistência, contribuindo para a mudança ideológica, não estamos necessariamente conscientes dos detalhes de sua significação ideológica. Essa é uma razão para se defender uma modalidade de educação linguística que enfatize a consciência crítica dos processos ideológicos no discurso, para que as pessoas possam tornar-se mais conscientes de sua própria prática e mais críticas dos discursos investidos ideologicamente a que são submetidas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 120).
Mesmo sendo posicionados ideologicamente, os sujeitos são
capazes de agir criativamente por meio da realização das suas próprias
conexões entre as diversas práticas e ideologias a que são expostos e de
reestruturar as práticas e as estruturas posicionadoras, configurando um
processo dialético entre as práticas e as ideologias.
Em se tratando das práticas discursivas esse processo se torna mais
dinâmico e diverso, uma vez que a linguagem, materializada nos discursos, é
80
algo vivo, e ao mesmo tempo que transforma a sociedade, é, também,
transformada por ela. Assim, as práticas discursivas são investidas
ideologicamente à medida que incorporam significações que contribuem para
manter ou reestruturar as relações de poder.
Fairclough (2001, p. 121) postula que “[...] nem todo discurso é
irremediavelmente ideológico. As ideologias surgem nas sociedades
caracterizadas por relações de dominação com base na classe, no gênero
social, no grupo cultural”.
A constituição de um campo interdisciplinas para a Análise de
Discurso Crítica, também recebe contribuições das discussões acerca do
conceito de hegemonia. Considerando os pressupostos de Gramsci, Fairclough
(2001) preconiza a existência de uma harmonização entre o conceito de
hegemonia e a concepção de discurso que defende.
É por meio do conceito de hegemonia que se constrói um modo de
teorização da mudança em relação à evolução das relações de poder com foco
tanto na mudança discursiva como em processos mais amplos de mudança.
Considerando a hegemonia como “a construção de alianças e a
integração muito mais do que simplesmente a dominação de classes
subalternas, mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seu
consentimento” (FAIRCLOUGH 2001, p.122), entendemos que ela se configura
por meio dos processos de liderança e de dominação nos diversos campos
sociais, sendo muito mais do que a dominação de classes subalternas, é um
foco de constante luta sobre pontos de maior instabilidade entre classes e
blocos para construir, manter ou romper alianças e relações de dominação
materializadas por meios econômicos, políticos e ideológicos.
Vale ressaltar que ideologia refere-se a uma concepção do mundo, e
aparece implícita nas instituições sociais – sindicatos, famílias, escolas,
movimentos sociais, tribunais de justiça, conselhos – servindo de sustentáculo
para as lutas hegemônicas, a qual não se concretiza só por meio das classes
ou organizações da sociedade, mas por meio dos movimentos cotidianos da
vida dos indivíduos.
Em um viés dialético, determinados discursos sustentam a luta
hegemônica e a própria hegemonia passa a sustentar os discursos. Nesse
processo, a hegemonia é uma das formas de poder na sociedade
81
contemporânea, pois além dela temos formas de dominação que se dão por
meio da imposição de regras, normas e convenções, fornece tanto um modelo
como uma matriz.
Tomando como exemplo a educação, base para a constituição do
objeto da presente pesquisa fica visível a constituição de um modelo ao
destacar que:
[...] os grupos dominantes também parecem exercer poder mediante a constituição de alianças, integrando e não simplesmente dominando os grupos subalternos, ganhando seu consentimento, obtendo um equilíbrio precário que pode ser enfraquecido por outros grupos, e fazem isso em parte por meio do discurso e mediante a constituição de ordens discursivas locais. Fornece uma matriz: a obtenção de hegemonia em um nível societário requer um grau de integração de instituições locais e semi-autônomas e de relações de poder, de tal modo que as últimas sejam parcialmente moldadas por relações hegemônicas e lutas locais possam ser interpretadas como lutas hegemônicas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 125).
Em se tratando do quadro tridimensional para análise de discurso,
entendemos que o conceito de hegemonia fornece para o discurso um modelo
e uma matriz. O primeiro é uma forma de analisar a prática discursiva como um
modo de luta hegemônica, o segundo é uma maneira de analisar a prática
social a qual pertence o discurso em termos de relação de poder.
É através da categoria hegemonia que os analistas do discurso
podem analisar se as relações de poder reproduzem, reestruturam ou desafiam
as ordens de discurso existente.
Isso faz com que ganhe ênfase na Análise de Discurso proposta por
Fairclough a mudança discursiva, a qual se configura como a base para a
mudança social e a cultural. O funcionamento do discurso se dá na vida social,
isso faz com que se torne necessário entender como ocorrem os processos de
mudança nos eventos discursivos e também a maneira como os processos de
rearticulação afetam as ordens de discurso.
Considerando o evento discursivo, entendemos que a mudança está
relacionada à problematização das convenções para os produtores ou
interpretes. Ela se materializa nas dimensões textual, discursiva e social, de
maneira que o foco nas mudanças textual e discursiva pode trazer
contribuições significativas aos atuais debates sobre mudança social.
82
Assim, estudar as dimensões discursivas por meio da integração de
perspectivas variadas como Fairclough propõe com seu modelo tridimensional,
constitui-se até o momento como o caminho mais completo para
compreendermos as mudanças sociais e culturais.
4.3 ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA
A Análise de Discurso Crítica se constitui em uma abordagem
teórico-metodológica propícia para estudar a linguagem na contemporaneidade
porque se configura por meio do enfoque transdisciplinar5 e multidisciplinar6.
A linguagem, em um processo dialético, é concebida como parte
constitutiva da vida social, isso faz com que as práticas linguísticas possam ser
estudadas nas diversas práticas da vida social. Diante disso, a linguagem
passa a ser concebida como um espaço de luta hegemônica e as estruturas
linguísticas são usadas como modo de ação sobre o mundo e sobre as
pessoas, pois agimos sobre o outro por meio da linguagem. Ramalho e
Resende (2011, p. 19) afirmam que:
[...] a compreensão do discurso como parte das práticas sociais jamais poderia ter surgido dentro das fronteiras da Linguística, sem apropriação de conceitos e teorias oriundas das ciências sociais. É por isso que o próprio surgimento da ADC nos estudos de linguagem só pode ser compreendido com base em diálogos interdisciplinares.
Através do discurso, podemos intervir ou reproduzir, modificar ou
sustentar as maneiras cristalizadas de ação e interação, pois o discurso,
possuindo uma face linguística e outra social, torna-se uma entidade dialética
moldada pela estrutura social e constitutiva da estrutura social.
A partir desse posicionamento teórico e considerando que a Teoria
Social do Discurso se orienta linguísticamente pela Linguística Sistêmica
Funcional (LSF) de Halliday, Fairclough (2003) propõe a recontextualização da
LSF.
O teórico promove uma operacionalização das macrofunções de
Halliday (1991) para dar origem aos três tipos de significados – acional,
5 Integração global de várias ciências.
6 Justaposição de disciplinas diversas sem aparente relação entre elas.
83
representacional, identificacional – sugeridos em substituição às funções da
linguagem - ideacional, interpessoal e textual. Assim, a LSF é:
[...] uma teoria da linguagem que se coaduna com a ADC, porque aborda a linguagem como um sistema aberto, atentando para uma visão dialética que percebe os textos não só como estruturados no sistema mas também potencialmente inovadores do sistema [...] (RESENDE e RAMALHO, 2006, p.56).
Em consonância com Resende e Ramalho (2006, p.57), entendemos
que a função ideacional da linguagem é sua função de representação da
experiência, um modo de refletir aspectos do real na língua. Já a função
interpessoal se refere ao significado do ponto de vista de sua função no
processo de interação social, tendo a língua como ação. Por fim, a função
textual, na qual aspectos semânticos, gramaticais, estruturais devem ser
analisados no texto com vistas ao fator funcional.
Como todo enunciado é multifuncional em sua totalidade, servindo a
diversas funções, as três macrofunções são inter-relacionadas, tornando
necessário que os textos sejam analisados sob cada um desses aspectos.
A constituição de uma perspectiva multifuncional para analisar a
linguagem coadunando a LSF e a ADC, constitui-se de maneira processual,
pois até chegar aos padrões de análises que adotamos neste trabalho algumas
mudanças foram efetivadas.
Em 1992, na obra Discourse and Social Change, Fairclough, a partir
das funções da linguagem construídas por Halliday – ideacional, interpessoal,
textual – propõe a divisão da função interpessoal em identitária e relacional.
Utilizando seu próprio modelo de recontextualização da LSF na ADC
sistematizado em 1992 – função ideacional, função identitária, função
relacional, função textual – Fairclough (2003) sugeri a utilização de significados
em detrimento das funções. Nesse novo quadro teórico a função ideacional
passa a constituir o significado representacional; a função identitária constitui o
significado identificacional; já as funções relacional e textual passarão a
constituir o significado acional.
Considerando que para a análise de discurso se constituir em um
viés crítico se torna necessária uma abordagem que envolva o macro e o
micro, apreendemos que:
84
[...] a análise de discurso deve ser simultaneamente à análise de como os três tipos de significado são realizados em traços linguísticos dos textos e da conexão entre o evento social e práticas sociais, verificando-se quais gêneros, discursos e estilos são utilizados e como são articulados nos textos (RESENDE e RAMALHO, 2006, p.61).
Por meio do caráter multifuncional dos três significados, o discurso
passa a figurar de três principais maneiras como parte constitutiva das práticas
sociais, na relação entre textos e eventos. Isso configura um modo de agir, de
pensar e de ser, fazendo com que a cada um desses modos de interação entre
discurso e prática social corresponda um tipo de significado – acional,
representacional, identificacional.
Destarte, a Análise de Discurso Crítica pautada no modelo
tridimensional de Fairclough pressupõe a operacionalização dos três
significados, fazendo com que a análise se torne uma espécie de elo entre o
texto em si e o seu contexto social.
Ao consolidar o processo, entendemos como os três tipos de
significados são verificados em traços linguísticos dos textos e como ocorre a
ligação entre evento social e práticas sociais, podendo, assim, compreender
quais gêneros, discursos e estilos são articulados nos textos. Por isso,
passemos a abordagem de cada significado.
Inicialmente, damos ênfase ao significado acional, o qual tem como
foco o texto materializado nos gêneros textuais ou discursivos. Aqui, a
manifestação dos textos se dá por um viés interativo nos diversos eventos
sociais.
A linguagem é concebida como um momento de práticas sociais
dialeticamente ligadas aos demais momentos dessas práticas, nas quais as
ordens de discurso tem um lugar reservado. A linguagem e suas variações são
organizadas socialmente através das ordens de discurso, de maneira que cada
prática social envolvendo a linguagem produz e utiliza gêneros discursivos
particulares, articulando estilos e discursos de maneira relativamente estável
num determinado contexto sócio-histórico e cultural.
85
Textos analisados em eventos sociais, considerando as formas de
ação e interação são entidades empíricas denominadas gêneros discursivos.
Diante disso, torna-se importante entendermos que:
Quando se analisa um texto em termos de gênero, o objetivo é examinar como o texto figura na (inter)ação social e como contribui para ela em eventos sociais concretos. Gêneros específicos são definidos pelas práticas sociais a eles relacionadas e pelas maneiras como tais práticas são articuladas, de tal modo que mudanças articulatórias em práticas sociais incluem mudanças nas formas de ação e interação, ou seja, nos gêneros discursivos, e a mudança genérica frequentemente ocorre pela recombinação de gêneros preexistentes (RESENDE e RAMALHO, 2006, p.62).
Em consonância com os pressupostos teóricos defendidos por
Resende e Ramalho (2006), entendemos que há diversas variações nas
propriedades de gênero.
A primeira é a diferença na escala de atuação, pois, existem gêneros
que atuam na escala local e outros que atuam em escala global; a segunda
refere-se ao grau de estabilização e homogeneização, o que faz com que
determinados gêneros tenham padrões composicionais rigorosos e outros
tenham esses padrões mais flexíveis; a terceira está relacionada com os níveis
de abstração, possibilitando a diferenciação entre os pré-gêneros e os gêneros
situados.
Essa diversidade de variações nas propriedades de gênero faz com
que a estrutura genérica seja uma das principais categorias de análise próprias
do significado acional. Além dessa categoria analítica relacionada a maneiras
de agir discursivamente em práticas sociais, destacamos também a
intertextualidade, pois nos possibilita analisar as vozes que estão incluídas ou
excluídas dos textos analisados.
Na visão de Resende e Ramalho (2006, p.65), a intertextualidade
pode ser entendida como “[...] a combinação da voz de quem pronuncia um
enunciado com outras vozes que lhe são articuladas”. Assim, concordamos
que:
Uma questão inicial no estudo da intertextualidade em um texto é a verificação de quais vozes são incluídas e quais são excluídas, isto é, que ausências significativas podem ser observadas. Em seguida, analisando-se sua presença, é interessante examinar a relação que se estabelece entre as vozes articuladas. Quando uma voz ‘externa’ é
86
articulada em um texto, tem-se (pelo menos) duas vozes que podem representar duas diferentes perspectivas, com seus respectivos interesses, objetivos etc. A relação entre essas vozes pode ser harmônica, de cooperação, ou pode haver tensão entre o texto que relata e o texto relatado (RESENDE E RAMALHO, 2006, p. 65-66).
A inclusão ou exclusão de vozes em um determinado texto denota
questões de poder, coadunando, muitas vezes, com aspectos inerentes à
hegemonia e a ideologias, discutidos anteriormente como conceitos
imprescindíveis para a constituição de um campo interdisciplinar para a Análise
de Discurso Crítica.
Aliado a isso, temos o fato de que a representação do discurso não
se constitui como uma mera questão gramatical. É preciso ir muito além da
identificação dos discursos como direto ou indireto. Trata-se de um processo
ideológico que envolve questões hegemônicas e contra-hegemônicas,
considerando sua relevância ao se propor realizar análise de discurso numa
vertente crítica. Diante disso, percebemos que:
Analisar em textos quais vozes são representadas em discurso direto, quais são representadas em discurso indireto e quais as consequências disso para a valorização ou depreciação do que foi dito e daqueles(as) que pronunciaram os discursos relatados no texto pode lançar luz sobre questões de poder no uso da linguagem (RESENDE E RAMALHO, 2006, p.67).
Ao considerar os estudos de Bakhtin (2002), encontramos como
destaque os aspectos dialógico e polifônico da linguagem. Tais fatores
contribuem para análise da intertextualidade porque todo texto participa de uma
cadeia dialógica respondendo sempre a outros textos e todo discurso presente
nos textos se constitui por meio da articulação das diversas vozes.
Vale salientar que a presença de várias vozes em um texto não
garante a presença das vozes das minorias subalternas, o que faz com que
seja necessário uma análise consistente envolvendo aspectos macro e micro,
ou seja, linguístico e social, pois um texto, ao materializar determinados
discursos torna-se um espaço de disputa pela hegemonia de determinadas
ideologias em detrimento de outras, passando a ser um lócus de agência. Isso
faz com que ganhe relevância as análises que demonstrem de quem são as
vozes que prevalecem nos gêneros discursivos estudados.
87
Para esse fim, torna-se necessário observarmos as escolhas
linguísticas feitas pelo locutor para representar o discurso do outro, analisando
seu grau de engajamento com o que anuncia e se ele concorda, discorda ou
polemiza com os atos de fala presente nas práticas discursivas submetidas à
análise, pois, os gêneros são formas de agência nos diversos contextos sociais
e culturais.
Considerando que os discursos representam pontos de vistas
distintos, pois podemos significar o mundo de maneira diversa,
compreendemos, baseados em Fairclough (2003), que o significado
representacional de textos se relaciona ao conceito de discurso como modo de
reprodução de aspectos do mundo.
Nesse significado, há uma ênfase na representação dos aspectos –
físico, mental e social – por meio dos textos. Isso faz com que diferentes
discursos sejam vistos como diferentes relações que os sujeitos estabelecem
com o mundo, as quais serão constituídas considerando a posição das
pessoas no mundo e as relações que estabelecem com as outras.
Mais do que representar o mundo, os discursos constituem o mundo,
fazendo com que os projetos de mudança da realidade estejam ancorados em
perspectivas particulares. Em um processo dialético, “[...] os discursos
constituem parte do recurso utilizado por atores sociais para se relacionarem,
cooperando, competindo, dominando” (RESENDE E RAMALHO, 2006, p.71).
As relações estabelecidas entre os discursos podem ser de diversos
tipos, de maneira que os discursos, materializados em gêneros discursivos
podem se complementar ou competir um com o outro, em relação de
dominação.
Ao tratar do significado acional destacamos que os gêneros
discursivos variam, da mesma maneira que agora, ao tratar do significado
representacional, enquanto um processo de nomeação situada, afirmamos
baseados em Resende e Ramalho (2006) que os discursos também variam em
estabilidade e escala.
Existem discursos que apresentam um elevado grau de
compartilhamento e repetição, podendo gerar diversas representações e
compor diversos tipos de textos. Já a atuação de um mesmo discurso pode
88
variar em uma escala de representações localizadas a globais, as quais são
capazes de colonizar diversas práticas na vida social.
Com isso, um mesmo texto pode envolver diferentes discursos, e a
articulação da diferença entre eles pode se realizar de muitas maneiras,
variando entre a cooperação e a competição, o que possibilita que um mesmo
aspecto do mundo possa ser representado segundo diferentes discursos,
materializando-se em diferentes pontos de vista acerca de um mesmo objeto.
Diante do exposto, destacamos como principais categorias analíticas
para acessar o significado representacional a interdiscursividade, a
representação de atores sociais e o significado de palavra.
A interdiscursividade de um texto pode ser analisada por meio da
identificação dos discursos articulados e da maneira como são articulados. A
identificação pode ser de que partes do mundo são representadas e a
perspectiva particular pela qual são representadas. Já as maneiras de
representação de aspectos do mundo podem ser especificadas por meio de
traços linguísticos, sendo que o mais evidente é o vocabulário ou o léxico.
A representação de atores sociais se materializa, segundo Resende
e Ramalho (2006) pelo fato de que determinados atores podem ter sua agência
ofuscada ou enfatizada em representações sociais. Assim, as maneiras como
os atores sociais são representados em textos podem indicar posicionamentos
ideológicos em relação a eles e a suas atividades.
O significado de palavras é uma categoria que está centrada no fato
de que os sentidos das palavras entram em disputa dentro de lutas mais
amplas, de maneira que “as estruturações particulares das relações entre os
sentidos de uma palavra são formas de hegemonia” (FAIRCLOUGH, 2001,
p.105).
Com isso, entendemos que os significados das palavras e a
lexicalização de significados são construções sociais, passíveis de contestação
no seio da própria sociedade, assim o processo de nomeação se configura
como um ato eminentemente político, uma vez que “[...] os nomes não passam
de meras ‘etiquetas’ identificadoras de objetos, é preciso pensar além da
semântica dos nomes próprios para encarar o fenômeno de nomeação como
um ato eminentemente político” (RAJAGOPALAN, 2003, p.82).
89
Diante disso, torna-se pertinente realizarmos uma identificação dos
significados das palavras libertação/emancipação para os educandos e
educandas, educadores e educadoras do Projovem Campo – Saberes da
Terra.
Por fim, o significado identificacional está relacionado à função
identitária, pois se refere à construção e à negociação de identidades no
discurso. Por meio do estilo, mecanismo que constitui o aspecto discursivo da
identidade, procede-se a identificação de atores sociais em textos, por isso, o
fenômeno da identificação é visto por Fairclough (2003) como um processo
dialético, no qual os discursos são sempre comprometidos com determinadas
identidades.
Considerando identidade e diferença como atos de criações
linguísticas, entendemos esses dois conceitos como mecanismos que estão
em uma relação de estreita dependência. Em consonância com esse
pensamento de Hall (2000), afirmamos que esses dois aspectos dos sujeitos
são criações do mundo social e sua produção ocorre por meio do discurso,
textos e interações.
Identidades e diferenças são processos instáveis porque se tratam
de construções simbólicas, estando, portanto, sujeitas a relações de poder e a
luta por sua redefinição. Tendo identidades e diferenças como processos que
se afirma por meio do discurso, vem a tona os conflitos de poder entre grupos
situados. A partir desse pensamento, Resende e Ramalho propõem uma
perspectiva teórica em que:
A identidade e a diferença relacionam-se, pois, às maneiras como a sociedade produz e utiliza classificações, por isso são conceitos importantes em teorias críticas, interessadas na investigação de relações de dominação – o privilégio de classificar implica o privilégio de atribuir valores aos grupos classificados. É por meio da representação que identidade e diferença ligam-se a sistemas de poder; questionar identidades e diferenças é, então, questionar os sistemas legitimados que lhes servem de suporte na atribuição de sentido. Note que essa observação ilustra a dialética entre os significados acional, representacional e ideacional. (2006, p.77).
Castells (1999, p.23) ao apontar que toda e qualquer identidade é
construída, questiona “como, a partir de que, por quem e para quê isso
acontece”. Ao considerar que a construção das identidades ocorre em
90
contextos de poder o autor supracitado destaca três formas de construção da
identidade: a legitimadora, a de resistência e a de projeto, essas receberão
uma atenção detalhada na próxima subseção deste trabalho.
Resende e Ramalho (2006) afirmam que a identidade legitimadora é
introduzida por instituições dominantes a fim de legitimar sua dominação; a
identidade de resistência é construída por atores em situação desprivilegiada
na estrutura de dominação, constituindo foco de resistência; a identidade de
projeto é construída quando atores sociais buscam redefinir sua posição na
sociedade e constitui recurso para mudança social.
Há um fluxo entre esses tipos de identidades, de maneira que uma
identidade que se constrói como de resistência pode resultar em projeto e, por
meio da mudança social, construir uma identidade legitimadora. Diante disso, a
ADC passa a ter como um de seus focos analisar como se dá o embate
discursivo entre identidades.
O significado identificacional, dentre várias categorias, trata da
avaliação, da modalidade e da metáfora. Tais categorias possibilitam perceber
a construção e a negociação de identidades no discurso, evidenciando as
agências dos indivíduos e a capacidade que eles têm para impulsionar a
mudança social ou manter o atual estágio de sociabilidade.
Ao nos remetermos à categoria avaliação, destacamos, baseados
em Fairclough (2003), três propriedades discursivas que podem ser
classificadas como mecanismos avaliativos. São elas: afirmações avaliativas,
afirmações com verbos de processo mental afetivo, presunções valorativas.
As afirmações avaliativas ocorrem em torno do que é considerado
desejável ou indesejável, relevante ou irrelevante, bom ou ruim para os
falantes. De acordo com Fairclough (2003), “o elemento avaliativo de uma
afirmação pode ser um atributo, um verbo, um advérbio, ou um sinal de
exclamação”.
Já as afirmações com verbos de processo mental afetivo consideram
que as avaliações são afetivas porque são marcadas subjetivamente, isso faz
com que a afirmação seja marcada como se fosse do autor.
Em se tratando das presunções valorativas, são casos em que a
avaliação não é conduzida por marcadores relativamente transparentes, de
maneira que os valores estão mais profundamente inseridos nos textos. Para
91
construir sentido e/ou significado é preciso considerar os explícitos e os
implícitos, ou seja, o que está dito e o não dito, isso faz com que parte do
trabalho de se analisar um texto esteja focada na tentativa de identificar o que
está presumido.
Baseados em Resende e Ramalho (2006), destacamos que a
modalidade se constitui em uma categoria complexa e está relacionada à
polaridade, um traço semântico essencial que se configura como a escolha
entre o positivo e o negativo, materializados na oposição é/não é.
Conforme Halliday (1985), a modalidade configura-se como as
diversas possibilidades intermediárias entre sim e não, configurando-se como
indeterminações situadas entre os polos, isso faz com que essa categoria seja
o julgamento do falante sobre as probabilidades envolvidas no que ele diz.
Outra categoria relacionada ao significado identificacional é a
metáfora, a qual, do ponto de vista discursivo consiste, segundo Lakoff e
Johnson (2002, p. 49-50 apud Resende e Ramalho, 2006, p.86), em “[...]
compreender uma coisa em termos de outra”.
Isso implica necessariamente que os conceitos são metafóricos,
estruturados no pensamento e na linguagem, de maneira que a metáfora não
nasce na linguagem, ela tem uma gênese social e cultural, a linguagem é um
mecanismo de atuação humana no qual as metáforas são refletidas.
As metáforas podem ser conceptuais, ao compreender aspectos de
um conceito em termos de outro; orientacionais, ao organizar os conceitos em
relação a uma orientação espacial baseada na experiência física e cultural;
ontológicas, ao receber do próprio corpo físico base para serem variáveis,
materializando-se como maneiras de entender eventos, atividades, emoções,
ideias, como entidades e substâncias.
Considerando que a análise de discurso crítica, em uma abordagem
mais completa, constitui-se na apreciação das três dimensões constituintes do
discurso – texto, prática discursiva, prática social – dando um foco mais
expressivo na prática social, entendemos que ao operacionalizar três tipos de
significados, Fairclough articula gênero à dimensão textual do discurso,
discurso à prática discursiva e estilo à prática social, sugerindo no lugar das
funções da linguagem três significados correspondentes à cada dimensão do
discurso: acional, representacional, identificacional.
92
Na obra “Análise de discurso crítica” Resende e Ramalho (2006)
discutem esses significados possibilitando que encontremos mais detalhadas
algumas das categorias de análise. A apropriação das bases teóricas do
modelo de análise que adotamos pode ser sintetizada pelo quadro a seguir:
Quadro 1 – Das dimensões às categorias
Dimensões constituintes do
discurso
Foco Significado Categorias
Texto Gênero Acional Estrutura genérica Intertextualidade
Prática social Discurso Representacional Interdiscursividade Representação de atores sociais
Significado de palavras
Prática discursiva
Estilo Identificacional Avaliação
Modalidade Metáfora
Fonte: Construído a partir das leituras feitas de FAIRCLUGH (2001) e RESENDE E RAMALHO
(2006).
A partir do arcabouço teórico apresentado até aqui, deixamos claro
que na presente investigação as categorias de análises mais representativas
do objeto de estudo e consequentemente dos objetivos a que nos propomos,
estão divididas entre os três significados.
Como buscamos analisar as práticas educacionais em um programa
de elevação da escolaridade com foco na identidade dos moradores do campo,
delimitamos como categorias centrais a intertextualidade, a representação de
atores sociais e a avaliação, de maneira que, ao tratarmos de questões
inerentes à identidade dos moradores do campo por meio do estudo das
práticas discursivas do contexto educacional, focalizaremos a discussão no
significado identificacional, daí a necessidade de discutirmos sobre o processo
de identificação e construção identitária.
4.4 CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA ENQUANTO PROCESSO DE
IDENTIFICAÇÃO
Partindo do pressuposto de que na contemporaneidade, as questões
referentes à identidade se constituem como uma tendência em conflito que
vem moldando a sociedade, entendemos que discutir questões inerentes à
93
identidade significa principalmente entender a atual conjuntura social e a
constituição dos sujeitos coletivos e individuais, os quais são constituídos pela
linguagem ao mesmo tempo em que a constituem, tornando-a o motor da
história da humanidade.
Ao discutir as identidades levando em consideração como os
moradores do campo vêm sendo significados e como significam a si mesmo,
nos ancoramos nos pressupostos teóricos defendidos por Castells para quem
identidade é:
[...] o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o (s) qual (ais) prevalece (m) sobre outras fontes de significado. Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo pode haver identidades múltiplas (1999, p.22).
Ao definir identidade como a fonte de significado e experiência de
um povo o autor mostra que se trata de um processo de construção de
significado com base em aspectos culturais e não algo preestabelecido ou
determinado.
Assim, é por meio das ações cotidianas que as identidades são
legitimadas, constituem-se como formas de resistências e são
construídas/reconstruídas, e como esses processos ocorrem em contextos de
poder, torna-se imprescindível desenvolvermos um entendimento sobre a
maneira como as identidades são constituídas.
Considerando a identidade como coletiva, fruto de um construto
social e que sempre está marcadamente influenciada pelas relações de poder,
podemos destacar as três formas e origens de construção de identidades:
Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais [...]. Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade [...]. Identidade de projeto: quando os atores sociais utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social (CASTELLS, 1999, p.24).
94
A partir de tais considerações, concebemos identidade legitimadora
como aquela introduzida por instituições dominantes, com a intenção de
expandir seu poder de dominação. Vale ressaltar que, por ser introduzida pelo
‘outro’, em primeira instância trata-se de uma identificação legitimadora. A
mesma só passa a ser considerada identidade quando é assimilada e
internalizada pela pessoa em questão, respeitando-se, então, o conceito de
identidade como autodefinição.
Já as identidades de resistência podem ser construídas por atores
que se encontram em posições desvalorizadas ou estigmatizadas,
representando a criação de trincheiras de resistência. Esse tipo de identidade
normalmente leva à formação de comunidades de resistência coletiva.
Enquanto isso, a identidade de projeto ocorre quando atores sociais
utilizam material cultural e constroem uma nova identidade que redefine sua
posição social e promove a transformação. Vale ressaltar que as identidades
de resistência podem evoluir para identidades de projeto, embora isso nem
sempre ocorra. A identidade de projeto não apenas resiste à opressão, mas
está ligada a projetos coletivos de mudança social.
Em consonância com o pensamento do autor supracitado,
defendemos que apenas algumas poucas pessoas persistem ao longo da vida
limitadas a essas circunstâncias primárias; a capacidade de transformá-las
depende de sua reflexividade e de sua habilidade em tornarem-se agentes
incorporados, passíveis de agir coletivamente e moldar mudanças sociais.
Conquistar uma identidade social no sentido pleno seria, então, uma
questão de assumir papéis sociais e personificá-los, investindo-os com sua
própria personalidade. Ou seja, o desenvolvimento integral de agentes sociais
tem relação com o desenvolvimento integral de suas personalidades, nenhum
dos dois processos está, de antemão, garantido. Essa construção, obviamente,
está sujeita às limitações sociais.
O próprio autor, porém, reconhece que talvez essa noção de
assumir papéis não dê, por si só, conta do processo de construção interna da
identidade social, por sua complexidade e heterogeneidade. Por isso diferencia
claramente papeis sociais de identidade:
95
Papeis (por exemplo, ser trabalhador, mãe, vizinho, militante socialista, sindicalista, jogador de basquete, frequentador de uma determinada igreja e fumante, ao mesmo tempo) são definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações da sociedade. [...] Identidades, por sua vez, constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e construídas por meio de um processo de individuação. [...] identidades são fontes mais importantes de significado do que papeis sociais, por causa do processo de autoconstrução e individuação que envolvem. [...] identidades organizam significados, enquanto papeis organizam funções (CASTELLS, 1999, p. 22-23).
Em consonância com esses pressupostos, Hall (2000) postula que
as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela; são
constituídas por meio da relação com o outro, da relação com aquilo que não é.
Segundo ele, identidade é:
[...] o ponto de sutura entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades são, pois pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. (HALL, 2000 p. 111-12)
Percebemos que a identidade não pode ser vista como algo pronto e
acabado, pois ela se forma ao longo do tempo, através de processos
inconscientes, ela não poderia ser vista como algo inato, como afirmam
algumas correntes linguísticas. A identidade, portanto, permanece sempre em
processo, sucessivamente em formação.
Fairclough (2003) utiliza o termo identificação em lugar de
identidade, porque deseja enfatizar o processo de se identificar, como as
pessoas identificam a si próprias e como identificam os outros. Podemos notar
que Fairclough difere de Castells em relação aos motivos que o levam a adotar
o termo identificação e não identidade.
Para Castells (1999), identificação é o que o ‘outro’ pensa,
identidade é o que ‘nós’ pensamos sobre nós mesmos. Fairclough não propõe
essa diferenciação. No entanto, opta pelo termo identificação, porque entende
que esse termo expressa melhor, dá mais ênfase, ao processo de construção
da identidade, tanto pelo ‘outro’ como pelo próprio sujeito.
96
Tais conceitos se complementam em nossa pesquisa porque o
nosso intento é tanto saber o que o ‘outro’ (representantes do poder público,
educadores) pensa quanto o que ‘nós’ (moradores do campo) pensamos sobre
nós mesmos.
Um ponto importante salientado por Fairclough e que tem grande
impacto em nosso trabalho é que a identificação em textos é, ao mesmo
tempo, uma questão de individualidade e de coletividade, um problema que
envolve a noção de “eu” e de “nós”.
Isso nos parece bastante relevante, na medida em que nosso corpus
é constituído por discursos que alternam essas vozes: há o discurso
institucional do Projovem Campo – Saberes da Terra, o discurso dos
camponeses que fala em prol do programa e o discurso do camponês que fala
por si e de si.
Todos esses textos, retalhos de “eu” e de “nós”, caminham na
construção de uma nova identidade para os moradores do campo, mas é
preciso averiguar as construções identitárias para melhor entendermos a
realidade social que vem se constituindo no campo.
97
5 CAMINHO METODOLÓGICO
Com o objetivo de evidenciar o percurso construído para esta
pesquisa passamos agora à explicação das escolhas metodológicas, às razões
que nos levaram a fazer tais opções, assim como às dificuldades que surgiram
nessa travessia, destacando as possibilidades de aprendizagem diante de tudo
isso.
Inicialmente, discorremos sobre a pesquisa qualitativa e o seu cunho
discursivo e etnográfico, ressaltamos a importância da pesquisa documental e
da etnográfica para a construção e análise do corpus. Na segunda seção,
discorremos sobre a Análise de Discurso Crítica (ADC), deixando evidente que
a mesma não é apenas um arcabouço teórico, mas uma abordagem teórico-
metodológica. Na terceira seção, a ADC coadunada com a etnografia-
discursiva, pois além de estudarmos documentos, analisamos diários
etnográficos e entrevistas transcritas como textos, ampliando a metodologia
utilizada.
5.1 PESQUISA QUALITATIVA
O caminho metodológico desta pesquisa se constituiu a partir de
reflexões sobre a natureza da problemática dos moradores do campo inseridos
em um programa de elevação da escolaridade e qualificação social e a
materialidade linguística do corpus constituído.
O corpus, de cunho documental, foi expandido com pesquisa
etnográfica, geração de dados, junto aos participantes do Projovem Campo –
Saberes da Terra. O foco da análise foi apenas em uma das turmas do
Programa, a mesma está situada na comunidade rural Jurema dos Vieiras,
Ocara – CE, é composta por 32 educandos e educandos, a faixa etária varia de
18 a 70 anos, todos são considerados moradores do campo e se reconhecem
como tal.
Escolhemos essa turma porque a coordenação do Programa e os
professores afirmaram ser uma das realidades em que mais os participantes
tem uma ligação direta com as atividades camponesas e mantinham relações
com os movimentos sociais.
98
Diante disso, considerando que a presente pesquisa possui um
cunho discursivo e etnográfico, tratando das realizações do discurso em
contexto específico, postulamos que o presente texto configura-se como um
estudo em que os seres humanos e suas complexas relações sociais
materializadas em um contexto educacional dos moradores do campo são
passíveis de análises e reflexões.
Isso possibilita a afirmação de que a melhor abordagem para o que
realizamos seja, realmente, a pesquisa qualitativa, materializada por meio da
pesquisa documental e da etnografia.
Segundo a perspectiva qualitativa, um fenômeno pode ser melhor
compreendido no contexto em que ocorre e do qual é parte, devendo ser
analisado numa perspectiva integrada. Para tanto, o pesquisador vai a campo
buscando captar o fenômeno em estudo a partir da perspectiva das pessoas
nele envolvidas, considerando os pontos de vista relevantes. Isso possibilita
que a realidade social seja descrita e evidenciada a partir de dados
interpretativos.
Com vistas ao alcance dos objetivos propostos, realizamos a
abordagem supracitada por considerar a existência de uma relação dinâmica
entre o objeto da pesquisa e o contexto em que está inserido. Para Neves
(1996, p.1), um estudo qualitativo:
Compreende um conjunto de diferentes técnicas interpretativas que visam a descrever e decodificar os componentes de um sistema complexo de significados. Tem por objetivo traduzir e expressar os sentidos dos fenômenos do mundo social; trata-se de reduzir a distância entre indicador e indicado, entre teoria e dados entre contexto e ação (NEVES, 1996, p. 1).
Podemos dizer que fizemos a descrição de uma realidade, a qual foi
interpretada considerando os pressupostos teóricos, documentos e a vivência
dos colaboradores que fizeram parte do processo.
Vale ressaltar que como o estudo abordou questões referentes aos
processos de identificação e construção de identidades dos moradores do
campo a partir das práticas linguísticas educacionais, ele possui uma
intencionalidade própria e uma vertente social exigindo a abordagem
qualitativa. Segundo Minayo:
99
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 1994, p. 21-22).
Nesse âmbito, tentamos evidenciar os processos de identificação e
construção de identidades dos moradores do campo a partir das práticas
linguísticas educacionais, considerando o letramento como uma interface entre
linguagem e (des)colonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra. O
viés qualitativo nos serve de base porque segundo Resende (2005, p.12):
A pesquisa qualitativa trata-se de uma forma de pesquisa potencialmente emancipatória, uma vez que por meio dela as ciências críticas podem identificar estruturas de poder naturalizadas em um contexto sócio-histórico definido. Por isso a pesquisa qualitativa é essencial quando se pretende focar representações de mundo, relações sociais, identidades, ideologias ligadas a um meio social.
Assim, o corpus de pesquisa, constituído pelo Projeto Base do
Projovem Campo – Saberes da Terra; as anotações da observação participante
em diário etnográfico; as entrevistas semiestruturadas7, foi
preponderantemente qualitativo.
No texto oficial considerado por nós a estrutura e também nas
anotações da observação e nas entrevistas que nos possibilitaram uma maior
aproximação com a realidade social, indo além da estrutura, selecionamos
partes em que a temática da pesquisa, ou seja, os processos de construção de
identidades dos moradores do campo foram tratados de maneira mais intensa.
5.2 A ADC COMO MÉTODO DE ANÁLISE
Em consonância com a delimitação do corpus para análise, a qual
tem como ponto de partida o Projeto Base do Projovem Campo – Saberes da
Terra 2009; seguido da observação participante, materializada no diário
7 Em alguns casos, quando os colaboradores da pesquisa não se sentiram a vontade para
gravar as entrevistas, acrescentarmos à metodologia outra técnica para evidenciar melhor a realidade: entrevistas antropológicas ou etnográficas. Essas são constituídas por uma série de conversas cordiais nas quais o pesquisador introduz novos elementos lentamente para auxiliar informantes a responderem como informantes (GUBER, 2004).
100
etnográfico; complementado com as entrevistas semiestruturadas e
etnográficas, damos continuidade às considerações metodológicas partindo do
princípio de que a Análise de Discurso Crítica (ADC) não é apenas um
arcabouço teórico, mas uma abordagem teórico-metodológica.
Diante disso, optamos pela sua utilização para a análise dos
diversos elementos linguísticos e semióticos que compõem nosso corpus.
Traçamos um caminho a partir da proposta de análise realizada por Fairclough
(2001; 2003) e Chouliaraki e Fairclough (1999), pois esses teóricos consideram
a ADC como método, mostrando a possibilidade de um trabalho analítico da
rede de práticas sociais.
Em consonância com o pensamento de Fairclough (2001),
defendemos a operacionalização de teorias sociais na análise de discurso
linguisticamente orientada, com o objetivo de compor um quadro teórico
metodológico adequado à perspectiva crítica de linguagem como prática social.
Esse postulado coaduna-se com Fairclough (2003), para quem a visão
científica de crítica social justifica-se pelo fato de a ADC ser motivada a
fornecer subsídios para um questionamento crítico da vida social em termos
políticos e morais, de justiça social e de poder.
A partir das diretrizes propostas pelos linguístas citados a priori
temos um importante aparato para uma análise social do discurso composto
por cinco etapas, delineadas na tabela a seguir:
Quadro 2 - Enquadre metodológico da ADC
Enquadre metodológico
I. Um problema (de atividade ou de reflexividade).
II. Obstáculos a serem enfrentados:
Análise da conjuntura;
Análise da prática particular ou das práticas;
Análise do discurso
III. Função do problema na prática.
IV. Possíveis maneiras de ultrapassar os obstáculos.
V. Reflexão acerca da análise.
Fonte: CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH (1999, p.60)
101
Está bastante claro que na primeira etapa proposta pelo enquadre
da ADC, devemos identificar o problema relacionado ao discurso, que pode
estar localizado na prática social ou na construção reflexiva da prática em
questão.
Na presente pesquisa, o problema norteador refere-se à constituição
de identidades discursivas para os moradores do campo, no âmbito do
Projovem Campo – Saberes da Terra.
A prática social relaciona-se tanto à questão da permanência no
campo, como à intervenção do poder público nessa problemática social. Além
do projeto base do programa, analisamos tanto as falas dos educandos, como
a fala institucional do programa e as falas de outros sujeitos envolvidos como
educadores e coordenadora.
Chouliaraki e Fairclough (1999), propõem, na segunda etapa,
obstáculos a serem enfrentados, uma análise da conjuntura, da prática
particular e do discurso, a fim de esclarecer os obstáculos que devem ser
superados para resolução da problemática.
Como nosso problema de pesquisa consiste em entender uma
construção identitária, a análise da conjuntura pretende mostrar como os
discursos que queremos estudar se situam em relação a uma rede de práticas
sociais, a análise da prática particular intenciona compreender o processo de
produção, distribuição e recepção dos textos que constituem nosso corpus e a
análise do discurso constitui a análise textual propriamente dita.
Em se tratando da terceira etapa, função do problema na prática,
devemos refletir sobre o evento investigado e suas possíveis consequências
em termos sociais.
Estamos diante de um fenômeno particular, mas que possui sua
universalidade (morar no campo) e de uma ação que vem ocorrendo em
diversos países em desenvolvimento (escolarizar a população camponesa).
Por isso, nossas reflexões não serão restritas a uma determinada área
geográfica, mas sim à problemática como um todo e aos pontos em comum.
Inicialmente, analisamos a construção de identidades no Projovem
Campo – Saberes da Terra, em seguida, buscamos entender até que ponto
essa construção pode ou não contribuir para a transformação social.
102
Na quarta etapa, ao focar nos possíveis modos de ultrapassar os
obstáculos, buscamos entender se o programa contribui para construção de
possíveis recursos para transformar a realidade ou se está a serviço da
manutenção do status quo.
Assim, o nosso intento com a presente pesquisa foi compreender a
situação social dos moradores do campo em processo de escolarização,
possibilitando que o discurso, ao materializar identidades e também construí-
las, seja um instrumento a serviço da superação das desigualdades e
discriminações ou, pelo menos, possa acenar caminhos possíveis para
processos de transformação.
A reflexão sobre a análise, último ponto do enquadre metodológico
da ADC, não se deteve apenas ao corpus documental detalhado nas seções
anteriores, mas foi enriquecido com a pesquisa etnográfica que realizamos com
alguns dos participantes do Projovem Campo – Saberes da Terra.
A partir da união desses dois elementos, fizemos uma analise
discursiva de acordo com a concepção tridimensional que abarca os modos de
representar, identificar e agir (FAIRCLOUGH, 2001).
Em síntese, partimos do modelo tridimensional proposto em
Fairclough (2001), no qual o discurso é constituído em três dimensões: texto,
prática social e prática discursiva. Discutimos as cinco etapas necessárias para
realizar análise de discurso presentes em Chouliaraki e Fairclough (1999), o
que norteou a estrutura da presente dissertação. Por fim, chegamos à análise
dos significados: acional, representacional e identificacional para a análise de
discurso proposto por Fairclough (2003) na releitura de Resende e Ramalho
(2006).
Na próxima subseção, detalharemos o percurso etnográfico que
realizamos. O corpus etnográfico expandiu o corpus documental, viabilizando
reflexões mais profundas e aproximadas da realidade dos moradores do
campo.
5.3 PESQUISA ETNOGRÁFICO-DISCURSIVA
O viés no qual está pautado o presente estudo parte dos
pressupostos de que a pesquisa qualitativa só é viável com o método
103
etnográfico; trabalha com processos, examinando interações; analisa
experiências a partir do vivido, entrando em contato com o mundo real.
O presente estudo tem como método de análise a ADC
coadunada com a etnografia-discursiva, pois, além de estudar documentos,
analisa diários etnográficos e entrevistas transcritas como textos.
Essa integração encontra consistência porque a etnografia é
considerada um método complementar à Análise de Discurso Crítica, uma vez
que a análise textual sozinha não é capaz de esclarecer a interligação entre
textos e práticas, a ponto dos teóricos defenderem que:
Às vezes, pode ser muito difícil “reconstruir” a prática em que um discurso se localiza e ter uma noção de como o discurso figura na prática. É por isso que a pesquisa analítica do discurso deve ser vista como apenas um aspecto da pesquisa em práticas sociais e deve trabalhar junto com outros métodos, particularmente a etnografia (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 61).
Em consonância com o pensamento de Angrosino (2009, p.31), para
quem “os etnógrafos se ocupam basicamente das vidas cotidianas rotineiras
das pessoas que eles estudam”, compreendemos que os etnógrafos geram
dados que evidenciem experiências humanas vivenciadas em determinadas
comunidades com intuito de discernir padrões existentes.
O autor supracitado pontua o fazer etnográfico como sendo
constituído com as seguintes características: é baseado na pesquisa de
campo; é personalizado; é multifuncional; requer um compromisso de longo
prazo; é indutivo, dialógico e holístico.
Definindo uma metodologia específica para este trabalho,
procuramos um percurso que melhor nos possibilitasse compreender o
contexto pesquisado, dando maior rigor ao processo analítico. Assim, a
necessidade de compreender o lugar dos sujeitos está relacionada ao tipo de
pesquisa que realizamos, pois a etnografia de cunho discursivo requer que o
pesquisador vivencie o cotidiano pesquisado a fim de compreender melhor os
diversos aspectos da sociedade.
Diante disso, tivemos como estratégia central o uso da triangulação,
envolvendo o uso de diferentes fontes de métodos ou estratégias, chegando a
respostas holísticas em relação ao fenômeno estudado, no caso, selecionamos
104
como estratégias etnográficas a observação participante, notas de campo e
entrevistas semiestruturadas.
Realizamos uma observação participante que durou oito meses e
entrevistas em profundidade, com as quais construímos a narrativa de vida dos
moradores do campo por meio da busca dos significados atribuídos pelos
sujeitos às suas ações e interações. Esperamos que a utilização integrada das
estratégias metodológicas, citadas a priori, tenha nos ajudado a entender as
identidades que vem sendo construídas para os moradores do campo e/ou
pelos moradores do campo.
O trabalho etnográfico foi realizado no Projovem Campo – Saberes
da Terra na comunidade de Jurema dos Vieiras, Ocara – Ceará. O referido
Programa, de acordo com Brasil (2009), tem como objetivo oferecer elevação
da escolaridade integrada à qualificação social para os jovens agricultores de
18 a 29 anos que já são alfabetizados, mas não concluíram o ensino
fundamental.
A escolha do objeto de pesquisa se deu por ser uma iniciativa
governamental a nível nacional reconhecida, e também porque se afirma em
seu Projeto Base que a constituição do Programa se deu a partir de diversas
práticas educacionais próprias dos moradores do campo.
O que propomos foi buscar a compreensão do modo pelo qual os
moradores do campo em processo de escolarização se relacionam com o
mundo, com a ordem dominante, de que forma se situam como sujeitos em um
sistema-mundo eurocentrado.
A partir daí, procuramos entender como se percebem, como se
enquadram, o que pensam de si próprios e o que pensam do mundo. Fazemos
isso conscientes de que o contato com o outro nos afetará, de tal forma que,
mais do que mostrar como eles pensam ou sentem, a pesquisa mudou a forma
como pensamos ou sentimos, promovendo uma reflexão interna e permitindo
que o saber do outro se mostre tão válido quanto o nosso.
105
6 ANÁLISE DO PROJETO BASE DO PROJOVEM CAMPO – SABERES DA
TERRA, DO DIÁRIO ETNOGRÁFICO E DAS ENTREVISTAS
No presente capítulo, realizamos as análises discursivas
considerando como texto o Projeto Base, o diário etnográfico e as entrevistas.
Inicialmente, apresentamos a trajetória do objeto de pesquisa, informando
sobre o viés dado à pesquisa após aprovação no mestrado. Nas três sessões
que seguem desenvolvemos respectivamente as análises do significado
acional, do significado representacional e do significado identificacional (ver a
seção 4.3). No significado acional nos detemos à categoria intertextualidade,
no significado representacional tratamos da representação de atores sociais e
no significado identificacional, realizamos as análises com base na categoria
avaliação. É importante destacar que no decorrer da análise não nos detemos
apenas às categorias supracitadas, podendo ocorrer casos em que, teceremos
comentários sobre outros aspectos que colaborem para o sentido que está
sendo construído.
6.1 TRAJETÓRIA DO OBJETO DE PESQUISA
Quando nosso pré-projeto foi aprovado pelo Mestrado Acadêmico
Intercampi em Educação e Ensino – MAIE da Universidade Estadual do Ceará
– UECE, tínhamos como objeto de pesquisa apenas as práticas de leitura
desenvolvidas no Projovem Campo – Saberes da Terra.
Ao iniciarmos a análise dos documentos integrada à pesquisa
etnográfica, percebemos uma ligação das práticas de oralidade, leitura e
escrita com questões inerentes ao letramento. Notamos nos documentos e
práticas do programa uma atenção bastante incisiva voltada para as questões
de identidade.
Paralelo a isso, realizamos diversos estudos como participantes do
Projeto de Pesquisa – Por uma pragmática cultural: cartografias descoloniais e
gramáticas culturais em jogos de linguagem do cotidiano – os quais nos
possibilitaram aprofundar nossa compreensão acerca dos estudos
descoloniais, etnografia e questões identitárias.
106
Com isso, chegamos ao entendimento de que poderíamos dar uma
contribuição mais significativa para os próprios moradores do campo, a
sociedade e o meio acadêmico se voltássemos nossa pesquisa para as
identidades (des)coloniais nas práticas de letramento do Projovem Campo –
Saberes da Terra.
De acordo com o que mencionamos em outras partes do trabalho, o
presente estudo tem um viés etnográfico-discursivo (MAGALHÃES, 2000,
p.45), pois, além do Projeto Base do Projovem Campo – Saberes da Terra,
analisamos entrevistas transcritas e os diários etnográficos como textos, visto
que o objetivo central desta pesquisa é analisar os processos de construção de
identidades dos moradores do campo a partir das práticas linguísticas
educacionais, considerando o letramento como uma interface entre linguagem
e (des)colonialidade no Projovem Campo – Saberes da Terra.
Ao iniciarmos a análise das entrevistas transcritas e dos diários
etnográficos como textos, já percebemos, dentre outras coisas, aspectos dos
possíveis discursos que estão presentes nas falas dos educandos (as) e
educadores (as), como o discurso neoliberal e o discurso do letramento numa
perspectiva ainda funcionalista.
A análise que apresentamos aqui focaliza trechos do Projeto Base
do Projovem Campo – Saberes da Terra, o qual está disponível na íntegra em
anexo; passagens do diário etnográfico; entrevistas (trechos) com educandos,
educandas, com duas educadoras e com a coordenadora do Projovem no
Ceará.
Os principais parâmetros de transcrição usados neste trabalho são
os mesmos sugeridos por Marcuschi (2003). Os sinais mais frequentes na
transcrição são estes: Pausas: (+) ou (2.5); Dúvidas e suposições: ( );
Comentários do analista (( )); Indicação de transcrição parcial ou de
eliminação: ... ou /.../.
6.2 SIGNIFICADO ACIONAL: INTERTEXTUALIDADE
Ao discutir o significado acional, Fairclough (2003) destaca o estudo
da intertextualidade como a possibilidade de articulação de várias vozes em um
texto, sendo, assim, entendida como a combinação da voz do autor com outras
107
vozes que lhe são articuladas. Uma questão pertinente à análise da
intertextualidade é a investigação de como as vozes são incluídas e quais são
excluídas ou até que ponto são incluídas ou excluídas.
Vale destacar que aqui as ausências são tão significativas como as
presenças e em alguns casos nos dizem muito mais. É preciso também
analisar o sentido da exclusão quando acontecer, a fim de refletir a respeito do
tratamento dado à diferença.
Fairclough (2003) apresenta cinco cenários de maneira
esquematizada para mostrar que os aspectos intertextuais também podem ser
identificados por meio da diferença:
1. Uma abertura para, aceitação de reconhecimento de diferença; uma
exploração da diferença, como em ‘diálogo’ no sentido mais rico do
termo.
2. uma acentuação da diferença, conflito, polêmica, uma luta pelo
sentido, normas, poder;
3. uma tentativa de superar ou resolver a diferença;
4. colocar a diferença entre parênteses, um foco nos aspectos comuns,
solidariedade;
5. consenso, uma normalização e aceitação das diferenças de poder
que suprime ou coloca a diferença de sentido e normas entre
parêntese.
Passando a análise propriamente dita, destacamos que ao tratar da
organização dos tempos e espaços formativos, o Projeto Base do Projovem
Campo – Saberes da Terra, texto oficial do Ministério da Educação, ao ser
escrito de maneira impessoal, tenta construir uma ideia de generalidade, como
se as vozes sobre as identidades fossem únicas e bem definidas, sem
apresentar conflitos.
Considerando as ideias defendidas por Resende e Ramalho (2009,
p.101), para quem as “práticas sociais encerram diferentes discursos e
interesses particulares, a presença de uma voz específica, em vez de outra,
sinaliza o posicionamento do autor do texto, inserido em determinadas
conjunturas, nas lutas de poder”.
O trecho abaixo denota as aprendizagens que os espaços
formativos do programa devem desenvolver:
108
Fragmento 1. Criar mecanismos que possibilitem a reconstrução da identidade pessoal: suas
histórias familiares, pessoais, suas formas de resistência ao longo de suas vidas, a construção
do sujeito de direitos. Descobrir-se como ser histórico; (p.53).
Considerando que a intertextualidade é uma questão de
recontextualização, percebemos que ao institucionalizar o objetivo em torno do
trabalho com a questão da identidade, o programa parece ter dado certa
preferência, por parte do poder público, pela representação de vozes oriundas
dos movimentos sociais. O discurso governamental, nessa parte do projeto
parece está alinhado a uma cadeia de textos que circulam com vistas a
resgatar, reafirmar ou reconstruir a identidade camponesa.
Isso fica claro quando vemos que o MST publica no Jornal dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (número 265, agosto, 2006) a reportagem
“Jovens do campo discutem rumos do país e apresentam pauta de
reivindicações”, na qual um dos membros do movimento, ao referir-se ao II
Congresso Nacional da Pastoral da Juventude Rural (PJR), que reuniu entre os
dias 23 e 27 de julho, em Brasília, mais de 1,5 mil jovens do campo de todo o
país, deixa claro que o evento “cumpriu a missão de resgatar a identidade
camponesa, fortalecer alianças com outras organizações e consolidar a luta por
políticas de educação e por condições que garantam a permanência dos jovens
no campo”.
No texto, no campo discursivo e nas práticas sociais, temos
vivenciado ações que tem possibilitado, até certo ponto, não só o resgate da
identidade camponesa, mas a sua reconfiguração diante dos novos desafios da
sociedade contemporânea. Por isso, precisamos distinguir a serviço de quem e
de que está esse “resgate” e essa “reconstrução”.
Assim, mesmo tratando da mesma categoria, identidade, há uma
distorção entre o que o movimento tem buscado com suas lutas e o que o
governo oferece em forma de políticas públicas, pois ao configurar o discurso
acerca da identidade em um novo contexto, percebemos uma diferença
ideológica entre o discurso do movimento e o discurso governamental, pois
enquanto a identidade camponesa é vista pelo movimento como algo coletivo a
ser resgatado, ela vai aparecer nos objetivos do tempo escola como algo
109
individual e pessoal. Isso configura a materialização de ideologias, até certo
ponto, opostas nas práticas discursivas no domínio do MST e do Projovem.
Nesse sentido, identificamos que as vozes representativas do MST
e, consequentemente, de outros movimentos sociais que lutam por melhorias
no campo estão começando a constar em textos oficiais governamentais,
podemos inclusive dizer que elas estão precariamente incluídas. O que
determinará o avanço ou o retrocesso em relação aos espaços que os
camponeses vêm conquistando será a continuidade ou descontinuidade da
luta.
Assim, a ausência do vocábulo “coletivo” no objetivo dos espaços
formativos e sua substituição por “pessoal” no discurso governamental sinaliza
uma acentuação da diferença, conflito, polêmica, uma luta pelo sentido,
normas, poder. Aqui, a exclusão está presente no que concerne ao tratamento
dado à diferença, destacada no segundo cenário apresentado por Fairclough
(2003).
Podemos, ainda, recorrer às conversas com educandos que temos
registradas no diário etnográfico. Vejamos o diálogo:
Oziêlton: O que você pensa em relação à identidade de morador(a) do campo? Para você, o que é ser morador(a) do campo? Robson: Ser do campo é ser unido, sabe (+++++), é ajudar o outro quando precisa, fazer as coisa junto. /.../ as casas aqui nois fez um bucado uns ajudano o oto. Tava até dizeno que essas coisas que vem do projeto aqui (++) deviam ser mais assim pra todos sabe (+++). Eles faz aquelas coisas pra conhecer cada um e depois manda os benefício pra nois fazer no roçado, mais é cada um por si, cada um faz o qui gosta, se fosse tudo unido dava mais fruto. Acaba que num sai nada /.../. Eles pensam que tão resolvendo os problema, mas num tão não.
Aqui, cabe uma discussão a respeito da ausência do “coletivo” nas
práticas sociais desenvolvidas no Projovem e consequentemente no cotidiano
dos camponeses que estão inseridos nesse programa.
Dessa vez, a percepção se dá por aqueles que vivem a realidade, é
um educando, morador do campo que está reivindicando que a identidade seja
tratada por um viés mais coletivo, evidencia-se com isso a ausência de um
projeto comum que envolva o grupo, a individualidade mantém-se hegemônica,
contudo ações contra-hegemônicas são reivindicadas para constituir o
cotidiano, inclusive nas práticas de letramentos vivenciadas pelo grupo.
110
Considerando os cinco cenários esquematizados por Fairclough
(2003) para mostrar que os aspectos intertextuais também podem ser
identificados por meio da diferença, na concepção do educando/morador do
campo, a ausência do “coletivo” nas práticas cotidianas trata-se de uma
tentativa de superar ou resolver a diferença – segundo cenário.
Os diversos pontos de vistas evidenciados nesta análise a respeito
das identidades dos moradores do campo se materializam em decorrência de
estarmos analisando práticas linguísticas situadas em determinadas práticas
sociais, possibilitando que diferentes discursos e interesses particulares
venham à tona, pois a presença de uma voz em detrimento de outra representa
sempre um posicionamento e uma escolha, e essa escolha está sempre
inserida em questões de poder.
Em síntese, o discurso oficial do governo, que se materializa no
Projeto Base do Projovem serve para sustentar o argumento de que as práticas
de ensino e consequentemente os processos de letramentos devem estar
focadas inicialmente em cada indivíduo, pois há a necessidade de recriar os
vínculos de pertença dos sujeitos ao campo. No decorrer do processo, ao longo
da vida, as ações individuais resultarão na promoção de uma “identidade
coletiva” (p.23), termo esse utilizado no projeto analisado na seção 3.2.2 que
trata da Educação do Campo, ao preconizar a educação como um processo ao
longo da vida.
Já o discurso do MST e do morador do campo, nos leva a defender
que as práticas em geral, podem focar nas identidades de cada um de uma
maneira mais específica, todavia precisam chegar a focar no coletivo, a fim de
que ações contra-hegemônicas sejam viabilizadas.
Se esse foco permanecer só no indivíduo e não houver uma
superação desse status inicial, as iniciativas continuarão sendo paliativas. O
problema não estar em focar em cada indivíduo, mas no fato das práticas não
transcenderem esse patamar.
Nesse sentido, o Projovem está sendo desenvolvido de maneira a
cumprir em parte o que se propõe a Educação do Campo reivindicada pelos
movimentos sociais. É preciso manter o que o programa faz ao recriar os
vínculos de pertença dos sujeitos ao campo, mas ir além, focando no processo
de construção de uma identidade coletiva.
111
Sabemos que isso se trata de um intento que transcende a
execução de um programa, ou pelo menos a execução que acompanhamos,
pois o foco dado manteve-se nos objetivos mais específicos, não conseguindo
atingir o objetivo geral da Educação do Campo, mesmo que no projeto
analisado contemplasse a necessidade de “[...] um processo educativo que
afirme a educação como um processo ao longo da vida [...] que resulta na
promoção de uma identidade coletiva que fortalece a criação de cooperação
entre os diversos segmentos sociais [...]” (BRASIL, 1999, p.29), não
vivenciamos isso na prática observada.
No entanto, as práticas educacionais já sistematizadas e inseridas
na atual conjuntura precisam ser repensadas e ressignificadas para contribuir
ainda mais com a Educação do Campo que é direito dos camponeses e dever
do Estado.
6.3 SIGNIFICADO REPRESENTACIONAL: REPRESENTAÇÃO DE ATORES
SOCIAIS
Além de evidenciar os aspectos intertextuais, nesta análise,
destacamos com base em Resende e Ramalho (2006) que as maneiras como
os atores sociais são representados em textos podem indicar posicionamentos
ideológicos em relação a eles e a suas atividades.
Ao tratar da categoria representação de atores sociais,
compreendemos que qualquer ator social estará sempre envolvido em eventos
e práticas sociais, de maneira que as relações estabelecidas entre eles podem
ser analisadas em textos e interações.
A análise com base nessa categoria possibilita comparar ou
evidenciar diferentes representações do mesmo evento ou de eventos
semelhantes, focando, inclusive, na maneira como são representados certos
atores sociais.
A fim de realizar a análise sobre como se dá a representação das
identidades dos moradores do campo em uma prática educacional,
selecionamos alguns dos atores sociais envolvidos no Saberes da Terra, são
eles, educandos, educandas e educadora. A partir desses sujeitos,
112
selecionamos algumas realizações linguísticas que atendessem a perspectiva
desse estudo.
Aspectos próprios do significado representacional podem ser
observados no trecho da entrevista a seguir, realizada com um educando do
Projovem Campo – Saberes da Terra. Identificamos como o morador do campo
vê a si mesmo e por quais discursos vem sendo influenciado:
Oziêlton: Olá (++), o que você pensa em relação à identidade de morador do campo? Para você, (+++) o que é ser morador do campo? Lúcio: eh, por exemplo, assim, nóis tem uma vida boa, sabe? Mais a gente ainda sofre, eu digo que ser do campo é ser invisível, eles só oia pra gente quando querem, agora foru lá em casa me buscar pra istudar aqui e da otra vez eu fui expulso daqui da iscola de dia. Se é pra trabaiá e ganhar pouco se nois num vai é priguiçoso, se recebe Bolsa Família é vagabundo, mais agente é mesmo é guerrero fica muitas vezes na providência de Deus. Quando tem traboio bom é só pros sabidos,que lê e iscreve direito, quem não sabe não consegui nada, e aí dizem que a culpa é da gente né que num estudou, difícil ser homem do campo hoje /.../.
De imediato, temos um desabafo, o qual denota as dificuldades
enfrentadas pelos camponeses para viverem no mundo capitalista, o qual
mantém hegemônica a ideologia de que a sociedade não é para os sujeitos,
mas que os sujeitos devem ser usados como instrumentos para suprir os
imperativos da sociedade, ou melhor, as necessidades dos grupos dominantes
que por meio da colonialidade se impõem como sendo eles mesmos a
sociedade.
Na fala “Quando tem traboio bom é só pros sabidos, que lê e iscreve
direito”, está claro a presença do discurso neoliberal de que se estudar será
possível conseguir um emprego e para melhorar de vida é preciso um esforço
individual, uma vez que se preconiza que no mundo globalizado as
oportunidades são para todos.
Podemos inferir, também, o tipo de letramento implícito nesse
discurso, ou seja está clara a perspectiva funcionalista tanto na passagem
acima como nesta: “ [...] a culpa é da gente né que num estudou”. Aqui,
aparece também o pensamento de individualidade, cada indivíduo por si só
pode conseguir aquilo que quer, quando não consegue faltou esforço pessoal,
113
essa ideologia neoliberal também está introjetada na fala do homem do campo
e denota um processo de dominação, colonialidade do ser.
Em relação à representação dos atores sociais ou maneiras de
designar, o texto acima mostra que esse sujeito se vê com base no que os
outros veem dele ao nomear situações em que pode ser visto como
“preguiçoso” e “vagabundo”, mas também emite uma opinião mais subjetivada
ao se declarar “invisível” e “guerreiro”.
Como a seleção de discursos e o trabalho articulatório com eles,
internaliza-se traços da luta hegemônica, percebemos que a fala de Lúcio deixa
transparecer, dentre outros aspectos, uma visão dicotômica existente acerca
do homem do campo.
De um lado está o ponto de vista sistematizado historicamente pelas
elites capitalistas que estabelecem processos de dominação, as quais sempre
nomearam aqueles que resistem à exploração como “vagabundos” e
“preguiçosos”, do outro temos uma visão mais crítica, representativa dos
camponeses que nas práticas cotidianas, muitas vezes, são “invisíveis” e
outras são “guerreiros”.
Essa dualidade representa a dialética que vem servindo de base
para materializar o perfil dos camponeses na contemporaneidade, os mesmo
se encontram entre os aspectos que introjetaram historicamente pelas
imposições das elites com vista à manutenção das formas de opressão,
colonialidade do ser e as novas possibilidades conquistadas que estão a sua
disposição.
Não estamos atestando que receber o Bolsa Família, por si só, seja
um processo de descolonialidade, mas que o fato desses sujeitos excluídos ou
precariamente incluídos terem as condições materiais que lhes dê a opção de
refletir e escolher é um passo importante na sentido de sair da consciência
transitiva e passas para a consciência crítica (FREIRE, 1997).
Um dos pontos de vista apresentados por Lúcio reforça os
processos de dominação e exploração, uma vez que os benefícios da
globalização são para poucos, para uma elite. Para os pobres restam apenas
os riscos, como não aprender ler e escrever e ficar fora do mercado de
trabalho. Isso ocorre em uma sociedade que supervaloriza essas habilidades,
beneficiando sempre os que são os maiores detentores dos bens produzidos
114
historicamente pela humanidade. O outro abre espaço para reflexão, escolha,
apartando caminhos para processos emancipatórios. E isso fica mais nítido,
ainda, no texto a seguir:
Oziêlton: Depois que você começou a participar do Projovem houve alguma mudança na sua vida que considere importante? Lúcio: (peraí) foi bom sabe, o grupo, os amigos (+++) e também me ajudou no trabaio. Antes quando eu não sabia, assim, num intendia das coisas, recebia dez real o dia, eles davam o qui quiria, agora que sei, quero cobrar trinta, e se for assim eles não querem mais. Aí quando fico sem trabaiá porque num acho quem paga direito o povo me chama é de priguiçoso. /.../ mais só vou quando acho quem paga mais, vinte e cinco, trinta ou mais, dependendo do sirviço aí negocio.
Nesse ato de fala, temos um empoderamento na construção
identitária do homem e da mulher do campo, pois o ponto de vista de Lúcio tem
sido recorrente entre muitos trabalhadores e trabalhadoras rurais. A partir do
momento que os sujeitos passam a refletir e optar assumem uma posição de
poder em uma estrutura social que antes não lhes dava a chance de escolher.
Agora ele sabe o que seria justo, e tem consciência que se cobrar
um valor muito alto, os patrões não vão querer, mas também não trabalha mais
por uma quantia tão insignificante. Surge, então, o campo da mediação, da
negociação, isso é próprio das contradições, embates com as possibilidades,
criando um novo ponto de vista dentro de um mundo possível, fazendo surgir
novos aspectos nas identidades assumidas pelos camponeses na
contemporaneidade.
Mais do que saber cobrar, percebemos a construção de uma
consciência crítica, quando o entrevistado demonstra não comprar a ideia de
que o camponês não quer trabalhar. Assim, o Projovem gera um
empoderamento dos sujeitos, os quais vão poder decidir em função de um
caminho construído em que eles mesmos não se veem como “vagabundos”,
passando a existir possibilidades de construção de uma nova identidade no
campo, com novas possibilidades de atuação.
Nesse contexto está materializado o pensamento de Freire (1997)
para quem o homem transforma a realidade a partir da sua consciência
transformada, e é isso que estabelece a possibilidade de constituição de
sujeitos revolucionários, capazes de construir processos de
emancipação/libertação a partir das contradições vivenciadas nas práxis
115
cotidianas. Ações cotidianas contra-hegemônicas podem viabilizar processos
de descolonialidade, inicialmente do ser, depois do saber e consequentemente
do poder.
Esses processos estão acontecendo em consonância com as ações
que possibilitam a construção de identidades. Retomando a discussão
realizada na seção 4.3 a respeito da construção identitária enquanto processo
de identificação, percebemos no discurso acima um embate entre relações
sociais dos diversos grupos que materializam, até certo ponto, as formas de
construção de identidades propostas por Castells (1999).
Na fala, “Antes quando eu não sabia, assim, num intendia das
coisas, recebia dez real o dia, eles davam o qui quiria”, fica claro que o
camponês era explorado por aqueles que o contratavam para trabalhar, a
presença dos vocábulos “recebia” e “davam” denotam a ausência da cobrança
pelo trabalho.
O agricultor assimila essa forma de ser e viver criada por outros para
si e a naturaliza, temos então a construção de uma identidade legitimadora,
pois foi introduzida por uma instituição dominante, representada pela figura do
patrão, com a possível intenção de expandir o seu poder de dominação, ou
pelo menos manter o status quo que o beneficia.
É preciso destacar, porém, que as vivências e práticas cotidianas,
incluindo a prática educacional em análise, o Projovem, possibilitaram ao
camponês se apropriar de mecanismos que lhe permitisse construir um saber,
a partir do qual passou a refletir e a analisar sua própria realidade, não
aceitando os processos de dominação/opressão a que historicamente os povos
do campo foram submetidos.
Com isso, temos o processo de construção identitária denominado
de identidade de resistência, uma vez que foi construída por alguém que se
encontrava em posição desvalorizada ou estigmatizada, possibilitando a
criação de resistências. Isso está bastante visível nas passagens: “agora que
sei, quero cobrar trinta, /.../ mais só vou quando acho quem paga mais, vinte e
cinco, trinta ou mais, dependendo do sirviço aí negocio”.
A partir desse discurso, podemos refletir acerca da possibilidade de
uma nova realidade vivenciada no campo na atualidade. Está se tornando
recorrente a falta de trabalhadores em fazenda ou nas grandes propriedades
116
para realizar os trabalhos braçais. Muitos continuam reproduzindo o discurso
de que é em decorrência da preguiça ou porque todos recebem bolsa do
governo e não querem mais trabalhar.
No entanto, Lúcio nos mostra um novo posicionamento, uma
realidade também possível, que torna o perfil identitário do camponês ainda
mais múltiplo, plural. Estamos nos referindo ao fato de que muitos
trabalhadores que não aceitam determinados trabalhos, fazem isso porque hoje
tem outras possibilidades de escolha, novas opções, antes ou trabalhavam e
recebiam o que o patrão pagasse ou morriam de fome.
Assim, mesmo não podendo afirmar que estamos diante da
construção de uma identidade projeto em decorrência da necessidade de uma
pesquisa mais ampla centrada especificamente nesse aspecto, percebemos
que no grupo pesquisado um novo material cultural está sendo utilizado, a
posição social dos sujeitos está sendo modificada e transformações estão
ocorrendo.
Essa discussão denota que, no meio rural, a mudança nas relações
sociais é bastante nítida, antes o patrão escolhia seus trabalhadores, hoje
diante das diversas possibilidades de sobrevivência os trabalhadores é que
decidem onde trabalhar e já conseguem negociar as condições de trabalho.
Recorrendo ao diário etnográfico, podemos ampliar essa discussão
a partir de um trabalho de reflexão sobre a realidade dos educandos e
educandas a partir do conto “O preso” do autor Moreira Campos. A atividade foi
realizada no tempo escola pelos professores do Projovem. Foi destacado que a
narrativa seria utilizada para discutir com os educandos as relações de poder e
os preconceitos sofridos pelos pobres e miseráveis na sociedade de hoje.
A partir do título do conto, uma das professoras (Marta) fez uma
atividade em que os alunos deveriam representar por meio de desenhos duas
situações vivenciadas no decorrer da vida, uma em que se sentiu preso e outra
em que conquistou a liberdade.
Nesse processo de letramento em que a linguagem, por meio da
oralidade, da leitura e da escrita, estava sendo usada para representar práticas
sociais, nos chamou atenção a seguinte situação narrada pela educanda
Soraia:
117
Me sentia presa, quando todos os dias tinha a obrigação de ir barrer, digo, varrer terreiro, lavar roupa, cozinhar ou limpar casa para sobreviver. Tinha que ir, se não fosse passava era fome, minha família era pobre e tinha muitos irmãos pequenos, ia ajudar os outros, ganhava comida e mais alguma coisa que dava para minha mãe, é isso que está aqui no desenho e isso me prendia, humilhava, praticamente não tive infância. Ser livre pra mim é criar meus filhos bem, mandar eles pra escola, cuidar da minha família e ter o que comer sem ser obrigada a trabalhar quase de graça na casa dos outros. Hoje eu trabalho na casa de uma senhora, mas só quatro horas por dia, digo o que posso fazer e acerto o pagamento com ela, não é mais como antes que pagavam o que queriam. Se forem com sabedoria pro meu lado eu saio, tenho outras formas de sobreviver.
Considerando a conjuntura acima, percebemos que liberdade e
opressão no campo, na visão dos camponeses, estão relacionadas ao poder
de escolha. Quando eles estão diante de situações em que não tem opção e
são obrigados a seguir um único caminho, sentem-se oprimidos, já o fato de
poderem escolher e terem outras possibilidades a sua disposição dá a eles o
status de liberdade.
Dessa maneira, esse novo papel social, do agricultor que se impõe
e negocia está sendo assumido por muitos trabalhadores e trabalhadoras que
vivenciam a realidade do campo. Essas novas características identitárias estão
sendo construídas por meio da diferença, da relação com o outro, trata-se do
que Freire (1997) discute ao se referir a busca do ser mais.
6.4 SIGNIFICADO IDENTIFICACIONAL: AVALIAÇÃO
Considerando o significado identificacional como um elemento mais
próximo da prática discursiva em si, nos detemos a sua análise através da
categoria avaliação, por considerarmos que a mesma esteja presente com
bastante intensidade nos discursos (re)produzidos pelos colaboradores da
pesquisa.
No decorrer das vivências etnográficas, as avaliações afirmativas
foram constantes, assim como as afirmações com verbos de processo mental
afetivo e as presunções valorativas.
Ao discutir sobre leitura e escrita com os educadores e educadoras,
eles realizam processos avaliativos ao produzir e/ou reproduzir discursos. O
fato deles sempre associarem leitura e escrita no Programa às práticas de
118
letramentos nos instigou a buscar em suas falas aspectos que denotem a
influência dos letramentos na construção da identidade dos camponeses.
Pretendemos compreender como os sujeitos expressam
comprometimento em relação a valores de forma explicita ou implícita.
Vejamos o discurso de uma educadora do Programa:
Oziêlton: E os alunos (+), como são em relação à leitura e a escrita? Como essas práticas estão presentes na vida deles? Joana: Bem, tem né os melhores, que lê, são bons mesmos e tem aqueles que sabem menos, aqueles com muita dificuldade. Só para você ter uma ideia da diferença, tem aluno que sabe ler e escrever tudo, mas tem uns que não sabem nem ler a conta de luz ou cobrar um dia de serviço direito. A gente precisa ensinar a eles para que eles possam melhorar de vida, arranjar um emprego, só lendo e escrevendo é que vão poder buscar isso /.../.
A fala da educadora expressa um tipo de pensamento, até certo
ponto, perigoso, por ser potencialmente excludente devido ao fato de que, na
contemporaneidade, grupos sociais tidos como não letrados ou com o nível de
letramento considerado baixo, têm sido colocados à margem da sociedade,
pois são tidos como “menos”, inferiores, indignos, inclusive, de papeis sociais
ou cargos valorizados pela sociedade letrada.
A naturalização dessa ideologia vem reforçar práticas
discriminatórias ao considerar com valor aquilo/aquele que está vinculado ao
letramento e demarcar aquilo/aquele que não se apropriou das práticas
letradas como algo sem valor, sem espaço dentro da sociedade atual.
Cabe nesta ocasião retomarmos a fala do educando registrada no
diário etnográfico e apresentada no início deste trabalho: “(...) quando menos
se espera né a gente acaba lendo. Vamo sair daqui igual uns doutor”.
Aqui como na entrevista dada pela professora, encontramos uma
concepção funcionalista de letramento e isso influencia para legitimar as
desigualdades e manter os camponeses que não possuem “o letramento” ou
são letrados aquém do nível considerado satisfatório pelo grupo possuidor do
letramento padrão à margem da sociedade.
A professora expressa por meio de afirmações avaliativos uma
espécie de julgamento dos alunos tomando como parâmetro os letrados e os
não letrados. O primeiro grupo é avaliado como: “melhor”, “lê”, “bons”, “tudo”; já
o segundo é concebido como: “menos”, “dificuldade”, “não sabem nem”.
119
Ainda em relação às questões inerentes ao letramento, vale
destacar outro ponto discutido com a professora citada anteriormente:
Oziêlton: Qual a importância do letramento? Joana: Bem ((coloca a mão na cabeça e pensa)),é as::sim. Quem não tem a oportunidade de receber o letramento necessário está fora da sociedade, não tem vez nem voz. Aí vão fazer qualquer coisa, mais, dificilmente, conseguem melhorar de vida. Vão ficar na mesma. Por isso que a gente tem que letrar e alfabetizar nossos alunos.
Para expressar o seu conhecimento em torno da importância do
letramento a professora já inicia com um processo valorativo por meio da
expressão “quem não tem”, a qual nos permite inferir o oposto “quem tem”. Isso
materializa a classificação dos sujeitos em letrados e não letrados.
Já a forma “receber” denota o que Street (2014) denomina de
modelo autônomo de letramento. Evidencia-se também que as concepções
ideológicas da educadora acerca do ato de letrar possuem uma base
funcionalista, ficando claro que para ela o letramento é o conjunto de
habilidades transferíveis que seriam responsáveis pelo sucesso de alguém, de
maneira que suas consequências sociais são pontos pacíficos – maiores
oportunidades de emprego, mobilidade social, vidas mais plenas.
Por fim, mas não menos importante, a passagem “vão ficar na
mesma” mostra que os alunos moradores do campo, na visão da educadora,
possuem uma identidade e uma realidade quase estática, parada e que só os
que conseguirem adquirir esse letramento é que vão conseguir determinadas
mudanças.
Isso enfatiza a legitimação das identidades já existentes “os não
letrados”. Integrado a elas estão os processos de opressão, exploração e
dominação, contribuindo para manutenção da colonialidade, uma vez que, em
um processo dialético, os discursos constroem a realidade, a qual também é
construída por eles.
A partir da fala da educadora, inferimos que algumas ideologias que
norteiam a sua prática educativa, possibilitam que ela reproduza pensamentos
dominantes, não permitindo que todas as ações funcionem como uma contra-
ideologia, ou seja, que os meios de opressão sejam identificados, a solução
seja trabalhada com o seu oposto, mostrando que o saber, o poder e próprio
120
ser que se constituem numa perspectiva individual ou social podem estar a
serviço de determinados grupos que detém o poder.
Em se tratando das afirmações com verbos de processo mental
afetivo, temos a fala de uma educadora para evidenciar como esse processo
inerente à categoria avaliação se delineia nas práticas discursivas analisadas.
Vejamos:
Oziêlton: Quais são suas expectativas em relação ao Projovem? E em relação ao futuro dos moradores(as) do campo? Marta: é ((fica pensativa)), eu espero que o Projovem continue, os meninos tem maior vontade de estudar, eu gosto de ver eles empolgados falando em ir para o ensino médio. Aí me preocupo, sabe, a escola tradicional não está preparada para receber eles. Estão construindo uma escola do campo de ensino médio aqui no município, pode ser, né (++++), que se ela sair os meninos continuem os estudos, porque a verdadeira educação, aquela que se faz para toda a vida não pode acontecer só com um projeto, tem que dá continuidade. Se tiver investimentos, mais política voltadas para esse povo o futuro aqui será muito promissor, adoro quando recebo a notícia de que alguém que estava na cidade voltou a morar no campo e está feliz entre nós. Isso mostra que aqui está é melhorando /.../ passa até na TV, o povo voltando e mais feliz.
Ao expressar suas expectativas, a educadora faz uma avaliação
positiva dos educandos em relação ao empenho e desejo dos mesmos para
continuar estudando, isso fica claro quando a mesma utiliza uma afirmação
com verbo de processo mental afetivo, ou seja, o verbo “gosto”. Em primeira
pessoa no modo indicativo, representa a subjetividade e a certeza do
sentimento.
É semelhante o que ocorre com a utilização do verbo “adoro”, outra
afirmação com verbo de processo mental afetivo, dessa vez a professora está
reconhecendo a melhoria da qualidade de vida no campo. Como argumento,
reproduz um discurso bastante recorrente na mídia, que muitas pessoas que
saíram do campo estão retornando porque a vida nessa região melhorou.
Vale destacar, nessa fala, um aspecto do primeiro significado
analisado, o acional. Temos uma intertextualidade do discurso da educadora
com os discursos que circulam no domínio midiático, afinal o ato de fala da
professora reproduz uma prática social que vem se tornando mecanismo de
apropriação de alguns programas de televisão.
121
Um exemplo é o quadro “De volta para minha terra” e outros que
supervalorizam essa situação do retorno à terra natal, sem questionar as reais
causas da saída e também os motivos que fizeram com que inúmeras famílias
não tivessem conseguido êxito em seus processos migratórios.
Retomando a categoria avaliação, destacamos no fragmento textual
em análise a presença de presunções valorativas, materializadas através dos
vocábulos “a verdadeira” e “esse povo”.
O primeiro está valorando, de forma objetiva, um determinado tipo
de educação “aquela que se faz para toda a vida”. A maneira como a categoria
avaliação está sendo utilizada na fala da professora não é implícita, fica
bastante claro o que ela está valorizando e o porque. Esse tipo de educação
destacado pela entrevistada é o que segundo ela é desejável para os
camponeses.
O segundo tem a intenção de valorar um determinado grupo. “Esse
povo”, refere-se aos moradores do campo, coletivo que tem importância
suficiente, na visão da professora, para ser considerado de maneira
significativa durante a elaboração das políticas públicas. Uma educação
contextualizada para eles deve estar na pauta governamental. Aqui, mais uma
vez está presente o discurso de que a Educação do Campo é um direito e deve
ser garantido pelo Estado.
Recorrendo ao Projeto Base do Projovem, identificamos um
fragmento em que por meio dos processos avaliativos, o poder público
reconhece a existência das desigualdades e a necessidade de superá-las: De
forma impessoal, tentando construir um tom de neutralidade, mas ao mesmo
tempo se posicionando do lado dos desiguais, o Estado reconhece a
necessidade de:
Esse objetivo das aprendizagens do programa, é também, uma
forma de responder a um discurso que se pauta por uma percepção negativa
Identificar os mecanismos de desigualdades étnico-raciais existentes na sociedade brasileira, procurando formas de enfrentamento e superação das manifestações locais destas desigualdades e discriminações (p.53)
122
de alguns grupos constitutivos do povo brasileiro, inclusive, a diversidade que é
denominada moradores do campo.
Fica claro que há, no processo de identificação e na maneira como
são avaliados, formas de estigmatização e opressão, existe um processo
contrario de desnaturalização do discurso da igualdade e abre-se espaços para
discutir as diferenças e superar os preconceitos construídos historicamente.
Com essas afirmações, o Projovem se compromete em termos do
que pode ser feito, revelando uma postura de defesa dos grupos que sofrem
discriminação e opressão, os quais constituem a gigantesca parcela da
sociedade denominada de moradores do campo.
123
7 CONCLUSÕES
Esta parte do trabalho, mais do que abordar as considerações finais
sobre tudo que discutimos, é um espaço dedicado às reflexões das análises
construídas com base nos significados e nas categorias estudadas.
Considerando o enquadre metodológico da ADC (CHOULIARAKI;
FAIRCLOUGH, p.60), a última etapa consiste exatamente em refletir acerca da
análise, com isso, continuaremos nessa parte final do texto discutindo de
maneira sintética possibilidades de interpretações para a realidade da qual
participamos com intuito de gerar dados para a presente pesquisa.
Iniciamos discutindo a respeito da confidência que fizemos no início
do trabalho, nos referimos ao fato de termos deixado claro para você leitor que
o criador das várias vozes que vos falam neste trabalho encontra-se em um
movimento dialético com a realidade em análise, estamos falando da
participação no Projovem Campo – Saberes da Terra como professor, formador
e agora pesquisador, o que em vários momentos nos situa num entre-lugar.
Temos então um trabalho parcial, no entanto essa parcialidade não
é negativa, pois deixamos clara a perspectiva de análise e em nenhum
momento construímos uma falsa imparcialidade científica. Por isso, todo este
trabalho foi construído de maneira posicionada, desde as teorias adotadas, os
métodos desenvolvidos, até os recortes e escolhas realizados no referencial
teórico e no objeto de pesquisa.
As análises realizadas são, na verdade, resultados de
posicionamentos, escolhas, pois se tomássemos o mesmo objeto e o
tratássemos a partir de um outro ponto de vista, necessariamente teríamos que
nos apropriar de outras teorias e métodos, o que viabilizaria uma análise
distinta da que realizamos.
Baseados em Fairclough (2003), compreendemos que isso se dá
porque toda ciência que se propõe crítica, parte do pressuposto de que a
realidade não pode ser restringida ao conhecimento que determinado grupo
possui sobre ela, de maneira que nenhum trabalho consegue dar conta de tudo
que há para ser dito sobre um problema estudado.
Diante disso, a análise de discurso que realizamos faz com que as
considerações realizadas acerca dos textos sejam inevitavelmente seletivas,
124
pois respondemos questões pontuais a respeito de uma prática discursiva
determinada.
Após essas reflexões e diante da necessidade de estabelecermos as
considerações finais, que, já adiantamos, são conclusivas para este trabalho,
mas não para o objeto estudado, pois, do ponto de vista etnográfico, vários
outros caminhos são possíveis, retomamos os questionamentos iniciais a fim
de sugerirmos algumas respostas.
Como se dão os processos de construção de identidades dos
moradores do campo a partir das práticas linguísticas educacionais? De que
forma os depoimentos e vivências em momentos pedagógicos dos moradores
do campo, enquanto discursos, mediados pelas ações cotidianas do Projovem
Campo – Saberes da Terra, revela um novo posicionamento identitário? Que
práticas de letramentos presentes tanto na fala dos moradores do campo como
nos documentos do programa contribuem para a formulação de identidades?
As práticas de letramentos, se configuram como processos a serviço da
dominação e/ou da libertação, da colonialidade e/ou da descolonialidade?
De maneira geral, buscamos compreender como vem se
estruturando a construção de uma nova identidade discursiva para os
moradores do campo, no âmbito das práticas educacionais do Projovem
Campo - Saberes da Terra.
A partir dessas questões, integradas ao referencial teórico e ao
percurso metodológico, nos quais discutimos os estudos descoloniais, as
práticas de letramentos, a análise de discurso numa perspectiva crítica, as
questões de identidade e a etnografia, destacamos a contribuição desta
pesquisa por proporcionar uma articulação entre a Educação do Campo e
esses temas.
Isso se deu porque as análises que realizamos foram capazes de
evidenciar ações discursivas que denotam contradições, reproduções,
alienações e libertações, aspectos esses um pouco obscuros aos olhos da
sociedade e de muitos sujeitos envolvidos no Projovem Campo – Saberes da
Terra.
Em linhas gerais, podemos dizer que os diversos sentidos
construídos para os sujeitos do campo fazem com que a identidade do
camponês seja múltipla, não temos um perfil identitário homogênio para os
125
moradores e moradoras do campo. Essa diversidade foi estabelecida no
processo sócio-histórico por meio das contradições, ou seja, os momentos das
práticas sociais em que as ações contra-hegemônicas ganham espaço.
Vale destacar que o processo de construção das identidades não
tem acontecido apenas por meio das contradições, elas também se constroem
a partir das reproduções.
Baseados em Castells (2009), identificamos na análise tanto a
presença de identidades legitimadoras, através das práticas alienadoras,
quanto as identidades de resistência, criadas pelos próprios camponeses
diante das contradições.
Só não identificamos na comunidade, até o presente momento, a
construção de identidades de projetos, porque as posições, que vem sendo
definidas pelos camponeses na sociedade, são tênues e a estrutura social
ainda tem muitos aspectos a serem transformados.
O que percebemos foi um novo posicionamento identitário por parte
de alguns membros da comunidade quando eles se impõem e ganham espaço
rompendo com as antigas práticas de opressão quase naturalizadas no campo.
Isso fica claro quando os próprios camponeses passam a significar-se de outra
maneira em situações cotidianas como as relações de trabalho, a participação
em eventos da comunidade que envolvem o uso da leitura e da escrita e as
condições materiais para sobrevivência.
Constatamos que os processos de letramentos vivenciados nas
práticas educacionais desenvolvidas no Projovem se materializaram tanto
como representativas do modelo ideológico quanto do modelo autônomo, o que
possivelmente possibilita a concorrência de antigas e novas identidades em um
espaço que historicamente não foi concebido a partir do caráter da mudança.
Com isso, temos um espaço de disputas, onde os letramentos têm
contribuído com os processos de opressão e libertação, colonialidade e
descolonialidade. Nesse sentido, continuar pesquisando a articulação de
discursos distintos é central para perceber a presença desses letramentos no
cotidiano dos diversos sujeitos, assim como os impactos dos letramentos na
legitimação, resistência e/ou (re)constituição das identidades dos moradores do
campo.
126
Muitos moradores do campo já estão tomando consciência da
realidade em que vivem, objetivando-a, submetendo-a a sua reflexão para
perceber os condicionantes que os envolvem, passando a produzir ações
contra-hegemônicas aos processos de opressão. Mas alguns, ainda
permanecem com a sombra do colonizador introjetada em si. Isso faz com que
haja a necessidade de continuidade e fortalecimento da luta.
Ficou evidente que a transformação ou a manutenção das práticas
sociais passam, necessariamente, pela transformação das práticas linguísticas
e que esses dois aspectos convivem e concorrem em todos os aspectos da
nossa realidade social, inclusive no campo.
Diante disso, concebemos que o Projovem Campo – Saberes da
Terra embora seja um programa construído com base em diversas
experiências dos povos do campo e acerte em sua proposição de procurar
mudar a realidade material, ao elaborar documentos, promover o debate sobre
a questão da identidade dos moradores do campo, não chega a construir um
processo emancipatório ou libertador semelhante ao que Freire postula.
Isso vai muito além de fornecer condições materiais, passa por um
esboço de uma pedagogia com vistas à libertação, que só é possível através
da conscientização. Além de enfrentar o grande desafio de continuar existindo,
o Projovem é, para nós, uma iniciativa de mediação, que deve ser considerada
como tal, e como toda política, precisa ser avaliado e melhorado no sentido de
atender mais e melhor as necessidades dos sujeitos que atende.
Enfim, para alcançar a meta de continuar transformando a sociedade
da qual fazemos parte, precisamos ser capazes de compreendê-la para, a
partir disso, desenvolver a consciência crítica. Esse é o meio mais viável para
os oprimidos perceberem como suas maneiras de conceber a realidade se
encontram marcadas pelas ideologias dos grupos dominantes. Reconhecer
isso é o primeiro passo para promover as mudanças necessárias. Na realidade
observada, percebemos que os jovens do campo, inseridos em programas de
elevação da escolaridade, estão compreendendo os processos de opressão e
reagindo contra eles.
Percebemos nas análises que o discurso e as práticas sociais
constituem-se como elementos centrais no que concerne a busca pela
hegemonia nas relações de poder estabelecidas na sociedade, as quais se
127
constituem pela dialética entre as disputas ideológicas que buscam manter a
opressão, gerando a colonialidade e as ações contra-hegemônicas que
buscam desconstruir e superar os processos de dominação, construindo ações
descoloniais, visíveis nas práticas linguísticas educacionais analisadas.
Assim, esperamos que as reflexões acima possam extrapolar o
âmbito acadêmico, gerando discussões entre os diversos movimentos sociais,
que lutam por melhorias para o campo, o poder público e outros setores da
sociedade.
128
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APÊNDICES
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APÊNDICE A
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS COM OS
EDUCANDOS E EDUCANDAS
1. Qual o seu nome?
2. Quantos anos você tem?
3. Onde você mora? Há quanto tempo?
4. Antes de entrar no Projovem, você já tinha estudado até que ano/série?
5. Como é o seu dia a dia? O que você faz?
6. Por que você parou de estudar?
7. Por que você voltou a estudar?
8. Por que você está no Projovem?
9. O que você pensa em relação à identidade de morador(a) do campo?
Para você, o que é ser morador(a) do campo?
10. O que a sociedade, as outras pessoas, pensam ou dizem sobre os
moradores(as) do campo?
11. Quais as características do homem e da mulher do campo nos dias de
hoje?
12. Como é a vida no campo?
13. Hoje, o que faz você se sentir preso, oprimido? O que faz você se sentir
livre?
14. Como são desenvolvidas as atividades no Projovem?
15. Que atividades de leitura e escrita você costuma fazer no Projovem, em
casa ou na comunidade?
16. O que você lê no dia a dia? Por quê? Para quê?
17. Como você usa a leitura e a escrita no seu dia a dia?
18. Como você avalia seu desempenho nos usos que faz da leitura e da
escrita?
19. Depois que você começou a participar do Projovem houve alguma
mudança na sua vida que considere importante?
20. Quais são suas expectativas em relação ao Projovem? E em relação ao
seu futuro enquanto morador(a) do campo?
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APÊNDICE B ROTEIRO DAS ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS COM OS
EDUCANDORES, EDUCADORAS E COORDENADORA
1. Qual o seu nome?
2. Quantos anos você tem?
3. Onde você mora? Há quanto tempo?
4. Qual a sua formação acadêmica?
5. Há quanto tempo trabalha na educação?
6. Por que você está trabalhando no Projovem?
7. Como o Programa funciona?
8. O que você considera positivo e negativo no Programa?
9. O que você pensa em relação à identidade de morador(a) do campo?
Para você, o que é ser morador(a) do campo?
10. O que a sociedade, as outras pessoas, pensam ou dizem sobre os
moradores(as) do campo?
11. Quais as características do homem e da mulher do campo nos dias de
hoje?
12. Como é a vida no campo?
13. Como são desenvolvidas as atividades no Projovem?
14. Que atividades de leitura e escrita você costuma desenvolver no
Projovem, em casa ou na comunidade?
15. Como os educandos (as) usam a leitura e a escrita no cotidiano?
16. E os alunos, como são em relação à leitura e a escrita? Como essas
práticas estão presentes na vida deles?
17. Qual a importância do letramento?
18. Existe alguma relação entre o Projovem e os movimentos sociais, mais
especificamente com o MST?
19. Com o Projovem houve alguma mudança na vida dos educandos(as)
que você considere importante?
20. Quais são suas expectativas em relação ao Projovem? E em relação ao futuro dos moradores(as) do campo?
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