View
222
Download
1
Category
Preview:
Citation preview
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE CASTANHAL
FACULDADE DE LETRAS
HELLEN MONTEIRO FEITOSA
O TEMPO E O ESPAÇO COMO CRITÉRIO DE CONSTRUÇÃO DO JOGO DO DUPLO DENTRO DA OBRA MIGUEL MIGUEL DE HAROLDO MARANHÃO
CASTANHAL 2010
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE CASTANHAL
COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS
HELLEN MONTEIRO FEITOSA
O TEMPO E O ESPAÇO COMO CRITÉRIO DE CONSTRUÇÃO DO JOGO DO DUPLO DENTRO DA OBRA MIGUEL MIGUEL DE HAROLDO MARANHÃO
ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO AFONSO GONÇALVES ALVES
Trabalho de conclusão de curso apresentado para a obtenção para a obtenção de grau de Licenciatura Plena em Língua Portuguesa – Letras pela Universidade Federal do Pará Campus-Castanhal.
CASTANHAL 2010
3
HELLEN MONTEIRO FEITOSA
O TEMPO E O ESPAÇO COMO CRITÉRIO DE CONSTRUÇÃO DO JOGO DO DUPLO DENTRO DA OBRA MIGUEL MIGUEL DE HAROLDO MARANHÃO
Trabalho de conclusão de curso apresentado para obtenção de grau de Licenciatura Plena em Língua Portuguesa–Letras, pela universidade Federal do Pará, campus Castanhal.
Data da defesa: ___/___/___
BANCA EXAMINADORA:
_______________________________________________ Profº. Dr. Sérgio Afonso Gonçalves Alves (Orientador)
________________________________________________ Profª. Dra. Sylvia Trusen (Examinadora)
4
DEDICATÓRIA
Dedico aos meus pais Joaquim e Rosangela que venceram barreiras intransponíveis em função do melhor para mim; Meu irmão Jefferson (In memorian) que idealizou comigo esse estudo (presença na ausencia)
5
Agradecimentos
Agradeço primeiramente a Deus, o meu bem maior, que me ajudou a chegar até aqui sem que eu desistisse de nenhum dos meus sonhos. Tu sempre serás a rocha em que eu posso firmar a minha vida. Não há amigo melhor e mais fiel! Agradeço aos meus pais Joaquim e Rosangela, que muitas vezes abdicaram de seus sonhos para realizar os meus e de meu irmão. Mãe, você é a mulher mais guerreira e protetora que já vi por isso, eu te admiro e te amo tanto! Pai, obrigada por ser o melhor pai do mundo! Vocês são o meu maior exemplo de vida! Ao meu irmão que partiu, mas deixou sementes plantadas pra que eu cuidasse e elas a cada dia que passa estão brotando e dando frutos. Valeu cada minutinho ao teu lado. Te amo maninho! Ao meu namorado Helder, que foi compreensivo e me suportou todas as vezes que ultrapassei os limites da chatice (e olha que não foram poucas!). Obrigada por ser meu porto seguro. “Sempre vou querer mais desse amor...” Amo você!(bem muitão, rsrsrs) Aos meus parentes, tios e primos (sem exceção) que torceram por mim e vibraram com todas as minhas conquistas até hoje. Sei que posso contar com vocês. Aos meus avós que tanto amo. Vó, sei que no meio de um montão de netos você lembra de mim em suas orações. Aos meus tios Rúbia e Roberto que foram os meus “padrinhos” desde que me entendo. Vocês não fazem idéia do quanto são importantes em minha vida. Que Deus recompense todas as vezes que me abençoaram. Às minhas amigas–irmãs Jordana, Nazaré e Wilsiane (quarteto fantástico, rsrsrs), que estiveram nos bons e nos maus momentos ao meu lado. Sei que a nossa amizade não vai se resumir à faculdade. Vocês são como jóias preciosas que Deus colocou em minhas mãos para eu cuidar À turma de letras 2006 da CUNCAST que tornou-se para mim uma família de muitos irmãos durante esses quatro anos. Jamais os esquecerei! À Igreja Pentecostal Missionária do Brasil em Castanhal da qual eu faço parte. Sei que nunca cansam de orar por mim e é por isso que sou tão abençoada! Só Deus para recompensá-los. Aos meus amigos que de forma explicita ou implícita contribuíram para a elaboração desse trabalho.
Valeu!!!
6
“Se o real me incomoda e se desejo livrar-me dele, me desembaraçarei de uma maneira geralmente mais flexível, graças a um modo de recepção do olhar que se situa a meio caminho entre a admissão e a expulsão pura e simples: que não diz sim nem não à coisa percebida, ou melhor, diz a ela ao mesmo tempo sim e não. Sim à coisa percebida, não às consequências que normalmente deveriam resultar dela." Clément Rosset
7
Resumo
Este trabalho de conclusão de curso objetiva apresentar características acerca do
duplo dentro da obra Miguel Miguel de Haroldo Maranhão. No decorrer de quatro
capítulos ele mostra através de análises o jogo interno da narração nos elementos
tempo e espaço, além das características do autor da obra por meio de um breve
histórico composto por entrevistas e críticas de jornalistas e literários. A análise
dessa obra mostra a relação entre tempo e espaço e como essa aproximação
influenciou a escrita e a obra de Haroldo Maranhão no que diz respeito à construção
do sentido duplo na narrativa.
Palavras- chave: Duplo, Haroldo Maranhão, Narrativa
Abstract
This essay aims to present features about the Double meaning in the work of
Miguel Miguel Haroldo Maranhão. In the four chapters course he shows through
analysis Inner Game of narrative elements in time and space, and the characteristics
of the author’s work through a brief history on interviews and reviews from journalists
and writers. The analysis of this work shows the relationship between time and
space and how this approach influenced the writing and the work of Haroldo
Maranhão regarding the construction of the double meaning in the narrative.
Keywords: Double. Haroldo Maranhão. Narrative.
8
Sumário
Introdução------------------------------------------------------------------------------------------------9 Capitulo I Haroldo Maranhão e a crítica ----------------------------------------------------------------------11 Capitulo II O Jogo do Duplo em Miguel Miguel---------------------------------------------------------------16 Capitulo III 1.1 - O Jogo do Tempo e o Duplo-----------------------------------------------------------------20 1.2 - O tempo da história---------------------------------------------------------------------------- 20 1.3 - O tempo do discurso---------------------------------------------------------------------------21 Capitulo IV O Jogo do Espaço e o duplo------------------------------------------------------------------------25 Conclusão----------------------------------------------------------------------------------------------- 28 Referências Bibliográficas---------------------------------------------------------------------------29
9
Introdução
O duplo é tema recorrente na literatura antiga e moderna. É assunto alvo de
estudo nas mais diversas áreas do conhecimento, talvez pelo fascínio que ele traz a
leitores e observadores da vida. Várias obras literárias e cinematográficas que
tratam desse assunto despertaram interesse de muitos críticos renomados tanto no
campo da literatura como no da psicologia. De diversa formas o duplo já foi
abordado: através de gêmeos, sósias, sombras, reflexos, pelo desdobramento de
personagens... Em fim. O fato é que desde muito tempo ele é retratado e ainda hoje
é tão atual como foi antes. A maneira que é trabalhado varia de autor para autor,
com grande influencia da época da obra, levando em consideração que o tema da
dupla personalidade sofreu mudanças ao longo do tempo como comenta Otto Rank,
um dos grande estudiosos do assunto, em sua obra:
Embora estas diversas novelas apresentem notável similhança na sua estrutura geral, o tema sobre a Dupla personalidade sofre várias transformações de acordo com os característicos pessoais da afetividade do autor. 1
A diferença que cada autor trata este tema trouxe-nos à análise da temática
do duplo na obra Miguel Miguel de Haroldo Maranhão. No primeiro capitulo será
falado um pouco sobre a vida do autor e da recepção crítica de suas obras e
pensamentos, assim como a característica geral de seus trabalhos que julgamos
importante para o trabalho aqui desenvolvido. Para servir de base para os nossos
comentários será usado teses, entrevistas, comentários de autores, professores,
jornalistas e críticos literários como Benedito Nunes, Sérgio Afonso Alves, Elias
Pinto, entre outros estudiosos da vida que conviveram com ele ou apenas admiram
ou admiravam seu trabalho.
No segundo capitulo o que será trabalhado são as características do duplo
dentro da obra de uma forma geral. Os teóricos utilizados para embasamento deste
capitulo são Nicole Fernandez Bravo e Adilson dos Santos.
O terceiro capitulo tratará da importância do tempo para o texto de Haroldo
Maranhão no desenvolvimento da temática do duplo, quais as características desse
1 RANK, Otto. O duplo. (versão fotocopiada) s.ed., s.d.
10
elemento dentro da obra e de que maneira ele é abordado. Para essa análise será
usado os pontos de vista de Benedito Nunes, João Adalberto Campato e Gerard
Genett.
O quarto capitulo falará sobre o espaço dentro da obra. Esse elemento da
narrativa influencia outros como personagem e tempo. Está intimamente ligado ao
tempo e todos eles contribuem para a dubiedade do texto e para a construção do
Duplo dentro da narrativa. Os autores que influenciarão essa análise serão Ozires
Borges Filho, André Gardel e Marisa Martins Gama-Khalil.
Esses teóricos e autores nos servirão de base para análise e nos ajudarão
para uma melhor compreensão do Jogo do Duplo dentro de Miguel Miguel que é o
objetivo maior deste trabalho.
11
1 - Haroldo Maranhão e a crítica
“Eu sou os meus textos; além deles, nada em mim ou de mim tem qualquer importância”
Haroldo Maranhão
A história literária de Haroldo Maranhão se inicia no auge do sucesso
do Jornal Folha do norte, que era de seu avô, quando brincava com seu irmão entre
máquinas, livros e pessoas no jornal. Falamos que aí começou sua história, pois,
esse espaço influenciou muito em sua carreira profissional jornalística e de escritor.
Foi nesse ambiente que ele cresceu sem poder ter uma vida infantil
como as demais crianças. Ele e seu irmão eram impedidos de sair às ruas
constantemente por contas de brigas políticas, pois, podiam ser eles alvos de
vinganças de inimigos de seu avô, o ousado, temido e odiado jornalista Paulo
Maranhão. Amadureceu rapidamente, tornou-se um jornalista policial ainda na
adolescência e assim aprendeu a fazer uma leitura crítica de sua cidade, além de
firmar seu gosto pela literatura nesse período.
O gosto pela escrita acompanhou o autor desde o colegial, onde criou com
seus amigos Max Martins e Benedito Nunes um jornal escolar chamado O colegial
que circulou por várias escolas. Ali, todos tinham a oportunidade de publicar seus
textos expressando suas opiniões. Mais tarde, os mesmos, juntamente com outros
escritores, criaram a Academia dos Novos, a exemplo da Academia Brasileira de
Letras. Reuniam-se na casa de Benedito Nunes e ali recitavam poemas parnasianos
e românticos.
Nessa mesma época, um grupo liderado por Bruno de Menezes agia
difundindo o Modernismo. Não custou para que todos percebessem a importância e
o avanço do novo estilo. O primeiro a deixar a Academia dos Novos foi Max Martins
e com um tempo todos aderiram ao novo estilo literário. Tempos depois, Haroldo
dirigiu um suplemento literário na Folha do Norte, chamado Arte literatura, em que
eram divulgados escritos de autores importantes do Pós-modernismo2.
2CANGUSSU, Dawdson.Uma evolução no suporte do escrito e da escrita em Belém do Pará.Migalhas de
história social da literatura na Amazônia:Suplemento Literário da Folha do norte, 1946-1951.
12
Esse suplemento dominical foi importantíssimo para integração paraense à
literatura nacional. Através dele podia se ter informações e conhecimentos sobre
pensamentos de autores de grande importância no Brasil, assim como integrar os
escritores paraenses ao resto do país.
Apesar de ser cercado por situações favoráveis, sua estréia como escritor só
veio à tona após os 40 anos de idade, quando já morava no Rio de Janeiro, com a
publicação de sua primeira obra ficcional “A estranha xícara” em 1968. Há quem
diga que Haroldo Maranhão teve uma estréia tardia na literatura, porém essa obra
reuniu crônica e estórias curtas que já haviam sido publicadas em jornais e revistas
do país entre 1959 e 1964.
Para escrever suas obras, Haroldo construiu e adquiriu experiências ao longo
de sua vida. Toda sua observação e vivencia, transformou-se em textos. Sérgio
Afonso G. Alves, a esse respeito, diz o seguinte:
A esse propósito, vale dizer que a obra de Haroldo se construiu ao longo dos anos, relacionando suas leituras aos acontecimentos do dia-a-dia de uma cidade. Pessoas comuns, personagens históricos e ficcionais eram, fatalmente, transformados em matéria de ficção. Assim se deu com os livros Vôo de galinha, Jogos infantis, Rio de raivas, Os anões, O tetraneto Del-Rei, Cabelos no coração e Memorial do fim (...) trata-se de perceber que sua escrita não recalca o sujeito que está por detrás da palavra e que o autor é também feito de experiências pessoais. 3
Foi também a partir de observações do dia-dia que Haroldo escreveu Jogos
infantis. O livro reúne estórias eróticas da adolescência e não fica atrás de obras da
literatura erótica universal de autores como Bocage.
Embora distante de sua terra natal, seus textos sempre foram tão paraenses
quanto os textos de escritores que sempre viveram no Pará. Na verdade, suas obras
têm a característica regional, porém, de modo universal, não focalizando só o
caboclo, a pobreza, sexualidade e a violência. Segundo Relivaldo, Haroldo
“Consegue se referir à região sem reduzi-la, englobando-a em conjunto com outros
temas, identificando os problemas, as mudanças, variando e multiplicando as
3 ALVES, Sérgio. Fios da memória, Jogo textual e Ficcional de Haroldo Maranhão: 2006. Tese de
doutorado- Faculdade de letras da universidade federal de Minas Gerais p 25 e 26.
13
possibilidades de leitura. Não existe ligação inextricável entre lugar e excelência
literária”.4
Ele expressa sempre a paixão por sua terra natal de uma forma ou outra em
suas obras, Seja pela fala dos personagens ou pela descrição de sua terra. Usa,
algumas vezes, o linguajar do povo, que está na rua. As obras Porta Mágica, Rios
de raivas, querido Ivan e Os anões são exemplos disso. Falamos isso porque seria
quase impossível alguém conhecer tão bem a realidade de um lugar e escrever um
texto tão recheado dessa realidade se não fosse resultado de uma experiência
profunda e de longo prazo. E em relação a experiência e conhecimento da região
Haroldo é campeão.
Para os críticos, Haroldo Maranhão é um escritor bem diversificado. Escreve
textos ficcionais, tendo como personagens pessoas reais transformadas em material
de ficção, assim ele procede em sua Antologia Pará, Capital: Belém. O real e o
imaginário se embaralham em suas tramas. Dentro da ficção, ele sempre nos
fornece uma leitura crítica da vida, da sua cidade e das pessoas que nela vivem.
Benedito Nunes escreveu o seguinte no prefácio do livro de Haroldo:
Haroldo Maranhão procede como um historiador à busca de testemunhas ao recorrer diferentes fontes escritas - geográficas, antropológicas, etnográficas e históricas propriamente ditas_ que nos prestam informações sobre os vários aspectos da vida da cidade: Sua fundação e desenvolvimento, suas diversas atividades, recreativas, clubísticas, gastronômicas, dramáticas, romanescas, literárias, jornalísticas e artísticas, em que costumes casam-se com mores, os hábitos com a moral, a religião com a política, a política com a linguagem. 5
Haroldo gosta de ser lúdico, brincar com as palavras, jogar com as idéias,
explorar o fantástico, em fim. Ironiza a vida, mostra uma possível realidade ou
realmente nos mostra a verdade. A morte e o duplo, retratados em muitas de suas
obras são umas das características de maior expressividade do escritor, sendo a
última mais importante para o desenvolvimento do presente trabalho. Maranhão,
valendo-se desses recursos, instiga o leitor a entrar no mundo fantástico e explorar
4 OLIVEIRA, Relivaldo. Para dissonar o regionalismo. Blog de Relivaldo de Oliveira, disponível em: relivaldo.blogspot.com/2007/03/para-dissonar-o-regionalismo.html 5NUNES, Benedito. Haroldo Maranhão. In: Pará, Capital: Belém - Memórias & Pessoas & Coisas & Loisas da cidade.
14
as imagens refletidas em espelhos e o sobrenatural. Foi assim em A morte de
Haroldo Maranhão, Memorial do Fim: A morte de Machado de Assis e Miguel Miguel.
Toda sua obra tem uma linguagem clara e acessível, próxima ao leitor. Alguns
de seus trabalhos nos exigem um pouco de conhecimento histórico, no entanto é
possível que leitores aquém de nossa história entendam. O próprio Haroldo revela
que a linguagem clara cativa o leitor, principalmente se ele estiver no inicio da
formação intelectual.6
Maranhão sempre buscou a perfeição verbal de seus textos. A atividade
jornalística contribuiu para uma boa escrita, levando em consideração a pressa e a
precisão exigida pelo oficio. Ele próprio afirmou que muitos dos seus textos, ainda
inéditos, nunca foram publicados, não por falta de condições ou de oportunidades, já
que não lhe faltava nenhum dos dois, mas, por simplesmente ele não achar bons os
seus textos. Segundo o autor,
O escritor deve saber escrever. Saber escrever nada tem haver com a gramática. A questão não é colocar pronomes nos lugares supostamente próprios; é colocar idéias num texto bem barbeado. É preferível escrever chinês com X do que reeditar clichês.7
Foi ele também um escritor disciplinado. Escrevia diariamente como uma
ginástica. Ele declarou ao jornalista Carlos Menezes
Escrever, para mim, é análise sem analista. Descarrego toda minha raiva, meu amor, minha doçura e minha angústia. É também minha ginástica, em que só três dedos se mexem sobre as teclas da máquina (...) é por isso que para ir ao cinema, ao teatro, a concerto, me imponho tarefas. Se as cumpro, vou. Se não as faço, ponho-me de castigo. 8
Haroldo alcançou uma escrita gramatical impecável que não nos deixa a desejar. Além de suas próprias palavras Carlos Vilaça diz:
Haroldo é (...) íntimo da língua, requintado no escrever. Esse refinamento lhe é essencial. Conhece a língua como pouquíssimos
6 Elias Pinto. Haroldo Maranhão PraVaLer. In: A província do Pará. 10 e 11 outubro de 1993. 7 MARANHÃO, Haroldo. A leitores e Possíveis leitores. In: revista Asas da palavra. Revista da graduação em letras/Unama, V. 6 nº 13 junho/2002. 8 MENEZES, Carlos. Elucubrações tardias do Bruxo do Cosme velho. O Globo, 10 de setembro 1991.
15
(...) todo entregue a tarefa dulcíssima e dolorosíssima de escrever, escrever, sondar a vida, recriar a vida. 9
Haroldo foi um apaixonado por dicionários. Foi amigo de Aurélio Buarque de
Holanda, este o convidou para ajudá-lo na preparação da parte de regionalismo do
Pará em seu dicionário, porém outros projetos o impediram de realizar essa parceria.
Escreveu o dicionário de Futebol, onde traduz vocabulários corriqueiros dos campos
de Futebol e resgata expressões de décadas passadas usadas em todo o país.
Escreveu também o dicionarinho maluco dedicado ao público infanto-juvenil.
Outra característica de Haroldo é a utilização de recursos pós-modernos.
Pastiches, ironias, sarcasmos, humor e a sátira fazem parte da maioria de seu
trabalho. A obra Vôo de galinha - obra que reúne contos pequenos, arredondados –
é um modelo de uma obra carregada de humor e de ironia e liberdade de escrita.
Benedito Nunes chama as narrativas breves recolhidas nesse livro de “Prosa
microscópica” e que conseguem num espaço mínimo da escrita, graças aos reativos
do humor e da ironia, os traços de ficção desenvolta. 10 Em Memorial do Fim – A
morte de Machado de Assis, Maranhão recriou os últimos de dias de Machado
valendo-se do estilo de escrever do autor, usou vários personagens reais e
importantes da literatura brasileira e os transformou em ficcionais.
Haroldo faz parte do rol dos mais importantes autores brasileiros. Foi
premiado diversas vezes e muito elogiado pela crítica. Em uma entrevista ao Jornal
liberal Benedito Nunes fala o seguinte: “(...) Haroldo é um (...) um escritor de grande
envergadura. É um grande escritor - domina o conto, a crônica e a grande narrativa
romanesca, de que "Cabelos no Coração" é um exemplo” 11. Embora seja
reconhecido internacionalmente e várias vezes premiado, ainda é um desconhecido
dos leitores brasileiros e consequentemente dos leitores paraenses, salvo uma
pequena parte acadêmica. Deve se ter um motivo para tanto desconhecimento
sobre um escritor que consagrado pela crítica é “abandonado” em nosso país mais
precisamente em nosso estado.
9 Vilaça, Carlos. Miguel Miguel do inesgotável insaciável Haroldo Maranhão. In: Miguel Miguel, CEJUP, Belém 1992. pp 8 e 9. 10 NUNES, Benedito. Haroldo Maranhão: Uma microscopia da poesia. crítica a Vôo de galinha. Revista Colóquio de letras de n 65, p.65 e 66. 11 NUNES, Benedito. Creio que se possa unir socialismo e democracia. O Liberal, Cad. O Cartaz. Entrevista dia 19/04/98, p. 4-5.
16
2 - O Jogo do Duplo em Miguel Miguel
“Não há espetáculo mais tremendo do que se ver refletido em espelhos deformantes. Precisamos sim, compreender a natureza humana, em sua multiplicidade.”
Carlos Antonio Vilaça
A temática do duplo não é de agora. Desde os tempos antigos, esse tema
vem sendo abordado nos mitos e chegando à literatura moderna. O estudo do duplo
toma proporções diferentes à medida que o tempo se passa. Cada época ele é
trabalhado de forma diferente. Na literatura antiga, o duplo era homogêneo sem a
quebra da identidade, não tinha interferência na identidade do outro, eram os
gêmeos e sósias.
O mito do duplo, no Ocidente, acha-se em estreita ligação com o pensamento da subjetividade, lançado pelo século XVII ao formular a relação binária sujeito objeto, quando até então o que prevalecia era a tendência à unidade. Essa posição - concepção unitária de mundo/ concepção dialética - é refletida reviravolta que sofre o mito literário do duplo. Desde a Antigüidade até o final do século XVI, esse mito simboliza o homogêneo, o idêntico: a semelhança física entre duas criaturas é usada para efeitos de substituição, de usurpação de identidade, o sósia, o gêmeo é confundido com o herói e vice-versa, cada um com sua identidade própria. A tendência à unidade prevalece também quando um personagem desempenha dois papéis.12
No século XVII, começou a quebra dessa unidade do ser. O duplo agora
servia na busca de um Eu melhor, entre o bem e o mal. No romantismo, atenta-se
para um Eu fragmentado e a concretização do duplo por desdobramento e na
maioria das vezes esse duplo torna-se o inimigo do Eu.
A partir do término do século XVI, o duplo começa a representar o heterogêneo, com a divisão do Eu chegando à quebra da unidade
12BRAVO, Nicole Fernandes. Duplo. In: BRUNEL, Pierre. Dicionários de mitos Literários. Rio de Janeiro: UnB, 1998 p. 263-264
17
(século XIX) e permitindo até mesmo um fracionamento infinito (século XX).13
Em uma explicação mais ampla, o duplo é a divisão do Eu em diversas
formas. Na maior parte das obras em que o duplo é discutido, está ligado à morte e
à loucura. Segundo Bravo Fernandez “O desdobramento conduz à loucura e à
morte...”, 14Nesse caso, não à morte, mas, talvez, à loucura do personagem
narrador.
O jogo duplo em Miguel Miguel de Haroldo já é perceptível no titulo da obra
através da repetição da palavra, aparentemente proposital para chamar a atenção
do leitor para o desdobramento do personagem desde o inicio. Antonio Carlos Vilaça
comenta que “Miguel Miguel... tem na repetição (do titulo) todo o seu sentido
secreto, todo o seu mistério.” 15O jogo da dubiedade de nome prossegue no decorrer
do texto com a divulgação duas vezes no jornal sobre a morte de Miguel. Ivete Lara
Camargo Walty escreveu que “O jogo lúdico com o significante Miguel reitera a
pluralização prenunciada no titulo e, ao mesmo tempo, abre espaço para os
acontecimentos intrigantes e inexplicáveis.” 16
Fernandez Bravo (1998) diz que a forma preferida do duplo é a novela que
conta a perturbação inserida por um acontecimento estranho. Na novela de Haroldo
o que não falta é a presença de acontecimentos estranhos. A narrativa inicia com a
informação ao leitor, de forma indireta, da morte de Miguel divulgada no jornal.
Varão amigo de Miguel tem um estranho hábito de ler diariamente a página de
obituários no jornal e realiza com prazer essa ocupação. Após tomar conhecimento
da morte do amigo, ele rememora o passado envolvendo o texto com jogo narrativo
de palavras, tempo e espaço.
Ele vai ao primeiro velório junto com sua esposa Úrsula e são recebidos por
Miguela, esposa do falecido, a quem eles dão os pêsames. Após a morte do esposo,
Miguela e Úrsula tornam-se mais próximas até que a viúva vai embora para
Mossoró, ficando em Andaraí Varão e Úrsula. Quinze anos depois, ao ler a página
dos obituários nos jornais, varão descobre que seu amigo acabara de falecer nas
13 BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: Brunel, Pierre (dir.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: UnB, 1998 p.261 – 287. 14 Ibdem. p. 264 15 Miguel Miguel, do inesgotável, surpreendente Haroldo Maranhão. In: Miguel Miguel. Ed CEJUP, Belém, 1992. 16 WALTY, Ivete Lara Camargo. Morte de Quincas Berro D’água. In: Asas da Palavra. Revista da graduação em Letras, Belém, Unama, V.6. n. 13, 2002.
18
mesmas circunstâncias de anos atrás. O mistério começa a rondar a narrativa e fica
explicito, a partir de então, a dubiedade da narrativa e o desdobramento do
personagem.
Miguel Miguel não é uma novela farta só da temática dupla, mas é também
recheada do universo fantástico, morte e loucura, elementos esses essenciais na
narrativa sem os quais o jogo do duplo não alcançaria o sucesso desejado no texto.
O duplo geralmente está ligado à narrativa fantástica e apesar desse tema não
interessar para o estudo em questão, é impossível e seria um erro não destacar a
sua presença nessa obra de Haroldo. Para Tzvetan Todorov o fantástico é incerto e
fronteiriço, pois está entre os limites do maravilhoso (naturalização dos
acontecimentos sobrenaturais) e do estranho (explicação de acontecimentos
insólitos por meio da razão). A incerteza e ambiguidade fazem parte do texto
fantástico. “O fantástico ocupa o tempo desta incerteza. Assim que se escolhe uma
das duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um gênero
vizinho: o estranho ou o maravilhoso” (TODOROV 1992). A constante ambiguidade
no texto de Haroldo não mostra apenas o duplo, mais o fantástico por meio do real e
imaginário e da hesitação do leitor que é uma das principais características da
narrativa fantástica. Através do jogo de palavras e memória, a realidade se confunde
com a ilusão dentro do texto. Sérgio Afonso Alves a respeito da obra diz:
Há fatos, testemunhas e fotos para os dois velórios que fazem a narrativa deslizar sempre entre uma linha e outra, uma verdade e uma mentira, realidade e fantasia, sem definir o que é verdadeiro e o que é falso, o que leva o leitor, concomitantemente, à ilusão e à crença, mas sempre retirando o pano e encobrindo com outro 17
Assim como todo estudo acerca do duplo não é fácil, este não é diferente. O
duplo é de difícil compreensão, haja vista suas constantes mudanças ao longo do
tempo.
Além disso, as incontáveis transformações que sofreu – e, certamente, continuará a sofrer – conferem tal dificuldade. A única coisa que, seguramente, pode-se dizer é que, independentemente da diversidade de realizações e representações, as histórias de duplo geralmente apresentam uma face invariável de impasse, propiciadora de um sentimento de insegurança e mistério, nem sempre totalmente
17 Tese de doutorado. Faculdade de Letras da UFMG. P. 131.
19
decifrável, nem sempre de compreensão plena, mas, nem por isso, menos estimulante. 18
Ao contrário da maior parte das obras que retratam o duplo, na obra de
Haroldo o conflito causado pelo desconforto da duplicidade não é no individuo que
se duplica e sim no narrador-personagem que vê o duplo do amigo. Todo o mistério
da narrativa está nesse aspecto: A morte dupla de Miguel. O duplo nunca se
encontra com o seu verdadeiro eu na história, apenas é informado do seu outro “eu”
no final do enredo. Esse duplo aterroriza Úrsula e deixa Varão descontrolado,
mesmo que ele insista em informar o leitor sobre sua calmia, sanidade e controle.
Após a tentativa de esclarecimento de todas as maneiras possíveis ao seu
alcance sobre a segunda morte do amigo, Varão reencontra Miguel ao sair do SP
(antigo local de trabalho dos dois), no dia seguinte ao segundo velório. Miguel
convida Varão para tomar um cafezinho no Nápoles (mesmo local que eles
costumavam ir anos atrás) e eles conversam sobre as mortes de Miguel que fica
assustado com o que Varão lhe diz.
Com o último encontro de Miguel e Varão, a ambigüidade se confirma mais
ainda quando Miguel diz a Varão “ainda ontem, pombas, almocei na tua casa! Tu me
deves uma explicação.” 19 E para tirar as dúvidas Miguel propõe uma visita com
Miguela e as crianças à casa de Varão.
A temática da dupla personalidade acompanha Haroldo em muitos de seus
trabalhos. Não é tema recorrente só na obra em que ora analisamos. Em a morte de
Haroldo Maranhão personagens morrem e reaparecem com vida. Constantemente
ele vê duplos. Até os fatos são parecidos, é claro que cada uma da obra tem suas
particularidades e significados. O mais incrível da narrativa em Miguel Miguel é que
o narrador sem ter explicações para os acontecimentos passados deixa o leitor com
as mesmas dúvidas, por tanto a dubiedade da narrativa permanece até o fim.
18 SANTOS, Adilson dos. Um périplo pelo território duplo. In: Revista investigações Vol22-N1. p. 54. 19MARANHÃO, Haroldo. Miguel Miguel, p.43
20
3 - O jogo do tempo e o duplo
“O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar eu o sei; se eu quiser explicá-lo a quem me fizer essa pergunta, já não saberei dizê-lo.”
Santo Agostinho
O tempo foi um dos fatores essenciais para o autor explorar o duplo, pois,
através do jogo temporal e de seus recursos o narrador deixa dúvidas no leitor sobre
a morte de Miguel. Após anos da morte do amigo, Varão descobre que ele “morreu
de novo” e com a idade que teria se estivesse vivo até a data da nova noticia. A
partir de então o duplo passa a se manifestar na narrativa. O tempo é especificado
na obra através de tempos verbais, recursos temporais e também por meio das
lembranças de Varão e Úrsula. O tempo verbal dessa narrativa é o presente. Toda
ação desenvolve-se no presente, com referências ao pretérito. As lembranças de
Varão estão no passado, mas correspondem ao presente histórico.
Assim como fala Benedito Nunes em seu livro O tempo na narrativa. “... no
tempo imaginário, o tempo não é apresentado senão através dos acontecimentos e
suas relações...” 20, as lembranças de Varão apresentam fatos importantes do tempo
e situa o leitor sobre o que aconteceu na história, além de ligar os acontecimentos
um ao outro.
Levando em consideração as palavras de João Adalberto Campato21 “... O
tempo é o eixo estrutural da narrativa...”, Vamos traçar aqui alguns aspectos do
tempo em Miguel Miguel. Embora o estudo do tempo em narrativas seja um pouco
maior, trabalharemos apenas com dois planos: O plano da história e o do discurso.
20 NUNES,Benedito. O tempo na Narrativa p. 24 21 CAMPATO, João Adalberto. Apontamento sobre a categoria do tempo em textos narrativos. Revista multidisciplinar da UNIESP p.5
21
2.1- O tempo da história
O tempo em Miguel Miguel não difere de outras novelas. O tempo da obra é o
histórico ou cronológico. O Plano da história compreende ao tempo diegético da
narração. É o tempo em que a ação acontece e assemelha-se ao tempo real. Em
Miguel Miguel há presença de marcadores temporais (meses, anos, hoje, noite de
natal, etc.), que indicam o tempo que levou pra que toda história acontecesse e
posicionam o leitor na ordem cronológica da história. Obedecendo a regra geral da
novela, o tempo verbal dessa obra é o presente, com referências verbais constantes
ao passado por motivo das lembranças que tomam conta da narrativa
O narrador da história não menciona data concreta dos acontecimentos, mas
revela, por exemplo, a quantidade de anos que passaram e usa expressões que
fazem o leitor entender se ele está no passado ou no presente. Um exemplo disso é
o trecho da obra que o narrador fala da noticia da segunda morte de seu amigo. “...
Se eu não fosse a calmia humana que todos me reconhecem, teria me assustado e
corrido para Úrsula ao ler o Obituário de hoje: ...”(grifo nosso (p.18))
Até as expressões temporais são usadas com dupla finalidade. Primeiro, com
a finalidade mais óbvia: fornecer dados sobre o tempo para que o leitor entenda a
época (passado ou presente). Segundo, essas expressões contribuem para a
percepção do duplo. O leitor percebe isso, mesmo que não tenha conhecimento
sobre o assunto e não atente para esse importante detalhe. A partir que o narrador
fala a expressão hoje, começa a dubiedade. Repetem-se fatos já ocorridos até o
final da narrativa. O presente (histórico) aparece como duplo do passado. Para
realçar podemos observar o comentário de Bravo:
A coincidência de duas épocas (...) é acompanhada muitas vezes da coincidência de dois lugares, metáforas que visualizam a idéia do duplo (...) 22
22 BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. p. 283-284.
22
2.2 – O Tempo do discurso O plano do discurso trata do tempo da enunciação. Não se submete à
linearidade do tempo cronológico da história, pois fatos que ocorrem ao mesmo
tempo precisam ser narrados de forma sucessiva. Comporta a ordem da história na
narrativa (dias, meses, anos), velocidade do texto (linhas e páginas) e a freqüência
dos eventos (relacionando o número de eventos da historia e quantas vezes ele é
mencionado no texto).
A ordem temporal da narrativa em questão nos mostra exatamente o que diz
Genette (1995, p.33)
A ordem temporal de uma narrativa é confrontar a ordem de disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na história.
O narrador começa o discurso com a Noticia pelo Jornal na coluna obituária,
sobre a morte de Miguel. “Miguel dos Arcanos Falbo Quillet, 61 anos, de pancreatite,
no hospital do Andaraí, Potiguar, casado com Miguela Pompeu Quillet, tinha dois
filhos.” (p.11), e vai ao passado através das lembranças do convívio “... Miguel dos
Arcanos Falbo Quillet visitava-me na companhia de Dona Miguela e dos dois
gêmeos, quando trabalhamos no escritório do único supermercado do Andaraí...”
(p.13). Na ordem da história, e o que o narrador nos passa, é que primeiro
aconteceu os momentos de almoço de domingo e após a morte de Miguel, no
entanto, no discurso acontece o oposto. Haroldo desenvolve a narrativa na ordem
inversa à cronológica recorrendo à analepses sem quebrar a continuidade do
discurso.23 Essa alteração da ordem cronológica dos acontecimentos no discurso
revela uma anacronia que dentro dessa obra serve para caracterizar personagens e
reintegrar os acontecimentos.
Outro recurso que é importante estudarmos é a velocidade do discurso.
Gerard Genette (1995, p.87) ressalta que ela constrói-se “pela relação entre uma
duração, a da história, medida em segundos, minutos, horas, dias, meses e anos, e
uma extensão: a do texto, medido em linhas e em páginas”. O que acontece na 23 NUNES, Benedito, O tempo na narrativa, P.32
23
realidade, mesmo que seja na ficção, não leva a mesma duração do tempo narrado
podendo ser prolongado ou reduzido. A essa alteração de duração do discurso
chamamos de anisocronia. Em alguns momentos da obra há uso de algumas figuras
desse recurso, como por exemplo, o sumário que se constitui na redução da história
de anos em poucas linhas narradas. Haroldo Maranhão usa esse recurso no texto
quando o narrador fala da separação das famílias dele e de Miguel depois da morte
do amigo.
(...) as duas amigas, minha mulher e a viúva, mais se aproximaram naqueles meses, até ela e os gêmeos se mudarem para Mossoró. Houve cartas de Andaraí para Mossoró e de Mossoró para Andaraí, que foram escasseando, escasseando até de todo acabarem. Quantos anos se passaram? Quinze? Diz você? Por aí, estimulou Úrsula. É quinze anos. Os gêmeos já andarão pelos vinte e cinco, especulamos sem interesse numa noite de natal (...) (p.16 Grifo nosso).
Mas, não é só o sumário que Haroldo usa na sua obra. O narrador da novela
usa outras figuras da velocidade no decorrer da narração. A cena está presente em
alguns trechos da obra, onde o discurso é quase igual ao tempo da história, como
por exemplo, no diálogo entre Varão e Úrsula:
“O Miguel, você se lembra?” “sim, claro. Por quê?” “Quantos anos tinha quando morreu?” “Ah isso não lembro mais. Uns sessenta. Acho.”
Em outras partes o narrador vale-se da pausa onde o tempo da história pára e
dá lugar às descrições do momento narrado. Esse é o recurso mais usado no
decorrer da obra: “Em fração de minuto o jardim enchia-se de um grito. Vizinhos
corriam para acudir. Já havia eu dado o socorro certo, um copo d’água com três
colheres de açúcar.” (p.19)
Temos ainda que levar em consideração outro fator importante da narração: A
Frequência temporal da obra, pois, aqui vai realmente de encontro ao objeto de
análise desse trabalho. É por meio dela que podemos perceber a duplicação do
personagem Miguel na história.
24
A frequência é uma “relação quantitativa estabelecida entre o número de
eventos da história e o número de vezes que são mencionados no discurso” (Reis;
Lopes, 2000, p.182). São três os tipos de frequências: discurso singulativo (a
narrativa conta uma única vez o que aconteceu uma vez na história); o repetitivo
(reporta o discurso em momentos distintos um acontecimento da história); iterativo
(uma única emissão da narrativa representa várias ocorrências do mesmo evento).
Retrataremos aqui, de maneira breve, a mais evidente na obra de Haroldo
Maranhão.
O discurso singulativo se mostra na narração através das mortes de Miguel.
Esse evento pode até parecer uma repetição, porém não se trata do mesmo evento
sendo repetido no discurso, e sim, de eventos diferentes representados da mesma
maneira. Apesar da dúvida do leitor permanecer até o fim sobre se realmente o
personagem morreu, Varão tem a certeza que ele morreu e duas vezes. O modo
como Varão sabe da primeira morte é contraditório e é preciso atenção da parte do
leitor para saber se Varão tomou conhecimento da morte do amigo pelo jornal, no
local de trabalho ou pelo telefone. Já o modo que ele fica sabendo sobre a segunda
morte é mais clara e quinze anos depois da primeira, portanto, são eventos
diferentes. Por mais que as noticias das mortes sejam da mesma personagem, são
em datas distintas e marca uma instantaneidade da ação e é a partir daí que
também começa a dubiedade da narrativa.
25
3 - O jogo do espaço e o duplo
“A coincidência de duas épocas num mesmo momento é acompanhada muitas vezes da coincidência de dois lugares, metáforas que visualizavam a idéia do duplo, da identidade que junta duas vidas numa.”
Nicole Fernandez Bravo
O espaço da narrativa nem sempre recebe a devida importância no meio
literário. Reservam-se, geralmente, uma pequena análise para esta categoria com
descrições de um espaço geográfico sem mostrar a influencia desta para obra e
para o desenvolvimento da mesma, salvo a análise de alguns teóricos que se
dedicaram ou se dedicam para o desenvolvimento de teorias sobre o espaço. A
verdade é que o estudo do espaço na narrativa vai além de descrever o espaço
geográfico em que os personagens estão desenvolvendo uma ação. A análise deste
exige um estudo mais minucioso e atento para o espaço da história e espaço do
discurso. Há alguns tipos de espaço dentro de narrativas ficcionais. Aqui serão
abordados o espaço da história ou narrativa, e o espaço do discurso ou narração.
Para Ozires Borges o espaço em uma narrativa pode acontecer de diversas
maneiras. Existe uma relação entre o espaço da narração e o espaço da narrativa,
podendo estes coincidir ou não. O espaço da narração, muitas vezes, pode não
aparecer e estar explicito apenas o espaço da narrativa. “Muitas vezes, teremos uma
projeção do espaço da narração dentro da narrativa, outras vezes esse espaço só
será pressuposto, pois quem narra narra sempre de algum lugar.” 24 Não existe na
obra analisada qualquer referencia, da parte do narrador, a respeito do local de onde
se narra a história. Este espaço está implícito. Podemos dizer então que o espaço
da narração não coincide com o espaço da narrativa.
Em Miguel Miguel, o espaço da narrativa é o Andaraí. A ação desenrola-se
nesta área geográfica. Dentro deste espaço principal existem alguns espaços
secundários, mas não menos importante. O SP (supermercado do Pericumã), que o
24 CAMPATO JR, João Adalberto. Espaço da narração e espaço da narrativa. REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP. SABER ACADÊMICO - n º 09 - Jun. 2010/ ISSN 1980-5950
26
local de trabalho de Varão e Miguel. A casa de Varão, que ocupa importância dupla
na narrativa, pois ali acontecem os almoços entre as famílias dos personagens e
também é o local onde acontece toda a ação dramática de Úrsula e Varão após
tomarem conhecimento da segunda morte de Miguel. E por último, e talvez o espaço
mais importante, a capela do cemitério onde acontecem os dois velórios de Miguel.
A casa de Varão é o local de conflito de Úrsula e Varão por conta da segunda
morte do amigo. Todas as hipóteses possíveis para uma explicação humana a
respeito do duplo Miguel são geradas nesse local. O cemitério é o local onde Varão
vê pela primeira vez o duplo e comprova que não é uma loucura, mas sim, a
realidade mesmo que não haja uma explicação humanamente possível para essa
situação. O SP é um dos últimos locais que Varão vê o amigo vivo e é o local de
reencontro dos dois após quinze anos e depois da morte de Miguel. A noção de
realidade e da certeza de uma não - loucura vem à baixo quando Varão reencontra
Miguel vivo ao sair do SP. A dubiedade é reforçada quando Miguel propõe a visita à
casa de Varão junto com Miguela e as crianças.
O espaço ficcional não é apenas a descrição de lugares onde a ação
acontece. Através dele podemos obter informações sobre os personagens, sabemos
que Miguel e Varão trabalhavam em um supermercado, por exemplo, porque existe
esse espaço na narrativa. Desse modo, “a parte que seria “dedicada” ao espaço
tangencia-se para outros elementos narrativos. ”25 De acordo com o que Mariza fala
na citação anterior, outros elementos do texto ficcional são influenciados pelo
espaço, podendo esta relação ser de interação ou de contrastes com esses
elementos, segundo diz Gardel.26
A noção de espaço nessa obra está vinculada à noção de tempo gerada pelo
dinamismo das cenas que são bem mais importantes do que a descrição de lugares
e paisagens, que servem mais como pano de fundo do que outra coisa. Essa
característica da narrativa de Haroldo entra em concordância com o que diz André
25 KHALIL, Marisa Martins Gama-. O LUGAR TEÓRICO DO ESPAÇO FICCIONAL NOS ESTUDOS LITERÁRIOS. Disponível em: www.anpoll.org.br/revista/index.php/rev/article/viewFile/166/179 26 GARDEL, André. Espaço. In: GARDEL, André; NEWMAN, Mario. Teoria da literatura: fundamentos. Rio de Janeiro: CCAA Editora, 2006. p.110.
27
Gardel: “o espaço pode surgir (...) como mero pano de fundo onde a dinâmica da
ação importa muito mais que a concentração descritiva.” 27
São poucas as descrições de lugares na obra estudada. Um exemplo de que
o tempo e o espaço estão intimamente ligados é a partir do trecho em que o
narrador-personagem toma conhecimento da segunda morte de Miguel através do
jornal e vai mostrar à Úrsula no Jardim de sua casa. O tempo que leva desse fato
até o final do texto em que Miguel e Varão se reencontram são de dois dias. Isso
quer dizer que eles ainda estão no mesmo espaço geográfico, já que as
características dos locais são as mesmas e Miguel dispõe-se a visitar a casa do
amigo. Percebe-se então que o espaço é o mesmo das macarronadas de quinze
anos atrás. No final da narrativa, Miguel ainda diz que estava anteontem na casa de
Varão, que corresponde ao mesmo espaço. Se o tempo, aliado ao espaço, não
fosse mencionado, talvez o leitor ficasse na dúvida se o local de moradia de Varão e
Úrsula ainda eram o mesmo, além de correr o risco de a narrativa ficar sem sentido
por culpa da omissão de dados, tão importantes dentro de qualquer narrativa.
Haroldo usa o tempo - espaço a seu favor para desenvolver no texto a
ambiguidade da narrativa e o desdobramento do personagem, provando assim que
o espaço, por mais que aparentemente não tenha tanta importância, é um elemento
essencial para a construção de sentido e do personagem dentro da sua obra. Então,
“em cada ocasião, a viagem no espaço é também uma viagem no tempo (dualidade
espaço-tempora)l” (BRAVO, p.283)
27 GARDEL, André. Espaço. In: GARDEL, André; NEWMAN, Mario. Teoria da literatura: fundamentos. Rio de Janeiro: CCAA Editora, 2006. p.110.
28
Conclusão
Esse trabalho expôs o a obra de Haroldo Maranhão e seu jogo narrativo para
explorar a temática do duplo. Esse jogo narrativo incluiu o jogo com elementos da
narração como o tempo e o espaço. Vimos que tempo e espaço estão
intrinsecamente ligados não podendo estes ser dissociados, pois um depende do
outro sendo eles importantes para a construção de significado dentro do texto. No
caso deste estudo eles contribuíram para a construção da dupla personalidade do
personagem Miguel.
Foi essa construção de sentido interligado com a construção do tempo e do
espaço que forneceu a dubiedade do texto. A narrativa foi composta por lembranças
e devaneios do personagem Varão. Se Miguel estava vivo, quem estava naquele
caixão na capela que Varão presenciou por duas vezes? Como pode Miguel ter
comparecido na casa de Varão sem que ele lembre? Quantos são os Miguéis e
Miguelas? Para Ernani Chaves, “Ao contrário da confiança de Miguel que no final do
texto ingenuamente acha que todas as dúvidas serão dirimidas, jamais saberemos,
de antemão, quem são as matrizes, os duplos e os protótipos28”. Não cabe a nós
nesse trabalho responder a essas perguntas, pois essa não é a intenção deste
estudo, além do mais, aí está a maravilha deste texto: A dubiedade da narrativa leva
o leitor a investigações nos diversos campos da literatura.
28 CHAVES, Ernani. A matriz, o duplo, o protótipo: Figuração do outro em Haroldo Maranhão. In: revista Asas da Palavra.
29
Referências Bibliográficas ALVES, Sérgio. Fios da memória, Jogo textual e Ficcional de Haroldo Maranhão:
2006. Tese de doutorado- Faculdade de letras da universidade federal de Minas
Gerais pp 25 e 26.
AZEVEDO, Guilherme Zubaran. O duplo como representação do mal na novela o retrato de Gogol. Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas Artigos da seção livre PPG-LET-UFRGS – Porto Alegre – Vol. 02 N. 01 – jan/jun 2006 CAMPATO, João Adalberto. Apontamento sobre a categoria do tempo em textos narrativos. Revista multidisciplinar da UNIESP CHAVES, Ernani. A Matriz, O Duplo e o Protótico: Figuração do outro em Haroldo Maranhão. In: Revista Asas da palavra. Revista da graduação em letras/Unama, V. 6 nº 13 junho/2002 FERNANDEZ-BRAVO. Duplo. In: Brunel, Pierre (dir.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: UnB, 1998 p.261 – 287. GARDEL, André; NEWMAN, Mario. Teoria da literatura: fundamentos. Rio de Janeiro: CCAA Editora, 2006. GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega Universidade, 1976.
HUIZINGA, Johan, Homo Ludens: o jogo com elemento da cultura, trad. Bras., 2ª Ed. São Paulo, Perspectiva, 1980 MARANHÃO, Haroldo. A estranha xícara. Rio de Janeiro: SAGA, 1968. MARANHÃO, Haroldo. Vôo de galinha. Belém: Grafisa, 1978. MARANHÃO, Haroldo. A morte de Haroldo Maranhão. São Paulo: GPM, 1981. MARANHÃO, Haroldo. Os anões. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. MARANHÃO, Haroldo. Rio de raivas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987. MARANHÃO, Haroldo. Cabelos no coração. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1990. MARANHÃO, Haroldo. Memorial do fim, a morte de Machado de Assis. São Paulo: Marco Zero, 1991. MARANHÃO, Haroldo. Miguel Miguel, CEJUP, Belém 1992. MARIA, Luzia de. Haroldo Maranhão pravaler. A Província do Pará, Belém, 10 e 11 out. 1993
30
MENEZES, Carlos. Elucubrações tardias do Bruxo do Cosme velho. O Globo, 10 de setembro 1991. MOISES, Massaud. A criação Literária Prosa-I formas em prosa. O conto. A Novela. O Romance. Editora Cultrix, São Paulo 1963. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo, Ática, 1995. NUNES, Benedito. Ironia tropical. Veja, 1 dez. 1982. NUNES, Benedito. Haroldo Maranhão: O tetraneto Del-Rei. Colóquio Letras, Lisboa, jan. n. 77, 1984. NUNES, Benedito. Haroldo Maranhão. In: Pará, Capital: Belém - Memórias & Pessoas & Coisas & Loisas da cidade. NUNES, Benedito. Haroldo Maranhão: Uma microscopia da poesia. crítica a Vôo de galinha. Revista Colóquio de letras de n 65, p.65 e 66 NUNES, Benedito. Creio que se possa unir socialismo e democracia. O Liberal, Cad. O Cartaz. Entrevista dia 19/04/98, p. 4-5. PINTO, Elias Ribeiro. O Pará não morreu. Viva o Acará! A Província do Pará, Belém, 23 e 24 set. 1990. PINTO, Elias Ribeiro. O Bruxo da Praia do Flamengo. A Província do Pará, Belém, 8 set. 1991. WALTY, Ivete Lara Camargo. Morte de Quincas Berro D’água. In: Asas da Palavra. Revista da graduação em Letras, Belém, Unama, V.6. n. 13, 2002
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992. Sites consultados CANGUSSU, Dawdson Soares. Uma evolução no suporte do escrito e da escrita em Belém do Pará. Migalhas de história social da literatura na Amazônia: Suplemento Literário da Folha do Norte, 1946-1951. Site: Historia e – história.. Disponível em: <www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=professores&id=100> OLIVEIRA, Relivaldo. Para dissonar o regionalismo. Blog de Relivaldo de Oliveira, disponível em: <relivaldo.blogspot.com/2007/03/para-dissonar-o-regionalismo.html> SANTOS, Adilson dos. Um périplo pelo território duplo. In: Revista investigações Vol22-N1 disponível em: <http://www.ufpe.br/pgletras/Investigacoes> KHALIL, Marisa Martins Gama-. O LUGAR TEÓRICO DO ESPAÇO FICCIONAL NOS ESTUDOS LITERÁRIOS. Disponível em: <www.anpoll.org.br/revista/index.php/rev/article/viewFile/166/179>
Recommended