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Universidade Federal do Rio de Janeiro
A ESTETIZAÇÃO DA HISTÓRIA O nascimento da Idéia de Arte no Ocidente
Marcos Roma Santa
2010
A ESTETIZAÇÃO DA HISTÓRIA O nascimento da Idéia de Arte no Ocidente
Marcos Roma Santa
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura – Poética. Orientador: Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho
Rio de Janeiro Março de 2010
A Estetização da História O nascimento da Idéia de Arte no Ocidente
Marcos Roma Santa Orientador: Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura – Poética.
Examinada por: _________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho – PPG - Ciência da Literatura –UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Eduardo de Faria Coutinho – PPG- Ciência da Literatura – UFRJ _________________________________________________ Prof.ª Doutora Maria Isabella Bottino – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – IBMEC/RJ _________________________________________________ Prof. Doutor Latuf Isaias Mucci – PPG – Ciência da Arte – UFF _________________________________________________ Profª. Doutora Martha Alkimin – PPG - Ciência da Literatura-UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes – PPG - Ciência da Literatura – UFRJ – Suplente _________________________________________________ Prof.ª Doutora Geysa Silva – UNINCOR – Suplente
Rio de Janeiro Março de 2010
Roma Santa, Marcos
A Estetização da História. O nascimento da Idéia de Arte no Ocidente/ Marcos Roma Santa. Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2010.
xi, 173 f.: 31 cm. Orientador: Luiz Edmundo Bouças Coutinho Tese (doutorado) – UFRJ/FL/ Programa de Pós-Graduação em Letras,
2010. Referências Bibliográficas: f. 161-173. 1. Arte. 2. Estética. 3. História. 4. Filosofia. I. Bouças Coutinho, Luiz
Edmundo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Título.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu Orientador, Prof. Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho,
por, ao me haver aceitado como seu orientando, tratar-me sempre com a mais afetuosa generosidade, sem jamais me negar suas precisas e preciosas observações, durante a elaboração deste trabalho.
Agradeço, também, à minha fraterna amiga, Maria Isabella Bottino, por estar sempre ao meu lado, nos momentos importantes de minha vida. Se não fosse por seu entusiasmado apoio, eu não teria cursado o Doutorado.
À minha grande amiga, Eliane Bandeira de Mello Fiuza, agradeço pelo carinho ilimitado e a delicada atenção a todas as minhas necessidades, inclusive materiais. Se não fosse por Fiuzinha, eu teria escrito esta tese à mão.
Agradeço, ainda, à Maria José de Souza, amiga recente, mas nem por isso menos querida e presente, por haver aceitado, com a graça que lhe é peculiar, a maçante tarefa de ajudar Fiuzinha na correção e formatação dos originais deste trabalho.
Sou imensamente grato à Sra. Maria Inês Maia Oliveto e a todos os funcionários da excelente Biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ, porque, sem eles, esta tese não seria possível.
Não posso, outrossim, deixar de expressar minha sincera gratidão aos funcionários da Pós-Graduação da Faculdade de Letras, por me auxiliarem sempre, com prontidão e obsequiosamente, no cumprimento de minhas obrigações institucionais.
Aos meus amigos, presentes ou ausentes, por partilharem comigo o pão da esperança, mesmo quando dele nos restam apenas algumas côdeas, registro, aqui, o meu mais profundo e sentido reconhecimento. E entre estes bravos e amorosos amigos, não posso deixar de citar o Darío de Jesus, a Brenda Jacy, a Marli Moreira, a Dilene Raimundo do Nascimento, a Jutta Ebeling, o Eduardo Biaia, o João Luiz.
Finalmente, mas nunca por último, agradeço, no mais fundo de minha alma, aos meus Orixás e ao meu Pai e Senhor, Sangò, o grande Obá Kossô, o Absoluto em minha vida, por velarem minhas noites de trabalho e me fortalecerem para enfrentar os desafios dos dias.
RESUMO
ROMA SANTA, Marcos. A estetização da História. O nascimento da Idéia de Arte no Ocidente. Rio de Janeiro, 2010. Tese de doutorado (Doutorado em Ciência da Literatura). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
Esta tese tem por objetivo buscar as origens do conceito de arte, distinguindo
os liames sociais, culturais e mentais que favoreceram a emergência de um
novo modo de percepção das produções simbólicas, a partir do alvorecer do
que se convencionou chamar de modernidade, com sua consolidação, e
paradoxal crise, no século XIX. Claro está que a contextualização desse
processo implica observar que o capitalismo em expansão na Europa, ao
mesmo tempo em que aniquilou progressiva e lentamente as práticas
artesanais, ensejou a valorização de determinadas linguagens artísticas que,
embora nascidas da tradição popular, romperam com ela, em favor de uma
sofisticada especialização, caracterizada, principalmente, pelo exercício de
uma sensibilidade refinada, associada a um elevado padrão intelectual.
Palavras-chave: Arte; Estética; História; Filosofia.
Rio de Janeiro Março de 2010
ABSTRACT ROMA SANTA, Marcos. A aestheticization of the History. The birth of the Idea of Art in the West. Rio de Janeiro, 2010. Doctoral thesis (Doctorate in Literature Science). Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. The objective of this thesis is to study the origins of the concept of art;
distinguishing the social, cultural and mental bonds that favors the rise of a new
way of perception of symbolic productions, starting from the dawn of the so
called modernity, with its consolidation and paradoxical crisis, in the 19th
century. Certainly, the contextualization of this process implies the observation
that the expansion of capitalism in Europe, with the slow and progressive
annihilation of crafty practices, increased the value of some artistic languages,
which, although born from popular tradition, broke away from this tradition in
favour of a sophisticated specialization mainly characterized by the exercise of
refined sensibility, associated to a high intellectual pattern.
Key-words: Art, Aesthetic, History, Philosophy.
Rio de Janeiro Março de 2010
Sumário: Introdução .................................................................................................... 11
1. A τέχνη e o ποιητής no Livro X d’A República ........................................ 32
2. Artes liberales e Artes mechanicae ........................................................ 50
2.1. Antiguidade e Idade Média – entre o artista e o artesão ............. 51
2.2. Plotino esteta? ............................................................................. 57
2.3. As artes ........................................................................................ 60
3. O tempo intelectual – as origens da arte e do artista ............................. 72
3.1. Os studia humanitatis .................................................................. 73
3.2. O humanista, a arte e o artista no Renascimento ....................... 77
3.3. O século da decantação ............................................................. 88
4. No limiar da Idéia de Arte ...................................................................... 100
4.1. Giambattista Vico ........................................................................ 103
4.2. O nascimento da Idéia de Arte .................................................... 111
Conclusão .................................................................................................... 145
Bibliografia ................................................................................................... 161
“E desde a véspera, Francisca, feliz por se entregar àquela arte da cozinha para a qual
possuía certamente um dom, estimulada, aliás, pela notícia de um conviva novo, e
sabendo que teria de preparar, segundo métodos só por ela sabidos, carne com
gelatina, vivia na efervescência da criação; como ligava extrema importância à
qualidade intrínseca dos materiais que deviam entrar na fabricação da sua obra, ia em
pessoa ao mercado conseguir os mais belos pedaços de rumsteck, jarrete de vaca e
mocotós de vitela, como Miguel Ângelo quando passava oito meses nas montanhas de
Carrara a escolher os blocos de mármore mais perfeitos para o monumento de Júlio II.
(...)
Naquele dia, se Francisca tinha a ardente certeza dos grandes criadores, a mim me
cabia a cruel inquietação do pesquisador.”*
*PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. 5ª Edição. Tradução de Mário Quintana. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Editora Globo, 1981, p. 12.
Introdução
Houve uma época em que acreditei que, dentre todas as
atividades humanas, somente a arte distinguiria metafisicamente os homens
dos outros animais ou, mais exatamente, o elevaria acima da natureza. O
homem se me aparecia como um animal cujo processo de humanização
implicaria necessariamente o ato de recriação do mundo pela linguagem da
arte, isto é: para integrar-se à paisagem circundante e dominá-la, o homem
precisaria refazê-la, reconstruí-la, reinventá-la, enfim, conferir-lhe sentido. Mas
recordo-me que fui surpreendido, nos fins dos anos 70, por um acontecimento
que deu origem a um rio subterrâneo de dúvidas, quanto àquela assertiva
sobre o valor moral da arte. Esse rio veio fluindo, silencioso, por todo esse
tempo, em minha alma. Agora ele vem à tona. Sob a forma de algumas
questões, que não mais posso deixar de enfrentar, ele me atrai com a força de
suas águas para testar minha capacidade de atravessá-lo... ou me afogar.
Não foram as guerras, o encantamento pelas grandes
civilizações ou mesmo o fascínio pelos personagens ditos ilustres da História,
que motivaram meu interesse por essa ciência. Minha paixão pela História
devia-se ao fato de concebê-la como uma imensa narrativa, na qual ocupava
lugar de destaque a luta dos homens contra a irracionalidade e pelo domínio de
suas paixões. Esta visão sublime dos processos históricos originava-se,
principalmente, das leituras de obras que, para mim, tinham um verdadeiro
valor de documentos comprobatórios daquilo que Hegel, ao tratar da natureza
da arte, nas suas lições de estética,1
1HEGEL, G. W. F. Lecciones de Estética. Edición de 1832-1838, Berlín, preparada por H. G. Hotho. Traducción de Alfredo Llanos. Buenos Aires, Editorial La Pléyade, 1977.
chamou de objetivo “moderador da
barbárie”. Impressionava-me muito que as ações humanas pudessem dar
12
origem a vários modos de atribuição de sentido às coisas; e, dentre todos
esses modos, a arte fosse aquele que levasse mais longe a busca do que seria
primordial na existência do homem; e justamente pela transformação de suas
ações humanas em formas belas, por que objetivadas, isto é, representadas,
como o esforço humano em vencer seu primitivismo e conquistar a plenitude da
liberdade espiritual.
Em uma outra passagem de suas Lições de Estética, sobre
a “Função moralizadora da Arte”, Hegel trata de uma oposição ontológica, que
definiria a condição humana e que, embora conciliada unicamente pela
filosofia, seria um objeto privilegiado para a criação artística, a ponto de
garantir-lhe um lugar importante em seu sistema:
Sólo en el hombre y en el espíritu humano esta oposición
toma la forma de un mundo desdoblado, de dos
mundos separados: por uma parte, el mundo verdadero y
eterno de las determinaciones autónomas; por la outra, la
naturaleza, las inclinaciones naturales, el mundo de los
sentimientos, de los instintos, de los interesses subjetivos
personales.2
Naquela época, o marxismo ensinado, na academia, como
uma espécie de idealismo invertido, reduzia os fenômenos humanos à ossatura
O que me atraía para a História, enfim, era justamente a
vontade de saber como, em cada época, podia ler, pela arte, a manifestação
desse conflito que, do ponto de vista hegeliano, estaria na base do próprio
processo humanizador. Mas as ilusões juvenis, carentes de maior vivência
intelectual, logo, logo começariam a se dissolver no ar quando fui estudar
história na universidade.
2“Somente no homem e no espírito humano esta oposição toma a forma de um mundo desdobrado, de dois mundos separados: de um lado, o mundo verdadeiro e eterno das determinações autônomas; de outro, a natureza, as inclinações naturais, o mundo dos sentimentos, dos instintos, dos interesses subjetivos, pessoais.” (Tradução minha.) HEGEL. Lecciones de Estética, p. 54.
13
de modelos teóricos, nos quais não havia lugar para qualquer reflexão voltada
para a arte e seu possível significado na vida dos homens. Ou melhor, havia.
Mas a estética marxista dominante concebia a arte como um elemento ancilar,
no jogo das relações de produção. Como fenômeno de superestrutura, a
criação artística refletia, ou deveria refletir, as transformações sociais induzidas
pela evolução das relações de produção. Nessa medida, seu estatuto definia-
se em função de sua relação com as classes sociais em confronto, no processo
histórico. Dito de outro modo, a arte seria considerada relevante, desde que
refletisse, ideologicamente, os traços revolucionários de determinada classe
em ascensão, em certo período da história. Escusado lembrar, neste caso, que
as manifestações artísticas identificadas como expressão espiritual de uma
classe considerada reacionária, num determinado contexto histórico, eram tidas
como manifestações ideológicas de classe e, portanto, avaliadas unicamente
sob esse ponto de vista. Ao artista caberia expressar os ideais e interesses das
classes sociais. No caso daqueles exemplos de arte associada aos ideais
revolucionários de determinada classe, teríamos a realização de uma estética
revolucionária. No caso desse tipo de leitura marxista da arte, dominante até
meados dos anos 70, é particularmente significativo destacar sua predileção
pelo realismo como o ideal estético, em função de sua aparente
correspondência à perfeita representação das relações de produção.
Superestrutura ou ideologia, a arte e, conseqüentemente, o artista estavam
reduzidos a um papel secundário, e nem sempre honroso, na gênese e
funcionamento dos diferentes modos de produção da vida material. Como
observou muito bem Marcuse3
3MARCUSE, Herbert. A Dimensão Estética. São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1981, p. 11.
, a interpretação da qualidade e verdade de uma
obra de arte estava condicionada pela totalidade das relações de produção
14
existentes. A reflexão estética de base marxista, ao ver a arte no contexto das
relações sociais dominantes, avaliava-a tão-somente como instrumento
político, em sentido restrito, de superação de um determinado modo de
produção por um outro, que representasse um efetivo avanço das forças
produtivas. Ainda não se imaginava, pelo menos entre os cientistas sociais que
eventualmente discutissem arte, que seu potencial político estivesse em si
mesma, na própria forma estética4. A vantagem desse tipo de concepção
marxista da arte residia, precisamente, na facilidade com que se observava a
precariedade de sua explicação do processo de criação artística.5
Por outro lado, a crítica de Marcuse, ao que ele próprio
chamou de “reificação da estética marxista”
6, isto é, seu desprezo pela “função
cognitiva da arte como ideologia”7
4Idem. 5A severidade quase caricatural com que trato o pensamento marxista, nesta passagem, não deve ser entendida como uma crítica à atualíssima filosofia de Marx, mas, sim, àqueles teóricos marxistas que, por diversos motivos, não puderam ou não souberam pensar plasticamente a produção simbólica, na perspectiva do materialismo histórico. 6Ibidem, p. 25. 7Ibidem, p. 25.
, parece impor a necessidade de se matizar a
idéia de uma possível unidade quanto à estratégia teórica adotada pelos
intelectuais da chamada Escola de Frankfurt, pelo menos no que diz respeito à
visão do que seja a arte. Se é bem verdade que todos, inclusive Marcuse,
tenham pretendido depurar o marxismo de simplificações ortodoxas, que
retirariam do materialismo histórico seu poder de refletir dialeticamente a
dinâmica dos processos sociais, como processos antes de tudo humanos; se
tentaram devolver ao marxismo seu caráter humanista, pela leitura das
manifestações espirituais – e entre elas a arte –, como algo mais do que meros
reflexos mecânicos das estruturas econômicas; e se esta relativa autonomia do
espírito resultaria na contrapartida de seu poder de ação sobre os fundamentos
15
materiais da sociedade, isto é, sobre as relações de produção de um
determinado modo de produção; se todo o esforço teórico desses pensadores
teve como objetivo salvar o marxismo de se tornar um simples método
sociológico, para uma análise empobrecida das sociedades – tudo isso se deu
pelo retorno à filosofia. E não a qualquer filosofia.
O retorno à filosofia não poderia dar-se em outra direção
que não no sentido do idealismo e, mais exatamente, do idealismo hegeliano.
O imperativo de se identificar uma unidade espiritual, ainda que de valor
negativo, na crítica às formas assumidas pelas diferentes manifestações
artísticas típicas do capitalismo denuncia, em pensadores como Adorno, por
exemplo, a concepção idealista, de base hegeliana, de identidade entre o
espírito e as condições históricas para sua realização. Daí o sufocante
pessimismo do autor de Minima Moralia, que não enxerga, nas condições
históricas de sua época, outra possibilidade de manifestação espiritual que não
a ditada pelas formas da massificação. Está claro que a massificação não
corresponde mecanicamente às relações de produção, mas é, antes, a
modalidade negativa de manifestação espiritual, num mundo caracterizado pela
falência de qualquer valor que não seja o de troca. E reside, muito
provavelmente, nos fundamentos teóricos da crítica da cultura, e
especificamente da literatura, como expressão artística, a diferença entre
Marcuse e Adorno.
Sem negar a existência de um projeto comum – o de
revitalização da dialética marxista, pelo foco no seu dinamismo e plasticidade,
livre das determinações mecanicistas da infra-estrutura sobre a superestrutura,
que implicaria examinar as formas de expressão espiritual, mais do que em sua
16
relativa autonomia, do ponto de vista de seu poder de atuação concreta sobre
os processos sociais – dos três mais importantes representantes da Escola de
Frankfurt, Adorno, Marcuse e Benjamin, o fato é que cada um deles privilegiou,
para a realização desse projeto, um caminho diferente, embora não
necessariamente conflitantes. Adorno investe na retomada da filosofia crítica
alemã, mais especificamente, do sistema hegeliano, como eixo a partir do qual
elabora suas reflexões em torno dos fenômenos espirituais contemporâneos,
dentre os quais a arte em geral e, especialmente, a literatura.8 Já Benjamin
opta pela História, como solo no qual semeia sua abordagem dos diferentes
momentos e das diferentes formas assumidas pela práxis. Seus dezoito
aforismos em “Sobre o conceito da História”9
Por muito correctamente que se tenha analisado um
poema, uma peça ou um romance em termos de seu
mostram claramente sua
preocupação em escapar de uma metafísica do espírito, pela construção de
uma concepção de História na qual passado e presente resultem de uma
tensão dialética entre essas mesmas dimensões temporais, sob o impulso das
tarefas do agora. História sem continuidade, sem sucessão temporal, seu
primeiro motor continua sendo a luta de classes, só que, agora, não mais vista
como processo que se constrói ao longo do tempo, mas como síntese
provisória do jogo antitético entre o presente e o passado. Finalmente, Marcuse
recorre a elementos da teoria psicanalítica para tentar, assim, resolver as
dificuldades impostas pela concepção marxista de arte como mero apêndice
ideológico das relações de produção:
8“Na sua discussão com Adorno, Lucian Goldmann rejeita a afirmação daquele de que, para compreender uma obra literária, ‘há que a transcender em direção à filosofia, à cultura filosófica e ao conhecimento crítico’.” Apud MARCUSE. Op. cit., p.25. 9Walter Benjamin. “Sobre o conceito da História”. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume 1. Tradução: Sergio Paulo Rouanet; Prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo, Editora Brasiliense S.A., 1985. Além dos 18 aforismos, “Sobre o conceito da História” apresenta mais dois como apêndices.
17
conteúdo social, as questões sobre se determinada obra
é boa, bela e verdadeira, ficam ainda por responder. (...)
A universalidade da arte não pode radicar no mundo e na
imagem do mundo de determinada classe. (...) O tecido
inexorável de alegria e de tristeza, celebração e
desespero, Eros e Thanatos, não podem dissolver-se em
problemas de luta de classe. A história também radica na
natureza.10
Não se trata, aqui, de uma exegese primária e superficial
das premissas teóricas desses três pensadores críticos de filiação marxista.
Trata-se, antes, tão-somente de, demarcadas ainda que provisoriamente suas
diferenças, chamar a atenção para o que há de comum entre eles. E o que há
de comum entre eles é a preocupação de atualizar o pensamento marxista,
num campo em que tanto Marx quanto Engels se ausentaram: o da criação
estética. Ora, a questão que aqui se coloca é a de que, para além de suas
distintas estratégias de abordagem, os três pensadores tiveram, forçosamente,
de voltar à filosofia crítica alemã para se municionar teoricamente, para tratar
do difícil problema de qualificação do estatuto da arte entre os fenômenos da
práxis. No que, aliás, os três tinham razão. Afinal, a idéia de arte nasceu ali. Foi
exatamente com a filosofia crítica, inaugurada por Kant, que pela primeira vez,
no Ocidente, construiu-se plenamente uma estética, como ramo da filosofia,
cujo objetivo era pensar o que hoje chamamos de arte, quer como forma de
expressão de um conhecimento mais profundo das coisas, quer como meio
pelo qual se realiza o processo de humanização. É claro que encontramos, ao
longo da história da cultura ocidental, inúmeros momentos em que as
diferentes formas de arte foram objeto de variadas opiniões, reflexões,
comparações, enfim, visões quanto à sua importância e o seu sentido para o
10MARCUSE. Op. cit., pp. 27-28.
18
mundo do saber. E o objetivo desta tese é, efetivamente, encenar, ainda que
de modo fractal, alguns desses momentos. Mas esta tese também tem como
seu objetivo mostrar que, mesmo naqueles momentos, não era sobre arte que
se discutia, e pelo simples motivo de tal idéia só haver adquirido forma e
conteúdo a partir das especulações metafísicas de quatro grandes pensadores
alemães: Kant, Fichte, Schelling e Hegel.11
Entre os historiadores da arte, muitas vezes fortemente
influenciados pelas concepções estéticas do idealismo alemão, é
extremamente comum encontrarmos, a par de uma cronologização da criação
artística, a idéia de que uma nova forma de produzir arte implica a superação
São a esses quatro titãs do
pensamento que a Idéia de Arte deve seu nascimento. Por outro lado, não é a
proposta deste ensaio produzir uma profunda exegese crítica sobre os quatro
maiores pensadores da filosofia alemã, no final do século XVIII e início do XIX.
Não há aqui a pretensão, natural e apropriada aos estudos de filosofia, de
exibir o pensamento daqueles mestres em suas nuanças, sutilezas e abissais
profundidades. Não. Esta tese se ocupa exclusivamente com a narração
ensaística de um percurso, qual seja: o percurso de determinadas formas
simbólicas de expressão que, vivenciadas e concebidas sob os mais variados
ângulos possíveis, em diferentes períodos da história européia, unificam-se
pouco a pouco num sistema singular de formas de conhecimento, formas que
passarão a ser vistas como modos privilegiados de manifestação do espírito
humano. E aqueles pensadores serão tratados tão-somente como personagens
protagonistas desta longa narrativa.
11Perfilar esses quatro pensadores não implica pressupor uma seriação, que teria início em Kant e culminaria em Hegel; muito menos significa defender, equivocadamente, a existência de uma estrita identidade entre os quatro. Longe desses erros elementares, o alinhamento desses quatro grandes nomes aponta para a inegável constatação de haverem, cada um a seu modo, contribuído para a construção de uma metafísica da arte, denominada nesta tese de Idéia de Arte.
19
das precedentes. Talvez a única exceção seja Ernst Gombrich12, que, em seu
longo ensaio, Para uma história cultural13, além de fazer uma leitura das
origens da história cultural, identificando seu primeiro momento de emergência
no século XVIII, com as discussões iluministas em torno de termos como
cultura e civilização, “por contraposição a barbarismo, selvageria ou
primitivismo”,14 que já se construíam baseadas na idéia de progresso15, mostra
como o sistema hegeliano de pensamento, especialmente formalizado na sua
estética, não só condicionou as abordagens históricas e teoréticas da arte,
como fenômeno cultural, mas também a visão que muitos temos, até hoje, da
arte como expressão de uma identidade espiritual de povos ou de
coletividades.16 Por outro lado, tanto a crítica de Gombrich a uma história
cultural alimentada pela filosofia da história hegeliana, quanto a sua crença na
possibilidade de uma história cultural, cuja atenção se fixe também no ser
humano individual, pois que, à diferença “do que sucede com os períodos, os
movimentos são iniciados por pessoas”,17
12Para Gombrich “a história da arte, em seu todo, não é uma história de progresso na proficiência técnica, mas uma história das idéias, concepções e necessidades em permanente evolução.” GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16ª edição. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos S. A., p. 44. 13Esse ensaio tem sua origem na palestra proferida no Lady Margareth Hall, em 19 de novembro de 1967, e constitui-se, também, de aditamentos feitos pelo autor ao texto apresentado na ocasião. GOMBRICH, E.H. Para uma história cultural. 1ª edição. Lisboa: Gradiva, 1994. 14GOMBRICH. Op. cit., p. 14. 15“A história da civilização, ou da cultura, era a história da ascensão do homem, de um estádio quase animal à sociedade educada, ao cultivo das artes, à adoção de valores civilizados e ao livre exercício da razão. Por isso a cultura podia progredir, mas podia também declinar e perder-se, e a história estava legitimamente envolvida em qualquer desses processos.” Idem, p. 14. 16“É esta crença num espírito coletivo independente e supra-individual que me parece ter bloqueado o aparecimento de uma verdadeira história cultural.” Idem, p. 78. 17Idem, p. 79.
não esgotam a discussão sobre a
História, quer como um campo do saber, enformado por um sistema filosófico,
quer como narrativa dos fazeres humanos no tempo. E talvez sua tentativa de
uma história da cultura, ou mais exatamente, pois no fundo é para isso que sua
vindicação aponta, uma história da arte, sem pressupostos metafísicos,
algumas vezes corra o risco de contradizer-se metodologicamente, ao abordar
20
diferentes momentos da história da arte ora pelo viés técnico, ora pelo
significado simbólico de seus artefatos, ora pela mistura dos dois critérios, e
mesmo pelo uso da metáfora dos dois grandes músicos que podem “interpretar
a mesma peça de modos muito diferentes”,18 como que para provar sua ilógica
máxima da existência do agente de uma prática inexistente19
O tema que aqui buscamos desenvolver – o nascimento da
Idéia de Arte no Ocidente – coloca-nos frente à frente com a questão do
surgimento, no século XVIII europeu
.
20, do princípio do “mútuo esclarecimento
das artes”21, que tantos – talvez equívocos – problemas trouxeram sobre o que
seja o fazer artístico e seu significado para o conhecimento das sociedades
ocidentais. Segundo Curtius, a prevalência da Filosofia, da Sociologia, da
Psicanálise e, obviamente, da História da Arte nos estudos literários, com a
ambição de torná-los uma espécie de “história do espírito” acabou por produzir
“uma confusão de circunstâncias em que prevalece o diletantismo”:22
Temos assim os estilos literários romântico, gótico,
renascentista, barroco, etc., até ao impressionismo e
expressionismo. Cada período de estilo, pela “Visão da
essência” (Wesenschau), é dotado de uma “essência” e
comporta um tipo especial de “homem”. O “homem
18GOMBRICH, E. H. A história da arte. 16ª edição. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos S. A., p. 163. 19“Nada existe realmente a que se possa dar o nome de arte.” Sobre arte e artistas. In: GOMBRICH. Op. cit., p. 15. 20Some scholars have rightly noticed that only the eighteenth century produced a type of literature in which the various arts were compared with each other and discussed on the basis of common principles, whereas up to that period treatises on poetics and rhetoric, on painting and architecture, and on music had represented quite distinct branches of writing and were primarily concerned with technical precepts rather than with general ideas. (“Alguns estudiosos observaram corretamente que somente o século XVIII produziu um tipo de literatura na qual as diferentes artes eram comparadas e tratadas sobre a base de princípios comuns, considerando que, daquele período em diante, os tratados sobre poética e retórica, sobre pintura e arquitetura, bem como sobre música passaram a representar ramos bem distintos da produção escrita e a tratar principalmente de questões técnicas, do que de idéias gerais.” KRISTELLER, Paul Oskar. The Modern System of the Arts: A Study in the History of Aesthetics. In: Journal of History of Ideas. Columbia University Press, Volume XII, Number 4, October, 1951/Volume XIII, Number 5, January, 1952, 497. (Tradução minha.) 21Apud CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e Idade Média latina. Tradução do original alemão por Teodoro Cabral, com a colaboração de Paulo Rónai. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957, 12. 22CURTIUS. Op. cit., p.12
21
gótico” (ao qual Huizinga acrescentou um comparsa “pré-
gótico”) tornou-se muito popular, mas não lhe ficou nada
a dever o “homem barroco”. Sobre a “essência” do gótico,
do barroco, etc., há opiniões profundas que,
naturalmente, são em parte contraditórias. Shakespeare é
renascentista ou barroco? Baudelaire é impressionista?
George é expressionista? Emprega-se, nesse problema,
muita energia mental. Aos períodos de estilo ajuntam-se
os “conceitos fundamentais” de Wölfflin. Há forma
“aberta” e forma “fechada”. Afinal, o Fausto de Goethe é
aberto, o de Valéry é fechado?23
Hoje, quando vivemos nas ruínas de nossa civilização,
aspiramos o ar cada vez mais rarefeito de uma cultura que hesitamos em
reconhecer como nossa criação.
24
23Idem, p. 12. 24“Receio que esta indústria [acadêmica] ameace tornar-se inimiga da cultura e da história cultural.” GOMBRICH, E. H. Para uma história cultural, p. 99.
Cultuamos, ainda, mas sem muita fé, uma
divindade, a arte, de cuja teogonia não nos lembramos mais. Quando dela
tratamos, usamos conceitos cristalizados, cujas origens, ao que ao parece, o
tempo baralhou. Tornamo-nos, ao longo do século XX, iconoclastas e
revolucionários, brandindo contra o passado o mais sofisticado arsenal de
conhecimentos que a inteligência e a sensibilidade humanas poderiam
conceber. Nossos artistas e intelectuais sempre se orgulharam de seu poder
transformador, tanto no âmbito da criação estética, quanto no da pesquisa e
crítica de arte. Sempre acreditamos no progresso que representaram nossas
experimentações e reflexões, ao mesmo tempo em que olhávamos o passado
como um inventário de tentativas e erros, necessário sim, mas carente de
qualquer outro sentido que não fosse o de servir de matéria-prima para nossas
novas e brilhantes descobertas ou invenções. Nós, os orgulhosos homens do
século XX, também fomos capazes de ouvir, mesmo que com indisfarçável
22
impaciência, as lições do passado. Mas as ouvimos tão-somente para
concluirmos que éramos superiores a nossos mestres – afinal, éramos os
melhores discípulos que qualquer mestre poderia ter. Na verdade, eles é que
foram melhores do que nós. De qualquer modo, teremos sido, mesmo, os
melhores discípulos? Tivemos, realmente, a capacidade de entendê-los. Terá
sido nossa propensão superior à nossa pretensão? Construímos e
desconstruímos saberes – mas sobre que bases fundamos nossos
conhecimentos? A que nível de entendimento dos princípios e idéias recebidos
do passado fomos capazes de chegar, para podermos, tão sistemática e
meticulosamente, contradizê-los? Sabemos realmente quem são os deuses
contra os quais nos voltamos? Intuímos verdadeiramente o profundo
significado das lições recebidas, a ponto de nos sentirmos tão à vontade para
formular exegeses heréticas e críticas audaciosas a elas, sem que, ao fim e ao
cabo, não nos tornássemos as principais vítimas dos abismos teóricos e vazios
criativos, por nós mesmos engendrados?25
Seja como for, penso ser o momento de recuperarmos a
consciência de que a noção de criação artística e tudo o que ela implica,
constituem uma invenção do século XVIII, e, como invenção, somente a partir
daí o que compreendemos por arte tornou-se objeto a ser discutido dentro de
um contexto gnosiológico
26
25Quero deixar claro nesta passagem, embora não vá desenvolver este tema neste ensaio, que boa parte das “errâncias” teóricas, que suscitaram as grandes crises estéticas do século XX, está relacionada a uma curiosa mistura da plena aceitação, da parte dos artistas, da idéia de gênio criador, inventada pelos idealistas alemães, como traço de identidade da categoria artista, com a simultânea recusa de seu correspondente ideal de belo artístico. E isto por dois motivos básicos: primeiramente, os “artista-criadores” não dominavam os princípios filosóficos que freqüentemente afetaram conhecer; e o mais importante: o oportunismo da grande maioria dos artistas, especialmente os ditos vanguardistas, que questionavam tudo, menos sua condição especial de “gênio”, pois tal condição poderia ser a garantia do reconhecimento público e, o mais importante, da ascensão econômica e social. Talvez o grande modelo desse tipo de artista, no século XX, tenha sido Salvador Dalí.
e, portanto, filosófico:
26Para Benedetto Croce, o tema das origens da estética levanta muitas controvérsias, pois trata-se de uma questão que no es sólo de hechos, sino de critérios, e que se resolve quando se toma uma decisão sobre que conceito adotar quanto ao que seja esta ciência. CROCE, B. Estética como ciencia de la
23
It is known that the very term “Aesthetics” was coined at
that time, and, at least, in the opinion of some historians,
the subject matter itself, the “philosophy of art,” was
invented in that comparatively recent period and can be
applied to earlier phases of Western thought only with
reservation. It is also generally agreed that such
dominating concepts of modern aesthetics as taste and
sentiment, genius, originality and creative imagination did
not assume their definitve moderrn meaning before the
eighteenth century.27
Ora, se a arte, ao representar o homem, seja em sociedade,
seja individualmente, o representa como objeto de conhecimento, assim o faz,
por ser de sua natureza representar seu objeto como objeto de conhecimento?
Eis uma tese a ser discutida; embora pareça não haver dúvida quanto ao fato
de a arte haver sido construída como um objeto de conhecimento, em dois
graus: como conteúdo, ou discurso, isto é, quanto àquilo que podemos ler por
seu intermédio, e como forma, ou seja, como linguagem para aquele mesmo
conteúdo. O problema é que hoje vivemos na crença de que a da arte é uma
forma de conhecimento, com objeto, método e uma finalidade transcendental
próprios, nascida com o próprio homem.
28 E no interior dessa discussão, sou
levado a admitir que Curtius tem razão, quando afirma que a literatura “é
portadora de pensamentos, e a arte não.”29 A literatura30
expresión y lingüística general. Teoría e historia de la estética. Segunda edición española corregida y aumentada, conforme a la quinta edición italiana, por Angel Vegue y Goldoni. Prólogo de Miguel de Unamuno. Madrid: Francisco Beltrán Librería Española y Extranjera, 1926, p. 190. 27“É sabido que próprio termo ‘Estética’ foi cunhado àquela época e que, pelo menos na opinião de alguns historiadores, seu objeto propriamente dito, a ‘filosofia da arte’, foi inventado naquele período relativamente recente, e tem sido aplicado, com alguma reserva, às fases mais antigas do pensamento ocidental. Admite-se também que os conceitos dominantes da estética moderna, tais como gosto e sentimento, gênio, originalidade e imaginação criativa, não assumiram seus modernos e definitivos significados antes do século XVIII.” KRISTELLER, Paul Oskar. Op. cit., pp. 496-497. (Tradução minha.) 28Croce defende magistralmente a tese, a meu ver problemática, de ser a arte uma forma de conhecimento intuitivo. CROCE. Op. cit. p. 58 e seguintes.
é, efetivamente, uma
29CURTIUS. Op. cit., p.15. Vale a pena reproduzir aqui, em função dos objetivos desta tese, a última nota do primeiro capítulo do livro de Curtius, a propósito de sua distinção entre literatura e arte: “O presente artigo apareceu, como impressão prévia, em 1947, na revista Merkur. Houve protesto de parte dos historiadores da Arte. Causou estranheza a tese de que a Literatura seja portadora de pensamento e a Arte não. Explico assim: se se perdessem os escritos de Platão, não seria possível reconstruí-los com o
24
forma de conhecimento que tem, em si mesma, seu próprio objeto: a
linguagem. Mas o modo sob o qual se faz sua abordagem; a definição de seu
estatuto – pensado em função do das diferentes linguagens ditas artísticas31
Portanto, trata-se aqui de buscar as origens do conceito de
arte, distinguindo os liames sociais, culturais e mentais que favoreceram a
emergência de um novo modo de percepção das produções simbólicas, a partir
do alvorecer do que se convencionou chamar de modernidade, com sua
consolidação, e paradoxal crise, no século XIX.
–,
sua condição e qualidade de manifestação espiritual distinta e altamente
valorizada em relação a outras, enfim, seu próprio conceito – tudo isso foi
sendo construído, desde meados do século XVIII e inícios do século do XIX,
sob a tutela de pensadores que tinham de se defrontar com o fim de
concepções de mundo baseadas na tradição, e a emergência de um novo
mundo que, a par de não mais ser o lugar para a tradição, necessitava de
novas metafísicas para sua sustentação.
32
auxílio da plástica dos gregos. O Logos só pode expressar-se em palavras. – A posição da História da Arte, dentro das ciências filosóficas, parece-me carecer de uma revisão. Já em 1893 falava Jacob Burckhardt de ‘centenas de empanturrados historiadores da arte... gente che non ha posto nè in cielo nè in terra’. (Carl Neumann. Jacob Burckhardt, 1927, 30) Dos estetas e arqueólogos não pensava ele melhor. “Derramou a sua ironia sobre a crítica dos arqueólogos, que não prestavam nem para assar, nem para cozinhar. As opiniões dessa gente, disse ele, sobem e descem como os títulos da Bolsa.”(Ib.) CURTIUS. Op. cit., nota 18, p. 17. 30Idem, pp. 14-15. 31Although the terms “Art”, “Fine Arts” or “Beaux Arts” are often identified with the visual arts alone, they are also quite commonly understood in a broader sense. In this broader meaning, the term “Art” comprises above all the five major arts of painting, sculpture, architecture, music and poetry. These five constitute the irreducible nucleus of the modern system of the arts, on which all writers and thinkers seem to agree. On the other hand, certain additional arts are sometimes added to the scheme, but with less regularity, depending on the different views and interests of the authors concerned: gardening, engraving and the decorative arts, the dance and the theatre, sometimes the opera, and finally eloquence and prose literature. (“Embora os termos ‘Artes’, ‘Belas-artes’ ou ‘Beaux Arts’ sejam freqüentemente identificados apenas com as artes visuais, são eles, também, muito comumente entendidos num sentido mais amplo. Com este significado mais amplo, o termo ‘Arte’ compreende primeiro que tudo as cinco artes maiores: a pintura, a escultura, a arquitetura, a música e a poesia. Estas cinco constituem o núcleo irredutível do moderno sistema das artes, em relação ao qual todos os escritores e pensadores parecem estar de acordo. Por outro lado, certas artes adicionais são às vezes incluídas no esquema, embora com menos regularidade e dependendo dos diferentes pontos de vista e dos interesses dos autores envolvidos: jardinagem, gravura e as artes decorativas, a dança e o teatro, às vezes a ópera e, finalmente, a eloqüência e a literatura em prosa.” KRISTELLER, Paul Oskar. Op. cit., p. 497. (Tradução minha.) 32O tema da crise, apenas esboçado na conclusão desta tese, enfocará tão-somente a figura do artista escritor, especialmente, na França do século XIX.
Claro está que a
25
contextualização desse processo implica observar que o capitalismo em
expansão na Europa, ao mesmo tempo em que aniquilou, progressiva e
lentamente, as práticas artesanais, ensejou a valorização de determinadas
artes33
Se este ensaio apóia-se na História, dou-me conta, ao
mesmo tempo, que a mesma história, antes de alimentar-se de filosofias, tem,
qual o mítico Cronos, como seu alimento os homens e seus feitos; e nesse
caso, o que me cabe fazer é, num gesto de astúcia, tentar compor uma cena
no interior da qual possa recuperar os modos de nascimento dessa entidade
que chamamos arte. E este gesto astucioso implica um caminho, uma maneira
que, embora nascidas da tradição popular, romperam com ela, em favor
de uma sofisticada especialização, caracterizada principalmente pelo exercício
de uma sensibilidade refinada associada a um elevado padrão intelectual. Tais
atividades, rompidos seus laços com a tradição, resultaram nas diferentes
formas de manifestação artística, que assumiram, assim, por sua sofisticação,
dificuldade e excepcionalidade, a condição de apanágio distintivo das elites
sociais – algo como um traço de enobrecimento e autovalorização das classes
dominantes, frente à grande maioria da população pobre e “inculta”. Nascida
das condições estabelecidas pela afirmação progressiva da cosmovisão
burguesa, a idéia da arte, simultaneamente um saber metafísico e um processo
dsitintivo de humanização, não se cristalizou de imediato; ao contrário, como
todo processo de longa duração, conheceu marchas e contramarchas,
aclimatações, adaptações, enfim, linhagens de formulação específicas,
consoante lugares e momentos de sua expansão e crise.
33O que a tradição ocidental designava pela palavra “arte”, antes do nascimento da estética, no século XVIII, será apresentado no segundo capítulo desta tese.
26
de narrar essa história, mas numa perspectiva que se recuse a julgar o
passado ou atribuir-lhe um sentido teleológico, porque:
... wie brauchen die Historie, aber wir brauchen sie
anders, als sie der verwöhnte Müssiggänger im Garten
des Wissens braucht, mag derselbe auch vornehm auf
unsere derben und anmuthlosen Bedürfnisse und Nöthe
herabsehen. Das heisst, wir brauchen sie zum Leben und
zur That, nicht zur bequemen Abkehr vom Leben und von
der That oder gar zur Beschönigung des selbstsüchtigen
Lebens und der feigen und schlechten That. Nur soweit
die Historie dem Leben dient, wollen wir ihr dienen (...).34
Servir-me-ei, portanto, deste caminho para tratar do
surgimento dessa criação metafísica – a arte –, nascida ao crepúsculo das
tradições artesanais, caracterizadas, em sua prática, por uma espécie de
materialidade isenta de qualquer vontade de auto-justificativa idealizada.
Nessas tradições, que precedem o aparecimento da arte, o ofício de criar o
belo, seja lá como este belo se mostrasse, nada tinha de transcendente,
embora muitas vezes obedecesse a ditames transcendentais, mas, antes, sua
realização acontecia fundamentalmente pela transmissão corporativa de
técnicas, a que podiam associar-se o talento e a habilidade individuais; e o
resultado do trabalho artístico era freqüentemente colocado à disposição de
uma elite orgulhosa de suas realizações e vaidosa em sua vontade de auto-
representação. É deste processo de transformações, ocorrido nas sociedades
34“... precisamos da história, mas precisamos dela de um modo diferente ao do mimado ocioso no jardim do saber, que dela precisa para que ele mesmo possa aristocraticamente olhar do alto nossas duras e desgraciosas carências e necessidades. Isto é, precisamos dela para a vida e para a ação, não para o confortável abandono da vida e da ação ou mesmo para a coonestação da vida egoísta e da ação covarde e má. Apenas na medida em que a história serve à vida, queremos nós servir-lhe (...). NIETZSCHE, Friedrich. Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: “Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben.” In: Friedrich Nietzsche: Sämtliche Werke, Band 1 der “Kritischen Studienausgabe” (KSA) in 15 Einzelbänden, die erstmals 1980 als Taschenbuchausgabe erschien und für die vorliegende durchgesehen wurde. Sie enthält sämtliche Werke und unveröffentlichten Texte Friedrich Nietzsches nach dem Originaldrucken und –manuskripten auf der Grundlage der “Kritischen Gesamtausgabe”, herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzimo Montinari. 2. durchgesehene Auflage. München, Deutscher Taschenbuch Verlag GmbH & Co. KG, Berlin/New York, Walter de Gruyter & Co., 1988, p. 245. (Tradução minha.)
27
ocidentais, do que foram e como eram percebidas determinadas práticas
simbólicas, que hoje denominamos artísticas, que trata esta tese.
Em seu belo livro, Platón y el Platonismo35, Walter Pater
distingue três formas literárias diferentes para a exposição do pensamento
filosófico. A essas três formas corresponderiam três métodos de pensamento,
dominantes na tradição da reflexão filosófica ocidental. A primeira seria a forma
poética, consentânea com o que se denominaria de método intuitivo,
imaginativo, freqüentemente apaixonado e, por vezes, obscuro de pensamento.
Exemplos clássicos dessa primeira forma seriam os grandes poemas de
Parmênides, Empédocles e Lucrécio. A essa escrita poética do pensamento
seguir-se-ia o tratado filosófico – forma oposta à primeira e caracterizada pela
cristalização das intuições originárias em sistemas dogmáticos. Seus
representantes modelares são Aristóteles, Tomás de Aquino e Spinoza.
Finalmente, e pondo em evidência “la actitud filosofica perfecta”36, por seguir
“una línea eqüidistante entre esos dos extremos”37
(...) tipo literário característico de nuestra época tan rica y
varia en aprehensiones particulares de la verdad, tan
incierta em cuanto al sentido de su ensemble y de sus
resultados. Forma estrictamente adecuada de nuestra
literatura filosófica moderna, el ensayo comenzó a usarse
en lo que fue realmente la creación del espírito relativista
“moderno”, en el Renacimiento del siglo XVI.
, temos o ensaio:
38
35Plato and Platonism, de Walter Pater, é de 1893. Neste ensaio, utilizo-me da tradução castelhana de Vicente P. Quintero, intitulada Platón y el Platonismo. PATER, Walter. Platón y el Platonismo. Buenos Aires: Emecé Editores, S. A., 1946. 36PATER. Op. cit., p. 195. 37Idem. 38“(...) tipo literário característico de nossa época tão rica e matizada nas apreensões particulares da verdade, tão incerta quanto ao sentido de seu conjunto e de seus resultados. Forma estritamente adequada de nossa literatura filosófica moderna, o ensaio começou a ser usado no momento em que se deu realmente a criação do espírito relativista ‘moderno’, no Renascimento do século XVI.” PATER, Walter, op. cit., p. 193. (Tradução minha.)
28
Ao conceber o ensaio como a forma literária tipicamente
moderna de escritura da reflexão filosófica, em torno dos temas que constituem
o universo das experiências humanas, Pater sublinha o que qualifica de
“filosofia autêntica”, que nada mais é do que a expressão do “sentimiento
refinado de nuestra ignorância”.39
Utilizo-me do termo ensaio, para esta tese, para designar
um tecido, cuja trama deve dar forma histórica ao meu objeto de estudo. Ora,
toda trama histórica realiza-se, por excelência, numa narrativa. Mas, à
diferença dos estudos de história convencionais, esta narrativa ensaística não
tem a pretensão à verdade histórica, almejada pelos métodos utilizados pelos
historiadores – ou, pelo menos, não àquilo que os historiadores acreditam
estabelecer como verdade. Por outro lado, o fato de esta tese tramar-se como
um estudo em literatura coloca-me à vontade para, ao narrar historicamente,
refletir sobre o narrado à luz de autores que, como pontos da trama, dão vida,
forma e sentido a esta mesma narrativa. Trata-se, portanto, de uma tessitura
ensaística que é, simultaneamente, uma leitura. Como um estudo literário, este
ensaio narrativo, que é uma possibilidade de leitura, será bem-sucedido ou não
consoante sua capacidade de chamar a atenção para pontos narrativos ou
O intelectual moderno, como a imagem
perfeita da “Melancolia” de Dürer, enfastiado de si mesmo e desconfiado de
saberes acumulados, por ele suportados como um fardo, recolhe-se à
penumbra do ensaio para refletir sobre veredas que levam a lugar nenhum. E é
com esse espírito que, antes de dar continuidade a esta tese, creio ser
necessário predicar com maior precisão, ainda que esquematicamente, tanto
seu objeto quanto sua metodologia.
39PATER, Walter. Op. cit., p. 196.
29
sugestões para outros ensaios que, a serviço da vida, ajudem-nos a superar a
melancolia que, freqüentemente, o conhecimento nos causa.
Como já assinalei anteriormente, o caminho histórico que
trilharei não se confunde com o do “mimado ocioso no jardim do saber”; ao
contrário, o próprio título deste ensaio já denuncia meu compromisso com a
idéia de que conhecer só faz sentido se for para abrir uma nova perspectiva de
afirmação da vida. E nisso Nietzsche, mais uma vez, oferece fundamentação,
quando argumenta a favor de uma história estetizada, mas não idealizada:
Deshalb aber ganze Völker incommodieren und
mühsame Arbeitsjahre darauf wenden hiesse doch nichts
Anderes, als in den Naturwissenschaften Experiment auf
Experiment häufen, nachdem aus dem vorhandenen
Schatze der Experimente längst das Gesetz abgeleitet
werden kann: an welchem sinnlosen Uebermaass des
Experimentirens übrigens nach Zöllner die gegenwärtige
Naturwissenschaft leiden soll. Wenn der Werth eines
Dramas nur in dem Schluss- und Hauptgedanken liegen
sollte, so würde das Drama selbst ein möglichst weiter,
ungerader und mühsamer Weg zum Ziele sein; und so
hoffe ich, dass die Geschichte ihre Bedeutung nicht in
den allgemeinen Gedanken, als einer Art von Blüthe und
Frucht, erkennen dürfe: sondern dass ihr Werth gerade
der ist, ein bekanntes, vielleicht gewöhnliches Thema,
eine Alltags-Melodie geistreich zu umschreiben, zu
erheben, zum umfassenden Symbol zu steigern und so in
dem Original eine ganze Welt von Tiefsinn, Macht und
Schönheit ahnen zu lassen.40
40“Mas prejudicar povos inteiros e gastar nisso anos de trabalho árduo não significa outra coisa, salvo acumular experimento sobre experimento em ciências naturais, após o quê pode-se extrair a lei do tesouro de experimentos, há muito tempo existente: aliás, Zöllner* diz que as ciências da natureza contemporâneas padecem de tal excesso absurdo de experimentação. Se o valor de um drama residisse tão-somente em sua conclusão ou em sua idéia principal, o próprio drama seria um caminho mais longo, tortuoso e penoso em direção ao seu fim; de modo que espero que a história não venha a reconhecer seu significado em pensamentos generalizantes, como na relação da flor com o fruto: mas que seu valor esteja justamente em realçar e parafrasear com engenho um tema conhecido e talvez comum, uma melodia corriqueira, elevá-lo à condição de um vasto símbolo e deixar pressentir no tema original todo um
30
O intento deste ensaio, portanto, não é o de pensar a idéia
de arte a partir de leis gerais, nem o de tratar a História segundo o antigo
princípio aristotélico, herdado pelo idealismo hegeliano e, dele, pelo próprio
marxismo, de que as ações humanas trazem em potência, como a flor traz o
fruto, conseqüências necessárias, ou a marca genética de uma finalidade
última que torna previsível toda ação. O que pretendo é tão-somente compor
um quadro, o mais rico possível em cores e matizes, do longo processo de
construção, no ocidente, de uma idéia: a Idéia de Arte.
Mas, e o acontecimento ao qual aludi, no início de toda esta
digressão, e que me marcou desde então as muitas noites futuras, diferentes
daquelas outras, perdidas, nos finais dos anos 70, pensando na arte e no
artista como as únicas entidades capazes de garantir, mais do que corpo, alma
à história, pois que, para mim, eles se constituíam como vetores de sentido
para a existência dos homens sobre a Terra? O que foi feito da arte e do artista
como únicas instâncias de verdade possível, num mundo sujeito às mentiras e
falsidades da má consciência? Devo dizer que foram postos em xeque por um
quadro cusquenho?
De fato, era um belo quadro, representando, talvez, uma
Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América. A santa aparecia no
meio da tela, hierática, com um rico manto colorido. Seus traços mostravam a
inequívoca intenção de seu autor de sintetizar, numa composição tipicamente
religiosa, caracteres europeus e ameríndios – aliás, um dos elementos
característicos da chamada Escola Cusquenha de pintura. O quadro era
propriedade da irmã de um amigo que estudava história comigo. Meu interesse
mundo de meditação, poder e beleza.” NIETZSCHE, F. “Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben 6”. Op. cit., p. 292. ( Tradução minha. ) *Johann Karl Friedrich Zöllner (1834-1882) foi astrônomo e físico.
31
pela tela devia-se ao fato de estar cursando uma disciplina de História da
América Espanhola, na qual nada se falava sobre as manifestações espirituais
na América colonial. Minha curiosidade pela tela advinha de minha costumeira
necessidade de um testemunho vivo sobre uma época e lugar, cuja história,
nesse caso, era estudada tão-somente pela ótica de sua posição, subalterna,
no grande ciclo da cumulação primitiva de capital, da qual se originaria o modo
de produção capitalista.
O quadro ocupava posição destaque na sala de jantar,
iluminado por um foco de luz. Todo ambiente parecia magicamente
transformado pela presença daquela santa que representava, a um só tempo, a
cruel exploração colonial e o poder de transformar as mais terríveis realidades,
que só uma obra de arte pode evocar. O quadro seria vendido e esperávamos
um marchand que viria avaliá-lo. Enquanto aguardávamos, devaneávamos por
entre o panejamento de Nossa Senhora, deixando-nos arrastar pelo sonho de
uma América Colonial brutal e bela.
Finalmente o marchand chegou. Cumprimentou a todos. Fez
as perguntas de praxe – onde e quando a tela fora comprada –, sem olhá-la.
Dirigiu-se não para a frente do quadro, mas para a parte detrás da tela.
Arrancou-lhe um mínimo fiapo e disse: “É falso.”
1. A τέχνη e o ποιητής no Livro X d’A República
O que costumamos chamar de arte nem sempre existiu.41
Sabemos que os homens sempre se ocuparam em construir suas casas e
santuários, em pintar com os motivos mais variados suas cavernas ou as
paredes de suas habitações ou templos42
Em 1907 interpreta ele (L’Évolution Créatrice) o curioso
processo no quadro de um élan vital. A Natureza procura
realizar a vida, que se eleva à consciência. A vida sobe
por diferentes caminhos (muitos dos quais verdadeiros
becos sem saída) para formas cada vez mais altas. (...) A
função fabuladora (fonction fabulatrice) foi necessária à
vida. Alimenta-se com o resíduo do instinto, que, como
uma aura, circunda a inteligência. O instinto não pode
intervir imediatamente para proteger a vida. Como a
inteligência só reage a imagens de percepção, cria
percepções “imaginárias”, que podem aparecer depois
como consciência indefinida de um “presente eficaz” (o
numen dos romanos), em seguida como espíritos e, só
muito mais tarde, como deuses. A mitologia é um produto
; sabemos, também, que, em épocas
muito remotas, grupos primitivos, num misto de espanto e prazer, ouviam, ao
redor da fogueira tribal, cantos fabulosos sobre seres ou fenômenos que se
lhes apareciam como expressão literal de um ambiente em tudo misterioso e
sagrado. Segundo Curtius, a prática de criar mitos, histórias, poemas, que
caracteriza o homem desde seus primórdios, seria explicada, cientificamente,
pela “função de fabular”, descoberta por Bergson:
41O historiador Ernst Gombrich, em “Sobre arte e artistas”, diz, muito apropriadamente, que: “Nada existe a que se possa dar o nome de Arte. Existem somente artistas. Outrora, eram homens que apanhavam um punhado de terra colorida e com ela modelavam toscamente as formas de um bisão na parede de uma caverna; hoje, alguns compram suas tintas e desenham cartazes para tapumes; eles faziam e fazem muitas coisas. (...) tal palavra pode significar coisas muito diversas, em tempos e lugares diferentes, e que Arte com A maiúsculo não existe. Na verdade, Arte com A maiúsculo passou a ser algo como um bicho-papão, como um fetiche.” GOMBRICH, E. H. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral. 16ª ed. Rio de Janeiro, LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1999, p.15. 42GOMBRICH, E. H. A história da arte, p. 39.
33
tardio, e o caminho para o politeísmo é um progresso
cultural. A fantasia, fonte de ficção e mitos, tem o sentido
de “fabricar” espíritos e deuses. (...) A função de fabular
elevou-se da produção de ficções com fins biológicos à
criação de deuses e mitos e, finalmente, desligou-se do
mundo religioso para libertar-se. É “a faculdade de criar
pessoas, cujas histórias nós próprios contamos”. (...) Ela
formou a epopéia de Gilgamesh e o mito da serpente do
paraíso, a Ilíada e a lenda de Édipo, a Divina Comédia de
Dante e a Comédia Humana de Balzac. É a raiz e a fonte
inesgotável de toda grande poesia. 43
A Antigüidade greco-romana desconhecia o que
entendemos por arte
Mas tais manifestações, que nós, hoje, tendemos a
considerar como artísticas, eram percebidas e vivenciadas tão-somente a partir
de sua função ritualístico-religiosa. E esta função levava em consideração
apenas o fato de os objetos e as práticas simbólicas produzirem os efeitos
mágicos desejados. Já seus produtores ou agentes – os artistas, como nós os
chamaríamos –, plenamente identificados com os padrões e crenças de suas
tribos, punham toda a sua habilidade e saber na execução de seu trabalho.
44; para os gregos e os romanos, τέχνη e ars designavam
todas as atividades humanas, que podiam ser ensinadas e aprendidas45
43CURTIUS. Op. cit., pp. 8-10. 44Nesta tese defendo a idéia de que, para haver arte, tem de haver uma ciência que determine o que seja este objeto – Arte. E a ciência para este objeto é a estética. A proposta desta tese é justamente mostrar que a Ciência da Arte só se constitui como tal a partir do século XVIII. Sendo assim, defendo, concomitantemente, que toda produção “artística”, anterior à invenção da Ciência da Arte, não pode, a rigor, ser considerada arte. 45KRISTELLER. Op. cit., p. 498.
. Em
sua Estética, B. Croce define a estética como a ciência da atividade expressiva
(representativa, fantástica). Para Croce a estética nasce quando ocorre a
determinação precisa da natureza da fantasia, da representação, da
expressão, como atitudes do espírito no ato de produzir conhecimentos
34
individuais e não universais46. Fora deste conceito de estética não se poderia
falar em teoria da arte. Assim, para Croce, apesar de podermos encontrar na
Antigüidade alguns elementos que nos conduziriam a uma teoria da expressão
ou da fantasia, tais elementos nada mais são do que “caminhos e tentativas”47
Desviación por defecto será la que niegue uma especial
actividad estética y fantástica o, lo que es lo mismo, la
que nieguesu autonomía, mutilando así la realidad del
espíritu. Desviación por excesso será la que sustituye o
sobrepone a aquela actividad outra que no se encuentre
en la experiencia de la vida interna, una actividad
misteriosa y efectivamente inexistente. (...) La desviación
por defecto puede ser: a) hedonística pura en cuanto
considera y acepta el arte como simple hecho de placer
sensual; b) hedonística rigorista em cuanto
considerándole del mismo modo le declara inconciliable
con la más alta vida del hombre; c) hedonística moralista
o pedagógica, em cuanto transige, pues a pesar de
considerar el arte como cosa sensual, declara que puede,
lejos de ser nocivo, prestar algún servicio a la moral,
siempre que esté sometido a ella y la obedezca. Las
formas de la segunda desviación (que diremos “mística”)
son indeterminables a priori, porque pertenecen al
sentimiento y a la fantasía en sus infinitas variedades y
vaguedades.
e, desse modo, negam a existência de uma estética naquela época.
Examinando a questão, conduzidos ainda pela mão de Croce, observemos
que, no lugar de uma teoria estética, o que encontramos na Antigüidade seriam
desvios por imperfeição ou desvios por excesso. Curiosas classificações para
os diferentes tipos de reflexão sobre as atividades “artísticas” àquela época:
48
46CROCE. Op. cit., p. 189. 47CROCE. Op. cit., p. 190.
48“Desvio por imperfeição será aquele que negue uma atividade estética e imaginativa especial ou, no que dá no mesmo, negue sua autonomia, mutilando, assim, a realidade do espírito. Desvio por excesso será aquele que substitui ou sobrepõe àquela atividade outra que não se encontra na experiência da vida
35
Nenhuma dessas concepções produziu realmente uma
reflexão filosófica sobre a natureza da arte. E dentre todas, sobressai aquela
que Croce considera “a mais solene e célebre das negações rigoristas da arte
jamais realizada”: a de Platão. É lugar comum acusar o maior dentre todos os
filósofos de intolerante, em relação ao artista e à arte. Há quem seja mais
condescendente. Realmente, a leitura do famoso Livro X de A República49
coloca-nos já a obrigação de enfrentar as afirmações do filósofo sobre, de
acordo com boa parte dos estudiosos em estética, o que venham a ser a arte, o
artista e o poeta. É de conhecimento de todos os que se interessam pela
história e cultura gregas que os termos τέχνη, δημιουργός, ποιητής, traduzidos
freqüentemente por arte, demiurgo ou artesão50
interna, uma atividade misteriosa e efetivamente inexistente. (...) O desvio por imperfeição pode ser: a) hedonístico puro, na medida em que considera e aceita a arte como fator de prazer sensual; b) hedonístico rigorista, que por considerar a arte do mesmo modo, declara-a inconciliável com a vida mais elevada do homem; c) hedonística moralista ou pedagógica, a que transige; pois, apesar de considerar a arte como coisa sensual, declara que ela pode, distante de ser nociva, prestar algum serviço à moral, desde que se submeta e obedeça a ela. As formas do segundo desvio (que chamaremos ‘místico’) são indetermináveis a priori, porque pertencem ao sentimento e à fantasia, em suas infinitas variedades e vaguezas.” Idem. (Tradução minha.) 49PLATÃO. A República. Diálogos. Vol. VI-VII. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1976. 50“O que se lê de fato através de Platão é o drama do artesão na civilização grega. (...) Dos poemas épicos cantados pelos aedos, esses ‘demiurgos’ dos quais fala a Odisséia, às criações da escultura, quase não existem grandes obras da cultura grega que não sejam, por uma de suas dimensões, demiúrgicas. Os médicos são demiurgos. Demiurgos também são os construtores do Erectéion, cidadãos, metecos e escravos conhecidos por uma série de inscrições. É antes de mais nada isso que exprime Platão quando faz do criador do mundo um artesão com meios gigantescos.” VIDAL-NAQUET, Pierre. “Estudo de uma ambigüidade: os artesão na cidade platônica.” In: VERNANT, Jean-Pierre/VIDAL-NAQUET, Pierre. Trabalho e escravidão na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1989, pp. 169-170
e poeta, guardam, em língua
grega, significados muito mais amplos, em relação ao sentido
contemporaneamente adotado para eles. Tais palavras cobriam um espectro
semântico muito rico, pois designavam diferentes atividades, que vão desde a
fabricação de sapatos até a habilidade de enunciar oráculos. Seja como for, os
três vocábulos referem-se ao ato humano, e às vezes até divino, de fazer, de
praticar, de realizar, de criar algo; e, no grego antigo, este ato é hierarquizado
ou valorado, de acordo com seu contexto e o modo como este contexto é
36
socialmente percebido. Todos os atos designados por tais vocábulos implicam
uma habilidade e um conhecimento específicos para cada tipo de ofício a ser
exercido.51
Não faz parte do que foi dito antes, que cada um só pode
sair-se bem em uma única profissão, não em muitas, e
que se experimentar as forças em várias a um só tempo,
fracassará totalmente e não se distinguirá em
nenhuma?
Quero dizer com isso que, no contexto da sociedade grega antiga
(o que vale também para a antiga sociedade romana) e no texto de Platão,
todas as atividades que se realizam num fazer, criar, produzir, inventar,
representar, arquitetar, elaborar, bem como seus agentes, têm sua legitimidade
reconhecida ou não consoante o grau de perfeição alcançado em um ofício
praticado com exclusividade:
52
Ora, se levarmos em consideração o modo como a
sociedade grega antiga via as práticas de criação, invenção, produção etc., isto
é, como necessariamente fundadas em conhecimentos e habilidades
específicos ao seu exercício, fica bastante claro o porquê de Platão poder
comparar a atividade do carpinteiro à do pintor. Ambas pretendem ser a
expressão prática de um conhecimento seguro sobre aquilo a que se dedicam.
Nesse ponto devemos lembrar que nada é mais festejado, entre os estudiosos
da cultura e do pensamento gregos, do que o nascimento do pensamento
racional. O pensamento racional grego é considerado, com justa razão, a
origem de todas as conquistas civilizacionais do ocidente; e Platão, como
referência máxima desse pensamento, foi quem estabeleceu o princípio do que
seja pensamento racional e do que seja pensar racionalmente: formular o
51“A tradição grega em seu conjunto insiste na qualidade e não na quantidade dos produtos (...).” Apud VIDAL-NAQUET, Pierre. “Estudo de uma ambigüidade: os artesão na cidade platônica.” In: VERNANT, Jean-Pierre/VIDAL-NAQUET, Pierre. Trabalho e escravidão na Grécia Antiga. Campinas: Papirus,1989, p. 150. 52PLATÃO. Livro III de A República, p. 134. VIDAL-NAQUET, Pierre. Op. cit., pp. 150-151.
37
conceito de cada coisa, isto é, a forma pensada mais próxima da Idéia de cada
ente, de modo a poder organizar, pelo pensamento, o caos aparente do
mundo. Platão sabe que a Idéia é um segredo da divindade, mas sabe também
que é pelo conceito que o homem pode dela se aproximar. Na filosofia
platônica, é pelo método dialético, cuja forma literária são seus diálogos, que
se pode tentar uma aproximação da Idéia. Mas como será isso possível no
âmbito das τέχναι?
Das práticas humanas, que não trabalham com os
conceitos, entendidos como representações das Idéias de tudo o que existe,
mas que os imitam, apenas e tão-somente como modelos de objetos e
situações determinados, reais, espera-se um perfeito conhecimento daquilo
que imitam, no sentido de sua perfeita adequação à cidade platônica53
A respeito de muitas questões, não chamaremos Homero
a juízo, nem qualquer outro poeta, para perguntar, por
exemplo, se algum deles foi médico, ou apenas imitador
da linguagem dos médicos; qual a cura que possa ser
atribuída a algum dos poetas antigos ou modernos, como
de Asclépio se conhece, ou que discípulo médico nos
deixou, como fez o outro com seus descendentes. Acerca
das demais artes não os interroguemos; demos-lhe tudo
isso de barato. Porém no que concerne aos mais belos e
importantes temas a que Homero se abalança: guerra,
tática militar, administração de cidades, educação do
homem, temos o direito, sem dúvida nenhuma, de
procurá-lo para dizer-lhe: Meu caro Homero, se no que
respeita à virtude não te encontras, realmente, três graus
afastado da verdade e não passas de um mero criador de
imagens, o que definimos como imitador, e, se, pelo
:
53Aqui, tomo de empréstimo a Vidal-Naquet a expressão “cidade platônica”, que passarei a utilizar sempre que me referir à cidade idealizada por Platão n’A República. Estou consciente de que o historiador francês usa a expressão num estudo, cujo objeto é bastante diferente do meu, mas que nem por isso deixa de oferecer preciosos subsídios à minha leitura do filósofo.
38
contrário, te achas no segundo degrau e és capaz de
conhecer que atividades deixam os homens melhores ou
piores, tanto na vida pública como na particular, declara-
nos que cidade ganhou por teu intermédio uma
constituição melhor, como é o caso da Lacedemônia com
relação a Licurgo e de muitas outras cidades, grandes ou
pequenas, com seus legisladores? Onde está o burgo
que se orgulha da ótima legislação que lhe deixaste? Que
lucraram contigo seus moradores? A Itália e a Sicília
tiveram o seu Carondas; nós outros, Solão. E tu, que
cidade te elogia? Achas que ele poderia indicar-nos
alguma?
(...)
Sendo assim, firmemos desde logo este ponto: todos os
poetas, a começar por Homero, não passam de
imitadores de simulacros da virtude e de tudo o mais que
constitui o objeto de suas composições, sem nunca
atingirem a verdade, o que também se dá com o pintor, a
que já nos referimos, o qual, sem nada entender da arte
de fazer sapatos, é capaz de pintar um sapateiro que lhe
pareça bom e a quantos desconheçam essa profissão e
só percebem as cores e o desenho.54
O tema da μίμησις, da imitação
55, tanto em Platão quanto,
mais tarde, em Aristóteles, realmente proporcionou aos teóricos da estética
fundamentação filosófica para a construção de um conceito de arte que
englobasse a poesia, a música e as belas-artes. Mas a leitura dos diálogos não
autoriza a idéia de que Platão tenha realizado uma abordagem ou, pelo menos,
tenha tratado de todas as cinco artes como todo e separadamente do conjunto
comum das atividades humanas.56
54PLATÃO. Op. cit., pp. 392-393, 394. 55Croce chama a atenção para uma oscilação no significado do termo μίμησις, ora como “imitação” ora como “representação”. CROCE. Op. cit., p. 191. 56KRISTELLER. Op. cit., p. 504.
Ao contrário, Platão não discute arquitetura;
e quando aborda a música e a dança, o faz como se estas artes fizessem parte
39
da poesia. Mas o mais importante é que, pelo menos em Platão, o termo
imitação, quando aplicado às artes, assume uma conotação apenas elogiosa,
que, para o filósofo, nada tem a ver com a imitação como um conceito
metafísico, usado rigorosamente para descrever a relação entre as coisas e as
Idéias57. Curiosamente, quando Platão, e também Aristóteles, falam em artes
imitativas como parte de um grupo mais amplo de artes, isto implica a inclusão,
ao lado das “artes maiores”, de outras atividades “menores”, como a sofística, o
uso de espelhos, os truques dos mágicos e a imitação das vozes dos
animais58. Finalmente, quando Aristóteles distingue as artes da necessidade
das artes prazerosas, e estas últimas são identificadas incidentalmente com as
“belas-artes”, isto é, as artes da imitação, como a música e o desenho, na
verdade, ele as está colocando no mesmo nível da gramática e da aritmética59.
Portanto, quando Platão toma as diferentes formas de imitação e as discute e
as define como simulacros, ele o faz tão-somente para mostrar como uma
imagem, que se pretende verdadeira, pode ser totalmente vazia, do ponto de
vista da teoria das Idéias, de conteúdo. E é esta mesma imagem, invenção
grega, que Gombrich, em sua A história da arte, valoriza como uma revolução
em relação à forma de representação das coisas, especialmente o corpo
humano60, conforme praticada pelos egípcios, mestres dos gregos, e com
objetivos puramente religiosos.61
57Idem. 58Idem. 59Idem. 60“... a arte egípcia não se baseou no que o artista podia ver num dado momento, e sim no que ele sabia fazer parte de uma pessoa ou de uma cena. Era a partir dessas formas por ele aprendidas, e dele conhecidas, que construía as sua representações, tal como o artista tribal constrói as figuras a partir de formas que pode dominar. Não é apenas o seu conhecimento de formas e contornos que o artista consubstancia na pintura, mas também o conhecimento que ele possui do significado dessas formas. Chamamos às vezes a um homem ‘chefão’. Os egípcios desenhavam o chefão maior do que os seus criados ou até do que a sua esposa.” GOMBRICH. Op. cit., p. 62.
Claro está que o rompimento progressivo,
61“Os egípcios acreditavam que apenas preservar o corpo não era o bastante, mas que, se uma fiel imagem do rei fosse preservada, não havia dúvida de que ele continuaria vivendo para sempre. (...) Um
40
efetuado pelos gregos, com modelo egípcio de representação, só foi possível
quando:
... o povo das cidades gregas começou a contestar as
antigas tradições e lendas sobre os deuses, e a investigar
sem preconceitos a natureza das coisas. É o período em
que a ciência, tal como hoje entendemos o termo, e a
filosofia despertam pela primeira vez entre os homens, e
desenvolvendo-se o teatro a partir das cerimônias em
honra a Dioniso.62
Ora, toda essa revolução no âmbito da representação
religiosa, praticada pelos gregos,
63 é sintoma daquilo que, do ponto de vista de
Platão , deve ser expurgado de sua cidade: o desequilíbrio, a quebra da
unidade, a desarmonia, trazida pela riqueza excessiva, junto com “o luxo, as
artes e os vícios”64. A cidade platônica, organizada cósmica e socialmente, a
partir de seu modelo celestial65
The greek term καλόν and its Latin equivalent (pulchrum)
were never neatly or consistently distinguished from the
moral good. When Plato discusses beauty in the
Symposium and the Phaedrus, he is speaking not merely
of the physical beauty of human persons, but also of
beautiful habits of the soul and of beautiful cognitions,
, por seus reis-filósofos, deve ser governada por
guardiães especialmente educados, de modo a impedir que os desequilíbrios
da cidade real nela se reproduzam. E é por isso que, para o filósofo, a
educação é tão importante; pois é por seu intermédio que se incute na
juventude o conhecimento seguro do que seja a justiça e o belo:
nome egípcio para designar um escultor era, de fato, ‘Aquele que mantém vivo’.” GOMBRICH. Op. cit., p. 58. 62GOMBRICH. Op. cit., p. 82. 63“Todos os escultores gregos quiseram saber como iriam representar um determinado corpo. Os egípcios tinham baseado sua arte no conhecimento. Os gregos começaram a usar os próprios olhos. Uma vez iniciada essa revolução, nada mais a sustaria.” GOMBRICH. Op. cit., p. 78. 64KOYRÉ, Alexandre. Introdução à leitura de Platão. 2ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, LDA, 1984, p. 91. 65GOLDSCHMIDT, Victor. A religião de Platão. Prefácio introdutório de Oswaldo Porchat Pereira. Tradução de Ieda e Oswaldo Porchat Pereira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963, p. 111.
41
whereas he fails completely to mention works of art in this
connection. (...) Whether we can speak of aesthetics in
the case of Plato ... will depend on our definition of that
term, but we should certainly realize that in the theory of
beauty a consideration of the arts is quite absent in Plato
(...).66
Praticamente sinônimos, a justiça e o belo
67 não podem ser
pensados em bases falsas, nem muito menos representados, a partir de
exemplos vergonhosos e indignos, por quem deve dedicar sua vida à busca do
verdadeiro conhecimento68
... desde a mais tenra idade, contam-se-lhes fábulas
ridículas sobre os deuses do Olimpo e, mais tarde, faz-
se-lhes estudar, e mesmo decorar, as obras dos poetas,
. Nessa medida, a educação dos dirigentes da
Cidade, dos guardiães, não pode estar a cargo de sofistas, que fazem de seu
pretenso saber simples mercadoria. E como têm entre suas atribuições velar
para que todos os cidadãos vivam em harmonia, preservando na cidade
platônica o princípio de unidade, característico de seu modelo celestial, os
guardiães, que devem ser devidamente instruídos quanto a que seja cada
τέχνη, não podem ser educados pelos exemplos de representação plástica e
literária próprios da cidade real. Afinal, na representação plástica não há
conhecimento verdadeiro quanto àquilo que se representa – há tão-somente
simulacro. E no que concerne à literatura, aos jovens atenienses:
66“O termo grego καλόν e seu equivalente latino (pulchrum) nunca foram diferençados nitidamente ou consistentemente do bem moral. Quando, no Banquete e no Fedro, Platão discute o belo, ele está falando não apenas do belo físico das pessoas, mas também dos belos hábitos da alma e dos belos conhecimentos, não obstante lhe falte completamente mencionar a conexão das obras de arte com o tema. (,,,) Falar de estética no caso de Platão ... dependerá de nossa definição para este termo, mas certamente perceberíamos que, na teoria do belo, em Platão, uma reflexão sobre as artes está absolutamente ausente.” KRISTELLER. Op. cit., pp. 499-500. (Tradução minha.) 67“...o Belo a que se refere Platão [no Górgias, no Filebo, n’O Banquete e em outros de seus diálogos] nada tem a ver com a arte, ou seja com o belo artístico.” CROCE. Op. cit., p. 196. 68“A ‘imoralidade’ dos poetas não basta para explicar a hostilidade profunda de Platão para com a tragédia. Pelo simples fato de a tragédia representar “uma ação e a vida”, ela é contrária à verdade.” Victor Goldschmidt, “Le Problème de la tragédie d’après Platon”, Questions platoniciennes, Paris, 1970, p. 136. Apud VERNANT, Jean-Pierre/VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Duas Cidades, 1977, nota 1, p. 31.
42
de Hesíodo e de Homero, que lhes dão uma idéia indigna
da divindade, que lhes apresentam deuses que se
combatem, deuses que mentem, que fazem batota, que
chafurdam na volúpia e na luxúria.69
... vamos banir todos os livros, todas as fábulas que não
dizem que Deus é bom, e que é justo, que é
“absolutamente simples e verdadeiro nos discursos, que
nunca muda de forma, que nunca engana e que tem
horror à mentira” . (...) não só dos deuses mas também
dos homens, dos heróis, os poetas nos contam coisas
indignas. Vamos também expurgar esses textos: assim,
os nossos filhos apenas terão diante dos olhos modelos
de grandeza, de coragem, de honra e de virtude.
Assim, como educar, na cidade platônica, é educar
filosoficamente para uma vida virtuosa que, especialmente no caso dos
guardiães, deve refletir os ideais de beleza e justiça tão caros ao sistema
platônico:
70
Para nós, habituados à idéia de que arte representa uma
forma de conhecimento sofisticada, a requerer um longo trabalho de
aprendizagem intelectual para a sua produção ou simples fruição, quando não
a manifestação de uma sensibilidade especial, de que nem todos são dotados;
e de que ser artista implica ser provido de capacidades espontâneas de
expressão, que toda aprendizagem do mundo não garante a quem não as
possui, o projeto platônico, resumido por Koyré, de expulsão do artista e do
poeta da cidade platônica, representa um verdadeiro atentado aos direitos de
livre expressão do homem. Este bem poderia ser o caso, se o filósofo estivesse
pensando em arte. Mas não é esta a sua questão. Platão pensa em cidadãos
71
69KOYRÉ, Alexandre. Op. cit., p. 94. 70Idem, p. 95. 71“Os cidadãos não podem ser de forma alguma artesãos.” VIDAL-NAQUET. Op. cit., p. 150.
;
homens capazes de dominar pela razão seus sentimentos e suas paixões. A
43
cidade platônica é o local onde um homem, por pensar sua realidade à luz do
bem e do belo, merece reverência e gratidão; diferentemente de Atenas, onde,
por refletir sobre seus limites, vícios e horrores, Sócrates, para além de sofrer a
ingratidão de seus concidadãos, foi sentenciado, em plena ágora, à morte.72
Pois bem, é em cidades como Atenas que pululam os ofícios – as τέχναι – da
representação; e todos a serviço da elite ateniense, do Estado ateniense, dos
ricos mercadores atenienses, aos quais não importava a verdade do que fosse
representado e muito menos sua técnica, mas, sim, respectivamente, sua auto-
imagem, as concepções do poder sobre si mesmo e sobre o culto das
divindades, consoante os interesses do Estado, e o valor comercial que cada
peça produzida pudesse ter73. Quanto aos artesãos, aos que denominamos
hoje de artistas, os gregos e, mais tarde, também os romanos, não lhes
atribuíam um gênio especial e singular.74 E apesar de as elites cultivarem o
luxo de suas residências, decoradas com pinturas murais, e encomendarem
aos melhores artífices esculturas relativas às façanhas de seus membros mais
destacados75
Não devemos imaginar, porém, que os artistas dessa
época estavam entre as classes intelectuais. Os gregos
ricos que administravam os negócio de sua cidade,
gastando seu tempo em intermináveis discussões na
praça do mercado, e talvez até mesmo os poetas e
:
72“O que preocupa Platão não é o Estado, mas o homem, não é a Cidade como tal, mas a Cidade justa, quer dizer, uma Cidade na qual um homem justo – um Sócrates – possa viver sem medo de ser condenado ao exílio ou à morte.” KOYRÉ, Alexandre. Op. cit., p. 88. 73“Os artesãos pouco participam da direção da cidade, mesmo quando esta é democrática. É a cidade que exerce seu controle sobre a atividade artesanal enquanto tal, e não o inverso: Tasos é uma cidade em que o comércio do vinho dentro de ânforas tinha um papel essencial; ora Y. Garlan e M. Debidour acabam de mostrar de forma decisiva que, no final do século IV e no início do século III, os famosos ‘selos anfóricos’ de Tasos absolutamente não eram marcas de oleiros, mas selagens impostas a cada artesão, pelo magistrado (ceremarco provavelmente), que controlava a atividade de cada oficina da cidade.” VIDAL-NAQUET. Op. cit., pp. 173-174. 74KRIS, Ernst; Kurz, Otto. Lenda, mito e magia na imagem do artista. Uma experiência histórica. Lisboa: Editorial Presença, Ltda., 1988, p. 44 e seguintes. 75GOMBRICH, E. H. Op. cit., p. 89.
44
filósofos,76olhavam com sobranceria para os escultores
e pintores, a quem consideravam pessoas de classe
inferior. Os artistas trabalhavam com as próprias mãos –
e trabalhavam para viver. Passavam os dias labutando
em suas forjas, cobertos de suor e fuligem, ou como
operários comuns em pedreiras e canteiros, e por isso
não eram considerados membros da classe refinada.
Contudo, sua participação na vida da cidade era
infinitamente superior à de um artífice egípcio ou assírio,
porque a maioria das cidades gregas, Atenas em
particular, era de democracias em que a esses humildes
obreiros, alvos do desdém dos esnobes abastados, era
consentido, no entanto, participarem em certa medida
dos assuntos de governo.77
A questão que o filósofo desenvolve, na sua crítica aos
ofícios da representação plástica, diz respeito ao lugar e ao sentido de tais
atividades na constituição da cidade platônica. Platão tem consciência do
problema complexo que é pensar a τέχνη;
78
De fato, é preciso distinguir dois planos: o da história da
natureza, ou seja, das relações do homem e do mundo
material do qual faz parte, com o da história social, a das
classes e dos grupos humanos que se confrontam, dois
planos que estão bem longe de sempre coincidirem,
confirmando-se. O que constatamos na Grécia? Em
termos de história da natureza, existe um artesanato, e é
daí a ambigüidade no trabalho com
o seu conceito; daí toda a sua preocupação em pensar sua contenção no
quadro de seu projeto político. E é justamente esta contenção da τέχνη e, mais
precisamente, do artesão, no universo mental grego, que impede a emergência
da Idéia de Arte e de artista, na Grécia antiga e no próprio pensamento
platônico:
76Grifo meu. 77GOMBRICH, E. H. Op. cit., p. 82. 78“A palavra technê é com certeza uma das mais equívocas e cintilantes do vocabulário de Platão.” Pierre Vidal-Naquet. Op. cit., p. 155.
45
preciso ser cego para não perceber sua importância. Mas
a principal invenção dos gregos, a cidade, a atividade
política, provoca também a rejeição da atividade
artesanal para um segundo plano. Os mesmos homens
que trabalham lado a lado nos canteiros do Erectéion por
um salário idêntico (fazendo-se todas as reservas sobre o
verdadeiro beneficiário do salário do escravo) encontram-
se, ao final de sua tarefa, uns cidadãos, outros metecos,
outros, finalmente, escravos. O plano político separa o
que o plano técnico reuniu.79
Portanto, o que lemos em Platão não pode ser tomado como
crítica de arte ou à arte, pelo menos como, hoje, entendemos o termo. Trata-
se, antes, de uma longa, complexa e difícil discussão sobre o estatuto de um
conjunto de atividades, bem como de seus agentes, no interior da cidade real,
em confronto com o projeto de uma cidade ideal. Observe-se ainda que, no
Livro X de A República, Platão não desqualifica os ofícios da representação
plástica; ele os critica tão-somente no interior de uma ordenação política e
mental que não corresponde àquela emanada do mundo perfeito e unitário das
Idéias
80. Aliás, boa parte do mundo antigo, se não pensava exatamente como
Platão, também não nutria o sentimento de que as artes visuais e seus
praticantes representassem algo de especial e digno de reverência social. A
pintura foi muitas vezes comparada à poesia, inclusive pelo próprio Platão81.
Varrão e Vitrúvio chegaram a incluir a arquitetura entre as artes liberais; o
mesmo fizeram Galeno e Plínio, em relação à pintura – o que Sêneca
claramente se recusou a fazer, no que foi acompanhado por muitos outros
escritores82
79VIDAL-NAQUET. Op. cit., p. 175. 80“... Platão era um admirador dos artesãos, embora afirmasse que o que canta a beleza do leito está mais afastado da idéia do que o que fabrica o leito(...). Pierre Vidal-Naquet. Op. cit., p. 176. 81KRISTELLER. Op. cit., p. 503. 82Idem.
. E é conhecida a afirmação de Luciano de que, embora todos
46
admirem a obras dos grandes escultores, ninguém quer ser um83. O fato é que
nem Platão, nem qualquer pensador da Antigüidade produziu uma reflexão
sistemática sobre as artes visuais, ou lhes reservou um lugar proeminente em
suas idéias sobre o que seja o conhecimento84
Mas como Platão pensou o fazer do ποιητής? Este, que aqui
entendemos na acepção de poeta, de escritor, de literato, possui, na sociedade
grega, um estatuto completamente diferente em relação ao do artífice.
.
85
(...) podemos afirmar do poeta que com palavras e frases
reveste as diferentes artes das cores que lhes são
próprias, sem entender nada mais além da imitação.
Como conseqüência, os ouvintes, que apreciam os
assuntos apenas pelo efeito das palavras, ficam
convencidos de que ele fala com muita propriedade, quer
o ouçam discorrer com metro, ritmo e harmonia acerca da
arte de fazer sapatos, quer sobre a estratégia militar ou o
tema que for, tal o natural fascínio que exerce com os
seus recursos. Porém se despirmos as criações do
poetas desse colorido musical e as apresentarmos em
O
poeta não pertence à classe mais pobre da sociedade ateniense; ao contrário,
faz parte da elite econômica, freqüenta o ginásio, a ágora e detém um saber
precioso em todas as épocas: domina o código lingüístico, isto é, sabe ler e
escrever em sua língua e, portanto, cultiva, nos seus ócios, os mestres da
tradição – tão importantes para quem pretenda participar ativamente do poder
político de sua cidade:
83Idem. 84Idem. 85“...Platão parece inscrever-se no lugar certo nessa grande corrente do pensamento grego que recusa qualquer carta de nobreza à atividade demiúrgica. Não se pode dizer, com Edgar Zilsel, que a Antigüidade, apesar de Fídias, de Apeles e de Zêuxis considerou a ‘língua e não a mão como inspirada pelos deuses’, nur die Zunge, nicht die Hand als göttlich inspiriert?” VIDAL-NAQUET. Op. cit., 154. O autor cita apenas o nome da obra de Zilsel, Geniebregriff, sem referência completa.
47
expressões comuns, bem sabes, tenho certeza, a que
ficam reduzidas.86
É verdade que a poesia sempre gozou de elevado respeito
na Antigüidade. Desde Homero e Hesíodo, o poeta era visto como inspirado
pelas Musas. A própria palavra latina para poeta (vates) evoca uma época
muito remota, quando poesia e profecia religiosa se confundiam. E é o que
parece ter em mente Platão, quando no Fedro fala da poesia como uma das
formas da loucura divina. Mas sua avaliação da poesia, no Íon e na Apologia,
como expressão daquela loucura, mostra-se bastante irônica, muito
provavelmente por saber que os ventos do sagrado não mais sopravam na
ágora. E é o que se depreende da leitura d’A República. Aqui o poeta é
caracterizado como um sofista. Ambos são artífices – o primeiro da palavra e o
segundo das idéias. Daí o perigo que representam para a formação da
juventude na cidade platônica. Daí o porquê de Platão não querer que os
futuros guardiães sejam educados pelas criações dos poetas. Como os
sofistas, que atuam de modo a torcer o pensamento e ensinam seus discípulos,
filhos da elite que podem pagar por suas lições, a fazê-lo também, nas disputas
políticas da ágora, sempre na defesa de seus interesses e nunca nos da
cidade
87, também os poetas, artífices de palavras, ensinam com seus cantos,
dramas e comédias que o melhor para os homens é deixarem-se guiar por
suas emoções, por sua paixões e desejos, e nunca a agir de acordo com “a
melhor parte de nós mesmos”, qual seja, a “que se prontifica a seguir a
razão”.88
86PLATÃO. Op. cit.., pp. 394-395. 87No Protágoras, Platão mostra que um “homem educado, mesmo sendo um bandido, é, diante de um homem selvagem, um artesão (dêmiourgos) de justiça”. VIDAL-NAQUET. Op. cit., p. pp.151-152. 88PLATÃO. Op. cit., p. 400.
Platão, como membro da mesma elite que criticava, sabia muito bem
da importância que a palavra tinha em sua cultura; sabia o quanto o trabalho
48
com a palavra significava para aquela sociedade que fez de seu cultivo e de
seu domínio a condição máxima para o exercício do poder. E foi em função da
consciência do papel que o poeta – como detentor do conhecimento da
tradição, até o ponto de manipulá-la segundo seus interesses de glória, riqueza
ou poder pessoal – exercia na Atenas real, que o filósofo decidiu impedir-lhe o
acesso à cidade ideal, pois, este, ao implantar:
na alma de cada indivíduo uma constituição, com adular-
lhe o elemento irracional e incapaz de distinguir o que é
maior e o que é menor, e que considera grandes ou
pequenas as mesmas coisas, conforme as
circunstâncias, apresta simulacros e se encontra
infinitamente afastado da verdade.89
Alguns dos maiores estudiosos de Platão – em sua maioria
alemães
90 – defendem a idéia que o Fedro foi escrito depois d’A República.
Subjaz nesta proposta a idéia de que teria havido algo como uma evolução do
pensamento platônico em relação à poesia; como se o filósofo, depois de suas
diatribes contra os poetas, no Livro X d’A República, finalmente reconhecesse,
no Fedro, a poesia como um meio privilegiado de expressão humana para suas
tão amadas Idéias. Neste caso teríamos um Platão esteta avant la lettre.
Discordo totalmente desta posição. Quanto à ordem dos Diálogos platônicos,
prefiro a adotada por Victor Goldschmidt91
89Idem, p. 401. 90 Por exemplo, Hermann Gauss, que situa o Fedro antes do Teeteto e do Parmênides e logo depois de A República; já Wilamowitz, depois do Fedon e de O Banquete e logo depois de A República. PLATÃO. Diálogos. Volume V. Fedro – Cartas – O Primeiro Alcibíades. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1975, p. 12 91Segundo Goldschmidt a ordem destes diálogos seria Fedon, O Banquete, Fedro e Íon, seguidos do Eutidemo, o Crátilo e, aí sim, A República. GOLDSCHMIDT, Victor. A Religião de Platão. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963, p. 18.
, segundo a qual O Banquete, Fedro
e o Íon (nesta mesma ordem), justamente os Diálogos mais utilizados pelos
defensores de uma estética platônica, aparecem como escritos antes d’A
República. A adoção dessa ordem implica romper com um mecanismo
49
importante de legitimação da interpretação teleológica destes Diálogos que,
praticada pelos pensadores dos séculos XVIII e XIX, fundamentou sua
construção de uma Idéia de Arte a partir da valorização do gosto, do
sentimento, do gênio como sujeito criador, da originalidade e da imaginação
criativa – categorias que, no universo mental de Platão, simplesmente não
existiam.
2. Artes liberales et Artes mechanicae
Apesar de não partilhar das motivações políticas e das
concepções teóricas de Platão92, Aristóteles também não nos apresenta uma
teoria da arte. Sua Poética realmente contém uma grande quantidade de
idéias, que exercerão duradoura influência sobre a futura crítica literária. Mas o
que se lê em seu tratado de poética é tão-somente uma análise tragédia93,
forma literária que se distingue de outras espécies discursivas, pelo modo
como nela se realiza a imitação. É bom lembrar que, para Aristóteles, a
imitação, com uma dentre outras essências, é uma forma de conhecimento que
opera, de um complexo de noções experimentadas, um único juízo universal de
casos semelhantes.94
Como já demonstramos, os dois maiores pensadores da
Antigüidade, Platão e Aristóteles, desconhecem o que nós, educados pelos
historiadores da arte, chamamos de arte. Para Croce, Aristóteles chega a se
aproximar, em sua Poética, da questão da natureza da arte, mas acaba por
ficar no meio do caminho, perdido nas distinções entre os diferentes tipos de
conhecimento, tais como a que existe entre a poesia e a história, e a que define
Desse modo, o que interessa ao Estagirita, em seu
exame da tragédia, não é absolutamente a construção de uma teoria estética,
mas, sim, verificar, na sua forma, de que modo se realiza o que ele define, na
Metafísica, como conhecimento.
92Diferentemente de Platão, para Aristóteles as idéias eram simples conceitos e a realidade, síntese de matéria e forma. CROCE. Op. cit., p. 201. 93“A tragédia surge, na Grécia, no fim do século VI. Antes mesmo que se passassem cem anos, o veio trágico se tinha esgotado e, quando no século IV, na Poética, procura estabelecer-lhe a teoria, Aristóteles não mais compreende o que é o homem trágico que, por assim dizer, se tornara estranho para ele.” VERNANT, Jean Pierre/VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Livraria Duas Cidades Ltda., 1977, p. 17. 94“... arte aparece quando, de um complexo de noções experimentadas, se exprime um único juízo universal dos [casos] semelhantes.” ARISTÓTELES. Metafísica. Livro I (A). Tradução direta do grego por Vinzenzo Cocco e notas de Joaquim de Carvalho. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1984, p. 11. A palavra “casos” aparece entre colchetes, no texto dessa edição.
51
esta última em relação à ciência, para concluir que a história trata das coisas
acontecidas, a poesia, das possíveis, e que a ciência volta-se para o universal;
a história, para o particular, ao passo que a poesia, ela mesma, faz o mesmo
que a ciência, mas diferencia-se desta última para aproximar-se da filosofia –
enfim, “queda a la mitad del camino, desorientado y perplejo”.95
2.1. Antigüidade e Idade Média – entre o artista e o artesão
Se é verdade
que Aristóteles deu-se conta de que a condenação da poesia, levada a cabo
por Platão, fundamentada na rigidez de sua percepção do que seja a μίμησις,
não resolvia o problema de se saber o que é a arte poética, entre as diferentes
formas de arte, restaria a ele produzir sua própria concepção, mas não o fez,
por desviar-se da questão, voltado que estava, quase que exclusivamente,
para o problema do lugar das diferentes espécies de conhecimento, frente ao
império absoluto da filosofia.
Curiosamente, e até paradoxalmente, sofisticados
historiadores da arte, como Gombrich, por exemplo, parecem fazer tábula rasa
de todo esse debate teórico e histórico, em torno da (in)existência da Idéia de
Arte e seu agente, o artista, na Antigüidade, e insistem em tratar o problema
sob uma ótica bastante moderna, que não corresponderia ao modo como
viviam e pensavam a questão os filósofos e escritores daquele período. Assim,
e apesar de sua importante afirmação inicial, de que “Nada existe realmente a
que se possa dar o nome de Arte”, Gombrich, no capítulo 4 de sua A história da
arte, intitulado sugestivamente de “O império do belo, A Grécia e o mundo
grego: séculos IV a.C. a I d.C.”, após uma ouverture, na qual ressoa “O grande 95CROCE. Op. cit., pp. 202-203.
52
despertar da arte para a liberdade ... etc. etc.”96, somos informados de que “os
artistas já haviam adquirido plena consciência de seu poder e mestria, e o
mesmo se passava com o público”.97Mas parece que este triunfo do belo não
era compartilhado por todos, nem o poder de seus criadores era tão
avassalador, pois o grande historiador é obrigado a reconhecer que os artistas
ainda eram “olhados como meros artífices e, talvez, desprezados pelos
esnobes”98
96GOMBRICH. Op. cit ., p. 99. 97Idem. 98Idem.
. É absolutamente legítima a admiração de arqueólogos e estetas da
modernidade, quando se deparam com algum testemunho material da maestria
dos artífices gregos. As ruínas dos templos antigos, os restos do friso do
Partenon, ou da estatuária produzida naquela época, tudo isto efetivamente
nos remete a uma Grécia idealizada, povoada de gênios criadores, generosos
a ponto de deixar para a posteridade não apenas seu ideal político,
consubstanciado na idéia de um regime de participação cidadã – a democracia
–, mas também seu gosto refinado para as formas do belo, como índice da
capacidade humana de se elevar espiritualmente. O problema é que essa
imagem idílica da Antigüidade grega, e também, romana, elaborada e
difundida, a partir do século XVIII, revela-nos, freqüentemente, menos sobre o
caráter e o sentido das práticas e fazeres humanos, no passado, e muito mais
sobre a necessidade que toda época tem de construir de si e para si a melhor
resposta possível às questões que lhe são próprias e que lhe exigem uma
engenhosa resposta. E é por isso que a história é o saber, cujo sentido
depende de seu compromisso com a vida. Pois o que podemos dizer do
passado é tão-somente aquilo que o próprio passado nos diz, a partir das
questões levantadas por nosso presente. E ao historiador cabe ter consciência
53
de que interrogar o passado não lhe devolverá o fato acontecido, conforme ele
o imagina, por que este está irremediavelmente perdido. O que o passado nos
dá são seus fragmentos, que às perguntas do presente cabe juntar num todo,
num quadro, numa cena, numa imagem, enfim, do próprio tempo daquele que
interroga. Para o historiador, que se deixa levar por esta imagem, como se
fosse a do passado, a ponto de nela crer, não como um saber sobre si, mas
como verdade do outro, há o risco de ser devorado pelo mito de que suas
perguntas e suas respostas lhe salvem das exigências da vida, do tempo
presente, tempo-lugar da dura e fértil verossimilhança, para abrigá-lo no seio
estéril e confortável da verdade.
À página 100 do mesmo capítulo 4, a propósito do friso do
Partenon, temos uma verdadeira aula de psicologia sobre duas disposições de
espírito, diametralmente opostas, que poderiam acometer o artista criador. Na
primeira, uma certa despreocupação do artífice para com o significado de sua
obra; na segunda, o artista aparece orgulhoso e ciente do significado de seu
feito:
O artista do friso do Partenon não parecia levar em
grande conta a sua arte ou trabalho que estava
realizando. Cumpria-lhe a tarefa de representar um
desfile, e ele se esforçou laboriosamente por representá-
lo tão nitidamente quanto podia. Não creio que estivesse
muito consciente de ser um grande mestre, de quem
velhos e moços, indistintamente, ainda estariam falando
milhares de anos depois. O friso do templo da Vitória
mostra-nos, talvez, o início de uma mudança de atitude.
O artista revela-se agora orgulhoso de seu imenso poder,
e era perfeitamente justo que assim estivesse.99
99GOMBRICH. Op. cit., p. 100.
54
O fragmento acima mostra, sem dúvida alguma, o cuidado
do historiador em não repetir um modelo de avaliação do trabalho do artífice
que o coloque na condição de artista criador. E isto pela simples razão de que
não havia, àquela época, tal sujeito. Mas apesar de seus cuidados, e muito
provavelmente em função de seu próprio entusiasmo frente a tão belas obras,
Gombrich não resiste à idéia de nos propor que o artífice nutrisse uma
avaliação de seu trabalho, dificilmente compatível com a percepção, ao que
parece bastante comum, na época, do significado desse tipo de atividade:
When we consider the visual arts of painting, sculpture
and archicteture, it appears that their social and
intellectual prestige in antiquity was much lower than one
might expect from their actual achievements or from
occasional enthusiastic remarks which date for the most
part from the later centuries100
Não se trata de negar, absolutamente, a existência de belas
realizações na pintura, na escultura ou na arquitetura, nem muito menos que as
pessoas se sentissem atraídas por esses objetos, ou os comentassem de
modo elogioso ou não; da mesma forma, não se nega, aqui, o valor, a
habilidade, o talento mesmo dos artífices especializados na produção daquelas
peças. Mas é muito mais provável que a percepção coletiva do que fossem
essas realizações não estivesse muito distante da que, hoje, demonstramos
diante de um objeto artesanal que julgamos excelente, bem realizado, capaz de
transmitir ao nosso ambiente de trabalho ou de lazer aquele tom pitoresco
desejado, mas que raramente nos estimula a refletir sobre o espírito criador de
seu autor, nem muito menos julgá-lo especialmente dotado de uma capacidade
.
100 “Quando consideramos as artes visuais, como a pintura, a escultura e a arquitetura, torna-se evidente que seu prestígio social e intelectual, na Antigüidade, era muito inferior ao que se poderia esperar, a julgar por suas efetivas realizações ou pelas observações eventualmente entusiásticas, datadas, em sua grande maioria, de séculos mais recentes.” KRISTELLER. Op. cit., p. 502. (Tradução minha.)
55
incomum de invenção. Aliás, é o próprio Gombrich quem nos oferece um
decisivo argumento a favor desta observação, quando no capítulo 8, “A arte
ocidental em fase de assimilação. Europa, séculos VI a XI”, de sua história da
arte, ao tratar de um período que, para ele, não apresenta o mesmo interesse,
por não ser possível identificar, nele, grandes realizações comparáveis às da
Antigüidade greco-romana, nem grande artistas, orgulhosos “de seu imenso
poder”, mas tão-somente, “artífices habilidosos e experimentados em trabalhos
de metal finamente lavrados, e excelentes entalhadores, comparáveis aos dos
maoris da Nova Zelândia101
De um modo geral, a arte religiosa era tratada com maior
respeito, e cuidada com mais zelo, do que meras
decorações de aposentos privados. Quando estas
ficavam velhas, eram retiradas ou jogadas fora – tal como
acontece hoje em dia. Mas, felizmente, um grande
exemplo deste último tipo de arte chegou até nós – e isso
porque foi preservado numa igreja
”, ao explicar o porquê de a maravilhosa tapeçaria
de Bayeux ter chegado, miraculosamente, até nós, afirma que:
102
Ainda no longo período greco-romano, quando boa parte da
produção “artística” parece desvincular-se da magia e da religião, os artistas
“passaram a interessar-se pelos problemas de seu ofício em termos de arte
pela arte”.
.
103
101GOMBRICH. Op. cit., p. 159. 102GOMBRICH. Op. cit., p. 168. 103GOMBRICH. Op. cit., p. 111.
Na verdade, há uma íntima relação entre esses dois processos,
pois a nomeação do autor de uma obra indica justamente que essa obra não
mais se justifica, exclusivamente, por uma função religiosa ou mágica. E é isto
o que significa, nesse contexto, a idéia de arte pela arte. Ao mesmo tempo, o
interesse pela aquisição de obras de arte, originais ou cópias, se intensifica.
Mas o mais interessante, na composição da cena da arte e do artista, segundo
56
Gombrich, é sua observação de que “os escritores começaram a interessar-se
por arte e a escrever sobre a vida dos artistas”,104
104Idem.
colecionando anedotas a seu
respeito. O interesse pela arte freqüentemente se restringia à utilização de
exemplos tomados à escultura ou à pintura para o desenvolvimento de
reflexões que nada tinham a ver com a arte, propriamente dita. Como
assinalamos, no capítulo 1 desta tese, os escritores e filósofos da Antigüidade,
em geral, não se preocupavam com os ofícios dedicados às artes visuais, e
quando o faziam, não lhes atribuíam o significado e a importância que nós,
criados pelos estetas, a eles conferimos. Quanto a uma literatura voltada para
vida dos artistas, devemos admitir com reservas sua existência, nesse período.
O que podemos afirmar, com segurança, é que boa parte do que conhecemos
sobre a vida dos artistas foi produzida durante o Renascimento. De qualquer
modo, e sem descartar a existência de relatos esparsos, especialmente de
cunho anedótico, sobre a vida de alguns artistas, devemos situá-los na
perspectiva proposta pelo próprio Gombrich, qual seja, a da desvinculação do
trabalho “artístico” de suas antigas funções mágico-religiosas. Quero dizer com
isto que, a partir do momento em que determinada obra não é mais vista sob o
ângulo de suas virtudes mágicas, há de se concebê-la dotada de uma outra
virtude, e esta só lhe pode advir daquele que a produziu. E este, cujo nome
agora aparece junto a ela, como seu autor, há de ter uma história ou ser dotado
de uma habilidade especial, que garanta ao produto de seu trabalho, não a
originalidade, pois esta só será inventada bem mais tarde, mas sua
singularidade. Assim, e para citar apenas dois exemplos, bastante comuns, que
se repetirão como traços biográficos partilhados por futuros artistas, temos o
caso daqueles cujos dons para a escultura ou pintura já se mostravam desde a
57
infância, ou ainda aqueles mestres que pintavam tão habilmente a natureza a
ponto de confundirem os observadores.105
Já no crepúsculo avançado da Antigüidade talvez se possa
falar de alguma coisa que se aproxime de uma teoria estética de cunho místico,
isto é, de uma teoria que trate da fusão entre o belo e a arte num conceito
único
De fato, aqui encontramos uma das
vertentes de onde nascerá, como a Vênus de Botticelli, o artista.
2.2. Plotino esteta?
106, com o fundador do neoplatonismo, Plotino. Segundo a leitura de
Croce, com a qual concordo, até certo ponto, a beleza, para Plotino, está em
todas as coisas visíveis, nas audíveis, como a música e a poesia, nas supra-
sensíveis, nas obras, nos ofícios, nas ações, hábitos, ciências e virtudes.107
105KRIS, Ernst; KURZ, Otto. Op. cit., pp. 20-21. 106CROCE. Op. cit., 199. 107Idem, pp. 199-200.
A
beleza das coisas não reside na simetria entre suas partes, nem em sua
relação com o todo. A beleza ou o belo é aquilo que guarda identidade com
nossa própria natureza. E tanto nossa natureza, como aquilo que
reconhecemos como belo nas coisas têm sua origem na Idéia. A beleza é,
portanto, o reflexo do Divino ou da Idéia, tanto em nós quanto nas coisas. Mas
a matéria não é bela em si mesma, salvo quando iluminada pela Idéia. Por
outro lado, para que se possa perceber o belo nas coisas visíveis, a alma,
expressão do belo em nós, precisa purificar-se, ou seja, desvencilhar-se dos
desejos do corpo, ao qual está ligada, livrar-se de todas as paixões, voltar-se
58
para si mesma e desprender-se de toda fealdade, proporcionada por uma
natureza diferente da sua108
Desse processo de purificação resulta que, na alma, abre-se
um outro olho, um olho interior,
.
109 pelo qual se contempla a beleza divina que é
também o Bem.110 Na leitura que Croce faz de Plotino, é nesta contemplação
que “entra a arte, porque a beleza, nas coisas feitas pelo homem, provém da
mente”.111Quando se comparam dois blocos de pedra, um, deixado ao natural,
o outro, convertido em estátua pelo homem, observamos que a beleza do
segundo bloco não consiste na pedra, mas na forma artística, a ele conferida,
pelo trabalho humano. E quando a forma é impressa plenamente, a coisa
artificial, a estátua, mostra-se mais bela que a pedra ao natural.112 Platão teria
errado ao depreciar a arte por imitar a natureza, pois, na verdade, a própria
natureza imita a idéia e, assim, as artes não se limitam a imitar simplesmente o
que os olhos vêem, mas voltam às razões e idéias das quais deriva a própria
natureza:113
Por eso el arte no se atiene a la naturaleza, sino que
añade la belleza donde en la naturaleza falta; Fidias no
representó a Júpiter porque lo hubiese visto, sino como
aparecería si quisiera mostrar-se a los ojos mortales. La
belleza de las cosas naturales es el arquetipo que existe
en el alma, fuente sola de toda belleza natural.
114
Nesta passagem lemos a conclusão de Croce sobre o que
seria o pensamento de Plotino, em relação à arte. Ou seja, o pensador italiano,
108PLOTINO. Eneada Primeira. Capítulo 6: Sobre o bello. Traducción del griego, prólogo y notas de Jose Antonio Miguez. Buenos Aires: Aguillar, 1966, p. 109. 109PLOTINO. Op. cit.,, p. 114. 110... lo bello es también el Bien. PLOTINO. Op. cit., p. 110. 111CROCE. Op. cit., p. 200. 112Idem, pp. 200-201. 113Idem. 114“Por isso a arte não se prende à natureza, mas acrescenta a beleza onde falta na natureza; Fídias não representou Júpiter por tê-lo visto, mas como este apareceria, se quisesse mostrar-se aos olhos mortais. A beleza das coisas naturais é o arquétipo que existe na alma, fonte única de toda beleza natural.” Idem, p. 201. (Tradução minha.)
59
até certo ponto, acompanha e reproduz a visão do filósofo neoplatônico sobre o
belo nas coisas visíveis e seu reconhecimento pela alma. O que não fica muito
claro, em sua exposição, é que esse reconhecimento só é possível pela
participação de ambas na idéia de beleza, porque, como diz Plotino: “... a
beleza corpórea se origina da participação em uma razão que vem dos
deuses”.115
A alma é, em uma palavra, intermediária entre o mundo
inteligível e o mundo sensível. Toca ao primeiro porque,
dele procedendo, a ele retorna [pelo processo de
purificação] para contemplá-lo eternamente; e toca ao
segundo, porque ordena e organiza. Não são funções
diversas, senão na aparência: em realidade, a alma não
organiza, (...), a não ser pelo que contempla através de
uma influência que dela emana sem que ela o queira,
assim como se as figuras que pensa um geômetra se
desenhassem por si mesmas. Não tem função ativa e
providencial ao lado de sua função contemplativa. É
puramente contemplante e, permanecendo no alto,
atua.
A alma não é a fonte da beleza natural; a alma participa da idéia de
beleza e é por isto que ela pode reconhecê-la nos corpos visíveis ou na
natureza. De acordo com a lição de Bréhier:
116
Assim, Croce se equivoca quando diz que a “beleza das
coisas naturais é o arquétipo que existe na alma, fonte única de toda beleza
natural’. Não, a beleza não advém da alma, mas da Inteligência, origem da
própria alma; e assim “se quisermos dividir o inteligível, haverá necessidade de
distinguir o Belo, como lugar das idéias, do Bem, que está mais além do Belo e
115... la belleza corpórea se origina de la participación en una razón que viene de los dioses. PLOTINO. Op. cit., 103. 116 BRÉHIER, Émile. História da Filosofia. Tomo primeiro: A Antigüidade e a Idade Média. Livro segundo: Período Helenístico e Romano. Tradução de Eduardo Sucupira Filho. São Paulo: Mestre Jou, 1977 e 1978, p. 177.
60
é sua fonte e princípio”.117
Se tanto a Antigüidade quando a Idade Média desconhecem
a Idéia de Arte,
Se o que fundamenta a tese da existência de uma
concepção de arte em Plotino é a idéia de um acréscimo de beleza, onde falta
na natureza, então inexiste tal concepção no filósofo neoplatônico. Portanto, o
belo para Plotino não se relaciona com uma teoria ou filosofia da arte, ainda
que incipiente, mas com problemas éticos e metafísicos, apesar de, como
tantos outros pensadores e escritores o fizeram, haver recorrido, no tratamento
destas questões, também, a imagens tomadas às artes visuais e mesmo à
música. Mas Croce tem absoluta razão quando diz que as concepções sobre o
belo de Plotino foram muito apreciadas e, sem dúvida alguma, bastante
utilizadas pelos pensadores da primeira metade do século XIX, na elaboração
de suas metafísicas da arte.
2.3. As artes
118
117... si queremos dividir lo inteligible, habrá necesidad de distinguir lo Bello, como lugar de las ideas, del Bien, que está más allá de lo Bello y es fuente y principio de él. PLOTINO. Op. cit., p. 116. 118“O conceito de ars deve ser rigorosamente separado de ‘arte’ no sentido moderno.” CURTIUS. Op.cit., p. 39.
o mesmo não podemos afirmar sobre a literatura – esta, sim,
já bem teorizada e debatida, tanto em Atenas quanto em Roma. Mas não como
arte, pois, embora tanto o conteúdo quanto o significado das discussões,
àquela época, tratem o texto literário como instrumento de conhecimento, quer
dos temas humanos quer dos divinos, em nenhum caso ele é pensado como
expressão de um singular ato criador. Sabemos que tanto gregos quanto
romanos viam a literatura como um instrumento fundamental de educação, isto
é, de conhecimento e transmissão da tradição cultural:
61
A Literatura faz parte da “educação”. Por que, e desde
quando? Porque os gregos encontraram num poeta o
reflexo de seu passado, de sua existência, do mundo de
seus deuses. Não possuíam nem livros nem castas
sacerdotais. Sua tradição era Homero. Já no século VI
era um clássico. Desde então é a literatura disciplina
escolar, e a continuidade da literatura européia está
ligada à escola (...). A dignidade, independência e função
educadora da poesia foram estabelecidas por Homero e
sua atuação ulterior. (...) Entretanto, o que os gregos
fizeram, os romanos repetiram. No começo da poesia
romana surge Lívio Andrônico (segunda metade do III
século). Ele traduz para as escolas a Odisséia. (...) Mas
só Virgílio escreveu uma epopéia nacional romana de
valor universal, que objetiva e formalmente se filia a
Homero. Tornou-se um clássico. A Idade Média adotou,
da Antigüidade, a tradicional ligação de epopéia e escola.
Virgílio transformou-se na espinha dorsal do ensino do
latim.119
Neither for Dante nor for Aquinas has the term Art the
meaning we associate with it, and it has been
emphasized or admitted that for Aquinas shoemaking,
cooking and juggling, grammar and arithmetic are no less
and in no other sense artes than the painting and
sculpture, poetry and music, which latter are never
grouped together, not even as imitative arts.
Na Idade Média, o que se compreendia pelo nome de arte
correspondia, basicamente, à sua definição na Antigüidade, e se referia,
conotativamente, a tudo o que podia ser ensinado. Foi, também, durante a
Idade Média que se cunhou a palavra artista para designar tanto o artesão
quanto o estudante das artes liberais:
120
119CURTIUS, Enst Robert. Literatura e Idade Média Latina. 1ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957, p. 38.
120“Nem para Dante nem para Tomás de Aquino o termo Arte significa a mesma coisa que para nós, e enfatiza-se ou admite-se que, para Tomás de Aquino, fazer sapatos, cozinhar e o malabarismo, a gramática e a aritmética são não menos, e em nenhum outro sentido, artes que a pintura e a escultura, a
62
Herdado da Antigüidade, o esquema das sete artes liberais
foi utilizado, até o século XII, tanto como meio de classificação do
conhecimento humano quanto como forma de organização dos currículos, nas
escolas conventuais e nas escolas-catedrais. O conjunto das chamadas artes
liberales121 e dos studia humanitatis ou liberali ou liberalia, “liberais” por serem
dignos de um homem pertencente às classes consideradas superiores, excluía
as denominadas artes mechanicae, “como a pintura, a escultura e outros
ofícios mecânicos”.122 O esquema das sete artes liberais aparece, em sua
forma definitiva, com Martianus Capella123 e contempla a gramática, a retórica,
a dialética, a aritmética, a geometria, a astronomia e a música.124 É
interessante observar que esse esquema, ao incluir a gramática e a lógica, a
matemática e a astronomia, formou-se a partir da distribuição das artes entre
as nove Musas.125 Assim, no esquema das artes liberais, tomado ao das
Musas, a poesia e a música aparecem ao lado de outras ciências, sem
qualquer menção às artes visuais. Na Antigüidade, não havia Musa nem para a
pintura, nem para a escultura. As que nós conhecemos, sob a forma de
alegorias para estas artes, são criações da época moderna.126
poesia e a música, as quais jamais foram posteriormente agrupadas, nem mesmo como artes imitativas.” KRISTELLER. Op. cit., pp. 508-509. (Tradução minha.) 121As artes liberais eram sete: gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, música e astronomia. Dividiam-se em dois grupos: o quadruvium, que incorporava as artes matemáticas, e o trivium, que reunia o que podemos chamar de artes literárias: “... a música, disciplina matemática, encontra seu lugar no círculo das artes liberais.” CURTIUS. Op. cit., p. 39. 122Idem. 123Martianus Capella, nascido na África, na região de Madaura, onde também nasceu Apuleio, escreveu, entre 410 e 439, De nuptiis Philologiae et Mercurii, em que faz a exposição normativa das sete artes liberais, para toda a Idade Média. 124O esquema de Varrão, provável fonte do de Capella, incluía a medicina e a arquitetura. KRISTELLER, Paul Oskar. The Modern System of Arts. Op. cit., p. 505. 125Ao contrário do que se pensa, o número das Musas variou em diferentes épocas; e a atribuição de um tipo de arte a cada uma também conheceu variações. KRISTELLER. Op. cit., p. 506. 126Idem.
As artes visuais,
excluídas tanto do reino das Musas quanto do esquema das artes liberais,
tiveram, durante muito tempo, de se contentar com a humilde companhia dos
63
ofícios manuais.127
We have to admit the conclusion, distasteful to many
historians of aesthetics but grundgingly admitted by most
of them, that ancient writers and thinkers, though
confronted with excellent works of art and quite
susceptible to their charm, were neither able nor eager to
detach the aesthetic quality of these works of art from
their intellectual, moral, religious and practical function or
content, or to use such an aesthetic quality as a standard
for grouping the fine arts together or for making them the
subject of a comprehensive philosophical interpretation
A verdade é que o mundo greco-romano não nos legou um
sistema ou pelo menos um conjunto de conceitos elaborados, que possamos
aproximar de uma filosofia da arte. As sugestões esparsas que nos chegaram,
e que viriam a exercer tão grande influência na construção das teorias estéticas
ocidentais, precisaram, antes, ser coletadas, extraídas de seu contexto,
reinterpretadas ou mal-interpretadas, para que pudessem ser transformadas
em fundamentos de produções teóricas que nos devolveriam, mais do que a
história das realizações do passado, o seu sentido, o seu significado, o nosso
próprio modo de entender e de avaliar aquelas realizações:
128
A través de todos los siglos medievales no hubo
continuidad de la instrucción griega en ninguna parte en
Occidente; los libros griegos eran casi inexistentes en las
.
E o mesmo vale para o ocidente medieval, onde o melhor da
produção intelectual se realizou, a princípio, baseado no estudo das artes
liberais e das humanidades, que constituía o sistema de educação dominante,
tomado ao mundo antigo, especificamente, latino:
127Idem. 128“Precisamos admitir a conclusão, desagradável para muitos historiadores da estética, mas, mesmo de má vontade, aceita por eles, de que os escritores e pensadores antigos, embora confrontados com excelentes obras de arte e verdadeiramente suscetíveis aos seus encantos, não foram capazes nem se sentiram impulsionados a extrair a qualidade estética daquelas obras de arte de sua função prática ou conteúdo intelectual, moral, religioso, ou usar tal qualidade estética como um critério de agrupamento das belas-artes, ou mesmo delas fazer objeto de uma ampla interpretação filosófica.” Idem. (Tradução minha.)
64
bibliotecas occidentales, excepto en las regiones de la
Itália del sur y en la Sicilia, donde se seguia hablando
griego; el número de eruditos que aprendían griego era
reducido, y los textos que tradujeran del griego al latín
entre el siglo XI y principios del XIV o bien eran teológicos
o estaban limitados a los mismos campos que habían
caracterizado la recepción árabe de la cultura griega, a
saber, las ciencias y pseudo-ciencias, la filosofía
aristotélica y algo de la filosofía neoplatónica.129
É impossível compreender a evolução intelectual da Idade
Média tardia, e a influência da filosofia e da teologia nos sistemas filosóficos
que serão construídos nos séculos seguintes, sem levarmos em consideração
o papel das universidades, em processo de formação, nas últimas décadas do
século XII, e sua consolidação, ao longo do século XIII. Segundo a lição de
A partir do século XII, o esquema das sete artes liberais
tornou-se inadequado por não comportar os vários campos do conhecimento
filosófico. A difusão de novos textos de Aristóteles, traduzidos do árabe e do
grego, simultaneamente na Espanha e na Sicília, e o surgimento das
universidades, com o conseqüente estabelecimento da filosofia, da medicina,
da jurisprudência e da teologia como os grandes campos do conhecimento,
fizeram com que o esquema das sete artes liberais perdesse, não sem
resistências localizadas, sua preeminência, passando à condição de conjunto
de disciplinas preliminares aos nobres saberes universitários.
129“Não houve continuidade da instrução grega, ao longo de todos os séculos medievais, em nenhuma parte do Ocidente; os livros gregos eram quase inexistentes nas bibliotecas ocidentais, exceto nas regiões do sul da Itália e na Sicília, onde se continuava a falar grego; o número de eruditos que aprendia grego era reduzido e os textos traduzidos do grego para o latim, entre o século XI e princípios do século XIV, ou eram teológicos ou se limitavam aos mesmos campos que haviam caracterizado a recepção árabe da cultura grega, a saber, as ciências e pseudo-ciências, a filosofia aristotélica e alguma coisa da filosofia neoplatônica.” KRISTELLER, Paul Oskar. Los antecedentes medievales del humanismo renacentista. In: Ocho filósofos del Renacimiento italiano. México: Fondo de Cultura Econômica, p. 204. (Tradução minha.)
65
Gilson,130 a palavra Universitas, designava, àquela época, tão-somente o grupo
de mestres e alunos que participavam do ensino numa mesma cidade, sem
que isso implicasse, necessariamente, uma estrutura organizada. Um studium
generale, ou universale, ou ainda comune nada mais era do que um centro de
estudos que abrigava estudantes provenientes dos mais diferentes lugares.
Bolonha abrigou a primeira dessas instituições, já com feições semelhantes às
das modernas universidades, a partir do ano de 1158, quando Frederico I lhe
concedeu seus estatutos. A Universidade de Bolonha foi, desde suas origens,
um centro de estudos jurídicos e só veio a ter sua faculdade de teologia, em
1352, por iniciativa do papa Inocêncio VI. Mas dentre todas as universidades
européias, que viriam a ser criadas, depois da primogênita Bolonha, a mítica
Universidade de Paris, em formação desde o século XII, destacou-se, desde os
seus inícios, como o maior centro de estudos filosóficos e teológicos da época,
a ponto de eclipsar sua irmã mais velha.131 Criada, de fato, por Inocêncio III, a
Universidade de Paris desenvolveu-se em função da existência de um meio
escolar efervescente na cidade de Paris, onde pontificavam mestres do porte
de Abelardo, que atraíam estudantes de toda parte da Europa.132
130GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 483. 131Idem, p. 483. 132Idem, p. 484.
Protegida
tanto pelos reis de França quanto pelos papas, com os primeiros, interessados
em fazer de seu brilho um instrumento de sua influência política, para além dos
limites de Paris; enquanto os últimos, dispostos a dela fazer o centro
privilegiado de produção e difusão de suas diretrizes religiosas, Universidade
de Paris, mostrou-se, ao longo de todo o século XIII, dividida entre duas
tendências contraditórias: a primeira, voltada para os estudos puramente
66
científicos e desinteressados; a segunda, buscando subsumir os estudos
acadêmicos às finalidades religiosas, de modo “a pô-los a serviço de uma
verdadeira teocracia intelectual”.133 Claro está que o projeto papal de fazer da
Universidade de Paris “o centro intelectual de toda a cristandade”,134 pela
imposição dos estudos teológicos, acabou por tornar a Faculdade de Teologia
tão importante e influente que a Faculdade de Artes viu-se relegada ao
segundo plano. Por outro lado, o desprestígio do sistema das sete artes
liberais, frente ao triunfo dos estudos filosóficos e teológicos, orientados pela
perspectiva doutrinária da Igreja, na Universidade, aprofundou-se quando os
próprios mestres da Faculdade de Artes, ainda que não interessados nos
estudos superiores da teologia, passaram a ensinar física, moral e metafísica,
isto é, as ciências recém-descobertas pelos novos textos traduzidos de
Aristóteles, sem se preocuparem com as disciplinas próprias do trívio.135
Durante todo século XII, o ocidente latino reconheceu na
França seu centro intelectual e cultural, e a Universidade de Paris atingiu seu
zênite acadêmico, no século XIII, com a afirmação definitiva do domínio papal
sobre ela, o abandono dos estudos lingüísticos e literários, que compunham o
trívio, no interior de duas das sete artes liberais, a gramática e a retórica, e o
triunfo de uma filosofia aristotélica, devidamente expurgada de seus perigos e
“incorporada à filosofia e à teologia cristãs”.
136 Mas como um contraponto à
orientação dominante dos estudos parisienses, a Universidade de Oxford, já
existente por volta de 1200, e sem conhecer as vantagens nem as
desvantagens do “cativeiro dourado”137
133Idem, p. 485. 134Idem, p. 488. 135Idem, p.496. 136CURTIUS. Op. cit., p. 58. 137GILSON. Op. cit., p. 490.
de sua poderosa irmã, preferiu, além de
67
preservar seus estudos filológicos, adotar um Aristóteles menos metafísico e
mais empirista. Daí a preservação e o maior cuidado no ensino do quadrívio, o
que, em Paris, já não acontecia. Portanto, pode-se considerar que, no século
XIII, o ensino baseado no sistema das sete artes liberais perde lugar e
importância frente às novas ciências e a filosofia, que reinam absolutas nas
universidades.
Assim, o surgimento das universidades resultou no
estabelecimento da filosofia, da medicina, da jurisprudência e da teologia como
campos distintos e altamente valorizados do conhecimento, em detrimento do
ensino das artes liberais. Por outro lado, o esquema das sete artes mecânicas
continuou a influenciar autores importantes, como Vincent Beauvais e Tomás
de Aquino,138
138Beauvais e Tomás de Aquino comungam da mesma visão quanto às sete artes mecânicas, mas não da mesma concepção de estudos. O primeiro “é o mais famoso enciclopedista do século XIII” (GILSON, p. 497), o que significa, também, ser defensor do esquema das sete artes liberais; já o segundo, aristotélico medular, sustenta que septem artes liberales non sufficienter dividunt philosophiam theoricam (“as sete artes liberais não distinguem suficientemente a contemplação filosófica”). Apud CURTIUS. Op. cit., p. 59.
em sua visão do significado e do lugar dessas artes na ordem
universal dos conhecimentos. Não podemos esquecer que, no mundo
medieval, predominava uma visão cosmoteológica, segundo a qual à ordem do
universo, ditada por Deus, correspondia a ordem terrena. De acordo com esta
ordem, não apenas a estrutura social obedecia a uma rígida, e quase estática,
hierarquização, como também, as práticas e os conhecimentos humanos
deveriam distribuir-se numa escala ascensional que ia do mais simples,
concreto e material ao mais complexo, abstrato e transcendental. Nesse
contexto, explica-se a predominância do ensino da lógica, ciência do
pensamento abstrato, como preparação necessária aos sublimes estudos da
teologia, rainha e ápice das ciências, em detrimento dos estudos literários,
68
contidos nas artes da gramática, da retórica e da dialética, voltados para as
nuanças mais fugidias dos autores clássicos:
Se pensarmos no culto dos clássicos nas escolas
chartrenses do século XII, a profunda decadência desses
estudos no século XIII é manifesta. Já que o latim
continuava a ser a língua erudita em uso nas escolas, um
mínimo de estudos gramaticais era obrigatório, mas esse
mínimo era verdadeiramente pouca coisa, como se pode
ver pela própria obra dos que o mantiveram. Como se
começava o estudo da lógica o mais cedo possível, era
preciso abreviar por todos os meios o estudo das letras.
(...) Essa mecanização do ensino literário se acentua
desde o início do século XIII.
(...)
A mudança de orientação que se produziu no
século XIII no estudo da gramática pode se resumir, pois,
como segue: até então, a dialética e a gramática haviam
vivido lado a lado, como duas das sete artes liberais, que
eram estudadas a fim de se alcançar uma eloqüência
inseparável da sabedoria; a partir de então, a gramática
vai se deixar absorver progressivamente pela lógica e
servir de introdução filosófica a seu estudo, em vez de
introduzir ao estudo literário das obras-primas da
Antigüidade.139
No esquema das sete artes mecânicas
140
139GILSON. Op. cit., pp. 498-501. 140Segundo o Didascalion, de Hugo de São Vitor, as sete artes mecânicas são: tecelagem, fabrico de armas, navegação, agricultura, caça, medicina, teatro. GILSON. Op. cit., 372.
, a arquitetura, a
escultura e a pintura aparecem como subdivisões da arte de fabricar armas.
Seja como for, à exceção da música e da poesia que, como já vimos, fazem
parte do esquema das artes liberais, mas não por serem concebidas como
formas artísticas, no sentido contemporâneo da expressão, as artes visuais
freqüentemente aparecem distribuídas pelos mais diversos ramos das práticas
humanas; mas sempre associadas às atividades artesanais, como, por
69
exemplo, a pintura, identificada como um ramo da atividade do boticário, pelo
preparo das tintas, ou a escultura, ligada à ourivesaria, ou ainda a arquitetura,
atividade própria dos pedreiros e carpinteiros. Por outro lado, os poucos
tratados conhecidos, que versam sobre essas artes, não as tratam senão do
ponto de vista estritamente técnico e profissional, sem articulá-las entre si ou a
qualquer concepção filosófica.141 Podemos, portanto, afirmar que tanto a
Antigüidade quanto a Idade Média representam um continuum temporal no que
concerne à inexistência da Idéia de Arte, pelo menos no sentido em que
entendemos esta palavra. Mesmo que para a inteligência contemporânea
pareça estranho conceber esses dois períodos como uma continuidade, ainda
que ressalvadas todas as muitas diferenças entre eles, para os homens
medievais, mesmo, “seu próprio tempo continuava a Antigüidade sem que,
historicamente falando, nada os separasse dela”.142
Como a proposta desta tese é mostrar que a Idéia de Arte
não é nem universal nem atemporal, mas que, ao contrário, nasce e se
desenvolve sob condições muito específicas, é importante determo-nos, ainda
que por um instante, diante da idéia de que o tempo assume formas variadas
na vida dos homens, isto é, sobre como ele condiciona suas práticas, seus
sentimentos, enfim, sua cosmovisão. Não se trata de cometer o absurdo erro
histórico de imaginar que a Antigüidade e a Idade Média fossem rigorosamente
iguais. Mas, talvez, haja entre ambas uma semelhança no que diz respeito ao
E aqui me permito
concordar com eles, pois identifico entre os dois períodos um mesmo
sentimento do tempo, que se relaciona à concepção do que sejam as artes ou
os estudos liberais, frente às artes mecânicas.
141KRISTELLER. The Modern System of the Arts, p. 509. 142GILSON. Op. cit., p. 398.
70
sentimento do tempo; pois não fosse assim seria difícil explicar, por exemplo, o
porquê da aceitação absoluta, por parte dos estudiosos medievais, da
cosmologia pagã143
143“Esta minuciosa cosmologia [representada por Dante na Divina Comédia], aceite como certa por todos os homens inteligentes da Idade Média, devia efectivamente mais às hipóteses dos escritores pagãos, como o filósofo grego Aristóteles e o geógrafo alexandrino Ptolomeu, do que à teologia cristã. Mas com o andar do tempo tinha-se tornado cristã.” Cf. GREEN, Vivian Hubert Howard. Renascimento e Reforma. A Europa entre 1450 e 1660. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984, p. 16.
, ainda que traduzida em termos cristãos. De acordo com
esta cosmologia, o universo se dividia em dez esferas transparentes e
concêntricas, girando cada uma delas num ritmo próprio. A terra, centro do
universo, encerrada no interior da primeira esfera, lugar de um ritmo temporal
mais pesado e mais lento, tinha como seu oposto perfeito, o nono círculo ou
nona esfera, lugar do Primeiro Motor (o Primum Mobile), que transmitia o
movimento a todas as outras esferas, girando mais rápido que elas, habitado e
impulsionado por entes celestiais superiores. Finalmente, o empíreo, o décimo
e último céu, imóvel, infinito e eterno, era a morada de Deus e dos santos.
Nessa ordenação universal, a que correspondia uma forma de pensamento
baseada na simbologia e na analogia, o homem era representado como um
microcosmo análogo ao macrocosmo, isto é, como o universo em escala
reduzida e, portanto, mostrava em sua constituição todos os quatro elementos
presentes no universo: a carne, associada à terra, o sangue, à água, o alento,
ao ar e finalmente o calor, identificado com o mais puro e divino dentre todos
os elementos, o fogo. Mas não só fisicamente deveria ser o homem, em escala
inferior, a imagem do universo. Também a vida humana deveria ser o seu
reflexo, ainda que imperfeito. Assim, ao tempo mais distante do tempo ideal,
vizinho da eternidade, ao tempo mais lento e mais pesadamente sentido em
suas manifestações materiais, corresponderiam não apenas as atividades de
escravos ou servos, mas todos os ofícios mecânicos, que, por isso mesmo,
71
ocupavam, nas sociedades antiga e medieval, o lugar mais baixo na hierarquia
social. Podemos dizer, portanto, que as artes mecânicas desenvolviam-se
numa espécie de tempo artesanal, porque vivenciado de modo meticuloso,
tenaz e vagaroso, na dependência dos dons e do ritmo da natureza, que
determinava o grau de habilidade daqueles que realizavam seu trabalho,
guiados somente pela visão e pelo sentimento, mas não pelo pensamento. Por
outro lado, na ponta oposta da hierarquia das artes, no reino ígneo das artes
liberais, aqueles que pensavam preferiam nada ver ou sentir do mundo, ainda
que sujeitos ao mesmo regime temporal, mas tão-somente contemplá-lo, como
reflexo das idéias criadas por seres espirituais, com os quais acreditavam
poderem, um dia, coabitar, na pátria do Bem e do Belo, para além do tempo
artesanal, na eternidade.
3. O tempo intelectual – as origens da arte e do artista
Não era em todo o ocidente europeu que o céu e a terra
pareciam movimentar-se, exclusivamente, a partir de uma mecânica
determinada pela vontade divina. Não era em toda parte que os homens, suas
ações e ocupações expressavam um sentimento do tempo ditado pelo
misterioso, lento e preciso movimento das esferas celestes. Na verdade, a
Idade Média constituiu-se de dois tempos, não necessariamente antagônicos,
mas profundamente diferentes em suas perspectivas. Enquanto até o século
XIII predominou o que denominei de tempo artesanal, em que os sentidos
humanos alimentavam-se fundamentalmente das imagens do céu, matrizes
fixas das realidades terrenas; do século XIV em diante, podemos identificar a
expansão de uma nova forma do tempo, intelectualizada, baseada na
valorização de conhecimentos e idéias redescobertas e difundidas para além
dos muros conventuais ou dos espaços acadêmicos mais ortodoxos144
Palco privilegiado da encenação de expressivas realizações
no mundo da técnica, das ciências, da política e do direito, realizações que
. Estas
idéias e saberes, redescobertos e reinterpretados, penetraram pouco a pouco
determinados ofícios, até então praticados quase que exclusivamente como
instrumentos para a transmissão da mensagem divina. A partir de então, tais
ofícios passam a ser vistos e discutidos mais freqüentemente como formas de
conhecimento tão apreciadas e dignificadas como as tradicionais artes liberais
– e, dessa vez, não mais a serviço de Deus, e sim dos homens, mas não de
quaisquer homens.
144“As raízes do Renascimento penetram fundo no solo da Idade Média e já ali se encontravam antes de terem nascido Petrarca e Boccaccio, considerados durante muito tempo como os fundadores do humanismo italiano.” GREEN. Op. cit., p. 33.
73
alimentam as grandes narrativas construídas em torno das origens dos tempos
modernos, a Itália, desde os últimos anos do século XIV, bem como ao longo
de todo o século XV, constituía-se de um conjunto de prósperas cidades-
estado, cuja riqueza fundava-se na produção urbana, organizada em
corporações de ofício, de onde saíam cobiçados artigos de luxo. Essas
cidades, dentre as quais se destacavam Florença e Veneza, tornaram-se “um
domicílio perfeito para o renascimento da arte e da literatura, já que abrigava
uma comunidade política e economicamente amadurecida, e generosa no seu
patrocínio”.145
A Idade Média deixou insepulta a Antigüidade e,
alternativamente, reanimou e exorcizou seu cadáver. A
Renascença chorou à sua sepultura e tentou ressuscitar-
lhe a alma. E, num momento auspicioso, conseguiu seu
intento.
Para Erwin Panofsky:
146
De acordo com Alberto Tenenti, o que se convencionou
chamar de Renascimento
3.1. Os studia humanitatis
147, na Itália do século XV, “dizia respeito sobretudo
ao domínio da arte, bem como ao das letras e da filosofia, e estava
estritamente ligado ao ‘retorno’ humanista à civilização clássica”148
145GREEN. Op. cit., 35. 146Apud ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. Tradução de João Roberto Martins Filho. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, p. 148. Nessa nota, Perry Anderson, brilhante historiador marxista inglês, ao comentar a carência de estudos históricos à altura da magnitude do tema Renascimento, faz a sugestiva observação: “A desproporção entre o tema e os estudos a ele dedicados é particularmente evidente no legado de Marx e Engels: sempre relativamente indiferentes às artes visuais (ou à música), nem um nem outro viu-se criativamente atraído pelos problemas apresentados ao materialismo histórico pela Renascença, como fenômeno total”. 147“Renascença é um dos conceitos históricos que gerou mais confusão e até equívocos, pouco mais de um século depois que Michelet e Burckhardt o propuseram aos historiadores e estes o impuseram ao uso lingüístico mais corrente. (...) parece-nos evidente que o emprego de ‘Renascença’ quase nunca é indispensável em um estudo rigoroso da história italiana e européia dos séculos XV, XVI e XVII.” TENENTI, Alberti. Florença na época dos Médici: da Cidade ao Estado. São Paulo: Editora Perspectiva , 1973, pp. 136-136. 148TENENTI. Op. cit., p. 136.
. Tenenti
74
tem razão quanto às aspas na palavra retorno, pois os studia humanitatis eram,
em muitos aspectos, a simples continuação do trívio, sem a lógica, e com a
incorporação da história, da filosofia moral e do grego. É, portanto, o domínio
dessas disciplinas que caracteriza o humanismo renascentista149. A poética,
anteriormente, uma parte da retórica150
(...) poetry was understood as the ability to write Latin
verse and to interpret the ancient poets, and the poetry
which the humanists defended against some their
theological contemporaries or for which they were
crowned by the popes and emperors was a quite different
thing from what we understand by that name. Yet the
name poetry, meaning at first Latin poetry, received much
honor and glamour through the early humanists, and by
the sixteenth century vernacular poetry and prose began
to share in the prestige of Latin literature.
e da gramática, torna-se a disciplina
mais importante dos studia. Por outro lado, durante nos séculos XIV e XV, o
que se entendia por poesia não guarda absolutamente qualquer semelhança
com o que essa palavra significa hoje para nós:
151
É importante observar que, a rigor, as disciplinas que
compunham os studia humanitatis não correspondiam, quanto ao seu
significado, ao que, hoje, por elas compreendemos. Assim, por gramática
entendia-se o ensino do latim, como estudo preliminar necessário a todos os
149KRISTELLER. Ocho filósofos del Renacimiento italiano, p. 194. 150“Em Dante, a poesia era nihil aliud est quam fictio rethorica in musicaque posita (“nada mais do que criação retórica posta em música”). CROCE. Op. cit., p. 209. “(...) sofreria grande vergonha aquele que rimasse sob a roupagem de figura ou cor retórica e, depois, interpelado, não soubesse desnudar as suas palavras dessa roupagem de maneira a terem significado real.” ALIGHIERI, Dante. Vida nova. In: Sto. Tomás de Aquino, Dante Alighieri, John Duns Scot, William of Ockham. Traduções de Luiz João Baraúna ... [et al.]. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, 177. (Os Pensadores). “Virgilio é, pois, para Dante, no sentido do fim da Antigüidade e da Idade Média, o mestre da retórica. Beatriz envia-o a Dante, para que ele o ajude com a sua palavra artisticamente castigada (...). Dante aprendeu sua arte retórica de Virgílio (lo mio maestro).” Apud CURTIUS. “Dante e a Latinidade”. Op. cit., 374. 151“... o que se entendia por poesia era a habilidade de escrever versos em latim e interpretar os antigos poetas, e a poesia, que os humanistas defendiam contra alguns teólogos contemporâneos, ou pela qual eram laureados por papas e imperadores, era algo inteiramente diverso do que entendemos hoje por esse nome. Apesar de a poesia, significando a princípio poesia latina, ter sido muito honrada e dotada de glamour pelos primeiros humanistas, no século XVI a poesia e a prosa vernáculas começaram a compartilhar o prestígio da literatura latina.” KRISTELLER. The Modern System of the Arts, pp. 510-511. (Tradução minha.)
75
outros estudos. Saber ler, escrever e falar o latim era fundamental não apenas
por se tratar da língua oficial da Igreja, mas, porque somente pelo
conhecimento perfeito desta língua, o estudioso teria acesso à erudição, à
instrução universitária, à conversação e à correspondência internacionais.152
En otras palabras, ninguno de los dos aspectos del
estudio humanista de la poética se ocupaba de la poesía
vernácula, y el concepto humanista de la poesía y del
poeta estaba muy alejado de las ideas a las que el
Romanticismo y las teorías modernas de estética y
crítica literaria nos han acostumbrado.
O
estudo da poética, que começa a ser ensinada separadamente da gramática no
século XIV, tinha por objetivo tanto adestrar o estudante na leitura e no
entendimento dos poetas latinos, quanto na própria produção de poesia latina:
153
É com desgosto que Croce reconhece que, em termos de
estudos poéticos, “el Renacimiento no traspasó los confines del antiguo
pensamiento estético”
154. De fato, a Poética e a Retórica de Aristóteles
exerceram crescente influência, especialmente em seus tradutores,
comentadores e tratadistas do século XVI, muitos dos quais continuaram a
associar, como o Estagirita, do ponto de vista da imitação, a música com a
poesia, mas sem considerar as chamadas belas artes como formas específicas
de imitação.155 A formação do humanista incluía, também, o estudo da retórica
ou oratória, cujo objeto era a literatura em prosa, como coisa distinta do estudo
da poesia, e consistia na leitura e interpretação dos prosadores latinos antigos,
bem como no exercício e prática da prosa latina,156
152KRISTELLER. Ocho filósofos del Renacimiento italiano, p. 197. 153“Em outras palavras, nenhum dos dois aspectos do estudo humanista da poética se ocupava da poesia vernácula, e o conceito humanista de poesia e de poeta estava muito distante das idéias a que nos acostumaram o Romantismo e as teorias modernas de estética e crítica literária.” Idem. 154CROCE. Op. cit., p.213. Para esta tese, não existe “antigo pensamento estético”. 155KRISTELLER. The Modern System of the Arts, p. 511-512. 156KRISTELLER. Ocho filósofos del Renacimiento, p. 198.
sempre pela imitação de
76
modelos antigos. Na verdade, a literatura em prosa estudada era de dois tipos:
a epistolar157 e o discurso. Gênero quase tão importante quanto o epistolar, a
exibição oratória em público era considerada, na Itália renascentista, um
espetáculo tão glamouroso como, em outros períodos, seriam outras formas de
manifestações artísticas158. Assim, discursava-se por praticamente tudo: por
ocasião de um funeral ou de um casamento de uma personalidade importante,
em qualquer cerimônia pública de alguma relevância, como a investidura de um
magistrado, a chegada de um visitante ilustre, a abertura do ano escolar, o
início de um ciclo de conferências, ou quando da outorga de um grau
acadêmico159
A quarta disciplina que compunha os studia humanitatis era
a história. Era ensinada como parte da oratória, a partir dos textos dos autores
antigos, e também tinha por finalidade a pura imitação dos modelos
consagrados.
.
160Príncipes e governantes locais recompensavam os humanistas
por seus escritos históricos encomendados, e à função de historiógrafo oficial
de uma corte geralmente se associava a de chanceler ou mestre de retórica. Já
na segunda metade do século XV, encontraremos, freqüentemente,
humanistas italianos a serviço de cortes européias, como historiadores ou
secretários reais.161Finalmente, a última e, “en cierto sentido la más
importante”,162 disciplina a ser estudada era filosofia moral163
157En el Renacimiento, como en otros periodos, la carta no era simplemente um vehículo de comunicación personal, sino también un género literario que servía a una gran variedad de finalidades: informes de noticias, manifiestos o mensajes políticos, tratados cortos sobre tema eruditos, filosóficos u materias doctas – todo se vertía en forma de cartas. (“No Renascimento, como em outros períodos, a carta não era simplesmente um veículo de comunicação pessoal, mas, também, um gênero literário a serviço de uma grande variedade de finalidades: informes noticiosos, manifestos ou mensagens políticas, tratados curtos sobre temas eruditos, filosóficos ou outras questões do saber – tudo era tratado em cartas.”) Idem. (Tradução minha.) 158 Idem, p. 199. 159Idem. 160Idem, p. 200. 161Idem. 162Idem.
. Na verdade, esta
77
matéria tinha pouco a ver com filosofia, e mais com o trabalho dos humanistas
em pesquisa erudita sobre os textos antigos. Nos embates constantes contra a
intolerância de teólogos desconfiados de seu apego aos sábios da Antigüidade,
os humanistas alegavam serem estes últimos fontes de interesse para os
estudos dos problemas humanos e, portanto, indispensáveis à boa formação
moral e intelectual da juventude. Daí a marcante paleta moral nos tratados e
diálogos humanistas, que versavam tanto sobre a felicidade quanto sobre os
vícios e as paixões humanos, sobre os deveres de um príncipe ou sobre os
méritos das diferentes artes e ciências. Tais obras ecléticas, por se
constituírem de idéias tomadas aos mais diferentes autores antigos e, por isso,
muitas vezes carentes de originalidade, não deixam de ter importância, quanto
mais não seja, por seu caráter histórico. Portanto, não se pode falar
propriamente numa filosofia humanista, pois nenhum deles produziu um corpo
sistemático de idéias; mas seu trabalho com os textos antigos resultou num
farto material, que viria alimentar tanto o campo do pensamento moral quanto
outras formulações ideológicas nos séculos vindouros.164
Mas não apenas nos séculos vindouros, pois, como os
historiadores da arte nos ensinam, na própria Itália, ou, mais exatamente, na
Florença do século XV, emergiu um novo ideal de arte, que expressaria “as
aspirações mais progressistas da cidade-república no momento em que esta
3.2. O humanista, a arte e o artista no Renascimento
163Desde el tiempo de Petrarca afirmabam los humanistas que eran filósofos morales y algunos de ellos realmente ocuparon cátedras universitarias de filosofía moral, juntamente con las de retórica y poética. (Desde a época de Petrarca os humanistas afirmavam que eram filósofos morais, e alguns deles realmente ocuparam cátedras universitárias de filosofia moral, juntamente com as de retórica e poética.) KRISTELLER. Ocho filósofos del Renacimiento italiano, p. 201. (Tradução minha.) 164Idem, p. 202.
78
atingia um ponto alto em seu desenvolvimento”.165 É por volta de 1420 que
Brunelleschi, Donatello e Masaccio produzem as obras inaugurais da chamada
arte nova.166 Simultaneamente, alguns intelectuais humanistas chamaram a si
a missão de estimular, nos praticantes daquelas antigas artes mecânicas – a
pintura, a arquitetura e a escultura –, uma nova percepção de seus ofícios. À
antiga visão das artes, como ofícios a serviço da religião, e do artista, como
artesão organizado em guildas, pago para realizar uma simples tarefa artesanal
encomendada, começa a se sobrepor uma nova perspectiva, segundo a qual
aquelas artes seriam formas de conhecimento, e o artista, um intelectual.
Dentre os humanistas comprometidos com este projeto destacou-se Leon
Battista Alberti. Filho de uma das mais ricas e poderosas famílias de
Florença167
(...) Alberti era um representante típico dos primeiros
humanistas. Trabalhou aparentemente com a mesma
facilidade nos campos da filosofia, da ciência, do saber
clássico e das artes. Escreveu panfletos ou tratados
sobre ética, amor, religião, sociologia, direito, matemática
e diversos ramos das ciências naturais. Também
escreveu versos, e sua intimidade com os clássicos era
tal que duas de suas obras, uma comédia e um diálogo à
maneira de Luciano, foram aceitas como escritos recém-
descobertos dos antigos. Nas artes, praticou e escreveu
sobre a pintura, a escultura e a arquitetura. De fato, seu
, formado em Direito, pela Universidade de Bolonha:
165BLUNT, Anthony. Teoria artística na Itália 1450-1600. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001, p. 11. 166Apenas à guisa de informação, Masaccio revolucionou a pintura pelo emprego de uma perspectiva rigorosa, segundo a qual as figuras representadas, no fresco de A Santíssima Trindade, em Santa Maria Novella, parecem saltar em direção ao observador; já no São Jorge, no Bargello, Donatello aplicou os resultados de seus estudos sobre a antiga estatuária romana, introduzindo, ao mesmo tempo, em sua composição, a naturalidade gestual e o realismo fisionômico; Brunelleschi, verdadeiro responsável pela descoberta e aplicação da perspectiva, no nascente campo da arte, renova os métodos da arquitetura, pela adaptação livre de estruturas próprias da arquitetura clássica. É o inventor da cúpula como estrutura capaz de fazer a mediação entre o volume fechado de uma catedral, como é o caso da de Florença, cujo Zimbório é obra sua, e a imensidão da atmosfera ambiente. GOMBRICH. A história da arte. Op. cit., p. 224 e seguintes. 167Leon Battista Alberti nasceu em Gênova, em 1404, durante o exílio de sua família. Morreu em Roma, em 1472.
79
domínio de todas as formas de conhecimento era de tal
modo enciclopédico que ele bem mereceu o elogio
redigido por um copista contemporâneo dos Trivi: “Dic
quid tandem nesciverit hic vir?”.168
O professor Anthony Blunt é não apenas um entusiasta do
Renascimento, mas, principalmente, um dos grandes defensores da tese da
existência de teorias artísticas, o que implicaria a conseqüente existência de
uma idéia de arte àquela época. Seu livro, Teoria Artística na Itália 1450-1600,
é o resultado de notável esforço de pesquisa erudita, justamente com o objetivo
de, ao colher exemplos significativos de teorias estéticas no Renascimento,
inferir a existência de uma idéia de arte já plenamente constituída no século
XVI. Mas seu interesse por Alberti, ao qual o primeiro capítulo é inteiramente
dedicado, reside no fato de haver “em seus escritos (...) uma doutrina acabada
do humanismo (...) formulada pela primeira vez, [sendo] eles a fonte principal
de que derivam as idéias posteriores”.
169 Ora, como o próprio professor Blunt
nos mostra, Alberti é filho intelectual da Universidade de Bolonha, centro por
excelência dos estudos jurídicos europeus, centrados na tradição do direito civil
romano.170
168BLUNT. Op. cit., 13. A frase em latim traduz-se livremente por: Que se diga, pois, o que este homem desconhece. 169BLUNT. Op. cit. Prefácio à primeira edição, p. 7. 170“O conhecimento renovado da jurisprudência romana remontava, em si, à Alta Idade Média. O denso crescimento do direito consuetudinário jamais deixou morrer completamente a memória e a prática do direito civil romano na península onde sua tradição era mais antiga, a Itália. Foi em Bolonha que Irnerius, a ‘luz do direito’, reiniciou o estudo sistemático dos códigos de Justiniano, nos inícios do século XII.” ANDERSON. Op. cit., pp. 22-23.
Isso implica dizer que sua maneira de pensar as diferentes
dimensões da vida humana estava profundamente marcada pelo naturalismo e
racionalismo próprios do direito romano; e é sob esta ótica que Alberti elabora
seus princípios sobre como deve se realizar o trabalho do artista. Não é à toa
que, antes de iniciar sua resenha das principais idéias do grande humanista
sobre arte, o mestre do Trinity College, nos adverte que os “pontos de vista de
80
Alberti a respeito das artes dependem em um tal grau de sua atitude filosófica
geral que vale a pena analisar esta última um tanto detalhadamente”.171 E
seguem-se algumas sugestivas páginas, nas quais vemos esboçar-se diante
de nós algo das concepções do humanista florentino sobre o sumo bem como
interesse público, isto é, o princípio segundo qual o príncipe deve governar no
interesse dos cidadãos172; a ética173 a ser seguida pelo indivíduo que pretenda
tornar-se um bom cidadão174; seu ideal racionalista de vida, “baseado mais na
filosofia antiga do que nos ensinamentos do catolicismo”,175 sem oposição ao
cristianismo, mas, sim, uma espécie de solução de compromisso, “em que os
elementos da filosofia pagã e clássica se misturam sem nenhuma dificuldade
com dogmas cristãos”.176
The appearance of a distinguished artist who was also a
humanist and writer of merit, such as Alberti, was no
coincidence in a period in which literary and classical
learning began, in addition to religion, to provide the
subject matter for painters and sculptors.
Cabe citar, aqui, a preciosa observação do professor
Kristeller sobre Alberti:
177
Apresentadas algumas das principais idéias do humanista
sobre diferentes aspectos da vida humana, e lembrando-nos sempre que seus
temas filosóficos e políticos se refletem “em seus escritos teóricos no campo
171BLUNT. Op. cit., p. 13. 172BLUNT. Op. cit., p. 14. 173“A ética humanista da primeira metade do século XV opõe-se à do Cristianismo, porque esta, partindo de doutrinas igualitárias e ascéticas, terminara por se achar à vontade em uma sociedade rigidamente dividida em classes, onde seus ministros ocupavam um lugar inteiramente vantajoso, pretendendo continuar a divulgar sua escala originária de valores morais. (...) os humanistas colocam-se eles também no terreno dos princípios e, nos traços dos Antigos, arvoram orgulhosamente as idéias de Natureza e de Homem. Em nome da constituição natural desse último, eles conduzem uma eficaz campanha antiascética mas também, ainda que mais ocultamente, antiigualitária.” TENENTI. Op. cit., pp. 100-101. 174BLUNT. Op. cit., p. 15. 175BLUNT. Op. cit., p. 15. 176BLUNT. Op. cit., p. 16. 177“Não foi coincidência o surgimento de um artista eminente como Alberti, que também era um humanista e escritor de mérito, num período em que a cultura literária e clássica começou, além da religião, a prover temas para pintores e escultores.” KRISTELLER. The Modern System of the Arts, p. 513. (Tradução minha.)
81
estético”, Anthony Blunt passa ao estudo do que ele denomina de teoria
artística de Alberti.178
Alberti é especialmente afeiçoado à arquitetura, por ser
essa, dentre todas as artes, a que tem “uma ligação mais próxima com as
necessidades práticas do homem”.
179 Segundo o professor Blunt, a concepção
de arquitetura de Alberti reflete suas idéias sociais. Pensada como atividade
cívica, isto é, voltada para o comércio, a defesa e a expansão dos domínios
citadinos, a arquitetura deve unir utilidade e ornamento a serviço da glória da
cidade.180
Antes de prosseguir, acho que seria conveniente dizer a
quem exatamente eu chamo de arquiteto; pois não colocarei diante de vós um carpinteiro e vos pedirei que o vejais como o equivalente de homens profundamente versados nas ciências, embora seja verdade que o homem que trabalha com suas mãos serve como instrumento para o arquiteto. Chamarei de
arquiteto aquele que, com razão e preceito seguros e
maravilhosos, sabe em primeiro lugar como dividir as
coisas com sua mente e inteligência, e, em segundo,
como, ao levar a cabo sua tarefa, colocar corretamente
juntos todos aqueles materiais que, pelo movimento dos
pesos e a associação e acúmulo dos corpos, podem
A exposição da “estética” do humanista, em relação à arquitetura,
continua com seus projetos urbanísticos, com ênfase no “espírito do
humanismo racional” de suas obras filosóficas e uma esclarecedora definição
de arquiteto, extraída do prefácio de seu livro sobre esta arte:
178As obras “teóricas sobre as artes” estudadas pelo professor Blunt são: “o tratado sobre a pintura, Della pittura di Leon Battista Albereti, escrito em 1436 supostamente em latim, mas traduzido pelo próprio Alberti para o italiano especialmente para Brunelleschi. O segundo e o mais importante dos tratados consiste nos dez livros de arquitetura, De re aedificatoria, que Alberti começou possivelmente por volta de 1450, mas ao qual continuou fazendo acréscimos e alterações até a sua morte, em 1472. A última obra é o panfleto sobre escultura, De statua, escrito provavelmente um pouco antes de 1464”. BLUNT. Op. cit., p. 18. Não consultei nenhuma dessas obras. Portanto, e sem que isso implique prejuízo à discussão que interessa a esta tese, tomo as citações e observações, feitas pelo professor Blunt, como fontes primárias. 179BLUNT. Op. cit., p. 18. 180“Da arquitetura a cidade deriva seus esplêndidos edifícios públicos, suas casas particulares e os monumentos que mantêm viva a memória dos grandes homens.” Idem, pp. 18-19.
82
servir com sucesso e dignidade às necessidades do
homem. E, ao levar a cabo essa tarefa, ele precisará do
conhecimento maior e que mais excele.181
Já mencionamos (...) a luta de pintores, escultores e
arquitetos para verem reconhecidas suas profissões
como artes liberais. Com seu novo método científico, eles
Ora, se a arquitetura é uma das artes visuais, ao lado da
pintura e da escultura, o arquiteto é um artista; e da definição de arquiteto em
Alberti podemos deduzir, ao mesmo tempo, a de arte e de artista; pois,
logicamente, aquele que atua com razão e preceito seguros e maravilhosos,
porque profundamente versado nas ciências é um artista, isto é, alguém que
pratica alguma coisa que requer razão e preceitos seguros e maravilhosos e...
ciências – arte. Assim, temos, aqui, simultaneamente, como as duas faces de
uma mesma moeda, as concepções de arte e de artista que, claramente
formuladas por Alberti, caracterizarão e farão fortuna no Renascimento,
embora não de modo inconteste, com desdobramentos e retoques, em todo o
Ocidente europeu, pelo menos até o século XVIII. Especificamente, a
concepção de artista não deixará de compor, nos séculos seguintes, a
identidade do artista, mas ganhará um outro elemento, que tornará esse
homem de saber uma individualidade excepcional: a idéia de gênio. Contudo
não podemos, ainda, identificar uma filosofia da arte, ou uma estética, no
Renascimento. Os humanistas e mesmo os artífices ou artesãos, de formação
intelectual mais sofisticada, e, obviamente, os membros da elite econômica e
social de Florença estavam mais preocupados em se diferenciar e distanciar,
por cultivarem as artes liberais, daqueles que praticavam aquelas mesmas
artes como mecânicas e, portanto, simplesmente artesanais:
181Apud BLUNT. Op. cit., 22. (O negrito é meu.)
83
passaram a reivindicar superioridade sobre os simples
artesãos, e tentaram estabelecer para si próprios uma
posição social melhor.
Na prática, a posição social do artista no século XV era
considerada melhor do que havia sido antes. Ghiberti e
Brunelleschi exerciam ambos importantes cargos
administrativos em Florença, o segundo sendo inclusive
um membro da Signoria.
(...)
Em geral, porém, o principal objetivo dos artistas em sua
reivindicações para serem vistos como liberais era
dissociar-se dos artesãos, e, em suas discussões a
respeito do assunto, eles se encarregaram de ressaltar
todos os elementos intelectuais em sua arte. Nos escritos
teóricos do final do século XV, tornou-se um lugar-comum
afirmar que a pintura depende do conhecimento da
matemática e dos diferentes ramos do conhecimento. Os
primeiros críticos defendem esse ponto de vista em
termos bastante genéricos, porém mais tarde suas
reivindicações se tornam mais precisas e exageradas.182
De fato, artistas e escritores simpáticos à sua causa
atravessaram os séculos XIV e XVI defendendo a tese de que as artes visuais
deveriam ser consideradas liberais e não mecânicas, quer lançando mão do
testemunho equívoco dos clássicos da Antigüidade, quer associando-as, de
alguma maneira, à retórica, à musica ou à poesia. E como o conceito de arte,
mesmo no Renascimento, continuou a ser o das artes liberais, isto é, o de
ciências e saberes que podiam ser ensinados, o próprio Leonardo da Vinci
procurou definir a pintura como uma ciência, para cuja maestria era necessário
o conhecimento da matemática.
183
182BLUNT. Op. cit., pp 70-71. 183“A exatidão da pintura depende de vários fatores: em primeiro lugar, depende do olho, que é o último dos sentidos a se enganar facilmente; em segundo lugar, o pintor não se baseia unicamente no olho, mas verifica seus juízos pela mensuração concreta; e, em terceiro, a pintura é baseada nos princípios da geometria.” BLUNT. Op. cit., p. 42. KRISTELLER. The Modern System of the Arts, p. 514.
No caso de Alberti, constatamos a mesma
84
coisa, pois os três volumes iniciais de seu tratado dedicado à arquitetura são
puramente técnicos184, com instruções sobre tipos de desenho, escolhas de
materiais e métodos de construção. Sua visão da pintura é menos elaborada e
repete as mesmas idéias gerais sobre a importância de todas as formas de
conhecimento, em sua prática, com especial atenção para a história, a poesia e
a matemática. Assim, Alberti pode ser considerado o grande porta-voz
daqueles artistas que, por sua aproximação com os homens de letras e a
conseqüente incorporação dos conhecimentos científicos, da época, na
elaboração de suas obras, não desejam mais ser tratados como artesãos.185 E
é mesmo possível imaginar que uma das maiores contribuições dos
humanistas italianos186
Por outro lado, se humanistas como Alberti forjaram a
identidade do artista, como aquele que pratica, com exclusividade, uma arte
douta e racional, essa identidade articula-se a outra, também douta e racional –
a dos grandes comerciantes e banqueiros florentinos.
para a história cultural do Ocidente talvez tenha sido
sua defesa da pintura, da escultura e da arquitetura como formas especiais de
arte, independentes dos ofícios artesanais, como até então eram praticados.
187
184BLUNT. Op. cit., p. 19. 185É interessante observar que Giotto, considerado, pelas histórias da arte, a partir de seu elogio feito por Boccaccio, no Decameron, a primeira grande referência da arte da Renascença italiana, tanto pelo efeito de profundidade em superfície plana quanto por seu inédito naturalismo, na representação de cenas religiosas, jamais reivindicou qualquer participação de seu ofício no seleto grupo das artes liberais. Ao contrário, Giotto, homem do povo, como, aliás, boa parte daqueles que, mais tarde, reivindicarão para si a condição especial de artista, não parece ter se preocupado em buscar para si uma identidade diferente que a de habilíssimo artesão. 186(...) the humanists, and their journalist successors in the sixteenth century looked with favor upon the work of contemporary artists and would lend their pen to its praise. (“... os humanistas e os cronistas que os sucederam, no século XVI, tinham em alta conta o trabalho dos artistas contemporâneos e escreveriam de bom grado seu elogio.”) KRISTELLER. Op. cit., p. 513. (Tradução minha.) 187“Será efeito do acaso o fato de um jovem educado no exílio no meio da rede do comércio florentino, Leon Battista Alberti, ter tirado no decorrer dos mesmos anos (1432- 1450 aproximadamente) as coordenadas morais e racionais da atividade econômica em seu tratado sobre a Família e exposto os novos princípios, não somente da pintura e da escultura, mas também da arquitetura?” TENENTI. Op. cit., p. 98.
A constituição
comunal florentina data de 1293. Isto implica dizer que, desde aquela época,
85
Florença pode, de fato, ser considerada uma cidade-estado188. Conquista
efetuada após todo um período de lutas contra a poderosa nobreza feudatária,
a Florença republicana e popular do século XIII tinha como seus cidadãos
todos aqueles que estivessem inscritos nas associações corporativas, as
arti.189
Desta forma, a prática governamental florentina – sempre
partidária e freqüentemente facciosa – não é senão uma
das numerosas e divergentes aplicações do princípio,
explícito ou implícito, de que autoridade não emana de
todos os membros da comunidade. O “povo” de Florença
não se considerava como o conjunto dos que habitavam
a cidade e podiam contribuir para a sua prosperidade.
Quando atinge o poder, esse “povo” é somente um
agrupamento político de profissões, poderosamente
organizado, que acha muito natural privar dos direitos
que reserva para si, não somente seus adversários, mas
toda massa de cidadãos.
Portanto, a cidade-estado de Florença caracterizou-se como uma
república democrática e popular, no sentido de ser governada a partir, e
exclusivamente, dos interesses ou os privilégios de uma parte de sua
população:
190
Mas à prosperidade das corporações florentinas mais ricas,
a do fabrico de lã e da seda, bem como a dos banqueiros, corresponderam
dois fenômenos simultâneos, que resultaram na transformação do regime
político citadino numa forma de poder oligárquico. A organização política das
camadas superiores da cidade, que, anteriormente, baseava-se no regime das
corporações diluiu-se cada vez mais, até assumir uma feição puramente
188Os Ordinamenti di giustizia, de 1293, constituem-se nos fundamentos jurídicos dessa cidade-estado. TENENTI. Op, cit., p.24. 189De acordo com sua constituição, Florença reconhecia como seus cidadãos os empresários, os negociantes e os artífices – todos organizados em associações corporativas; a estes vieram juntar-se, em função do próprio desenvolvimento econômico da cidade, os banqueiros. Estavam excluídos do direito de cidadania os membros da nobreza e parte significativa dos assalariados. Idem, p. 24. 190Idem, p.26.
86
simbólica, ao mesmo tempo em que seus membros não mais se distinguiam da
nobreza. O século XIV assistira aos enfrentamentos entre as camadas
inferiores da sociedade e sua elite, à qual se aliaram a média e a pequena
burguesias da cidade, em função das demandas dos assalariados e pequenos
artesãos empobrecidos por representação no governo da cidade. As elites
florentinas191
Antes mesmo de seu triunfo político na cidade, mas
sobretudo logo depois, os burgueses florentinos
pretendiam desenvolver-se, conceder-se todo brilho
social ao qual aspiravam. (...) agora os chefes das
empresas mercantis viajavam muito menos depois de
uma certa idade; eles se consagram inteiramente à
função diretiva de seus afazeres: têm, também, tempo
disponível para leituras ou para discussões eruditas. Eles
têm, de tal forma, desejo, de procurar repouso e prazeres
que se põem a edificar magníficas residências de campo,
antes mesmo de ter reconstruído suas casas citadinas,
de maneira mais confortável. Uma das primeiras grandes
casas de campo desse tipo, a de Antônio Alberti,
construída em 1385, trazia o nome significativo de
Paradiso. O amor à natureza, aos objetos de arte e à
que, havia algum tempo, vinham se nobilitando, quer pela simples
adoção de hábitos aristocráticos, quer por alianças familiares com a nobreza,
em meados do século XV optaram, decididamente, pela manutenção
intransigente de seus privilégios econômicos e políticos, agora edulcorados
pelo cultivo dos saberes humanista e do gosto refinado pelas novas artes, que
compunham, juntos, o modo de vida cortesão:
191“A simbiose entre a camada feudal e a camada burguesa, tanto quanto entre a propriedade de terras e o comércio, observa-se somente em Florença.” TENENTI. Op. cit., p. 44. No primeiro capítulo de sua sucinta e preciosa Florença na época dos Médici, o professor Tenenti nos oferece uma descrição precisa desse processo de “fusão” entre burguesia e aristocracia em Florença. Para esta tese, basta-nos representar, em rápidas pinceladas, o fenômeno.
87
cultura vão entrar assim em uma nova fase em Florença,
entre o fim do século XIV e o começo do século XV.192
Por volta de 1450, já é possível identificar a presença de
artistas na entourage de poderosas famílias florentinas, que representavam,
tanto “na intimidade” quanto em cenas cuidadosamente elaboradas, de modo a
produzir o desejado efeito de auto-glorificação, seus generosos patronos. Caso
exemplar desse último modo de representação dos poderosos, encontramos no
majestoso Palazzo Médici Riccardi, antiga residência citadina dos Médici, onde
Benozzo Gozzoli cobriu as paredes de sua capela com uma impactante
Jornada dos Magos a Belém, na qual Cosme, Pedro e Lourenço de Médici
cavalgam triunfalmente caracterizados como os Reis Magos. O entrecho bíblico
é desenvolvido como uma verdadeira féerie de ornatos, atavios, trajes
preciosos, num “mundo fantástico de charme e alegria”.
193
192Idem, pp. 58-59. 193GOMBRICH. A história da arte, p. 256. A chamada “Idade de Ouro” das letras e das artes, em Florença, cujo momento inaugural talvez se expresse nesse fresco de Gozzoli, foi uma criação de Vasari. Educado na tradição humanista, bastante influenciado pelas idéias de Alberti, Vasari cunhou, no século XVI, o termo Arti del disegno, que não apenas serviu de tema subjacente na elaboração de suas famosas biografias dos artistas italianos, como, também, tornou-se, por muito tempo, uma espécie de conceito básico para os críticos de arte. À influência Vasari se deve, ainda, a decisão dos artistas florentinos de fundar, em 1563, a Accademia del Disegno – centro de formação em disciplinas científicas, como a geometria e a anatomia, indispensáveis à prática das, agora, nobres artes visuais. Ao autor das Vidas pode-se atribuir, ainda, o acréscimo de mais um traço à imagem do artista – elemento também fundamental na construção futura da Idéia de Arte –, qual seja, a do que pratica uma ciência douta e aristocrática.
Nesse fresco, temos
um dos mais vívidos testemunhos de o quanto esse novo sujeito, o artista
renascentista, procura provar quão imprescindível ele é na elaboração de toda
uma mitologia do poder e de seus privilegiados detentores. E talvez mais: o
quanto um conjunto de conhecimentos altamente especializados,
consubstanciado à perfeita habilidade técnica, implica a máxima valorização de
um ideal aristocrático de humanidade, típico daquela época, e que serviria de
paradigma para todo um processo civilizacional. O homem que Alberti exalta
não é qualquer homem, mas o especialmente dotado para a competição severa
88
e brutal. Portanto, nada mais apropriado para uma cidade governada por
oligarcas do que um humanismo inspirado nas tradições republicanas romanas,
segundo as quais somente os aristocratas, os mais ricos, os mais cultivados e
os mais enérgicos estavam habilitados ao exercício do poder.194 E como era
comum, entre os antigos patrícios romanos, o cultivo ocioso das artes liberais
como forma de afirmação de sua singularidade, em Florença o conhecimento
das letras e o patrocínio interessado das artes tornaram-se credenciais
indispensáveis à admissão nos círculos superiores da cidade e condição sine
qua non para o reconhecimento do indivíduo e sua família como membros
legítimos da elite.195
Uma última evidência do protagonismo dos intelectuais
humanistas no processo de assimilação das três artes mecânicas às artes
liberais nos é fornecida por fonte insuspeita. Gombrich, em seu ensaio “A
concepção renascentista de progresso artístico e suas conseqüências”,
3.3. O século da decantação
196
194“O humanismo deve ser considerado a justo título como a cultura do tempo dos oligarcas.” TENENTI. Op. cit., p. 101. 195A cidade Florença, apesar de ser umas das cidades mais ricas da Europa, naquela época, não tinha uma universidade. Muitos de seus humanistas realizaram seus estudos acadêmicos em outras cidades, como Bolonha. Contudo, a visão dominante, entre a elite da cidade, de que os saberes, especialmente os herdados da Antigüidade clássica, constituíam tanto um privilégio quanto uma forma de distinção, próprios aos detentores da riqueza, conduziu à expansão dos estudos clássicos, às traduções para o latim de autores gregos, à constituição de bibliotecas particulares e, o mais importante, à iniciativa de estimular o ensino da língua e da filosofia gregas. O platonismo cultivado pelos humanistas florentinos, além de representar uma tentativa de solução de compromisso entre o desprezo pelo catolicismo popular, fortemente incentivado pela Igreja, e o ideal uma religiosidade intelectualizada, mais de acordo com a ética individualista e epicurista da elite, reforçou, na mesma elite, a percepção de que o cultivo dos saberes e das artes era um natural apanágio da vida cortesã. 196GOMBRICH, E. H. “A concepção renascentista de progresso artístico e suas conseqüências.” In: Norma e Forma. Estudos sobre a arte da Renascença. 1ª ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., junho de 1990, pp. 1-14.
trata
da interessante questão histórica da idéia de progresso como motivo do qual
89
resulta “uma nova estrutura institucional para a arte”,197isto é, da transição da
pintura, da escultura e arquitetura da condição de ofícios mecânicos para a de
artes liberais. O estudioso de Warburg inicia sua exposição com uma breve
análise de uma epístola do humanista florentino Alamanno Rinuccini, escrita
em maio de 1473, dirigida a Federigo de Montefeltre, e que serviu de prefácio a
uma tradução, do grego para o latim, da Vida de Apolônio, de Filostrato. Sua
descrição, ainda que sumária, dessa carta, mostra-se duplamente importante
para o desenvolvimento deste ensaio porque ilustra o modo como um
humanista típico, formado sob o sistema dos studia humanitatis, trata das artes
visuais198
Gombrich reconhece que, na Idade Média, “o artista era
realmente um artesão (...), um comerciante que fazia pinturas e esculturas por
encomenda”,
e, o mais importante, é um exemplo significativo – e não fosse assim,
Gombrich não o tomaria como pretexto para a sua própria reflexão – da
contribuição dos humanistas na elaboração de uma nova percepção do que
sejam as artes visuais, àquela época, sem que disso se possa inferir a
existência de qualquer teoria sistemática da arte, no período em questão.
199
197“O que desejo enfatizar é que, muito além de qualquer efeito psicológico, a idéia de progresso resultou no que poderíamos chamar de uma nova estrutura institucional para arte.” GOMBRICH. Op. cit., p. 4. 198O fragmento em latim da carta de Rinuccini está no Apêndice de Norma e forma. Nele, Gombrich procede ao seu exame, destacando a apropriação de termos e estratégias textuais, típicos da retórica, utilizados pelo humanista. Gombrich também observa que o “argumento geral [da carta] foi extraído da introdução a Della pittura, de Alberti (...).” GOMBRICH. Op. cit., pp 203-205. “A retórica não marcou apenas a tradição e a produção literárias. No Quattrocento florentino, L. B. Alberti aconselhou os pintores a familiarizarem-se com os ‘poetas e retóricos’, porque estes podiam inspirá-los para a invenção (inventio!) e criação de temas plásticos.” CURTIUS. Op. cit., p. 80. Os humanistas utilizaram largamente a Retórica e a Poética em sua defesa das três artes mecânicas, comparando-as às outras artes liberais. No momento em que, nos círculos intelectuais florentinos, já se admitia que a pintura, a escultura e a arquitetura eram formas de conhecimento tão nobres quanto as demais artes liberais, iniciou-se um outro debate. Qual dentre as três seria superior? Mais uma vez, recorreu-se à comparação com a poesia e à utilização de argumentos extraídos à Ars poetica, de Horácio. Seu famoso Ut pictura poesis foi invocado e lido de modo a garantir à pintura o primado entre as artes visuais. De qualquer modo, a comparação entre a pintura e a poesia serviu, também, para emancipar as três artes visuais do indesejado convívio com os antigos ofícios artesanais. KRISTELLER. The Modern System of the Arts, p. 515.
e o valor artístico de uma peça dependia de seu acabamento
199GOMBRICH, E. H. “A concepção renascentista de progresso artístico e suas conseqüências.” In: Norma e forma. Estudos sobre a arte da Renascença. 1ª ed. brasileira. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1990, pp. 4-5. A citação completa é: “Na Idade Média, como sempre nos lembram os historiadores sociais, o artista era realmente um artesão, ou melhor – já que essa palavra adquiriu um
90
artesanal. E mesmo durante o Renascimento, quando a visão sobre a prática
artesanal passa incorporar certa concepção de progresso, expressa na máxima
de Leonardo da Vinci, segundo a qual “É desprezível o discípulo que não
supera o seu mestre”:200
A idéia de progresso introduz um elemento inteiramente
novo. Ora, de um ponto de vista epigramático, o artista
tinha que pensar não apenas em sua comissão, mas
também em sua missão. Essa missão consistia em
ampliar a glória da época por meio do progresso
artístico.
201
E para Gombrich, o modelo dessa mudança de perspectiva
é Ghiberti, o autor tanto da primeira quanto da segunda porta do famoso
Batistério de Florença. O grande artífice realizou, no caso da segunda porta,
“uma imensa revolução”, ao adotar em sua composição o método de
representar os homens “não como são, mas como parecem ser”
202–, e isso
significou trabalhar como um cientista, ou seja, conceber o processo de
representação como colocação de problemas que exigem soluções.203
certo brilho romântico – , um comerciante que fazia pinturas e esculturas por encomenda, e cujos padrões eram aqueles das organizações comerciais a que pertencia, da guilda.” A reprodução integral da citação de Gombrich é importante na medida em que se trata do reconhecimento, ainda que implícito, por parte de um legítimo representante de Warburg, de que a Idéia de Arte é uma construção posterior e não uma realidade objetiva, à época do Renascimento. É verdade que nos séculos XV e XVI determinadas atividades artesanais, como a pintura, a escultura e a arquitetura, passaram por um processo de profunda transformação, tanto no diz respeito à sua prática quanto no tipo de percepção de seu significado e importância, para certos segmentos sociais. Mas, ao contrário do que acreditam, e nos fazem acreditar, os críticos ou os historiadores da arte, não havia teoria da arte, ou teoria estética, naquele período. A valorização, por sinal merecida, de produções culturais de outras épocas, infelizmente, tem obnubilado processos e trajetórias históricas que deveriam ser examinados sob outras luzes, desmistificadoras. Se isso vier a ocorrer, talvez obtenhamos não só mais conhecimento sobre nossa tradição cultural, como também possamos nos aproximar da idéia de seu real sentido para nossas vidas. 200Apud GOMBRICH. Idem, p. 4. 201Idem, p. 5. 202Idem, p. 9. 203Idem, p. 10.
Mas,
curiosamente, Ghiberti não chegou a perceber o significado, para o seu ofício,
de sua mudança de método. E se, na visão do mestre, o que seria “um divisor
de águas entre dois mundos”, continuava a ser uma peça de ourivesaria, para
91
o pesquisador de Warburg, a segunda porta do Batistério é a expressão da
vanguarda e do progresso artístico, abrindo “um abismo crescente entre a
busca intelectual da arte e a ‘arte aplicada’ do artesão”. 204
A arte que, até o Renascimento, como bom acólito da
Igreja, dirigia-se a todos os fiéis, tanto os mais humildes
quanto os mais letrados, liberta-se e torna-se, na
concepção dos doutores leigos, o privilégio de uma elite.
A idéia de um deleite reservado, de um gozo
aristocrático, integra a concepção do humanismo.
Humanismo não significa “que se dirige a toda
humanidade”, mas “que modela o homem perfeito”.
Quando a liderança cultural européia passou da Itália para a
França, no século XVII, junto com ela passaram também traços e tendências
característicos do Renascimento italiano, transformados em muitos e
significativos aspectos:
205
Colhida no livro de ensaios A literatura francesa e a pintura,
de Celina Maria Moreira de Mello
206
204Idem, pp. 10-11. 205HAUTECOEUR, Louis. Littérature et peinture em France du XVIIe au XXe. Paris: Armand Colin, 1963, p. 9. Apud MELLO, Celina Maria Moreira de. A literatura francesa e a pintura – ensaios críticos. Rio de Janeiro: 7Letras; Faculdade de Letras/UFRJ, 2004, p. 30. 206MELLO. Op, cit., especialmente o capítulo “O modelo literário humanista e a legitimação do pintor artista na França do século XVII”.
, a citação acima ilustra, apropriadamente,
a importância dos humanistas, no processo de constituição desse novo campo
de atividade humana intitulado arte. A vertente francesa dessa trajetória mostra
como interesses de ordem política (a percepção do papel da representação
gloriosa ou triunfante do poder, como forma de sua afirmação), econômico-
institucional (a tentativa de fuga ao controle exercido pelas corporações de
ofício tanto sobre os ganhos quanto sobre as regras no exercício da
representação plástica) e social (o empenho na formulação de uma identidade
própria, distinta e elitizada, em relação à do mestre artesão) compuseram uma
92
constelação, na qual fulguraram lado a lado, pelo menos até o final do século
XVIII, dois sistemas: o do mestre artesão e o do artista criador. É nesse
contexto que devemos situar a interpretação dos humanistas do que tenha
significado a tradição clássica, para a construção da identidade do artista. A
argumentação de Martin Charmois, em carta de 1648, endereçada ao rei e ao
Conselho de Ministros de França, na qual solicita a fundação da Real
Academia de Pintura e Escultura, não deixa dúvida quanto ao papel das
“descobertas” humanistas sobre a importância da arte e do artista na
antiguidade:
[...] eles [os acadêmicos] recorrem ao poder soberano
para serem recolocados em seu lustre, assim como
estavam no tempo de Alexandre em A academia de
Atenas, onde todos sabem que eles ocupavam o primeiro
lugar entre as outras artes liberais: e como Vossa
Majestade começou desde sua infância a produzir ações
mais maravilhosas que este Príncipe fez no vigor de sua
juventude, eles têm o direito de esperar serem libertos
dessa opressão, uma vez que é uma obra digna de
Vossa Majestade, e farão glória de suas perseguições
passadas devendo a sua liberdade à mão de um príncipe,
cujo nascimento e cujas perfeições em uma idade tão
tenra provocam admiração em todo o universo.207
Mas justamente aqui, começamos a vislumbrar dois
momentos bastante distintos no percurso de construção da idéia de arte, no
ocidente. Observo, primeiramente, uma certa precipitação em Gombrich ao
identificar uma noção de progresso, no Renascimento, como fundamento de
“uma nova estrutura institucional para arte”. Por outro lado, é preciso ressaltar
que o século XVII francês implicou, na verdade, uma relativa ascensão das
207HEINICH, Nathalie. Du peintre à l’artiste; artisans et académiciens à l’âge classique. Paris: Minuit, 1993, 233. Apud MELLO. Op.cit., p. 27.
93
artes visuais, por força de políticas governamentais. Quando Colbert dirigia a
vida econômica francesa, pensou-se na unificação de todas as academias
numa única instituição que englobasse, sem distinções aparentes, tanto as
ciências quanto as artes. O Estado absolutista francês, especialmente no
período colbertista, foi pródigo na criação de academias, o que podemos
entender como indicativo de seu reconhecimento da importância de um sistema
cultural e profissional francês. Mas a simples criação de academias não
significou, de fato, uma verdadeira mudança de concepção das atividades
contempladas com tais instituições:
The Académie Française was organized in 1635 by
Richelieu for the cultivation of the French language,
poetry, and literature after the model of the Accademia
della Crusca. Several years later, in 1648, the Académie
Royale de Peinture et de Sculpture was founded under
Mazarin after the model of the Accademia di S. Luca in
Rome, and tended to detach French artists from the
artisans’ guilds to which they had previously belonged.
Many more Academies were founded by Colbert between
1660 and 1680. They included provincial academies of
painting and sculpture, the French Academy in Rome,
dedicated to the three visual arts, as well as Academies of
Architeture, of Music, and of the Dance. However, the
system of the arts that would seem to underly these
foundations is more apparent than real.208
Paralelamente a essa profusão de academias, desenvolveu-
se uma intensa atividade literária voltada para as artes visuais, com as já
208“A Académie Française foi organizada por Richelieu, em 1635, para o cultivo da língua, da poesia e da literatura francesas, segundo o modelo da Accademia della Crusca. Vários anos depois, em 1648, sob a regência de Mazarino, fundou-se a Académie Royale de Peinture et de Sculpture, de acordo com o modelo da Accademia di S. Luca, em Roma, com o objetivo de separar os artistas franceses das guildas de artesãos, às quais aqueles pertenciam anteriormente. Muitas outras academias foram fundadas por Colbert, entre 1660 e 1680. Entre elas incluíam-se academias provinciais de pintura e escultura, a Academia Francesa, em Roma, dedicada às três artes visuais, bem como as Academias de Arquitetura, de Música e de Dança. Contudo, o sistema das artes, que parecia subjacente a tais fundações, é mais aparente do que real.” Kristeller. Op. cit., pp. 522-523. (Tradução minha.)
94
tradicionais alusões a Horácio e seu Ut pictura poesis, traduzido de forma a
favorecer as pretensões dos pintores à paridade com a poesia e a literatura.209
Nesse período, começa-se a usar, na Academie de Peinture e Sculpture, o
termo beaux-arts não apenas para as artes visuais, mas também para a música
e a poesia.210Mas o século XVII francês, e apesar de toda a herança
humanista, não adotou o arrebatamento individualista típico da Renascença.
Ao contrário, nele expressou-se como nunca a busca por unidade e ordem – a
unidade emanada da razão e a ordem como expressão máxima do Estado
absolutista.211 As grandes inteligências da época esposaram uma concepção
mecanicista do mundo, no qual doravante não haveria mais lugar para a
espontaneidade. Os filósofos buscavam detectar no mundo os signos da
universalidade, cuja linguagem era a das matemáticas e sua aprendizagem, a
experimentação. As antigas formas de expressão literária, revividas pelos
humanistas – os discursos, os ensaios, as meditações, conversações ou
diálogos –, tornaram-se as favoritas dos pensadores do século XVII, para a
comunicação ou intercâmbio de idéias.212
209“A doutrina renascentista e clássica do Ut pictura poesis, no paralelo entre artes da imagem e artes da linguagem, fazia do literário o referente do pictórico, o que na verdade inverte o sentido do verso de Horácio – “Ut pictura poesis erit” : o poema é como um quadro.” MELLO. Op. cit., nota 11, p. 44. 210Poussin, o pintor emblemático da época, tentou aplicar a teoria grega dos modos musicais à poesia e, especialmente, à pintura. KRISTELLER. Op. cit., p. 524. “Belas-artes (beaux-arts) será uma expressão registrada em 1752, um século depois da fundação da Academia, formada a partir de seu modelo, o sintagma Belas-letras (belles lettres). MELLO. Op. cit., p. 30. 211O século XVII marca o efetivo triunfo do absolutismo na Europa. Não discutirei aqui os principais aspectos desse sistema. Contento-me em reproduzir a esclarecedora observação sobre esse regime, dada por Perry Anderson, em seu brilhante estudo Linhagens do Estado absolutista: “Imensamente ampliado e reorganizado, o Estado feudal absolutista era, no entanto, contínua e profundamente sobredeterminado pela expansão do capitalismo no seio das formações sociais compósitas do período moderno inicial. Tais formações eram, naturalmente, uma combinação de diferentes modos de produção sob a dominância – em declínio – de um deles: o feudalismo. Todas as estruturas do Estado absolutista revelam, portanto, a influência à distância da nova economia, em ação no quadro de um sistema mais antigo: proliferavam as ‘capitalizações’ híbridas de formas feudais, cuja própria perversão das instituições futuras (exército, burocracia, diplomacia, comércio) constituía uma apropriação de objetos sociais passados para reproduzi-los.” ANDERSON. Op. cit., p. 39. 212“Não queria Descartes que se lessem, de início, seus Princípios, como se lê romance? Bacon, grande admirador de Maquiavel, escreveu, como Montaigne, Ensaios, em que aplicou toda sua experiência de cortesão e homem do mundo.” BRÉHIER. Op. cit., p. 22.
Mas do humanismo nada mais se
adotou. O tempo agora era outro. Com a ascensão das ciências naturais,
95
notadamente, a partir das pesquisas de Galileu e Descartes, implementam-se,
nas academias, os estudos de filosofia, física, geometria, anatomia,
astronomia, mecânica, magnetismo, entre outros, numa perspectiva
completamente diferente – a da experimentação:
Nada no passado se assemelha a esse esforço coletivo,
contínuo, tenaz, por uma verdade de ordem universal e,
portanto, humana. Os trinta anos que decorreram de
1620 a 1650 são decisivos para a história desse
movimento. Bacon lança o Novum organum (1620) e o
De dignitate et augmentis scientiarum (1623); Galileu
escreve o Diálogo (1632) e os Discorsi (1638); Descartes
publica o Discours de la méthode (1637), as Méditations
(1641) e os Príncipes (1644); a filosofia do direito e a
filosofia política tornam-se os objetivos dos trabalhos de
Grócio (De jure belli ac pacis, 1623) e de Hobbes (De
cive, 1642). Todos esses trabalhos indicam que a era do
humanismo do Renascimento, que sempre confundiu, em
maior ou menor grau, a erudição com a filosofia, está
definitivamente encerrada. E inicia-se um racionalismo,
que tem por tarefa considerar a razão humana, não em
sua origem divina, mas em sua atividade efetiva.213
Esse novo espírito incendiou tanto a imaginação dos que
freqüentavam as academias quanto as penas dos literatos. A famosa querela
entre antigos e modernos, instaurada no último quartel do século XVII,
motivada, em boa parte, pelas recentes descobertas nas ciências naturais,
significou o nascimento de uma nova percepção tanto das ciências quanto das
artes. Em primeiro lugar, pelo ensaio de uma classificação mais específica do
conhecimento e da cultura, abrindo caminho para a futura noção de progresso.
Em segundo lugar, e em estrita conexão com essa classificação, a
diferenciação entre os saberes que dependiam das matemáticas e da
213BRÉHIER. Op. cit., p.23.
96
acumulação de conhecimentos e aqueles, que se realizavam apenas pelo
talento individual e se legitimavam pelo gosto dos críticos. Apesar de a
controvérsia não ter podido estabelecer objetivamente os méritos específicos
quer de antigos quer de modernos, estava pavimentado, pela primeira vez no
ocidente, o caminho que conduziria a uma distinção clara entre ciência e arte.
Tal distinção pressuporia a noção de que as ciências progrediam, o que já
existia no horizonte do século XVII, e pela simples comparação dos avanços
conquistados recentemente com o que a tradição deixara.214 Mas no que se
referia às artes, tal noção de progresso não podia ser aplicada.215
214De acordo com Kristeller, Fontenelle, em sua Digression sur les Anciens e les Modernes, admite que os antigos são superiores na poesia e na eloqüência, mas que os modernos os excedem na física, na medicina e nas matemáticas. O mais interessante na argumentação de Fontenelle estaria na sua ênfase no método cartesiano, como base para os avanços nas ciências. KRISTELLER. Op. cit.., p. 526. 215Em seu poema, Le Siècle de Louis le Grand, origem da controvérsia, Charles Perrault afirma que, na poesia e na eloqüência, tudo é questão de talento e gosto; diferentemente do que acontece nas ciências que dependem da mensuração, nas quais se pode identificar o progresso. Idem, p. 527.
Em suma, já
no final do século XVII, identificamos um sistema das belas-artes, diferente do
das artes liberais, constituído pela eloqüência, poesia, música, arquitetura,
pintura, escultura, ótica e mecânica. Esse é o sistema que, com exceção da
ótica e da mecânica, dará origem ao moderno sistema das artes, vigente ate
hoje. A presença estranha, nessa classificação, de disciplinas que compõem a
física moderna deve-se à persistente flutuação de critérios para a distinção
entre ciências e artes. Não havia acordo sobre se as artes eram ou não formas
intelectuais de expressão. Aparte isso, era comum a utilização, por pintores e
arquitetos da época, em suas realizações, de conhecimentos advindos de
disciplinas científicas. Mas, do ponto de vista desta tese, o que melhor explica
tal confusão é a inexistência de uma teoria estética que formulasse a idéia de
que tais artes, para além de expressões do gosto e dos interesses elegantes
dos aristocratas, seriam formas específicas e especiais de conhecimento. De
97
qualquer modo, a decantação já ia fase avançada. Faltava apenas a
transmutação.
Finalmente, retomo minha observação sobre a precipitação
de Gombrich quanto à noção de progresso no Renascimento, e justamente
pelo exemplo de Ghiberti. É fato que, no Renascimento italiano bem como na
França do século XVII, as interpretações humanistas dos textos antigos dão
sustentação tanto a uma nova concepção do ofício quanto à idéia de uma
identidade singular de seu praticante. A diferença está em que, no caso
francês, essa nova identidade é reivindicada, primeiramente, a partir do
pressuposto da íntima relação do fazer artístico com a representação das
glórias do poder. O artista é especial por ser aquele que detém o conhecimento
adequado à perfeita representação do poder; afinal, ninguém é mais capaz do
que ele para eternizar, com seu talento, as “ações mais maravilhosas” do
Príncipe. Já no caso dos mestres italianos, cujo modelo seria Ghiberti, a
identidade singular do artista fundamenta-se na posse exclusiva de um saber
que, doravante, informa sua produção, distingue-a da do artesão, tornando-a
objeto de justa apreciação tão-somente por aqueles que detenham saber
semelhante – mas tudo isso ainda no interior do antigo sistema das artes.
Portanto, não vejo muita consistência na afirmação do grande historiador da
arte de que o artista, Ghiberti, por exemplo, “trabalha como um cientista”.
Concordo que “suas obras existem não apenas por existirem, mas também
para demonstrarem certas soluções de problemas.”216
216GOMBRICH. Op. cit., p. 10.
O que não quer dizer
que foram concebidas dentro de um espírito científico. Em Ghiberti, como nos
outros grandes mestres do Renascimento, inclusive em Da Vinci, havia, sim,
erudição e mesmo observação, mas não método científico. Sabemos que a
98
noção de método científico implica necessariamente uma idéia precisa de
razão, aplicada à solução de problemas – e isso é uma invenção de Descartes.
A noção de razão dominante no Renascimento, herdada da Antigüidade,
limitava-se exclusivamente à definição de conceitos. O que os mestres
renascentistas faziam era aplicar os conhecimentos da tradição clássica para
realizar o ideal de perfeição no que faziam. A perfeição, sem a preocupação
com o novo. Ou se se preferir: o novo era tão-somente a perfeição.
A essas diferenças de concepção, matizes no processo de
criação da identidade do artista, soma-se um conjunto de outros traços que,
freqüentemente mitificadores da prática artística e de seu agente, aparecerão
transfigurados em princípios teóricos tanto nas formulações estéticas, em torno
do que seja a arte e seu significado, quanto nas manifestações em defesa da
especificidade do lugar do artista na sociedade. Mas isso, só a partir do século
XVIII. E no limite do processo de construção da identidade desse criador
simbólico privilegiado – o artista –, a figura do artista-gênio217
217Cósimo, o grande patriarca dos Médici, ciente do imenso prestígio que o patronato do saber lhe conferia entre seus pares, e isso no momento em que sua casa começava a exercer o controle político, quase que absoluto, sobre toda Florença, confiou a Marsílio Ficino a missão de traduzir as obras de Platão. Em troca, deu-lhe a casa de campo em Careggi, onde Ficino teria fundado sua academia platônica. É nesse cenáculo, local de reunião de humanistas, amigos e artistas ligados aos Médici, à época esplendorosa do neto de Cósimo, Lourenço, o Magnífico, onde se configura o próprio mito de uma Idade de Ouro para as letras e as artes florentinas, e onde, à luz da concepção platônica da loucura divina do poeta, loucura essa que logo se estendeu aos pintores, escultores e arquitetos, teriam sido lançadas as sementes do que, séculos depois, viria a ser a idéia de gênio-criador – núcleo da subjetividade do artista.
brotará como um
rio caudaloso, cujos afluentes, nele misturados, comporão outras tantas
possibilidades de aproximação e apreensão desse sujeito que, como Proteu,
surpreende-nos a cada instante com um novo gesto de auto-recriação.
Originário das lucubrações humanistas, muitas vezes equivocadas, sobre os
clássicos da Antigüidade, esse sujeito compósito trilhará, quer na Itália, quer na
França, um longo percurso até a plena formação de sua identidade. Na Itália, a
99
arte, compreendida como síntese de erudição e técnica, tendeu a permanecer
como exercício intelectual, contribuindo assim para a formação da imagem do
artista-criador como indivíduo sempre às voltas quer com os limites de
tolerância do poder quer com a reafirmação da especificidade intelectual de
seu fazer. Na França, a arte, que por força de suas origens, forjou-se sob o
crivo de preceitos rigorosos semelhantes àqueles que regiam o Estado
absolutista e o mundo artificial da aristocracia do Antigo Regime, exibirá
sempre a ambigüidade de seus traços originários. E o artista, aclimatado em
solo francês, constituir-se-á como um sujeito que, sempre a ponto de romper o
pacto ao qual deveu seu nascimento, lançará mão de toda a sua bem-
trabalhada capacidade de invenção para, simultaneamente, negar e
salvaguardar as malditas e amadas relíquias de suas origens.
4. No limiar da Idéia de Arte
O conceito de arte com o qual trabalhamos até hoje, com
todos os matizes que possamos atribuir-lhe em sua formulação, começa a
ganhar contornos mais definidos a partir do século XVIII. Desse período em
diante, identificamos um crescente interesse, da parte de diletantes, escritores
e filósofos, tanto pelas artes visuais quanto pela música e a poesia. Essa
constatação pareceria insignificante se tal interesse não apresentasse uma
importante diferença em relação ao que se pensou e escreveu sobre aquelas
formas de expressão, até o século XVII. A grande realização teórica da
produção literária voltada para as questões estéticas, a partir do Século das
Luzes e durante todo o século XIX, é a progressiva fixação de um sistema das
artes; sistema sustentado por teorias específicas sobre o belo e o gosto. Isso
significa que, doravante, ao mesmo tempo em que se estabelecem conceitos
de arte – que se sintetizam aos poucos numa idéia de arte –, criam-se as
condições para a abertura de um novo horizonte para o conhecimento, para um
tipo de saber que não se confunde com nenhum outro, uma forma original de
busca da verdade, enfim, uma metafísica redentora, mesmo para os céticos de
toda e qualquer metafísica: a da arte.
Assim, o século se inicia em 1715, com o Traité du beau218
218CROCE. Op. cit., p. 236. Os historiadores da estética consideram esse tratado como o mais antigo tratado de estética em língua francesa.
,
do “cartesiano eclético”, J. P. Crousaz, que trata o belo não como algo
agradável ou referenciado ao sentimento, mas como aquilo que se pode julgar
racionalmente, em função de cinco idéias: variedade, unidade, regularidade,
ordem e proporção. Tais características do belo conferiam-lhe estatuto de
101
cidadania no mundo da natureza e da verdade. Como um bom discípulo de
Descartes, apesar do ato heterodoxo de cometer um tratado sobre o belo219,
Crousaz ainda não concebe um sistema das artes e mesmo sua visão do belo
não exclui as ciências matemáticas e as virtudes morais. Já em 1719, editam-
se em Paris as Réflexions critiques sur la poësie et sur la peinture, do abade
Dubos, nas quais, ao lado das comuns analogias entre a pintura e a poesia, a
grande novidade está na defesa do princípio de que o público educado nas
artes é o melhor juiz para decidir sobre o valor de uma pintura ou de uma
poesia. Ao abade Dubos deve-se a popularização da idéia de que a poesia é
uma das belas-artes. Mas o mais interessante em suas reflexões, nas quais
ainda ecoam as vozes em disputa sobre a superioridade de antigos ou
modernos, é a clareza com que diferencia as artes, por dependerem do “gênio”
ou do talento, das ciências, baseadas exclusivamente na acumulação de
conhecimentos.220 Outro cartesiano a tratar do belo, o jesuíta André publicou
seu Traité du Beau, em 1746,221no qual distingue três tipos de belo: o
essencial, o natural e o arbitrário. O belo essencial caracteriza-se pela
regularidade, ordem, proporção e simetria; o natural, que inclui as artes visuais,
depende da luz, da qual derivam as cores; finalmente, o arbitrário é função da
moda e das convenções e não pode jamais entrar em contradição com o
essencial.222
219Croce observa que o pensamento matemático de Descartes excluía a possibilidade de uma “estética da fantasia”. Idem, pp. 235-236. No seu pequeno manual de estética, Denis Huisman tece o seguinte comentário sobre a impossibilidade de uma estética cartesiana: “Não insistamos sobre o pensamento cartesiano, pois Descartes não tem propriamente uma Estética; quanto ao mais, para o estudo da estética de Descartes remetemos o leitor ao artigo de nosso colega Oliver Revault D’Allones publicado na Revue des sciences humaines, Lille, janeiro de 1951. Este autor sustenta a idéia de que Descartes não procurou construir uma estética, não por indiferença ou falta de tempo, mas por lhe ser impossível unir ‘os sentidos e o entendimento, a faculdade de perceber e a faculdade de julgar’, opondo a realidade a esta união ‘a opacidade do homem concreto’.” HUISMAN, Denis. A Estética. Tradução de J. Guinsburg. 2ª ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1961, pp. 29-30. Coleção “Saber Atual”. 220KRISTELLER. Op. cit., (II), p. 19. 221Em Croce, o ano é 1741. Idem, p. 236. 222CROCE. Op. cit., pp. 236-237.
Em que pese o fato de, em sua divisão tripartite do belo, o padre
102
André contemplar o sistema das artes, o foco de sua discussão é moral e, por
isso mesmo, seu conceito de belo totalmente dependente da abordagem
platônico-agostiniana.
Mas não só os herdeiros de Descartes realizaram incursões
no território do belo. Em meio à característica mistura de idéias do século XVIII,
destacam-se algumas que, poderíamos dizer, prepararam o terreno para o
nascimento da idéia de arte. Seus criadores, apesar de, freqüentemente, ainda
fazerem uso das costumeiras fontes clássicas em suas apreciações do
problema da definição do que seriam as artes, frente às diferentes formas de
conhecimento, mostraram-se capazes de originais insights, que em muito
contribuiriam para os futuros sistemas estéticos. É o caso, por exemplo, do
abade Batteux que, em 1746, dá a público o tratado intitulado Les beaux arts
réduit à un même príncipe. O grande mérito dessa obra está na tentativa de
seu autor em apresentar, pela primeira vez, um sistema das belas-artes, ainda
que pela unificação de diferentes regras estabelecidas por tratadistas
anteriores.223Em seu tratado, Batteux conferiu quase que sua forma final ao
moderno sistema das artes, distinguindo-as das antigas artes mecânicas, por
terem como finalidade o prazer224 e a utilidade. Essa nova classificação das
artes baseava-se em boa parte nas poéticas de Horácio e Boileau, bem como
numa adaptação do princípio aristotélico da imitação – “a imitação da bela
natureza”. 225
223CROCE. Op. cit., p. 285. 224Les autres ont pour objet le plaisir... on les appelle les beaux arts par excellence. Tels sont la musique, poésie, la peinture et l’art du geste ou la danse. (“As outras têm por objeto o prazer... são chamadas as belas-artes por excelência. São elas a música, a poesia, a pintura, a escultura e a arte do gesto ou dança.”) A arquitetura e a eloqüência combinariam o prazer com a utilidade. Para o abade, o teatro é uma combinação de todas as artes. Apud KRISTELLER. Op. cit., (II), p. 21. 225Para Kristeller, “a imitação da bela natureza” foi usada, pela primeira vez, por Batteux, como princípio comum a todas as artes. Idem.
De acordo com a leitura feita pelo abade desse princípio, as
artes deveriam selecionar as partes mais belas da natureza de modo a formar
103
um todo que, guardando a aparência de natural, fosse mais perfeito que a
própria natureza.226 Esse tipo de imitação, princípio comum a todas as artes,
teria por finalidade agradar, comover, enternecer, deleitar. Mas em resposta à
dificuldade colocada pela possibilidade de haver uma imitação do
desagradável, Batteux concebe a idéia de que o desagradável também pode
causar prazer, pois que a imitação nunca é tão perfeita quanto a realidade, a
ponto de causar o mesmo horror.227Para Croce, o tratado do abade não passa
de um conjunto pitoresco de contradições.228 Já Kristeller nota que, apesar de
sua problemática teoria da imitação, Batteux foi realmente o primeiro a
estabelecer o sistema de artes que mesmo seus críticos assumiram como
verdadeiro.229 Além disso, os críticos tenderiam a esquecer que, com todos os
seus defeitos, a teoria de Batteux foi a única no período, mesmo construída sob
a aparente autoridade dos antigos, a dar sustentação à nova classificação das
artes.230
Se na visão de Croce, Batteux é apenas um exemplo, dentre
muitos outros, de doutrinador confuso das questões estéticas, no século XVIII;
se o próprio Baumgarten não merece de sua parte mais do que poucos e
pouco lisonjeiros parágrafos – isso se deve, única e exclusivamente a um
nome:
4.1. Giambattista Vico
226CROCE. Idem, p. 285. 227CROCE. Op. cit., p. 286. 228Idem, p. 286. 229 Apesar de criticar Batteux por sua definição e aplicação do princípio de imitação, Diderot, D’Alembert e todos os que escreveram sobre arte na França, na Inglaterra e mesmo na Alemanha incorporaram seu sistema das belas-artes. A única modificação relevante no sistema de Batteux foi efetuada por D’Alembert, que, na Enciclopédia, incluiu a arquitetura também como arte imitativa. KRISTELLER. Op. cit. (II), pp. 21-24. 230KRISTELLER. Op. cit., (II), p. 21.
104
El revolucionario que, dejando a un lado el concepto de lo
verosímil y entendiendo de modo nuevo la fantasía,
penetró en la verdadera índole de la poesía e de la arte, y
descubrió, por decirlo así, la ciencia estética, fue el
italiano Juan Bautista Vico.231
De acordo com a “hagiografia” de Vico, composta por Croce,
a primeira Scienza nuova
232 foi publicada em Nápoles, em 1725, “diez años
antes que se publicara en Alemania el primer opúsculo de Baumgarten”233.
Nessa obra, o pensador resolveria o problema colocado por Platão, abordado,
sem solução, por Aristóteles e repetidamente discutido desde o Renascimento,
qual seja: o de se a poesia234 seria algo racional ou irracional, espiritual ou
mera expressão de instintos; e no caso de ser espiritual, se seria dotada de
qualidade própria e em que se distinguiria da história e da ciência.235Platão
teria confinado a poesia na “parte vil del alma, entre los espíritus animales”.236
231“O revolucionário que, pondo de lado o conceito de verossimilhança e entendendo de modo novo a fantasia, penetrou na verdadeira índole da poesia e da arte, e descobriu, por assim dizer, a ciência da estética, foi Giambattista Vico.” CROCE. Op. cit., p. 250. A estética de Croce é, em substância, inspirada na Ciência Nova, de Vico. 232Segundo Alfredo Bosi: “Em 1725 surgiu a primeira edição de sua obra maior, Ciência Nova, que seria reescrita diversas vezes, dando lugar a edições diferentes, em 1730 (conhecida como Segunda Ciência Nova) e em 1774.” VICO, Giambattista. Princípios de (uma) ciência nova: acerca da natureza comum das nações. Seleção, tradução e notas do Prof. Dr. Antonio Lázaro de Almeida Prado. Consultoria de Alfredo Bosi. 3ª. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. IX. (Os Pensadores) 233CROCE. Idem, p. 250. 234Para Vico, linguagem e poesia são substancialmente a mesma coisa. 235Idem, pp. 250-251. 236Idem.
Vico, que concebia a história como sucessão de formas espirituais, teria
transformado essa condição de espíritos animais num traço característico de
um período da história humana; período a que corresponderia uma forma ou
grau de conhecimento, conforme aparece explicado nos Elementos 53, do
“Estabelecimento dos Princípios”, Livro Primeiro, da Ciência Nova:
Os homens primeiramente sentem sem se aperceberem,
a seguir apercebem-se com o espírito perturbado e
comovido, e, finalmente, com mente pura.
105
Esse aforismo é o princípio das sentenças poéticas, que
são formadas com sentidos de paixões e de afetos,
diferentemente das sentenças filosóficas, que se
constituem pela reflexão e mediante raciocínios. Por isso,
essas marcham vigorosamente para a verdade, quanto
mais se alçam para os universais; e, aquelas, tanto mais
acertadas resultam quanto mais e apropriam dos
particulares.237
A poesia corresponderia a um grau de conhecimento, o da
fantasia
238, de “pleno de valor positivo”,239 por refletir um estado de espírito
“perturbado e comovido”. Nessa medida, os poetas, que à diferença dos
filósofos, são o sentido do gênero humano,240não nasceriam nas épocas de
reflexão, mas nas de imaginação, denominadas comumente de barbárie; e os
que quiseram encontrar no pai da poesia grega, Homero, a sabedoria
filosófica, confundiram o que vem depois com o que vem antes, porque os
séculos dos poetas precederiam os dos filósofos. E isso significa que a locução
poética, as fábulas ou os universais fantásticos foram concebidos antes que os
universais racionais, filosóficos.241E a correção de Platão prosseguiria com a
afirmação de Vico de que, se em épocas de reflexão, alguém poetisa é por ter-
se tornado menino, pensando não com a inteligência, mas com a fantasia,
submerso no particular. Pois quando o poeta enuncia idéias filosóficas, na
verdade as está tratando tão-somente como se as visse numa praça ou num
teatro.242
237VICO. Op. cit., p. 46. 238“Tanto mais robusta a fantasia, quanto mais débil o raciocínio.” VICO. Idem, p. 41. 239CROCE. Idem. 240Em contrapartida, os filósofos seriam o intelecto. Idem, p. 252. 241Idem, p. 252. 242Idem, p. 253.
106
A exposição de Croce sobre Vico continua. Mas, dessa vez,
o filósofo napolitano parece corrigir Aristóteles, em função da linha divisória
entre arte e ciência, fantasia e intelecto:
Y con mano casi tan firme se traza la división entre
poesía e historia. Vico, sin referirse al pasaje aristotélico,
viene implícitamente a explicar por qué no le pareció
jamás a Aristóteles la poesía más filosófica que la
historia, y a refutar, al mismo tiempo, el error de que a la
historia concierne lo particular y a la poesía lo
universal.243
A poesia seria análoga à ciência, por ser, como a última,
ideal. Isso quer dizer que o poeta, ao fabular, confere integralmente o ser a
coisas que não o têm. Por isso, pintores e poetas são muitas vezes chamados
de divinos, “por tal semejanza con Dios creador.”
244E Vico vai mais longe, pois,
ao criticar aqueles que acusam os poetas de exporem o que é falso, afirma que
as grandes fábulas seriam verdades que mais se aproximam da verdade ideal,
a verdade eterna de Deus. Por isso, seriam elas incomparavelmente mais
corretas que as verdades dos historiadores, pois esses as condicionam ao
capricho, à necessidade ou ao acaso.245
243“E com mão quase tão firme traça a divisão entre poesia e história. Vico, sem se referir à passagem aristotélica, explica implicitamente o porquê de jamais haver parecido a Aristóteles fosse a poesia mais filosófica que a história, ao mesmo tempo em que refuta o erro de que à história concerne o particular e à poesia, o universal.” Idem, p. 253. 244Apud CROCE. Idem, p. 254. “Divino” é o último e mais elevado traço na composição da identidade do artista, antes da popularização do conceito de gênio, pelos filósofos idealistas alemães, para designar o artista-criador. Platão utilizou, no Fedro, o sintagma “loucura divina”, para designar o estado do poeta no exercício de seu ofício – estado comparável ao do amante e do profeta religioso. Platão também fez uso do mesmo sintagma, sempre aplicado ao poeta, mas com certa ironia, no Íon e na Apologia. O termo “divino” foi recuperado pelo círculo platônico de Marsílio Ficino e teria sido aplicado, pela primeira vez, ao, também neoplatônico, Michelangelo. KRISTELLER. The Modern System of the Arts (I), pp. 500-501. BLUNT. Op. cit., pp. 81-111. 245CROCE. Idem, p. 254.
Por outro lado, Vico associa a história
à poesia, ao conceber a idéia de que a poesia, como narrativa fabulosa da
verdade dos acontecimentos, teria sido a história primitiva; e Homero, o
primeiro historiador, por narrar o caráter heróico dos gregos, ao cantar suas
107
histórias.246
Croce lamenta que a importância da “nova teoria poética” de
Vico, no conjunto de seu pensamento e mesmo na estrutura da Ciência Nova,
não tenha sido, ainda, devidamente reconhecida, e que o filósofo napolitano
seja considerado, apenas, como “inventor da Filosofia da história”.
Assim, em sua origens, poesia e história não se distinguiriam.
Finalmente, a poesia seria a imagem fantástica, fabulosa, da verdade, ao
passo que caberia à ciência ou à filosofia a verdade inteligível.
247 É claro
que, para Croce, a filosofia da história de Vico é uma realização intelectual
extraordinária; a começar pelo fato de se tratar de uma concepção ideal da
história, isto é, uma concepção que nada tem a ver com a história concreta e
empírica, desenvolvida no tempo, e que, por isso mesmo, “não é história, mas
ciência do ideal, filosofia do espírito”.248O que não quer dizer que, no campo
propriamente da história, Vico não tenha realizado grandes descobrimentos,
confirmados, em boa parte pela crítica moderna.249Mas, para Croce, mais
importante que isso é a doutrina dos momentos ideais do espírito, que
constituem propriamente a estética de Vico. O primeiro desses momentos, que
caracterizam as modificações da mente humana, definido e desenvolvido pelo
filósofo, não é lógico, ético ou econômico, mas “fantástico ou poético”.250
246Idem. 247Idem, p. 260. 248Idem, p. 261. 249São dois os exemplos de grandes descobrimentos de Vico, em história, dados por Croce: os estudos sobre o desenvolvimento da poesia épica helênica e sobre a natureza e gênese dos feudos na Antigüidade e na Idade Média. Idem, p. 261. 250Idem.
E é
justamente ao descobrimento da fantasia criadora que a maior parte da
segunda Ciência Nova se dedica. Nela se deduzem as teorias da linguagem,
da mitologia, da escritura, dos simbolismos, entre outras, a partir dos “novos
108
princípios da poesia”.251A concepção de civilização e mesmo de humanidade,
em Vico, se baseia, portanto, no princípio inaugural da fantasia. Assim, de
acordo com Croce, seria possível dizer que a verdadeira Ciência Nova de Vico
é a Estética.252
Mas até mesmo um grande mestre como Vico não está
imune a “erros”. Dentre as “zonas obscuras e ângulos sombreados”,
identificados por Croce, “entre tantos pontos luminosos”, no pensamento do
filósofo napolitano, a que mais chama atenção, por contradizer tanto o
pensamento estético crociano quanto sua própria defesa da idéia de haver sido
Vico o fundador da estética, é a afirmação do autor da Ciência Nova de que o
fim principal da poesia seria ensinar ao vulgo ignorante a agir virtuosamente.
253
O grande problema na leitura, realizada por Croce, da
Ciência Nova de Vico está em sua tentativa de convertê-la naquilo que ela não
é. A Ciência Nova não é uma obra de estética, mas de história; e o mestre
napolitano não estava preocupado com a arte, mas com a formulação dos
Ora, o próprio Croce defende o princípio de que a poesia como realização
estética é pura forma e, portanto, indiferente a quaisquer abstrações ou
artifícios intelectuais. A poesia reger-se-ia por si mesma, independente de
aparatos filosóficos ou morais. E desde que Vico fixou com clareza “a
peculiaridade teórica da fantasia”, a idéia de uma criação poética pedagógica
constituir-se-ia numa flagrante contradição com seus próprios princípios. Mas o
mesmo Croce vem em socorro do mestre, atribuindo o deslize à sua hipótese
histórica de um período civilizacional inteiramente poético, quando a educação,
a ciência e a moral encontravam-se a cargo dos poetas.
251Idem. 252Idem. 253Idem, p. 262.
109
princípios de um método histórico. A auto-imposição dessa tarefa levou-o a
opor-se à teoria cartesiana do conhecimento, segundo a qual o conhecimento
matemático seria o único verdadeiramente possível, pois teria como critério
idéias claras e distintas. Vico não contesta as matemáticas, mas critica o
critério cartesiano de verdade, qualificando-o de psicológico ou subjetivo, pois,
afinal, a certeza quanto a posse de idéias claras e distintas sobre alguma coisa
não significa que tais idéias sejam verdadeiras. Contra e exigência cartesiana
de verdade, Vico opôs a necessidade de um princípio que nos permitiria
distinguir “aquilo que pode ser conhecido daquilo que não o pode ser.”254 E o
princípio encontrado por Vico, expresso na fórmula verum et factum
convertuntur,255
Segundo este princípio, a natureza só é inteligível por
Deus, mas a matemática é inteligível pelo homem porque
os objetos do pensamento matemático são ficções ou
hipóteses que o matemático construiu. Qualquer
fragmento do pensamento matemático começa por um
fiat [faça-se] (...). É por causa desse ato de vontade que o
matemático cria o triângulo; porque é o seu factum é que
o pode conhecer verdadeiramente. Isto não é, no sentido
vulgar da palavra, ‘idealismo’. A existência do triângulo
não depende de ele ser conhecido: conhecer as coisas
não é criá-las; pelo contrário, nada poder ser conhecido,
a não ser que já não tenha sido criado. E se uma
é o que precisamente fundamenta sua concepção de história.
Assim, não somente as matemáticas, mas a história humana, entendida como
a história da gênese e do desenvolvimento das sociedades humanas e suas
instituições, passa a ser legitimamente objeto do conhecimento humano:
254COLLINGWOOD, R. G. A Idéia de História. Lisboa: Editorial Presença, dezembro de 1972, p. 88. 255“O verdadeiro e o feito se equivalem”, isto é, a idéia de que é possível conhecer verdadeiramente qualquer coisa que, antes, tenha sido criada por aquele que conhece. COLLINGWOOD. Op. cit., p. 89.
110
determinada mente pode ou não conhecer uma dada
coisa, isso depende de como ela foi criada. 256
Desse modo, coloca-se, pela primeira vez, o problema do
conhecimento humano como derivado da capacidade criadora do homem. Isso
significa que o homem conhece tão-somente o que ele cria. Teríamos aí, de
fato, um forte argumento a favor de uma teoria estética em Vico. O problema é
que o ato criador, em Vico, deriva, ele mesmo, de uma vontade – uma vontade
que, em suas origens, não detém o saber sobre o significado transcendente do
ato de criar. Aliás, para o pensador napolitano, o homem em suas origens é
totalmente incapaz de conhecer racionalmente o mundo e suas próprias
criações.
257 Ora, a idéia de arte implica justamente o princípio de que o artista
tem plena consciência do significado transcendental de seu ato, isto é, detém o
conhecimento intelectual de seu fazer, ainda que, no momento da criação, não
possa definir com exatidão o que seja o objeto criado. Além do mais, para Vico,
o que o homem produz só importa na medida em que é por seu intermédio que
se dão a conhecer os diferentes momentos da totalidade histórica; e nesse
caso, os testemunhos “artísticos” que, para ele são exclusivamente as
narrativas poéticas, não passam de fontes para o saber histórico. Vico
defendeu a idéia da existência de períodos históricos que tendem a se repetir
na mesma ordem. Assim, cada período heróico258
256Idem, p. 89. 257“Segundo Vico, a poesia é o modo natural por que o espírito selvagem ou infantil se exprime; a poesia das idades bárbaras ou heróicas, a poesia de Homero ou Dante. À medida que o homem se desenvolve, a razão prevalece sobre a imaginação e a paixão, sendo a poesia desalojada pela prosa. Num ponto intermédio, entre o modo poético ou puramente racional, Vico colocou um terceiro – o modo mítico ou semi-imaginativo. Este é o estádio de desenvolvimento que dá, para toda experiência, uma interpretação religiosa. Dessa maneira, Vico considera a arte, a religião e a filosofia como três modos diferentes de que se serve o espírito humano para exprimir ou formular, para si próprio, a sua experiência.” Idem, p. 104. 257“Vico estava particularmente interessado naquilo a que chamava história dos períodos remotos e obscuros, isto é, na extensão do conhecimento histórico.” Idem, p. 91 258“Vico estava particularmente interessado naquilo a que chamava história dos períodos remotos e obscuros, isto é, na extensão do conhecimento histórico.” Idem, p. 91
seria sucedido por um
clássico, no qual o raciocínio prevaleceria sobre a imaginação, “a prosa sobre a
111
poesia, a indústria sobre a agricultura, e a moral baseada na paz sobre a moral
baseada na guerra.”259De acordo com essa visão, teríamos o período homérico
da história grega, caracterizado, essencialmente, pelo domínio político de uma
aristocracia guerreira, uma economia agrícola, uma literatura de baladas (as
fábulas) e uma moral fundamentada na idéia de coragem e lealdade pessoais.
Tais traços tenderiam a retornar ciclicamente, na Idade Média, alterados e
acrescidos por outros que, tipicamente medievais, permitiriam tanto um estudo
mais rico desse último período quanto do próprio período homérico, “além
daquilo que o próprio Homero pode dizer-nos”.260 Portanto, Vico não estava
interessado naquilo que chamaríamos de criação artística, como forma
específica de conhecimento. Segundo a lição de Collingwood261
É indiscutível que o século XVIII representou um período de
intensa e rica produção intelectual voltada para os temas da arte e do artista.
Se a França nos legou o que Menéndez Pelayo chamou de “estética
, Vico tinha por
objetivo mostrar como o pensamento histórico podia ser tanto construtivo
quanto crítico; mas para tanto, teve de combater a filosofia científica e
metafísica do cartesianismo e propor uma teoria do conhecimento mais ampla,
por que fundada na valorização das ações e das idéias humanas como
expressões de diferentes períodos na longa e inconclusa evolução dos homens
em sociedade.
4.2. O nascimento da Idéia de Arte
259Idem, p. 92. 260“... este movimento cíclico não é um mero rotativismo da história, através dum ciclo de fases fixas. Não é um círculo mas uma espiral, pois a história nunca se repete, atingindo cada nova fase, numa forma diferenciada em relação ao que aconteceu. COLLINGWOOD, R. G. Op. cit., p. 92. 261Idem, p.95.
112
aplicada,”262 isto é, uma crítica literária e artística, os pensadores das ilhas
britânicas263 também contribuíram para o debate em torno da constituição de
um moderno sistema das artes, concebendo-as a partir de um princípio
comum, fosse ele a imitação da natureza ou a imaginação prazerosa264 ou
ainda a associação do belo artístico à beleza moral.265 Mas como bem ensinou
o grande mestre de espanhol, ainda que possamos encontrar na França, na
Inglaterra, na Itália ou mesmo na Espanha,266
262MENÉNDEZ PELAYO, Marcelino. La Estética del Idealismo Alemán. Seleccion y Prólogo de Oswaldo Market. Madrid: Ediciones Rialp, S.A., 1954, p. 54. 263A princípio, bastante influenciados pelos escritores franceses, os ingleses passaram se interessar por outras artes, além da poesia, somente a partir do século XVII. Tal interesse, durante um bom tempo limitado às relações entre poesia e pintura, estendeu-se, ao que parece, pela calorosa recepção da música de Händel, em Londres, às afinidades entre a poesia e a música. KRISTELLER. Op. cit. (II), p. 31. 264O grande defensor do princípio dos prazeres da imaginação, como critério distintivo das artes, foi Joseph Addison. Embora nele a faculdade da imaginação não chegue a definir um sistema das artes, os prazeres por ela provocados seriam comuns à pintura, à jardinagem, à arquitetura, à poesia e à música. Idem, p. 28. A presença da jardinagem entre as artes deve-se, sem dúvida, à tradição européia dos jardins como ambientes apropriados para os lazeres artificiosos e sofisticados da aristocracia. O correspondente contemporâneo da jardinagem como arte seria o paisagismo, expressão da sensibilidade burguesa frente ao mundo natural. 265Shaftesbury, que alguns consideram o fundador da estética moderna, não distinguia a beleza artística da beleza moral. Impregnado de leituras de Platão, Plotino e Cícero, o pensamento estético do conde de Shaftesbury exerceu forte influência no continente europeu do século XVIII. Em seus escritos dedicou-se particularmente aos temas da pintura e da poesia, mas jamais pensou um sistema das artes. Seu autodenominado discípulo, o escocês Francis Hutcheson, modificou sua doutrina estética, separando o belo moral do artístico, mantendo, contudo, a ligação do gosto pela poesia com a sensibilidade moral. Idem, pp. 27-28. 266MENÉNDEZ PELAYO. Op. cit., pp. 53-54.
idéias dispersas ou uma que
outra visão sugestiva sobre arte, “os verdadeiros monumentos da ciência
estética” foram erigidos na Alemanha. Na verdade, mais do que a criação de
uma disciplina denominada Estética, o que assistimos na Alemanha é a curiosa
evolução de uma crítica da razão que se desdobra numa crítica da idéia de que
o conhecimento das coisas se dá, tão-somente, em bases exclusivamente
intelectuais. Quando alguns filósofos alemães procederam a essa crítica,
elaboraram-na sob uma forma original, isto é, exclusivamente na perspectiva
da relação entre o conhecimento intelectual e o conhecimento sensível. Essa
abordagem do problema metafísico do conhecimento, ao deslocar qualquer
instância extra-humana da posição arbitral quanto à possibilidade, legitimidade
113
e, em última instância, verdade do conhecimento humano sobre as coisas,
necessariamente conduziu à ousada proposição de que o conhecimento só se
realiza plenamente pela identificação entre ambos. Estava fundada, assim,
uma metafísica sem Deus, mas ancorada no princípio de identidade entre o
entendimento, isto é, a razão, e a representação sensível. Nesse caso, o
conhecimento produzido por efeito dessa identidade definiu-se
necessariamente como estético e, por sê-lo, realizar-se-ia, privilegiadamente,
nas diferentes formas artísticas. Nasceu aí o princípio da arte como forma
metafísica do conhecimento ou, mais simplesmente, a Idéia de Arte. A
novidade da estética idealista está na dialética da razão com a sensibilidade,
ou, mais exatamente, numa identidade tensa entre ambos. Até Leibniz e
Wolff267
267Christian Wolff, nascido em Breslau, em 1679, e falecido em Halle, em 1754, é considerado o maior filósofo, no período da Aufkläreung alemã. Atribui-se a ele a fundação da filosofia alemã como escola e, segundo os estudiosos, Kant teria elaborado sua crítica da razão a partir de suas lições. Nomeado professor da Universidade de Halle, em 1706, foi banido dessa instituição, acusado de ateísmo, em 1723. Retomou sua cátedra, em 1740, quando Frederico II, o Grande, ascende ao poder. Influenciado pelo pensamento de Leibniz, Wolff definia o fenômeno como “aquilo que é percebido imediatamente de forma confusa pelos sentidos.” WOLFF, Christian. Cosmologia Generalis. §225, p. 173 da 2ª edição, Frankurft e Leipzig. Apud EBERHARD, Johann August. “C) Acerca da diferença entre o conhecimento sensível e o intelectual”. Excertos do Philosophisches Magazin. In: GIL, Fernando (Coord.). Recepção da Crítica da Razão Pura. Antologia de escritos sobre Kant (1786-1844). Prefácio de Oswaldo Market. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, p. 83.
pensava-se a arte como forma de conhecimento de algo pelos
sentidos. Eberhard, em um de seus escritos de crítica a Kant, resumiu a
questão da diferença entre o dois tipos de conhecimento. Para toda a tradição
filosófica alemã, desde Leibniz, passando por Wolff e incluindo o próprio
Baumgarten, os fundamentos do conhecimento intelectual são puramente
objetivos, enquanto os do conhecimento sensível podem ser subjetivos. Disso
resulta que o conhecimento intelectual detém a verdade, ao passo que o
sensível, somente a aparência. No caso do conhecimento intelectual, a
114
semelhança268 do sujeito com o objeto é evidente, ao passo que, no
conhecimento sensível, a semelhança é velada. Assim, as verdades do
conhecimento intelectual são “necessária e eternas”269e as do conhecimento
sensível, contingentes e sujeitas ao tempo. E como toda aparência tem seu
fundamento “nas limitações da faculdade de representar”,270
Depois de Baumgarten e, especialmente, de Kant,
só pode ser
verdadeiro o que não se fundamenta nessa faculdade, mas no objeto em si
mesmo.
271 a arte
passou a ser pensada como a forma ideal, não apenas de conhecer, mas de
expressar o conhecimento metafísico do mundo, por parte do sujeito metafísico
desse conhecimento. O objeto artístico, criado pelo sujeito-artista, passou a ser
concebido como expressão de conhecimento, na medida em que tornou-se a
representação adequada do infinito na forma finita. Por isso o sujeito-artista
veio a ser gênio. Assim, a arte deixou de ser uma mera questão de capacidade
ou habilidade intelectual, para tornar-se manifestação de uma espécie de
“sensibilidade intelectual” inconsciente.272
A Alemanha, na segunda metade do século XVIII, era um
conjunto de reinos antigos, governados rigidamente por príncipes feudais, com
E a representação artística, antes
tida como representação puramente fenomênica do mundo, alçou-se à
condição de forma de expressão privilegiada da coisa-em-si, do númeno.
268Aqui, “a semelhança evidente” dá-se em função de as idéias do entendimento serem universais e não-figurativas; diferentemente da “semelhança velada”, própria das idéias da sensibilidade, que são singulares e figurativas. EBERHARD. Op. cit., p. 62. 269Idem, p. 66. 270Idem. 271Nem Baumgarten e muito menos Kant concebem a arte desse modo; mas, especificamente Kant, malgrado ele mesmo, está na raiz dessa formulação. 272Apesar de soar paradoxalmente, a expressão “sensibilidade intelectual” descreve adequadamente a faculdade singular do artista de conhecer e representar o fruto desse conhecimento de uma forma vedada ao homem comum. Por isso, o artista-criador, segundo o idealismo alemão é gênio. O paradigma desse tipo de artista é o compositor musical – capaz de exprimir numa linguagem altamente intelectualizada, portanto racional, verdades concebíveis e apreensíveis unicamente pela sensibilidade musical. Escrever música é pensar filosoficamente sem a necessidade de se recorrer aos conceitos filosóficos.
115
populações que falavam seus próprios dialetos e cultivavam zelosamente suas
próprias tradições. Fossem protestantes, em maioria no norte, ou católicos,
dominantes no sul, os alemães sempre valorizaram, no seu cotidiano, uma rica
produção simbólica artesanal. Essa produção obedecia a critérios que
remontavam às antigas corporações de ofícios medievais, o que significa dizer
que o exercício de determinada linguagem artística implicava um longo período
de aprendizagem com os mestres detentores de seu saber e de sua técnica.273
273Em Os mestres cantores de Nürnberg e Tannhäuser, Wagner tematizou essa tradição, mas na perspectiva romantizada da arte popular como expressão do espírito (Geist) do povo alemão. A idéia de um espírito alemão, tão importante para idéia de arte, em sua matriz germânica, tem sua origem na concepção de Herder de que os povos se diferenciariam uns dos outros pela sensibilidade e imaginação – faculdades que constituem o espírito de um povo. Os europeus seriam superiores a outros povos da Terra, por serem dotados dessas mesmas faculdades, num grau que lhes permitiria realizar historicamente o ideal de progresso, princípio metafísico da ordenação universal. Collingwood. Op. cit., pp. 122-123.
É bem possível que essa realidade, freqüentemente representada nos cantos e
narrativas populares, tenha motivado os escritores alemães a se fixarem na
literatura, especialmente na poesia, como meio de afirmação de sua
fragmentada identidade nacional contra a dominante influência francesa nas
cortes locais. Por outro lado, é possível que os ecos das inquietantes
transformações intelectuais, que culminariam na Revolução Francesa de 1789,
tenham começado a atrair os meios intelectualizados alemães tanto para o
debate político em torno da identidade nacional, quanto para as discussões
sobre as diferentes formas de arte. As traduções para o alemão de autores
franceses e mesmo ingleses resultaram na introdução de juízos estéticos, que
logo passaram a ser abordados, pelos pensadores alemães, no contexto mais
amplo de suas teorias do conhecimento. Contudo, para esses pensadores, a
arte permaneceu quase que exclusivamente como sinônimo de poesia e
116
literatura.274 E é nessa cena literária e filosófica que se inscreve a teoria
estética de Alexander Gottlieb Baumgarten:275
Die Ästhetik (als Theorie der freien Künste, als untere
Erkenntnislehre, als Kunst des schönen Denkens und als
Kunst des der Vernunft analogen Denkens) ist die
Wissenschaft der sinnlichen Erkenntnis.
276
Seria por essa definição, que Baumgarten apareceria, na
história dos estudos estéticos, tanto como o fundador de uma nova disciplina, a
Estética, como o delimitador de seu objeto.
277
274Em O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão, Walter Benjamin observa que quando Friedrich Schlegel, cuja teoria crítica de arte é objeto de seu estudo, “fala sobre arte, pensa basicamente na poesia, sendo que as demais artes têm (...) uma relação quase sempre subordinada a ela. Nesse sentido, deve-se entender no que segue sob a expressão ‘arte’ sempre poesia [Poesie] – e, na verdade, na sua posição central dentro das artes –, e, sob a expressão ‘obra de arte’, a composição poética [Dichtung] singular.” BENJAMIN, Walter. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Tradução, prefácio e notas de Marcio Seligmann-Silva. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Iluminuras, 1993, p. 21. 275Baumgarten usou o termo estética, pela primeira vez, em 1735, aos vinte e um anos, em seu opúsculo Meditationes de nonnulis ad poema pertinentibus. Nele, Baumgarten defendeu a idéia de que a lógica, em seu sentido mais geral, deveria colocar-se como missão a formulação de uma teoria sensualista para melhor fundamentar a poética. Em 1750, publicou o primeiro volume de seu tratado de estética, com o título de Ästhetik. 276“A Estética (como teoria das artes liberais, como doutrina do conhecimento inferior, como arte do belo pensar e como arte do pensar análogo à razão) é a ciência do conhecimento sensível.” BAUMGARTEN. A. G. Theoretische Ästhetik. Die grundlegenden Abschnitte aus der “Aesthetika” (1750/58); Lateinisch-Deutsch. Übersetzt und herausgegeben von Hans Rudolf Schweizer. 2. durchgesehene Auflage. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1988, Seite 3. (Tradução minha.) 277Para Croce, defensor ferrenho de Vico como o verdadeiro e original patriarca da Estética, e em cujas idéias ele próprio, Croce, abeberou-se para formular sua teoria estética, em tudo o que Baumgarten escreveu, fuera del título y de las primeras definiciones, se siente el tufo de lo anticuado y de lo común. CROCE. Op. cit., p. 248.
Mas em que pese a importância
de sua teoria para a narrativa de uma história da idéia de arte, o fato é que o
“pai da estética” ainda concebia as artes como formas de conhecimento, no
interior do antigo sistema das artes liberais. Além disso, outra questão que
suscitou longos debates, entre os que se debruçaram sobre sua obra, foi a de
se Baumgarten pretendeu, realmente, teorizar as artes em geral, ou tão-
somente a poesia e a retórica. A essa questão, os comentadores observam
que, se, nas Meditationes, o filósofo trata exclusivamente da poesia e da
retórica, é possível encontrar alusões às diferentes formas de arte, como a
música, a pintura e a dança, tanto em sua inacabada Aesthetika quanto em
117
seus textos de aula.278 Mas alusões, apenas. De qualquer modo, a grande
contribuição de Baumgarten, para a história da Estética, foi sua proposta de
uma teoria geral das artes como um campo específico da filosofia; ainda que
tenha falhado, por não haver sabido testar sua teoria em outras formas de
expressão, que não a poesia e a retórica. Baumgarten que, certamente,
conhecia os autores franceses e seus juízos sobre arte279, não foi capaz de
incorporar, e muito menos superar, suas concepções. Mas o mais
problemático, para esta tese, foi que Baumgarten construiu sua teoria estética
ainda no interior da perspectiva filosófica, dominante na Alemanha, à sua
época, da separação entre o conhecimento intelectual e o conhecimento
sensível. Não fosse assim, sua estética não teria como finalidade a perfeição (o
aperfeiçoamento) do conhecimento sensível.280
278Em um desses textos, Baumgarten afirma que: Es wird nicht undienlich sein, eine kleine Einleitung in die Geschichte der Ästhetik zu geben. Die ganze Geschichte der Maler, Bildhauer, Misikverständigen, Dichter, Redner wird hierher gehören, denn alle diese verschiedene Teile haben ihre allgemeinen Regeln in der Ästhetik. (“Não será inoportuno oferecer uma pequena introdução à história da Estética. Toda a história da pintura, da escultura, do conhecimento musical da poesia e da retórica fará parte dela, pois todas essas diferentes partes têm na Estética sua regras gerais.”) “Aesthetica” § 1” In: BAUMGARTEN, A. G. Texte zur Grundlegung der Ästhetik. Lateinisch-Deutsch. Übersetzt und herausgegeben von Hans Rudolf Schweizer. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1983, Seite 81. (Tradução minha.) 279Bouhours, Crousaz in senem traité du beau, die Gespräche der Maler, die Abhandlung vom Geschmack enthalten viel Allgemeines vonm Schönen; aber sie erschöpfen es nicht. Es konnte noch nicht in die gegenwärtige Form einer Wissenschaft gebracht werden. (“Bouhours, Crousaz em seu tratado sobre o belo, os discursos dos pintores, o tratado sobre o gosto contêm muitas generalidades sobre o belo; mas não esgotam o assunto. Não se poderia, ainda, apresentá-las sob a forma de uma ciência.”) BAUMGARTEN. Op. cit., p. 82. (Tradução minha.) 280Das Ziel der Ästhetik ist de Vollkommenheit (Vervollkommung) der sinnlichen Erkenntnis als solcher. (“A finalidade da Estética é a perfeição (o aperfeiçoamento) do conhecimento sensível, enquanto tal.) BAUMGARTEN. Theoretische Ästhetik. §14 Op. cit., p. 11. (Tradução minha.)
E aperfeiçoar o conhecimento
sensível nada mais seria do que submeter a produção simbólica a um sistema
de regras e princípios, próprios de uma estética aplicada, mas distantes de
uma verdadeira teoria do conhecimento estético. Nesse caso, questões como a
do belo na arte seriam tratadas apenas do ponto de vista dos meios físicos e
temporalmente determinados de sua representação, e nunca do ponto de vista
de sua representação como idéia universal, como verdade.
118
Realmente, a estética de Baumgarten esteve longe de
significar um avanço ou uma novidade em relação ao que os franceses eram
mestres em fazer e continuariam a ser, ao longo de todo o século XIX; até que
Proust281, inaugurando o século XX, À sombra das raparigas em flor,
demonstrasse a impossibilidade de se alcançar a verdade artística pela via
estreita da estética aplicada. O jovem narrador, ainda indeciso quanto ao seu
talento literário, mas ansioso pela confirmação do destino de que suas
pretensões à arte são legítimas, acredita poder encontrar a verdade estética, o
belo, a partir do acordo entre os juízos estéticos tradicionais, determinados pela
crítica, e sua aplicada sensibilidade juvenil. O ponto de interseção dessa busca
é a interpretação de Fedra, de Racine, pela mítica atriz Berma282
Enfim, os derradeiros momentos do meu prazer foram
durante as primeiras cenas de Fedra. (...) Decerto haviam
mudado a distribuição, e inútil se tornava todo o cuidado
que eu tivera em estudar o papel da mulher de Teseu.
Mas de súbito, pela abertura da cortina rubra do
santuário, como num quadro, surgiu uma mulher, e, em
seguida, pelo medo que tive, muito mais ansioso do que
o poderia ser o da Berma, de que a perturbassem abrindo
uma janela, de que alterassem o som de uma de suas
palavras amarrotando um programa, que a
indispusessem aplaudindo suas colegas e não
aplaudindo a ela o suficiente; – pela minha maneira, mais
absoluta ainda que a da Berma, de não considerar desde
aquele instante, sala, público, atores, peça, e ao meu
. Mas para seu
desespero o encontro se frustra:
281No Em Busca do Tempo Perdido, que, a meu ver, é a quinta e última grande “comédia” da literatura ocidental (a quatro primeiras são, obviamente, A Ilíada e A Odisséia, de Homero, A Divina Comédia, de Dante, e A Comédia Humana, de Balzac), Proust, que, com toda certeza, leu, e entendeu, a estética alemã pós-Kant, realizou, plenamente, o projeto estético-literário de Schlegel, segundo o qual a teoria do romance “deveria ela mesma ser um romance”. Apud BENJAMIN. Op. cit., nota 1 da Primeira Parte, p. 130. Denomino “comédia” aos grandes ciclos narrativos que, mais do que um retrato de suas épocas, transmitem-nos sua alma. 282A Berma é a encarnação literária da atriz francesa Sarah Bernhardt.
119
próprio corpo, senão como um meio acústico que apenas
tinha importância na medida em que era favorável às
inflexões daquela voz, compreendi que as duas atrizes
que eu vinha admirando desde alguns minutos não
tinham, nenhuma semelhança com aquela que eu viera
ouvir. Mas ao mesmo tempo cessara todo o meu prazer;
por mais que eu estendesse para a Berma os meu olhos,
os meu ouvidos, o meu espírito, a fim de não deixar
escapar uma migalha das razões que ela me daria para
admirá-la, não conseguia colher uma única.(...).
Afinal explodiu meu sentimento de admiração: foi
provocado pelos aplausos frenéticos dos espectadores.
(...) À medida que eu ia aplaudindo, parecia-me que a
Berma havia representado melhor. “Ao menos – dizia ao
meu lado uma mulher bastante vulgar, – esta se mexe,
golpeia-se que dói, agita-se, e isto é que é representar!”
E eu, muito satisfeito por encontrar essas razões da
superioridade da Berma, embora suspeitasse que não
bastavam para explicá-la, como não explicava a da
Gioconda, ou a do Perseu de Benvenutto, a exclamação
de um campônio: “Mas que coisa bem feita! Tudo de ouro
e tão bonito! Que trabalho!” compartilhei com embriaguez
do vinho grosseiro daquele entusiasmo popular.283
E o jovem narrador, entre indeciso e decepcionado, quanto
ao valor artístico da interpretação de Fedra, perguntará ao Sr. Marquês de
Norpois, “mil vezes mais inteligente” do que ele, em que consistiria aquela
verdade, que ele “não soubera extrair do desempenho da Berma”. Mas
Norpois, um típico ex-diplomata, membro das conservadoras elites dominantes,
aferradas à defesa de seus privilégios de classe, e absolutamente zelosas de
sua importância na formação histórica do Estado francês, só tem a transmitir ao
adolescente um punhado de regras de bom gosto, emanadas de juízos
283PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido. Volume 2. “À Sombra das Raparigas em Flor.” Tradução de Mário Quintana. 5ª Ed. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Editora Globo, 1951, pp. 14-16.
120
estéticos florescidos, no idiossincrático solo da tradição artística francesa,
cultivada com esmero pelo poder. Mais adiante, reencontraremos o narrador
proustiano, face a face com a verdade artística. Mas para isso precisamos,
primeiro, saber de onde ela nasce.
O maior filósofo do século XVIII, Immanuel Kant, em sua
Crítica da Razão Pura284, impô-se a inaudita tarefa de examinar criticamente a
faculdade de conhecimento humano da natureza285
284A primeira edição da Crítica da Razão Pura data de 1781; a segunda, com importantíssimas alterações, data de 1787. 285A faculdade do conhecimento humano da natureza, objeto da Critica da Razão Pura, funda-se em conceitos da natureza que, por sua vez, “repousam sobre a legislação do entendimento”. A faculdade do conhecimento humano dos preceitos práticos sensíveis-incondicionados, objeto da Crítica da Razão Prática, funda-se no conceito de liberdade que, por sua vez, “repousa sobre a legislação da razão”. KANT, Immanuel. “Crítica del Juício”. In: Crítica de la Razón Práctica / Crítica del Juício / Fundamentación de la Metafísica de las Costumbres. Buenos Aires: Librería “El Ateneo” Editorial, 1951, p. 206.
, reduzindo-a a seus
elementos primordiais, quais sejam, o elemento formal, necessário e universal,
e o elemento material, variável e relativo. O conhecimento humano teria sua
origem na experiência sensível, portanto, a partir do elemento material. Mas o
conhecimento não se explicaria exclusivamente pelo elemento material, pois,
se a matéria nos oferece os elementos para o conhecimento, este só se
realiza, como forma, pelo entendimento. Kant classificou o conhecimento
humano em dois tipos: o empírico ou a posteriori, e o conhecimento a priori. E
nesse segundo tipo, Kant encontrou formas de conhecimento independentes
dos dados dos sentidos, os chamados conhecimentos puros. A razão pura
conteria os princípios que regem tais conhecimentos. Kant também observou
que o homem conhece por meio de juízos: os juízos analíticos ou explicativos e
os juízos sintéticos ou extensivos. Pelos juízos analíticos, nenhuma idéia se
acrescenta ao objeto que o sujeito, lógica e necessariamente, já não tenha
sobre ele. Pelos juízos sintéticos, acrescentam-se ao sujeito noções que, lógica
e necessariamente, ele não possuía sobre o objeto. Os juízos analíticos
121
baseiam-se no princípio de identidade ou de contradição; enquanto que os
sintéticos podem se dar a posteriori ou a priori, isto é, baseados ou não na
experiência. A partir daí, Kant dividiu as ciências em empíricas, baseadas na
observação e, portanto, em juízos sintéticos a posteriori, e teoréticas ou
especulativas. Na Crítica da Razão Pura, o termo estética286
Na Crítica do Juízo, Kant tem por objeto resolver a antinomia
entre o conceito de natureza e o conceito de liberdade, respectivamente
objetos das duas primeiras críticas.
nada tem a ver
com a filosofia do belo. O que Kant chama de estética transcendental é a crítica
das formas puras da intuição sensível, isto é, a determinação do que sejam
espaço e tempo, entendidos como elementos que dão forma à sensibilidade,
cuja matéria são as sensações.
287
Se o universal (a regra, o princípio, a lei) é dado, o juízo,
que nele subsume o particular (inclusive quando, como
juízo transcendental, coloca a priori as condições dentro
das quais somente pode [o particular] subsumir-se no
geral), é determinante (die bestimmende Urteilskraft).
Como transitar entre dois mundos tão
diferentes? Como pode a liberdade realizar no mundo sensível a finalidade que
lhe é própria? Uma doutrina crítica dos princípios intermediários entre o
inteligível (o númeno) e o sensível (o fenômeno) foi o que Kant pretendeu com
a Critica do Juízo. Kant observou que, em geral, o juízo “é a faculdade de
pensar o particular como contido no universal”:
288
286Kant faz uso do termo estética, na sua Crítica, com um sentido completamente diferente do estabelecido por Baumgarten. Aliás, Kant não acreditava, quando escreveu a Crítica, na possibilidade de uma teoria filosófica da arte. Mais tarde, reconsiderada essa posição, escreveu a Crítica do Juízo, onde encontramos os elementos que constituirão a Idéia de Arte. 287A Crítica da Razão Pura e a Critica da Razão Prática. 288KANT. “Introducción”. IV. Op. cit., p.208.
122
Mas no caso de “apenas o particular ser dado”, em relação
ao qual “ele deve encontrar o universal, então o juízo é apenas reflexivo.”289O
juízo reflexivo, que tem como tarefa ascender do particular na natureza ao
universal, precisa para tanto de um princípio que ele não pode extrair da
experiência e muito menos impor à natureza. E esse princípio, fundamento da
unidade de todos os princípios empíricos “sob princípios, igualmente empíricos,
mas mais elevados”, que realiza, assim, “a possibilidade da subordinação
sistemática de uns aos outros,”290 não é outro que não o de finalidade da
natureza. A finalidade da natureza não é, na verdade, um fim real. Trata-se de
uma mera possibilidade de fim, um princípio a priori, puramente formal e
subjetivo que, nascido do juízo reflexivo,291
Kant diz que o belo é aquilo que proporciona um sentimento
de prazer desinteressado. Mas como entender um prazer que não corresponde
a nenhuma necessidade – e uma necessidade universal, sem nenhuma regra a
priori? Kant responde que o prazer ocorre quando o sujeito concebe um objeto
que corresponde exatamente ao fim para o qual foi feito. Por outro lado, o
desprazer sobrevém quando o contrário acontece. Portanto, o prazer se daria
em função da perfeição do objeto; ao passo que o desprazer, de sua
imperfeição, quanto à sua finalidade. Kant observa que a finalidade pode ser
considerada de duas maneiras distintas. A finalidade é uma forma de
representação teleológica do objeto, quando a imaginação, que o esquematiza,
e o entendimento, que lhe proporciona um conceito, atuam juntas, sob a forma
mostra-se como universalmente
necessário.
289De toda a Crítica do Juízo, o que interessa realmente a esta tese é a definição de juízo reflexivo (die reflektierende Urteilskraft) dada por Kant. É dele que nasce, simultaneamente, a idéia de arte e o artista-criador – o gênio. 290KANT. Idem. 291“A finalidade é, pois, um conceito particular a priori que tem sua origem somente no juízo reflexivo.” KANT. Op. cit., p. 209.
123
de juízo determinante, de modo a propiciar, sobre ele, um conhecimento lógico.
A finalidade será uma forma de representação estética do objeto, quando o
entendimento não oferecer conceito algum sobre o objeto e a imaginação
puder esquematizá-lo livremente, ambos sob a forma de um juízo reflexivo,
subjetivo, que em nada pode contribuir para o conhecimento lógico do
objeto.292
Foi pela construção do conceito de juízo reflexivo
A representação estética da finalidade é, portanto, formal e subjetiva
e, precisamente por isso, atribui-se a ela um valor formal e necessário como
expressão do juízo reflexivo. Assim, o belo estético, ao qual se associa um
prazer desinteressado, não possui realidade objetiva, mas é universal, pois
deriva do modo como nos relacionamos, do ponto de vista do juízo reflexivo,
com a natureza.
293, do qual
deduziu o princípio de finalidade, que Kant estabeleceu os fundamentos
teóricos de uma Idéia de Arte. Mas foi, também, por sua opção lógica e
analítica que ele negou a possibilidade de tal idéia. Além do mais, para ele, a
estética jamais poderia converter-se em verdadeiro campo de saber,294
Aunque se distinguen mucho uno de outro el arte
mecánico y el arte bello, el primero como mero arte de la
laboriosidad y del aprendizaje , y el segundo, del genio,
pois
nas artes não cabe método, mas apenas regras:
292“... o juízo de gosto se distingue do juízo lógico, devido ao fato de que este último subsume uma representação sob conceitos do objeto, enquanto o primeiro não subsume nada sob um conceito, pois senão o assentimento universal necessário poderia ser imposto por provas. No entanto, ele é parecido ao juízo lógico na medida em que pretende uma universalidade e uma necessidade, mas não a partir de conceitos do objeto, e, conseqüentemente, puramente subjetivas.” Kant, § 35 da Crítica do Juízo. Apud. BENJAMIN. Op. cit., nota 27, p. 141. 293O juízo reflexivo, de onde emergiria uma visão intelectual (uma intellektuelen Anschauung) ou intuição intelectual, só seria possível como intellectus archetypus divino, isto é, a faculdade divina “de compreender e expor um objeto de modo imediato (...), sem mediação sensível”. BENJAMIN. Op. cit., nota 2 da Primeira Parte, p. 30. 294“Não existe uma ciência do belo, mas uma crítica, nem uma bela ciência, mas apenas arte bela, pois, no que se refere à primeira, haveria de se determinar cientificamente, ou seja, com base na demonstração, se existe algo que possa tomar por belo ou não; o juízo sobra a beleza, se pertencesse à ciência, não seria um juízo de gosto. E no que diz respeito à segunda, uma ciência que deva, como tal, ser bela é um absurdo, pois, quando se lhe fosse pedir, como ciência, fundamentos e provas, quem o fizesse ver-se-ia despedido com sentenças engenhosas (bon mots).” KANT. Op. cit., § 44, p. 313.
124
no hay, sin embargo, arte bello alguno en el que non
haya algo mecânico, que pueda ser comprendido y
ejecutado según reglas, algo que se pueda aprender
como condición constituyente esencial del arte, pues algo
debe ser allí pensado como fin, que si no, no se podria
llamar arte a su producto, y sería um mero producto dela
casualidad; pero para dirigir um fin a la obra, se exigen
determinadas reglas de que non se puede nadie librar.295
Se, do ponto de vista kantiano, é impossível uma ciência da
estética, muito menos admissível seria, para o severo mestre de Königsberg, a
possibilidade de conhecimento pela arte – princípio básico da Idéia de Arte.
Para ele, a arte se definiria tão-somente pela liberdade formal, sem qualquer
relação direta com o saber teórico. A arte seria apenas um jogo, ainda que
sujeito a uma aprendizagem técnica, dura e trabalhosa; e sua forma final
deveria aparecer livre da coação de regras arbitrárias,
296
295“Posto que se distinguem uma da outra, a arte mecânica e a arte bela, sendo a primeira apenas arte laboral e de aprendizagem, e a segunda, do gênio, não há, contudo, qualquer arte bela que não contenha algo de mecânico, que possa ser compreendido e executado segundo regras, algo que se possa aprender, como condição constituinte essencial da arte, pois algo deve ser pensado ali como fim, pois, não fosse assim, não se poderia chamar arte o seu produto, que seria um mero produto da natureza; mas para conferir um fim à obra, exigem-se determinadas regras, das quais ninguém se pode livrar.” KANT. Op. cit., §47, p. 318. (Tradução minha.) 296Para Kant, o sujeito da arte é o artista dotado de gênio. E o gênio “é o talento (dote natural) que dá regra à arte. Visto que o talento mesmo, na medida em que é uma faculdade inata produtora do artista, pertence à natureza, poderíamos expressar-nos assim: gênio é a capacidade espiritual inata (ingenium) mediante a qual a natureza dá regra à arte.” KANT. Op. cit., § 46, p. 315.
como se fosse um
simples produto da natureza. A arte só seria arte se percebida
conscientemente como tal, mesmo sob sua aparência de objeto natural. Por
outro lado, o artista, como sujeito dotado de uma faculdade natural e inata para
produzir arte, nada mais faria senão imitá-la, em sua capacidade intransferível
de produzir formas. Mas formas artísticas que, como a poesia, definem-se pelo
livre jogo da fantasia sob a aparência de motivos intelectuais, aspectos naturais
125
e disposições sensoriais. 297
Como expressão do juízo reflexivo, e, portanto, subjetivo, a
arte não é capaz de ensejar o conhecimento. Quando muito, o objeto artístico,
como fenômeno, pode vir a atuar como pretexto para que o entendimento, nos
limites ditados pela razão, realize sua vontade de conhecimento.
E reside aí, precisamente, o limite do pensamento
kantiano em relação à arte.
298
Offenbar verkünden alle Genies ein und dieselbe tiefe
Urwahrheit, die zwar bei jedem einzelnen eine völlig
andere Gestalt angenommen hat, was aber nur durch
irdisch-materielle Trübungen verursacht und verschuldet
ist.
Mas a arte
em si mesma é incapaz de nos oferecer uma forma de abordagem do mundo
dos fenômenos, pelo simples motivo de sua representação deste mundo estar
fundada num princípio de finalidade sem fim e, portanto, não objetivo e vazio
de um conteúdo conceitual que dê sustentação ao entendimento. Por outro
lado, a definição kantiana de artista como gênio, coerente com a de juízo
reflexivo, subjetivo, como sujeito fenomênico, produzido pela natureza, nega-
lhe qualquer possibilidade de atuar como um sujeito do conhecimento estético.
Ele é tão-somente um medium pelo qual “a natureza dá regra à arte”. E sendo
apenas isso, ele não pode realizar a tarefa que, segundo a mitologia do artista,
define o gênio criador:
299
297“... poesia é a arte de conduzir o livre jogo da imaginação como um assunto do entendimento.” Na verdade, Kant divide as artes em três classes: as da palavra (Oratória e Poesia); as da forma, que se dividem em plástica (Escultura e Arquitetura) e Pintura; as das sensações (Música e a arte de colorir). Para o filósofo, pintar é a descrição da natureza e nada tem a ver com a sensação visual. Por isso, o trabalho com as cores aparece dissociado da pintura. Finalmente, para Kant, como para todos os pensadores do Idealismo Alemão, a poesia é a arte suprema; a ponto de se confundir com a própria Idéia de Arte. KANT. Op. cit., § 51, pp. 326-330 298Aliás, a própria Crítica do Juízo, como analítica do gosto, nada mais seria do que, como bem definiu Menéndez Pelayo, uma “psicologia estética”. MENÉNDEZ PELAYO. Op. cit., p. 107. 299“É evidente que todos os gênios anunciam a única e mesma profunda verdade primordial, inteiramente transfigurada em cada um deles, mas produzida e causada sob a condição de turbações materiais e mundanas.” ZILSEL, Edgar. Die Geniereligion. Ein kritischer Versuch über das moderne Persönlichkeitsideal, mit einer historischen Begründung. Herausgegeben und eingeleitet von Johann Dvořak. 1. Auflage. Frankfurt (Main): Suhrkamp, 1990, Seite 60. (Tradução minha.)
126
Portanto, o gênio, para Kant, jamais viria a ser um verdadeiro
sujeito do conhecimento. Pois que o sujeito kantiano do conhecimento é aquele
que pensa, nos limites da razão, o mundo fenomênico que o cerca. O “eu
penso”, no interior da natureza, mas ansioso pela liberdade, que somente a
realização do imperativo moral, pela razão, lhe pode garantir, vê na arte algum
sentido apenas sob a condição de esta lhe evocar a necessidade de superação
da dicotomia entre a natureza e a liberdade, pela intuição do belo que,
unicamente na esfera da razão, é sinônimo de bem.
A filosofia crítica de Kant foi o maior feito, na história do
pensamento ocidental, no que diz respeito ao exame rigoroso dos princípios
racionais que possibilitariam e legitimariam a aventura do conhecimento
humano do mundo dos fenômenos. A par de negar toda e qualquer condição
para uma metafísica fundada na razão, Kant teve por objetivo estabelecer qual
o único modo possível de relação do “eu” com o mundo – o “eu penso”, no
interior das condições determinadas pela própria faculdade de pensar. Todo o
resto, para ele, careceria de qualquer fundamento teorético. Mas, ironicamente,
aquele que foi, e ainda é, considerado o seu maior leitor e discípulo, o grande
Johann Gottlieb Fichte300
300Não posso deixar, aqui, de tomar a liberdade de expressar minha profunda admiração por Fichte, a quem considero o maior dentre todos os pensadores alemães. Maior que o próprio Hegel. Fichte nasceu em 19 de maio 1762, como primogênito de modestíssimo tecelão. Dotado de especiais qualidades intelectuais e de caráter, aos oito anos, o Barão de Miltitz retirou-o de sua família para lhe custear os estudos. Aos doze anos, ingressou na célebre Schulpforta, a mítica instituição germânica de ensino, freqüentada por alguns dos mais importantes intelectuais alemães, como, mais tarde, Nietzsche. Em 1780, matriculou-se na Universidade de Iena, para cursar Teologia. Em 1788, transferiu-se para Leipzig, onde as imensas dificuldades materiais impediram-lhe de seguir com regularidade seus estudos. Ainda assim, faz algumas cadeiras de Filosofia, disciplina que também freqüentou na histórica Universidade de Wittenberg. Em 1788, aos 26 anos, empregou-se como preceptor, em Zürich. Nesta cidade, além de ter contato com diversos intelectuais, veio a conhecer sua futura esposa, Johanna Rahn, sobrinha do poeta Klopstock. Foi no verão de 1790 que Fichte teve seu primeiro contato com a obra de Kant, o que significou, para o futuro criador d’A Doutrina da Ciência, uma verdadeira epifania. Dedicou-lhe tão concentrada e apaixonada atenção, a ponto de, em pouco tempo, dominar com maestria a monumental arquitetura do pensamento kantiano. Finalmente, em julho de 1791, e quase que acidentalmente, conhece pessoalmente Kant, em Königsberg. Deste encontro, nasceu o Ensaio de uma crítica de toda a revelação, publicado anonimamente, em 1792. A revelação de que era ele, Fichte, e não Kant, o verdadeiro autor daquela obra, granjeou-lhe o imediato respeito do mundo filosófico alemão e a posição de suma
, conferiu ao pensamento do mestre um inusitado
127
desenvolvimento. Pois foi Fichte, o mais fiel dos filósofos kantianos, quem
elaborou uma metafísica do conhecimento – única possibilidade para uma Idéia
de Arte –, pela substituição do “Eu penso” pelo “Eu sou”, ou simplesmente o
“Eu”.
O Eu fichtiano é um puro princípio incondicionado, não
subjetivo, do conhecimento da existência.301
autoridade na filosofia crítica. Ao mesmo tempo, e alimentado pela leitura de Reinhold da obra de Kant, Fichte começou a ser dar conta de que faltava à filosofia crítica, baseada no primado do “Eu penso”, um fundamento. E num processo quase febril de trabalho teorético, a que correspondem sucessivos ensaios de elaboração de seu próprio sistema, entre anotações e lições particulares, Fichte redige, finalmente, o escrito em que expõe sua nova doutrina – Über den Begriff der Wissenschaftslehre (Sobre o Conceito de Doutrina da Ciência). Em maio de 1794, iniciou seus cursos na Universidade de Iena, dos quais resultaram os dois tomos da Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre (Fundamentação de toda a Doutrina da Ciência). Segundo Nicolai Hartmann, a teoria da imaginação produtora, na qual identifico o berço originário da Idéia de Arte, cuja dedução está exposta na síntese E da Fundamentação de toda a Doutrina da Ciência, é uma das coisas mais difíceis de compreender jamais escritas, em toda a filosofia ocidental. Reconhecido e amado por seus discípulos, nem por isso o pai do Idealismo Alemão deixou ser objeto de ataques, da parte de seus opositores. Continuou a produzir, entre os anos de 1796 e 1798, novos ensaios sistêmicos, até que, com a publicação de seu artigo, “Sobre o fundamento de nossa fé num governo divino do mundo”, no Philosophisches Journal, revista editada por ele e Niethammer, no qual defendia a idéia de um Deus não antropomórfico como ordem moral do universo, viu-se no centro de um escândalo acadêmico e foi obrigado a deixar a universidade. Em 1799, encontramo-lo em Berlim, onde publicou, em 1800, Die Bestimmung des Menschen (A Destinação do Homem). Em 1805, foi nomeado catedrático da Universidade de Erlangen, mas a guerra provocada pelos avanços napoleônicos em territórios alemães impediu sua definitiva incorporação àquela instituição. Horrorizado com a invasão estrangeira, recolheu-se primeiro a Königsberg e, depois, a Copenhagen. Acabou por retornar a Berlim, onde publicou, em 1807, seus célebres e corajosos Reden an die deutsche Nation (Discursos à Nação Alemã), nos quais acusou Napoleão de traidor do ideal de liberdade da Revolução Francesa e de puro e simples promotor do princípio de autoridade. Fichte colaborou na fundação da Universidade Humboldt de Berlim, da qual foi reitor. Acometido de cólera, o grande filósofo morreu em Berlim, em 29 de janeiro de 1814, meses antes de completar 52 anos. Com Fichte inaugurou-se, de fato, o Idealismo Alemão. 301“A fonte de toda a realidade é o eu, pois é ele o imediato e o pura e simplesmente posto. Só pelo eu e com o eu está dado o conceito de realidade. Mas o eu é porque se põe e põe-se porque é. Portanto, pôr-se e ser são o mesmo. Mas o conceito de pôr-se e o de atividade em geral são, por sua vez, o mesmo. Portanto, toda realidade é ativa e todo ativo é realidade. A atividade é realidade positiva, absoluta (por oposição à meramente relativa).” FICHTE. A Doutrina-da-Ciência de 1794, p. 69. Vide Bibliografia.
Pondo-se a si mesmo como pura
atividade produtiva, isto é, como imaginação produtora, o Eu é ao mesmo
tempo sujeito e objeto, que, ao voltar-se para si mesmo, como reflexão,
representa-se como Eu divisível e múltiplo, e aos fenômenos, como um não-Eu
divisível e múltiplo. Opostos e dialeticamente limitantes, sobre eles ergue-se o
“eu” absoluto que os abarca e os determina. O Eu fichtiano é pura práxis, é
uma ação de estar sendo e, como tal, é infinito, livre e independente. Em suma,
o Eu é uma vontade, que se põe a si mesma como ação primordial e primária.
Inderivável, o Eu integra “na sua maneira de exercer o ser a chave de ser, que
128
é a da posição, no sentido de ‘estar pondo-se’”.302
O fundamento do saber teórico, isto é, filosófico, repousa
sobre o princípio de que o Eu põe-se a si mesmo como determinado pelo não-
Eu. Mas como é isto possível se toda a determinação só pode partir do Eu, pois
que toda a realidade do objeto, do não-Eu, está encerrada no Eu? Fichte
responde que, como toda a atividade do não-Eu nada mais é do que a
atividade do próprio Eu, a delimitação ou determinação do Eu pelo não-Eu
nada mais é do que autodelimitação ou determinação do Eu. Fichte diz que por
trás de qualquer determinação recíproca entre o Eu e o não-Eu há de se
buscar uma atividade original, independente; e esta atividade só pode estar no
lado do Eu, pois é ele a totalidade da atividade. Mas para que o saber se
realize, o sujeito do conhecimento precisa identificar a atividade no lado do
não-Eu, ou seja, precisa ser determinado, afetado pelo objeto. Como
representação da relação entre o Eu e o não-Eu, este último precisa aparecer
como o fundamento real de toda a atividade, da própria determinação – o que,
de fato, ele não é. O objeto não é, em Fichte, o fundamento real da
determinação, e muito menos a coisa-em-si. Ele é tão-somente uma
representação necessária do Eu. O próprio Eu o produz, como necessidade
interior, sob a forma de uma representação de um não-Eu independente de si.
A esta atividade produtora de representações Fichte denominou imaginação
produtiva. Ora, o objeto nada mais é do que a representação de um ser
independente do Eu. Nesse caso, a imaginação produtiva, quando fixada na
produção do objeto, expressa o estado da consciência que não reflete
Mas aqui faz-se necessário
mergulhar um pouco mais profundamente no pensamento fichtiano, para
mostrar como se pode deduzir, a partir dele, a Idéia de Arte.
302MARKET. Op. cit., p. 300.
129
simultaneamente sobre si mesma. Somente quando a consciência reflete sobre
tal atividade, a imaginação produtiva se mostra como produção do Eu. A
reflexão sobre a imaginação produtiva é tarefa exclusiva da filosofia. Por outro
lado, a consciência natural não a conhece e, por isso, toma as produções da
imaginação por objetos independentes. Mas, onde identificar o lugar para uma
Idéia de Arte, neste sistema?
Não foi por acaso que Benjamin iniciou O Conceito de
Crítica de Arte no Romantismo Alemão com uma “Reflexão e Posição em
Fichte”.303 Em primeiro lugar, trata-se do reconhecimento explícito, por parte do
pensador da Escola de Frankfurt, de que, pelo menos, parte significativa da
reflexão estética, no Romantismo Alemão, tem sua origem no autor da
Fundamentação de toda a Doutrina da Ciência.304E embora Fichte não tenha
pensado uma estética, é ao seu sistema que se deve o nascimento da Idéia de
Arte.305
303Do ensaio de Benjamin sobre O Conceito de Crírtica de Arte no Romantismo Alemão utilizo, nesta tese, apenas seu breve e brilhante capítulo sobre o pensamento fichtiano e sua importância para os primeiros românticos alemães. Benjamim identificou com precisão a contribuição de Fichte para o nascimento da Idéia de Arte, bem como o limite desta mesma contribuição – o que não quer dizer que eu esteja de acordo com o sentido por ele atribuído a este limite. Embora o tema do pensador da escola de Frankfurt seja vizinho do meu, e por isso mesmo, não tratarei dos irmãos Schlegel, pois os vejo somente como excelentes leitores e comentadores de idéias, mas não criadores originais – o que, aliás, o próprio Benjamin, ainda que implicitamente, parece reconhecer. 304Cabe aqui observar que Fichte não se interessou teoricamente pela arte. Ao que parece, sua única aproximação da Literatura como arte aconteceu quando ele era bem jovem, sob a forma de “um projeto de novela”, que teria como título Der Tal der Liebenden (O vale dos amantes). MARKET, Owaldo. Estudo Introdutório, Notas e Bibliografia. In: GIL, Fernado. Recepção da Crítica da Razão Pura. Antologia de Escritos sobre Kant (1786-1844). Prefácio de Oswaldo Market. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, 293.
Pois quando Fichte colocou no mesmo plano o pensar e a reflexão, na
305“Aqui vem ao caso notar até onde os primeiros românticos seguem Fichte, para identificar onde eles se separam dele.” A esta observação segue-se a nota 14, na qual se lê: “Com relação a Fichte e Friedrich Schlegel, diz Haym: ‘Quem pretenderia, nesta época tão rica em idéias, determinar pedantemente a relação de filiação de pensamentos individuais e o direito de propriedade dos espíritos?’(264) [Causa-me estranheza esta citação feita por Benjamin, já que ele mesmo é obrigado, em função de seu próprio objeto, a “determinar pedantemente” a “relação de filiação” entre Fichte e Friedrich Schlegel.] Também neste contexto, trata-se não de uma determinação mais detalhada de uma relação de filiação, aliás já bem estabelecida, mas de indicar as diferenças consideráveis, embora pouco notadas, existentes entre os dois âmbitos de pensamento. “ [Como se vê, Benjamin reafirma a importância da “determinação...aliás já bem estabelecida”, embora o “bem estabelecida” implique lembrar, também, que Fichte não pensou a arte. Sem dúvida alguma, a originalidade da tese benjaminiana reside justamente em tratar da crítica de arte, à época do Romantismo, na perspectiva de seus fundamentos filosóficos, que precisavam, estes sim, ser bem estabelecidos; ao mesmo tempo em que as “diferenças consideráveis” ficam por conta da apropriação, absolutamente legítima do ponto de vista de uma filosofia da arte em construção, realizada
130
verdade propôs que o espírito humano se define como potência de ação
infinita; ação criadora e livre que, ao garantir, pela reflexão, o conhecimento
imediato do mundo, ao mesmo tempo fundamenta seu próprio ser. Na verdade
mundo e ser se confundem, pois que ambos nada mais são do que produtos da
reflexão do Eu sobre si mesmo. A reflexão é a forma sobre a qual tudo o que
existe ganha conteúdo pelo pensar. Por outro lado, o pensar sobre esta forma,
embora a limite, isto é, constitua o objeto como um conteúdo de saber – o
saber filosófico – não anula a reflexão, mas a situa numa dimensão prática,
ética, na qual Fichte identificava a destinação do homem – destinação de
compromisso consigo mesmo, como ser racional e livre; o que em linguagem
fichtiana quer dizer que o homem, especialmente o sábio, deve fazer do
conhecimento um instrumento de educação e enobrecimento moral da
humanidade. Pensar e refletir são, portanto, as duas faces de uma mesma
moeda e como tais determinam dois modos perfeitos de conhecimento: a
Filosofia, contemplada por Fichte como a expressão suprema do pensar a
verdade no conteúdo da forma; e a Arte que, embora não pensada como tal
pelo filósofo, como fruto mais refinado da reflexão, tem por objeto também a
busca da verdade – mas a verdade da forma que determina um conteúdo.
Se é no sistema fichtiano, e mais exatamente na sua teoria
da imaginação produtora, que encontramos o lugar de nascimento da Idéia de
Arte,306
pelos românticos, de princípios formulados por Fichte numa perspectiva puramente filosófico-metafísica.] BENJAMIN. Op. cit., p. 30 306Cabe lembrar que esta tese não tem por objetivo o exame minucioso de qualquer sistema filosófico; muito menos o do extremamente difícil e complexo sistema fichtiano. O intento deste ensaio é tão-somente reconstituir o contexto histórico e filosófico do nascimento da Idéia de Arte no Ocidente. Neste caso, o autor não viu outra alternativa se não apresentar as construções filosóficas, comprometidas com o nascimento da Idéia de Arte, de modo reduzido e simplificado. No caso de Schelling, especificamente, uma exposição completa de sua filosofia seria impossível, pois o filósofo não só mudava de opinião, freqüentemente, sobre todas as coisas, como, também, contradizia-se em suas próprias formulações.
a própria formulação desta Idéia só ocorreu plenamente com Schelling
131
e seu sistema da Identidade Absoluta.307O idealismo de Schelling, embora
fundado nas lições fichtianas, distancia-se do de seu mestre, especialmente, no
que concerne à importância da arte como forma de reconhecimento do modo
de ação do Absoluto.308
Die Philosophie stellt nicht die wirklichen Dingen, sondern
ihre Urbilder dar, aber ebenso die Kunst, und dieselben
Urbilder, von welchen nach den Beweisen der
Philosophie diese (die wirklichen Dingen) nur
unvollkommene Abdrücke sind, sind es, die in der Kunst
selbst – als Urbilder – demnach in ihrer Vollkommenheit –
objetiv werden, und in der reflektirten Welt selbst die
Intellektualwelt darstellen. Um einige Beispiele zu geben,
so ist die Musik nichts anderes als der urbildliche
Rhythmus der Natur und des Universums selbst, der
mittelst dieser Kunst in der abgebildeten Welt durchbricht.
Die vollkommenen Formen, welche die Plastik
hervorbringt, sind die objektiv dargestellten Urbilder der
O idealismo schellingniano pretende sintetizar numa
unidade superior o infinito e o finito, o ideal e o real, o Eu e o Não-Eu, o sujeito
e o objeto, o Espírito e a Natureza – todos como manifestação do Absoluto.
Nessa medida, seu sistema assume a feição de uma poética, na qual se
resolvem todas as antinomias, todas as oposições, no interior de uma unidade
suprema, de uma indiferente Identidade Absoluta. E o papel da arte neste
sistema é o de representar o Absoluto em seu modelo original:
307Friedrich Schelling foi aluno de Fichte. Em seu Sistema do Idealismo Transcendental, de 1800, oferece uma interpretação mais clara e precisa da teoria da imaginação produtora, com a formulação do conceito de “produção inconsciente” – pedra angular de sua Idéia de Arte. 308Na verdade, apesar de Schelling empregar a terminologia fichtiana, na construção de seu sistema da Identidade Absoluta, sua concepção metafísica é completamente diferente da do mestre – e poder-se-ia, mesmo, dizer inversa. Por exemplo, enquanto que, para Fichte, a intuição intelectual, ligada a todos os atos da consciência, não se realiza como um ato perfeitamente consciente, para Schelling, define-se como ato perfeito da consciência. Essa distinção, apenas, entre tantas outras de fundamental importância, está na base da Idéia schelligniana de Arte.
132
organischen Natur selbst. Das Homerische Epos ist die
Identität selbst, wie sie der Geschichte im Absoluten zu
Grunde liegt. Jedes Gemälde öffnet die Intellektualwelt.309
Schelling concebe a intuição intelectual como a faculdade de
romper os limites do finito em direção ao infinito, isto é, ultrapassar o âmbito da
consciência comum, para se elevar até o Ser – o que significa realizar a
identidade do Eu consciente, limitado no tempo, com o Eu inconsciente – o
Absoluto. A intuição intelectual, como ato perfeito da consciência, ao voltar-se
para a natureza, realiza a identidade do consciente e o inconsciente, com a
consciência desta identidade.
310
309“A Filosofia não representa as coisas reais, mas seus modelos originais, dos quais, segundo as demonstrações da Filosofia, aquelas (as coisas reais) são reproduções imperfeitas; mas na Arte acontece o mesmo, com a diferença de que aquelas mesmas coisas reais tornam-se objetivas – como modelos originais – e representam, portanto, em sua perfeição, no próprio mundo refletido, o mundo inteligível. Para dar alguns exemplos, a Música não é outra coisa que o ritmo original da Natureza e do próprio Universo, que, por meio dessa arte, irrompe nesse mundo copiado. As formas perfeitas, que a Escultura produz, são objetivamente os modelos originais representados da própria Natureza orgânica. A Epopéia Homérica é a própria Identidade, como origem da História no Absoluto. Toda pintura descortina o mundo inteligível.” (Tradução minha.) SCHELLING. Philosophie der Kunst. Einleitung. Apud. ERDMANN, Johann Eduard. Philosophie der Neuzeit. Der deutsche Idealismus. Geschichte der Philosophie VII mit Quellentexten. Hamburg: Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH, August 1971, Seite 85. 310“A filosofia é a ciência do Absoluto, mas, como o Absoluto em seu agir eterno compreende necessariamente, como um só, dois lados, um real e um ideal, a filosofia, considerada do lado da forma, tem necessariamente de dividir-se segundo dois, embora sua essência consista justamente em ver ambos os lados como um só no absoluto ato-de-conhecimento.” Portanto, se a Filosofia é a ciência do Absoluto, a Arte é a sua forma privilegiada de manifestação. SCHELLING. “Exposição da idéia universal da filosofia em geral e da filosofia-da-natureza como parte integrante da primeira” (1803), p. 52. Vide Bibliografia.
Para Schelling, conhecer um produto da
intuição é conhecer a própria intuição, pois a atividade inconsciente age por
meio da atividade consciente, até a realização da plena identidade consigo
mesma. Mas antes disso, atuam elas separadamente, para que a produção
natural se manifeste objetivamente. Por outro lado, tal separação não pode
seguir até o infinito, como um ato livre, sob pena de não se realizar a
identidade de ambas as atividades. A arte nasce justamente da oposição entre
estas duas formas de atividade, e o produto artístico realizado mostra-se como
a superação da oposição entre consciência e inconsciência e, com ela, toda a
133
aparência de liberdade. Na arte se resolvem, como um favor voluntário do
Absoluto, todas as contradições entre a ação consciente (objetiva) e a
inconsciente (subjetiva). O Absoluto, princípio de identidade imutável entre
sujeito e objeto, entre essência e forma, entre consciente e inconsciente, é,
para a arte, o mesmo que o destino para toda a ação – uma potência obscura e
incógnita que confere perfeição às ações imperfeitas da liberdade,
manifestando-se, no sujeito, sob a forma do gênio. Assim, a arte é a
manifestação do Absoluto, como identidade na obra artística, realizada pelo
gênio. A Idéia de Arte, em Schelling, fundamenta-se na lei metafísica, segundo
a qual “o infinito está figurado em um finito, [e] este mesmo está, por sua vez,
como finito, no infinito, e (...) estas duas unidades, a propósito de toda a
essência, são de novo uma só unidade”311
Mas eis que, aqui, tornamos a encontrar o jovem narrador
proustiano – ainda em busca tanto do que seja a arte quanto do que venha a
ser a individualidade excepcional do artista. A essa altura, ele já passou por
algumas experiências pessoais e intelectuais, significativas o bastante para
saber, ou pelo menos intuir, que os juízos estéticos herdados e cultivados,
tanto pela aristocracia francesa quanto pela burguesia aristocratizada de sua
época, nada mais seriam do que a expressão da estetização da história das
relações entre aristocracia e burguesia, no seu longo processo de fusão; no
qual a primeira jogou com a sedução de sua longa e mítica tradição, fundada
nas prerrogativas do sangue, e a segunda, com o poder do Capital de
determinar os novos rumos da História. E dentre as experiências vividas pelo
jovem narrador, decisivas para o bom-sucesso de sua busca – agora –, foi o
– o Absoluto.
311SCHELLING. “Exposição da idéia universal da filosofia em geral e da filosofia-da-natureza como parte integrante da primeira” (1803), p. 51. Vide Bibliografia.
134
encontro, em Balbec, com o pintor Elstir, com o qual, a propósito de um retrato
enigmático e, aparentemente nada lisonjeiro, de Odette312
A sabedoria não se transmite, é preciso que a gente
mesmo a descubra depois de uma caminhada que
ninguém pode fazer em nosso lugar, e que ninguém nos
pode evitar, porque a sabedoria é uma maneira de ver as
coisas. As vidas que o senhor admira, essas atitudes que
lhe parecem nobres, não as arranjaram o pai de família
ou o preceptor; começara de modo muito diverso;
sofreram a influência do que tinham em torno, de bom ou
frívolo. Representam um combate e uma vitória.
Compreendo que não mais reconheçamos a imagem do
que fomos num primeiro período da vida e que nos seja
desagradável. Mas não há que renegá-la, porque é um
testemunho de que temos vivido de acordo com as leis
da vida e do espírito e que dos elementos comuns da
vida – da vida dos ateliers, dos grupinhos artísticos, se se
trata de um pintor – tiramos alguma coisa de superior a
tudo isso.
, executado pelo
grande mestre recluso, aprendeu que:
313
Ora, foi justamente essa reflexão de Elstir sobre o que seja
a sabedoria, seu solitário processo de elaboração e sua consubstanciação na
obra de arte, que fez com que o jovem narrador pudesse, retrospectivamente,
312Odette, a cocotte, é a personagem feminina que, no Em Busca do Tempo Perdido, faz o contraponto a outra personagem importante, a Duquesa de Guermantes, expressão máxima do ideal feminino e aristocrático, na narrativa. Odette, apesar de sua origem socialmente inferior e seu estilo de vida desabonador, seduz e conquista o rico esteta, de origem judaica, Swann, intimo do Faubourg de Saint- Germain, que, nela, via estreita semelhança com a filha de Jethro, pintada no quadro de Botticelli. Casa-se com ele, tornando-se, assim, o modelo de elegante senhora burguesa, afeita a todas as novidades e preciosas futilidades que o dinheiro pode comprar. Apesar de jamais haver sido admitida ao olímpico círculo dos Guermantes, na condição de senhora Swann, ironicamente termina, depois de viúva, por tornar-se a nova Princesa de Guermantes. 313PROUST. “A sombra das raparigas em flor”, pp. 349-350.
135
compreender a apreciar o retrato de Odette, como obra do gênio artístico, que
“opera à maneira dessas temperaturas extremamente elevadas que têm força
para dissociar as combinações dos átomos e agrupá-los outra vez conforme
uma ordem inteiramente contrária e correspondente a outro gênero.”314 Mais.
Fez com que o jovem aprendiz de feiticeiro passasse a ver aquele retrato como
“contemporâneo dos inúmeros que Manet ou Whistler pintaram com modelos já
desaparecidos e que pertencem ao esquecimento ou à História.”315
Outrora, para ver se isolava esse talento, eu desfalcava
de algum modo o que ouvia, o próprio papel, o papel,
parte comum a todas as artistas que representavam
Fedra e que eu previamente estudara para poder subtraí-
lo, para não recolher com resíduo senão talento da
senhora Berma. Mas esse talento que eu procurava
apreender fora do papel não formava mais que um todo
com este. Tal como acontece com grande músico (parece
que era o caso de Vinteuil quando tocava piano), sua
execução é de um pianista tão grande que já nem se
E ainda
mais. Fez com que, agora, “No Caminho de Guermantes”, no mesmo teatro em
que, outrora, fora buscar, “saturado dessas imaginações sobre a perfeição da
arte dramática”, a própria arte e o gênio encarnado em Berma, presenciasse o
milagre da presença da arte e do gênio artístico, simultaneamente, pelo
simples esquecimento das lições e regras exteriores, anteriormente
aprendidas. Pois a arte, o artista e o objeto artístico, como uma trindade
indivisível, só se realizam no próprio momento da criação:
314Idem, p. 347. 315Idem, p. 348. É impossível resistir à tentação de lembrar, e certamente Proust lembrou, de um outro quadro famoso, realizando-se como verdade artística, na narrativa, de sabor gótico, de Oscar Wilde, em O Retrato de Dorian Gray. Aqui, também, a verdade estética se expressa como testemunho de que “temos vivido de acordo com as leis da vida e do espírito”.
136
sabe se esse artista é mesmo pianista, porque (não
interpondo todo esse aparato de esforços musculares,
aqui e ali coroados de brilhantes efeitos, todo esse
salpicar de notas onde pelo menos o ouvinte que não
sabe a que ater-se julga encontrar o talento na sua
realidade material, tangível) esse desempenho se tornou
tão transparente, tão cheio do que ele interpreta que não
se vê mais a ele próprio o artista não é mais do que uma
janela que dá para uma obra prima.316
E dado que a produção artística nasce da intuição da
contradição entre duas formas de ação, a consciente e a inconsciente, o
artista-gênio diferencia-se completamente do simples artesão. Pois enquanto
este último produz conscientemente sua obra, limitado à reprodução do que
aprendeu tecnicamente, transmitido pela tradição e desenvolvido por seu
exercício contínuo, o artista-gênio, mesmo que necessariamente dotado dos
mesmos conhecimentos do artesão, supera-o, na medida em que seu processo
criador é intuição transcendental tornada objetiva, poética, da identidade
original entre o inconsciente, na ação e na criação, e o consciente. E é nessa
medida que o artista-gênio mimetiza a imaginação produtora do Absoluto, em
seu processo de expansão, “no ato-de-conhecimento eterno, para, na absoluta
figuração de sua infinitude no finito, recolher o próprio finito em si”,
317
316PROUST. “O Caminho de Guermantes”, p. 43. 317SCHELLING. Op. cit., p. 51.
ou seja,
representá-lo como um só com o infinito. Somente pela arte e graças ao artista
podemos satisfazer nossa ânsia de infinito, resolvendo em nós mesmos a
contradição que funda nossa existência no mundo. É pela arte, enfim, que
descobrimos, mais que pelo pensamento, o modo de ação do Absoluto. E é por
137
isso que, diante de uma obra de arte, somos todos tomados por um sentimento
simultâneo de inquietude e identidade, pois estamos diante da representação
perfeita da solução de um conflito metafísico, qual seja, a contradição aparente
no modo de produção do absolutamente ideal e do absolutamente real, pelo
Absoluto.
Portanto, com Schelling, temos uma Idéia de Arte, ao
mesmo tempo que a plena formulação da identidade do artista – ambas
produzidas no momento em que as sociedades européias passavam por
imensas transformações. As mudanças econômicas, sociais e mentais, sofridas
pelas formações sociais européias, entre a última metade do século e inícios
do XIX, relacionam-se à afirmação definitiva do Capital, que, como suprema
forma abstrata da riqueza, acelerou a destruição das antigas relações de
produção. A partir da Inglaterra, e especialmente após a Revolução Industrial, a
fábrica como unidade produtora, abarrotada de mão-de-obra assalariada,
tendeu a se espalhar rapidamente, pelo menos na Europa Ocidental. Mesmo
na França, cuja economia dependia, em boa parte, de uma requintada
produção de artigos de luxo, o novo modo de produção ganhou ímpeto, com as
campanhas napoleônicas, na passagem do século XVIII para o XIX, por novos
mercados e fontes de matérias-primas. Simultaneamente a este processo,
generalizou-se a ascensão da burguesia às posições de poder, em todas as
nações européias, ainda que freqüentemente em estrita aliança política com as
antigas aristocracias. Diga-se de passagem, que as alianças, inclusive pela via
matrimonial, entre classes privilegiadas, já conhecidas em períodos anteriores
e restritas a poucas regiões da Europa, como as repúblicas italianas, à época
138
do Renascimento318
318Talvez o exemplo mais contundente de enobrecimento, pela imensa riqueza e o progressivo refinamento, de uma família de origem plebéia, seja o dos Médici. Foi nesta família que nasceu Catarina de Médici, mãe de três reis e uma rainha de França.
, vinham não apenas contemplar as novas realidades
políticas ditadas pelos imperativos econômicos, mas também o anseio de
enobrecimento, sinônimo de refinamento, de riquíssimas famílias burguesas,
em troca da manutenção das condições materiais de vida de aristocratas
falidos, especialmente após a Revolução Francesa. E no que diz respeito às
mentalidades, é importante observar que, desde a segunda metade do século
XVIII, notadamente após Rousseau, tornou-se moda, notadamente entre os
filhos dos burgueses abastados, o cultivo dos arroubos do sentimento e da
imaginação. Era comum aos jovens bem-formados afetar, tanto um coração
sensível aos encantos da natureza, aos idílios místicos, ecológicos ou mesmo
sensuais, quanto um certo inconformismo, frente aos rígidos padrões morais e
comportamentais, característicos da antiga educação burguesa, baseada na
contenção dos gastos e das emoções. A juventude do crepúsculo do século
XVIII e dos alvores do XIX, muito provavelmente em função de uma educação
mais refinada, acessível, na maioria dos casos, apenas aos que detinham a
riqueza econômica, sonhava tanto em romper com os entraves impostos à
liberdade política, por uma aristocracia que se recusava a renunciar aos
privilégios do poder, quanto com a realização do sonho de uma humanidade
liberada das embrutecedoras necessidades naturais e sociais, reencontrando-
se, enfim, pelo cultivo da sensibilidade, com os mais elevados ideais de
civilidade, por ela vislumbrados, como o destino do homem, finalmente
reconciliado com toda a Criação. E a esta juventude e seus anseios
exacerbados havia de corresponder um sentimento do mundo, que se
traduzisse em algo mais do que conhecimento positivo das coisas; algo que
139
engolfasse em devaneio a realidade, que retirasse da mecânica newtoniana o
poder de ditar o ritmo do mundo, colocando em seu lugar, ao mesmo tempo, o
poder titânico do inconsciente e as ternuras do coração. Nascia, assim, uma
forma antes desconhecida de enobrecimento do homem.
A sensibilidade artística, isto é, a faculdade de desfrutar de
uma linguagem a que só os iniciados teriam acesso, mas que, paradoxalmente,
seria acessível a todos, implicou alternativa, mas sempre complementarmente,
a encenação de uma recusa dos estreitos parâmetros do modo de vida
burguês; o culto de uma dogmática da aura do artista, consubstanciada no
próprio objeto artístico; a aceitação, como verdade indiscutível, de toda sorte
de relatos maravilhosos, construídos em torno das peripécias e extravagâncias
do artista-gênio, sempre em trabalho de parto de uma nova e original
revelação. E o objeto dessa sensibilidade, a arte, não mais percebido como a
expressão material de um conjunto de regras de execução e de bom-gosto,
tornou-se uma questão de inclinação natural para as superiores regiões de
onde o belo emanava, livre dos limites ditados pela tradição ao processo de
criação. E ao artista, gênio oracular dos mistérios da criação estética, caberia
partilhar com seu público as cifradas mensagens, vibradas nas cordas mais
profundas de sua alma.
Mas se a Idéia schellingniana de Arte, isto é, a concepção
de que pela arte podemos conhecer o modo pelo qual o Absoluto cria o
absolutamente real e o absolutamente ideal – e que até hoje assombra o
imaginário do público e dos críticos com sua inefável presença espectral,
conferindo ao artista e ao seu fazer uma singularidade, sempre
contraditoriamente afirmada e negada pelas crescentes exigências do Capital e
140
de uma cultura de massas –, o fato é que, como construção teórica, essa Idéia
de Arte implicou o baralhamento das distinções entre arte e filosofia, a ponto de
obnubilar o significado epistemológico da filosofia para o conhecimento da
realidade. Tratou-se, então, de reconduzir a reflexão sobre a arte, ou seja, a
estética, ao seu devido lugar, no interior de um sistema filosófico maior. E o
realizador máximo desse feito, dentre os filósofos do Idealismo Alemão, foi
Hegel:
Contra toda tentativa de racionalização kantiana,
que se esforça por definir o conceito (ambíguo) da
beleza, e contra toda a exaltação romântica, que,
insatisfeita com essa ordenação, se instala desde o
início no absoluto da obra de arte, Hegel situa a
atividade artística.319
Em Hegel, a essência de todas as coisas não pode ser
apreendida fora da existência. Nessa medida, o homem e tudo o que ele faz
não existem fora da História.
320É por isso que o conceito hegeliano de belo se
constrói pela articulação de dois extremos: o geral metafísico, sob a
determinação do particular real.321
319CHÂTELET, François. “G.W.F. Hegel” In: CHÂTELET, François. História da Filosofia – Idéias, Doutrinas. Volume 5: A Filosofia e a História de 1780 a 1880. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974, p. 191. 320KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto: EDUERJ, 2002, p. 37. 321Der philosophische Begriff des Schönen, um seine wahre Natur vorläufig wenigstens anzudeuten, muss die beiden angegebenen Extreme in sich vermittelt enthalten, in dem er die metaphysische Allgemeinheit mit der Bestimmtheit realer Besonderheit verneinigt. HEGEL, G.F.W. Vorlesungen über die Ästhetik. Erster und zweiter Teil. Mit einer Einführung herausgegeben von Rüdiger Bubner. Stuttgart: Philipp Reclam Jun. GmbH & Co., 1971, Seite 64. (“Se se quiser pelo menos indicar, provisoriamente, a sua verdadeiramente natureza, o conceito filosófico de belo deve conter em si, conciliados, os dois extremos já referidos, posto que ele reúne a generalidade metafísica com a determinação da particularidade real.” – Tradução minha.)
Se entendemos que a filosofia hegeliana é o
próprio conhecimento do espírito sobre si mesmo, sua estética, ou filosofia da
arte, nada mais é do que a descrição de um momento no processo de
manifestação dos Espírito, antes de seu pleno advento. Assim, a Idéia de Arte,
141
em Hegel, ancora-se em sua reflexão sistemática, mais vasta, em torno da
odisséia do Espírito realizando a si mesmo na História:
“... a Arte exprime o Espírito descobrindo-se a si próprio,
em sua expressão sensível, natural, na intuição.
Espontaneamente, os povos depositam nas obras
artísticas suas mais altas idéias, que, por outros
caminhos, se exprimem nas religiões ou nos textos
filosóficos. A função da Arte é representar o Ser como
“belo”, isto é, estabelecer pontualmente, na obra, a
adequação do espírito e da realidade sensível. A beleza,
definida dessa maneira, não pode ser natural (ou
imitação da natureza): ela é sempre cultural.322
Por outro lado, a Arte também está sujeita ao processo
dialético. E esse processo divide-se em três grandes períodos, que
sedimentam a própria Idéia hegeliana de Arte. O primeiro período é o
simbólico, marcado pelo surgimento da Arquitetura, no Crescente Fértil, no qual
se observa a preponderância da matéria sobre a Idéia. Esse primeiro período
Desse modo, Hegel vê a Arte como uma das formas de
manifestação do Espírito. Mas uma forma que, comparada às duas outras – à
Religião e à própria Filosofia do Espírito –, seria a forma inferior de
manifestação; pois Hegel entende que a Arte somente representa a Idéia
objetiva e sensualmente. E isto quer dizer que, em sua dialética da
consciência, ou seja, no longo processo de autoconhecimento do Espírito –
processo histórico, por excelência –, caberia à Arte tão-somente o papel da
opinião, isto é, o da representação do Ser maniatado à substância.
322CHÂTELET. Op. Cit., pp. 191-192.
142
foi superado pelo segundo, o clássico, na Grécia Antiga, com o apogeu da
Escultura, na qual se representa o equilíbrio entre a matéria e a Idéia.
Finalmente, o mais espiritualizado e imaterial dos três, o romântico, que se
inicia com a pintura, na Idade Média, para culminar com a música e, para além
dela, a poesia do Romantismo Alemão – expressão absoluta da
preponderância da Idéia sobre a matéria. A partir desse ponto, a Arte morreria,
pois, a percepção da verdade caberia à sua forma mais adequada de
representação: a Religião.
Portanto, no interior do sistema dialético hegeliano coube à
Arte o papel de simples forma de transição, no processo de representação da
idéia de manifestação do Espírito ou, se se preferir, da Fenomenologia do
Espírito. Pois, para Hegel, a suprema forma da Idéia, com toda a sua verdade,
não se mostrava na contemplação, nem na Arte, com sua forma e seu
conteúdo. A forma suprema era privilégio do pensamento.
Identificamos, assim, o lugar de nascimento da Idéia de Arte,
num conjunto de sistemas metafísicos, conhecidos, na História da Filosofia,
pelo nome de Idealismo Alemão. O que poderia haver der comum entre esses
diferentes sistemas? A Alemanha do final do século XVIII ressentia-se tanto da
fragmentação quanto do domínio regional, concentrado nas mãos de
governantes absolutistas. O ideal de liberdade, soprado sobre as terras
teutônicas, vindo do outro lado do Reno, estimulava o pensamento e a
imaginação dos intelectuais alemães, no sentido da valorização dos
fundamentos mais caros de sua tradição. A disciplina herdada das antigas
corporações de oficio, o profundo misticismo, mal disfarçado pela especulação
filosófico-teológica de base luterana, o gosto pelo fantástico dos mitos e lendas,
143
produzidos pelo imaginário popular – tudo isso contribuiu para uma vertente de
concepção de Arte altamente intelectualizada, ao mesmo tempo que nostálgica
das conquistas civilizacionais dos povos germânicos. A Idéia de Arte, na
Alemanha, nasceu como manifestação idealizada de uma vontade de
sociedade organizada, a partir de um poder que representasse a identidade
mais profunda de um povo, de uma ”raça” orgulhosa de seu passado mítico,
místico e severo. O Romantismo Alemão, como expressão estética do
pensamento idealista, com sua predileção por personagens e situações
incomuns na vida cotidiana, com sua visão transcendente da realidade, buscou
uma linguagem capaz de exprimir conceitos e emoções com tal profundidade e
plasticidade, que toda literatura alemã poderia ser definida como o esforço de
reescritura das origens da língua, nascida das profundezas enevoadas de suas
florestas encantadas.323 Nesta medida, tudo em sua concepção de Arte, em
sua Idéia de Arte, é ascese, transcendência, anseio de alturas siderantes e
abismos envolventes – sonho de Identidade no Absoluto. Daí a Arte como um
caminho para a liberdade do homem, em relação ao mundo brutal da
necessidade, como a concebeu o pensador-artista, Schiller, horrorizado frente
os excessos da Revolução Francesa; daí a crítica fichteana a uma autoridade
exógena, a do domínio napoleônico, não fundada no imperativo de liberdade da
imaginação produtora;324
323Coube aos Irmãos Grimm, pelo levantamento completo dos mitos, lendas e narrativas populares germânicos, a reconstituição de uma identidade cultural e espiritual de seu povo, com o objetivo de fundamentar, pelo imaginário popular, o ideal de unificação da nação alemã. 324Lembremos, aqui, as famosas palavras de Beethoven, ao destruir sua primeira dedicatória da 3ª Sinfonia a Napoleão Bonaparte: “Ao grande homem que você foi.” Ainda sobre Beethoven, Carpeaux, ao discorrer sobre as suas Seis Canções Sacras, op.48, de 1803, observa que: “...essa fé [religiosa] de Beethoven aprofundou-se mais tarde pelos contatos com a filosofia idealista alemã, sobretudo a de Kant na interpretação acessível de Schiller; tampouco se querem excluir influências possíveis do pensamento de Sshelling.” CARPEAUX, Otto Maria. O livro de ouro da história da música, p. 207.
daí o artista-gênio como mensageiro e artífice de uma
imagem do infinito, em Schelling; ou a própria Arte como expressão idealizada
do poder, face visível de uma arquitetura perfeita, realizando-se progressiva e
144
vitoriosamente no mundo, como pensou Hegel; e isto para não identificá-la
como a manifestação de uma vontade sedenta de autoconhecimento libertador
de todas as limitações impostas pelo mundo das aparências, como a concebeu
Schopenhauer.
A Arte e sua Idéia nasceram, na Alemanha, da mais
profunda idiossincrasia de um povo que sempre se sentiu, por vocação –
palavra cara aos alemães –, destinado ao belo, tanto no poder de criar quanto
no de destruir, pois que ambos brotam de uma mesma raiz, o Espírito ou o
Absoluto, origem e destino indiferente de todas as formas estéticas, sejam elas
sublimes, grotescas ou ridículas, tanto na vida quanto na morte.
Conclusão
No Ocidente, o século XIX foi marcado por grandes
realizações no campo das artes. As principais cidades européias abrigavam
músicos, escritores e pintores que nos legaram obras que, até hoje,
constituem-se como referências tanto para criadores do século XX, quanto para
todos aqueles que discutem a arte e sua importância para vida em sociedade.
Freqüentemente, historiadores da arte e teóricos da Estética recorrem ao
legado do mundo das artes do século XIX, com o objetivo de fundamentar e
enriquecer suas abordagens do fenômeno da criação simbólica, nos diferentes
momentos da tradição artística ocidental. Mas o que pareceu escapar a todos
os que se dedicaram ao estudo das diversas linguagens artísticas, quer do
ponto de vista de sua história, quer no de suas propostas estéticas, é que,
justamente quando a arte apareceu-nos em todo o esplendor de suas
realizações, pudemos identificar seu momento de crise mais aguda. Dito de
outro modo, o processo de criação artística, ou melhor, a concepção desse
processo, marcada pela idealização do ato criador, como ato de caráter
transcendente, configurou uma profunda ruptura com os tradicionais
fundamentos da produção simbólica.
O artista do século XIX comportava-se como um indivíduo
que pairasse sobre o mundo, aspergindo-lhe ao mesmo tempo, sob a forma de
suas criações, o orvalho eterno de suas visões de além-mundo. Nessa medida,
o artista e a arte tornaram-se, como entidades singulares, objetos de um culto
que, no limite, serviu como marca distintiva de uma classe, a burguesia, que,
detentora do poder econômico e político, mas sem tradição, procurou, pelo
cultivo da sensibilidade e da freqüentação artísticas, legitimar-se, também,
146
como classe especial, no mundo que ela mesma construiu e no qual tudo se
desmanchava no ar, menos sua vontade de lucro. Assim, deslocado do mundo,
tanto pelo rompimento com os fundamentos tradicionais do ato criador, quanto
pela fixação narcísica a uma imagem transcendentalizada de si, o artista
tendeu a se perder no turbilhão das discussões e das modas circunstanciais de
gosto, tematizadas nos aristocratizados salões burgueses, quando não se viu
colocado na pura e simples condição de eco da ideologia da classe a que
servia, na ilusão de ser por ela servido.
Barthes, ao analisar o processo de formação da literatura
francesa, que ele prefere denominar de escritura, como linguagem artística,
confirma a importância do contato com as idéias e as formas, cultivadas na
Antigüidade, e tornadas conhecidas pelo trabalho disciplinado de humanistas,
dedicados à tradução de textos clássicos, mas não plenamente cientes de seu
significado em seus contextos de origem:
Há na Literatura pré-clássica a aparência de uma
pluralidade de escrituras; mas essa variedade parece
bem menor se colocarmos os problemas de linguagem
em termos de estrutura, e não mais em termos de arte.
Esteticamente, o século XVI e o começo do século XVII
mostram uma abundância bastante livre de linguagens
literárias, porque os homens estão ainda empenhados
num conhecimento da natureza e não numa expressão
da essência humana; a escritura enciclopédica de
Rabelais, ou a escritura preciosa de Corneille – para citar
apenas momentos típicos – têm como forma comum uma
linguagem em que o ornamento ainda não é ritual, mas
constitui por si um processo de investigação aplicado a
toda extensão do mundo. É o que dá a essa escritura
pré-clássica o aspecto mesmo da nuança e a euforia de
uma liberdade. Para um leitor moderno, a impressão de
147
variedade é tanto mais forte quanto a língua parece ainda
ensaiar estruturas instáveis e não fixou definitivamente o
espírito de sua sintaxe e as leis de aumento de seu
vocabulário.325
Assim, não é de admirar que a Revolução não tenha
mudado nada da escritura burguesa e que haja uma
diferença muito pequena entre a escritura de um Fénelon
e a de um Mérimée. É que a ideologia burguesa durou,
isenta de fissura, até 1848, sem se abalar nem um pouco
com a passagem de uma Revolução que dava à
burguesia o poder político e social, mas não o poder
intelectual, o qual ela já detinha há muito tempo. De
Laclos a Stendhal, a escritura burguesa nada mais fez do
que retomar-se e continuar-se por sobre a curta vacância
dos distúrbios. E a revolução romântica, tão empenhada
Claro está que toda essa aparente profusão de formas
literárias (“pluralidade das escrituras”), que tem sua origem primeira no trabalho
de exame e tradução de diferentes textos antigos, confluiu, no século XVII,
para um tipo de escritura que exprimia, inequivocamente, o triunfo de uma
burguesia aristocratizada, em função de sua proximidade com o poder:
Essa escritura clássica é evidentemente uma escritura de
classe. Nascida no século XVII, no grupo que se
mantinha diretamente no poder, formada a golpes de
decisões dogmáticas, depurada rapidamente de todos os
processos gramaticais que a subjetividade espontânea do
homem popular pudera elaborar, e voltada, ao contrário,
para um trabalho de definição, a escritura burguesa de
início foi tida, com o cinismo habitual dos primeiros
triunfos políticos, como a língua de uma classe minoritária
e privilegiada (...).
325BARTHES, Roland. “Triunfo e ruptura da escrita burguesa.” In: Novos ensaios críticos/O grau zero da escritura. Tradução de Heloysa de Lima Dantas, Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora Cultrix Ltda., 1974, p. 147.
148
nominalmente em perturbar a forma, conservou
prudentemente a escritura de sua ideologia.326
Abstração feita da abordagem estruturalista de Barthes, o
que interessa é a narração do nascimento da literatura (a “escritura”) francesa,
como forma de arte, e do escritor, como artista, no mesmo contexto de
formação e afirmação do Estado nacional francês, com marcante protagonismo
de uma burguesia, que tinha, em sua leitura dos conhecimentos herdados da
Antigüidade, tanto um meio de auto-representação quanto um instrumento a
serviço de seus empreendimentos econômicos. Essa origem marcou não
apenas a identidade do artista-escritor, mas, também, sua maneira de pensar
essa mesma identidade, quando confrontado com as transformações de sua
própria sociedade. Efetivamente, foi em 1848, e mais exatamente, com as
jornadas sangrentas de junho, “o acontecimento de maior envergadura na
história das guerras civis da Europa”,
327
326BARTHES, Roland, idem, pp. 148-149. 327MARX, Karl. “O 18 brumário de Luís Bonaparte”. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Seleção de textos de José Arthur Giannotti. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 334. (Os pensadores).
que, em França, a identidade do artista
colocou-se em xeque e, com ela, o próprio estatuto da arte.
A segunda metade do século XIX, época de triunfo
inconteste do capitalismo, sob efeito da segunda revolução industrial, de
desmascaramento do liberalismo, pela percepção clara de que essa ideologia
representava tão-somente o que a burguesia concebia e impunha como ideal
de liberdade, de profunda cisão social, pelo irreconciliável conflito de interesses
de classes, surpreendeu e desnorteou o artista, que se defrontava tanto com a
necessidade de opções políticas a tomar, quanto com a dolorosa consciência
de que seu tão querido e sagrado mister, como as crenças, os valores, os
ideais, também evaporava-se no ar.
149
Para Dolf Oehler, que, em O velho mundo desce aos
infernos, realizou um trabalho arqueológico de recuperação da insurreição de
1848, com o objetivo de estabelecer seu justo significado, na cena em que se
desenrolava a história da literatura e das idéias, no século XIX, com suas
possíveis conseqüências para as discussões estéticas futuras:
(...) a inovação essencial da modernidade literária depois
de 1848 consiste justamente na distância que ela toma
da linguagem de seu século. Assim como o público
afastou-se da literatura, a literatura afastou-se do
palavrório; em outros termos, a literatura moderna
caracteriza-se pelo fato de denunciar toda cumplicidade
com o espírito do tempo. Mas essa renúncia não coincide
em todos os casos e incondicionalmente com o esforço
de uma purificação da linguagem por meio do refúgio
buscado fora do mundo no qual ela é falada. Ao contrário
dos representantes da l’art pour l’art ou da poésie pure –
um Leconte de Lisle, o Gautier dos Émaux et camées, um
Mallarmé – Baudelaire e Flaubert abandonam-se
deliberadamente, embora com repulsa, à prosa de sua
época, a fim de “trabalhá-la até seus limites”. A sua
escrita vive da idée fixe de que há de se transformar
aquela prosa em arte: uma operação alquimista em que a
ironia servirá de catalizador. Porém isso significa que o
conhecimento do contexto semântico em nenhum lugar é
tão indispensável quanto justamente na obra dos
representantes dessa corrente crítica da modernidade
literária.328
Oehler, cuja tese traz a digital benjaminiana de trabalho com
a história, com o objetivo de pensar cultura, a arte, a Literatura, na perspectiva
de um marxismo humanizado, que salve a produção simbólica da mecânica
das determinações da infra-estrutura sobre a superestrutura, mas
328OEHLER, Dolf. O velho mundo desce aos infernos: auto-análise da modernidade após o trauma de Junho de 1848 em Paris. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 18-19.
150
resguardando valores teóricos caros ao materialismo histórico, como, por
exemplo, o princípio metafísico da luta de classes, como motor da história –
Oehler desenvolve a proposta teórica de situar o nascimento da modernidade,
na Literatura e na arte, justamente na segunda metade do século XIX, em
função de dois fatos históricos relevantes: o acirramento da luta de classes no
período, que aniquilou com as últimas ilusões quanto ao verdadeiro significado
do liberalismo, dramatizado pelo massacre de junho de 1848, em Paris, e a
produção de “vítimas literárias do recalque de junho”,329 nominalmente,
Baudelaire e Flaubert, “na medida em que uma leitura conformista retirou de
seus textos o conteúdo crítico.”330
O “conteúdo crítico”, a que se refere Oehler, diz respeito
basicamente ao posicionamento político do poeta e do prosador frente aos
acontecimentos da época. E é esse posicionamento que interessa para sua
análise histórico-semântica, pois que a detecção de elementos que
caracterizem uma estetização dos fatos políticos “à esquerda”, nos escritos de
Baudelaire e Flaubert, implica, primeiramente, o rompimento com a abordagem
marxista clássica, segundo a qual, toda a produção simbólica, da segunda
metade do século XIX, tem como seu fundamento ideológico último a
cosmovisão burguesa. Em segundo lugar, e articulado a esse movimento de
retirada de algumas das “mais eminentes vítimas literárias”
331
329OEHLER, Dolf, op. cit., pp. 16-17. 330Idem. 331Idem.
do limbo
burguês, o processo de construção do conceito de modernidade artística e, no
caso, literária, fundamenta-se, por um lado, na correta constatação de que a
própria sociedade “culta” burguesa custou a assimilar (e se o fez,
equivocadamente) tais artistas, tais autores, e, por outro, na identificação dos
151
elementos críticos ao comportamento e à Weltanschauung burgueses, que,
alçados à condição de valores estéticos, e por apontarem e superarem as
concepções burguesas de belo, garantem que a roda da história da arte e da
crítica literária continue a girar.
Ora, em que pese o fato de abordagens, como a de Oehler,
serem de importância indiscutível, não creio que a história deve ser contada em
termos de círculos que se expandem, a partir de um eixo fixo – no caso, o
conceito de arte do Idealismo Alemão, e especificamente da estética hegeliana.
Dito de outro modo, o ensaio que me propus construir não se baseou na idéia
de que a arte seja um fenômeno tão velho quanto a humanidade, nem que tudo
o que se possa pensar a respeito dela resuma-se a acompanhar suas
metamorfoses ao longo das eras, entre diferentes povos ou situações,
captando-lhe o espírito e as intenções, a cada momento ou em cada palco de
sua epifania, para no final podermos extrair de todo esse processo a mandala
de sua, ainda que provisória, significação. Diferentemente disso, o que pretendi
foi pensar a majestosa arquitetura da arte como uma construção da cultura
ocidental, a partir de determinado momento, com os materiais oferecidos por
uma certa tradição de criação simbólica, identificada por estetas como Ruskin e
Wilde, como artesanal.
Como conseqüência desta proposta, identifiquei três
linhagens na elaboração da Idéia de Arte e sua contribuição para a construção
da identidade do artista. Na linhagem francesa, observamos um percurso, ao
que parece comum, a tanta outras, qual seja, o da própria transição do sistema
artesanal de produção de bens simbólicos para o sistema de arte. O que
distinguiria essa primeira linhagem de outras seria justamente a estreita relação
152
com o poder monárquico, que se afirmava absoluto, a partir do século XVI.
Esse processo marcou profundamente a identidade do artista francês, sempre
dividido entre a vontade de criar e sua fidelidade ideológica ao poder. A crise
da arte, na França da segunda metade do século XIX, configurou-se, assim,
como uma crise de identidade do artista; crise da qual nasceu uma produção
literária que se recusou a assumir qualquer compromisso tanto com o poder
político quanto com o sistema estético dominante. Essa escritura dita
finissecular, inaugurada, de fato, na poesia com Baudelaire, na prosa com
Flaubert e, com solução de continuidade, radicalizada tanto no Às Avessas, de
Huysmans, quanto no ciclo de Em busca do tempo perdido, de Proust,
revitalizou o processo de criação pois, ao estetizar sua própria história, ao
refazer criticamente os percursos da linguagem literária, recolheu as gemas
preciosas de sua tradição, submetendo-as a um novo e rigoroso trabalho de
lapidação, para que dele resultasse uma nova jóia que, de tão de preciosa, não
pudesse ser vendida ou comprada no mercado das idéias ou das filiações e,
assim, ficasse por aí, para o usufruto e o deleite da inteligência e da
sensibilidade de todos ou de ninguém.
Uma segunda linhagem, inglesa, resultaria na elaboração de
uma identidade mais pragmática para o artista. A construção do Estado inglês
deveu-se, em boa parte, à atuação de uma aristocracia aburguesada, muito
mais interessada em lucros comerciais do que em disputas por precedências
dinásticas.332
332Com o fim da Guerra das duas Rosas, os dois principais ramos dinásticos feudais ingleses – os York e os Lancaster – desaparecem da cena política, dando lugar à ascensão da família Tudor. Esse último ramo dinástico, cujas principais personagens são Henrique VIII e Elizabeth I, realizará a centralização do estado inglês, fortalecendo-o pela aliança com a burguesia comercial inglesa e a redistribuição das terras da Igreja Católica à nobreza. Com os Tudor, tem início a longa e bem-sucedida marcha inglesa em direção à sua hegemonia econômica e cultural, entre as nações ocidentais. Foi no reinado de Elizabeth I que o teatro inglês viveu, com Marlowe e Shakespeare, sua brilhante transição de uma forma de
Nesse ambiente, em que as habilidades e os talentos individuais,
153
desde que postos a serviço do Estado e dos empreendimentos econômicos,
não encontravam regras nem óbices ao seu desenvolvimento, a transição do
sistema artesanal para o sistema de arte caracterizou-se, num primeiro
momento, pela permanência da preocupação com a execução técnica
associada aos novos conhecimentos, que a era das descobertas e do
incremento da pesquisa científica propiciava. Podemos dizer que Shakespeare,
em A tempestade, nos oferece um modelo de arte e de artista, quando saúda
os novos tempos da Era Moderna como os mais propícios à criação, em
função, justamente, da abertura de outros campos do saber para o engenho
humano, possibilitada pelas ciências e pelo espírito empreendedor e
aventureiro do homem. A arte na Inglaterra, pelo menos até o advento da era
vitoriana, era uma questão de empreendimento; e o indivíduo, simultaneamente
dotado de conhecimento técnico e erudito, sendo capaz de transformar esse
conhecimento em empreendimento lucrativo, seria o tipo ideal do artista inglês.
Até o século XIX, na Inglaterra, o artista cria sem nenhum outro compromisso,
que não fosse com o seu saber e sua capacidade de, com ele, ser social e
economicamente bem-sucedido.
A crise dessa visão da arte e desse modelo de artista, de
que Händel talvez seja o paradigma, anunciou-se já na primeira metade do
século XIX, mais exatamente, à época da ascensão ao poder da Rainha
Vitória.333
expressão genuinamente popular para um gênero de elaboração mais sofisticada, com o auxílio de argumentos inspirados na antiguidade clássica. 333A Rainha Vitória nasceu em 24 de maio de 1819, vindo a falecer em 22 de janeiro de 1901. Ascendeu ao trono britânico em 1837 e governou o império inglês até sua morte.
A Segunda Revolução Industrial colocou na ordem do dia a
necessidade de se organizar a sociedade inglesa de modo a que as energias,
individuais e coletivas, e os comportamentos por elas expressos fossem
154
colocados a serviço da expansão econômica das capacidades produtivas do
país. Os corpos, seus desejos e movimentos foram estudados e
esquadrinhados de modo a, pelo conhecimento de suas potencialidades e a
identificação de suas irregularidades, tornar possível a criação de regimes de
conduta, que melhor respondessem aos imperativos da produção. Normas e
regras de conduta social mais rígidas foram ensinadas e valorizadas, por
expressarem um ideal de civilidade e, especialmente, de moralidade,
condizente com a que se auto-representava como a mais desenvolvida
sociedade da época. Ao mesmo tempo, as condições precárias de vida, a que
estava submetida a população trabalhadora inglesa, constituíam um obstáculo
aos esforços de moralização civilizatória em curso. Como seria possível admitir
que valores como o belo e qualidades como a industriosidade, tão caros à
sociedade vitoriana, pudessem não ser cultivados, também, pelas classes
trabalhadoras? Como superar a terrível contradição entre as classes
abastadas, educadas na delicadeza moral e na sofisticação de gosto, e a
grande massa da população, entorpecida e brutalizada por uma carga de
trabalho sobre-humana?
Foi nesse contexto que John Ruskin, rico esteta inglês,
intelectual vitoriano modelar, com sua atenção voltada para os problemas
sociais, começou a desenvolver um conjunto de reflexões em torno das
relações entre a arte, o mundo do trabalho e a forma de organização da
sociedade – notadamente a capitalista. Para muitos, um homem de idéias
extravagantes e paradoxais, Ruskin, ao mesmo tempo em que reproduzia, em
seus escritos, tanto as idéias quanto o estilo vitorianos, foi capaz de formular
críticas bastante pertinentes e profundas à sociedade capitalista de sua época,
155
chegando, inclusive, a responsabilizar a nascente sociedade de consumo pelos
possíveis descaminhos que viriam a macular o próprio processo civilizatório.
Como esteta, conselheiro da elegante sociedade londrina, em matéria de arte,
além de professor em Oxford, Ruskin foi o primeiro intelectual influente na
Inglaterra, sem renunciar a uma visão bastante idealizada da arte, a pensar a
criação artística como síntese da união indissolúvel, embora negada desde o
século XVII, entre o trabalho manual e intelectual. Suas lições de arte, dirigidas
a trabalhadores, ao mesmo tempo em que iniciavam e educavam o povo
inculto, nos mistérios de um fazer e de um prazer tido como apanágio das
elites, tinham por objetivo contribuir para a criação de uma sociedade mais
humana e justa para com todos os seus membros.
John Ruskin, que influenciou estetas, artistas e intelectuais
de variadas tendências, como professor em Oxford, teve entre seus alunos
Oscar Wilde. Este último, que sempre fez questão de declarar sua veneração
ao mestre, levou às últimas conseqüências não apenas as idéias sobre arte do
autor de As pedras de Veneza, mas a crítica à própria visão de arte, defendida
e difundida na Inglaterra vitoriana. Wilde pensou a criação artística como
prática livre de qualquer intenção moralizadora; defendeu o ato criador como
pura invenção ou como o prazer de “prestar realidade ao inexistente”.334
334“O sumo prazer em literatura é prestar realidade ao inexistente.” WILDE, Oscar. Carta ao Diretor da Saint James Gazette. “Páginas de autocrítica.” In: Obra completa. Organizada, traduzida e anotada por Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S. A., 1995, p. 1318.
Ao
afirmar que a criação artística colocava-se para além de quaisquer
considerações morais, éticas, ideológicas, enfim, Wilde cometeu não apenas
uma espécie de “parricídio” estético, em relação a Ruskin, mas rompeu
irremediavelmente com a concepção vitoriana de arte, qual seja, a de que a
arte devia ser a expressão simbólica do sistema moral dominante. A história
156
registrou o que significou, para o autor de Salomé, a defesa do postulado da
arte pela arte, numa sociedade em que o culto ao, problemático, progresso
vinha, necessariamente, alinhado ao mais tacanho conservadorismo. Ao
defender o princípio de que o artista só deve ter compromisso com seu próprio
ofício, e que seu ofício é essencialmente artesanal,335
Não acrediteis que o espírito mercantil, que é aqui a base
de nossa vida e de vossas cidades, seja oposto à arte.
Quem construiu as magníficas cidades do mundo senão
os homens de comércio e somente eles? Gênova foi
construída por seus comerciantes; Florença por seus
banqueiros, e Veneza, a mais nobre de todas, por seus
nobres e honrados mercadores.
Wilde colocou em xeque,
simultaneamente, a identidade do artista e o modo como esse artista se
relacionava com a sociedade em que vivia e atuava:
336
Esse testemunho é bem característico de um esteta
ruskiniano,
337
335Numa “Retificação de erros”, dirigida ao Diretor do Daily Chronicle, Wilde é categórico, a propósito de O retrato de Dorian Gray: “Minha obra é uma tentativa de arte decorativa.” WILDE, Oscar, op. cit., p. 1324. 336 WILDE, Oscar. “Arte e o artesão”. In “Conferências”. Op. cit., p. 1022. 337É importante termos em mente, aqui, que Wilde foi aluno de Ruskin em Oxford.
para quem, em Literatura, o processo de criação nada tem a ver
com a representação de um encontro com o absoluto ou com qualquer outro
topos de uma estética de base idealista. Para Wilde, a arte, como forma de
expressão do belo, nas realizações humanas, devia apresentar, nessas
mesmas realizações, o mais alto grau da perfeição encontrada na natureza. Ou
seja, a natureza seria bela por ser perfeita e a perfeição consistiria na absoluta
harmonia entre a forma dos fenômenos naturais e sua função. Assim, as
realizações humanas só seriam artísticas se se caracterizassem pela mesma
perfeição encontrada na natureza. E é por isso que, em Wilde, artista e artesão
157
são duas expressões que designam o mesmo indivíduo: aquele que busca, não
a representação da natureza, mas a perfeição nela existente.338
Numa terceira linhagem, alemã, a concepção artesanal e
corporativa da produção simbólica foi instrumentalizada, como um traço do
espírito alemão, no momento em que os pensadores da filosofia crítica se
colocaram como os teóricos privilegiados da construção do Estado-nação. Dito
de outro modo, os idealistas alemães viram, nas manifestações e criações
populares, a expressão do espírito alemão, em processo de se consubstanciar
como nação. Nesse sentido, o romantismo alemão, correspondendo
esteticamente ao pensamento idealista, mostrou, em Literatura, por exemplo,
predileção por personagens e situações incomuns na vida cotidiana, como
manifestação do espírito, às vésperas de sua realização sob a forma de
Estado-nação. E por expressar o ideal de uma realidade transcendente, o texto
romântico apresentava-se como um objeto artificial, organizado de acordo com
o princípio causal mágico. A causalidade mágica não se confunde com a
causalidade natural, própria dos fenômenos, pois sua lógica é simpática, isto é,
postula uma correspondência entre coisas e situações distantes, numa
dimensão transcendental. Essa forma de percepção das relações entre coisas
e situações distantes não é racional – é mágica e está fundada na idéia de que
a verdadeira relação entre as coisas e as situações, relação que corresponde
ao que é essencial e permanente em todos os fenômenos, escapa aos limites
da razão. Assim, o que era prática artesanal, isto é, o que se realizava
rigorosamente dentro dos limites ditados pela razão, transformou-se em arte,
338“... e a perfeição é o que buscamos nós, os artistas.” WILDE, Oscar. “Páginas de autocrítica”. In: Op. cit., p. 1324.
158
na forma metafísica de conhecimento ou, se se preferir, de percepção estética
do espírito em sua manifestação.
Em suma, o processo de construção da Idéia de Arte, no
Ocidente, teve como contexto o movimento, típico do capitalismo, de
aniquilação progressiva de práticas artesanais, ao mesmo tempo em que se
valorizavam atividades que, embora nascidas da tradição popular, pudessem
romper com ela, em favor de uma sofisticada especialização, caracterizada
principalmente pelo exercício de uma sensibilidade refinada, associada a um
elevado padrão intelectual. Tais atividades, rompidos seus laços com a
tradição, resultaram nas diferentes formas de manifestação artística, que
assumiram, assim, por sua sofisticação, dificuldade e excepcionalidade, a
condição de apanágio distintivo das elites sociais – algo como um traço de
enobrecimento e autovalorização das classes dominantes, frente à grande
maioria da população pobre e “inculta”. Por outro lado, nascida das condições
estabelecidas pela afirmação progressiva da cosmovisão burguesa, a Idéia da
Arte, entendida como atividade burguesa de humanização, não se consolidou
de imediato; ao contrário, como todo processo de longa duração, conheceu
marchas e contramarchas, aclimatações, adaptações, enfim, linhagens de
formulação específicas, consoante lugares, momentos de sua expansão e
crise...
Talvez a única coisa que possamos afirmar sobre nossa
relação com o tempo é que somos incapazes de controlá-lo, de dominá-lo, de
determinar-lhe o ritmo e o sentido. Talvez a única coisa que possamos dizer
sobre nós mesmos é que guardamos alguma afinidade com o tempo, naquilo
159
em que ele se nos mostra mais presente – somos entes em constante
transformação. Qualquer definição que possamos dar quanto ao que somos ou
podemos ser, na ordem da substância, do Ser ou da Natureza, está fadada à
negação, e por tão boas razões quanto as que utilizamos para sua afirmação.
Com isto quero dizer que esta tese renunciou a determinar o que sejam as
coisas, a arte e seus objetos, o artista e sua subjetividade, como entidades
metafísicas, em processo de manifestação na história. Esta tese não pretendeu
garimpar, no rio da história, o metal de que a arte é feita, nem muito menos
descobrir por que efeito químico constituiu-se a identidade do artista. Não. Esta
tese não guardou nenhuma pretensão à verdade, isto é, a pretensão de dizer
que os fatos se deram de uma determinada maneira, a partir de regras pré-
definidas de causas e efeitos. Se houve alguma pretensão neste ensaio, e não
há como negar que escrevê-lo implicou uma tensão prévia de pesquisa,
experimentação, pensamento e invenção, tal foi somente a de propor uma
abordagem para alguns dos muitos problemas que envolvem as origens da arte
e do artista. E isto com o único objetivo de, quiçá, introduzir em nosso sonho
estético, de uma prática valorizada, a arte, e de uma individualidade cultuada, o
artista, um pouco do espanto semelhante ao de Orlando, quando se
redescobriu diferente do que acreditara ser, num tempo-lugar familiar e
estranho. Temos, assim, um dos mais fortes motivos, independentemente de
minhas próprias limitações, para esta tese mostrar-se, freqüente e
simultaneamente, lacunar, incisiva, divagante, objetiva, insegura e assertiva, tal
como toda construção onírica, a ponto de, muitas vezes, tornar-se digna de
crédito ou descrédito, de ser lembrada ou esquecida, de ser lida ou
160
simplesmente descartada. Mas, que digo? Será esta tese um sonho,
integralmente? Não. É tão-somente uma parte.
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