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GT19 - Juventudes, territorialidades e identidades
Vem Dançar o Anarriê no Espetáculo JuninoA Juventude Quadrilheira na Cidade de Salvador
Resumo: Em muitas festas
vivenciada pela juventude a partir da lógica do espetáculo. A festa junina, que
ao passar dos anos incorporou uma série de elementos alheios aos aspectos
mais tradicionais, é um momento de construção e/ou afi
principalmente para o público jovem. Dentro desse contexto, o presente
trabalho tem por objeto de análise os grupos de jovens que dançam quadrilha
na capital baiana. A proposta é analisar as modificações e ressignificações das
quadrilhas e a inserção da juventude nesse processo, bem como perceber os
diferentes interesses que (des)mobilizam esses jovens brincantes e as
identidades construídas por eles a partir das suas experiências festivas.
Palavras chaves: quadrilhas juninas
cultura popular
1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFBA. Atualmente participa do grupo, cadastrado pelo Cnpq, Oficina CinemaDr. Jorge Nóvoa está desenvolvendo a dissertação de mestrado (Re)significações da Tradição no Espetáculo Junino. da FAPESB.
Juventudes, territorialidades e identidades
o Anarriê no Espetáculo JuninoA Juventude Quadrilheira na Cidade de Salvador-BA
Catarina Cerqueira de Freitas Santos Email: catarinacerqueira@oi.com.br
Em muitas festas da contemporaneidade a sociabilidade festiva é
vivenciada pela juventude a partir da lógica do espetáculo. A festa junina, que
ao passar dos anos incorporou uma série de elementos alheios aos aspectos
mais tradicionais, é um momento de construção e/ou afirmação de identidades,
principalmente para o público jovem. Dentro desse contexto, o presente
trabalho tem por objeto de análise os grupos de jovens que dançam quadrilha
na capital baiana. A proposta é analisar as modificações e ressignificações das
lhas e a inserção da juventude nesse processo, bem como perceber os
diferentes interesses que (des)mobilizam esses jovens brincantes e as
identidades construídas por eles a partir das suas experiências festivas.
: quadrilhas juninas - juventude – tradição – espetáculo
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFBA. Atualmente
participa do grupo, cadastrado pelo Cnpq, Oficina Cinema- História, e sob a orientação do prof. Dr. Jorge Nóvoa está desenvolvendo a dissertação de mestrado São João do Pelô(Re)significações da Tradição no Espetáculo Junino. Essa pesquisa tem o apoio
o Anarriê no Espetáculo JuninoBA
Catarina Cerqueira de Freitas Santos – UFBA1
catarinacerqueira@oi.com.br
da contemporaneidade a sociabilidade festiva é
vivenciada pela juventude a partir da lógica do espetáculo. A festa junina, que
ao passar dos anos incorporou uma série de elementos alheios aos aspectos
rmação de identidades,
principalmente para o público jovem. Dentro desse contexto, o presente
trabalho tem por objeto de análise os grupos de jovens que dançam quadrilha
na capital baiana. A proposta é analisar as modificações e ressignificações das
lhas e a inserção da juventude nesse processo, bem como perceber os
diferentes interesses que (des)mobilizam esses jovens brincantes e as
identidades construídas por eles a partir das suas experiências festivas.
espetáculo –
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFBA. Atualmente História, e sob a orientação do prof.
São João do Pelô: Essa pesquisa tem o apoio financeiro
Introdução
Espaços de encontros e trocas, as cidades são lugares por excelência
de se fazer festa. Momentos de efervescência e êxtase, produção de memória
e de (re) elaborações de identidades, as festas representam, sem dúvida,
espaços de sociabilidade importantíssimos para as pequenas e grandes
cidades brasileiras. Alguns festejos populares na contemporaneidade,
entretanto, foram apropriados e transformados em mega-eventos com
finalidades turísticas, prevalecendo a lógica dos interesses mercantis, e
contribuindo para a retração de algumas manifestações populares. Isso ocorreu
com a consolidação de uma “sociedade de consumo”, na qual os bens culturais
também foram transformados em mercadoria a ser consumida, assentados no
poder da mídia e do marketing. Se nessa “sociedade do espetáculo”
(DEBORD, 1997) a cultura é pensada como uma cultura-mercadoria, a festa,
nesses novos moldes, passaria a ser vista e consumida e não mais vivida.
No Brasil, as Festas Juninas2 possuem uma relevância cultural para as
regiões Norte e Nordeste e atualmente oferecem uma mescla de
características híbridas que condensam elementos da modernidade e da
tradição. Nas últimas duas décadas, o São João em diversas localidades
baianas tem se tornado uma festa cada vez mais espetacularizada, uma vez
que agora os festejos são organizados com a participação de grandes grupos
No Brasil, as Festas Juninas possuem uma relevância cultural para as regiões
Norte e Nordeste e atualmente oferecem uma mescla de características
híbridas que condensam elementos da modernidade e da tradição. Nas últimas
duas décadas, o São João em diversas localidades baianas tem se tornado
uma festa cada vez mais espetacularizada, uma vez que agora os festejos são
organizados com a participação de grandes grupos multimidiáticos, empresas
2 O ciclo das festas juninas no Brasil gira em torno de três datas principais: 13 de junho, festa de Santo Antônio; 24 de junho, São João e 29 de junho, São Pedro. Comumente todo esse período é identificado unicamente como “O São João”. As festividades que compreendem o chamado ciclo junino - ou joanino – tornaram-se muito expressivos nas regiões do norte e nordeste brasileiro, superando até mesmo o Natal, a principal celebração do calendário cristão.
de bebidas e comidas, promotores culturais, além do próprio Estado e das
prefeituras das cidades.
Essa comunicação é fruto da coleta de dados e das impressões iniciais
do trabalho de campo desenvolvido a partir do projeto de mestrado São João
do Pelô: (Re)significações da Tradição no Espetáculo Junino. Um dos objetivos
desse projeto é analisar como são estabelecidas as relações entre
manifestações culturais juninas e a dimensão mais espetacularizada da festa.
Nesse sentido o estudo das quadrilhas é importantíssimo para as minhas
análises já que a quadrilha, por si só, condensa elementos da tradição e do
espetáculo. Foram realizadas entrevistas com integrantes da Federação
Baiana das Quadrilhas Juninas (Febaq), bem como com componentes de
diferentes quadrilhas baianas. Entretanto, a maior parte do trabalho de campo
foi realizado junto com a quadrilha junina Asa Branca, onde foi possível,
através do acompanhamento dos ensaios, conhecer um pouco do universo
quadrilheiro e descobrir os interesses que movem os participantes a se
engajarem nesse movimento.
(Quadrilha junina Asa Branca – Evento: Concurso Estadual de Quadrilhas Juninas 2009- Salvador/BA)
Mas, de onde veio a quadrilha junina?
Originária de uma contradança de mesmo nome trazida ao Brasil pela
corte imperial portuguesa, ela teve suas figuras e passos modificados ao longo
do tempo e dos lugares em que foi sendo executada. A princípio, eram quatro
ou oito casais que se organizavam em duas filas uma em frente à outra, com
as quatro extremidades. As quadrilhas pertenceriam às “danças baixas”, assim
chamadas porque nelas os casais fazem pequenos gestos cerimoniosos com
os braços e pernas e quase não levantam os pés, evitando movimentos
bruscos (Ribas, 1983). As descrições dos viajantes da época do Brasil colonial
apresentam as quadrilhas como danças praticadas nos salões ricos da corte,
tanto na cidade quanto no campo. Ao longo dos anos, a quadrilha
democratizou-se até se tornar uma dança praticada pelos menos abastados, e
claro, se transformou nesse processo.
Mas por que e como essa dança se tornou uma importante referência
da “festa do interior”? Segunndo Luciana Chianca (2010)
O que explica esse deslocamento simbólico é o fato político e as
implicações culturais da mudança de poder do Brasil republicano,
quando os costumes do período colonial e imperial foram
desprezados pelas camadas burguesas urbanas e citadinas.
Provavelmente nesse momento a quadrilha teria sido abolida das
festas dos citadinos ricos, continuando a ser dançada pela
população mais distante dos grandes centros urbanos, os
interioranos – geograficamente e simbolicamente.
A Quadrilha Junina Contemporânea
Nobre e cortês na origem, a quadrilha tornou-se uma dança e um
espetáculo popularizado e reinventado, marcando as festas de São João de
todo o país. As transformações culturais que as quadrilhas sofreram
correspondem a uma forma de adaptação a novas realidades sociais e aos
novos sujeitos. Ainda que suas referências sejam rurais, a quadrilha na
atualidade é também a expressão de uma cultura urbana condensando
diversos elementos da modernidade. Canclini (2000) defende a idéia de que é
necessário pensar que na cultura urbana também há cultura popular. Como o
universo do popular equivocadamente costuma ser associado com o primitivo e
com o que não é moderno, não se valoriza as manifestações da cultura popular
urbana que estão presentes na sociabilidade citadina. Para Canclini é possível
perceber que em algumas manifestações da cultura popular urbana, a “(...)
busca do moderno aparece como parte do movimento produtivo de âmbito
popular” (CANCLINI, 2000, p. 206), contrariando uma concepção idílica da
cultura popular como puro reflexo de um tempo arcaico.
As quadrilhas incorporaram novos elementos com, por exemplo, a
introdução de um tema gerador da quadrilha que propiciará a criação de um
cenário específico, do figurino (cada dia mais sofisticado – um matuto chique),
da musicalidade e, claro, dos passos de dança. Alguns elementos ditos
tradicionais ainda são obrigatórios; como a presença do casamento, grande
roda, formação do túnel.
No que diz respeito às quadrilhas baianas ainda existem alguns
diferenciais se compararmos com as outras quadrilhas do Nordeste. Nos
concursos nacionais as quadrilhas baianas são vistas pejorativamente como
mais um grupo de axé porque são as únicas que se apresentam
acompanhadas por músicos ao vivo. Outros elementos também se diferenciam:
saias mais longas, que dão ideia de maior movimento, os cabelos das damas
que ficam soltos, criando uma estética distinta das outras. A introdução de
batidas mais fortes e de alguns passos de dança afro compõe ainda o quadro
das especificidades baianas.
(Fonte: Site São João da Bahia – 2011)
Quando observamos o perfil dos participantes percebemos que a
maioria tem entre 20 e 35 anos, mas o número de jovens com menos de 20
anos vem crescendo, segundo um dos diretores da quadrilha Asa Branca.
Muitos são amigos, parentes, filhos ou vizinhos de pessoas que já dançaram
ou continuam dançando.A década de 80 foi o auge das quadrilhas na Bahia. Só
em Salvador no inicio da década de 90, segundo os dados da FEBAQ, havia
110 quadrilhas atuantes principalmente nos bairros populares. Hoje, entretanto,
em toda a capital só existem 11 grupos de quadrilha.
Quais seriam as causas de uma diminuição tão drástica? Os próprios
quadrilheiros me informaram suas hipóteses sobre essa questão:
1) Violência e a marginalidade: Como o tráfico, e a violência em geral,
os bairros ficaram muito perigosos e a as atividades que antes eram
realizadas de maneira comunitária diminuíram, consequentemente as
quadrilhas também perderam espaço.
2) Falta de apoio de órgãos estatais: O fato das quadrilhas não
receberem investimentos concretos, acabou desmotivando vários
quadrilheiros. O numero reduzido de concursos, e a premiação de
valor baixo que é oferecida aos campeões, também é um fato
destacado como desmobilizador
3) Outras formas culturais: O pagode e outras formas de sociabilidade
que surgiram nos últimos anos contribuíram para a construção de
identidades juvenis que não consideram a quadrilha junina como um
elemento cultural relevante para a sua formação.
Dentro dessa lista eu incluo ainda outro elemento recorrente na fala dos
quadrilheiros, mas que geralmente não figura como um dos fatores
determinantes para a diminuição do número de quadrilhas: a profissionalização
das mesmas.
As quadrilhas para se tornarem mais competitivas nos concursos, tendo
assim maior visibilidade e, portanto chances maiores de atrair recursos,
investiram na produção de verdadeiros espetáculos. Para colocar uma
“quadrilha na rua” são gastos em média 25 mil reais. A quadrilha mais cara da
Bahia, Forró Asa Branca gastou no ano passado cerca de 40 mil reais. Os
panos para produzir as roupas (muita seda e cetim) foram trazidos de São
Paulo. Aliado a essa questão, coreógrafos, cenógrafos e estilistas profissionais,
em alguns casos, são contratados para auxiliar na montagem da quadrilha. A
luxuosidade e os custos decorrentes dessa opção, não são para todos. As
quadrilhas que não conseguiram acompanhar tal evolução simplesmente
sucumbiram.
Uma questão polêmica em torno da profissionalização das quadrilhas
surge quando o assunto é o dinheiro. Na maioria dos grupos, os músicos, as
costureiras, os cenógrafos, e os profissionais que trabalham no apoio e na
preparação da quadrilha são recompensados financeiramente. Já os
dançarinos não recebem nada e pagam um carnê para poder dançar. Muitos
dançarinos questionam essa relação desigual, mais o argumento de alguns
donos de quadrilha é que os dançarinos são antes de tudo brincantes e não
dançarinos profissionais – ainda que alguns quadrilheiros tenham se tornado
profissionais depois de ingressar nas quadrilhas. O argumento deles é simples:
na verdade os dançarinos estariam contribuindo para a sua manifestação
cultural não morrer; pois sem esse dinheiro seria impossível dançar quadrilha.
Alguns quadrilheiros mais debochados ainda afirmam: ninguém reclama por
pagar por um abadá caríssimo durante o carnaval, qual o problema de pagar
por uma vestimenta bem mais sofisticada para dançar quadrilha?
Outro ponto bastante intrigante quando observamos os conflitos que
emergem a partir da introdução de uma lógica espetacular diz respeito a
participação de travestis nas quadrilhas. Na regulamentação dos concursos
que ocorrem na Bahia é vetada a participação de travestis como damas (é
importante destacar que um número considerado de homossexuais e travestis
participam sempre como cavalheiros). A fala de uma dançarina que,
discordando com tal regulamentação é bastante interessante. Para ela: “A
quadrilha hoje é um espetáculo. Os dançarinos representam um papel e, por
isso, tanto faz uma mulher ou uma travesti fazerem o papel da dama”.
Contrariamente, o presidente da FEBAQ, entretanto, apoia-se no argumento da
tradição para defender o veto às damas travestis. Pois defende que
tradicionalmente na quadrilha o papel da dama é da mulher e do cavaleiro é do
homem. Assim como não seria possível eliminar determinados elementos
tradicionais da quadrilha (grande roda, túnel.. anarie..), não é possível alterar
essa relação.
No momento é importante perceber as contradições que emergem nos
discursos entre o que é concebido enquanto tradição e o espetáculo pelos
participantes. Em determinados momentos tradição e espetáculo se articulam
perfeitamente. Mas, nesse caso, estão em trincheiras opostas.
Cultura: entre a negociação e o conflito
É impossível pensar tradição sem levar em conta inovação. A reflexão
de Hobsbawn e Ranger (1984, p.9) sobre as invenções das tradições é bem
recorrente nos estudos que buscam um contraponto da construção de uma
noção de permanência e uma imutabilidade atemporal de determinados
aspectos da cultura. Para o autor tradição é
“Um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras
tácitas ou abertamente aceitas. Tais práticas de natureza ritual ou
simbólica visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado,
aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer uma
continuidade com um passado histórico apropriado.”
Os autores apontam que a terminologia tradição inventada inclui tanto as
tradições deliberadamente inventadas e institucionalizadas, quanto as que
surgiram em determinado momento difícil de precisar e se estabeleceram com
enorme rapidez. Tal reflexão é importante porque historiciza as práticas
culturais e traz a tona, implicitamente a mutabilidade das culturas seja por
razões endógenas ou exógenas. Contudo, rotular uma tradição como
“inventada” não resolve a questão das tradições na contemporaneidade.
Principalmente se levarmos em conta a significação que os sujeitos atribuem
às suas tradições, ou seja, as representações e as identidades construídas a
partir dessas tradições independentemente das invenções, uma vez que elas
permanecem legítimas e reais para os seus atores.
Na atualidade é muito corrente a apropriação das tradições culturais
para fins turísticos e/ou mercadológicos. Isso ocorreu com a consolidação de
uma sociedade de consumo, na qual os bens culturais também foram
transformados em mercadoria a ser consumida, assentados no poder da mídia
e do marketing. Se nessa “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1997) a
cultura é pensada como uma cultura-mercadoria, a festa junina, por exemplo, é
pensada como um produto turístico a ser vendido.
No caso da quadrilha junina, ainda que ela seja considerada um dos
grandes símbolos das tradições das festas juninas, é fato que com a introdução
de uma lógica mercadológica nesses festejos, a quadrilha junina perdeu
espaço e em muitos casos se tornou um apêndice dos grandes shows
musicais. Entretanto ela ainda se faz presente e sua presença é interessante
para os organizadores dos festejos espetaculares para, de certa forma,
legitimar o seu evento.
Ao refletir sobre a cultura nos países latino-americanos na
contemporaneidade, o autor Nestor Canclini (200) aponta que, seguindo a
lógica da industrial cultural, o popular seria o que vende e o que agrada
multidões. Nesse sentido o que importa é o popular enquanto popularidade, e
obviamente produções da cultura popular também são apropriadas e
ressignificadas pela indústria cultural para atender demandas mercadológicas.
Na sua análise, a convivência entre o tradicional e o moderno, os conflitos e
diálogos estabelecidos pelos domínios da cultura erudita, da cultura popular e
da cultura de massa, acabam por produzir o que ele denomina de “culturas
híbridas”.
Há, contudo a necessidade de estabelecer um contraponto: a
reapropriação das quadrilhas dos espaços e, principalmente - ainda que possa
parecer contraditório, - da visibilidade que a Indústria Cultural pode possibilitar.
É útil citar o exemplo das quadrilhas juninas de Salvador: durante anos, quando
elas iam buscar apoio estatal, não eram recebidas e o apoio era recusado. Já a
partir do ano de 2007, quando o São João foi considerado um produto turístico
que deveria ser explorado as portas foram abertas para as quadrilhas, e hoje
há um concurso estadual, promovido pela Secretaria do Turismo,
importantíssimo para suscitar a criação de novos grupos quadrilheiros.
È interessante visualizar outra questão: a FEBAQ sempre buscou
financiamento para as quadrilhas através da participação em editais, mas
nunca foi bem sucedida principalmente porque as quadrilhas, segundo os
parâmetros estabelecidos pela secretaria do Estado, não estariam
enquadradas nas “manifestações da cultura popular”. Quando iam solicitar
patrocínio de instituições privadas a recusa era a mesma sob o argumento que
“aquilo” não era quadrilha de verdade. A partir de 2009 foi visível a mudança
de postura dos grupos de quadrilha que para conseguir financiamento
“voltaram às origens”, ou seja, resgataram elementos juninos mais tradicionais,
na dança, na composição dos ritmos e nos temas escolhidos. Foi possível
observar que nos últimos três anos, por exemplo, os temas escolhidos estão
mais ligados à cultura nordestina, os cabelos das moças estavam presos e os
passos de dança mais moderados. Isso é uma demonstração clara das
estratégias dos grupos populares para obter determinados ganhos de grupos
hegemônicos.
Elencando tais elementos e pontuando as implicações da introdução do
espetáculo na típica dança junina é possível afirmar que as quadrilhas juninas
de Salvador são manifestações da cultura popular?
Cultura e popular são duas expressões que quando estão juntas não são
vistas com muita simpatia por determinados pesquisadores. Alguns teóricos
não entendem que as relações sociais são dialéticas e, portanto categorias
estanques e fechadas em si mesmas não dão conta dos fenômenos sociais!
Por conta disso a formulação de um conceito de cultura popular e a
categorização de uma manifestação como tal deve levar em conta o conflito e o
embate em relação às culturas hegemônicas. A cultura popular não deve ser
definida por uma essência, a priori, mas pelas estratégias instáveis, diversas
com que os próprios setores constroem suas posições.
Concordando com Cuche (2002, p. 149) “Toda cultura particular é uma
reunião de elementos originais e de elementos importados, de invenções
próprias e de empréstimos”. Com as quadrilhas juninas não é diferente: a
relação de disputa, conflito, apropriações e (re)apropriações são eminentes nas
relações circulares da cultura.
Bakhtin (1999) problematizou a influência recíproca entre as práticas
culturais populares e as hegemônicas, rompendo as fronteiras e sugerindo um
fluxo regular de permeabilidade entre elas. Seu estudo enfoca a obra de
Rabelais e os aspectos cômicos e do grotesco nas festas públicas de rua –
principalmente no carnaval – que permitem a inversão momentânea da ordem.
Bakhtin formula um conceito fundamental, a circularidade cultural, que vai ser
definido por Ginzburg como “o influxo recíproco entre cultura subalterna e
cultura hegemônica” (GINZBURG, 1987, p. 20). Sendo assim o conceito de
circularidade é bastante dialético e atual, por entender a cultura como algo
dinâmico e como espaço de disputa de diversos setores sociais.
Uma conceituação muito em voga para a compreensão das relações que
são estabelecidas entre cultura popular\ massiva é a formulação proposta por
Canclini sobre as culturas híbridas. O enfoque do livro Culturas Híbridas:
estratégias para entrar e sair da modernidade (2000) se direciona para as
transformações das relações entre tradição e modernismo cultural e
modernidade socioeconômica nos países latino-americanos. A tese de
defendida por ele é que a globalização acentuou os cruzamentos interculturais,
trazendo a tona novas formas culturais.
Canclini procura construir uma nova perspectiva de análise do
tradicional, levando em consideração as interações com a cultura de elite e
com as indústrias culturais, para melhor sistematização, Canclini destaca
alguns pontos, que vão de encontro a uma visão clássica de cultura popular,
muito presente em estudos folcloristas criticados por ele. Ele próprio,
entretanto, utiliza as terminologias folclore, culturas populares e culturas
tradicionais como sinônimos, sem nenhum tipo de cautela.
A primeira tese apontada pelo autor é que o desenvolvimento moderno
não suprime as culturas populares tradicionais. Segundo o seu argumento, a
expansão das comunicações massivas não acentuou o processo de extinção
da cultura popular, vez que “as culturas tradicionais se desenvolveram
transformando-se” (CANCLINI, 2000, p.215), e houve a necessidade do
mercado de reconhecer a importância simbólica delas e, em certa medida,
incorporá-las e difundi-las. Já que não se pode defender um desaparecimento
das culturas tradicionais, cabe agora, segundo o autor, realizar estudos que
questionem como elas estão se transformando e de que maneira ocorre a
interação com as forças modernizadoras.
Devemos estar atentos para perceber, segundo o outro argumento do
autor, que o popular não é vivido pelos sujeitos populares como “complacência
melancólica para com as tradições” (CANCLINI, 2000, p.221); existindo muitas
práticas que transgridem, através da crítica humorada, determinadas ordens
sociais. Esse jogo de reafirmações de tradições que se tornaram hegemônicas
ao mesmo tempo em que há a subversão paródica das mesmas é observado
por Canclini em festas de rua, como o carnaval das cidades latinas ou no
artesanato religioso exposto nas feiras populares que, com muita ambivalência,
erotizam ou ridicularizam cenas bíblicas e imagens sacras.
Se a crítica de Canclini é claramente voltada para os estudos folcloristas,
observa-se, entretanto, que ele utiliza as terminologias folclore, culturas
populares e culturas tradicionais como sinônimos, sem nenhum tipo de cautela
no estabelecimento das diferenças entre elas. Esse tipo de confusão pode ser
identificado como uma questão teórico-metodológica problemática, já que a
adoção de determinados termos recupera sentidos históricos associados à
idéia de atraso e inferioridade.
O que mais nos preocupa, entretanto é que as abordagens sobre os
processos de hibridismos culturais, sincretismos ou qualquer outro tipo de
miscelânea são defendidas sem que seja realizado nenhum tipo de
problematização. O cuidado é necessário porque tais construções teóricas
podem veicular a idéia de que a mistura pode suprimir as marcas anteriores do
que foi misturado. Ou, o que é mais preocupante, que essas misturas ocorrem
de forma harmônica, sem conflitos e embates. Sobre esse processo, Durval
Albuquerque nos lembra que:
Fundir-se não é superar a diferença interna, é afirmá-la
permanentemente, é afirmá-la como condição mesma da fusão. O
sincretismo não é o desaparecimento da tensão entre o que se mistura,
é a afirmação do conflito e da luta como a própria possibilidade do que
aparece sincretizado. Albuquerque ( p.19)
Não negamos a interação cultural e os processos diversos de
apropriação cultural. Em hipótese alguma defendemos uma pureza cultural - e
isso fica claro pelas escolhas teóricas que apresentamos até aqui. Apenas ao
invés de adotarmos a concepção de hibridismo cultural, abraçamos a idéia de
circularidade cultural, extraída a partir da obra de Bakhtin, citada anteriormente,
por acreditar que ela condensa com maior precisão e complexidade os
movimentos contraditórios da cultura.
Bibliografia:
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Fraçois Rabelais. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
CANCLINI, N. G. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1997
CHIANCA, L. Quando o Campo está na Cidade: Migração, Identidade e Festa. In: Revista Sociedade e Cultura, janeiro-junho 2010, vol. 10, nº oo1, Goiania. p. 45-59
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc,
2002
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1984.
RIBAS, T. Danças Populares Portuguesas. Portugal: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, 1983.
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