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Vtor Manuel Fernandes Oliveira de Sousa
Um
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julho de 2015
Universidade do MinhoInstituto de Cincias Sociais
Da 'portugalidade' lusofonia
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Trabalho realizado sob a orientao doProfessor Doutor Moiss Ado de Lemos Martins
Vtor Manuel Fernandes Oliveira de Sousa
julho de 2015
Universidade do MinhoInstituto de Cincias Sociais
Da 'portugalidade' lusofonia
Tese de Doutoramento em Cincias da Comunicao Especialidade em Teoria da Cultura
iv
v
Agradecimentos
A meus pais, Irene e Alfredo, por serem como so. E por serem peas fundamentais e
estarem sempre (ativamente) presentes nesta caminhada.
Goreti, a pea-chave deste meu percurso. Uma presena diria e que relativizou os
(muitos) devaneios do meu processo produtivo em que teve, durante muito tempo, uma
concorrente de peso: a portugalidade.
minha irm, cujo esprito crtico e a sugesto de alguns caminhos se revelaram
fundamentais na minha investigao.
Ao meu orientador, Professor Doutor Moiss de Lemos Martins, por me ter colocado nos
trilhos da investigao na rea da Cultura. Tambm pela liberdade que me deu no
desenvolvimento da minha investigao, instigando-me sempre a seguir o meu caminho e a
defender as minhas ideias, debatendo-as comigo e sublinhando determinadas particularidades. E
pelas conversas tidas ao longo deste percurso, que me ajudaram a simplificar o olhar e me
incentivaram a querer ir sempre mais alm. E, last but not least, por ser como .
Destaco, especialmente, os professores Manuel Pinto e Francisco Mendes. E a Ana
Melro, a Ricardina Magalhes e o Mrio Gaspar.
Uma palavra para os amigos que constituram uma verdadeira rede sobre a
portugalidade e atravs dos quais obtive algumas pistas e uma srie de contributos importantes
para a minha investigao. O que aconteceu, tambm, de outras formas: atravs de conversas,
de troca de bibliografia, por mensagens de correio eletrnico A todos, o meu obrigado.
Aos contributos enriquecedores daqueles que assistiram s minhas comunicaes em
eventos cientficos, com quem debati as minhas ideias, testando as minhas propostas de
investigao, de onde saram algumas pistas que se revelaram importantes para a presente
investigao.
vi
vii
L vais tu, caravela l vais e a mo que ainda me acena do cais dar a esta outra mo a coragem de em frente, em frente seguir viagem Ser que existe mesmo o levante? ando s ordens do nosso infante e c vou fazendo os possveis ei, deita a mo a este remo alm, so s paragens do demo quem sabe, s um abismo suspenso s vendo, mas o nevoiro denso Ser que existe mesmo o levante ando s ordens do nosso infante e c vou fazendo os possveis Mas parai, trago notcias horrveis parai com tudo j avisto os nossos conquistadores Vm num bote de madeira talhado em caravela com um soldado de madeira a fingir de sentinela com uma espada de madeira proferindo sentenas enterrada que ela foi no corao doutras crenas enterrada que ela foi, sua sombra era uma cruz exigindo aos que morriam que gritassem: Jesus! com um caixilho de madeira imortalizando o saque colorindo na vitria as armas brancas do ataque at que povos massacrados foram dizendo: Basta at que a mesa do Comrcio ainda posta e j gasta acabou como jangada para evacuar fugitivos da fogueira incendiada pelos outrora cativos e debandou nossa costa a transbordar de remorsos mas a rejeitar a culpa e ainda a pedir reforos Srgio Godinho. (1979). Os Conquistadores (Campolide). Porto: Orfeu.
Tudo o que nos abandona demora muito tempo para desaparecer. Antnio Lobo Antunes. (2013). Quinto Livro de Crnicas (p. 51). Lisboa: D. Quixote.
() o rei D. Lus quando, [ia] j bem adiantado o sculo XIX, perguntava do seu iate a uns pescadores com quem se cruzou, se eram portugueses. A resposta foi bem clara: Ns outros? No, meu Senhor! Ns somos da Pvoa do Varzim!. Jos Mattoso.(2008). A Identidade Nacional (14). Lisboa: Gradiva.
Agora sei-o. Mas nesse tempo ainda tudo estava para acontecer. De um momento para o outro poderia dar-se o milagre, ter comeo a aventura. E porque no encontrava escape para a minha impacincia, umas vezes subia o monte numa corrida de possesso, outras arranjava um barco e remava rio acima, rio abaixo. O mesmo rio que agora me parece alheio, porque eu prprio sou to outro. J. Rentes de Carvalho. (2011 [1994]). La Coca (186). Lisboa: Quetzal
viii
ix
Da portugalidade lusofonia
Resumo
A presente investigao pretende observar de que modo a 'portugalidade' - termo
cunhado durante o Estado Novo assente num imaginrio colonial centrado em Portugal, num
patamar supostamente superior s suas ex-colnias - pontua a construo de um conceito ps-
colonial, o da lusofonia.
Na sequncia da revoluo do 25 de abril e em resultado do corte ideolgico com o
regime deposto, este conceito, aps um hiato, no entanto reintroduzido, seja atravs da classe
poltica, dos profissionais de marketing ou de branding, ou pela via de situaes aleatrias.
O certo que a palavra est ausente dos dicionrios de referncia portugueses, bem
como das enciclopdias. As tentativas de fixar o significado da palavra vo sendo desenvolvidas
pelos dicionrios mais comuns, muito embora o faam com um ngulo de tal modo aberto que,
mais do que tipific-lo, alimentam os equvocos que lhe esto subjacentes. Defende-se, por isso,
que a palavra portugalidade seja tipificada, contextualizando-a.
O conceito portugalidade decorre de uma lgica estado-novista para que as ex-colnias
fossem vistas pela ONU no como territrios autnomos, mas como parte integrante do territrio
portugus (provncias ultramarinas), corroborado pelo discurso parlamentar da Assembleia
Nacional, a partir de 1951 (data da revogao do Ato Colonial), pela introduo da palavra nos
discursos dos deputados. Toda essa estratgia ia no sentido de combater os movimentos
independentistas que emergiam nas antigas colnias, defendendo a pertena desses territrios a
Portugal, por via do seu destino histrico. Esse facto seria sublinhado no discurso poltico da
portugalidade, com a assuno de Portugal, como um pas uno e indivisvel: Portugal do
Minho a Timor.
Tendo-se desmoronado a maior parte dos imprios com o fim da II Guerra Mundial, no
caso portugus o assumido imprio prolongar-se-ia por mais trs dcadas. De que forma que
toda essa dinmica se refletiu na lusofonia? possvel encarar a lusofonia centrada em Portugal,
como produto da portugalidade? Faz sentido essa perspetiva quando a globalizao esbateu as
fronteiras e diluiu as singularidades identitrias, permitindo que se perspetivassem relaes
multiculturais e/ou interculturais?
x
Em resultado desta investigao pode concluir-se que, sendo a lusofonia uma
construo de difcil concretizao, um processo prenhe de clivagens entre os pases integrantes
da CPLP (o que se pode constatar atravs da observao do seu histrico relacional), ela pode
desembocar numa utopia, caso no se desfaam os equvocos em que navega: as narrativas do
antigo Imprio e a sua associao a uma centralidade portuguesa, o luso-tropicalismo associado
ideia de colonizao doce e a sua rejeio por parte de quem est ressentido com a
colonizao dos portugueses, os outros das ex-colnias (Martins, 2014). Desta forma, no
poder existir lusofonia com portugalidade, sendo mesmo um contrassenso avanar com tal
associao.
Mesmo que os polticos a ela ligados insistam em adi-la, a lusofonia deve ser feita por
quem a encara com uma dinmica cosmopolita resultante da globalizao, de forma a permitir
combater um dos outputs dessa mesma globalizao: a homogeneizao cultural. Para
concretizar esse desiderato, necessrio que quem pretenda coloc-la em prtica, esteja
mentalmente descolonizado para que os equvocos que lhe esto associados possam
desaparecer. A lusofonia dever ser construda, assim, diariamente.
Palavras-chave:
Estado Novo; portugalidade; lusofonia; identidade; interculturalismo
xi
From Portugalidade to Lusophony
Abstract
This research aims to observe how the 'Portugalidade' - a term coined during the Estado
Novo a result of a colonial imaginary centered in Portugal, in a supposedly superior level to its
former colonies - punctuates the construction of a post-colonial concept, the concept of
Lusophony.
After the revolution of April 25 (The Carnation Revolution) and as a result of an
ideological break from the previous regime, this concept has been however reintroduced, either
through the political class, through marketing or branding professionals, or by means of random
situations.
The truth is that the word is absent from most Portuguese reference dictionaries, and
encyclopedias. Attempts to determine the meaning of the word are being developed by the most
common dictionaries, although they do so in such an open way that rather, more than typifying it,
they feed the misconceptions underlying it. It is argued, therefore, that the word 'Portugalidade'
should be exemplified, by contextualization.
The concept 'Portugalidade' results from the objective of the Estado-Novo, to let its
former colonies be recognized by the United Nations not as non-autonomous territories, but as
part of the Portuguese territory (overseas provinces). This concept was reinforced by the
parliamentary political speeches of the National Assembly members, from 1951, abolition date of
the Ato Colonial (Colonial Act). All this strategy aimed to combat the independence movements
that emerged in the former colonies, defending that these territories belonged to Portugal, via its
'historical destiny'. This fact was underlined in the political discourse of 'Portugalidade', with the
assumption of Portugal, as a unified country: Portugal from "Minho to Timor.
With the end of World War II, most of the empires collapsed whereas in the Portuguese
case the assumed 'empire' would extend for over three decades. How was all this dynamic
reflected in the Portuguese-speaking world? Can Lusophony be centered in Portugal, as a product
of the 'Portugalidade'? Does this perspective make sense when globalization has brought down
the boundaries and diluted the singular identities, allowing you to envisage relations based on
multiculturalism and interculturalism?
xii
As a result of this investigation it can be inferred that the Lusophony is a difficult
construction to achieve in a process full of dividing lines among the member countries of the
CPLP (which can be seen by observing their relational history) and that it can develop into an
utopia if the misconceptions which surround it are not solved: the narratives of its ancient
empire, its association with a Portuguese centrality, the Luso-tropicalism and sweet colonization
idea and its rejection by those who are resentful of the colonization of the Portuguese, the 'other'
from former colonies (Martins, 2014). Therefore, Lusophony cannot coexist with 'Portugalidade',
and it is even an absurdity to move forward with such an association.
Even if politicians insist on postponing it, Lusosphony should be made by those who look
at it from a cosmopolitan perspective resulting from globalization, in order to combat one of the
outputs of globalization: cultural homogenization. In order to achieve this aim, those who want to
put it into practice, should be mentally 'decolonized' so that the misunderstandings associated to
it, could disappear. The Lusophony should be built, so-to-speak on a daily basis.
Keywords:
Estado Novo; Portugalidade; Lusophony; identity; interculturalism
xiii
ndice
Introduo, questes metodolgicas e organizao da investigao 1. Introduo 1 2. Questes metodolgicas 7 3. Organizao da investigao 13
Captulo I 1. Das noes clssicas de estado, nao e de estado-nao crise de paradigmas e s suas implicaes na formao da identidade nacional
17
1.1. O estado, a nao e o estado-nao 17 1.2. A subjetividade da identidade nacional: Teorias sobre a identidade 20 1.3. O nacionalismo e a identidade nacional 22
2. A memria coletiva e a Histria 36 3. O patriotismo 41 4. O caso portugus 45
4.1. Existe uma cultura portuguesa? 56 4.1.1. Cultura dos imigrados e culturas de origem 59 4.1.2. Tradio cultural e culturas mistas 61
4.2. Portugueses e identidade: uma boa relao 64 4.2.1. Nacionalismo e Patriotismo na Sociedade Portuguesa Actual (IDN-ICS, 1988)
64
4.2.2. International Social Survey Programme-ISSP, 2003 (Identidade Nacional)
65
4.2.3. O que une os portugueses? (Universidade Catlica/Cmara de Comrcio e Indstria Portuguesa), 2014
66
4.3. A marca Portugal 66 5. A identidade em tempo de crise. A perda de soberania dos estados, os apelos ao patriotismo e a incerteza do futuro.
72
5.1. A(s) identidade(s) 74 5.2. As crises e as identidades 77 5.3. Os apelos ao patriotismo 78 5.4. A crise do futuro e o futuro da crise 81
Captulo II 1. Estado Novo e portugalidade 83
1.1. A propaganda do Estado Novo 94 1.2. Portugal Vasto Imprio 101 1.3. O luso-tropicalismo 112 1.4. O Estado Novo e a cunhagem da portugalidade 117
1.4.1.Hispanidade, inglesidade e portugalidade 124 1.4.2. A criao da portugalidade 129
1.5. A Exposio do Mundo Portugus (1940) 142 1.5.1. A Exposio do Mundo Portugus atravs do documentrio Fantasia Lusitana, de Joo Canijo
143
1.5.1.1.Um olhar sobre a identidade 147 1.5.1.2. O Estado Novo e a construo da verdade 148 1.5.1.3. Fantasia Lusitana: uma dupla fantasia 149
1.6. Representaes da portugalidade 150
xiv
1.6.1. Joana Vasconcelos e a portugalidade 151 1.6.2. A 'portugalidade' e o Servio Pblico de Mdia 152 1.6.3. Zeinal Bava, a Portugal Telecom e uma espcie de portugalidade 153 1.6.4. Reavaliao da noo de portugalidade 153 1.6.5. A portugalidade e D. Sebastio 153 1.6.6. O ser e o destino portugueses: uma teoria sobre a portugalidade 154 1.6.7. Portugalidade: Vises Alegricas? 154 1.6.8. A nova portugalidade atravs da msica 155 1.6.9. O fadista Ricardo Ribeiro e a portugalidade 155 1.6.10. Ordem de Ourique: a associao promotora de portugalidade 155 1.6.11. O grupo Portugality 156 1.6.12. Portugalidade: O que nacional bom? 157 1.6.13. A origem Portugal e a portugalidade 157 1.6.14. A Sagres e a ideia de reposicionar o posicionamento da portugalidade
157
1.6.15. Os lenos dos namorados e a portugalidade da TAP 158 1.6.16. A portugalidade em cautelas 158 1.6.17. A Vulcano e a portugalidade 159 1.6.18. A portugalidade e o turismo cultural 159 1.6.19. A ltima edio do jornal "O Retornado" e a 'portugalidade' 159 1.6.20. A 'portugalidade' de um crtico de TV do DN... 160 1.6.21. Uma primeira pgina do DN dedicada portugalidade 160 1.6.22. Intempries e portugalidade 160 1.6.23. Um clube de futebol madeirense que no tem nada a ver com a portugalidade
161
1.6.24. Um olhar pela 'portugalidade' atravs da morte de Eusbio 161 1.6.25. A portugalidade declinada no plural 1 161 1.6.26. A portugalidade declinada no plural 2 162 1.6.27. A portugalidade declinada no plural 3 162 1.6.28. O Drago de Portugal: um smbolo da portugalidade 162 1.6.29. Restaurao rpida aposta na portugalidade 162 1.6.30. Livros com portugalidade na capa 163 1.6.31. A portugalidade da Suazilndia 164
Captulo III O discurso parlamentar portugus e a utilizao da palavra portugalidade 165
1. Assembleia Nacional (1935-1974) 173 1.1. A portugalidade: as colnias e as ex-colnias ultramarinas 175 1.2. A portugalidade: educao, juventude, nao, ruralidade, restaurao nacional e lngua portuguesas
188
1.3. A portugalidade: homenagem e evocao de personalidades 196 2. Assembleia da Repblica (1976-2012) 199
2.1. A portugalidade: emigrao, dispora, lngua e cultura portuguesas 201 2.2. A portugalidade: homenagem e evocao de personalidades 208 2.3. A portugalidade como arma de arremesso poltico 209 2.4. Definies para o conceito de portugalidade 210 2.5. A portugalidade: educao, associativismo e juventude 210 2.6. A portugalidade: as relaes dos portugueses com o povo judeu e o Grupo 211
xv
Jernimo Martins 3. O discurso parlamentar, a utilizao da palavra portugalidade e o seu contexto 215
Captulo IV
A tentativa de fixao de um perfil para o portugus e a portugalidade produzida na bibliografia
229
1. Em Defesa da Portugalidade, de Alfredo Pimenta (1947) 249 2. Iderio de portugalidade. Conscincia da Luso/Tropicalidade, de Antnio Ferronha (1969)
255
3. Por uma portugalidade renovada (1973) e Portugal e o Futuro (1974), de Antnio de Spnola
279
3.1. Por uma portugalidade renovada (1973) 279 3.2. Portugal e o Futuro (1974) 290
4. A Histria de Portugal e a portugalidade. A viso de F. da Cunha Leo atravs de O Enigma Portugus (1960) e do Ensaio de psicologia portuguesa (1971)
294
4.1. O Enigma Portugus (1960) 294 4.2. Ensaio de psicologia portuguesa (1971) 286
5. A portugalidade enquanto Biografia de uma Nao, de Domingos Mascarenhas (1982)
301
6. D. Nunlvares Pereira: um exemplo de portugalidade 307 7. As relaes entre Portugal e Espanha e a portugalidade 310
7.1. O ponto de vista de Jos Fernandes Fafe 310 7.2. A perspetiva de Antnio Sardinha 317 7.3. Almeida Garrett: Portugal independente ou ligado a Espanha? 325 7.4. F. da Cunha Leo: as diferenas entre portugueses e espanhis 328 7.5. A defesa de uma Unio Ibrica, de A. H. Oliveira Marques (1975 e 1976) 331
8. Antnio Quadros: uma viso teleolgica da portugalidade 336 9. Agostinho da Silva: a portugalidade no mundo lusfono 345 10. A introduo portugalidade de Vtor Manuel Adrio (2002) 358
10.1. A Academia de Letras e Artes e a portugalidade 365 11. Mitologia , esoterismo e portugalidade 367 12. A obsesso de Onsimo Teotnio Almeida pela portugalidade 372
Captulo V A lusofonia: equvocos e constrangimentos de um termo pouco consensual 385
1. A construo da lusofonia 387 2. A ideia de Imprio e o caso portugus 401
2.1. Os estudos ps-coloniais como resposta da periferia ao domnio do centro 405 2.2. Ps-colonialismo: o caso portugus 408 2.3. Ps-colonialismo, imprio e lusofonia 415
3. A CPLP 437 4. Lusofonia e portugalidade 446 5. Clivagens nos mdia 454 6. Equvocos da lusofonia 458
Concluses 469
xvi
Bibliografia 487
Anexos 527
xvii
Lista de Tabelas
Tabela 1: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia Nacional por legislatura (12-01-1935 a 24-04-1974)
198
Tabela 2: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia da Repblica por legislatura (03-06-1976 a 14-09-2012
213
Lista de Grficos
Grfico 1: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia Nacional por temas (12-01-1935 a 24-04-1974)
197
Grfico 2: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia Nacional por ano (12-01-1935 a 24-04-1974)
198
Grfico 3: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia Nacional por legislatura (12-01-1935 a 24-04-1974)
199
Grfico 4: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia da Repblica por temas (03-06-1976 a 14-09-2012)
212
Grfico 5: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia da Repblica por ano (03-06-1976 a 14-09-2012)
214
Grfico 6: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade nos discursos dos deputados da Assembleia da Repblica por legislatura (03-06-1976 a 14-09-2012)
214
Grfico 7: Frequncia da utilizao da palavra portugalidade na Assembleia da Repblica por partido poltico (03-06-1976 a 14-09-2012)
215
xviii
1
Introduo, questes metodolgicas e organizao da investigao
1. Introduo
Confesso que foi apenas em 2010 que, pela primeira vez, ouvi falar em portugalidade.
Tratou-se de uma palavra que, de imediato, me provocou uma grande interrogao. Eu, que em
quase toda a minha vida profissional havia sido jornalista e realizado, por conseguinte, vrias
entrevistas e reportagens, utilizando diariamente o portugus como instrumento integrante do
meu processo produtivo, sentia-me desconcertado perante uma palavra, aparentemente simples,
mas para a qual eu no conseguia fazer corresponder qualquer significado, uma vez que nunca
me tinha deparado com ela. Tratou-se de uma situao que, para alm de intrigante, me causou
algum embarao devido minha impossibilidade explicativa.
Tudo aconteceu enquanto conduzia numa autoestrada portuguesa, ouvindo um debate
radiofnico sobre um assunto do qual j no me lembro, mas em que retive aquela palavra que
parecia ter feito rudo no discurso dos intervenientes. At ao meu destino, a portugalidade j
no me saiu mais da cabea, pelo que, logo que pude, fui pesquisar na Internet na tentativa de
ver esclarecida a minha curiosidade. Tratar-se-ia de um neologismo?
A tentativa de esclarecimento revelou-se problemtica: havia portugalidades para todos
os gostos e feitios: desde marcas de eletrodomsticos a ela associados, a textos em blogues
relacionados com alegadas marcas identitrias ligadas a Portugal, passando pela
afirmao/diferenciao de Portugal quando colocado perante outro pas, mormente em relao
a territrios de lngua oficial portuguesa, que tinham sido colnias portuguesas, ou pela definio
dos dicionrios online, onde a palavra era traduzida polissemicamente como: Qualidade prpria
do que portugus, Carter especfico da cultura ou da histria de Portugal ou Sentimento
de amor ou de grande afeio por Portugal. Estas propostas no me satisfizeram, uma vez que
estavam ancoradas em conceitos problemticos, remetendo para uma possibilidade
interpretativa bastante alargada e com um recorte subjetivo. No local onde me encontrava
consegui, tambm, consultar o dicionrio de lngua portuguesa publicado pela Porto Editora,
utilizado tradicionalmente pelos estudantes do Ensino Secundrio, mas o espetro das minhas
dvidas no diminuiu, j que o sentido difuso de portugalidade parecia, definitivamente, querer
ganhar forma. O referido dicionrio ia mesmo mais alm do que as propostas eletrnicas
consultadas, associando a palavra a um sentido verdadeiramente nacional da cultura
portuguesa. Ou seja: acrescentava-se mais uma possibilidade interpretativa que tornava o
significado da palavra ainda mais problemtico.
2
Na altura escrevi pouco mais de uma pgina sobre a portugalidade, sublinhando o
leque de interrogaes e inquietaes que o assunto me suscitara. Desde logo, um olhar bem
delimitado entre a noo de eu/ns (Portugal/portugueses) com a de outro/outros,
especialmente o que no fosse portugus, mas com ligaes a Portugal, numa perspetiva
claramente colocada num patamar superior ao binmio eu/ns, em relao ao binmio
outro/outros, sublinhando alegadas caractersticas prprias definidoras do que seria o
portugus. Mesmo se, do outro lado, estivesse um pas que tivesse sido ex-colnia portuguesa
e vivesse j em autodeterminao, livre, portanto, do jugo colonizador, mas de onde emergiam,
no entanto, as marcas portuguesas, como uma espcie de denominao de origem, no
obstante a descolonizao haver ocorrido j em 1975.
ideia de portugalidade parecia-me pois, haver uma associao com os
Descobrimentos portugueses, nomeadamente em relao s suas consequncias - como a
existncia de uma lngua comum e da imposio das formas de viver europeias -, no seguimento
de um domnio dos descobridores lusos sobre os povos indgenas dos territrios conquistados1.
Estas seriam as marcas da portugalidade que, mediante as pistas interpretativas da
dicionarizao mainstream, poderiam ter correspondncia com o conceito utilizado na
atualidade e que viria a despertar a minha curiosidade sobre o sentido a atribuir ao vocbulo.
No satisfeito com esta primeira constatao, e na sequncia de uma investigao mais
abrangente que decorreu das muitas interrogaes sobre o facto de a utilizao da palavra
portugalidade no ser assdua -, cheguei concluso de que a sua cunhagem era apontada
como tendo ocorrido nas dcadas de 50 e 60 do sculo XX, como constatei atravs do portal
Ciberdvidas da Lngua Portuguesa, o que faz com que seja um produto do Estado Novo,
perodo em que foram enaltecidos, atravs da propaganda, os feitos dos portugueses, com
destaque para os Descobrimentos2.
De resto, das pesquisas que efetuei sobre a portugalidade constatei no existirem
muitas publicaes especficas sobre o assunto. Sobre Portugal e os portugueses, existe uma
vasta obra publicada, nomeadamente por parte de escritores, historiadores, socilogos,
ensastas, filsofos e outros pensadores. Mas ser que isso tem que ver com portugalidade? A
1 exceo das ilhas da Madeira, dos Aores e de Cabo Verde, que no tinham populao quando foram descobertas pelos portugueses, todos os outros territrios j eram habitados, pelo que h quem defenda que, em vez de Descobrimentos, a expresso mais correta relativa chegada dos portugueses a estes territrios deveria ser achamento. 2 No seguimento destas pesquisas, fiz uma primeira abordagem problemtica da 'portugalidade' no Congresso Internacional "A Europa das Nacionalidades. Mitos de Origem: discursos modernos e ps-modernos", que se realizou na Universidade de Aveiro (9-11 de maio de 2011), atravs de uma comunicao intitulada O equvoco da portugalidade, de que resultou a publicao de um artigo [Sousa, V. (2014). 'O Equvoco da 'Portugalidade''. In Batista, M. M, Franco, J. E. & Cieszynska , B., Europa das Nacionalidades. Imaginrios, Identidades e Metamorfoses Polticas. Coimbra: Grcio Editor/Programa Doutoral em Estudos Culturais (353-370)].
3
palavra, desde logo, parece afastar quem investiga a problemtica das identidades, para isso
contribuindo, por exemplo, a opacidade do termo, o seu prprio significado, ou a ideologizao a
que remete ou pode remeter. S muito ao de leve existem referncias noo de
portugalidade, muitas vezes substituda pelo termo lusitanidade que, a meu ver, poder ser
interpretado da mesma forma que a portugalidade. No obstante no discurso poltico se
encontrarem com mais frequncia aluses portugalidade mesmo que isso acontea de
forma tnue -, nomeadamente de forma mais evidente desde o ano 2000, creio que elas no
tm uma importncia de forma a naturaliz-la no discurso, muito embora esse possa ser o
objetivo de quem a utiliza. Como se compreender atravs da presente investigao, a
portugalidade no se pode circunscrever apenas denominada direita parlamentar (o que
seria expectvel, a julgar pela sua associao ao Estado Novo). De resto, produo bibliogrfica
sobre a portugalidade aconteceu com mais frequncia exatamente durante o perodo em que
vigorou o Estado Novo, evidenciando uma lgica apologtica relativa propaganda do regime por
parte de quem perorou ou escreveu sobre o assunto. H, inclusivamente, quem tenha escrito,
como se ver, um Iderio da portugalidade, onde esto fixados os princpios gerais sobre o
assunto, associando-o maneira de ser dos portugueses e ao legado que deixaram aos povos
das suas ento colnias, e que era necessrio alimentar atravs da fixao de princpios
relativos portugalidade e ao luso-tropicalismo.
Entre a portugalidade mtica e a que se encontra no domnio da poltica, ainda
subsistem perspetivas de vrios investigadores que a fazem assentar num alegado destino
histrico de Portugal, reabilitando dessa forma a lgica da primeira Histria de Portugal, escrita
no sculo XVI por Fernando Oliveira, abrindo a porta ao que se pode interpretar, nos dias de
hoje, como uma dinmica tendente a um regresso de caravelas.
Tambm h quem defenda que a portugalidade surgiu por oposio hispanidade e do
perigo, ou apenas receio, de a hegemonia espanhola se poder alastrar a Portugal. O que
aconteceu durante o perodo que ficou conhecido pelo reinado dos Filipes que chegou ao fim
com a defenestrao de Miguel de Vasconcelos e a reabilitao da independncia nacional.
Atribui-se mesmo a Antnio Sardinha, grande referncia do Integralismo Lusitano, a paternidade
da portugalidade, ainda que se omita que o prprio, muito embora tenha defendido Portugal e
a sua independncia, era tambm defensor, como se ver, do pan-hispanismo, o que coloca,
desde logo, em causa a ideia de que teria sido um dos mestres da portugalidade, a par de
Salazar. Seria, no entanto, um outro integralista, Alfredo Pimenta, quem pela primeira vez
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escreveu e discorreu sobre o conceito de portugalidade, num opsculo datado de 1947. Foi
durante o Estado Novo que os referidos nacionalistas enfatizaram e reinventaram alguns mitos
de origem e o perfil alegadamente prprio do que era o portugus, num caldo de cultura onde a
portugalidade era primordial referncia.
No por isso de estranhar que, aps a Revoluo do 25 de abril, tenha havido um
hiato na utilizao da palavra portugalidade, como que a acompanhar o corte ideolgico entre a
palavra e o novo regime resultante da queda do Estado Novo. H, no entanto, algumas
publicaes sadas nos anos 80 do sculo XX tentando reabilit-la, atravs da evocao dos
feitos dos portugueses, por via dos Descobrimentos e das marcas deixadas em territrios
africanos, asiticos e americanos.
Muito embora a utilizao da palavra portugalidade junto da classe poltica seja muito
tnue, aos poucos foi sendo reintroduzida no discurso poltico e, embora de forma pouco
significativa, a sua importncia sublinhada devido s personalidades que estiveram associadas
a essa situao. Quando, por exemplo, o atual presidente da Repblica, a primeira figura do
Estado, utiliza a palavra portugalidade nos seus discursos, em ocasies diversas, isso constitui
um facto relevante que, devido ao seu peso institucional, pode ter implicaes relativamente
amplitude da introduo do termo e do seu conceito.
No que a meu ver, a portugalidade no devesse ser integrada na dicionarizao
portuguesa, mas pelo facto de subsistir, no entanto, a problemtica relativa ao sinnimo a
atribuir palavra j que, aqueles que existem, e que podem ser lidos atravs dos dicionrios de
utilizao mais comum, como se viu, do um lastro interpretativo que no permite fixar o termo
de forma inteligvel e objetiva. Para alm disso, a viso do mundo j no obedece a uma lgica
de unidade, como acontecia no tempo dos Descobrimentos, uma vez que a fragmentao
decorrente de vrios fenmenos, como foi o caso da globalizao, estilhaou aquela que era tida
como verdade nica, multiplicando as interpretaes do mundo e, por consequncia, as vrias
verdades que se refletem, nomeadamente, na problemtica das identidades nacionais, porque
rejeitam desde logo os essencialismos, como no caso da portugalidade se pode inferir.
Esta proposta vai no sentido de se saber at que ponto a marca da portugalidade,
profusamente difundida em pleno Estado Novo, sublinhando alegadas caractersticas adstritas ao
povo portugus, numa relao apologtica a esse regime, afetou, por via da propaganda e da
ideia de imprio ultramarino, as dinmicas relacionais com os povos das ex-colnias
portuguesas, plasmadas na ideia de lusofonia, um conceito ps-colonial, mas com um lastro que
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se reporta poca dos Descobrimentos portugueses. Lusofonia conceito hiperidentitrio que,
na sua etimologia, remete para Portugal e que, talvez por isso, faa com que o termo no seja,
ainda hoje, consensual, isto apesar de, como se ver, j sobre ele se terem escrito inmeras
opinies com vrios e heterogneos recortes e perspetivas. O que no deixa de ser irnico, j
que, apesar de se tratar de uma palavra ps-colonial, remete para uma centralidade do pas
colonizador. A lusofonia ter seguido a dinmica da francofonia, que surge no final da dcada de
40 do sculo XX na sequncia da descolonizao francesa, embora no caso portugus tenha
surgido mais tarde, apenas depois de 1975 e da consumao das independncias coloniais
correspondentes. Basta consultar, para o efeito, o Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa,
de Jos Pedro Machado, publicado pela primeira vez em 1952, e em cuja segunda edio, de
1967, no se contempla qualquer entrada relativa s palavras portugalidade e lusofonia.
nesse quadro que surgiu o ttulo da presente investigao: Da portugalidade
lusofonia, em que se pretende congregar pistas para responder pergunta: De que se fala,
quando se fala de lusofonia?. Ser que se est perante a extenso de uma alegada
portugalidade? Ou trata-se, afinal, de um espao cultural, inscrito num patrimnio imaterial,
ligado por uma lngua comum? Em contexto ps-colonial, que debate sobre o outro possvel
fazer-se? Se existe um outro ps-colonial, de quem se trata? Quem o outro ps-colonial? Que
mudanas na dinmica relacional eu-outro/outro-eu foram operadas aps a descolonizao?
Nesta investigao pretende-se questionar at que ponto o conceito de identidade nacional faz
sentido em plena globalizao multicultural/intercultural, especialmente quando esta se
relaciona com as comunidades imaginadas (Anderson, 1993 [1983]), nomeadamente as do
antigo Imprio, que representava a nao longe' (Richards, 1993).
Partindo da expresso outrar-se, associado heteronmia de Fernando Pessoa, que
levou ao limite uma lgica de despersonalizao enquanto fenmeno de fazer-se outro, adotando
vrias personalidades, dando-lhes vida e independncia prprias implicando a emergncia de
um novo ser, diferenciado do anterior, portador de uma nova forma de estar no mundo (mas que
tambm pode ser definida pela atitude de transformao decorrente do contacto com o novo e o
diferente, seja atravs de novas culturas, linguagens ou atravs do pensamento)3, pretende-se
3 Em Fernando Pessoa, existe a transformao do eu como um outro que pode ser enunciado como eu poder ser tu sem deixar de ser eu porque o eu enunciado mltiplo: O eu pretensamente centro da personalidade uma iluso ficcional, sendo que a personalidade adquirida por hbito ou defeito existencial, uma vez que o eu feito de eus (Gomes, 2005: 95-96). A heteronmia pessoana criou para a lngua portuguesa o verbo outrar-se e o substantivo outragem, confundiu o papel das pessoas verbais que tm como objetivo localizar o facto no tempo e espao sem, no entanto: o eu heteronmico [ser] tambm um no-eu (Ele) ancorado na terceira pessoa verbal; o eu de Fernando Pessoa fala sempre de um Ele, isto , fala da perspetiva da alteridade, fala como o outro, observa observando-se a partir do espelho sgnico (idem, 96). Pessoa foi nico na sua heteronmia, muito embora as referncias a um outro sejam recorrentes ao longo dos tempos no quadro da literatura, de que so exemplos Teixeira de Pascoaes (Eu sou todas as criaturas e todas as cousas. Eu, na verdade, no sou eu); Mrio de S
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observar no o discurso de e sobre o outro para uma procura de ns prprios, mas identificar
eventuais modalidades de interpenetrao identitria entre ns e o outro, no relevando, por
conseguinte, qualquer eventual caracterstica identitria. Uma dinmica em que outrar-se se
refere compreenso da existncia de outras/novas maneiras de relacionamento com o outro,
em que esto subjacentes a criao de uma nova tica e uma perspetiva cultural diferente. ,
afinal, uma via de contgio dupla, em que o eu e o outro interagem na base de uma relao
que assenta no respeito e na confiana e em que um e outro se perdem em resultado desse
encontro, numa diluio que faz emergir uma outra relao que j no apenas a do eu e o
outro de forma separada.
Trata-se de um objetivo que, partida, poder ser de difcil concretizao, uma vez que
emana de uma dinmica com recortes utpicos. Basta, para tanto, ter presente as posies
sobre diversas matrias do pas colonizador em relao aos pases que foram seus colonizados
(e vice-versa), que muitas vezes se assumem como clivagens evidentes entre ambos, j que a
descolonizao fsica no implica, necessariamente, a descolonizao das mentalidades. por
essa razo que os equvocos existentes vo complicando o percurso da lusofonia, que muitas
das vezes parece estar armadilhado, no obstante as partes integrarem um coletivo como o
lusfono, numa lgica de paridade que o estatuto de pases independentes lhes confere.
Embora esta lgica possa parecer contraditria, isso s acontecer, porm, para quem
assuma a lusofonia como uma extenso portuguesa, adotando o princpio de que a
portugalidade fez, avant la lettre, parte integrante de uma poltica estratgica do Estado Novo,
exportada nomeadamente para as ento colnias ultramarinas, numa descodificao que, na
atualidade, se faz da relao entre o outro e ns, que teve a gnese no framework anterior e
que, consequentemente, juntou muitos anticorpos impeditivos de ambiente relacional, onde as
trocas com o outro podero ser afetadas.
Segundo Jacques Lacan, a relao do sujeito com o outro inventa-se atravs de um
processo de bem-estar (Lacan, 1973), enquanto Albert Jacquard sustenta que essa relao est
para alm da felicidade e existe para que ela nos torne conscientes, tanto mais que
justamente porque o outro no idntico a mim que pode participar na minha existncia
(Jacquard, 1997: 14), mesmo que dessa coexistncia, como normal, resulte tenso. Dessa
forma, Alain Mons refere que o processo metafrico supe uma cena do outro, sugerindo que a
Carneiro (Eu no sou eu nem o outro/Sou qualquer coisa de intermdio:/Pilar da ponte do tdio/Que vai de mim para o outro); Rimbaud (Je est un autre); Walt Wittman (Do I contradict myself?/Very well then I contradict myself;/(I am large, I contain multitudes); ou Jean Paul Sartre (Lenfer, cest les autres).
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alteridade funciona a na sua radicalidade enigmtica, [que provoca] esse efeito de estranheza
assim que a metfora est em jogo (Mons, 1998: 266). Nesse sentido, observa que o pr o
mundo em metfora, ou a possibilidade de uma distncia em relao origem, parece uma
necessidade vital para o vnculo comunitrio o que signifca que a identidade se pode definir,
nesse contexto, como uma realidade movedia (idem, ibidem).
por isso que a minha convico, o meu propsito de investigao, releva da perspetiva
de que no pode haver lusofonia em conjugao (ou em simultaneidade) com portugalidade.
Trata-se de uma ideia de partida que decorre do percurso por mim efetuado antes mesmo do
desenvolvimento da presente investigao, que me haveria de provocar uma viso mais ampla
da problemtica em apreo. De facto, ambos os termos so hiperidentitrios, remetendo para
uma mesma origem, uma vez que a portugalidade pressupe um sublinhado de alegadas
caractersticas portuguesas, conceo referida exclusivamente a Portugal, enquanto a lusofonia,
se bem que na sua etimologia remeta para luso, abrange outros pases, que falam o portugus,
abarcando por isso um lastro que vai para alm do seu significado imediato j que convoca
um espao cultural constitudo por vrios pases que, no obstante tenham sido ex-colnias
portuguesas, so independentes e autnomos e integram hoje a comunidade internacional. A
expectativa que a perspetiva que desenvolvi possa ser validada no final desta investigao.
De resto, minha convico que esta investigao pode contribuir para promover a
reflexo que ainda est por fazer sobre a portugalidade, as suas origens, respetivas marcas, e
interpretaes, nomeadamente na prpria lusofonia.
2. Questes metodolgicas
A proposta metodolgica que se apresenta, assenta na hermenutica,
fundamentalmente na interpretao de textos. O objetivo ser proceder desconstruo dos
eventuais nveis de significao que se venham a encontrar, no numa lgica destruidora, mas
com o fito na desmontagem e decomposio dos elementos da escrita, atravs da diffrance,
como assinalou Jacques Derrida (1982 [1971]). Para tanto, pretendo faz-lo em relao ao texto
em si mesmo, mas tambm atravs do estabelecimento de comparaes entre textos,
promovendo a leitura de hipotticos pontos comuns e alegadas divergncias de perspetiva,
contextualizando-os. A este propsito, Moiss de Lemos Martins (2011) observa que essa tarefa
de ler e interpretar textos e imagens no circunscrevendo o seu mbito a um objetivo apenas
com preocupaes acadmicas, mas tambm cvicas -, faz do investigador um hermeneuta.
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Apesar de se tratar de um caminho que foge regra geral da maior parte dos cientistas
sociais que, como assinala o mesmo autor, so mais adeptos das ferramentas-fetiche da
profisso, no entanto, estribado numa lgica que permite quebrar com o statu quo, no
obstante possa levantar dvidas de carter terico-metodolgico, uma vez que aproxima o
trabalho ao do filsofo e do crtico literrio (Martins, 2011). Tanto mais que todo o verdadeiro
processo hermenutico () vive da tentao que explicar e compreender estabelecem entre si
podendo, por opo metodolgica, acentuar-se mais o processo explicativo, do que o
compreensivo ou o seu inverso, muito embora nunca se possa dispensar um plo de
movimento hermenutico em favor do outro (Martins, 2011: 68). Ou, como refere Paul Ricoeur
(2013 [1987]), a hermenutica constitui uma teoria da interpretao dos discursos, assumindo-
se como dialtica entre explicao e compreenso. O que significa que explicar a tentativa
de descrever a referncia (um facto ou um objeto externo), e em que as hipteses, leis e teorias
so submetidas verificao prtica da realidade; enquanto compreender se afirma como o
significado das mensagens (a sntese do contedo proposicional do discurso). O filsofo j tinha
fixado o conceito de hermenutica no artigo intitulado Existncia e hermenutica (1965),
integrado no livro O conflito das interpretaes: ensaios de hermenutica (1969):
Ao propor religar a linguagem simblica compreenso de si, penso satisfazer o desejo mais profundo da
hermenutica. Toda interpretao se prope a vencer um afastamento, uma distncia, entre a poca
cultural revoluta, qual pertence o texto, e o prprio intrprete. Ao superar essa distncia, ao tornar-se
contemporneo do texto, o exegeta pode apropriar-se do sentido: de estranho, pretende torn-lo prprio;
quer dizer, faz-lo seu. Portanto, o que ele persegue, atravs da compreenso do outro, a ampliao da
prpria compreenso de si mesmo. Assim, toda hermenutica , explcita ou implicitamente, compreenso
de si mediante a compreenso do outro (Ricoeur, 1978 [1969]: 18).
Paul Ricoeur compara, ainda, o texto a uma partitura musical, com o leitor a assumir-se
como um maestro que segue as instrues inscritas nessa partitura. Nesse sentido, refere que
compreender no o mesmo que repetir o evento do discurso num evento semelhante, mas
implica gerar um novo acontecimento, que comea j com o texto em que o evento inicial se
objectivou (Ricoeur, 2013 [1987]: 106). O texto possui, assim, um sentido autnomo fixado
pela escrita, o que pode impedir a compreenso da inteno do autor, pelo que o mal-
entendido da decorrente possvel e at inevitvel, sendo que o problema da interpretao
correta j no pode resolver-se por um simples retorno alegada situao do autor (idem,
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107). As interpretaes no so, assim, todas idnticas, pelo que o texto enquanto todo e
enquanto totalidade singular (idem, 109) pode comparar-se a algo que pode ser visto de
diferentes ngulos, mas nunca de todos os ngulos ao mesmo tempo. O que significa que a
reconstruo do todo tem um aspeto perspetivstico semelhante ao de um objeto percebido
(idem, ibidem). Nesse sentido, ser sempre possvel estabelecer uma relao de uma mesma
frase de modos diferentes a uma ou a outra qualquer frase, mesmo que esta possa albergar a
ideia-ncora do texto: No acto de ler est implcito um tipo especfico de unilateralidade. Esta
unilateralidade fundamenta o carcter conjectural da interpretao (idem, ibidem). Dessa
forma, h interpretaes que Ricoeur considera mais vlidas do que outras, pelo que sempre
possvel argumentar a favor ou contra uma interpretao, confrontar interpretaes, arbitrar
entre elas e procurar um acordo, mesmo se tal acordo fica alm do nosso alcance imediato
(idem, 112).
Com esta investigao pretende-se contribuir com uma interpretao decorrente das
anlises que me proponho desenvolver, numa perspetiva necessariamente qualitativa, assente,
obviamente, numa lgica subjetiva, que decorre da circunstncia de quem investiga e da sua
prpria idiossincrasia. De resto, o confronto entre a objetividade e a subjetividade inscrito no
quadro cientfico esteve associado de forma direta investigao quantitativa por oposio
qualitativa. Em causa estava o grau de confiabilidade, representatividade e relevncia de cada
tipo de metodologia, prevalecendo a lgica mais positivista da primeira em relao segunda,
tendo vigorado at dcada de 1960, altura em que se diluiu o equvoco. Neste quadro, a
perspetiva qualitativa assumiu-se como uma das escolhas possveis, a par da perspetiva
quantitativa, ou mesmo ambas em simultneo, mas nunca numa lgica de contraposio de
uma em relao a outra (Flick, 2004).
Esta dicotomia comentada por Boaventura de Sousa Santos ao assinalar que as
tradicionalmente consideradas barreiras ao desenvolvimento das Cincias Sociais j so
vivenciadas nas denominadas Cincias Naturais, o que provocou uma ampla reviso da
epistemologia da cincia moderna. Nesse sentido, a predominncia do fluxo de metforas das
Cincias Naturais para as Cincias Sociais j faz o caminho inverso, uma vez que so as
primeiras que recorrem s segundas, que por sua vez se assumem como um tanque de
analogias (Santos, 1988 [1987]).
Esta aproximao poder estar, no entanto, a desvirtuar o que esteve na base do
nascimento das Cincias Sociais e Humanas, como assinala Moiss de Lemos Martins
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sustentando que, hoje, ao nvel cientfico, no se promove a reflexividade, uma vez que se aposta
na construo e no na desconstruo (Pinto-Coelho & Carvalho, 2013). E, tendo presente que a
sociedade est em constante movimento, a cincia, atravs dos mtodos e das tcnicas, est a
converter a contingncia da vida em eternidade, numa lgica que, aparentemente, serve ao
funcionamento da sociedade atual, em que o interesse social se mede pela quantidade de
tecnologia e de cincia aplicadas (idem, ibidem). E, sendo o discurso ao, o investigador que
deve ser o protagonista da ao uma vez que o discurso performativo, sendo que os mtodos e
as tcnicas devem estar disponveis para serem utilizados sempre que se justifiquem. Segundo
Michel Foucault, uma teoria s til se possibilitar condies para que os objetivos sejam
atingidos, como acontece com uma caixa de ferramentas, sendo necessrio que a teoria
funcione para l de si prpria. Se no for utilizada, isso significa que ainda no tem o seu peso
especfico, ou ainda no o seu tempo, pelo que se utilizam outras eventuais teorias ou se
refazem as existentes (Foucault, 2010 [1975]). Deste modo, recorreu-se referida caixa de
ferramentas, por exemplo, para proceder a alguma anlise de contedo, nomeadamente quando
se analisaram as bases de dados do parlamento portugus relativamente utilizao da palavra
portugalidade e que se explicar na altura prpria. Em relao s fontes consultadas, foram
utilizadas publicaes, necessariamente datadas, uma vez que a portugalidade tambm ela
est datada, sendo que a propaganda do regime do Estado Novo incentivou a edio de vrias
obras relativas a esta temtica. Paralelamente, foram utilizadas vrias publicaes atuais,
nomeadamente dos prprios mdia, provando que o assunto pode considerar-se como estando
na ordem do dia, no sendo, pois, de estranhar que estejam includos nesta investigao vrios
artigos de opinio e notcias sados, por exemplo, nos jornais.
Este procedimento pode colidir, no entanto, com as linhas de fora da comunidade
cientfica, nomeadamente no campo das cincias aplicadas. que o pensamento de Foucault
no obedece a critrios lineares, compostos como se sabe, pelas tradicionais etapas, que
alegadamente transmitem conforto para a grande maioria dos protagonistas que esto
presentes nos diversos locais de produo de conhecimento. neste quadro que Moiss de
Lemos Martins sustenta poder diagnosticar-se um dos problemas atuais das Cincias Sociais e
Humanas, que consiste na dificuldade em situ-las do ponto de vista da compreenso, uma vez
que a lgica dominante privilegia as aes que visam o estabelecimento de mdias, de perfis e
de ratings (Pinto-Coelho & Carvalho, 2013), numa forma que parece ser deliberada de
subjugao aos mtodos quantitativos.
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Lisa Bortolotti sustenta existirem duas maneiras de identificar a funo de uma
atividade, neste caso a atividade cientfica: ou subjetivamente, olhando para as intenes
primrias das pessoas envolvidas na actividade, ou objetivamente, olhando para aquilo que
efectivamente os resultados da actividade acrescentam (Bortolotti, 2013 [2008]: 54-55) e que
nem sempre podem ser coincidentes. A diferena de perspetiva entre as duas lgicas de fazer
cincia tambm sublinhada por Rober E. Stake: Os investigadores quantitativos privilegiam a
explicao e o controlo; os investigadores qualitativos privilegiam a compreenso das complexas
inter-relaes entre tudo o que existe (Stake, 2009: 53). Assim, do ponto de vista do paradigma
qualitativo, o investigador considerado como parte do objeto de estudo, avanando para o
conhecimento da realidade social atravs da compreenso de acontecimentos.
Moiss de Lemos Martins assinala que as prticas humanas esto em relao direta
com a temporalidade e tm um tempo local, que o tempo da experincia, embora tambm
tenham um tempo contextual: o tempo de um dado campo social, com relaes de fora que
correspondem a posies sociais assimtricas dos atores sociais, a posies de mais ou menos
poder num dado campo social (Martins, 2011: 63-64). O que quer dizer que entre o tempo da
experincia e o tempo contextual anda o tempo da prtica (idem, 64).
Dos vrios modelos de ao social (entendida esta de forma aberta enquanto esforo
organizado no sentido de alterar o establishment) existe um que parte do princpio de que o
indivduo autnomo, livre e racional e um outro, que mais caro a Moiss de Lemos Martins,
que articula as nossas aces com um quadro de constrangimentos histrico-sociais que nos
so impostos, seguindo a hiptese de que as prticas so determinadas por um campo de
foras sociais (como o caso de Pierre Bourdieu, em O que falar quer dizer, 1982) e
tambm por estados de poder (como acontece com Michel Foucault no livro A Ordem do
Discurso, 1999 [1970]) (Martins, 2011: 64).
Filipe Verde refere que toda a tentativa de objetivao escapa ela prpria a essa
objetivao, uma vez que os recursos do intelecto no so completamente formalizveis
(Verde, 2009: 16). O que implica que tanto a noo de verdade como a de provado no sejam
coincidentes, deitando por terra os sonhos do Iluminismo, em que se pensava que o processo de
objetivao poderia ser controlado. O que significa que compreender algo no o mesmo que
compreender a compreenso, e a compreenso de natureza a no ser jamais completamente
compreendida (idem, ibidem).
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Para alm dos meios tcnicos de produo e transmisso, o processo de anlise deve
incorporar as relaes sociais, a estrutura das instituies sociais e as suas interaes ocorridas
nos momentos de produo e apropriao das formas simblicas. Na perspetiva de Alain Mons,
o pr o mundo em figuras efectua-se numa ordem simblica que unifica o disperso, sendo que
a tendncia antifigurativa das modernidades [se] inscreve nesse contexto (Mons, 1998: 250).
A reflexo sobre esses estudos e as suas interaes pode permitir uma produo de significado
pela via, por exemplo, da utilizao de uma metodologia da interpretao das formas simblicas,
atravs da hermenutica da profundidade. Como defende John Thompson (1995), isso
decorreria de uma dinmica assente na reconstruo criativa do sentido, explicando o que dito
ou representado, com a possibilidade de produzir uma rutura entre a interpretao e a
reinterpretao (entre a superficialidade e a profundidade).
O escritor Gonalo M. Tavares nas suas Breves Notas sobre Cincia (2006) glosa
sobre toda esta problemtica e sobre a busca da verdade por parte do cientista. por isso que
sustenta que a Histria das cincias se encontra sempre ligeiramente atrasada em relao
Histria dos Desejos. H metforas famosas, peguemos nelas. como se os cavalos fossem o
Desejo e a carroa puxada por eles a cincia (Tavares, 2006: 26). Isso no invalida, no entanto,
que seja o cientista com o seu chicote que direciona cavalos e carroa (idem, 27) e que, ao
enveredar por terenos psicanalticos poderemos dizer que a infncia, os prazeres, os medos,
guiam o chicote do cientista (idem, 28). J se o caminho assentar numa lgica mstica
poderemos dizer que o Destino que guia a infncia, os prazeres e os medos de um indivduo
(idem, 29), o que significa que, no obstante as investigaes cientficas dependerem de Deus,
do Acaso ou do Destino (ou do que lhe quiserem chamar), o facto que, apesar de tudo
dependem tambm da Razo (idem, 30). A minha convico , no tanto apesar de tudo,
como defende Gonalo M. Tavares, mas diria que acima de tudo, que as investigaes cientficas
dependem fundamentalmente da razo, como o caso da presente, muito embora o
cruzamento com um iderio mtico, simblico, messinico e, algumas vezes esotrico, parea
querer desviar o caminho percorrido dos trilhos definidos por uma razo tendente a ser o mais
objetiva possvel (o que, como j se viu,no deixa de ter caractersticas problemticas), mas que
se distancia do positivismo puro e duro.
O escritor sustenta, assim, que a metodologia serve para alcanar o incio, deixando
claro que Tu no usas uma metodologia. Tu s a metodologia que usas, esclarecendo desta
forma a sua perspetiva: Tu no chegas a um resultado. Tu chegas a uma metodologia, ou Tu
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no provas um facto ou uma teoria. Tu provas uma metodologia (Tavares, 2006: 62). Refere
que o olhar da comunidade cientfica desenvolvido pelo centro do olho, muito embora os
grandes investigadores o faam pelo canto do olho (idem, 76), o que conduz ideia da
existncia de desequilbrio na investigao, e que lhe suscita a seguinte reflexo: Investigar sem
desequilbrio avanar em cima de lama: algum se afunda (Tavares, 2006: 38).
Associando a ideia de tdio investigao cientfica questiona se Um investigador
cientfico infeliz no um bom investigador cientfico?; e se Um investigador cientfico
apaixonado no um bom investigador cientfico? (Tavares, 2006: 38). So dois problemas
diferentes, refere o escritor colocando-se na pele do homem com tdio, sendo que este,
assumidamente, no poder ser um bom investigador.
No que me diz respeito, tdio foi o que jamais senti no desenvolvimento da presente
investigao. Ao contrrio, ela suscitou-me crescentemente um sentimento de inquietao, de
curiosidade, mas tambm de satisfao pelo caminho percorrido, pelos objetivos atingidos, e
que se pode traduzir numa sensao de alvio e tranquilidade psicossomtica, evoluindo para
um reconfortante prazer.
3. Organizao da investigao
Os eixos interpretativos da presente tarefa assentaram numa srie de autores que tm
estudado e refletido sobre a problemtica da identidade que abarca as temticas da
portugalidade e da lusofonia. Incluem-se, para tanto, as perspetivas clssicas da identidade e
as correspondentes roturas de escala decorrentes do ps-modernismo, observando as
mudanas operadas. Convocaram-se, assim, vrios autores nacionais e estrangeiros -, dando
nota das vrias conceptualizaes da temtica estudada. Procedeu-se de forma interdisciplinar,
como se impe numa rea como so as Cincias da Comunicao, convocando, portanto,
outras disciplinas das Cincias Sociais como a Histria, a Sociologia e a Antropologia.
Em termos de organizao, esta investigao est dividida em cinco captulos. No
primeiro captulo Das noes clssicas de estado, nao e de estado-nao crise de
paradigmas e s suas implicaes na formao da identidade nacional disserta-se sobre a
problemtica da identidade luz de uma narrativa clssica, abordando os conceitos de estado,
de nao e de estado-nao, para posteriormente se evidenciarem as diferenas decorrentes da
globalizao e s subsequentes crises de paradigmas. Nessa perspetiva, destaca-se a
subjetividade da identidade atravs do mapeamento de algumas teorias sobre o nacionalismo e
14
da prpria identidade nacional. Dar-se- algum destaque memria coletiva e Histria, antes
de se abordar a questo do patriotismo e de se focar o caso concreto de Portugal, em que se
refletir sobre a existncia de uma cultura portuguesa. Da relao entre os portugueses e a
questo da identidade, mostrar-se-o os resultados de trs diferentes estudos, realizados em
pocas diferentes, terminando o captulo com uma abordagem marca Portugal.
No segundo captulo, que dedicado ao perodo do Estado Novo, a presente
investigao incidir no modus operandi daquele regime, mapeando os seus aspetos mais
significativos que desembocaram na cunhagem da palavra portugalidade. Assim, dar-se-
destaque propaganda do regime, ao imprio colonial, ao luso-tropicalismo e Exposio do
Mundo Portugus (1940). Algumas marcas da portugalidade na sociedade portuguesa atual
so realadas atravs do que se denomina por Representaes da portugalidade, que no so
mais do que uma amostragem que tenta evidenciar os vrios contextos em que a portugalidade
utilizada (so dados 31 exemplos). J no terceiro captulo, aborda-se a temtica da
portugalidade atravs da observao do discurso parlamentar portugus, em dois momentos
diferentes: nos discursos dos deputados da Assembleia Nacional (1935-1974) e da Assembleia
da Repblica (1976-2012), terminando o captulo com a utilizao e respetiva contextualizao
da palavra portugalidade no discurso parlamentar portugus.
No quarto captulo far-se- uma abordagem tentativa de fixao de um perfil para o
portugus, observando a utilizao da palavra portugalidade atravs da bibliografia. Mapeiam-
se, para o efeito, seguindo uma lgica cronolgica, as produes bibliogrficas desde Alfredo
Pimenta (Em defesa da portugalidade, 1947), Antnio Ferronha (Um iderio de
portugalidade e a Conscincia da Luso/Tropicalidade, de 1969), a Antnio de Spnola (A
portugalidade renovada, 1973) e Portugal e o Futuro, 1974). Disserta-se sobre a temtica
da Histria de Portugal e a portugalidade, atravs da viso de F. da Cunha Leo (O Enigma
Portugus, 1960) e Ensaio de psicologia portuguesa, 1971), integrando o livro de Domingos
Mascarenhas, Portugalidade - Biografia de uma Nao (1982), destacando o caso de D.
Nunlvares Pereira como exemplo de portugalidade (atravs do livro de Antnio Maria M.
Pinheiro Torres, Nun'lvares Pereira, heri e monge, catolicidade e portugalidade, de 2005).
Nessa perspetiva, referir-se- as relaes entre Portugal e Espanha e a portugalidade,
sobretudo atravs do ponto de vista de Jos Fernandes Fafe, Antnio Sardinha, Almeida Garrett,
F. da Cunha Leo e de A. H. Oliveira Marques, para alm da viso teleolgica da portugalidade
de Antnio Quadros e da portugalidade observada no mundo lusfono de Agostinho da Silva. O
15
captulo termina com a Introduo portugalidade de Vtor Manuel Adrio (2002), que
constitui uma abordagem mitologia portuguesa e portugalidade esotrica, em que se
integra a publicao de Srgio Franclim, A Mitologia Portuguesa, Segundo a Histria Inicitica
de Portugal (2009), terminando com Onsimo Teotnio Almeida e a sua obsesso pela
portugalidade, na esteira da aorianidade enquanto reivindicao bairrista.
Por ltimo, no quinto captulo, aborda-se a construo da lusofonia, reportando-nos
ideia de Imprio e ao caso especfico de Portugal, equacionando, tambm, o funcionamento
nesse quadro da Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa. Salienta-se, tambm, a
comparao entre os conceitos de lusofonia e de portugalidade, dando relevo s relaes entre
o ex-colonizador e os ex-colonizados atravs da observao de notcias publicadas atravs dos
mdia. Termina-se o captulo, colocando em evidncia os equvocos que a lusofonia encerra e
que necessrio desconstruir.
Exprimo a esperana de que esta tese possa contribuir para compreender e trazer a
lume uma temtica cada vez mais recorrente na sociedade portuguesa, como combate a uma
crise generalizada, em que se apela identidade nacional e ao patriotismo, apesar da fluidez do
conceito e da experincia de cada um. O que desemboca, muitas vezes, na ideia de
portugalidade que, no entanto, no assumida quando algum com ela confrontada,
limitando-se a desviar rapidamente a questo, encerrando eventuais problematizaes, adotando
uma atitude que se afasta de uma postura interpretativa, assente numa lgica de assim
porque , partindo do princpio de que ela natural. Mas, como se ver, no h nada de
natural na portugalidade. Para alm disso, a expectativa que a esta investigao, depois de
trilhar um caminho de desconstruo, como enunciado anteriormente, contribua para trazer
colao novas questes, designadamente para clarificar eventuais caminhos de interpretao em
relao s temticas da portugalidade e da lusofonia na contemporaneidade, com os olhos
postos no futuro.
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17
Captulo I
1. Das noes clssicas de estado, nao e de estado-nao crise de
paradigmas e s suas implicaes na formao da identidade nacional
1.1. O estado, a nao e o estado-nao
Na parte dedicada s formas de Governo no livro que escreveu sobre Cincia Poltica
(1998), Jorge Miranda adverte para a relativa confuso de conceitos e a multiplicidade de
termos relativos s formas de estado, tipos de estado e de regime. A mesma advertncia feita
por Bresser-Pereira (2008), que se refere ideia de estado enquanto uma organizao e como
sistema constitucional-legal ou diludo no conceito de estado-nao ou pas. Convm, por isso,
discernir entre estado e nao, conceitos que assumem, de forma justaposta, um sentido
diferente ao que tm separadamente. Enquanto a nao consubstancia uma realidade
sociolgica, necessariamente subjetiva, o estado assume-se como uma realidade jurdica,
assente na objetividade.
O conceito estado, com o sentido que ele hoje assume enquanto comunidade
poltica de carter soberano na ordem interna e na ordem internacional (Bobbio, 1976) - aparece
pela primeira vez no livro O Prncipe, de Maquiavel, em 1513. Foi, no entanto, mais tarde,
durante o sculo XVII, que surgiu a ideia de Estado ligada a caractersticas bem definidas,
relativas ao exerccio da soberania dos pases, tendentes a proporcionar a defesa, a ordem, o
bem-estar e o progresso aos grupos sociais.
Segundo Bresser-Pereira, a instituio fundamental das sociedades civilizadas, antigas
ou modernas, o estado. Ele est localizado no cerne tanto das duas principais instituies
poltico-territoriais da antiguidade () como nos modernos (Bresser-Pereira, 2008: 1), o que
quer dizer que o Estado coincide com o Governo, a administrao de um pas, ou de uma
sociedade poltica. Para Anthony Giddens, um Estado existe quando h um aparelho poltico
que governa um dado territrio, cuja autoridade apoiada por um sistema legal e pela
capacidade para usar a fora para implementar as suas polticas (Giddens, 2009 [2001]: 450).
Um conceito que tambm caro a Karl Deutsch (1976) que se refere ao Estado como sendo
uma mquina organizada para o desenvolvimento e implementao de decises polticas e para
a imposio de leis e regras de um governo.
Trata-se de uma ideia j muito antes defendida por Max Weber, para quem o Estado
responsvel pela organizao e pelo controlo social, pois detentor do monoplio da violncia
legtima, nomeadamente o poder de coero por via legal (Weber, 1967 [1921]). Naquela que
18
conhecida por Tese de Weber que decorre do seu texto de 1919, A poltica como vocao
-, a actividade poltica do Estado definida de trs formas: pela existncia de um territrio
delimitado; pela existncia de indivduos; e, por ltimo, pela fora que o meio da poltica.
Refira-se que Weber via o Estado como um lugar de burocracia, sendo que os interesses estatais
se centravam nos interesses polticos dos poderosos, numa lgica que consubstancia a ideologia
marxista, em que o Estado encarado como uma representao dos interesses da classe
dominante, e por consequncia, como opressor das classes dominadas. Para Marx, o Estado
no constitui uma relao contratual, mas a legitimao permanente dos interesses da classe
opressora. Uma situao que sempre foi observvel na Idade Antiga, na Idade Mdia e na Idade
Moderna na relao entre o rei ou o imperador com os servos e os escravos e, na Idade
Contempornea, entre o dono dos meios de produo e o proletariado. J mile Durkheim
advogava que o Estado servia para manter a vida da sociedade, tendo dessa forma um papel
moralizador que garantia os seus direitos.
O Estado , por conseguinte, um conceito poltico que conta com a adeso resultante da
vontade de um povo que constitui uma nao (ou por povos de diferentes nacionalidades), para
que se submeta a um poder pblico soberano, resultante da sua prpria vontade, e que lhe
confere unidade poltica. Ser por isso que Hauriou (2003) o refere como a instituio das
instituies, salientando que o Estado constitui um grupo humano, centrado num territrio, com
orientaes sociais, polticas e jurdicas claras, orientado para o bem comum, criado e mantido
por uma autoridade fiscalizadora. Hauriou considera mesmo que o poder executivo deve ser
apreciado de um ponto de vista poltico e no de forma jurdica, o que conduz ao
estabelecimento de uma clara distino entre estado (Governo) e nao.
O conceito de nao implica uma ideia de identidade, de histria coletiva, o que muitas
vezes no coincide com o que se entende por Estado. A atestar esta observao est o caso
da Catalunha e a sua relao com Espanha: reivindica-se a nao catal, dentro do Estado
espanhol. Burdeau (1981) sustenta que o conceito de nao pertence ao domnio cultural,
enquanto soma das pessoas que comungam a origem, lngua e histria, numa espcie de
comunidade das comunidades. Define-a como um grupo humano no qual os indivduos esto
unidos por laos materiais e espirituais, tendo a conscincia do que os distingue dos indivduos
componentes de outros grupos diferentes. Quando se aborda o conceito de nao, deve ter-se
em ateno a conjugao de vrios fatores j que ela composta por elementos naturais
19
(territrio), histricos (tradies, costumes, religio, leis...) e psicolgicos (crenas comuns,
conscincia nacional...).
Bresser Pereira refere que o Estado constitui a instituio abrangente que a nao usa
para promover seus objectivos polticos (), o instrumento por excelncia de ao coletiva da
nao ou sociedade civil, enquanto a nao a sociedade que compartilha um destino
comum e logra ou tem condies de dotar-se de um Estado tendo como principais objetivos a
segurana ou autonomia nacional e o desenvolvimento econmico (Bresser Pereira, 2008: 3).
Nesta perspetiva, a ideia de nao no se anula, mesmo que esta esteja repartida entre vrios
Estados, ou porque vrias naes congregaram esforos para a formao de um Estado.
Finalmente, o estado-nao a unidade poltico-territorial soberana formada por uma
nao, um estado e um territrio. Denomina-se por estado-nao um territrio com os seus
limites bem fixados, com um Governo e uma populao coesa. A ideia de estado-nao nasceu
na Europa em finais do sculo XVIII, incios do sculo XIX. Provm da poca do Iluminismo em
que emerge uma nova conceo do direito natural, como observa Freitas do Amaral, sendo este
concebido de forma racional, humanitria e subjetivista, dele decorrendo os direitos individuais
dos cidados, que so direitos originrios, inerentes natureza humana e, por isso mesmo,
oponveis ao Estado (Amaral, 1998: 14). Baseou-se na procura da verdade atravs da teoria da
deduo rompendo com a tradio, a f e a autoridade, at a aceites como principais pilares do
conhecimento, e em que a razo passou a ser a fora constituidora da dinmica do estado-
nao, principalmente ao nvel da administrao dos povos. Nesse sentido, como refere Anthony
Giddens, os Estados modernos so estados-naes formados assentes na ideia de cidadania,
reconhecendo que a populao tem direitos e deveres comuns e esto conscientes de fazerem
parte do estado, e pelo nacionalismo, o sentido de fazerem parte de uma comunidade poltica
mais ampla e unificadora (Giddens, 2009 [2001]: 450).
A emergncia do estado-nao teve um efeito psicolgico decorrente da pertena do
indivduo estrutura por ele formada, facto que lhe confere um sentimento referencial que traz a
reboque sentimentos de segurana, de certeza e de enquadramento civilizacional. O estado-
nao consolida-se atravs de uma ideologia, de uma estrutura jurdica, da sua soberania sobre
um determinado povo que ocupa um territrio com fronteiras, que dispe de uma moeda prpria
e, tambm, de foras armadas prprias.
O aparecimento do estado-nao corresponde fase nacionalista do Ocidente e ao seu
processo de industrializao, na sequncia de investimentos tecnolgicos, fomentando as
20
economias nacionais e gerando capacidades militares por parte dos Estados. A pertena a
determinado grupo assente numa nao (com uma cultura, uma lngua e uma histria prprias)
foi, por exemplo, sempre uma das marcas dos europeus nos ltimos sculos. Foi nessa senda
que ocorreu a transformao do nacionalismo em ideologia, que os europeus entre os quais os
portugueses -, acabariam por transportar para as suas campanhas expansionistas, como se ver
mais frente.
Estas so as vises clssicas de nao, estado e de estado-nao. Quanto ao ltimo, por
via da globalizao e das transformaes da decorrentes, alterando a forma como os diversos
pases se posicionam no contexto internacional, vai assentando arraiais a ideia de que ele est
em declnio. Mais frente se vero as novas lgicas decorrentes das ruturas de escala
provocadas pela globalizao, nomeadamente as consequncias que isso acarretou no seio dos
prprios estados, numa crise de paradigmas que alterou as noes que eram tidas como
estveis.
1.2. A subjetividade da identidade nacional: Teorias sobre a identidade
No obstante Peter L. Berger e Thomas Luckmann salientarem a existncia de mltiplas
realidades, h uma que se apresenta como sendo a realidade por excelncia: a da vida
quotidiana, apelidada de realidade predominante e, por isso, admitida como sendo a realidade
(Berger & Luckmann, 1999 [1966]: 33). Muito embora essa constatao faa sentido,
nomeadamente para se poder circunscrever o olhar para um objetivo concreto, o certo que
no existe nenhuma realidade objetiva. A atest-lo, bastar ter em ateno a noo de que a
linguagem simblica vai para alm da prpria realidade e, por isso mesmo, se constitui como
um dos seus principais componentes, que lhe d, por conseguinte, um recorte subjetivo. que a
legitimao decorrente do universo simblico evidencia realidades diferentes da que existe na
vida quotidiana, constituindo produtos sociais, com uma histria. No caso individual, por
exemplo, em que a realidade da vida quotidiana se apresenta como um mundo intersubjetivo:
Esta intersubjectividade diferencia com nitidez a vida quotidiana de outras realidades (idem:
35), acrescentando que a identidade um elemento-chave evidente da realidade subjectiva e,
tal como toda a realidade subjectiva, encontra-se em relao dialctica com a sociedade (idem:
179). Por isso tem um recorte dinmico, no se desenvolvendo de forma estagnada nem
esttica, j que decorre da prpria sociedade que feita de mudanas constantes. A identidade
, ento, formada por processos sociais que so determinados pela estrutura social e, uma vez
21
cristalizada, mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relaes sociais (idem,
ibidem). Por outro lado, as identidades produzidas pela interaco do organismo, da
conscincia individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a,
modificando-a ou mesmo remodelando-a (Berger & Luckmann, 1999 [1966]: 179). Pode, pois,
dizer-se que as sociedades tm histrias em que emergem identidades especficas, que so
feitas por pessoas tambm elas com identidades especficas. Berger e Luckmann constatam
que, se se tiver em ateno esta dialtica, pode ser evitada o que reputam de enganadora
noo de identidades colectivas, sem precisar de recorrer singularidade () da existncia
individual (idem, ibidem).
A identidade de um indivduo est sujeita a uma luta de afiliao s realidades, por vezes
conflituantes. A sua localizao social final na estrutura institucional da sociedade acabar
tambm por influenciar o corpo e o prprio organismo. O que quer dizer que os processos
relacionados com a formao e conservao da identidade so determinados pela estrutura
social.
Para Berger e Luckmann, a identidade constitui um fenmeno que emerge da dialctica
entre indivduo e sociedade (Berger & Luckmann, 1999 [1966]: 180). J os tipos de identidade,
por outro lado, so elementos de certo modo estveis da realidade social objectiva (sendo o
grau de estabilidade, por sua vez e como evidente, determinado pela sociedade), constituindo
o tema como uma certa forma de teorizao em qualquer sociedade, mesmo quando so
estveis e a formao das identidades individuais bastante desprovida de problemas (idem,
ibidem). nesse sentido que sublinham que as teorias sobre a identidade esto sempre
integradas numa interpretao mais geral da realidade: So embutidas no universo simblico
e nas suas legitimaes tericas, variando com o carcter destas (idem, ibidem). O facto de as
teorias sobre a identidade estarem integradas em teorias mais abrangentes sobre a realidade,
deve ser entendido em termos da lgica subjacente a estas ltimas (Berger & Luckmann,
1999 [1966]: 180-181).
Nesta perspetiva, a teorizao sobre a identidade no poder prescindir de tomar
conhecimento das transformaes de identidade que de facto aconteceram, e ser, ela prpria,
transformada no processo (idem: 185). Os autores advertem, no entanto, para o facto de a
identidade poder vir a tornar-se problemtica ao nvel da prpria teoria, sendo que o seu
estabelecimento social subsequente, e concomitante poder gerador de realidade, pode ser
concretizado atravs de qualquer nmero de afinidades entre o pessoal teorizador e os vrios
22
interesses sociais (idem, ibidem), existindo a possibilidade histrica de manipulaes
ideolgicas por parte de grupos com interesses polticos.
A identidade de um indivduo est, assim, sujeita a uma luta de inscrio em realidades
por vezes conflituantes. Os universos simblicos so criados para legitimarem a estrutura
institucional criada, assumindo-se assim como um conjunto de crenas que visam tornar a
estrutura institucionalizada plausvel e aceitvel para o indivduo, mesmo que tenha essa noo
e/ou no concorde com a lgica subjacente instituio. Como um sistema ideolgico, o
universo simblico coloca tudo no seu devido lugar, percecionando explicaes para que se
faam as coisas da forma como as fazemos. Fazem parte desse universo simblico os
provrbios, as mximas morais, a mitologia, as religies, as tradies metafsicas e outros
sistemas de valores. Eles assumem todas as formas (mais ou menos sofisticadas) tendentes a
legitimar as instituies estabelecidas (Berger & Luckmann, 1999 [1966]).
1.3. O nacionalismo e a identidade nacional
O nacionalismo conjunto de smbolos e crenas que proporcionam o sentido de se
fazer parte de uma comunidade poltica nica (Giddens, 2009 [2001]: 452) - embora
identificado originalmente com a burguesia (classe que teve um papel decisivo na formao dos
), decorre da revoluo capitalista, constituindo-se como uma das cinco grandes ideologias da
sadas. Para alm do nacionalismo, contabiliza-se o liberalismo, o socialismo, o eficientismo e o
ambientalismo. De todas, a nica que no universal o nacionalismo, uma vez que se
circunscreve a cada nao. (Bresser-Pereira, 2008: 11).
Sobre os conceitos de nao e de nacionalismo, ainda se est longe de obter uma
nica explicao convincente para os definir, embora esta temtica tenha, ao longo dos tempos,
concitado o interesse de vrios investigadores que, no entanto, nos proporcionaram
interessantes e teis estudos, sobre os quais vrios estudiosos direcionaram as suas
investigaes. Nesta investigao foram escolhidos alguns postulados relativos temtica do
nacionalismo, na sua maioria, que adotaram o princpio de que a partir da anlise da nao
como artefacto cultural (como representao), que ser possvel conceptualizar a identidade
nacional e explicar a sua relevncia nas sociedades contemporneas, especialmente nos
domnios cultural, social e poltico (Rovisco, 2000: 2).
A escolha dos autores, obedeceu a um propsito direcionado para o objetivo deste
estudo, que pretende relevar a viso das temticas adstritas ao nacionalismo para perceber o
23
contexto e os pilares em que assentou, nomeadamente, o Estado Novo portugus (nao,
estado, ptria, cultura nacional, antiguidade dos factores nacionais, tradies, disseminao da
conscincia nacional, convergncia cultural, simbolismo, ritual, fascismo, folclore e propaganda).
A maior parte das perspetivas assenta na existncia de um sentimento cultural comum
entre os membros de uma mesma nao, que decorre da existncia de um passado que se
cruza com e entre eles, podendo mesmo estar ligado a uma etnia dominante, criado sobre
tradies (inventadas ou reapropriadas), mitos e lendas fundadores, bem como da tradio oral.
A fundao do estado-nao colocada na modernidade e assimilada como uma
representao decorrente das vrias mudanas sociais e polticas, como so os casos da
burocracia, da secularizao, da industrializao e da comunicao de massas (Rovisco, 2000).
Orientando-se numa postura declaradamente construtivista, os autores que se tm
dedicado compreenso da nao rejeitam veementemente a ideia, cara aos pensadores
nacionalistas, de que ela seja encarada enquanto entidade eterna e imemorvel. Ao contrrio
dos autores nacionalistas, que defendem que a nao, como o indivduo, o culminar de um
longo passado de esforos, sacrifcio e devoo (Renan, 1990: 19), os autores construtivistas
rejeitam a ideia de que a nao constitua uma entidade eterna.
E, no obstante ser quase consensual a ideia de nao enquanto construo, o facto
que a sua origem bem como a do nacionalismo -, no colhe unanimidade, designadamente
quando se pretende explicar o carcter inescapvel da identidade nacional nas sociedades
contemporneas (Rovisco, 2000: 3). Questiona-se, ento, se a identificao com a nao
decorre da modernidade (como a maioria dos autores defende) ou se existem elementos
culturais pr-modernos a ponderar quando surgem discusses assentes numa lgica de
pertena a uma nao (Rovisco, 2000).
Desde os anos 60 do sculo XX que se vive numa era assente no desenvolvimento das
Tecnologias da Informao e da Comunicao (TIC), com o consequente incremento da
velocidade e da alterao do conceito de tempo. A fragmentao subsequente e a integrao de
novas realidades desembocou na crise de paradigmas (Lyotard, 1986 [1984]; Martins, 2011),
que conduziu crise de identidade, como se ver mais frente.
Segundo Ernest Gellner, o termo nacionalismo seja como sentimento, ou enquanto
movimento - pode ser entendido como um princpio poltico que defende que a unidade nacional
e a unidade poltica devem corresponder-se. O que consubstancia uma teoria da legitimidade
poltica que exige que as fronteiras tnicas no atravessem as fronteiras polticas. Um
24
movimento nacionalista , por conseguinte, aquele que assenta num sentimento nacionalista, ou
por ser caracterizado pelo estado de clera causado pela violao desse princpio ou o estado
de satisfao causado pela sua realizao (Gellner, 1993: 11).
Com o livro Naes e Nacionalismo (1993), Gellner assumiu-se como um terico de
referncia relativamente temtica do nacionalismo, sustentando tratar-se de um acontecimento
especfico da sociedade moderna, sendo que o princpio poltico do nacionalismo que a
unidade nacional seja igual unidade poltica (Gellner, 1993:13). Da mesma forma refere que
existe uma violao intolervel quando se d o caso de os governantes pertencerem a uma
nao diferente, o que pode fazer com que uma unidade poltica territorial [possa] tornar-se
etnicamente homognea quando mata, expulsa ou assimila todos os no-nacionais (idem,
ibiem).
O autor observa, de incio, duas vertentes na construo de uma teoria da nacionalidade:
uma composta pela vontade e pela cultura, a adeso voluntria e a identificao, a lealdade e a
solidariedade; e outra onde coabitam o medo, a coero e o constrangimento. De forma seletiva,
o nacionalismo utiliza aspetos herdados historicamente, como as culturas e/ou a riqueza cultural
j existentes.
Embora a ideia-mestra na obra de Gellner assente no facto de os nacionalismos
produzirem as naes, a verdade que o autor admite a hiptese de as naes poderem ser
anteriores emergncia dos nacionalismos, exemplificando com a existncia, na poca
medieval, de estados dinsticos que coincidiam com a mesma lngua e a mesma cultura. O que
quer dizer que o nacionalismo no um produto que decorra exclusivamente da industrializao,
embora reconhea ter recortes de modernidade. Para Gellner, o aparecimento das naes e do
nacionalismo centra-se no contraste entre as sociedades agroletradas e industriais e o impacto
geral da industrializao, que motivaram, ambas, mudanas de fundo na sociedade decorrentes,
nomeadamente, da mobilidade social e da diviso do trabalho, o que promove a criao de uma
cultura comum, alimentada pela implementao de um sistema escolar de massas. Sobre a
antiguidade de fatores nacionais que podem pesar na lgica nacionalista, Gellner sublinha que
muitas naes so detentoras de ncleos antigos genunos, havendo outras que os inventaram
numa ao oriunda da sua prpria propaganda, havendo algumas inteiramente destitudas dos
mesmos.
Para alm das excees referidas em relao ao perodo medieval e aos estados
dinsticos correspondentes a uma lngua e a uma cultura comuns, evidenciadas em Naes e
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Nacionalismo, que tem vindo a ser seguido, bem como na obra pstuma Nacionalismo
(1998), o leque vai aumentando o que, segundo Jos Manuel Sobral (2003) poder mesmo
colocar em causa as anteriores teorizaes de Gellner. Assim, este autor, para alm de admitir a
existncia de uma articulao entre o estado e as zonas lingustico-culturais na Europa ocidental
antes dos impactos da teoria nacionalista e da industrializao, refere a existncia de culturas
nacionais no Centro da Europa e uma cultura nacional j bastante desenvolvida entre os
polacos, sendo que a zona dos Balcs j era palco de intensos conflitos nacionalistas antes do
advento da indstria (Gellner, 1998).
Outro autor que se dedicou a esta temtica foi Eric Hobsbawm. As suas ideias cruzam-
se com as de Ernest Gellner, nomeadamente no que nao diz respeito, encarada enquanto
realidade recente e como entidade social, somente pelo facto de estar ligada ao estado-nao:
As naes no fazem estados e nacionalismos, o contrrio que verdadeiro (Hobsbawm,
1994 [1990]: 9-10). O estado-nao constitui, assim, o elemento crucial da nao moderna,
pelo que o nacionalismo moderno, no contexto do sculo XVIII, s existe numa relao direta a
um conceito de soberania popular assente num estado independente. Hobsbawm observou, no
entanto, que Gellner no concedeu a devida ateno forma como foi visto e recebido o
nacionalismo por parte da generalidade dos cidados que so o objecto da aco e propaganda
levada a cabo pelas elites polticas, governantes ou activistas de movimentos nacionalistas
(idem: 10-11). Aproxima-se, porm, de Gellner ao defender que as naes emergiram na
sequncia das revolues do sculo XVIII (Frana e EUA) e do princpio do sculo XIX, tendo
decorrido de um contexto especfico de desenvolvimento econmico, tecnolgico e de
transformao social e poltica. Utiliza, por isso, o conceito de nao no sentido moderno
considerando que os governos, antes de 1884, no estavam ligados ao conceito de nao, como
d
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