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Artigo científico na área de direito constitucional. Trata das interações judiciais transnacionais em matéria constitucional.
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As interações judiciais em matéria constitucional e a tensão entre identidade e alteridade
Vitor Soliano1
1 Introdução
É induvidoso que a sociedade mundial contemporânea é marcada pela globalização de
uma série de esferas da vida social. Deve-se estar atento, contudo, para o fato de que as relações
entre culturas diferentes, sejam elas realizadas diretamente pelos indivíduos sejam elas realizadas
pelos Estados, não é um fenômeno tão recente. Em verdade, este tipo de interação já era
perceptível nos grandes movimentos expansionistas, como o Império Romano, e na intenção e
ação de grandes conquistadores como Alexandre Magno e Genghis Khan (TEIXEIRA, 2011, p. 3).
Da mesma forma, a Era das Navegações e descobrimentos tem um papel fundamental.
O século XX, entretanto, é responsável pela substantiva ampliação deste processo. Movida
inicialmente por questões econômicas, a progressiva globalização do mundo foi altamente
acelerara e acarreta consequências em diversas esferas como, por exemplo: a política, a cultural,
a bélica (TEIXEIRA, 2011, p. 5-69) e, o que é mais importante para nós, a jurídica. Nesta última
esfera, merece especial destaque o desenvolvimento e expansão do constitucionalismo moderno.
A partir da segunda metade do século XX o constitucionalismo moderno se aprimorou e se
expandiu. O aprimoramento se deve à tomada de consciência da necessidade de normatividade
constitucional e de um sistema judicial apto a proteger o núcleo normativo inviolável que a
Constituição representa. A expansão é perceptível desde o momento em que se observa a
constitucionalização de diversos sistemas jurídicos pelo mundo ocidental, todos eles altamente
preocupados com a proteção de direitos humanos-fundamentais e o controle do arbítrio estatal.
Estes dois fenômenos colocam uma nova questão à globalização, até então enfocada
pelas ciências sociais apenas pelo viés econômico: a transnacionalidade do direito
(constitucional). Observa-se tal fenômeno não apenas com a proliferação de tratados
internacionais e de constituições com normas textualmente semelhantes, mas, principalmente,
porque problemas essencialmente constitucionais e suas respectivas resoluções judiciais são
similares em diversas ordens jurídicas. Ao mesmo tempo, passam a surgir questões 1 Mestrando em Direito Público do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia (PPGD/UFBA) com bolsa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Especialista em Direito Público pelo JusPodivm/Faculdade Baiana de Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Salvador – UNIFACS. Advogado.
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constitucionais cuja complexidade e abrangência exigem que seu deslinde recorra a soluções já
tomadas e processadas por outros sistemas, ou seja, é insuficiente ou menos produtivo o
resultado embasado apenas na produção constitucional do interior do Estado. É neste contexto
que passa a ser possível falar em diálogos e aprendizados constitucionais recíprocos entre Cortes
e juízes constitucionais ao redor do mundo, diálogo este que ocorre através de suas respectivas
decisões. Ou seja, juízes de um sistema jurídico determinado (receptor) observam como outros
juízes e Tribunais vêm decidindo matéria semelhante, contribuindo para a resolução do problema
em questão Uma postura para o diálogo e aprendizado mútuo entre os centros dos sistemas
jurídicos estatais é uma, embora não a principal, forma de integração.
Através de uma interação judicial o constitucionalismo interno pode se aprimorar sem
perder sua identidade, ou seja, receber de alter sem comprometer ego. A grande dificuldade de tal
postura, contudo, será a de equalizar esta dicotomia (alter-ego). O diálogo/interação, apesar de
poder ser frutífero, pode acarretar em situações (ainda que não desejados) de submissão e perda
de autonomia interna. Justamente por isso deve-se questionar se se está falando em integração.
A presente investigação procura analisar os benefícios e prejuízos que os diálogos judiciais
entre Cortes e juízes ao redor do mundo trazem/podem trazer tendo como foco principal a tensão
inexorável entre a identidade da ordem receptora e a alteridade da ordem doadora. Justamente
por se situar no momento decisório a pergunta principal deve ser por uma possível metodologia da
decisão judicial. Exatamente por este motivo a investigação objetiva pensar as bases de uma
metodologia adequada para lidar com a situação descrita, mesmo que apenas de forma
embrionária.
Para cumprir este objetivo o texto se divide em três partes. Na primeira (item 2), será
mapeado o cenário de expansão do constitucionalismo ao redor do globo bem como indicado as
características de um constitucionalismo para além do Estado, ainda em formação. Na segunda
(item 3), serão analisadas criticamente algumas das propostas de interação judicial em matéria
constitucional afim de buscar pontos de consenso e de dissenso sobre a matéria. Por fim, no item
4, será apresentado um esboço de metodologia adequada para este crescente movimento de
interação judicial em matéria de direito constitucional. Na conclusão, far-se-á uma síntese reflexiva
dos argumentos.
2 A expansão do constitucionalismo e seu processo de transnacionalização
O processo de globalização tem influência e gera consequências para o sistema jurídico.
Estas influências e consequências tanto afetam o direito estatal, através de sua modificação e
adaptação, quanto exigem a construção de regulações e instituições extraestatais que, por sua
vez, retroalimentam mudanças na esfera estatal. Ou seja, “mesmo o direito, considerado sob o
ponto de vista nacional, recebe influência determinantes, substanciais e procedimentais, sobre os
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diversos fluxos e influxos da mundialização em curso” (BOLZAN DE MORAIS; SALDANHA;
VIEIRA, 2011, p. 117).
Assim, é quase inconteste o surgimento de ordens jurídicas transnacionais e
supranacionais que, muitas vezes, independem completamente do direito internacional público e
do Estado nacional. Em verdade, muitas dessas ordens têm a pretensão de se impor contra o
Estado e outras prescindem absolutamente deste (NEVES, 2010, p. 9). Ao lado das fontes
normativas, surgem instâncias de resolução de controvérsias que também não se subordinam ao
Estado e ao direito estatal. Tratam-se de fenômenos com alta carga de heterogeneidade, tendo
“em comum apenas o fato de envolverem o exercício de poder político [e jurídico, acrescente-se]
fora do âmbito dos Estados nacionais, bem como o seu impacto sobre a soberania constitucional”
(SARMENTO, 2012, p. 115). Tudo isso tem relação direta com a constatação de que o Estado, na
atualidade, não consegue lidar sozinho com as diversas áreas de interesse jurídico que se
espalham pelo globo: criminalidade internacional, comércio transnacional, meio ambiente e
proteção dos direitos humanos fundamentais (Ibidem, p. 115). Neste processo de
transnacionalização do direito merece especial destaque o direito constitucional.
Como afirma Nico Krisch, o constitucionalismo, pedra angular do imaginário jurídico-
político ocidental por mais de dois séculos, emergiu na década de 90 (pós Guerra Fria) sem rival e
se tornou o modelo político fundamental não apenas da Europa central e oriental, mas para maior
parte do mundo. Ao mesmo tempo, o direito internacional público se transformou em um farol de
esperança capaz de cumprir com a promessa de um mundo melhor e mais justo. A arena
internacional pareceu se mover da anarquia para a ordem, com novas instituições e Cortes
estruturando o novo cenário e valores comuns provendo uma moldura principiológica para ele
(KRISCH, 2012, p. 3)2.
Nos mais de 20 anos seguintes houve uma relação de trocas e pressões permanentes
entre estes dois ramos do direito público. O constitucionalismo estatal é questionado pela
progressiva internacionalização ao mesmo tempo em que com ela aprende. Concomitantemente,
o direito internacional público é pressionado pelo ideário constitucional a se modificar e, como
isso, cria uma nova vertente: o direito internacional dos direitos humanos. Esta constante relação
dialética faz com que as duas esferas se aproximem cada vez mais, tornando obscura uma linha
que separava com nitidez o âmbito estatal e o internacional e modelando interações formais e
informais entre ambos. Neste contexto, é plausível dizer que o direito vem se tornando pós-
nacional (KRISCH, 2012, p. 3-4).
Ao mesmo tempo em que o direito se transnacionalizou e os direitos humanos passaram a
estar na ordem do dia do direito internacional público, o ideário constitucionalista se espalhou pelo
mundo ocidental, ensejando a promulgação de novas constituições e ampliando a consciência de 2 Afirma o autor: “A disseminação da democracia constitucional no nível doméstico parece ser reforçada por uma crescente ordem internacional robusta e justa” (Ibidem, loc. cit.) (Tradução livre).
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que o direito constitucional é fundamental para a salvaguarda do indivíduo e o desenvolvimento
pleno da democracia. Ao mesmo tempo, cresce a importância dos juízes e Tribunais, supremos ou
não, na proteção desses textos.
As questões que são levadas aos juízes e Tribunais dos diversos sistemas jurídico-
constitucionais ao redor do mundo não interessam apenas ao respectivo sistema ou, no mínimo,
tendem a se assemelhar a problemas enfrentados e decididos por outros sistemas. O
constitucionalismo tem um núcleo. Melhor dizendo, ele foi a resposta a duas perguntas: 1) como
garantir direitos fundamentais aos indivíduos?; 2) como limitar o poder estatal? A resposta foi a
refundação do Estado nacional a partir de uma constituição estatal, voltada a resolver essas
questões territorialmente delimitadas. O cenário globalizante, contudo, passa a exigir que o
constitucionalismo se abra para além do Estado. Esta exigência é uma consequência necessária
do incremento substancial das relações transnacionais. Os problemas de direitos humanos-
fundamentais e de limitação do poder ultrapassam fronteiras, o que faz com que o direito
constitucional estatal deixe de ter privilégio sobre suas soluções (NEVES, 2009, p. 119-120).
A substancial alteração do direito internacional público ocorre pela progressiva
incorporação do ideário constitucionalista a este ramo do direito. Em verdade, a expansão da
proteção e garantia de direitos humanos-fundamentais nada mais é do que a expansão do
constitucionalismo moderno para as diversas esferas do globo, ainda que através de tratados e
convenções internacionais firmadas entre Estados e fiscalizados por órgãos internacionais,
regionais ou supranacionais. O direito constitucional modifica o direito internacional, e não o
contrário. Mas, sem dúvida, não se trata de um direito constitucional vinculado ao
constitucionalismo clássico-estatal. Trata-se de um constitucionalismo transnacionalizado.
Tem se tornado pauta do dia na doutrina estrangeira a análise e construção de um
fenômeno que ainda não tem um nome definido. Alguns autores falam de constitucionalismo
transnacional (YEH; CHANG, 2008), outros de constitucionalismo mundial/global (ACKERMAN,
1996), outros em moderno jus gentium (WALDRON, 2005), outros em constitucionalismo
internacional, outros, ainda, em constitucionalismo compensatório (PETERS, 2006; 2009) e outros
apenas se referem ao fenômeno de forma mais genérica: constitucionalismo para além do Estado
(WALKER, 2008). Tal fenômeno, como fica evidente, diz respeito ao processo de expansão do
constitucionalismo para além do Estado.
J. J. Gomes Canotilho assevera que a ideia de constitucionalismo global ainda é um
paradigma emergente. Contudo, aponta traços que caracterizam este movimento. O primeiro
deles é um aumento do alicerce do sistema jurídico-político internacional: ao lado da relação entre
Estados, uma relação entre Estados e povo. O segundo é a emergência de um jus congens
internacional “materialmente informado por valores, princípios e regras universais
progressivamente plasmados em declarações e documentos internacionais”. Por fim, a tendência
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à elevação da dignidade da pessoa humana como a base de qualquer direito constitucional
(CANOTILHO, 2011, p. 1370).
O constitucionalista português adverte que este paradigma emergente ainda não é apto
para suplantar o constitucionalismo moderno clássico, ou seja, voltado para o Estado nacional. Há
conceitos e fundamentos básicos neste constitucionalismo que ainda pautam o sistema jurídico
(CANOTILHO, 2011, p. 1370-1371). Não só é imperioso concordar com a descrição do autor
como é forçoso afirmar que um constitucionalismo para além do Estado não deve substituir o
constitucionalismo estatal. Este é indispensável para que se possa falar em identidade
constitucional e do próprio sistema jurídico nacional.
Pensar e construir um constitucionalismo para além do Estado não significa renegar o
constitucionalismo estatal. Este continuará sendo fundamental para a identidade do sistema
jurídico e mesmo para resolver problemas jurídico-constitucionais. Nem toda questão
constitucional será, necessariamente, um problema de constitucionalismo transnacional – embora
possa se afirmar que nenhuma questão deva ser somente estatal pois há sempre a possibilidade
de aprendizado. A construção de um constitucionalismo para além do Estado não pretende,
assim, a destruição da dogmática e das instituições do constitucionalismo estatal3.
Um constitucionalismo transnacional tem o potencial de incrementar e complementar o
constitucionalismo estatal. Pensar para além dos limites construídos pela dogmática e pelas
instituições do constitucionalismo estatal contribui para a própria renovação deste. O
constitucionalismo transnacional, assim, (retro)alimenta o constitucionalismo estatal com novas
possibilidades e horizontes compreensivos. Em relação ao constitucionalismo estatal o lugar do
constitucionalismo transnacional é ao seu lado. Este não substitui aquele. Da mesma forma, não
há uma relação hierárquica entre os constitucionalismos. O que ocorre é que o núcleo deste
projeto se dirige para fora do Estado. E este é o segundo ponto relevante.
Pensar o constitucionalismo para além do Estado não significa, também, a morte deste.
Não é possível, mesmo em um mundo globalizado, pensar na extinção do Estado nacional. Este
ainda é o modelo estrutural que capaz de “direcionar a redução dos déficits de um projeto
inacabado” (CARNEIRO, 2011, p. 146). Afinal, “não há nenhuma razão a priori, tampouco
existencial, para que o direito [constitucional] se torne sinônimo de Estado nacional” (Ibidem, p.
146). Como dissemos, há uma relação entre constitucionalismo moderno e Estado nacional na
aurora deste movimento. Esta relação, contudo, foi contingente e historicamente delimitada. A
evolução da sociedade no tempo torna possível e mesmo necessário, falar em uma desvinculação
3 “essa ainda constitui uma dimensão importante do sistema jurídico da sociedade mundial e há problemas constitucionais intraestatais de suma importância. Mas a abertura do direito constitucional para além do Estado, tendo em vista a transterritorialização dos problemas jurídico-constitucionais e as diversas ordens para as quais eles são relevantes, torna necessário o incremento de uma teoria e uma dogmática do direito transconstitucional” (NEVES, 2009, p. 131).
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destes dois conceitos modernos. Defendemos, portanto, a possibilidade de pensar um
constitucionalismo sem um Estado nacional.
Por fim, cabe falar da relação entre constitucionalismo e Constituição. Pensamos que é
inviável, mesmo em um contexto de constitucionalismo transnacional, falar em uma Constituição
global ou transnacional. A complexidade e contingência da sociedade internacional ainda não
permitem se falar em um texto unificador, vinculante e aplicável imediatamente por juízes e
Tribunais ou mesmo por um Tribunal global. Mesmo que projetemos o pensamento para o futuro,
parece-nos, inclusive, prejudicial falar em Constituição global. Ao contrário, entendemos que a
melhor forma de o constitucionalismo transnacional realizar sua função de reflexão, diálogo,
aprendizado, enfim, (retro)alimentação com o constitucionalismo estatal, é garantindo a presença
apenas de Constituições estatais aptas a dar identidade e conformidade ao ordenamento estatal.
Desta forma, não haverá uma imposição direta sobre o constitucionalismo estatal de uma ordem
internacional, mas reconstrução da identidade através do aprendizado.
Esta, portanto, é a cara de um constitucionalismo transnacional: desvinculado tanto do
Estado nacional quanto de uma Constituição global, tendo por função estar ao lado do
constitucionalismo estatal para com este interagir de forma produtiva e reconstrutora sem sobre
ele se impor. Enfim, um constitucionalismo reflexivo.
O constitucionalismo para além do Estado e sua função reflexiva é especialmente
relevante quando se trata de direitos humanos-fundamentais. Como afirma Gunther Teubner
(2012, p. 124), a plausibilidade de um constitucionalismo transnacional fica evidenciada com esta
espécie de direito. Quem poderia negar, pergunta o autor, a validade transfronteiriça e a posição
constitucional dos direitos humanos?
Uma especial manifestação deste constitucionalismo para além do Estado, e objeto central
do presente trabalho, pode ser observada na interação judicial entre juízes e Cortes de diversos
sistemas jurídicos, estatais ou não. Mark Tushnet, ao tratar da globalização do direito
constitucional (que ele considera inevitável), afirma que esta conexão entre julgadores caracteriza
este processo de forma “de-cima-para-baixo” (top-down process) (2013, p. 4). Ou seja, é o
processo de transnacionalização do constitucionalismo a partir de autoridades institucionais,
vinculadas ao Estado.
Como afirmado na introdução, este tipo de interação é uma decorrência da percepção de
que questões intrinsecamente constitucionais são decididas por diversas instâncias da sociedade
global pelos respectivos centros do sistema jurídico. Vale dizer que este tipo de relação é, ao
mesmo tempo, descrita e defendida por autores os mais diversos. Ou seja, trata-se de fenômeno
que já ocorre ao redor do mundo (descrição) e que pode ocorrer de forma mais adequada ou,
ainda, pode ser algo positivos para o constitucionalismo (prescrição).
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No item seguinte serão analisadas algumas propostas teóricas que tentam descrever este
fenômeno e, ao mesmo tempo, indicar como ele deve ocorrer para que se torne seja algo
produtivo. Como ficará evidente, todos os autores afirmam que o modelo de interação judicial
deve buscar um meio termo entre a reverência total e o afastamento provinciano de materiais
decisórios advindos de outros sistemas jurídicos. Ou seja, nem a morte da identidade, nem a
repulsa pela alteridade.
3 Interação judicial em matéria constitucional: algumas propostas
Como já deve ter ficado claro, a angústia que move a presente investigação é como
equacionar a tensão entre identidade e alteridade nas relações dialógicas entre julgadores de
diversos sistemas jurídicos em matéria constitucional. Tem-se em mente, como supracitado, que
este tipo de fenômeno passa a ser especialmente relevante na medida em que se toma
consciência do fato que matérias essencialmente constitucionais (relacionadas como direitos
humanos-fundamentais e limitação do poder estatal) são relevantes para diversas ordens
jurídicas.
Anne-Marie Slaughter trata desta temática dentro de outra mais abrangente que a autora
chama de globalização judicial (judicial globalization). A globalização judicial descreve uma
realidade confusa de interação entre fronteiras, intercâmbio de ideias e cooperação em casos
envolvendo direito internacional e nacional. É um fenômeno perceptível em cinco níveis principais:
a relação entre a Corte de Justiça Europeia e as cortes nacionais da Europa; a relação entre a
Corte Europeia de Direitos Humanos e as cortes nacionais; a emergência de comunidades
judiciais; os encontros entre juízes e, mais importante para a presente análise, a fertilização
cruzada (SLAUGHTER, 2000, p. 1104).
Os exemplos de juízes olhando, conversando e agindo para além das fronteiras nacionais
é uma resposta à diversidade das forças envolvendo a globalização. Além disso, todos estão
envolvidos em um profundo senso de participação em um projeto global em julgar, o que promove
uma base para a fundação de uma comunidade global. As decisões do Tribunal têm apenas uma
influência persuasiva. O seu peso decorre do respeito à legitimidade, cuidado e qualidade dos
julgadores e é dado por julgadores ao redor do mundo engajados em um projeto global de defesa
dos direitos humanos (SLAUGHTER, 2000, p. 1111-1112).
A ideia de fertilização cruzada entre Cortes e juízes é a forma mais informal de contato
judicial transnacional. Embora as decisões de outras cortes nacionais nunca sejam vinculantes, as
cortes constitucionais de diversos estados se viram uma para outra para encarar um problema
similar a partir de perspectivas diversas. Este fenômeno aumentou em demasia a partir dos anos
90 do século XX. O surgimento de novas democracias fez com que as respectivas cortes se
virassem para decisões proferidas em democracias mais estabelecidas para com elas aprender
(SLAUGHTER, 2000, p. 1116-1119).
232
Fica claro na argumentação da autora que ela entende as interações judiciais de forma
positiva, como mecanismo de abertura de horizontes compreensivos, de aprendizado, de diálogo.
Contudo, Anne-Marie Slaughter não se preocupa com as possibilidades danosas de um tal diálogo
nem apresenta uma metodologia adequada para este tipo de postura.
Cass Sunstein apresenta seu pensamento sobre a interação judicial entre julgadores de
sistemas jurídicos diversos a partir do que ele chama de “argumento das muitas mentes” (many
minds argument). Este argumento afirma que se muitas pessoas acreditam em algo ou decidem
de determinada forma, este algo ou esta forma merecem alguma consideração (SUNSTEIN, 2009,
p. ix). Nas palavras do autor: “If many people have accepted a particular view about some
important issue, shouldn’t the Supreme Court, and others thinking about the meaning of the
Constitution, consult that view?”4 (Ibidem, p. 7).
A fundamentação principal para este raciocínio é a adoção, pelo autor, do Teorema do Júri
de Condorect (Condorect Jury Theorem). Trata-se de uma premissa aritmética simples, segundo a
qual a probabilidade de um grande grupo alcançar uma resposta correta aumenta em direção a
100% quanto maior for o grupo. Parte-se de duas premissas: utilização da regra da maioria e a
assunção de que a probabilidade de uma pessoa estar certa é maior do que a de estar errada.
Para o autor, é possível a utilização deste tipo de raciocínio para um melhor entendimento do
direito constitucional (SUNSTEIN, 2009, p. 9).
Embora veja no argumento das muitas mentes uma postura adequada para lidar com a
interpretação do direito constitucional o autor faz restrições à interação judicial entre julgadores de
sistemas jurídicos diversos. Afirma que este tipo de postura pode ser positiva para colheita de
dados factuais, mas não indica um critério para informar quais fatos serão importantes ou não.
Coloca como problema a questão da correta compreensão do material judicial colhido, bem como
a possibilidade de um eventual consenso ser, na verdade, o entendimento de determinada elite
influente. Ainda, assevera que a utilização pode não ser honesta e sim oportunista. Afirma que a
consulta a material estrangeiro não deve ser uma prioridade, mormente nos EUA. Segundo o
autor, a pequena amplitude do ganho não justifica o “trabalho” (SUNSTEI, 2009, p. 190-206).
Apesar disso, apresenta uma série de requisitos e condições para que a interação judicial
ocorra de forma adequada. A amplitude da consulta deve ser razoável (10 a 20 Estados
relevantes); não recorrer a precedentes de Estados autoritários; o material deve estar traduzido
para a língua nativa e; deve ser recente. Após esta sondagem, o material será frutífero se: forem
relativamente uniformes; os problemas resolvidos sejam similares e os julgamentos tenham sido
independentes (SUNSTEIN, 2009, p. 206-208).
4 Em tradução livre: “Se muitas pessoas aceitaram uma visão específica sobre um determinado assunto importante, não deveria a Suprema Corte, e outros preocupados com o significado da Constituição, consultar esta visão?”.
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O grande mérito de Cass Sunstein é apresentar um procedimento para a colheita do
material não-estatal a ser utilizado pelos julgadores. Este “passo-a-passo” indica um caminho
razoavelmente seguro para que juízes e Tribunais saibam lidar com o que vem de alter.
Tal procedimento, contudo, não resta bem fundamentado. O autor não apresenta um
fundamento filosófico, teórico ou epistemológico bem desenvolvido o que pode acarretar uma
insegurança nos momentos de dúvidas no procedimento. Recorrer a um teorema matemático
parece insuficiente para justificar uma postura de interação. Além disso, fica claro que o autor não
enxerga esta interação como algo realmente produtivo para Estados democráticos desenvolvidos,
sendo mais interessante para democracias recentes.
Vicki Jackson enxerga a questão da interação judicial entre julgadores de diversos
sistemas jurídicos a partir da constatação da existência de três modelos: um modelo de
convergência (convergence), um modelo de resistência (resistance) e um modelo de engajamento
(engagement). Os dois primeiros devem ser evitados/repudiados e o terceiro é produtivo e deve
ser estimulado/defendido (JACKSON, 2005, p. 112-115).
O modelo de convergência é uma postura de interação judicial que prioriza o que vem de
fora. Concede-se ao material decisório não-estatal uma hierarquia superior e o julgador acaba por
optar por uma harmonização perigosa ao que é produzido no estrangeiro. Este tipo de postura
pode ser uma exigência normativa da Constituição, pode ser movida por fatores institucionais ou
por fatores exógenos (econômicos e políticos) (JACKSON, 2007, p. 164-167).
O modelo de resistência é o extremo oposto à convergência. Trata-se de uma postura de
total indiferença ao que é produzido e decidido em outros sistemas jurídicos. Este material, para a
compreensão da Constituição, é irrelevante. É, enfim, uma postura de isolamento à interpretações
sobre casos similares decididos em outros lugares (JACKSON, 2007, p. 168-171).
Por fim, no modelo de engajamento o julgador não é resistente a levar em conta o material
decisório produzido no exterior, mas também não se submete a uma harmonização apressada.
Valoriza os insights do material decisório estrangeiro sem deixar que este imponha um
determinado caminho a se seguir (JACKSON, 2007, p. 171). O que é requerido neste modelo é
uma consideração séria do que já foi dito e processado em outros lugares (Ibidem, p. 177). As
vantagens de uma tal postura passam pelo “oferecimento” de diferentes perspectivas para lidar
com um problema comum, ao mesmo tempo em que se testa o que já está consolidado; pela
observação de decisões ruins que não devem ser seguidas; por indicar caminhos que podem ser
construídos e por contribuir para a imparcialidade do julgador, uma vez que a postura de
engajamento simulada um debate com perspectivas diversas e distantes do caso concreto em
análise (Ibidem, p. 177-181).
Percebe-se que o argumento de Vicki Jackson tem estreita relação com a preocupação da
presente investigação, embora não de forma expressa. O modelo de convergência, que a autora
234
rejeita, é um modelo de negação da identidade constitucional em nome da alteridade. O modelo
de resistência, igualmente descartado, é um modelo que prega a identidade “autista” negando
totalmente a alteridade e a possibilidade de aprendizado com o outro. Por fim, o modelo de
engajamento corresponde a uma postura de séria consideração da alteridade sem desconsiderar
a importância de uma identidade bem construída. O que falta à proposta da autora é a indicação
de como, ainda que de forma aproximada, esta equalização pode ser alcançada.
No Brasil, André Ramos Tavares apresenta uma tese que se aproxima do defendido por
Vicki Jackson. Afirma que existem cinco modelos: de submissão, de repulsa, de uso decorativo,
de unilateralismo e de interlocução. Os quatro primeiros devem ser evitados e o último é positivo.
Segundo o autor, todos os modelos descritos podem ocorrer com uma só decisão ou com um
conjunto delas. O relevante é a justificação e demonstração de como ela(s) está(ão) sendo
usada(s) (TAVARES, 2012, p. 122-123).
O modelo de submissão corresponde a uma postura de total deferência ao material
estrangeiro. No limite, pode tornar-se um tipo de neocolonialismo (TAVARES, 2012, p. 123-126).
É um modelo de morte da identidade. O modelo de repulsa assume uma postura de rechaçar
totalmente o que não é ego (Ibidem, p. 126-127). É um modelo “autista”. No modelo decorativo,
utiliza-se o que vem de fora apenas para confirmar o que já se pretendida decidir. É, em verdade,
uma não utilização, uma não consideração com a alteridade (Ibidem, p. 127-128). O modelo de
unilateralismo não rejeita expressamente o diálogo com outras fontes judiciais, mas também com
elas não interage (Ibidem, p. 128).Trata-se de um “isolacionismo não intencional”.
O modelo de interlocução consiste na “abertura para a compreensão, discussão, reflexão e
eventual aproveitamento dessas decisões e de suas razões de decidir” (TAVARES, 2012, p. 129).
Para este modelo não basta que se conheça o resultado final tomado pelo juízo (alter). É preciso
conhecer o caso concreto em questão e as razões que fundamentaram a decisão (Ibidem, p. 132).
A abertura e consideração não significa não-rejeição. Após o processo dialógico é totalmente
possível que o juiz ou Tribunal estatal opte por não seguir a influência externa (Ibidem, p. 131). O
importante é o contato. Trata-se de um modelo em que a identidade se abre para a alteridade
para como ela aprender.
A proposta mais elabora sobre a temática em questão é apresentada por Marcelo Neves
sob o signo do Transconstitucionalismo (NEVES, 2009). A principal proposta do autor é
apresentar a necessidade e as possibilidades de se enxergar soluções para os problemas ínsitos
ao constitucionalismo a partir de um olhar que vá além de uma concepção meramente estatal do
direito constitucional.
O autor assevera que na sociedade mundial proliferam ordens jurídicas diferenciadas que
seguem o mesmo código binário (lícito/ilícito), mas que possuem critérios e programas
diferenciados. Entre essas ordens começa a surgir, na contemporaneidade, entrelaçamentos que
não dependem de tratados jurídicos-internacionais, ou seja, de um corpo normativo
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unindo/aproximando/integrando tais ordens. O mais relevante é que essas pontes de transição
são formadas a partir, assim afirma o autor, do centro do sistema jurídico: os juízes e tribunais.
Ora, se o centro do sistema jurídico são os juízes e tribunais é correto afirmar que o
sistema jurídico mundial é multicêntrico. O centro de um sistema jurídico estatal constitui uma
periferia para o centro de outro sistema jurídico estatal. Esse cenário possibilita a observação
mútua, o aprendizado e o intercâmbio entre esses sistemas sem que haja primazia de um sistema
sobre o outro. Pode-se falar, assim, em conversação ou diálogo entre Cortes e juízes.
O que marcará o transconstitucionalismo é que o entrelaçamento das ordens jurídicas
ocorre no plano reflexivo. Ou seja, a partir da observação, intercâmbio, aprendizado e diálogo
entre ordens jurídicas é possível a reconstrução de sentido à luz da ordem receptora. Ao interagir
com uma ordem distinta novos horizontes de sentido podem emergir para a solução de
determinado caso constitucional. Sem abdicar das estruturas normativas internas, bem como a
dogmática constitucional estatal, o transconstitucionalismo possibilita uma racionalidade
transversal entre ordens jurídicas diversas fazendo interagir perspectivas múltiplas sobre casos-
problema tipicamente constitucionais. Essa postura, para o autor, é a que melhor se adéqua à
sociedade mundial multicêntrica da contemporaneidade.
A construção de Marcelo Neves, fortemente influenciada pela teoria dos sistemas de Niklas
Luhmann em diálogo com o conceito de racionalidade transversal de Wolfgang Welsch, também
aponta para a necessidade de interação entre identidade e alteridade criticando posturas tanto
sobrevalorização da primeira quanto posturas de negação da segunda. O aprofundamento teórico
dado pelo autor, contudo, é superior às demais propostas. A interação judicial, para ele, é
fundamental na contemporaneidade.
4 A tensão entre identidade e alteridade na interação judicial-constitucional: um problema de como
Não restam dúvidas de que uma postura de interação judicial em matéria constitucional
entre julgadores de diversos sistemas jurídicos não pode ceder aos extremos. Todos os autores
analisados, cada um a seu modo, defende que, se se escolhe uma postura de interação, é preciso
fazê-lo com parcimônia, com cuidado, para evitar tanto o isolacionismo autista, provinciano,
quanto uma deferência submissa ao que é produzido no estrangeiro. Ou seja, nos termos que
este trabalho utiliza, nem sobrevalorizar a identidade nem refutar, por princípio, a alteridade.
A postura de interação judicial, embora não seja, em regra, uma imposição normativa,
parece ser uma atitude adequada à atualidade. Observado que problemas comuns ou similares
são decididos por diversos atores jurídicos ao redor do mundo através de uma mesma linguagem
(o constitucionalismo) não há nada que, a priori, caracterize a postura de interação como danosa.
236
Ao contrário, a abertura reflexiva pode contribuir bastante com o aprimoramento do
constitucionalismo.
A grande questão é como colocar esta postura em funcionamento. Ou seja, qual o aparato
teórico/metodológico/epistemológico apto a possibilitar que uma interação judicial que não destrua
a identidade nem negue a alteridade? Enfim, quais as condições de possibilidade para uma
interação positiva, construtiva e atenta à tensão identidade-alteridade?
André Ramos Tavares apresenta preocupação expressa nesse sentido ao afirmar que “a
utilização da jurisprudência estrangeira apresenta forte traço interpretativo, embora faleça, ainda,
uma metodologia quanto ao seu uso funcional e consistente. Essa característica lança a
discussão no complexo contexto da hermenêutica constitucional” (2012, p. 144). No mesmo
sentido aponta Marcelo Neves: “Antes do que de autoridade, o transconstitucionalismo precisa de
método” (2009, p. 277).
Evidentemente, a construção de um tal aparato teórico exigiria uma espaço que
transcende aos limites do presente estudo. O que se segue são os primeiros passos para esta
empreitada. A intenção é traçar uma base para a formulação de um mecanismo que possibilite,
ainda que de forma aproximada, a equalização entre identidade e alteridade no contexto da
interação judicial.
Marcelo Neves apresenta o que ele mesmo chama de um “esboço de uma metodologia do
transconstitucionalismo” (2009, p. 270-277). Embora seja uma construção voltada para a tese do
autor, aparentemente suas bases servem para a elaboração de uma metodologia da interação
judicial como um todo.
O ponto de partida do autor é o conceito sistêmico de dupla contingência. Este conceito
relaciona-se com a relação de observação recíproca entre ego e alter na sua interação. Presume-
se que ego não pode saber, com certeza, qual será a ação/decisão de alter. O conceito carrega
consigo, também, a questão do reconhecimento. Desta forma, uma metodologia da interação
judicial não pode se pautar por uma identidade cega. Impõe-se que, quando confrontadas com
problemas constitucionais similares ou comuns, as ordens jurídicas se abram para a alteridade. A
identidade, segundo o autor, precisa ser constantemente reconstruída pela alteridade. Isto não
significa a morte da identidade, mas sim o entrelaçamento entre ela e a alteridade mediante a
abertura.
Como afirma o autor, a postura de interação se relaciona com a
capacidade de surpreender-se com os outros, na admissão de um futuro aberto, que não pode ser predefinido por nenhuma das ordens entrelaçadas no caso. É fundamental a disposição de procurar as “descobertas” normativas dos outros, para fortificar a própria capacidade de oferecer solução para problemas comuns (NEVES, 2009, p. 275).
237
Enfim, a partir da prioridade do caso concreto em questão (e não da ordem jurídica) a
interação judicial deve possibilitar a construção de articulações produtivas entre os sistemas
(pontes de transição) (NEVES, 2009, p. 275-277). O autor encerra sua contribuição sinalizando
para uma inevitabilidade de toda observação: o ponto cego. O observador, qualquer que seja ele,
tem um limite de visão. Há sempre um ponto cego que não pode ser enxergado pelo observador.
Contudo, outro observador, de frente para o primeiro, consegue ver esse ponto e, mediante
comunicação, alertá-lo. E é disso que trata o transconstitucionalismo: a ampliação e reconstrução
de uma identidade mediante um diálogo com o outro, ou seja, com a alteridade (Ibidem, p. 297-
298).
Embora a contribuição do autor pernambucano seja valiosa, parece ser possível dar alguns
passos além na construção de um modelo apto a lidar com a interação judicial de forma mais
adequada, ou seja, no desvendamento do como esta postura pode ser produtiva e, ao mesmo
tempo, equalizar a tensão entre a identidade e a alteridade. Para tanto, recorre-se mais
fortemente a modelos provenientes de um paradigma de cunho hermenêutico e não sistêmico.
Partindo do mito do semideus grego Hermes, André Karam Trindade e Fausto Santos de
Morais, afirmam que o juiz doméstico deve adotar o mesmo tipo de postura desta figura
mitológica. Ou seja, deve procurar mediar a relação entre as ordens jurídicas nacionais e
estrangeiras, embora os autores reconheçam que não se trata de tarefa fácil, tendo em vista o
manancial pré-compreensivo dos julgadores estar vinculado ao direito estatal (TRINDADE;
MORAIS, 2012, p. 95).
Para eles este conjunto de pré-compreensões pode ser revisada e sua inautenticidade
superada na medida em que se toma consciência da amplitude compreensiva que a observação
de materiais decisórios estrangeiros pode oferecer (TRINDADE; MORAIS, 2012, p. 95). Para os
autores uma “abertura para essa nova concepção de Direito transconstitucional – [...] – imprime
uma fusão de horizontes ao intérprete”. E prosseguem: “Se antes o mundo jurídico estaria limitado
ao âmbito doméstico, em que os institutos jurídicos se reportam ao poder do Estado nacional, a
partir de uma abertura do horizonte hermenêutico não seria mas possível sustentar que as
relações nacionais não repercutem em outras esferas do planeta” (Ibidem, p. 96). Desta forma, é
necessário um esforço hermenêutico para romper com a compreensão de que os julgadores
brasileiros devem estar limitados ao material nacional (Ibidem, p. 97).
Os autores citados dão alguns indícios de mecanismos hermenêuticos que devem ser
melhor explorados e aprofundados. A contribuição oferecida por Wálber Araujo Carneiro parece
ser a que melhor ilumina os caminhos adequados a serem seguidos na construção de um modelo
para a interação judicial.
A principal intenção do autor baiano é elaborar uma teoria da decisão judicial que,
adotando um paradigma hermenêutico e, por isso, ciente das limitações compreensivas e da
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finitude humana, possibilite a inserção do diálogo no pensar jurídico como mecanismo
heterorreflexivo. É
reflexiva porque se movimenta especularmente no sentido que já acessamos, quebrando com o distanciamento falacioso e mitológico entre o sujeito e o objeto. É hetero porque não só permite como também exige a diferença trazida pelo outro, a diferente perspectiva sobre o ente, a marca de uma filosofia da alteridade (CARNEIRO, 2011, p. 30).
A teoria fundamenta-se na filosofia hermenêutica de Martin Heidegger e na hermenêutica
filosófica de Hans-Georg Gadamer (CARNEIRO, 2011, p. 57-96), mas o núcleo filosófico que
possibilita a identificação e construção de um espaço epistemológico com consequências
produtivas para o direito é a dicotomia verdade/não-verdade – atrelado ao conceito de verdade
como desvelamento (Heidegger) – na sua relação com a dupla estrutura da linguagem
(hermenêutica e apofântica) (Ibidem, p. 117-130). A impossibilidade de suspender compreensões
e de transitar no mundo sem pré-compreensões força a epistemologia para um nível secundário,
mas não menos importante: a reflexividade.
Dentro de um contexto jurídico, o diálogo será o melhor caminho para essa epistemologia.
O diálogo é, por excelência, comunicação com o outro e, por isso, a ele cabe um papel secundário
no sentido de que não é por ele que se chega à verdade, mas é através dele que a “melhor”
verdade pode ser desvelada. O diálogo, no paradigma aqui adotado, será responsável por mostrar
àquele que compreende algo que ainda não se viu, embora já fosse possível ver.
Aposta-se no diálogo pois, além de ser ele o responsável por novas compreensões sobre o
mesmo fenômeno, pretende-se fugir da dissimulação e por estar ele “historialmente” legitimado,
uma vez que a tradição democrática se impõe autenticamente nas sociedades ocidentais
constitucionalizadas5. O diálogo entrará em curso como mecanismo reflexivo e, por ser realizado
através e com o outro (o alter), a hermenêutica aqui adotada será Heterorreflexiva.
Este é, portanto, o fundamento teórico-filosófico de uma postura de abertura e diálogo com
materiais decisórios é a possibilidade de revisitação (via interpretação – no sentido heideggeriano)
de projetos compreensivos desvelados por julgadores estatais. A contribuição decisiva deste
modelo é a de alertar para as limitações compreensivas do intérprete ao mesmo tempo em que
exige e justifica/fundamenta recorrer a uma abertura dialógica. Conforme o autor a “interpretação
é [...] o espaço reflexivo da hermenêutica e o local onde poderemos construir uma epistemologia
jurídica de caráter reflexivo” (CARNEIRO, 2011, p. 235).
No modelo proposta por Wálber Araujo Carneiro a reflexividade ficaria a cargo das
estruturas que o sistema jurídico como um todo oferece: os princípios jurídicos, as regras, a 5 “A opção pelo diálogo e a necessária relação entre ele e a busca por repostas corretas em direito não é uma necessidade a priori para que se obtenha o conhecimento válido, mas uma marca da história que nos atropela na contramão de um movimento que se inicia com uma tentativa de ultrapassar os nossos limites” (CARNEIRO, 2011, p. 127).
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doutrina e a jurisprudência. A apreciação e interlocução com materiais decisórios provenientes de
outros sistemas jurídicos seria acrescentada a essas estruturas, provocando uma nova
reflexividade e, assim, novas circularidades compreensivas.
Mas, como este modelo pode contribuir para a equalização da tensão entre identidade e
alteridade? Parece que esta contribuição vem da análise que o autor faz de duas das citadas
estruturas do sistema jurídico: a doutrina e a jurisprudência. São elas que serão capazes de
salvaguardar a identidade e possibilitar uma abertura consistente para a alteridade. Como?
A doutrina aqui é entendida como o produto de construções acadêmicas voltadas para a
modelação de um sistema jurídico “melhor”. É a academia, ligada à extensão, que deve ter a
pretensão de moldar a forma com que os julgadores irão decidir. É ela a responsável por “testar”
caminhos possíveis e mais adequados a serem seguidos pelo Poder Judiciário. É ela, enfim, que,
de fato, constrói o saber que marca a identidade de um sistema jurídico. Desta forma, a doutrina
jurídica, através da academia e da extensão, tem o papel de construir e guardar a identidade de
um sistema jurídico. É ela que deve, primeiro, analisar criticamente tudo o que vem de fora e, em
seguida, oferecer resultados construtivos para a jurisprudência. Os julgadores devem, antes de se
voltar para o material decisório estrangeiro, aprender com a doutrina e entender o que ela vem
afirmando sobre o tema em questão. Este é um passo fundamental para a salvaguarda da
identidade sem que se prejudique a abertura para a alteridade.
A jurisprudência nacional cumprirá papel semelhante. A jurisprudência, no modelo aqui
adotado, “é um dizer sobre o modo como o direito está sendo concretizado” (CARNEIRO, 2011, p.
260). A atuação judicial, também neste modelo, pode ser encarado como a escrita de um romance
em cadeia. Todo julgador é um escritor de uma parte desta grande novela. Não é possível,
portanto, que se ignore o que está escrito no capítulo anterior nem que se esqueça que algo será
escrito na sequência (Ibidem, p. 277). Ora, tal como a doutrina acadêmica, esta grande história
marca a identidade. A atuação parcimoniosa e consistente dos diversos julgadores estatais
contribuem para a construção de uma identidade do sistema. Assim, antes de se voltar para o
material decisório estrangeiro, o juiz ou Tribunal deve levar em conta o que a jurisprudência vem
dizendo sobre o “tipo de caso” sub judice. Desta forma, preserva-se a identidade sem que se
inviabilize a abertura para a alteridade.
Fica claro, portanto, que este estudo adota postura diametralmente oposta à de Cass
Sunstein quando este afirma que a interação judicial deve ser priorizada em democracia recentes,
com pouca tradição constitucional. Ora, justamente o inverso! É só em uma democracia-
constitucional razoavelmente estabilizada, com doutrina e jurisprudência nacionais sólidas que o
diálogo transconstitucional pode ocorrer sem que se corrompa a identidade em nome da
alteridade. É só em sistemas razoavelmente enraizados e com identidade próprio que as
interações podem ser realmente construtivas.
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5 Conclusão
A globalização gera consequências e força a revisitação e reconstrução de diversos
conceitos e princípios forjados em outros cenários. O direito, de forma geral, e o direito
constitucional, de forma específica, não fogem à esta constatação. Ao mesmo tempo em que
diversas esferas da vida social eram globalizadas o constitucionalismo democrático se expandiu
para a quase totalidade do mundo ocidental e o direito como um todo se transnacionalizou.
Vivemos em um tempo de concomitantes instâncias de regulação jurídica, todas influenciando a
todas e, especialmente, o direito constitucional estatal.
Neste cenário, um fenômeno que merece especial destaque é o surgimento e crescimento
de diálogos judiciais entre juízes e Tribunais ao redor do mundo. É o que se pode chamar de
globalização judicial, fertilização cruzada, engajamento judicial, interlocução comunicativa ou
transconstitucionalismo. Entendemos que este fenômeno é uma marca da expansão do
constitucionalismo para além do Estado nacional, do aumento da consciência da importância que
o constitucionalismo tem para a construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária.
Este tipo de interação, embora aparentemente produtiva, coloca a questão da tensão entre
identidade e alteridade. Como aprender com algo que vem de fora, com o outro, sem que se
prejudique a construção de uma identidade própria, única, que a diferencie das demais? A
individualidade, mesmo a de sistemas jurídicos, é fundamental. Isto só pode ocorrer com a adoção
de posturas/modelos que incentivem o uso reflexivo, dialógico, com intuito de aprendizado com o
alter.
Um tal modelo, contudo, precisa de um mecanismo teórico que lhe dê sustentação sólida.
Parece que as construções vinculadas ao paradigma hermenêutico têm muito a oferecer neste
quesito. A fundamentação filosófica e teórica apresenta por esses modelos para a reflexividade, o
diálogo e o aprendizado é altamente produtiva. Da mesma forma, ela é capaz de oferecer os
mecanismos, filosóficos e analíticos, que contribuem para a preservação da identidade ao mesmo
tempo em que não rejeita a possibilidade de abertura para a alteridade. Parece ser possível
enxergar um Hermes (CARNEIRO, 2011, p. 273-280) cosmopolita no horizonte.
É certo que muito ainda precisa ser elaborado para que um mecanismo apropriado para
lidar com a interação judicial entre juízes e Tribunais esteja à disposição. A intenção do presente
estudo, mormente seu final, foi contribuir para este desiderato. Parece que as bases restaram
evidenciadas.
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