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Consciência Ambiental e o Desenho da Literatura: A Arte da Desfamiliarização de Thoureau.
François Specq, Ecole Normale Supérieure de Lyon, Université de Lyon – CNRS (IHRIM)
Enquanto a ecocrítica vem sendo cada vez mais dominada pelos estudos culturais, eu vou defender que as abordagens
literárias são caminhos igualmente importantes para promover a consciência ambiental. Walden (1854) de Henry David
Thoreau servirá como referência para essa visão. Eu explorarei a apresentação, nos dois últimos capítulos de Walden, de
modos de consciência ambiental que competem entre si, e mostrarei como isso fornece base para o chamado fundacional de
Thoureau pela preservação da natureza. Cuidadosamente organizando sua narrativa de forma a questionar modos normais de
apropriação do mundo (pesquisa científica e exploração econômica de recursos naturais) e propondo uma poética em que as
dinâmicas da escrita transfiguram/representam os processos da natureza, Thoreau baseou sua defesa ambiental em um
cuidado maior com o poder indomável e o segredo contínuo do mundo físico. Aceitar a existência da natureza como
superando o controle humano e processos de significação altera a divisão humano/não-humano, criando assim a fundação
para um humanismo ambiental mais complexo e equilibrado.
Enquanto a ecocrítica surgiu como uma abordagem que buscava explicar como textos literários
poderiam impactar o nosso modo de pensar e interagir com o meio ambiente, ela se tornou
absolutamente interdisciplinar nas duas últimas décadas. Recorrendo não somente à teoria e história
literária, mas também à história e filosofia ambiental, história da ciência, psicologia, sociologia e
antropologia, e estendendo-se sobre um campo que vai além da escrita da natureza e estética da
paisagem para abarcar uma variedade muito maior de textos e documentos, a ecocrítica tende a se
tornar um ramo dos estudos culturais, e vem produzindo um grande número de estudos iluminadores
nesse processo1. Eu vou defender, no entanto, que abordagens literárias mais formais permanecem
como importantes vias para promover a consciência ambiental, e vou demonstrar esse ponto através de
uma leitura atenta de algumas passagens de Walden, de Thoreau.
Enfatizar o desenho sutil da literatura ao invés das complexidades críticas dos estudos culturais
significa explorar o potencial da linguagem e da experiência literária para expandir os modos de
consciência do mundo físico – ou, para usar um termo do Romantismo, para moldar nossos sentidos e
expandir nosso entendimento. Tal abordagem examina as formas como alguns textos, apesar de suas
diferenças formais e retóricas, explícita ou implicitamente criticam a ossificação ou fossilização de
nossas concepções da relação entre seres humanos e o mundo físico. A crítica literária, nessa
perspectiva, é decididamente um tipo de antropologia, no sentido de que interroga – ainda que
indiretamente – o que significa ser humano, e ilumina as formas em que a literatura pode contribuir
para modelar as nossas vidas.
1 A bibliografia sobre literatura e meio ambiente é tão vasta que é impossível fornecer aqui até mesmo uma breve visão geral. Para uma introdução ao campo a qual apresenta a sua abrangência e evolução desde o ensaio fundador de Lawrence Bell intitulado The Environmental Imagination, ver Garrard, The Oxford Handbook of Ecocriticism.
F. Specq – Environmental Awareness and the Design of Literature – ENANPOLL, July 1, 2016
Essa ênfase está em sintonia com a tarefa da poesia conforme a definição do poeta francês Jean
Cocteau da década de 1920:
De repente nós vemos um cachorro, uma carruagem, uma casa pela primeira vez. Nós ficamos
impressionados com a forma como tudo parece diferente, ou louco, ou ridículo, ou lindo. No momento
seguinte, o hábito, com sua borracha, apaga essa foto vívida. Nós fazemos carinho em um cachorro,
chamamos a carruagem, moramos na casa. Nós não mais os vemos. Esse é o papel que a poesia
desempenha. Ela remove o véu, no mais completo sentido da palavra. Ela mostra em toda a sua nudez, e
com uma luz que nos remove de nosso entorpecimento, todas as coisas surpreendentes que nos rodeiam, e
as quais nossos sentidos registraram mecanicamente.
O pronunciamento de Cocteau aponta para uma forma crucial pela qual a literatura produz um
processo de ‘desfamiliarização’: e a literatura e as artes (‘poesia’ no senso etimológico de Emerson,
isto é, qualquer forma de criação) faz com que coisas ordinárias pareçam ‘estranhas’2. A arte contraria
o caráter fixo e automático da nossa relação com o mundo: ela faz com que nós enxerguemos as coisas
ao invés de meramente reconhecê-las (ou seja, categorizá-las) e, dessa forma, ela fornece uma
acuidade renovada para a nossa percepção e produz, em última instância, uma consciência aguçada do
mundo que nos cerca (e não apenas do ‘meio ambiente’ em um sentido estrito e técnico). A literatura
entendida dessa forma permite uma retomada do mundo – uma nova ou renovada conexão com a sua
complexidade e densidade, com a sua atração intelectual e emocional. Walden de Thoreau, há muito
reconhecido como um texto clássico da literatura de meio ambiente, é um exemplo concreto de como
ele pode ir além do foco sustentado de Thoreau no mundo natural e na defesa ambiental específica,
como eu pretendo esclarecer na discussão que se segue.
2 A noção de “desfamiliarização” é geralmente atribuída ao crítico formalista russo Viktor Shklovsky, em seu ensaio de 1917 traduzido como “Art as Technique” in Literary Theory: An Anthology. Eds. Rivkin, Julie and Ryan, Michael. New York: Blackwell Publishing, 2004, 15-21 (N.t.: Esse ensaio está disponível em português em Viktor Chklovski, “A arte como procedimento” in TOLEDO, Dionísio (org.) Teoria da literatura: os formalistas russos. Porto Alegre : Globo, 1976. 39-56).
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No nível descritivo mais simples, Walden (1854) conta a história dos dois anos em que Thoreau
morou na margem do Lago Walden, perto de Boston, Massachusetts. Mas, mesmo antes de Thoreau
começar a narrar sua estadia, a capa mostra de forma concisa e efetiva o que está em jogo: a imagem
da cabana em Walden, enganosamente simples, desenhada por sua irmã Sophia, aponta para como o
livro levanta a questão da habitação, da moradia no mundo. De fato, até quando se torna um ponto de
atenção em si, o mundo físico enfaticamente não é dado como certo, mas submetido a um poderoso
processo de desfamiliarização. Apesar de isso ocorer ao longo de toda a obra, eu vou focar
particularmente nos dois capítulos finais, “O Lago no Inverno” e “Primavera”. Conforme seus títulos
sugerem, eles completam a narrativa sazonal iniciada pela chegada de Thoreau ao lago Walden em 4
de julho de 1845. Eu gostaria de sugerir, contudo, que eles oferecem na verdade mais do que uma
mera narrativa sazonal, mas sim uma exploração sustentada de três modos competidores entre si de
consciência ambiental: com isso eu quero dizer formas de examinar, e até diminuir, a distância entre
matéria e consciência3.
Esses modos correspondem a três destaques desses capítulos: o mapeamento de Thoreau do
Lago Walden, a colheita dos cortadores do gelo de Walden, ambos em “O Lago no Inverno”, e a
famosa passagem da areia escorrendo no talude em “Primavera” – as quais, por conveniência, serão
chamadas nesta análise de sequências 1, 2 e 3. Minha hipótese é de que essas três passagens formam
um tríptico no qual opções contrárias se equilibram umas às outras, e devem por isso serem lidas em
3 Essa exploração de variedades de “consciência” em Walden expande a discussão fundadora de Scott Slovic em Seeking Awareness, cujo capítulo sobre Thoureau é dedicado ao seu diário. O meu uso da noção de consciência ambiental, contudo, é em pouco diferente daquele adotado por Slovic, que a define como “uma atenção aumentada ao nosso lugar no mundo natural” (3): as várias formas pelas quais os seres humanos relacionam-se com o mundo físico sempre incorporam uma forma de “consciência”, envolvendo ela ou não uma “atenção” específica.
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conjunto – não apenas como uma narrativa sazonal, mas como um argumento retórico substanciado o
qual eu vou definir como o humanismo ambiental de Thoreau. De forma resumida, elas demonstram
um distanciamento de uma negação da materialidade em nome de um humanismo concebido
comumente através de um errôneo materialismo demasiado humano, para um ‘verdadeiro’
materialismo. Enquanto ele não abdica do desejo humano de “explorar e aprender todas as coisas”
(317/133) 4, esse verdadeiro materialismo baseia-se em um reconhecimento duplo da concretude do
ambiente individual e da materialidade da linguagem, assim resultando em uma forma de humanismo
mais realizada totalmente – menos ‘imperial’. Se as duas primeiras sequências apresentam sistemas
auto-encerrados que incorporam uma conversão ou tradução do real (respectivamente: o mapa e a
lição ética que o replica em um nível mais alto, mais abstrato intelectualmente; a pilha de blocos de
gelo, a qual meramente remove o corpo de água para melhor traduzi-lo em valor monetário), a terceira
passagem (do talude de areia) oferece uma estrutura muito mais aberta, a qual expande a ideia do
caráter ‘intraduzível’ do real, o qual serve como razão fundamental para a noção de uma “natureza
selvagem” e a resultante ideia de preservação da natureza que conclui o capítulo:
A vida de nosso povoado estagnaria se não fossem as florestas inexploradas e as campinas que o circundam.
Precisamos do tônico da natureza selvagem, de vadear uma vez ou outra nos pântanos onde se amoitam as galinholas
reais e os frangos d'água, de ouvir o grito da narceja, de cheirar os carriços que sussurram onde só as aves mais
ariscas e solitárias constroem seus ninhos e a marta se espoja com a barriga rente ao chão. Ao mesmo tempo em que
buscamos com ardor explorar e aprender todas as coisas, exigimos que todas as coisas sejam misteriosas e
inexploráveis, que a terra e o mar sejam infinitamente primitivos, refratários a nossos exames e sondagens porque
insondáveis. Não podemos nunca nos fartar da natureza. Devemos ser reconfortados pela visão do inesgotável vigor,
por seus traços vastos e imensos, o litoral com seus destroços, os ermos com suas árvores vivas e moribundas, as
nuvens carregadas, e a chuva que dura três semanas e causa inundações. Precisamos testemunhar a transgressão de
nossos próprios limites, de ver criaturas pastando em liberdade por onde nunca nos aventuramos (317-18 / 133)
O pedido eloquente de Thoreau pela natureza selvagem antecipa o seu conhecido chamado pela
preservação da natureza encontrado em Os Bosques do Maine (156 / 51), o qual é uma referência
fundadora para o movimento ambientalista5. Mas ele tem uma ressonância maior pois ele destaca as
tensões entre dois aspectos antitéticos da experiência humana: um que busca compreender (explorar,
avaliar, decifrar) e assim converter ou traduzir o real; e outro que resiste a esse desejo e, em seu lugar,
defende a qualidade estimulante do inexplorável, do indecifrável, ou do intraduzível.
Mapeando o espaço e a si mesmo
4 N.a.: A não ser especificado o contrário, todas as citações subsequentes de Thoureau são da edição de 1971. (N.t.: Para esta versão em português, foi utilizada a edição de 2007 da editora Ground, traduzida por Astrid Cabral. As citações contém, primeiro, a referência das páginas da edição em inglês utilizada por Specq, e depois a referência da edição em português, separadas por /.)5 Sobre a retórica ambiental de Thoreau nessa passagem, confira François Specq (2003).
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Fig. 1. Mapa de Thoreau do Lago Walden, topografia manuscrita, tinta em papel, 1846. The
Concord Free Public Library (http://www.concordlibrary.org/scollect/Thoreau_surveys/133a.htm)
O mapeamento de Thoreau do lago não é só uma história mas algo que realmente aconteceu,
como demonstrado pelo seu mapa original à mão de Walden. Em janeiro de 1846, Thoreau, que era
um topógrafo profissional, levou suas ferramentas de topografia – “bússola, corrente e fio de prumo”
(285 / 120) – para o lago congelado e desenhou um mapa cuidadoso das suas margens, com mais de
cem medições de sua profundidade, uma experiência que ele relatou no antepenúltimo capítulo de
Walden, “O Lago no Inverno”, o qual inclui também uma cópia do próprio mapa (286) 6.
6 O mapa original está guardado na Concord Free Public Library, Massachusetts (Thoreau 1846), juntamente com dezenas de outros mapas de medição produzidos por Thoreau.
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Fig. 2. O mapa de Thoreau do Lago Walden, publicado em Walden (286).
A passagem estendida de Thoreau sobre o desenho do mapa do lago Walden é
fundamentalmente divida em duas partes: o mapeamento do lago, por um lado, e a tradução desse
processo em uma lição ética, por outro lado. Essa estrutura de duas partes reflete a tensão entre duas
abordagens contraditórias sobre a transcendência: em poucas palavras, mapeamentos, como uma
forma humanista clássica de conhecimento, é feita para “des-transcendentalizar”, como o objetivo de
Thoureau de refutar as lendas sobre o lago não ter fundo, enquanto que a tradução ética aparece em
uma forma de “re-transcendentalizar” o mundo físico.
O mapeamento ilustra a necessidade de um pensamento racional que caracteriza a ciência
moderna – “É de se perguntar até quando os homens ficarão na crença da insondabilidade de um lago
sem se darem ao trabalho de sondá-lo” (285/120) – e especialmente aparece como uma atividade que
responde ao chamado de Alexander von Humboldt por uma “delineação da natureza” (1850: I: 79).
Como observa Laura Dassow Walls, “O local de Thoureau sempre conversaria com o cósmico:
Walden, como Eureka, foi uma resposta ao Cosmos de Humboldt.” (264). O desejo de Thoureau de
escrever como se estivesse em “um país distante” (3/1), por exemplo, ecoava a noção de Humboldt da
equivalência entre experimento e a infinidade do mundo, a qual em si própria é um poderoso fator
desfamiliarizante: “O estudo da ciência que promete nos levar através do vasto âmbito da criação pode
ser comparado a uma jornada para um país distante” (1850: I:50). Dentro dessa tradição, o mapa
representa o poder sintetizador do conhecimento. O aspecto essencial do processo de mapeamento, na
economia retórica do texto de Thoureau, é que o lago é objetivado: ele se torna um objeto do
conhecimento racional, sofrendo uma transformação ontológica ao ser experimentado como um lugar
de medição ao invés de imaginação, a qual aqui é dispensada como um capricho: “Em suma, a
imaginação, uma vez que se lhe dê corda, mergulha mais fundo e se eleva mais alto do que a própria
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natureza” (285 / 121), proclama o narrador. Através de processo de criar imagens – distinto de, e
oposto a, imaginar – a alteridade da natureza é negada, ou talvez reduzida, conforme ela é forçada nas
nossas molduras ou na nossa razão (como defendido por Humboldt: “o viajante... é guiado pela razão e
pelas suas pesquisas” [1850: I:51]), talvez até na nossa vontade. O mapeamento apoia-se em uma
disjunção entre matéria e consciência, e em uma crença simultânea na possibilidade de diminuir essa
distância intelectualmente: apesar de o processo de mapeamento não ser inteiramente desprovido de
percepções sensoriais, a alteridade da natureza é eventualmente integrada.
Enquanto as fortes e humorosas tendências subjacentes ao longo dessa passagem podem nos
convidar a tomar as opiniões do narrador de forma séria demais, não há dúvida, no entanto, que o
processo de mapeamento, na economia do texto de Thoreau, atua essencialmente como uma
idealização da natureza, a qual de-susbstancializa e produz um fechamento (ou encerramento) do real.
Essa abordagem parece ser governada por um desejo de escapar contingências, e assim aceitando o
chamado de Humboldt para “traçar o estável dentre a oscilante e permanente alternância das
metamorfoses físicas” (1850: I:XII; ênfase do original). Ainda que divertidamente, o mapeamento
parece negar ou resolver a mutabilidade das coisas, compelindo ou apoiando, assim, uma retórica do
ideal, a qual, por sua vez, pode apoiar uma retórica do império, como sugerido por Humboldt:
Então nós, da mesma forma, em nossa busca pela ciência, devemos nos esforçar atrás do conhecimento das leias e
princípios de unidade que permeiam as forças vitais do universo; e é através desse caminho que os estudos físicos
podem ser utilizados no progresso da indústria, o qual é uma conquista da mente sobre a matéria. (1850: I: 53-54,
destaque meu)
Ainda que mapas, como construtos espaciais intentos em comunicar significado em uma
maneira linear, apoiam-se em princípios como racionalidade e progresso, eles podem ser cooptados
pela bandeira da expansão, e a bela forma recortada do afastado e assimétrico corpo de água chamado
Lago Walden pode certamente ser lida como um comentário oblíquo sobre a paixão americana pela
conquista e desumanização do espaço através da geometria – um posicionamento que pode ser
conectado desde a planta ortogonal de William Penn para a cidade de Filadélfia (1681) e, de uma
maneira ainda mais espetacular, à Lei de Regulamentação de Terras do Congresso americano de 1785
que dividia o território do noroeste (oeste e norte do rio Ohio) em exatos quadrados de uma milha e
possibilitava aos topógrafos impor um padrão ortogonal à paisagem, oferecendo assim apoio crucial
para a expansão territorial e a subsequente doutrina do Destino Manifesto.
O mapa de Thoreau do Lago Walden – em conjunto com a sua ênfase em caminhos tortuosos ao
invés de linhas retas – implicitamente questionava essa forma de interagir com o território.
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Fig. 3. Regulamentação de Terras de 1785 e o controle sobre o território americano
(http://www.lewishistoricalsociety.com/wiki/tiki-print_article.php?articleId=92)
Na economia retórica do texto de Thoreau, porém, o mapa pressupõe principalmente que é
possível para o observador transpor o mundo físico em uma diferente ordem de realidade: o qual é,
estritamente falando, um processo de translação – não apenas no sentido de remover algo de um lugar
para outro, mas de transferência de uma condição para outra, um processo cujo sinal mais visível é a
redução de três para duas dimensões na ordem física. A alegação associada é que é, portanto,
logicamente possível sujeitar o mundo físico a outro tipo de translação (quase no antigo sentido
religioso de remoção da terra para o paraíso), a qual se transforma em uma alegoria da fisionomia
moral do homem:
O que me foi dado observar a propósito do lago aplica-se não com menos verdade à ética. Trata-se da lei
do meio termo. A regra dos dois diâmetros não só nos guia em direção ao sol no seu sistema e ao coração
no homem, como também traça linhas no sentido de comprimento e de largura no conjunto dos
procedimentos particulares do dia-a-dia de um homem e das ondulações da vida em suas enseadas e
afluentes, e ali, onde as linhas se cruzam, há de estar a altura ou profundidade de seu caráter. (291/122)
Nessa versão de consciência ambiental, o mundo material não é então só matéria, mas quase
imediatamente dotado ou imbuído de significados alegóricos, se concordarmos em definir alegoria em
seu sentido mais amplo, como uma ilustração do geral pelo particular – um particular que pode ser
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circunscrito. O modo alegórico é dependente da ideia de que é possível apreender as correspondências
através do pensamento racional – ao invés de através da imaginação ou da criatividade exuberantes
que aparecem depois no coração da passagem sobre o talude de areia em “Primavera”. A alegoria é a
imaginação a serviço do significado discursivo, pois é baseada na sequência lógica e não na
substituição ou equivalência simbólica. Fazer sentido do mundo dessa maneira, portanto, envolve não
somente delinear limites topográficos, mas também apagar suas dimensões materiais através de um
processo de translação.
No final, a topografia do Lago Walden de Thoreau é uma tarefa séria-cômica que parece feita
para ser uma versão paródica da contribuição necessária do indivíduo às atividades socialmente
aceitas. Thoreau se apoia, e meio ironicamente aceita, a figura do explorador de Humboldt e o seu
foco humanista no conhecimento para melhor trazer uma subsequente reviravolta. Considerando que o
mapeamento representa um trabalho socialmente aceitável, como uma forma intelectual legítima de
apropriação do lago, ele antecipa e parodia a exploração – isto é, a apropriação econômica – do gelo
do lago, que aparece imediatamente em seguida.
O aproveitamento da terra
A sequência intermediária é dedicada à colheita do gelo do lago Walden. Esse também é um
evento histórico real: no inverno seguinte à topografia do lago, uma equipe de cem cortadores de gelo
chegaram ao Walden para retirar o gelo para ser exportado para diferentes lugares no mundo todo,
incluindo Índia e Brasil por exemplo – isso foi antes da invenção do refrigerador, e um dos primeiros
casos de globalização! Todo o processo foi conectado fortemente ao desenvolvimento das estradas de
ferro, o qual é de fato outro tema importante em Walden. A colheita do gelo era, então, um evento
comum que Thoreau desfamilizarizou através de uma descrição cuidadosa e mistificadora – a qual
certamente não era algo comum para a literatura incluir na época.
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Fig. 4. Colheita de gelo no Lago Spy, Arlington, Massachusetts (perto da Concord de Thoreau), 1852.
(https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Ice_Harvesting,_Massachusetts,_early_1850s.jpg). Ao
fundo é possível ver o padrão ortogonal desenhado em preparação para o corte do gelo.
O corte de gelo faz um paralelo com a sequência de mapeamento na medida em que é uma
tarefa socialmente aceitável – e uma forma limpa de ocupação, em posição ao ócio do poeta errante ou
da vadiagem poética. As duas primeiras sequências devem de fato ser vistas juntas como um anseio
por aprovação social e ganho intelectual ou comercial. O mapeamento, não importa o quanto
autoirônico, ainda assentia a um reconhecimento social. Esse desejo era certamente importante para
Thoreau (o qual era um topógrafo procurado), mesmo se ele lamentava com frequência a pressão e as
restrições associadas a essa profissão.
A segunda sequência difere fundamentalmente da primeira, contudo, porque ela não
corresponde a nenhuma forma de investigação. Nessa sequência intermediária, matéria é só matéria:
não é nem alegórica nem simbólica, apenas um mero recurso a ser explorado para objetivos práticos e
ganho material.
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Fig. 5. Cortadores de gelo utilizando uma ferramenta puxada por cavalo para marcar o gelo
para o corte.
Na verdade, o padrão ortogonal executado pelos cortadores de gelo contrasta fortemente com o
mapa do lago de Thoreau por conta de sua absoluta regularidade: a geometria claramente incorpora o
controle humano sobre a terra de uma forma que ecoa o projeto da Lei de Regulamentação de Terras
de 1785. Ele também traz a crítica de Thoreau à exploração econômica, pois o mundo físico não é
compreendido, muito menos desfrutado, mas somente exibido e convertido em valor monetário, e
assim efetivamente submetido a uma translação material.
O que importa realmente, na economia retórica do texto de Thoreau, é que essa colheita do gelo
não é dada a nenhuma forma de translação ou conversão – exceto monetária, eventualmente – e até
menos passível a um processo de transcendentalização. Até mais do que o mapeamento, a colheita é
dependente do poder da sequência, linearidade e causalidade. Colher gelo intrinsicamente nega toda
forma de substituição, mas favorece a repetição do mesmo – como indicado pela imagem significativa
do fazendeiro encomendando a exploração do gelo do Walden “no objetivo de cobrir cada um de seus
dólares com outro” (294/124). Esse é um mero processo de duplicação e replicação ad infinitum (os
blocos de gelo dispostos “um[a] ao lado do[a] outro[a], fileira sobre fileira” [295/124]): ao invés de
produzir diferença ou expansão, ele contrai e reduz o real. A exploração é baseada em um princípio de
repetição e identidade. A única substituição que ela opera é da imobilidade pelo processo e energia
(fluxo sazonal): a massiva, monumental e estática pilha de blocos de gelo é feita para retirar a matéria
de seu ciclo de vida normal e para perturbar ou obscurecer a sucessão normal das estações ao fornecer
frio no verão (e assim, como o mapeamento, também suprimindo contingências, ainda que de maneira
diferente). Isso porque a colheita de gelo é baseada em uma minimização do presente a favor do lucro
futuro. Ao contrário, o ambientalmente amigável registro do real e de seu sabor imediato de Thoreau –
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a qual Walden celebra e a qual seu diário, ou “registro”, incorpora – é principalmente feita para
expandir a relação de uma pessoa com o seu presente.
Cada uma a seu modo, a medição do lago e a colheita do seu gelo são, portanto, figuras de
‘perfeição’: pontos de mapeamento para o ideal ou inteiros transcendentalizantes, e o corte do gelo
realiza-se em uma pilha perfeitamente regular que aparece como uma transposição parodicamente
redutiva (distinta de translação) de plenitude. Como o mapeamento, a colheita do gelo representa uma
supressão do contingente. Mas, sugere Thoreau, o contingente e o particular não podem ser suprimidos
sem eliminar a vida em si, sem drenar a substância da vida – daí vem o desejo diametralmente oposto
de Thoreau de prestar atenção ao singular, “individualizar” (292/123). Na sequência intermediária, a
matéria é simultaneamente e paradoxalmente valorizada e desmaterializada, como ela só pode ser
sujeitada a uma conversão monetária ou translação. Os cortadores de gelo incorporam, ou são a correia
de transmissão de, uma visão de mundo materialista, mas esse é um materialismo de subtração –
mesmo se o lago eventualmente for reabastecido, como Thoreau enfatiza (292/125) – em oposição ao
que é proposto em “Primavera”, a terceira sequência da parte final de Walden cuidadosamente
arranjada.
Repensando o Humanismo
A terceira sequência foca no degelo do talude de areia do “Corte Fundo” da ferrovia que
contornava o Lago Walden (304-309/128-130). Essa passagem, tomada sozinha, é frequentemente
vista como o clímax de Walden, e gerou um grande número de comentários7. O meu objetivo aqui será
limitado a mostrar como ela é uma etapa crucial no projeto intelectual ou estratégia de Thoreau na
parte final de Walden, e como ela traz e defende uma completa reorientação da relação da humanidade
com o seu meio ambiente.
Estruturalmente, a passagem do talude de areia pode ser vista como formando um tipo de arco
com a descrição do mapeamento, no sentido de que ambas são formas de investigação do real,
enquanto que não há investigação alguma na parte central do corte do gelo. Investigação aqui não
significa uma exploração metafísica das origens e fins do universo, mas sim da sua dimensão material:
as configurações terrenas da água, do gelo e da areia. Se a sombra da metafísica ainda reverbera na
passagem do mapeamento – eventualmente levando a uma contenção ou subsunção da matéria – não
há nada de metafísico na terceira sequência. Essa passagem é uma ode impactante à preeminência da
matéria e foca na realidade concreta, palpável, a qual contrasta fortemente com a matéria
artificializada e quase “des-realizada” explorada pelos cortadores de gelo. A riqueza da superfície da
Terra, com suas cores, sua profusão mineral e orgânica, como invocada em uma abordagem
fenomenológica, e o prazer do sensível são o foco da atenção do escritor. O observador permanece
7 Oferecer uma breve visão geral das abordagens críticas sobre essa passagem vai além do objetivo desse ensaio. Importantes pontos de partida são Boudreau (1990: 105-134), o qual inclui um útil ensaio bibliográfico, Milder (1995: 151-160), e West (2000: 183-196).
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altamente preso à terra, e ele está ansioso para aproveitar o máximo possível essa aparente restrição. O
seu propósito aqui é certamente bem diferente do desejo de Humboldt por “traçar o estável”:
O talude inteiro, que mede de seis a doze metros de altura, cobre-se às vezes, de um ou dos dois lados, numa extensão
de quatrocentos metros, com a massa desse tipo de folhagem, ou esboroamento arenoso, resultante de um só dia de
primavera. O que torna admirável essa folhagem de areia é o seu aparecimento súbito. Quando vejo um dos lados do
talude sem vida — pois o sol age primeiro só de um lado — e do outro essa luxuriante folhagem, criação de uma
hora, sinto-me tão comovido como se de certo modo me encontrasse no laboratório do Artista que fez o mundo e a
mim, ali chegando quando ele estivesse ainda em atividade, divertindo-se nessa barranca e espalhando em torno, com
excesso de energia, seus novos esboços. Sinto-me como se estivesse mais perto das partes vitais do globo, pois esse
transbordamento arenoso é algo semelhante à massa foliácea das entranhas do corpo animal. Encontra-se deste modo
nas próprias areias uma antecipação da folha vegetal. Não causa espanto que a terra se manifeste exteriormente por
meio de folhas, tanto que as elabora por dentro. Os átomos já aprenderam essa lei, e estão prenhes dela. A folha,
suspensa na árvore, tem aí o seu protótipo. Internamente, seja no globo terrestre ou no corpo animal, a folha é um
lóbulo úmido e espesso, termo especialmente aplicável ao fígado, aos pulmões e aos folículos adiposos (Àeípco,
labor, lapsus, fluir ou escorregar para baixo, um lapso; Ào(3aç, globus, lobo, globo; também lap e flap, e muitas
outras pala-vras) externamente uma folha seca e fina, mesmo porque o f e o v16 são um b espremido e ressecado. As
consoantes de lóbulo são lb, a suave massa do b (unilobulado, ou B, bilobulado) com a líquida l atrás dela
empurrando-a para a frente. Em globo, glb, a gutural g adiciona ao significado a capacidade da garganta. As penas e
asas dos pássaros são folhas ainda mais secas e delgadas. Assim, também, passa-se da informe lagarta na terra à aérea
e volátil borboleta. O próprio globo avança e se translada incessantemente, tornando-se alado em sua órbita. (306-307
/ 128-129)
Enquanto que o mapeamento e colheita do gelo eram duas formas de ‘ocupação’, Thoreau aqui
atesta seu ócio e demanda o direito de não ser sério em um sentido ordinário (social). Ele aparece
como um subversivo de todos os sistemas produtivos e como um promotor de uma arte indiferente a
qualquer aprovação social ou ganho econômico – ele estava certamente ansioso para “levar adiante
uma série de assuntos meus” (19/08) – e se torna uma figura que resiste ferozmente às expectativas
socais e integração estética. O escritor decididamente recusa-se a oferecer uma descrição sentimental
da primavera (não há pássaros cantando gentilmente...); ao contrário, retrata a primavera em seu
aspecto “cru”, “indomado” – e, com certeza, é impossível ilustrar essa passagem da mesma forma
como podem as duas primeiras. Mas, em um sentido mais denso, a passagem aponta para a dimensão
profundamente anti-institucional da prosa de Thoreau, de acordo com a sua própria crença que bons
livros “nos tornam perigosos para as instituições existentes” (Thoreau 1980:96). É difícil imaginar
hoje o que a passagem do talude de areia como literatura representava na época, em 1854: ela não
constituía nada menos que a rejeição da literatura em si como instituição. Em um mundo literário
altamente domado, senão decente, a estrutura freneticamente aberta e as famosas perambulações
etimológicas de Thoreau eram, em certo sentido, análogas ao impacto do uso da linguagem de Emily
Dickinson. Nessa passagem, Thoreau parece não dever nenhuma obrigação à sociedade e estar até
mesmo cego para a própria existência da sociedade – esquecendo todo o conhecimento ou cultura,
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todas ideias recebidas, em um poderoso exemplo do seu desejo por um vagar poético ou “extra-
vagante” (324/136).
Outra diferença crucial entre essa passagem e as seções anteriores é a forma como o narrador se
descreve como resistindo todo desejo de dominação física da natureza, aceitando, ao invés, e até
celebrando, a ideia de perda de controle do real. O leitor é aqui confrontado com um texto o qual é
muito desvairado para submeter a si próprio a uma obrigação direta de comunicar-se – seja em termos
de verdade, método ou valor, como nas duas primeiras sequências – mas está, ao contrário, decidido a
circular a energia e difundir as relações entre os fenômenos misteriosos, mas acima de tudo concretos.
Através de uma perturbação radical dos nossos modos ordinários de percepção, Thoreau nos dá uma
forma mais substancial, literal, de transação entre a natureza e a consciência, finalmente recusando a
separar matéria e espírito (uma separação que é implícita em todas as formas de translação da
realidade física)8. A raça humana não é mais senhora da matéria vis-à-vis uma natureza submissa ou
dócil, mas mera testemunha de uma realidade que é autônoma, se não rebelde, que transforma-se em
agente de sua própria translação: “O próprio globo avança e se translada incessantemente” (306/129,
destaque meu). A autotranslação do real define precisamente e garante a sua “in-translabilidade” por
meios humanos, como indica Thoreau com a sua justaposição atônita de palavras de línguas diferentes.
Tal radicalismo coloca essa passagem ousadamente distante da segunda sequência, mas também
da primeira, havendo entre elas um número crucial de diferenças. Na passagem do degelo do talude,
por exemplo, como no processo do mapeamento, existe de fato uma ordem, mas uma que tem muito
mais a ver com um sentido místico – ou será proto-ecológico? – de relações generalizadas: “ Parece,
portanto, que essa única encosta ilustrava o princípio de todas as operações da natureza. O Criador
desta terra patenteara apenas uma folha.” (308/129). Thoreau também confronta a possibilidade de que
o mundo é ilegível ou impossível de ler racionalmente – que o lendário ‘Livro da Natureza’ está agora
tão irremediavelmente desgastado que só pode ser apreendido através de uma sequência caótica de
palavras e sílabas – um mundo mais caos que cosmos, mas dessa forma “uma terra cheia de vida”
(309/129) novamente9.
A terceira sequência também difere crucialmente da primeira através de seu foco no não-medido
e imensurável – em louvor a um real “refratário[s] a nossos exames e sondagens porque
insondável[eis]” (318/133) – que aparece como a essência da poesia (assim como foi sugerido por
Humboldt). Se o mapeamento significou delimitar ou impor limites – à terra assim como à nossa
imaginação – a passagem do talude de areia, ao contrário, está apoiada na noção oposta do valor da
“transgressão dos nosso próprios limites” (318/133), como Thoreau sumariza seu pensamento no final
do capítulo “Primavera” (317-18/133-34) – nossos próprios limites, ou seja, nossas próprias 8 Isso pode sugerir que Thoreau adotava uma abordagem convergente com filosofias não-dualistas como as Orientais com as quais ele estava familiarizado – ele era um leitor ávido de textos hindu em sua maioria, mas também de textos chineses e persas (Ver Hodder 2001: esp. 174-217). O que eu vou sugerir, contudo, é que Thoreau não rejeitava o dualismo, mas empenhava-se por modos de percepção que iam além da separação padrão entre matéria e espírito adotada por modos apropriadores da relação com o mundo físico. 9 Para uma iluminadora visão geral da tradição do “Livro da Natureza” (“Book of Nature”) na literatura americana, ver Barton Levi St. Armand, 1997.
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construções (a natureza deixou agora de responder “a nossas concepções de modo constante e
obediente” [97/41]). Isso envolve de forma notável transgressões dos limites da linguagem (o material
linguístico), isto é, sua dominação sobre o mundo – da mesma forma como nós somos compelidos a
reconhecer o fluxo e floração incontidos da matéria. O que Thoreau propõe é uma economia do
excesso e não uma contenção ou subtração (ver “excesso de energia” [306/128]). A terceira sequência
foca no poder da imaginação como excedendo – mas certamente não suprimindo – o conhecimento
derivado da experiência. Ela evidencia os processos de significação que questionam ou desafiam o
significado lógico e a definição conceitual, dando livre rédea ao jogo das substituições no eixo
paradigmático à custa da continuidade sequencial, como a ‘translação’ exigiria. Excesso é
fundamental: de acordo com a visão de Thoreau, a natureza é o que é excedente de todas as coisas
humanas. De certa forma, enquanto a imaginação, na primeira sequência, era parte e suporte de um
projeto humanista maior, aqui Thoreau aceita a ideia de um processo imaginativo que está dissociado
da figuração ou representação (é inegavelmente mais difícil imaginar o mundo invocado pela
passagem do talude de areia) e que é distinto de um significado transparente e definível facilmente,
cedendo, ao invés, ao jugo de uma realidade “intransladável”. Se o mapeamento aparecia como um
projeto fundamentalmente humanista, a passagem do talude expõe uma forma de imaginação que
recupera a matéria e excede definições ao mesmo tempo – mas certamente não nega o significado. Ou,
explicando de outra maneira, ela questiona ou suspende o significado linguístico, mas não a
significação humana, abrindo a si própria para a floração simbólica. Conforme a ideia de um caráter
“intransladável” do real aponta para a impossibilidade – e indesejabilidade – de uma total
compreensão (sintética ou translacional) da nossa experiência do mundo, ela serve por fim como uma
razão fundamental para a noção de “selvagem” e para o pedido de Thoreau pela preservação da
natureza que conclui o capítulo: “Ao mesmo tempo em que buscamos com ardor explorar e aprender
todas as coisas, exigimos que todas as coisas sejam misteriosas e inexploráveis, que a terra e o mar
sejam infinitamente primitivos, refratários a nossos exames e sondagens porque insondáveis.”
(317/133).
Nessa sequência conclusiva, a qual pode também aparecer como a razão para o diário de
Thoreau, a natureza retém a sua alteridade ou “intranslabilidade”, pois há uma aceitação da distância
entre natureza e consciência. A natureza foi agora reconhecida como uma força tanto dentro quanto
fora do humano e, especificamente, como aquilo que excede e desorienta, mas também anima, a
linguagem humana. A linguagem em sua materialidade é precisamente aquilo que, por sua vez,
previne a presunção da natureza pela consciência humana. Nesta acirrada tentativa de fugir a um
encerramento, Thoreau esforçou-se para obter a pureza de um novo começo, de novos materiais ao
invés de ideias pré-fabricadas e ideais pré-concebidos. Ele parece ansioso por devorar a linguagem em
sua crueza – como a marmota que ele avistou no escuro em seu caminho de volta para casa após uma
pescaria: “senti um frêmito de prazer, estranho e selvagem, tentando-me fortemente para agarrá-la e
devorá-la crua” (210/89). A sua linguagem aqui é irracional, até insondável, em oposição ao lago, o
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qual pode ser sondado mas também recuperado pela razão e racionalidade, como indicado pela
‘translação ética’. A linguagem não é somente uma ferramenta, mas parece ter um papel ativo e
restringir o nível de controle exercitado pelo observador. Nesse sentido, na passagem do talude de
areia, Thoreau coloca a si próprio – isto é, o humano – em risco. Ele aceita a perda do controle do real
como sendo parte de uma conquista de uma humanidade individual, e a existência da natureza como
superando o nosso controle e os nossos processos de significação (nossas formas de ‘transladá-la’). “A
não ser quando nos perdemos, ou em outras palavras, quando perdemos o mundo, é que começamos a
nos descobrir e perceber onde estamos e o infinito alcance de nossas relações” (171/73), o narrador
havia afirmado antes em uma referência mais literal a uma pessoa perdendo suas referências. O leitor
não é convidado a visualizar mentalmente e aquiescer em formas realísticas o domínio sobre o real
(tais como o mapeamento ou o corte de gelo), mas sim engajar em um processo de descobrir as novas,
até então inimaginadas relações com o mundo físico e formas de consciência, nas quais a função
simbólica prova ser libertadora. Ele coloca a si próprio em risco, na medida em que escolhe ignorar os
artifícios de segurança que construímos para se esquivar dos perigos que são inerentes em nossa
estadia-no-mundo. O objetivo não é trazer um significado abstratamente figurativo, mas criar através
de material linguístico uma maior consciência do nosso meio ambiente, no qual o leitor pode
experimentar a dimensão imaginária da percepção. Longe de ameaçar a percepção, essa negação da
transparência e linearidade é precisamente aquilo que enriquece e expande a consciência, permitindo a
nós capturar o real no processo de ele vir a existir.
A profunda interrogação de Thoreau dos vários modos de consciência ambiental, longe de
articular visões imutável, imperiais ou conciliatórias do mundo natural, reflete portanto um senso de
vulnerabilidade ou humildade na forma em que os seres humanos interagem com o seu meio ambiente,
o qual enfrenta totalmente e abraça o risco envolvido no processo. Ele contribui assim ao
questionamento das convenções e padrões pelos quais os seres humanos geralmente esperam obter
uma normalidade confortadora. O que Thoreau nos fala não é primeiramente uma história gentil de
humanos se sentindo em casa no mundo (equilíbrio, unidade, desembaraço, imagens atraentes de um
paraíso selvagem), como críticos da ‘escrita da natureza’ e da ecocrítica tendem ocasionalmente a
descrevê-lo. Ao contrário, ele pretende tomar em consideração as várias formas pelas quais os textos
literários podem nos fazer refletir sobre a nossa condição de localização no nosso meio ambiente
físico, e assim atuar o sentido de Cocteau da literatura como uma força desestabilizadora que nos
ajuda a escapar das molduras rígidas das visões de mundo comumente aceitas e dos modos de
observação.
Referências:
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F. Specq – Environmental Awareness and the Design of Literature – ENANPOLL, July 1, 2016
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Edição em Português:
THOREAU, Henry David. Walden, ou, A Vida nos Bosques; e, A Desobediência Civil. Tradução Astrid Cabral. - 7.ed. - São
Paulo: Ground, 2007.
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