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UNIVERSIDADE LUSÓFONA DE HUMANIDADES E TECNOLOGIAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
ÁREA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR PARA OS PRIMEIROS ANOS DA
EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL E EM PORTUGAL
Uma análise contextual sobre as reformas educativas da década de 90
JOSIANE DOMINGAS BERTOJA PARIZ
LISBOA - PORTUGAL
(2004)
UNIVERSIDADE LUSÓFONA DE HUMANIDADES E TECNOLOGIAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
ÁREA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
JOSIANE DOMINGAS BERTOJA PARIZ
A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR PARA OS PRIMEIROS ANOS DA
EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL E EM PORTUGAL
Uma análise contextual sobre as reformas educativas da década de 90
Dissertação apresentada na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias para obtenção do grau de Mestre em Ciências da Educação.
Orientadora Científica
Professora Doutora Zita Ana Lago Rodrigues
Co-orientador Científico
Professor Doutor António Teodoro
LISBOA - PORTUGAL
(2004)
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram
para que eu pudesse chegar até aqui...
i
AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pela vida e pelos meus dois tesouros, meus filhos Vinícius e Larissa.
Agradeço ao meu marido Carlos, aos meus filhos, à minha querida sogra “vó
Domingas” e a toda minha família pelo apoio e compreensão.
Agradeço aos meus amigos, pelo afeto e carinho nas horas necessárias.
Agradeço aos meus orientadores, professora Zita e professor Teodoro, pela sempre
pronta e preciosa contribuição, feita com esmero e carinho.
ii
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA.............................................................................................................i
AGRADECIMENTOS..................................................................................................ii
ÍNDICE DE FIGURAS.................................................................................................v
LISTA DE SIGLAS ............................................................................................vi
RESUMO....................................................................................................................viii
ABSTRACT..................................................................................................................ix
INTRODUÇÃO...........................................................................................................01
CAPÍTULO I
A EDUCAÇÃO COMPARADA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES...........15
1.1 A educação e o método comparativo......................................................................16
1.2 Visões e conceitos históricos da Educação Comparada..........................................18
1.3 O método da Educação Comparada........................................................................29
1.4 Considerações práticas acerca da Educação Comparada........................................37
1.5 Globalização e mundialização: contexto atual........................................................39
1.6 A formação do professor sob o viés da Educação Comparada...............................43
CAPÍTULO II
A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR DAS SÉRIES INICIAIS NO
BRASIL........................................................................................................................48
2.1 Contextualização.....................................................................................................49
2.2 O sistema de ensino brasileiro.................................................................................52
2.3 O lugar das séries iniciais do Ensino Fundamental.................................................57
2.4 A formação inicial do professor das series iniciais do Ensino Fundamental..........60
2.5 Referenciais para a formação de professores..........................................................67
2.6 A prática pedagógica nos cursos de formação inicial do professor das séries iniciais
do Ensino Fundamental.................................................................................................70
iii
CAPÍTULO III
A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR DO 1º CICLO EM PORTUGAL..74
3.1 Breve histórico.........................................................................................................75
3.2 A formação inicial do professor do 1º ciclo a partir da LBSE 48/86......................78
3.3 Os perfis de desempenho profissional.....................................................................84
3.4 A prática pedagógica nos cursos de formação inicial do professor do 1º ciclo.......86
CAPÍTULO IV
A REALIDADE DA FORMAÇÃO INICIAL NO BRASIL E EM PORTUGAL –
ENCONTROS E DESENCONTROS........................................................................89
4.1 O discurso legal das reformas..................................................................................91
4.2 Os pressupostos das reformas educacionais do Brasil e de Portugal da década de
90...................................................................................................................................94
4.3 Lócus de formação: diferença entre Escolas e Institutos Superiores de
Educação........................................................................................................................97
4.4 As reformas da formação inicial no contexto atual.................................................99
4.5 Reflexões acerca da formação inicial no Brasil e em Portugal.............................101
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................103
FONTES E REFERÊNCIAS....................................................................................108
APÊNDICES..............................................................................................................119
APÊNDICE 1 – Questionário semi-estruturado enviado a profissionais da
educação do Brasil.....................................................................................................120
APÊNDICE 2 – Questionário semi-estruturado enviado a profissionais da
educação de Portugal................................................................................................121
ANEXOS....................................................................................................................122
iv
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1 – mapa das grandes navegações
Figura 2 – imagens da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Figura 3 – foto do Colégio Estadual Sagrada Família – Campo Largo
Figura 4 – foto da Escola Superior de Educação - Viseu
Figura 5 – foto da Universidade Federal do Paraná
Figura 6 – foto de crianças com estagiária do curso Normal Superior
Figura 7 – foto de crianças com estagiária do curso Normal Superior
Figura 8 – foto do Instituo Educação do Paraná – Curitiba
Figura 9 – foto do planeta Terra vista por satélite
v
LISTA DE SIGLAS
ALCA – Área de Livre Comércio das Américas
ANFOPE – Associação Nacional pela Formação de Profissionais da Educação
CE – Conselho da Europa
CEB – Câmara de Educação Básica
CEE – Comunidade Econômica Européia
CEFAM – Centros de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério
CES – Câmara de Ensino Superior
CFE – Conselho Federal de Educação
CNE – Conselho Nacional de Educação
DCN – Diretrizes Curriculares Nacionais
EaD – Ensino à Distância
EB – Educação Básica
EFA – Education for All (Educação para Todos)
EJA – Educação de Jovens e Adultos
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio
FUNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
Valorização do Magistério
INAFOP – Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores
INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
LBSE – Lei de Bases do Sistema Educativo
LDB – Lei de Diretrizes e Bases
LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEC – Ministério da Educação
MERCOSUL – Mercado Comum da América do Sul
OCDE – Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico
PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais
PDE – Plano Decenal de Educação para Todos
PISA – Programa Internacional de Avaliação de Alunos
vi
PNE – Plano Nacional de Educação
PP – Prática Pedagógica
RFP – Referenciais para Formação de Professores
SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica
SEF – Secretaria de Educação Fundamental
TIC – Tecnologias da Informação e da Comunicação
UE – União Européia
vii
RESUMO A presente pesquisa teve por objetivo investigar os aspectos referentes à formação inicial do professor para os anos iniciais da educação básica no Brasil e em Portugal, tentando detectar os aspectos comuns e/ou divergentes e as possíveis semelhanças conceituais e práticas que possam existir no que diz respeito às políticas educativas dos países em tela. Sendo a questão da formação docente apontada como uma das principais causas dos problemas que os sistemas educacionais vêm apresentando na atualidade e por ser a formação docente o caminho profissional por nós transcorrido, foi grande a motivação para levar a cabo esta pesquisa. Em quase todo o mundo, os sistemas educativos passaram ou estão passando por reformas nas últimas décadas, para que possam se ajustar às exigências de um mundo globalizado. A implantação das reformas em Portugal (LBSE) e no Brasil (LDB 9394/96) trouxe em seu bojo mudanças significativas no que se refere à formação do professor dos anos iniciais da educação básica. Assim sendo, para poder explicitar uma parte destas mudanças em duas realidades diferentes, realizamos uma investigação de cunho comparativo, com base na análise bibliográfica, documental e de conteúdo, através do levantamento histórico, legal e contextual da formação inicial do professor, conforme a delimitação proposta para a investigação. Para melhor explicitar a realidade da formação, utilizamos, além de material teórico, de referencial empírico. O material recolhido e analisado permitiu traçar a realidade da formação inicial nos dois países, por meio da explicitação de algumas das variáveis preponderantes nesta formação e alguns dos pontos de encontro e de desencontro nas respectivas políticas educativas referentes ao tema. Vislumbramos semelhanças nos pressupostos das reformas, o que indica que as mesmas fazem parte de uma política social global, com influências nas políticas sociais e, em especial, nas políticas educativas de ambos os países. Um ponto de desencontro percebido diz respeito aos textos das leis em estudo e às conseqüências que a clareza ou a falta dela num texto legal traz à efetivação das políticas dele decorrentes. A despeito da semelhança existente em relação ao nível e ao lócus de formação inicial dos professores dos anos iniciais, assim como nas discussões acadêmicas em relação a este tema, encontramos diferenças no que diz respeito ao avanço destas discussões e às práticas dessa formação. Enquanto no Brasil ainda se discute a formação inicial, em Portugal a preocupação é com a profissionalização. Sabemos, porém, que há ainda muito a avançar em relação a este tema, tendo em vista o papel nuclear do professor nas sociedades que buscam uma educação de efetiva qualidade e que atenda às especificidades de cada realidade nacional. Palavras-chave: formação docente – políticas educativas – análise comparativa
viii
ABSTRACT The present research has the purpose of investigating the aspects related to the formation of the teacher who works with basic education in the initial years in Brazil and in Portugal, trying to detect the common and or divergent aspects and their possible concept similarities and practices that might exist in regard to the educational policies of the proposed countries. Since the topic in question is the formation of the teaching body, appointed as one of the main causes of the problems that the educational systems have presented nowadays, and since the professional path trot by us, was the great motivation to bring this research to completion. In nearly all the world, the educational systems have passed or are passing through reforms in the last decades, so that there might be an adjustment to the demands of the globalized world. The implementations of the reforms in Portugal (LBSE) and in Brazil (LDB/96) has brought in its essence significant changes as to what refers to the formation of the teacher of the basic education of the initial years. Therefore, to be able to explicit a part of these changes in two different realities, a comparative investigation was done, with basis on the bibliographical and documental analysis and on content, through the historical, legal and contextual survey of the initial formation of the teacher, according to the delimitation proposed for the investigation. To better explicit the reality of the formation, we use, beyond the theoretical material of the empirical reference. The material gathered and analyzed has permitted us to trace the reality of the initial formation of both the countries, through the explicit of a few preponderant variables in this formation and some key points of meeting and not meeting in the respective educational policies that refer to the theme. We can catch a glimpse of the presupposed reforms, which indicates that they are part of a social global policy, which influences the social policies and in special educational policies of the countries. A clash was noticed in relation to the law text in study and to the consequences that the clarity or lack there of in a legal text bring to the effectiveness of the policies that have been elapsed. As to the similarities existent in relation to the level and to the loculus’s of initial formation of the teachers in the beginning years, as well and in the academic discussions related to this theme, we have found differences in regard to the advance of these discussions and the practice of the formation. Where as in Brazil there is still a discussion as to the formation, in Portugal the worry is with the creation of the professional statute. We know however that much is needed to advance in relation to this theme, having in mind the nuclear role of the teacher in societies that seek an education of effective quality. Keyboards: formation of the teaching–educational policies–comparative investigation
ix
INTRODUÇÃO
Figura 1 - mapa das grandes navegações
Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram. Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa
2
A questão da formação do professor vem sendo apontada como um dos
principais problemas que os sistemas educacionais têm apresentado na atualidade
(NÓVOA, 1995). Nesse sentido, a história educacional recente do Brasil e de Portugal
apresenta pontos de aproximação, com grandes períodos de governos ditatoriais
seguidos de uma fase de difícil adaptação às aberturas políticas, apresentando reformas
no campo político, social, econômico e educacional.
As reformas educacionais levadas a cabo nos referidos países vieram com o
intuito de tentar colocá-los no caminho da contemporaneidade, tentando adaptar seus
sistemas educativos à nova ordem econômica mundial, progressivamente
hegemonizada por políticas neoliberais (LIMA, 2000). A última reforma da educação
em Portugal se dá a partir da implantação da Lei de Bases do Sistema Educativo
(LBSE)1 - Lei nº 46/86 de 14/10/86 e, no Brasil, com a implantação da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)2 - Lei nº 9394/96 de 22/12/96.
Estas legislações trouxeram significativas mudanças na educação, e, em
especial, no que diz respeito à formação do professor para a educação básica3. Apesar
de em Portugal a reforma estar mais consolidada, uma vez que já se passaram quase
dezoito anos desde a sua implantação, sabe-se que ainda há um longo caminho a ser
trilhado. Muitos ajustes complementares foram e estão sendo feitos à legislação nestes
anos. No Brasil, mesmo decorridos quase oito anos da edição da LDB/96, muitas
regulamentações ainda precisam ser feitas, com vistas a consolidar o que foi proposto
por esta legislação, de modo especial para a educação superior, no tocante à formação
do professor. O Ministério da Educação (MEC) e o Conselho Nacional de Educação
(CNE), através de suas respectivas Câmaras4, vêm encaminhando estas
regulamentações, as quais são adotadas pelas Instituições de Ensino Superior (IES) e
Universidades na medida em que são aprovadas, nem sempre com a devida clareza.
1 Neste trabalho, sempre que nos referirmos à Lei nº 46/86, utilizaremos a designação LBSE. 2 Pelo motivo de que existem diversas designações à Lei nº 9394/96, neste trabalho utilizaremos somente a sigla LDB/96. 3 A educação básica no Brasil, pela LDB/96, é formada pela educação infantil (0 a 6 anos), ensino fundamental (1ª a 8ª séries) e ensino médio (duração mínima de 3 anos). Em Portugal, conforme o estabelecido em seu art. 6º, a educação básica é considerada a escolaridade que vai do 1º ao 9º ano, obrigatória dos 6 aos 15 anos. 4 O CNE é composto de duas Câmaras: a Câmara da Educação Básica (CEB) e a Câmara de Ensino Superior (CES).
3
Neste percurso têm ocorrido muitas idas e vindas na questão da formação do professor
para a Educação Básica, o que leva a crer que nem o organismo macro-regulador da
mesma (o MEC) tem clara a direção a seguir, a partir do que se propõe nas legislações
emitidas sobre o tema em tela.
Isto demonstra ser urgente e necessário um estudo aprofundado em relação às
mudanças ocorridas em função das últimas reformas educativas. Na tentativa de uma
clarificação para a questão da formação do professor nos dois países, desenvolveu-se,
por meio desta pesquisa, um estudo comparado sobre a última reforma ocorrida nos
dois países, e sobre o caminho já percorrido até aqui na consolidação das mudanças
propostas, na tentativa de encontrar pontos em comum e pontos de divergência. O
objeto de pesquisa foi, portanto, a questão da formação do professor da Educação
Básica no Brasil e em Portugal, através de uma análise contextual, histórica e legal
sobre suas últimas reformas educativas e no que as mesmas têm afetado o
desenvolvimento da educação.
A busca por pesquisar a formação do professor foi motivada pela nossa própria
formação e pela experiência profissional no magistério superior, através das quais a
preocupação com a questão aflorou. Nossa formação deu-se no curso de Magistério
em nível médio, que, à época, era a formação exigida para o trabalho com Educação
Infantil e com as séries iniciais do Ensino Fundamental (1ª a 4ª séries do então ensino
primário). No curso superior, nos licenciamos em Pedagogia com especialização em
Orientação Educacional. Devido à demanda por professores no período, de modo
especial nos municípios interioranos, começamos a trabalhar em sala de aula (2ª série
do Ensino Fundamental), já no início do 2º ano do curso de Magistério. O trabalho
com o ensino de 1ª a 4ª séries deu-se por 03 anos em sala de aula, passando então a
exercer funções pedagógicas5 pelo fato de estar cursando na graduação um curso
compatível (Pedagogia). Em seguida atuamos na Supervisão das escolas rurais do
município de Campo Largo, no Estado do Paraná, Brasil, função exercida durante dois
anos. Assumimos, em seguida, a direção de uma escola de 1ª a 4ª séries da zona rural
5 De acordo com o art. 64 da LDB/96 (ainda não regulamentado), o exercício das funções pedagógicas de administração, supervisão e orientação educacional, exige como formação a graduação no curso de Pedagogia, ou a pós-graduação em nível de especialização para essas funções.
4
do município. Depois de um período de afastamento, o retorno ao exercício do
magistério foi como professora das disciplinas pedagógicas do curso de Magistério
(nível médio) no Colégio Estadual Sagrada Família, no mesmo município. Este
trabalho foi exercido durante cinco anos, de 1988 a 1992, período em que também
atuávamos como Orientadora Educacional no Colégio Estadual Macedo Soares, do
mesmo município. Depois de curta atuação como coordenadora pedagógica em uma
escola privada, assumimos a direção da escola de 1ª a 8ª séries do Ensino
Fundamental, no Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (CAIC) de
Campo Largo, durante 04 anos (1997 a 2000). Atualmente, trabalhamos como docente
no Ensino Superior no Curso Normal Superior, e também na coordenação pedagógica
de cursos de pós-graduação lato-sensu, em nível de Especialização, na área da
Educação, em diversos municípios dos Estados do Paraná, Santa Catarina, São Paulo e
Mato Grosso do Sul, junto a uma IES privada situada em Curitiba, capital do Estado
do Paraná.
Durante nosso percurso profissional no Brasil, nos deparamos com questões
ligadas tanto à formação quanto à prática do professor, constatando as deficiências
existentes em ambos os aspectos. Tal constatação sempre nos acompanhou e, junto a
ela, surgia a angústia e o desejo por um aprofundamento maior sobre a problemática,
para buscar alternativas que pudessem levar a uma melhor atuação sobre a mesma. Ao
iniciarmos o Programa de Mestrado na Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias (ULHT), vislumbramos a possibilidade de aprofundar estudos e elucidar
as possíveis causas dessas deficiências, despertando-nos a curiosidade em saber se em
outras realidades (no caso, em Portugal) o quadro seria semelhante. Isto nos motivou a
propor o desenvolvimento de uma investigação em torno da temática da formação do
professor, comparando a realidade da formação no Brasil e em Portugal, por este país
apresentar-se com algumas semelhanças organizacionais e políticas, e ao qual nos
vinculamos como aluna de um programa de Pós-graduação stricto sensu.
Vale ressaltar, porém, que tanto no Brasil quanto em Portugal, a formação
inicial do professor para a Educação Básica se dá de forma diferenciada para cada um
dos níveis que a compõe. Sendo assim, delimitamos a área da pesquisa à questão da
5
formação inicial do professor dos primeiros anos da escolaridade (séries iniciais do
ensino fundamental – Brasil e 1º ciclo da educação básica - Portugal)6, apontando
como problema de investigação tal questão dentro do contexto das últimas reformas
educativas nos países em tela, tentando detectar a existência de pontos em comum e/ou
divergentes e as possíveis deficiências ou lacunas existentes no processo, buscando
uma análise em profundidade, como contributo recíproco para esta questão. Assim, o
problema que move a investigação é referente à questão da formação inicial do
professor dos anos iniciais da educação básica no Brasil e em Portugal, visando
detectar pontos de aproximação ou de divergência, a partir da análise documental e de
levantamentos empíricos junto a experts de ambos os países no tocante ao tema.
A partir da delimitação do problema, elaborou-se a pergunta central deste
estudo:
- Existem pontos comuns referentes à formação inicial do professor dos anos
iniciais da Educação Básica no Brasil e em Portugal, cuja análise possa servir como
um contributo recíproco aos seus sistemas educativos?
Numa perspectiva de comparação e análise, como objetivo geral buscou-se
investigar os aspectos referentes à formação inicial do professor para os anos iniciais
da educação básica no Brasil e em Portugal, a partir da implantação da LDB/96 e da
LBSE/86, respectivamente, analisando se estes aspectos podem trazer contribuições
recíprocas para os processos educacionais dos dois países em tela. Assim,
contemplaram-se os seguintes objetivos específicos:
- Analisar as reformas educativas implementadas no Brasil e em Portugal, a partir
da promulgação da LDB/96 e da LBSE, respectivamente, no tocante à formação
inicial do professor dos anos iniciais da educação básica.
- Identificar os pressupostos das reformas da formação inicial do professor dos
anos iniciais da educação básica, efetivadas no Brasil e em Portugal a partir da
implantação das suas respectivas leis.
6 Pela dificuldade em utilizar em todo o trabalho os dois termos (séries iniciais do ensino fundamental no Brasil e 1º ciclo da educação básica em Portugal), utilizaremos as expressões anos iniciais ou primeiros anos da educação básica.
6
- Identificar os aspectos comuns e/ou divergentes das reformas educativas
brasileira e portuguesa, referentes à formação inicial do professor dos anos
iniciais da educação básica.
- Indicar possíveis contribuições entre ambos os países na questão da formação
inicial do professor dos anos iniciais da educação básica, para a análise e
melhoria dos serviços educacionais nesse nível de ensino.
Sabendo-se da dificuldade de procederem-se a análises comparativas entre uma
realidade, que é a vivenciada no cotidiano, e outra que se conhece pelas diferentes
leituras sobre sua realidade mais distante, apresenta-se este como um primeiro fator de
limitação deste estudo. Além deste, outro fator que pode ser considerado uma
limitação, é a diferença existente na formação de professores para os diversos níveis da
educação básica, assim como a amplitude do tema, o que faz com que se necessite
limitar o estudo à formação de professores para os anos iniciais da educação básica e
somente a alguns aspectos, o que talvez não permita a contemplação do problema em
toda a sua complexidade.
Entende-se que hoje há uma busca incessante para se compreender qual é a
tarefa do professor, levando-se em conta a trajetória histórica da sua formação e as
exigências postas pela sociedade atual. Existem inúmeros fatores determinantes na
profissão do professor, entre os quais se pode destacar: o estabelecimento das
finalidades da educação, o papel que ela ocupa nas políticas governamentais, as
posturas das categorias docentes, as concepções dos sujeitos que exercem influência na
elaboração das políticas e as práticas efetivas de formação de professores, entre outros.
Além destes fatores determinantes, as profundas transformações pelas quais o
mundo passou nas últimas décadas, levaram a um repensar sobre a escola e suas
finalidades. Em quase todo o mundo, os sistemas educativos passaram ou estão
passando por reformas para que estes se ajustem às novas exigências de um mundo
globalizado. Pode-se perceber isto na afirmação de Oliveira (apud CATANI &
OLIVEIRA, 2000, p. 77): “... As questões em debate nas reformas educacionais
empreendidas ao longo dos anos 90 são muito semelhantes. A agenda está
7
mundializada. Procura-se incorporar, em nome da eficiência, os valores e
procedimentos do mercado para o interior do sistema educativo”.
Pode-se corroborar a afirmativa de Oliveira, com base em Saviani (2000, p. 3)
que, em sua análise sobre a proposta do Plano Nacional de Educação (PNE),
formulada pelo Governo Brasileiro através do Ministério da Educação (MEC), afirma
que são:
... claros os efeitos da determinação estrutural própria da forma social capitalista sobre a política educacional como modalidade da política social que é tratada separadamente da política econômica e a esta subordinada. Com isso a política social acaba sendo considerada invariável e reiteradamente como um paliativo aos efeitos anti-sociais da economia, padecendo das mesmas limitações e carências que aqueles efeitos provocam na sociedade como um todo.
Os documentos sobre política educativa apresentam padrões de significado e
estruturas simbólicas delimitadas pelo contexto, ou seja, as políticas não têm um
significado autêntico e autorizado, mas são textos ideológicos construídos dentro de
um contexto histórico e político particular.
Em uma análise sobre o papel da escola numa época de grandes mudanças
mundiais como tem sido a contemporânea e sobre a relação ente a reforma educativa e
a reforma social, Enguita (apud VEIGA, 1998, p. 18) afirma que “a escola deu passos
de gigante em sua universalização, falando em termos quantitativos, chegando a
incluir todos os grupos sociais, sem exceção, ainda que não totalmente sem distinção.
Sem dúvida, essa universalização não aconteceu também num sentido qualitativo”.
Em Portugal, a última reforma educativa iniciada em 1986 com a aprovação da
LBSE, demandou muitas discussões em torno da mesma, discussões estas que
ocorreram ao longo da década compreendida entre 1986 e 1995, ou seja, no momento
em que Portugal aderiu à atual União Européia (UE). Esta reforma, no entender de
Lima (apud CATANI & OLIVEIRA, 2000, p. 41):
Embora nunca formalmente dada por concluída (...) conheceu uma primeira fase de aprovação das suas bases legislativas e de apresentação ao Governo de propostas reformadoras (1986-1988), uma segunda fase de acção governativa e de produção normativa e regulamentadora bastante activa até 1992, e uma última fase de progressivo esbatimento do ciclo reformista, o
8
qual viria a ser definitivamente encerrado com a mudança de governo, após a vitória eleitoral do Partido Socialista, em finais de 1995.
Lima (apud CATANI & OLIVEIRA, 2000, p. 42) afirma, ainda, que o
programa do governo socialista português “... deixava implícitas diversas críticas ao
processo reformador da educação e, sobretudo, evidenciava uma orientação política
alternativa quanto ao próprio processo de mudança do sistema educativo e das
escolas”. Entende o autor ter havido um esgotamento da idéia de reforma tanto pela
sua associação a um ciclo político anterior, quanto pelas críticas e pela rejeição de
certas mudanças, ou pelas mudanças alternativas apresentadas por uma parte da
oposição, como também pela sucessiva desvitalização e pela perda de força
motivadora e legitimadora de uma política educativa concebida e até executada pela
categoria docente, globalizadora, integradora, conhecida e ensaiada durante dez anos.
As reformas educativas no Brasil, que se dão a partir da implantação da
LDB/96, no entender de Oliveira (apud CATANI & OLIVEIRA, 2000, p. 77):
... buscaram redimensionar a polaridade centralização/ descentralização, vale dizer, ao mesmo tempo em que se descentraliza a gestão e o financiamento, centraliza-se o processo de avaliação e controle do sistema. Este redimensionamento se dá em um contexto de acentuada expansão das oportunidades de escolarização da população em todos os níveis.
Não se pode negar que as reformas educativas levadas a cabo para adequar seus
sistemas educativos a uma nova realidade, no Brasil e em Portugal, trouxeram várias
mudanças em seus sistemas educativos. Entre estas mudanças, as que se referem à
profissionalização do magistério foram e estão sendo significativas, sendo este um dos
temas mais discutidos e estudados dado o seu grau de importância e repercussão. No
entender de Rodrigues e Esteves (1993), a busca pela qualidade e pela eficiência na
formação docente é um imperativo de todos os sistemas educativos há algumas
décadas, por ser considerado um dos seus pontos críticos. Os efeitos produzidos pelo
trabalho do professor, em longo prazo, no futuro da sociedade, justificam uma atenção
cuidadosa em relação à sua formação. Reforça-se essa premissa com a afirmação de
Nóvoa (1991, p. 24), quando diz que “... a formação de professores é, provavelmente,
9
a área mais sensível das mudanças em curso no setor educativo: aqui não se formam
apenas profissionais; aqui produz-se uma profissão”.
A despeito da importância da formação docente, as referidas reformas causaram
e ainda causam muita polêmica. A título de ilustração, apresentaremos uma das
polêmicas de cada reforma nos respectivos países. No Brasil, Veiga (1998) considera
que a última reforma educacional brasileira apresenta algumas mudanças que podem
ser consideradas avanços, como é o caso da formação contínua e outras que podem ser
consideradas equívocos, como é o caso da criação dos Institutos Superiores de
Educação (ISEs)7, fato que ainda causa muita polêmica e sobre o qual discorreremos
no Capitulo II deste estudo. Em Portugal, uma das polêmicas da última reforma refere-
se à criação da Agência Nacional de Acreditação8, instituição criada com a finalidade
de cuidar da qualidade da formação do professor. Ao falar da Agência Nacional de
Acreditação, Afonso (apud CATANI & OLIVEIRA, 2000, p. 34) afirma que “...
parece estar a encaminhar-se no sentido de regular um campo profissional à custa da
interferência na autonomia universitária e à custa da desvalorização das componentes
das ciências da educação”.
Em sua análise sobre a criação dos ISEs, Silva (1999, p. 01) assinala que:
... de forma extremamente breve ou minimalista (...) a LDB 9394/96 simplesmente criou um novo estabelecimento de ensino no âmbito do aparelho escolar brasileiro e, mais precisamente, uma nova agência formadora de professores, que funcionará paralelamente àquelas que já existem, ou seja, a Universidade e, vale lembrar, a ainda popularmente chamada Escola Normal.
Referindo-se aos ISEs, Veiga (apud VEIGA, 1998, p. 87) alerta que “... a
legislação, ao criar uma nova instância de formação de profissionais da educação,
estabelece uma estrutura paralela, fora da ambiência universitária, mas no plano da
educação superior”. Esta estrutura paralela, fora da universidade, pode levar a uma
7 Os Institutos Superiores de Educação constituiram-se, a partir da LDB/96, nos órgãos responsáveis pela formação de profissionais para a educação básica, pelos programas de formação pedagógica para portadores de diplomas de educação superior e pelos programas de educação continuada para os profissionais de educação dos diversos níveis, e podem atuar dentro das Universidades ou fora delas. (Arts. 62 e 63) 8 A Agência Nacional de Acreditação, criada a partir da última reforma educativa, é o órgão do Ministério da Educação responsável pela autorização e reconhecimento da formação inicial e da formação contínua ofertada pelos centros de formação das associações de escolas e pelos centros de formação de associações de professores.
10
formação deficitária do professor, sendo deixada de lado a formação orientada para a
pesquisa, trazendo algumas conseqüências como as apontadas por Santos (apud
VEIGA, 1998, p. 135), de que “o investimento no conhecimento prático, em
detrimento do saber teórico, certamente levará à formação de um profissional capaz de
seguir diretrizes curriculares, desenvolver propostas que lhe são apresentadas, mas
com menos possibilidade de criar projetos, tomar decisões e criticar políticas
educacionais”.
No entender de Silva (1999), a formação universitária do professor o capacitará
para uma nova relação com o conhecimento acumulado, fazendo com que assuma a
postura de construtor e desconstrutor de saberes, pela sua relação com os alunos e com
os outros profissionais da escola, sendo tomado como produtor de conhecimento
pedagógico, como pesquisador, ou, enfim, como intelectual, o que certamente
demandará maior qualificação em sua ação docente na escola.
A questão da formação e da profissionalização do professor é fundamental e
necessita ser colocada em lugar de destaque, podendo-se perceber na afirmação de
Nóvoa (1995, p. 23-24) que “a formação de professores pode desempenhar um papel
importante na configuração de uma ´nova´ profissionalidade docente, estimulando a
emergência de uma cultura profissional no seio do professorado e de uma cultura
organizacional no seio das escolas”.
Sendo assim, tem-se a nítida sensação de que as últimas reformas educativas no
Brasil e em Portugal trouxeram mudanças que carecem, ainda, de muita explicitação, e
também de muita luta, para que as aberturas possibilitadas possam concretizar os
sonhos pelos quais muitos profissionais lutam até hoje, no que se refere à sua
formação e à sua profissionalização.
Nesse sentido, para uma reflexão mais aprofundada acerca do tema para a
investigação proposta, desenvolveu-se um estudo de cunho comparativo no que se
refere à formação inicial dos professores dos primeiros anos da Educação Básica no
Brasil e em Portugal, a partir das Leis nº 9.394/96 e 46/86, respectivamente.
O estudo comparativo deu-se sob o ponto de vista descritivo, e seguiu as
seguintes fases, apontadas por Ferreira (2001):
11
1. Fase pré-descritiva:
- Identificação e justaposição do problema
- Emissão da(s) primeira(s) hipótese(s)
- Delimitação da investigação:
- Delimitação do objeto
- Delimitação dos conceitos
- Delimitação da área de estudo
- Delimitação do método:
- Métodos e técnicas auxiliares
2. Fase descritiva:
- Recolha e apresentação dos dados
- Interpretação dos dados e conclusões analíticas
3. Fase comparativa:
- Formulação das hipóteses comparativas
- Justaposição de dados e de conclusões analíticas
- Comparação
Na fase pré-descritiva procedeu-se um levantamento histórico, legal e
contextual sobre a realidade educacional atual no Brasil e em Portugal, no que diz
respeito à formação inicial do professor dos anos iniciais da educação básica,
conforme a delimitação proposta para a investigação, no que concerne ao problema e
aos objetivos propostos, assim como à metodologia definida para o processo
investigativo.
Na fase descritiva procedeu-se à recolha, apresentação e interpretação dos
aspectos legais, históricos e contextuais sobre a formação inicial do professor dos anos
iniciais da educação básica apontada na última reforma educativa dos dois países em
tela. Para isso, utilizaram-se documentos oficiais e não oficiais, estudos de
pesquisadores e especialistas sobre o assunto e o auxílio de dados fornecidos por
colaboradores entrevistados por meio de questionários enviados via e-mail a
profissionais da educação dos dois países (professores universitários, estudiosos do
tema da formação e ocupantes de cargos administrativos superiores em órgãos afins
12
com a educação). Ressalta-se aqui a dificuldade encontrada no retorno dos
questionários respondidos. Muitos foram os contatos realizados, porém por motivos
que não foi possível detectar, poucas pessoas responderam, o que levou a uma amostra
de certa forma reduzida, mas não por isso menos significativa à pesquisa. Além disso,
a pesquisadora participou de inúmeros eventos científicos sobre o tema, como
Congressos e Seminários, e realizou visita a uma escola de formação e uma escola de
educação básica em Portugal, buscando reforçar os dados do referencial empírico,
visando o estudo comparativo.
E, na terceira e última fase, desenvolveu-se a comparação propriamente dita,
com a formulação das hipóteses comparativas e justaposição dos dados e das
conclusões analíticas sobre a questão da formação inicial do professor dos anos iniciais
da educação básica em Portugal e no Brasil, a partir da implantação da LBSE e da
LDB/96, respectivamente.
Para proceder às três fases do trabalho detalhadas acima, os instrumentos de
coleta utilizados foram o levantamento e a análise documental sobre a legislação
referente à última reforma educativa dos países em tela, nos aspectos que se referem à
formação inicial do professor para as séries iniciais da educação básica. Referindo-se
ao levantamento documental, Laville e Dionne (1999, p. 168) afirmam que
“documentos não são arquivos ultrapassados, mas veículos vivos de informação”.
Desse modo, ao mesmo tempo em que se procedeu a análise da legislação atual
dos dois países, ocorreu a sua interpretação, sua análise e o paralelo comparativo entre
suas similaridades, aproximações e diferenças. Desta forma, pode-se afirmar que o
tratamento dos dados foi qualitativo, o que, na visão de Triviños (1987, p. 170) “não
estabelece separações marcadas entre a coleta de informações e a interpretação das
mesmas”. A fase de levantamento de dados foi complementada com a análise dos
dados através de uma aproximação da técnica de Análise de Conteúdo (BARDIN,
1977) e da Análise Documental, seguindo orientação de Ferreira (2001, p. 28) quando
afirma que “a necessidade de se recorrer a fontes de natureza discursiva e de proceder
à sua análise de forma mais objetiva tem levado a que a análise de conteúdo tenha sido
utilizada cada vez mais freqüentemente em Educação Comparada”.
13
Nesse sentido, as três fases nas quais se desenvolveu a pesquisa aconteceram da
seguinte forma:
- na 1ª fase foi procedido ao levantamento documental e à revisão de literatura
para a contextualização do campo de investigação nos dois países;
- na 2ª fase procedeu-se ao levantamento em profundidade e à análise dos dados
documentais e das fontes empíricas referentes ao objeto da pesquisa, bem como
ao estudo comparado propriamente dito;
- e, na 3ª e última fase, foram elaboradas as conclusões e considerações finais
sobre a pesquisa e as indicações para novos e mais aprofundados estudos sobre
a problemática em questão.
Para a apresentação do relatório dissertativo, estruturamo-lo da seguinte forma:
- na Introdução, apresentam-se as motivações para a pesquisa, contextualizando
o problema, determinando os objetivos, a pertinência e as limitações do estudo, bem
como a estrutura da dissertação;
- no Capítulo I, são tecidas as considerações históricas, metodológicas e práticas
da Educação Comparada, situando a mesma no contexto histórico atual e falando da
importância desta metodologia nos estudos sobre a formação e o trabalho do professor,
nas suas múltiplas dimensões;
- no Capítulo II, apresenta-se a questão da formação inicial do professor dos
anos iniciais da educação básica no Brasil, apresentando o sistema de ensino brasileiro,
o lugar das séries iniciais nesta realidade, como se dá a formação do professor, as
habilidades e competências a serem desenvolvidas durante sua formação e a questão
da prática pedagógica nos cursos de formação inicial, retratando a realidade brasileira;
- no Capítulo III, apresentam-se as questões referentes à formação inicial do
professor dos anos iniciais da educação básica em Portugal, discorrendo sobre o
sistema de ensino português, como se dá a formação do professor, os perfis de
desempenho atribuídos à profissão, a prática profissional nos cursos de formação
inicial, enfim, é traçado um panorama da realidade em Portugal;
14
- no Capítulo IV, procede-se a uma análise, que pode ser considerada como uma
aproximação da análise de conteúdo, sobre as falas apresentadas nos questionários e
mais alguns dados textuais sobre as reformas educativas do Brasil e de Portugal, tendo
por base o levantamento dos dados realizado, apresentando os pontos de encontro e de
desencontro entre as mesmas;
- no Capítulo V, apresentam-se as reflexões finais, tendo como fundamento as
várias interpretações realizadas a partir dos dados recolhidos, as respostas encontradas
e as dúvidas que foram surgindo ao longo da investigação, e que podem traduzir-se em
limitações, ou aspectos fulcrais que permitem levantar continuidade de pesquisas sobre
o tema em tela.
As fontes e referências utilizadas para pesquisar teórica e historicamente a
formação de professores, enquanto parte constitutiva desta dissertação, correspondem
a todo um conjunto de livros, artigos científicos, pareceres, legislações, documentos
oficiais e não oficiais e outros registros necessários ao processo investigativo.
Em apêndice a este relatório monográfico, encontram-se os guiões dos
questionários enviados via e-mail aos legisladores e estudiosos entrevistados nos dois
países.
Nos anexos, encontram-se os teores das respostas dadas aos questionários
realizados com os experts dos dois países, bem como sua identificação.
CAPÍTULO I
A EDUCAÇÃO COMPARADA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Figura 2 - imagens da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
“... mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um
‘não-eu’ se reconhece como ‘si própria’. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que
sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe”. Paulo Freire (1996, p. 85)
16
1.1 A educação e o método comparativo
Para uma reflexão mais aprofundada acerca da investigação proposta, a
abordagem metodológica utilizada foi a do estudo comparado. Fazer analogias e
comparar são ações inerentes à consciência e à vida humana, e a busca por conhecer as
diferentes soluções que outros povos encontraram para seus problemas sempre foi um
meio de desenvolvimento e de enriquecimento. Com todas as transformações ocorridas
no mundo nas últimas décadas, as questões do outro e das relações interculturais
passam a ter um lugar central nas ciências sociais, nos projetos de solidariedade e de
cooperação. Podemos dizer, então, que a comparação é o processo de perceber
diferenças e semelhanças, para perceber o outro e a partir dele, se reconhecer
(FRANCO, 2000). Nesse sentido, a metodologia comparativa vem ganhando corpo e
importância, num mundo que se vê cada dia mais envolvido em um processo
irreversível de globalização econômica e cultural.
Entende-se, como Nóvoa e Popkewitz (1992), que a utilização dos estudos
comparados em uma pesquisa científica pode se tornar um risco se não houver
preocupação e cuidado para que os mesmos não se tornem meramente descritivos,
havendo necessidade de uma elaboração conceitual que dê sentido à inter-relação e à
comparação de diferentes realidades. Para podermos dar corpo a estes conceitos, as
bases teóricas vêm de Ferreira (2001), considerando que a Educação Comparada vem
apresentando, nas últimas décadas, maior reconhecimento tanto por parte de
importantes organizações internacionais, quanto da comunidade acadêmica das mais
prestigiadas universidades. Apesar disso, há ainda muita divergência em relação à sua
definição e ao seu alcance, pelo fato de que a mesma não apresenta uniformidade nas
técnicas metodológicas. Isto, porém, ao invés de apresentar-se como fragilidade, pode
ser considerada como uma situação adequada a um “momento histórico em que se
admitiu a incapacidade da ciência em explicar a complexidade do mundo”
(FERREIRA, 1999, p.123).
Em uma análise de suas várias definições, afirma o autor que o aspecto mais
constante e aparentemente mais consensual diz respeito à aceitação de um método
17
próprio e que, para além de uma metodologia própria, deverá contar com um objeto
específico de estudo. Parece-nos que a definição de Daele (1993) seria a que mais
completamente traduz o que se pode conceituar como Educação Comparada:
Educação Comparada é: a) a componente pluridisciplinar das Ciências da Educação; b) que estuda os fenômenos e os fatos educativos; c) nas suas relações com o contexto social, político, econômico, cultural, etc.; d) comparando suas semelhanças e suas diferenças em duas ou mais regiões, países, continentes, ou a nível mundial; e) a fim de melhor compreender o caráter único de cada fenômeno no seu próprio sistema educativo e de encontrar generalizações válidas ou desejáveis; f) com a finalidade de melhorar a educação. (DAELE apud FERREIRA, 2001, p. 8)
Ao considerar-se como uma das finalidades fundamentais da Educação
Comparada, a de contribuir para um melhor entendimento dos sistemas escolares,
deve-se cuidar para não cair no risco apontado por Garrido (1986, p. 105 apud
FERREIRA, 2001, p. 12), de se oferecer modelos para serem imitados ou recusados,
uma vez que esta não é a sua finalidade, e sim, a de compreender os povos e aprender
com suas experiências educacionais e culturais. A comparação leva a uma
identificação de semelhanças e diferenças e à sua interpretação a partir dos contextos a
que pertencem, o que leva a uma melhor compreensão do fenômeno educativo. A
importância da contribuição da Educação Comparada hoje, para que a análise do
fenômeno educativo possa ser feita a partir de um ponto de vista global, se sustenta em
Teodoro (1999, p. 117), considerando que:
Num tempo histórico relativamente curto, a educação, de um obscuro domínio da política
doméstica, tem vindo a tornar-se, progressivamente, um tema central nos debates políticos, a nível nacional e internacional. Esta passagem da educação do domínio doméstico para o domínio público, com a centralidade que lhe é atribuída presentemente nos processos de desenvolvimento humano, coloca problemas complexos ao estudo das políticas educativas. (...) Trabalhos recentes (...) estão a apontar uma outra perspectiva para este campo da análise das políticas educativas, que se situam no que se pode designar de educação comparada e que pretendem abarcar no seu objeto de estudo tanto o local como o global.
Desta forma, por se ter como universo desta pesquisa as últimas reformas
educativas ocorridas em Portugal (1986) e no Brasil (1996), especificamente no que
concerne sobre a formação inicial do professor para os primeiros anos da Educação
Básica, entendendo-se que a análise comparativa dos seus aspectos legais, históricos e
18
contextuais seria a abordagem metodológica mais adequada para que se pudesse
atingir os objetivos propostos.
Assim, para que se pudesse ter maior clareza sobre como utilizar a metodologia
do estudo comparado, procedeu-se a um percurso sobre os aspectos teóricos,
históricos, metodológicos e práticos, com base nos estudos de Ferreira (1999 e 2001) e
de Ferreira e Gugliano (2000). Como no Brasil há dificuldade na disponibilidade
bibliográfica de estudos aprofundados acerca da metodologia do estudo comparado, o
percurso teórico teve as bases, quase que na totalidade em Ferreira, fazendo uso de
suas obras de 1999 e 2001, por entender-se que o autor procede a uma espécie de
“estado da arte” sobre a questão da Educação Comparada.
1.2 Visões e conceitos históricos da Educação Comparada
Ao tentar descrever o breve percurso histórico da Educação Comparada,
Ferreira (1999) aponta que há certa dificuldade, pois se apresentam controvérsias com
relação à periodização da mesma. Definir seus períodos de evolução significa buscar
estabelecer qual o significado da mesma no caminho que percorreu até aqui.
Sintetizam-se aqui as seguintes periodizações apresentadas por Ferreira (1999, p. 123-
155), segundo os vários autores consultados sobre a Educação Comparada:
1) Friedrich Schneider, que divide em dois períodos: o da pedagogia do
estrangeiro, que é caracterizado pelo produto das viagens de estudo ao estrangeiro
realizadas por pedagogos e políticos, que observavam a organização educativa dos
países vizinhos e eventualmente a comparavam com a do próprio país, e o da
pedagogia comparada propriamente dita, que se desenvolve ao longo do século XX e
que busca a explicação dos fatos pedagógicos, ou seja, suas forças determinantes ou
fatores configurativos.
2) George Bereday, estabeleceu três períodos: o primeiro denominou de
empréstimo, que cobre o século XIX, onde se buscava a apresentação de dados
descritivos que deviam fazer a comparação com o objetivo de avaliar as melhores
práticas educativas para as transpor para outros países. O segundo, que denominou de
19
predição, ocupou a primeira metade do século XX, e iniciou com Michael Sadler que
introduziu a idéia de que o sistema educativo não é parte separável da sociedade que
lhe serve de base. Os seus continuadores (Friedrich Schneider, Franz Hilker, Isaac
Kandel, etc) passaram a dar especial atenção aos alicerces da educação. Assim, já se
poderia predizer o provável sucesso de um sistema educativo num país com base em
experiências similares de outros países. No terceiro período, que denominou de
análise, a ênfase é colocada na classificação dos fatos educativos e nos sociais que lhe
estão associados. Assim, havia uma preocupação em desenvolver teorias e métodos e
estabelecer uma clara formulação das etapas, dos processos e dos mecanismos
comparativos para que se fizesse uma análise menos baseada em valores ético-
emocionais.
3) Alexandre Vexliard indica quatro períodos: a etapa estrutural, representada
pela obra Esquisse, de Marc-Antoine Jullien de Paris, publicada em 1817, considerada
o marco inicial da Educação Comparada, onde se encontram os princípios
“arquiteturais” e os princípios metodológicos dos estudos comparados em educação. O
segundo período, denominado dos “inquiridores”, vai aproximadamente de 1830 a
1914, quando os governos mandavam os inquiridores percorrerem a Europa e os
Estados Unidos para estudar os sistemas de ensino em vigor nesses países. O terceiro
período, denominado das sistematizações teóricas, ocorre por volta de 1920-1940, que
é marcado pelos trabalhos de Kandel, Schneider, Hans, entre outros. Este período foi
dominado por preocupações históricas. O quarto período, denominado prospectivo,
ocorre após a segunda guerra mundial e, sobretudo depois de 1955, quando os estudos
comparados em educação passaram a estar voltados para o futuro.
4) Noah e Eckstein apresentam cinco períodos: o primeiro, período dos
viajantes, é caracterizado por trabalhos assistemáticos, motivados pela curiosidade e
marcados por interpretações subjetivas, não havendo planejamento para os relatos, que
se baseavam em fatos que se destacavam pelo pitoresco ou pela diferença em relação
ao que se passava no país do observador. O segundo período, dos inquiridores, durou
boa parte do século XIX, e é aquele no qual os observadores se deslocavam a países
estrangeiros com o fim de recolher dados que pudessem servir para melhorar o sistema
20
educativo do seu país. No terceiro período, de colaboração internacional, o
intercâmbio cultural entre os povos é estimulado e a educação é vista como um
instrumento de harmonia e entendimento entre nações. Os estudos realizados no quarto
período, denominado de “forças e fatores”, e que acontece entre as duas grandes
guerras, realçam a dinâmica das relações entre a educação e a cultura e procuram
explicações para a variedade de fenômenos educativos observados em cada país,
buscando a compreensão das relações escola-sociedade através da análise histórico-
culturalista, que procurava explicar o presente a partir das dinâmicas legadas pelo
passado. No quinto e último período, busca-se a explicação pelas ciências sociais, e os
trabalhos recorrem fundamentalmente aos métodos empírico-quantitativos, na busca
de esclarecer cientificamente as relações entre a educação e a sociedade, num plano
mundial.
5) Ferran Ferrer propôs as seguintes etapas: Jullien de Paris, etapa descritiva,
etapa interpretativa e etapa comparativa. Esta foi a classificação escolhida por Ferreira
(1999) para a sua descrição sobre a evolução da Educação Comparada, da qual
também nos servimos, por entender ser a mais elucidativa nesta descrição:
a) Marc-Antoine Jullien de Paris
Autor de várias obras na área educacional, pode ser considerado o pai da
Educação Comparada, por ter, em sua obra intitulada Esquisse et vues préliminaires
d’un ouvrage sur l’éducation comparée, entrepris d’abord pour les vingt-deux cantons
de la Suisse, et pour quelques parties de l’Allemagne et de l’Italie, et qui doit
comprendre successivement, d’aprés le méme plan, tous les Etats de l’Europe9,
publicada em 1817, introduzido a comparação na abordagem da educação. O objetivo
desta publicação não era o de criar uma ciência nova, mas de lançar um projeto que
consistia em recolher informações para a elaboração de um quadro comparativo dos
principais estabelecimentos de educação existentes nos diversos países europeus, bem
como de seu funcionamento e seus métodos, com o qual se pretendia obter a 9 Esboço e visões exploratórias do trabalho de uma educação comparada, uma primeira abordagem entre os vinte e dois cantões da Suíça, e em seguida para qualquer parte da Alemanha e Itália, e isso se deve muito para compreender sucessivamente os planos de ensino de todos os Estados de Europa (tradução livre da autora).
21
colaboração de pessoas influentes e dos poderes públicos, para que se pudesse
proceder da melhor forma à desejada reforma da educação.
O livro é composto de duas partes: na primeira são apresentados a justificativa
do projeto, seus objetivos e noções gerais; na segunda, é apresentado um instrumento
para que a recolha de dados se desse com maior eficácia, constituído por duas grandes
séries de questões. Ferreira (1999, p. 134) considera que
Julien dava muita importância aos questionários, considerando-os verdadeiros instrumentos de trabalho para a análise educativa. Na sua perspectiva, através deles poder-se-iam obter “colecções de factos e de observações, agrupadas em quadros analíticos que permitiam relacioná-las e compará-las, para delas deduzir princípios certos” e deste modo, transformar-se a educação numa “ciência mais ou menos positiva”. Ou seja, ele o diz expressamente, as investigações sobre educação comparada deviam servir para fornecer meios novos para aperfeiçoar a ciência da educação.
Esta obra de Julien teve uma tradução polonesa em 1822 e uma parcial em
inglês em 1826; porém permaneceu praticamente esquecida até a segunda guerra
mundial, não tendo qualquer influência nos viajantes e comparatistas que estudaram os
sistemas educativos estrangeiros nesse espaço de tempo. Ganhou a projeção que
merecia através de Pedro Rosselló, a partir de 1943, e em 1967 ganhou uma tradução
portuguesa, intitulada Esboço de uma obra sobre a Pedagogia Comparada, de
Joaquim Ferreira Gomes.
Segundo Ferran Ferrer (1990 apud FERREIRA, 1999, p. 135), Julien contribuiu
para a Educação Comparada especialmente por destacar os seguintes aspectos:
- importância que tem o manejar uma metodologia empírica e científica;
- necessidade de elaborar instrumentos que servem tal finalidade;
- importância de fatores externos sobre a educação;
- as vantagens que tem o conhecimento da educação noutros países;
- a contribuição da Educação Comparada no progresso da educação no
mundo.
b) Etapa descritiva
Por ser muito ambicioso para a época, o projeto de Julien não foi
compreendido, tendo sido ignorado pelos governos e por pessoas que rejeitavam a
22
idéia da criação de uma ciência da educação. O objetivo, neste período, era o de
conhecer como se organizava o ensino em países tidos como desenvolvidos, para
importar os aspectos que poderiam trazer melhorias aos próprios sistemas escolares.
Muitas das obras publicadas neste período tratavam-se de meras descrições dos
sistemas educativos estrangeiros. Alguns estudiosos, porém, passaram a ressaltar a
importância de uma análise um pouco mais ampla sobre a realidade dos países
estrangeiros. F. W. Thiersch publicou em 1838 uma obra onde analisa as experiências
educativas na Alemanha, na França, na Holanda e na Bélgica. Aí argumenta sobre a
utilidade das viagens ao estrangeiro, mas especialmente considera que devem ser
tomadas algumas precauções quando se realizam descrições deste gênero. Mathew
Arnold publicou vários trabalhos ente 1861 e 1882, onde revelava um profundo
conhecimento sobre a situação da educação na França e na Alemanha, e, apesar de ter
procurado recolher idéias e experiências úteis para o seu país, advertiu sobre o perigo
da imitação de aspectos isolados, sem se levar em conta os contextos que os tornam
possíveis. Ferreira (1999) endossa esta afirmação: “De facto, um dos contributos mais
importantes consistiu na delimitação de factores determinantes para a configuração dos
sistemas educativos nacionais, entre os quais destacou as tradições históricas, o
carácter e as diferenças nacionais, as condições geográficas, a economia e a
configuração da sociedade” (FERREIRA, 1999, p. 137).
Mesmo neste período já há indícios de que a mera descrição dos sistemas
nacionais de outros países ou de alguns de seus aspectos educativos era insuficiente
para a compreensão do fenômeno da educação. Essa constatação leva Michael Sadler a
“protagonizar uma alteração na forma de abordar a Educação Comparada”, sendo
considerado, segundo Ferreira (1999), como o precursor do período seguinte.
c) Etapa interpretativa
O ano de 1900 é considerado como o início desta etapa, porque os
comparatistas entendem que nele acontecimentos significativos deram a arrancada da
Educação Comparada. Um deles, foi a organização de um curso universitário de
Educação Comparada na Universidade de Columbia, confiado a James E. Russel; o
23
outro foi a publicação de um texto de Michael Sadler no qual ele se pronunciava sobre
a utilidade da Educação Comparada para a compreensão do sistema educativo
nacional. Estes dois acontecimentos levaram à sistematização de conhecimentos e
deram uma espécie de autodeterminação à Educação Comparada.
Michael Sadler é considerado por alguns comparatistas como o iniciador de
uma concepção teórica em Educação Comparada. Com a publicação de um texto
intitulado How far can we learn anything of practical value from the study of
foreignsystems of education?10, apresenta algumas das suas principais idéias sobre a
forma de abordar os estudos comparativos e a sua utilidade. Ele afirma que as coisas
que estão fora da escola, são mais importantes que aquelas que se encontram dentro
dela. Acredita na utilidade da Educação Comparada como forma de contribuir para a
melhoria do sistema educativo do seu próprio país, mas se preocupa com a
compreensão e a melhoria do próprio sistema educativo através dos fatores e das
forças que determinam e condicionam os sistemas educativos em geral. Em síntese, as
contribuições mais importantes que deu à Educação Comparada foram as seguintes:
realçou a importância de se compreender o espírito e a tradição dos sistemas
educativos; salientou a conveniência de se estudar os sistemas educativos estrangeiros
para uma melhor compreensão do seu próprio; perspectivou uma dimensão
sociológica, ao buscar entender os aspectos educativos num contexto social e cultural
mais amplo; advertiu para o inconveniente de a educação Comparada se tornar refém
da estatística, uma vez que esta tende a identificar a educação com a escola (cf.
FERREIRA, 1999).
Neste período os comparatistas se preocuparam não só em descrever a educação
dos outros países, mas também em indagar as causas e tentar interpretá-las, utilizando
uma das seguintes abordagens ou tendências: interpretativo-histórica, interpretativo-
antropológica e interpretativo-filosófica (A. D. MARQUEZ, 1972, apud FERREIRA,
1999, p. 140).
10 Até aonde podemos apreender algo prático dos estudos de sistemas educacionais estrangeiros? (tradução livre da autora).
24
Na abordagem interpretativo-histórica, destacam-se Isaac L. Kandel e Nicholas
Hans. Kandel interessou-se pelos fatos, mas, sobretudo pelas causas que os
possibilitam, dando especial atenção aos fatores históricos. Ele acredita que a história
dos povos permite descobrir as particularidades nacionais dos sistemas educativos,
levando-se em conta as forças políticas, sociais, culturais e o caráter nacional. As
maiores contribuições de Kandel para a Educação Comparada são as seguintes:
insistência na recolha de dados fiáveis, na necessidade de analisar o contexto histórico
de cada sistema educativo e na necessidade da explicação (FERREIRA, 1999).
Hans, por sua vez, utiliza-se tanto da História quanto da Sociologia na
interpretação dos dados. Para ele, os fatores determinantes dos sistemas educativos
dividem-se em três grupos: fatores naturais (raça, língua, meio ambiente), fatores
religiosos (Catolicismo, Anglicanismo, Puritanismo) e fatores seculares (Humanismo,
Socialismo, Nacionalismo, Democracia). Afirma que a compreensão do caráter
nacional é absolutamente fundamental para interpretar os sistemas nacionais de
educação. No seu entender há cinco fatores que definem uma nação ideal: unidade de
raça, unidade de religião, unidade de língua, unidade de território e soberania política.
Como nenhum desses fatores era tido como suficientemente poderoso para criar
sozinho a unidade cultural e social que chamamos de nação, eram necessários vários
atuando conjuntamente (no seu entender, era necessário que atuassem conjuntamente
pelo menos quatro desses fatores). Assim, o caráter nacional era entendido como “um
resultado complexo de misturas raciais, de adaptações lingüísticas, de movimentos
religiosos e de situações históricas e geográficas em geral” (HANS, 1971, p. 14, apud
FERREIRA, 1999, p.141).
Na abordagem interpretativo-antropológica, Ferreira aponta duas posições
como sendo as mais importantes: a de Schneider e a de Moehlman. Friedrich
Schneider considerava que o estudo comparativo só tinha sentido se fossem analisados
os diversos fatores que configuravam um sistema educativo: o caráter nacional, o
espaço geográfico, a cultura, a ciência e a filosofia, a estrutura social e política, a
economia, a religião, a história, as influências estrangeiras e as influências decorrentes
da evolução da pedagogia. O mais original de seu pensamento, no entanto, é a
25
importância dada ao fator endógeno (imanente, interno ou potencial) na estruturação
dos sistemas educativos nacionais, sugerindo ainda que, ao se encontrar concordância
na educação de distintos povos, se pergunte sobre a possibilidade de se atribuirem tais
concordâncias às coincidências existentes entre as respectivas culturas.
No entender de Arthur H. Moehlman, a Educação Comparada necessita de um
princípio de classificação válido para uma determinada época, que derivando do
passado abriria perspectivas de futuro. Considera, assim, a necessidade de um modelo
teórico que permita examinar a educação na sua estrutura cultural, não só como um
sistema vigente, mas também como uma unidade histórica. Em sua opinião, o perfil da
educação de cada sociedade é determinado pelo complexo jogo de interferências e
interações entre catorze fatores que apresenta em seu modelo teórico, os quais agrupa
por afinidades: 1) população, espaço, tempo; 2) linguagem, arte, filosofia, religião; 3)
estrutura social, governo, economia; 4) tecnologia, ciência, saúde, educação.
Na abordagem interpretativo-filosófica, destacam-se J. A. Lauweris e Sergius
Hessen. A importância de Hessen deve-se à sua busca das bases teórico-ideológicas
dos sistemas educativos. Lauweris afirmava que a Educação Comparada deveria
atender a estilos nacionais de filosofia, pois, apesar de a filosofia ter um alcance
universal, os diversos povos apresentam uma inclinação por um determinado tipo de
pensamento filosófico. Não excluía as outras abordagens (histórica, sociológica,
antropológica, etc.), as quais considerava pertinentes, desde que confiassem a síntese
crítica à abordagem filosófica.
d) Etapa comparativa
O período entre guerras se caracterizou por um acumular de observações e pelo
recurso a explicações vagas, como por exemplo, caráter nacional, raça, humanismo,
forças imanentes, que denotam atraso na utilização da estatística e da análise
sociológica. Os anos seguintes resultaram em abordagens bastante diversificadas, na
tentativa de renovação da Educação Comparada, das quais se apresentam as sínteses
mais referidas da abordagem positivista, da abordagem de resolução de problemas, da
abordagem crítica e da abordagem sócio-histórica (FERREIRA, 1999):
26
- Abordagem positivista: do final da Grande Guerra até cerca do final dos anos
sessenta, era o funcionalismo que orientava as análises sociológicas. Por ser
claramente descritiva, não tendo uma dimensão histórica nem explicativa, este tipo de
abordagem pode ser operatória e, assim, apresentar-se como científica. No entanto,
fica parecendo artificial a descrição e a verificação de partes de um todo, sem que se
aborde o sentido da organização, seu desenvolvimento, sua história. A partir da década
de sessenta, surge a perspectiva estrutural-funcionalista, a qual busca estabelecer um
relacionamento entre a estrutura e a (s) função (s) das instituições educacionais, e entre
elas e as outras instituições sociais.
Nesta perspectiva destacam-se A. M. Kazamias e C. A. Anderson. Kazamias
afirmava que a Educação Comparada precisava adotar uma base científica: seus
estudos deveriam ter objetividade utilizando o método funcionalista e a técnica das
covariações. O seu objetivo deveria ser o de descobrir as funções que as escolas, como
estruturas sociais, desempenham em cada país. Anderson sugere ainda que a
investigação comparativa deve atender a duas dimensões: à situação educativa em si e
à relação dos aspectos educativos com o seu contexto. Para a primeira é necessária
uma análise intra-educativa, para que se estabeleçam as relações entre os distintos
aspectos dos sistemas educativos; para a segunda, deve ser feita uma análise social-
educativa, para se estabelecer as inter-relações entre as características educativas e as
variáveis sociais, políticas, econômicas, culturais que condicionam uma vasta e
complexa realidade.
O maior objetivo com a utilização desta abordagem foi o de “fornecer um
quadro interpretativo mais fiável, ao não dissociar a estrutura da função, ao trabalhar
aspectos mais manejáveis da realidade e ao formular generalizações passíveis de
convalidação empírica” (KAZAMIAS, 1972, apud FERREIRA, 1999, p. 146). Os
autores que se situam nesta perspectiva estão preocupados com o rigor do método
comparativo e com a possibilidade de alcançar conclusões que pudessem servir,
inclusive, para decisões políticas. Assim, Ferreira afirma: “Como já acentuou Nóvoa
(1988, p. 71), a retórica da ‘cientificidade’ é a melhor maneira de dissimular as
27
dimensões ideológicas deste enquadramento teórico que nega os conflitos sociais no
seio da educação” (FERREIRA, 1999, p. 146).
Uma análise científica, com objetivo de formular e comprovar hipóteses e
quantificar e controlar a investigação, para alcançar um nível explicativo rigoroso,
estabelecendo relações causais entre fenômenos educativos e sociais, é um modelo
empírico-quantitativo, designado de científico por Noah e Eckstein, e tinha como
objetivos: 1) generalizar os dados obtidos, além dos limites de uma só sociedade; 2)
oferecer um campo de investigação suficientemente amplo para testar proposições
somente passíveis de prova em um contexto internacional; 3) prestar-se à colaboração
interdisciplinar; 4) como disciplina instrumental, transformar a Educação Comparada
em área de conhecimento fértil para conduzir reflexões e orientar decisões de política
educacional (FERREIRA, 1999, p. 146-147).
- Abordagem de resolução de problemas: desde meados dos anos sessenta, a
partir da publicação de seu livro intitulado Problems in Education: a Comparative
Approach11, Brian Holmes se tornou o comparatista mais conhecido desta abordagem.
Ele afirma que é preciso partir dos problemas específicos que existem nas diversas
sociedades e procurar encontrar as soluções mais convenientes. Assim, a unidade de
comparação deixa de ser definida em termos de espaço, e busca-se a identificação de
problemas pertinentes e a sua submissão a estruturas racionais que possam levar à sua
solução. Holmes coloca que as principais fases desta abordagem pela resolução de
problemas são as seguintes: análise dos problemas, formulação da hipótese,
especificação das condições iniciais nas quais o problema foi localizado, predição
lógica dos resultados prováveis a partir das hipóteses adotadas, comparação dos
resultados logicamente preditos com os acontecimentos verdadeiros (HOLMES, 1986
apud FERREIRA, 1999, p. 147).
- Abordagem crítica: nos anos setenta, a instituição escolar passa a ser vista
como um dos mais importantes aparelhos ideológicos do Estado, considerada como
11 Problemas na educação: uma aproximação comparada (tradução livre da autora).
28
um instrumento de dominação e reprodução da ideologia dominante. Começam a
aparecer discursos críticos, principalmente sobre a ação das organizações
internacionais e as políticas que diziam respeito ao Terceiro Mundo, os quais rejeitam
por completo as abordagens relacionadas ao funcionalismo estrutural, porque seriam
responsáveis pela legitimação de uma ordem social injusta.
Um dos pioneiros desta abordagem foi Martin Carnoy (1974), que, “apoiando-
se numa série de estudos de caso, procurou explicitar ‘as bases estruturais da
desigualdade educacional’, através da análise da expansão diferenciada da educação
escolar, que atenderia, internamente, aos interesses da classe dominante e, à escala
mundial, aos do imperialismo” (FERREIRA, 1999, p. 148).
A partir das abordagens críticas assiste-se a uma renovação do objeto da
comparação. As críticas dos anos setenta deram origem a uma literatura que se debruça
não somente sobre os que vão à escola mas também sobre a diferença de
oportunidades, de experiências, os resultados das mulheres, das minorias étnicas e
raciais e dos diferentes estratos sociais. Ferreira afirma que “não se trata, muitas vezes,
de investigações que impliquem uma comparação entre países: trata-se de comparar a
experiência das mulheres, das minorias e dos diferentes estratos sociais nas suas
relações com a educação” (FERREIRA, 1999, p. 148).
- Abordagem sócio-histórica: ao longo da última década do século XX
acentuou-se a idéia de que a complexidade da realidade não poderia ser tratada com
abordagens que buscavam uma explicação única, objetiva e neutra. Ferreira nos mostra
que, “a abordagem sócio-histórica como nos sintetiza Nóvoa procura reformular o
projecto de comparação passando da análise dos factos à análise do sentido histórico
dos factos” (FERREIRA, 1999, p. 149). Assim, torna-se necessário compreender a
natureza subjetiva da realidade e o sentido que lhe é atribuído pelos diferentes atores, e
a investigação comparativa deve partir para a compreensão interpretando, indagando e
construindo os fatos e não somente descrevendo-os. Com isso percebe-se, como nos
mostra Ferreira (1999, p. 149):
29
... uma mudança paradigmática que se caracteriza por uma maior atenção à história e à teoria em detrimento da pura descrição e interpretação, aos conteúdos da educação e não somente aos resultados, aos métodos qualitativos e etnográficos em vez do uso exclusivo da estatística (PEREIRA, 1993; NÓVOA, 1995). A análise tende a prender-se em contextos definidos pela invisibilidade de práticas discursivas, tendo os autores procurado temáticas como a consolidação das formas ‘legítimas’ do conhecimento escolar, a construção do currículo, a formação das disciplinas escolares (SCHRIEWER & PEDRO, 1993; POPKEWITZ, 1993 apud FERREIRA, 1999, p. 149).
1.3 O método da Educação Comparada
A Educação Comparada, como já indica em seu nome, tem a comparação como
método principal de acesso ao saber, não necessitando, assim, de uma metodologia
própria. Ferreira afirma que “... ao longo da história da Educação Comparada, o que se
tem visto, como já o dissemos anteriormente, é uma constante procura de
aperfeiçoamento da metodologia e de recursos metodológicos que se vão mostrando
adequados a uma comparação mais eficaz” (FERREIRA, 2001, p. 20).
A inexistência de uma só metodologia de base demonstra o esforço de
adaptação do pensamento à natureza do objeto de estudo. Assim, os estudiosos foram
levados a procurar métodos cada vez mais adequados à diversificação dos objetos, o
que fez com que cada ciência desenvolvesse a metodologia de base mais adequada ou
a buscar uma metodologia que trouxesse ajuda na resolução dos seus problemas.
Atualmente, quase todas as ciências utilizam vários métodos ou técnicas em
consonância com a metodologia de base.
Os comparatistas ainda não chegaram a um consenso sobre o método
comparativo no que diz respeito às suas fases. Ferreira (2001) afirma que o método
comparativo proposto por Bereday é o de maior peso na história da Educação
Comparada, o qual aponta quatro fases fundamentais: descrição, interpretação,
justaposição e comparação. A partir da utilização dele, muitos especialistas
introduziram algumas alterações neste método, com o objetivo de melhorá-lo. Dois
discípulos de Bereday, Noah e Eckstein, preocupados com o rigor e a objetividade do
método, definiram sete fases fundamentais na investigação comparativa: identificação
do problema, formulação das hipóteses, definição de conceitos e indicadores, seleção
30
dos casos ou sistemas educativos a estudar, recolha dos dados, tratamento dos dados e
interpretação dos resultados.
Outro comparatista de prestígio, Lê Thành Khôi, apresenta cinco fases para uma
investigação completa, em sua obra Éducation Comparée: identificação do problema;
formulação das hipóteses ou das questões; reunião, tratamento e análise dos dados
(observação dos fatos); verificação das hipóteses e generalização. Já Garcia Garrido
apresenta preocupações didáticas na sua proposta de fases. Ferreira afirma que “... a
sua intenção é a de que ela recolha o que de mais importante e substancial se disse
acerca do assunto de forma a que sirva de ajuda a quem está a dar os primeiros passos
em educação comparada, em conformidade, aliás, com o ‘carácter didáctico e
propedêutico’ da obra em que se inserem” (FERREIRA, 2001, p. 22). São as seguintes
as fases indicadas por ele: identificação do problema e emissão de uma ou várias pré-
hipóteses; delimitação da investigação; estudo descritivo (fase analítica): compilação e
análise dos dados, conclusões analíticas; formulação de ou das hipóteses comparativas;
estudo comparativo (fase sintética): seleção de dados e de conclusões analíticas,
justaposição de conclusões e dados selecionados, comparação valorativa e ou
prospectiva, conclusões comparativas; investigação comparativa interdisciplinar;
redação do trabalho de investigação comparativa.
Ferreira (2001, p. 22) adota as fases que descreveremos abaixo, embasado em
grande parte na proposta de Garrido, com alterações que “... resultam, sobretudo de
reflexões decorrentes da prática docente e da necessidade de fazer uma explanação
concisa, mas suficientemente explícita a quem ainda não tem idéia da complexidade da
investigação científica e do mundo da educação”. São três as fases propostas, com suas
subdivisões: fase pré-descritiva, fase descritiva e fase comparativa.
1. Fase pré-descritiva
Uma investigação exige preparação, ou seja, o estabelecimento do quê fazer e
do como fazer. Esta fase pode ser subdividida em três etapas: identificação do
problema, emissão da ou das primeiras hipóteses e delimitação da investigação:
31
a) Identificação e justificação do problema: a escolha de um problema ajuda a
melhor concretizar uma idéia de investigação. Feita a escolha, é importante que se faça
uma primeira aproximação do mesmo, para que se tome conhecimento das relações
que se estabelecem entre os diferentes fatores implicados e para saber se é necessário
que se estude o mesmo em profundidade e no âmbito da Educação Comparada. Aqui, é
importante que se busque objetivar as primeiras hipóteses, para facilitar a delimitação
da investigação e a recolha e seleção dos dados. A delimitação tem como objetivo
definir exatamente o que se quer comparar, onde, como e com que instrumentos, ou
seja, “a delimitação deve incidir tanto sobre o objeto como sobre a metodologia”
(FERREIRA, 2001, p. 23).
b) Emissão da(s) hipótese(s): após a identificação do problema, deve ser
elaborada a hipótese, ou hipóteses, que delinearão a investigação;
c) Delimitação da investigação: devem ser delimitados o objeto, os conceitos, a
área de estudo e o método. O objeto, para que, em conjunto com as pré-hipóteses, sirva
de linha orientadora para a recolha de dados. Os conceitos, para saber se os termos
empregados nas fontes correspondem à realidade a que os associa o investigador ou se
para as mesmas realidades não existem termos diferentes, tomando cuidado especial
com aqueles que possam causar problemas de interpretação. A área de estudo, que
exige que se estabeleçam critérios para a escolha levando-se em conta duas das
propriedades da comparação: a pluralidade (determina a necessidade de duas ou mais
unidades de comparação) e a homogeneidade (exige que as unidades definidas
possuam as mesmas características fundamentais para que sejam comparáveis). O
método, que deve ser definido em virtude do objetivo da investigação e da amplitude
dos estudos, uma vez que a Educação Comparada pode valer-se de diferentes
metodologias e técnicas. O importante é que se definam as que “melhor permitirão
explicar o problema ou concluir sobre o rigor da hipótese previamente formulada”
(FERREIRA, 2001, p. 26).
Na definição do método, é essencial que o comparatista busque o alargamento
do espectro metodológico para que tenha maior consistência na análise dos dados
disponíveis. É importante “questionar e perspectivar a informação tendo em conta os
32
procedimentos próprios de outras áreas disciplinares como a Filosofia, a História e as
Ciências Sociais em geral” (FERREIRA, 2001, p. 26-27). Nos estudos comparativos, é
necessário que se leve em conta a natureza ideológica, buscando informações
suficientes sobre os esquemas conceituais onde se assentam os pressupostos da
realidade em análise, utilizando-se, para isso, recursos de procedimentos
metodológicos de caráter filosófico. O investigador necessita também dos
conhecimentos produzidos pela História, assim como dos métodos utilizados pelo
historiador, conhecimentos estes que serão utilizados ao longo da investigação,
buscando a compreensão do porquê e do estado do fenômeno em estudo. Os métodos e
técnicas de análise social também são imprescindíveis, uma vez que, de modo geral, a
investigação comparativa refere-se mais a grupos que a indivíduos. Ferreira afirma
ainda que, “mais do que análises intra-educativas, a Educação Comparada está
necessitada de análises societal-educativas, daí a pertinência dos recursos
metodológicos da Sociologia, da Antropologia Cultural, da Psicologia Social, da
Economia, etc” (FERREIRA, 2001, p. 27).
Um dos recursos mais aceitos e utilizados atualmente pelos investigadores em
Educação Comparada é a estatística. Porém, a “comparação de dados estatísticos... só
tem sentido quando inserida num contexto explicativo mais amplo. (...) Diríamos que é
preciso saber o seu real significado, ou seja, que sentido tem para quem as elaborou”
(FERREIRA, 2001, p. 28). Assim, pela necessidade de se recorrer a fontes de natureza
discursiva e de se proceder à sua análise de forma mais objetiva, a análise de conteúdo
tem sido utilizada cada vez mais em Educação Comparada. Na definição de Berelson,
“a análise de conteúdo é uma técnica de investigação que tem por finalidade a
descrição objectiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação”
(BERELSON, 1948, apud BARDIN, 1977, p. 19).
Num estudo histórico sobre a análise de conteúdo, Bardin a define da seguinte
forma: “um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por
procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens,
indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos
33
relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens”
(BARDIN, 1977, p. 42).
É essencial aqui, que se faça uma análise das diferenças essenciais que existem
entre a análise de conteúdo e a análise documental, por ser esta técnica também
empregada pela Educação Comparada. Bardin apresenta a definição de J. Chaumier
para a análise documental como “uma operação ou um conjunto de operações visando
representar o conteúdo de um documento sob uma forma diferente da original, a fim
de facilitar num estado ulterior, a sua consulta e referenciação” (BARDIN, 1977, p.
45). O tratamento das informações na análise documental é idêntico à fase de
tratamento das mensagens de certas formas de análise de conteúdo. É necessário,
entretanto, que se destaquem as diferenças essenciais que existem por detrás da
semelhança de certos procedimentos, apresentadas por Bardin (1977, p. 46):
- a documentação trabalha com documentos; a análise de conteúdo com
mensagens (comunicação);
- a análise documental faz-se, principalmente por classificação-indexação; a
análise categorial temática é, entre outras, uma das técnicas da análise de conteúdo;
- o objetivo da análise documental é a representação condensada da informação,
para consulta e armazenagem; o da análise de conteúdo, é a manipulação de
mensagens (conteúdo e expressão desse conteúdo), para evidenciar os indicadores
que permitam refletir sobre uma outra realidade que não a da mensagem
(permitindo as inferências do pesquisador).
Apesar da importância destes recursos, o comparatista não pode confundir o que
é apenas um instrumento metodológico, um conjunto de técnicas ou um método
auxiliar com uma metodologia de base.
2. Fase descritiva
Esta fase tende a ser a que exige mais tempo durante a investigação. Nela
desenvolvem-se atividades que visam a apresentação separada dos dados recolhidos
por cada uma das áreas de estudo: a recolha e apresentação dos dados e a interpretação
dos dados e conclusões analíticas.
34
Antes e durante a etapa da recolha dos dados são necessárias reflexões a fim de
que estes sejam suficientes e pertinentes. É necessária uma descrição clara, ordenada e
rigorosa por meio de uma análise sistemática dos dados, onde devem ser apresentados
o tipo de fontes utilizadas, a homogeneidade dos dados e a uniformidade das partes da
descrição.
As fontes utilizadas podem ser classificadas em primárias (documentos oficiais,
documentos não oficiais e documentos de elaboração pessoal), secundárias (estudos
descritivos ou comparativos preparados por observadores ou especialistas de modo
sistemático e com a finalidade de mostrar a realidade educativa de um país, região ou
zona, total ou parcialmente) e auxiliares (obras literárias, estudos sociológicos, estudos
políticos e obras artísticas). Apesar da enorme variedade de fontes, pode acontecer não
existirem dados suficientes para a realização do estudo. Nesse caso, o investigador
deverá buscar os mesmos através do contato direto com a realidade ou através da ajuda
de colaboradores; para isso, é necessária uma cuidadosa preparação da recolha de
dados.
A questão da homogeneidade dos dados é fundamental em uma comparação
que se pretenda rigorosa. Ela deve se apresentar tanto com os dados qualitativos como,
e especialmente, com os quantitativos, uma vez que “nem sempre um mesmo número
traduz uma mesma realidade” (FERREIRA, 2001, p. 30).
Um outro problema com o qual o comparatista se depara é o da terminologia
utilizada. Ainda não se chegou a um consenso sobre a uniformidade de terminologias
apresentadas para um mesmo conceito ou sobre terminologias idênticas para conceitos
diferentes. Devido a isso, algumas entidades e organismos internacionais propuseram
classificações para organizar as informações sobre a educação, através da edição dos
Tesauros. Nesse esforço estão a Organização de Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), a Unesco e a Comissão da Comunidade Européia em
colaboração com o Conselho da Europa (CE).
Ferreira (2001, p. 32) considera ainda que o esforço para elucidar a
terminologia e a classificação dos dados poderá ser mais rentabilizada se houver
preocupação também com a homogeneidade das partes da descrição. Nesse sentido:
35
... o estudo comparativo sai seguramente mais facilitado se a estrutura das partes que se utilizam para descrever cada uma das áreas de estudo for o mais uniforme possível. Contudo, o que interessa fundamentalmente é assegurar que no final se possa realizar a comparação dos aspectos educativos que se intentaram aprofundar de acordo, claro está, com as hipóteses que se pretendem demonstrar (...). Ora, isso requer um esforço de unificação na recolha dos dados e na redacção desta fase descritiva, o que obriga a uma maior preocupação analítica e, por conseqüência, a um maior dispêndio de tempo.
A etapa da interpretação dos dados e conclusões analíticas deverá ser destinada
especificamente à análise explicativa dos dados contextuais mais relevantes, os quais,
normalmente, assumem dinâmicas diferentes, pelo fato de que alguns revelam-se mais
persuasivos e relevantes que outros. Ferreira (2001, p. 32) afirma que:
... como é natural, nesta fase a formação científico-cultural e ideológica do investigador tende a impor-se. Independentemente do seu empenho num estudo criterioso e honesto é muito provável que tenda a sobrevalorizar explicações de carácter histórico, ou sociológico, ou econômico em conformidade com a formação científica que possuir e adoptar uma postura interpretativa positivista ou marxizante fruto de sua inclinação ideológica.
Assim, conclui que o investigador deve refletir sobre suas propensões e se elas
resultam de uma opção previamente definida e se não afetam negativamente o estudo
em questão. As conclusões, descritivas e explicativas, devem ser redigidas de forma
clara e concisa, e não devem ser apresentadas somente as consideradas mais relevantes
para a investigação, e sim devem traduzir tudo quanto se pode concluir da análise
efetuada.
3. Fase comparativa
Depois de concluídas as duas primeiras fases e, antes de se iniciar o estudo
comparativo propriamente dito, é interessante que se revejam as hipóteses colocadas
no início do trabalho de investigação. Neste aspecto existem discordâncias, como
aponta Ferreira, pois alguns estudiosos consideram que ela deve ser feita antes da
comparação propriamente dita, e outros afirmam que deve ser realizada após a
justaposição. Para Ferreira, a formulação da hipótese antes que se entre na fase
comparativa assegura maior objetividade ao estudo, pois “a existência de uma hipótese
exige um esforço de síntese, de busca do apenas necessário, o que implica um
36
exercício intelectual menos gratuito e mais reflexivo e convergente. Deste modo urge
logo fazer uso da hipótese definitiva o mais cedo possível e este parece ser o momento
certo” (FERREIRA, 2001, p. 33-34).
Depois de formulada a hipótese, ou hipóteses, os dados e as conclusões
analíticas que serão alvo de confrontação deverão ser selecionados de acordo com a (s)
mesma (s). Ferreira (2001) entende que o objetivo da justaposição é o de propiciar
instrumentos que permitam que essa confrontação seja o mais concisa, clara e objetiva
possível. Aqui, para ele, se atinge o auge da investigação e a formação científica e
ideológica do investigador se revela fundamental, pois ele acaba sendo mais
protagonista do que julga por privilegiar mais uma orientação científica, por ter por
inquestionável a metodologia que suporta o estudo, e por valorizar determinados fatos,
fenômenos e aspectos educativos em detrimento de outros. Assim, afirma que “a
comparação necessita de todo um trabalho analítico anterior e que deve ser o corolário
de um processo de síntese iniciado pela formulação da (s) hipóteses (s) comparativa
(s), seguido pela justaposição dos dados e das conclusões analíticas. Nesse sentido, a
investigação comparativa deve propiciar conclusões de tal modo precisas que seja
possível verificar até que ponto se conseguiu confirmar a hipótese antes formulada”
(FERREIRA, 2001, p. 35).
No entanto, não se deve aceitar dogmaticamente os resultados propiciados pela
investigação, pois, “sabendo-se das debilidades metodológicas, das hesitações que
existiram e das opções que se tomaram, será sempre interessante fazer releituras, tentar
novas interpretações, apontar outros sentidos e, sempre que possível, admitir a
possibilidade da justeza de outras abordagens” (FERREIRA, 2001, p. 35). Esta
afirmação se justifica pelo fato de a Educação Comparada utilizar-se de diversas
abordagens metodológicas, pois hoje não há mais necessidade de que a mesma se
legitime pelo estabelecimento de uma abordagem metodológica uniforme. A sua
unificação deve fundamentar-se em seu caráter comparativo e na tentativa de
compreender os sistemas, os aspectos e os problemas educacionais a partir de análises
rigorosas de dados criteriosamente recolhidos.
37
1.4 Considerações práticas acerca da Educação Comparada
O ato de comparar é um ato mental utilizado por muitas pessoas, tanto de forma
espontânea e intuitiva quanto de uma forma mais elaborada. São poucos, porém, os
que percebem sua importância e menos ainda os que se predispõem a refletir sobre a
problemática que envolve a comparação. O que nos mostra a história da Educação
Comparada é que sempre houve a procura de uma metodologia e de procedimentos
metodológicos que facilitem o processo da comparação. Ferreira (2001, p. 15) pondera
que a operação de comparar pode ser examinada sob dois pontos de vista: o descritivo
e o funcional, como podemos perceber quando afirma que “... sob o ponto de vista
descritivo, comparar exige ver, analisar e ordenar, sendo que cada um destes três
aspectos pode assumir um maior ou menor relevo conforme o que se pretende com a
comparação. Numa perspectiva funcional, comparar implica estabelecer relações entre
fenômenos de um mesmo gênero através das quais se devem deduzir congruências,
afinidades ou discrepâncias”.
Na perspectiva funcional há maior ênfase no aprofundamento do conhecimento,
o que interessa mais à investigação científica. Já a perspectiva descritiva é mais
adequada a situações que exigem decisões, servindo, portanto, a objetivos mais
pragmáticos e imediatos.
O processo comparativo deve levar em conta, além dos fatos, fenômenos ou
aspectos a ser comparados, um outro aspecto, que é o que os comparatistas chamam de
Tertium comparationis, que serve como referência ou modelo mental. Ele traduz uma
“idéia prévia ou um ideal que condiciona e promove a comparação” (FERREIRA,
2001, p. 16), conferindo maior sentido à comparação e possibilitando dar maior
clareza à pertinência dos critérios a definir. Ele se torna necessário, uma vez que
devem ser levadas em consideração a relação da investigação comparativa com uma
teoria da educação, e a presença de fatores subjetivos neste tipo de investigação.
Assim sendo, a comparação possui características e limites tanto no que diz
respeito ao seu alcance quanto nos seus modos de abordagem. Ferreira chama a
38
atenção, por isso, para as propriedades e para os limites da comparação. Em relação às
propriedades, este autor segue a proposta de Hilker (1967, apud FERREIRA, 2001, p.
17) que indica as seguintes: caráter fenomenológico, pluralidade, homogeneidade e
globalidade.
- caráter fenomenológico: o ato da comparação se dá sobre fenômenos, fatos ou
aspectos observáveis, e não pode, por isso, ter a pretensão de proporcionar um
conhecimento total dos mesmos. “O resultado será sempre um conhecimento
aproximado da realidade” (FERREIRA, 2001, p. 17);
- pluralidade: com relação a este aspecto, Ferreira afirma que são necessários
pelo menos dois fatos ou fenômenos para que se possa fazer comparação. Admite-se a
comparação de um só aspecto, desde que seja considerado em duas fases, em dois
momentos de sua existência, porém, isso cai no domínio da História. “O aumento do
número de objectos submetidos a comparação poderá significar uma maior força
probatória mas, por outro lado, complica o estudo. Daí preferir-se, muitas vezes,
seleccionar um determinado número de realidades” (FERREIRA, 2001, p. 17);
- homogeneidade: para que possa existir comparação é necessário que haja
semelhança entre os fenômenos que se comparam. Assim, a comparação não deve ser
feita sobre realidades ou aspectos absolutamente heterogêneos;
- globalidade: qualquer fenômeno educativo não pode ser estudado de forma
desvinculada da complexa realidade que o envolve. Portanto, quanto mais fatores
forem levados em consideração na investigação, maior será a profundidade e a
qualidade do estudo.
A metodologia comparada apresenta alguns limites que, no entender de
Ferreira, (2001, p. 18) “provavelmente nunca conseguirá ultrapassar”. São eles: o
problema da objetividade, o problema da eficácia nomotética e o problema da
normatividade.
O problema da objetividade é um problema que afeta todas as Ciências e de um
modo especial as Ciências Sociais, devido a alguns aspectos que podem prejudicar a
objetividade dos estudos, e que são apontados por Ferreira: “implicação do sujeito
sobre o objecto estudado; influência ideológica dos conceitos pessoais sobre os que
39
edificam a investigação; participação interessada do sujeito na eleição dos assuntos e
até dos dados; inexistência de dados socialmente objectivos – apesar do que diz Noah
e Eckstein (1969) os dados recolhidos estão longe de ser neutrais” (FERREIRA, 2001,
p. 18). No entanto, o comparatista deve buscar cada vez mais a objetividade,
eliminando as ambigüidades e servindo-se de métodos e técnicas de análise adequados,
procurando deixar claro qual vai ser o critério de comparação.
O problema da eficácia nomotética aparece por ser impossível controlar todas
as variáveis que intervêm num fato social. Assim, o comparatista não deve aspirar
descobrir leis gerais que expliquem os fenômenos ou que os predigam, mas deve
assumir a postura, como qualquer outro investigador social, de alguém que pretende
contribuir para a compreensão da realidade educativa.
Com relação à normatividade, os resultados de uma investigação comparativa
devem servir de ajuda a quem toma decisões, dar indicações sobre as tendências e os
problemas da educação e sobre a relação entre a teoria e a prática, e nunca procurar
estabelecer normas que venham a se impor a qualquer povo ou instituição.
(GARRIDO, 1986, apud FERREIRA, 2001, p. 19).
1.5 Globalização e mundialização12: contexto atual
A questão da formação de professores tem sido um tema central nas políticas
educacionais de quase todos os países nas últimas décadas. No entender de Popkewitz
e Pereyra (apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992, p. 19), “o conteúdo e organização da
formação de professores são fundamentais para a agenda do Estado, no que se refere à
modernização das instituições educacionais”.
Nesse contexto muito se tem discutido a globalização e a mundialização e, em
muitos discursos, esse parece ser um fenômeno recente, da chamada pós-modernidade.
Porém, no entender de Ferreira e Gugliano (2000, p. 11), “... o processo de
globalização não é um fenômeno novo e, igualmente, não é algo negativo em si 12 Apesar de alguns autores conceituarem de modo diverso, entendendo a globalização como um processo político-econômico e a mundializacão como um processo sócio-cultural, utilizaremos indistintamente os dois termos, entendendo-os como um processo mútuo de influência de alguns países sobre outros, tanto nos aspectos político-econômicos quanto nos sócio-culturais.
40
mesmo (...) Romper as barreiras das cavernas, dos guetos e da província tem sido uma
busca constante na construção histórica do ser humano. Sua negatividade reside na
forma de relações sociais até hoje vigentes – relações de classe...”.
Mesmo tendo o entendimento de que a globalização é um processo que já vem
ocorrendo há muitas décadas, não há como negar que nos últimos anos este processo
estende-se de forma acelerada em todo o mundo e, hoje, já sentimos todos os efeitos
dele pelas características mais econômicas do atual processo. Este tema vem sendo
utilizado como justificativa para desestruturar grande parte das políticas sociais tanto
de países centrais quanto de nações que se encontram na periferia da economia
mundial. Gugliano (apud FERREIRA & GUGLIANO, 2000, p. 63) analisa a questão
dizendo que:
(...) a globalização vem gradativamente adquirindo o estatuto de um paradigma, de uma base a partir da qual deveria ser pensado o conjunto das relações sociais. O paradoxo dessa situação é que se fala da globalização e da necessidade de ajustes com a mesma naturalidade tanto para países desenvolvidos como para os não tão desenvolvidos assim. Desse modo, políticas semelhantes de flexibilização de empregos vêm sendo implementadas em países com políticas industriais distintas; medidas visando à privatização do ensino são aplicadas de forma quase idêntica em países com alta taxa de analfabetismo e em outros com altos níveis de alfabetização; e assim por diante, como se a mesma dose de um remédio pudesse tanto curar uma dermatite quanto uma dor de dente.
Nesse sentido, ao analisar o conjunto das políticas sociais do Estado, Enguita
(apud FERREIRA & GUGLIANO, 2000, p. 209-210) afirma que:
Todos esses serviços, e outros, asseguram à população um acesso mínimo a certos bens (serviços públicos de saúde, educação obrigatória, subsídio básico, pensão assistencial), mas, para além disso, enquanto os outros possuem um caráter contributivo ou simplesmente reprodutivo (...), o sistema educativo pretende manter um caráter igualitário, inclusive, de discriminação positiva (educação compensatória, sistema de bolsas). O simples fato de que a política educativa afeta os cidadãos de modo direto no início de suas vidas, enquanto as outras mencionadas tendem a fazê-lo em fase mais avançada, ou até mesmo ao seu final, redunda na diferença indicada, do mesmo modo que a crença geral de que a educação é por si mesma um importante determinante das oportunidades de vida, individuais e sociais. Para dizê-lo no jargão atual, os serviços de saúde ou assistência social são políticas compensatórias, enquanto a educação é uma política ativa.
Assim, as relações entre educação e desenvolvimento econômico postuladas nos
últimos anos não se apóiam em um projeto de desenvolvimento econômico,
41
principalmente para os países periféricos, pois são propostas a partir de um Estado
débil, que renunciou ao seu papel de regulador social. Essa mudança na concepção
educativa vislumbra-se na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada
em Jomtien em março de 1990, com a participação de 155 países (TORRES, 2001), ao
consagrar as bases de um novo estilo de desenvolvimento educacional e de um novo
conceito de Educação Básica que deriva do conceito de satisfação das necessidades
básicas dos sujeitos e da caracterização e estratégias para satisfazê-las. Numa análise
das políticas educativas, Parentella e Malajovich (apud FERREIRA & GUGLIANO,
2000, p. 182) apontam que:
Os anos 90 foram surpreendentes. Os grupos hegemônicos apropriaram-se do discurso pedagógico sustentado pelos representantes das correntes críticas não-reprodutivistas (D. Saviani, J. Libâneo, entre outros) durante a década dos 80. Essa corrente assumiu a defesa da escola, pela sua importância para as classes populares, valorizando sua função específica na distribuição do conhecimento socialmente significativo, opondo-se, assim, aos que a analisavam como mero aparelho ideológico do Estado, reprodutor das diferenças sociais. Esse processo de apropriação tergiversou seus fundamentos políticos, transformando-os em razões econômicas e convertendo o espaço educacional num espaço de decisões técnico-gerenciais.
Ainda sobre isso, Popkewitz e Pereyra (apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992,
p. 11) afirmam que: As reformas têm concedido uma atenção particular à modernização das economias e à produção de um consenso cultural através do ensino. Na maioria dos casos, as estratégias adoptadas têm como objectivo racionalizar os sistemas educativos, permitindo a sua adaptação aos objectivos nacionais e às estruturas econômicas em mudança e aumentando a sua capacidade de resposta às preocupações financeiras e às pressões culturais que emanam dos espaços nacionais e internacionais.
Entendem ainda os autores acima referenciados, que as reformas educativas dos
últimos anos, nos diversos países, incorporam diversas formas de regulação que
produzem mudanças substanciais dos sistemas de ensino, dando grande ênfase ao
trabalho dos professores e à sua formação. Através delas, as entidades governamentais
e profissionais criaram novos mecanismos para avaliar, certificar e supervisionar os
modelos institucionais e as práticas dos professores. As mudanças envolvem uma nova
legislação de enquadramento da formação de professores.
42
Numa análise sobre o impacto da mundialização sobre as estratégias da reforma
da educação, Carnoy (2002, p. 55) aponta que:
Nos setores da educação e da formação, as reviravoltas da economia mundial desencadearam três tipos de reação: as reformas que correspondem à evolução da demanda de qualificações nos mercados – nacional e internacional – do trabalho e às novas idéias sobre a maneira de organizar a produção do sucesso escolar e da competência profissional podem ser qualificadas de ‘reformas fundadas na competitividade’; as reformas que correspondem a restrições do orçamento do setor público e das rendas das sociedades privadas, reduzindo os recursos de que dispõem o público e o privado para financiarem a educação e a formação, podem ser qualificadas de ‘reformas fundadas nos imperativos financeiros’; por último, as reformas que tentam realizar o importante papel político da educação como fonte de mobilidade e nivelamento sociais podem ser qualificadas de ‘reformas fundadas na eqüidade’.
Estes três tipos de reformas educativas demonstram como os governos podem
reagir à mundialização. Esta reação depende de três fatores principais: sua situação
financeira objetiva, sua interpretação da conjuntura e sua posição ideológica sobre o
papel do setor público na educação, e que se expressam na maneira como os países
ajustam sua economia ao novo ambiente mundializado, do ponto de vista estrutural.
Em termos econômicos a mundialização não cria mais eficácia, uma vez que permite
ao capital tentar obter um elevado rendimento e utilizar conhecimentos e forças
produtivas onde elas existem. Assim, “... a mundialização entra no setor da educação
como um ‘cavalo’ ideológico e suas repercussões sobre o ensino e a produção de
conhecimentos são amplamente o fruto desse liberalismo motivado pelo dinheiro e não
por uma visão clara em relação ao aprimoramento da educação” (CARNOY, 2002, p.
85).
O que acontece é que, com a mundialização, os governos estão prestando mais
atenção aos resultados de seus alunos em relação aos de outros países. Os testes
nacionais e internacionais a título comparativo, exercem pressão sobre as escolas e os
países a fim de torná-los responsáveis pela qualidade da educação. As reformas
financeiras e as teorias elaboradas em torno da mundialização, tornam os professores
responsáveis pelas crescentes dificuldades da escola na maior parte dos países.
Percebe-se isto claramente, na reflexão feita por Carnoy (2002, p. 100):
43
Mas, antes de tudo, a ideologia da mundialização e as medidas concomitantes dos organismos provedores de empréstimo, que desaprovam o ensino público e os professores das escolas públicas, ignoram as realidades “políticas” inerentes ao aprimoramento de uma educação mais qualificada e, talvez, sejam contrárias à necessidade fundamental de professores mais qualificados em uma economia mundial que nunca foi tão competitiva como nos dias de hoje. No conjunto das nações, os professores são raramente controlados em seu trabalho; estão sozinhos na sala de aula e o aspecto quantitativo e qualitativo de seu ensino é, sobretudo, uma questão de responsabilidade pessoal e de talento. Se os Estados esperam desenvolver a habilidade cognitiva de sua juventude pela escolaridade, terão de contar com exímios professores, autônomos, motivados, bem qualificados do ponto de vista profissional e formados em instituições públicas concebidas para esse efeito. A maneira como se definem esses professores, seu grau de compromisso diante do sucesso dos alunos, sua vontade de aperfeiçoamento e sua habilidade pedagógica são as chaves do sucesso da educação básica e do ensino generalizado na sociedade. O compromisso e a participação dos professores implicam uma forma de gestão que leve em consideração suas necessidades e lhes dê um papel a desempenhar no aprimoramento da qualidade do ensino.
Vivendo-se num tempo em que a educação “tem vindo a tornar-se,
progressivamente um tema central nos debates políticos, a nível nacional e
internacional, (...) com a centralidade que lhe é atribuída presentemente nos processos
de desenvolvimento humano, coloca problemas complexos ao estudo das políticas
educativas” (TEODORO, 2002, p. 11), a investigação necessita utilizar-se de
metodologias que, de fato, consigam explicitar estas políticas. Assim, a Educação
Comparada torna-se um importante instrumento metodológico neste tipo de
investigação.
1.6 A formação do professor sob o viés da Educação Comparada
Ao abordar a questão da educação comparada e da formação de professores,
Popkewitz e Pereyra (apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992) apontam que o que se
publicou nas últimas décadas sobre a comparação de políticas ou de sistemas da
formação de professores, segundo os autores, trata-se freqüentemente de estudos
descritivos que incluem informação útil, mas que apresentam abordagem teórica
informal. Desse modo, respondem a uma lógica enraizada na sua constituição como
sub-disciplina acadêmica, e tem suas problemáticas de referência mais próximas das
questões políticas do que da produção autônoma do conhecimento. Afirmam os
autores citados que “... muitas vezes, a educação comparada é mais um meio de
44
utilizar a ‘realidade estrangeira’ para construir argumentos que legitimam políticas e
reformam práticas, do que um meio útil para conhecer a situação concreta e as acções
sociais”. (1992, p. 14). Uma das formas de ultrapassar esta limitação tem sido o
desenvolvimento de explicações analíticas dos usos da investigação comparada.
No que se refere às mudanças introduzidas pelas reformas educativas nas
últimas décadas, considera-se que o conteúdo e a organização da formação de
professores são fundamentais para a agenda do Estado, especialmente no que diz
respeito à modernização das instituições educacionais. Parece que o discurso das
reformas se repete em quase todos os países. O teor das discussões, que propõem as
reformas educacionais ocorridas nos anos 90, parece originar-se de necessidades
comuns nos vários contextos da educação no mundo. Busca-se prioritariamente
conquistar um nível de eficiência e qualidade compatíveis com as exigências do
mercado globalizado.
Neste sentido, Popkewitz e Pereyra (apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992, p.
26) afirmam que:
(...) a linguagem da reforma não é simplesmente um instrumento de poder, mas sim uma tecnologia que intervém na distribuição de poder. Os múltiplos discursos de reforma sobre a formação de professores ligam as mudanças sociais ao conhecimento que as pessoas têm do mundo, permitindo-lhes sentirem satisfeitas pelo facto do processo atingir efectivamente os objetivos pessoais e sociais. A linguagem da reforma transporta um determinado sentido do fazer e do querer, que deve ser interiorizado como uma directriz para a acção. As reformas são portadoras de práticas discursivas que têm efeitos a longo prazo, não só sobre a administração institucional do ensino, mas também sobre os acordos de poder e as vivências subjectivas dos actores.
As reformas na formação de professores atendem a exigência de transformações
estruturais de longo prazo tanto a nível nacional e internacional. Aqui, é importante
considerar a relação dos setores econômicos com as transformações culturais e sociais,
tendo em vista que as escolas e as universidades estão submetidas a expectativas muito
diferenciadas: enquanto alguns grupos empresariais buscam trabalhadores com
formação mais consistente, outros põem em evidência os objetivos utilitários da
educação.
45
Ao se considerar todas as variáveis nos discursos das reformas dos diferentes
países, utilizando-se da Educação Comparada, percebe-se então, os pontos em comum
que aparecem nos mesmos quando se analisa o tipo de reforma estrutural adotado por
cada um deles. Porém, o que não fica tão explícito é o tipo de necessidades que se
colocam à escola e a seus profissionais em nossos dias. Questiona-se muito o que é ser
professor frente às demandas que se encontram neste ofício na atualidade. A
globalização da economia e da política, a revolução tecnológica e os fenômenos
sociais delas decorrentes trouxeram ao campo da educação novas provocações e
inquietações. Neste sentido, acreditamos que, para além do discurso oficial das
reformas há um discurso obscuro na realidade cotidiana das salas de aula.
Necessitamos de professores que contemplem um “conjunto de qualidades de caráter
positivo” (RIOS, 2001, p. 93), que se apresentam na ação docente em quatro
dimensões: técnica, política, ética e estética.
No entender de Rios (2001), a dimensão técnica pode ser entendida como
suporte da competência, uma vez que se revela na ação dos profissionais. Tem um
significado específico no trabalho, nas relações, devendo, portanto, ser vinculada às
outras dimensões. Quando não é estabelecido um vínculo, esse significado fica
empobrecido e se cria uma visão tecnicista, onde a técnica é supervalorizada e se
ignora sua inserção num contexto social e político, atribuindo-se assim, um caráter de
neutralidade que não é verdadeiro. Deve-se associar a idéia de techne às de poiésis e
práxis, para que sua presença na competência possa ser explorada de maneira mais
ampla. Assim, pode-se afirmar que há um caráter poético na técnica, na prática
profissional. Rios (2001, p. 96) afirma que:
para que a práxis docente seja competente, não basta, então, o domínio de alguns conhecimentos e o recurso a algumas ‘técnicas’ para socializá-los. É preciso que a técnica seja fertilizada pela determinação autônoma e consciente dos objetivos e finalidades, pelo compromisso com as finalidades, pelo compromisso com as necessidades concretas do coletivo pela presença da sensibilidade, da criatividade.
Essa visão já era apontada por Paulo Freire (1996, p. 36) quando afirmava que
“a necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita à
46
distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e
boniteza de mãos dadas”.
A dimensão estética está presente na ação docente através da sensibilidade
entendida como uma apreensão consciente da realidade, ligada à intelectualidade. A
sensibilidade está ligada ao potencial criador e à afetividade do sujeito, que se
desenvolve num contexto cultural determinado. Sendo o ser humano um animal
simbólico, a racionalidade não pode ser vista isoladamente, mas articulada a outras
capacidades e instrumentos que tem o homem para interferir na realidade e transformá-
la. Rios (2001, p. 99-100) aponta que:
Nesse sentido, a imaginação, a sensibilidade são elementos constituintes da humanidade do homem e não podem ser desconsideradas quando se fala na sua realização. A poética, universo do fazer, não se desarticula da práxis, universo do agir, como a entendemos contemporaneamente. É nessa medida que é importante trazer luz à dimensão estética do fazer humano e do trabalho docente. E se falamos em competência, não se trata de uma sensibilidade ou de uma criatividade qualquer, mas de um movimento na direção da beleza, aqui entendida como algo que se aproxima do que se necessita concretamente para o bem social e coletivo. (...) A ação docente envolve, portanto, técnica e sensibilidade. E a docência competente mescla técnica e sensibilidade orientadas por determinados princípios, que vamos encontrar num espaço ético-político.
A estética também está presente na Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire
(1996, p. 50-51), quando este diz que:
Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço. Pormenores assim da cotidianeidade do professor, portanto igualmente do aluno, a que quase sempre pouca ou nenhuma atenção se dá, têm na verdade um peso significativo na avaliação da experiência docente. O que importa, na formação docente, não é a repetição mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser ‘educado’, vai gerando a coragem.
As dimensões ética e política estão intimamente relacionadas, pois se é tarefa da
educação a formação da cidadania, é tarefa dos professores contribuir, com seu
trabalho, para essa formação. A presença da dimensão ética na ação docente se
percebe na competência, naquilo que se exercita como se deve ser, na direção do bem
comum. O bem comum é finalidade da política. Assim, Rios (2001, p. 107) afirma
que:
47
(...) o trabalho docente competente é um trabalho que faz bem. É aquele em que o docente mobiliza todas as dimensões de sua ação com o objetivo de proporcionar algo de bom para si mesmo, para os alunos e para a sociedade. Ele utiliza todos os recursos de que dispõe – recursos que estão presentes ou que se constroem nele mesmo ou no seu entorno – e o faz de maneira crítica, consciente e comprometida com as necessidades concretas do contexto social em que vive e desenvolve seu ofício.
Se a educação é uma forma de intervenção no mundo, estas duas dimensões não
podem escapar de uma ação que se faça nem como reprodutora e nem como
desmascaradora da ideologia dominante, como afirma Paulo Freire (1996, p. 111):
Neutra, “indiferente” a qualquer destas hipóteses, a da reprodução da ideologia dominante ou a de sua contestação, a educação jamais foi, é, ou pode ser. É um erro decretá-la como tarefa apenas reprodutora da ideologia dominante como erro é tomá-la como uma força de desocultação da realidade, a atuar livremente, sem obstáculos e duras dificuldades. Erros que implicam diretamente visões defeituosas da História e da consciência.
Numa análise feita por Paulo Freire (1996, p. 143), a globalização é um
momento do desenvolvimento econômico submetido a uma certa orientação política
ditada pelos interesses dos que detêm o poder. Assim, “nivelam-se os patamares de
deveres entre as distintas economias sem se considerarem as distâncias que separam os
‘direitos’dos fortes e o seu poder de usufruí-los e a fraqueza dos débeis para exercer
seus direitos”. Então, o professor deve contemplar a sua prática docente com as
dimensões que se acaba de explicitar, para que esta prática possa ser “competente, no
sentido de colaborar na construção de uma cidadania democrática, de uma sociedade
na qual haja condições para uma vida feliz, uma possibilidade de bem-ser, mais do
bem-estar, para todos” (RIOS, 2001, p. 112). É no sentido de contribuir com a
construção desta competência, que se acredita no valor e na pertinência da Educação
Comparada para estudos desta natureza.
CAPÍTULO II
A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR DAS SÉRIES INICIAIS NO
BRASIL
Figura 3 - Colégio Estadual Sagrada Família
O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em
permanente movimento na História. Paulo Freire (1996, p. 154)
49
2.1 Contextualização
O Brasil caracteriza-se por ser um país de dimensões continentais, e que, por
isso, apresenta uma imensa complexidade em sua organização administrativa. Por isso,
acredita-se ser relevante apontar aqui, de maneira sucinta, a forma como se organiza
enquanto Estado Federativo. Conforme o previsto no Título IV da Constituição da
República Federativa do Brasil, o poder está organizado em três instâncias que são
interdependentes:
- Poder Executivo: exercido pelo Presidente da República auxiliado pelos
Ministros de Estado, tem como função maior a administração federal. Em nível
estadual, este poder é exercido pelo Governador e seus Secretários de Estado e
nos municípios, pelo Prefeito e seus Secretários Municipais ou Chefes de
Departamentos Municipais.
- Legislativo: com a função de elaborar e aprovar as matérias de competência da
União é exercido pelo Congresso Nacional, que é composto pela Câmara dos
Deputados Federais e pelo Senado Federal, casas constituídas de representantes
das 26 Unidades Federativas ou Estados e do Distrito Federal, eleitos
proporcionalmente. Em nível estadual, é exercido pela Assembléia Legislativa,
composta pelos Deputados Estaduais, e nos municípios é exercido pela Câmara
de Vereadores.
- Judiciário: com a função de julgar o cumprimento das leis e os atos do Poder
Executivo é composto pelo Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de
Justiça, Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais, Tribunais e Juízes do
Trabalho, Tribunais e Juízes Eleitorais, Tribunais e Juízes Militares e pelos
Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.
Sendo uma República Federativa, a União, ou Governo Federal, é quem
determina todas as diretrizes que organizam o país. As Unidades Federativas, ou
Estados, e os Municípios, porém, gozam de uma certa autonomia administrativa,
embora em muitos aspectos sejam subordinados ao Poder Federal.
50
Nesta estrutura de poder, vemos então que é do poder Legislativo que emanam
todas as leis do país, inclusive a educacional. Desde sua origem, a legislação do
sistema educativo brasileiro sofre influência de dois pólos: os interesses sociais e os
políticos, que, pela trajetória apresentada, quase nunca coincidem. Isto se confirma
quando se analisa o processo de elaboração das leis da educação, com apresentação de
inúmeros substitutivos e emendas.
A última reforma educativa brasileira, deu-se a partir da implantação da
LDB/96, de 23/12/1996, que ficou durante oito anos tramitando no Congresso
Nacional. Antes, porém, de tratarmos da reforma educativa, entendemos ser
importante apresentar um breve percurso histórico da sistematização da educação no
Brasil e o surgimento das Leis de Diretrizes e Bases da Educação.
Num estudo apresentado por Colombo e Welter (2004, p. 17-19), aponta-se que
a origem das discussões sobre o estabelecimento de diretrizes e bases para a educação
se encontra na Constituição Federal de 1934, a primeira que determinou ser de
competência da União estabelecer estas diretrizes. Em 1942 foram elaboradas as Leis
Orgânicas do Ensino, consideradas a primeira tentativa de sistematizar o ensino
nacional. Em 1946 foi elaborada uma nova Constituição, onde se utiliza pela primeira
vez a expressão “diretrizes nacionais”.
A primeira LDB foi a Lei nº 4.024 de 1961, que ficou tramitando durante 13
anos na Câmara Federal: seu projeto foi encaminhado em 1948. Esta lei foi reformada
por duas outras, que apresentavam características do regime autoritário que vigorava
no país à época. A primeira foi a que instituiu a reforma universitária, Lei nº 5.540/68,
e a segunda foi a Lei nº 5.692/71, que fixou as diretrizes e bases para o ensino de
primeiro e segundo graus. A situação educacional que se configurou a partir das
reformas instituídas pela ditadura militar tornou-se alvo de críticas dos educadores,
que cada vez mais passaram a organizar-se em associações. Sobre a educação neste
período, Aranha (1989, p. 254) afirma:
De fato, desde o golpe de 1964 foram feitos diversos acordos sigilosos, que só vieram a se tornar públicos em novembro de 1966, e que visavam a reforma educacional. São os acordos
51
MEC-USAID (Ministério da Educação e Cultura; United States Agency for International Development), pelos quais o Brasil passa a receber assistência técnica e cooperação financeira para a implantação da reforma. O treinamento de nossos técnicos tinha em vista a adaptação do ensino à concepção taylorista típica da mentalidade empresarial tecnocrática. Daí o planejamento e organização racional do trabalho pedagógico, a operacionalização dos objetivos, o parcelamento do trabalho com a especialização das funções e a burocratização, tudo isso visando melhor eficiência e produtividade.
As críticas se caracterizaram pela preocupação com o significado social e a
política educacional, e também com o aspecto econômico-corporativo. Assim, os
educadores passaram a opinar cada vez mais sobre os rumos da educação nacional.
No final da década de 70 e início da década de 90 desenha-se um contexto de
mudança política que impõe cada vez mais a necessidade de uma modificação total da
educação nacional. Com a promulgação da nova Constituição Federal, em 05/10/1988,
que estabelece ser de competência da União legislar sobre as diretrizes e bases da
educação nacional, inicia-se um grande movimento em torno da nova LDB. Em
dezembro desse mesmo ano, é apresentado um projeto de lei na Câmara Federal.
O processo de discussão e tramitação da nova lei durou cerca de 08 anos, e foi
caracterizado por amplos debates e participação atuante dos órgãos representativos dos
professores (Sindicatos, Associações, entre outros). Muitos projetos, emendas e
substitutivos foram apresentados neste período, com diferentes interesses em jogo e,
como esse é um processo político, considera-se, de acordo com Colombo & Welter
(2004, p. 24-25) que: ... apesar de a LDB aprovada ter absorvido alguns avanços de todo o processo histórico e legislativo (...) ela peca, sobretudo no caráter centralizador que imprime à educação brasileira. (...) Nos primeiros artigos da lei, seus princípios e diretrizes são progressistas e oriundos da contribuição da esquerda nacional. Os artigos que tratam das bases e dos meios (ou seja, do varejo e da prática) são originários de setores conservadores presentes no processo final de elaboração da LDB.
A nova LDB, considerada como a lei maior da educação no país, situando-se
imediatamente abaixo da Constituição Federal no tocante às normativas educacionais,
apresenta um caráter de lei geral, necessitando, por isso, de regulamentações por meio
de legislação específica de caráter complementar. Alguns dispositivos legais de
52
regulamentação foram aprovados antes mesmo da própria LDB; outros que vieram
depois trouxeram alterações ao que já estava previsto no texto legal. Saviani (2000, p.
7) afirma que “... a questão da regulamentação da nova LDB configura uma situação,
no mínimo, curiosa. É que ela não tinha sido ainda aprovada e já estava sendo
regulamentada”. Isto demonstra que a nova legislação não escapa da dupla influência
exercida sobre as anteriores. Configura-se, então, como sendo uma lei que tem caráter
contraditório em vários aspectos, que apresenta ao mesmo tempo possibilidades e
limitações, ou seja, categorias de regulação e de emancipação em contraposição
(VIEIRA, 2000), o que tem contribuído para constantes controvérsias em sua
implementação.
2.2 O sistema de ensino brasileiro
Assim como o país de um modo geral, o sistema de ensino brasileiro também
apresenta uma estrutura um tanto complexa, que julgamos ser importante explicitar
para que se facilite a compreensão dos meandros legais e administrativos da educação.
No Título IV da LDB/96, que trata da organização da educação nacional, está
previsto:
Art. 8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino. § 1º Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais. § 2º Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei.
No artigo 9º da referida lei, que trata das incumbências da União, prevê-se no
parágrafo primeiro que:
(...) § 1º Na estrutura educacional, haverá um Conselho Nacional de Educação, com funções normativas e de supervisão e de atividade permanente, criado por lei. Pode-se perceber, então, duas instâncias administrativas no sistema de ensino
53
brasileiro: a Executiva, exercida pelo Ministério da Educação (MEC), e a Legislativa,
exercida pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Estes dois organismos
deliberam sobre todo o sistema de ensino do país, dando certa autonomia aos sistemas
estaduais e municipais, como se pode perceber no parágrafo segundo do artigo oitavo.
A regulamentação do CNE, feita através da Lei nº 9.131 de 24/11/95, foi uma
das que aconteceram anteriormente à aprovação da LDB. Por essa regulamentação, o
CNE se reduz a um órgão de assessoramento ao MEC, como nos mostra Saviani
(2000, p. 9): “(...) toda e qualquer manifestação do Conselho Pleno e das Câmaras,
para produzir algum efeito sobre a educação nacional, deverá ser homologada pelo
Ministro de Estado da Educação e do Desporto. Infere-se, daí, que o Conselho
Nacional de Educação fica reduzido, na prática, a um órgão assessor do Ministério da
Educação.” Assim, muito do que deve ser regulamentado em relação à nova
legislação, deve passar pelo crivo do MEC.
Apesar de ser considerada uma lei “enxuta”, como se pode perceber em Demo
(2002, p. 10), quando afirma que: “... temos uma lei com número de artigos abaixo dos
100 (92 ao todo). Num país que tem muitas leis para não serem cumpridas, sobretudo
na esfera da educação, falar pouco é garantia de não aumentar as bobagens, além de
fugir das prolixidades usuais nessa parte”, não pode ser considerada uma lei clara.
Apesar de enxuta, por vezes é contraditória em muitos aspectos:
... a LDB não é propriamente inovadora, se entendemos por inovação a superação, pelo menos parcial, mas sempre radical, do paradigma educacional vigente, ou ainda se a entendemos como estratégia de renovação dos principais eixos norteadores. Contém, porém, dispositivos inovadores e sobretudo – para usar o modismo econômico atual – flexibilizadores, permitindo avançar em certos rumos. Tomando um exemplo concreto, ao introduzir a idéia importante de formação superior para os professores básicos, juntamente com a dos institutos superiores de educação e do curso normal superior, não deixa de manter o sistema atual. Assim, para quem não quer mudar, tudo permanece como está. Mas, para quem pretende mudar, abre-se uma avenida promissora. (DEMO, 2002, p. 12).
Dentre as mudanças trazidas no bojo da LDB/96, uma das mais avançadas e
efetivas é relativa à universalização do ensino, quando apresenta uma nova estrutura
para a Educação Básica, expandindo o tempo de escolarização das crianças e jovens
54
brasileiros. O ensino ficou estruturado em dois níveis, conforme o disposto em seu
artigo 21:
Art. 21. A educação escolar compõe-se de: I – educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II – educação superior.
A educação básica está dividida em educação pré-escolar, do zero aos 06 anos,
ensino fundamental, com duração de 08 anos, ensino médio, com duração de 03 anos;
e a educação superior, em dois níveis de formação: a graduação e a pós-graduação. A
graduação, considerada de forma plena, tem duas modalidades: licenciatura e
bacharelado. A licenciatura é destinada especificamente para a função de magistério.
Existem as modalidades tecnólogo, termo usado para o ensino profissional superior; os
cursos seqüenciais por campos de saber abertos a candidatos que atendam aos
requisitos estabelecidos pelas instituições de ensino; e o Normal Superior, que é
destinado à preparação para o magistério em Educação Infantil e para os anos iniciais
do Ensino Fundamental. Os cursos de pós-graduação, destinados àqueles que
necessariamente estão graduados, tem dois níveis: lato sensu e stricto sensu. O lato
sensu é dividido em aperfeiçoamento e especialização, e o stricto sensu é dividido em
mestrado e doutorado.
Dentro da proposta de expansão, a partir da implementação da reforma imposta
pela referida legislação, foi empreendido grande esforço para elevar as taxas de
escolarização da população em idade escolar. Este esforço, aliás, já vinha sendo
empreendido neste sentido e resultados favoráveis se apresentavam desde o
estabelecimento das metas no Plano Decenal de Educação para Todos, que previa
atingir 93% de atendimento da população em idade escolar até 2003. Segundo dados
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), entre 1991 e 1998,
a taxa saltou de 86% para 95,3%, percentual que ultrapassa a meta estabelecida no
Plano Decenal. No entanto, apesar de atingir a quase totalidade na quantidade, o Brasil
apresenta um ensino fundamental caracterizado pela falta de qualidade que pode ser
55
percebida principalmente pela distorção idade/série, fruto das altas taxas de repetência
que sempre marcaram o sistema educacional. O que se constata então, é que apesar do
sucesso no aspecto quantidade, o mesmo não ocorre com relação à qualidade.
Do ponto de vista de sua organização interna, o atual sistema de ensino
brasileiro é resultado de modificações importantes, introduzidas em 1971 (pela Lei nº
5.692/71), em 1988 (com a promulgação da Constituição Federal) e em 1996 (com a
promulgação da LDB/96). Até à década de 70, o ensino dividia-se em quatro níveis
básicos, sendo que o ensino obrigatório restringia-se à escola primária, com duração de
quatro anos. A primeira grande modificação ocorreu em 1971, com a reforma
introduzida pela Lei nº 5.692/71, graças a um movimento de educadores, que ampliou
a obrigatoriedade do ensino para 08 anos, fundindo a escola primária e o ginásio,
denominando este nível de ensino de 1º grau; o antigo colégio passou a se chamar 2º
grau. Unificou-se a terminologia, embora isso não tenha correspondido a uma
organização integrada das oito séries. As quatro primeiras séries continuaram a ser
atendidas por um único professor, cuja formação exigida era a de nível médio para
magistério. As quatro séries finais e o 2º grau continuaram divididos em disciplinas
ministradas por docentes dos quais se exigia a educação superior específica na área.
A segunda grande mudança deu-se pela Constituição de 1988, ao incluir no
sistema educacional a rede de creches, que atende as crianças de zero a três anos. Essa
rede, até então, pertencia ao sistema de assistência social e não ao de educação.
Mesmo pertencendo ao sistema educacional, o censo escolar de 1988 apresentou
informações parciais sobre este setor, porque pesquisou apenas as creches atendidas
em estabelecimentos escolares que também atendem à pré-escola. A exclusão das
creches nas estatísticas educacionais ainda hoje reflete a segmentação da educação
infantil, que não foi superada nem mesmo no texto da nova legislação, como podemos
perceber no artigo 30 da LDB /96:
Art. 30. A educação infantil será oferecida em: I – creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II – pré-escolas, para crianças de quatro a seis anos de idade.
56
A terceira alteração se refere não somente à organização dos diferentes ciclos,
como também à sua denominação. Todo o sistema escolar, das creches até o final do
ensino médio, passou a ser denominado educação básica, com a proposta da expansão
da escolaridade obrigatória em todo este nível de ensino. Em relação à organização,
estabelece em seu artigo 23:
Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não seriados, com base na idade, na competência ou em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar.
Esta abertura dada aos diversos sistemas educacionais, dada a sua autonomia,
para uma organização que não seja a feita em séries ou ciclos também pode causar
sérias dificuldades na questão da formação inicial do professor para os anos iniciais da
educação básica, uma vez que uma organização diferente poderá demandar um
professor também com uma formação diferente da já consagrada.
As alterações apontadas criaram condições de expansão da escolaridade básica,
sendo que a mesma se apresenta também na educação superior, a partir da última
reforma educativa, que trouxe maior flexibilidade a este nível de ensino. Uma das
novidades é a implantação dos cursos seqüenciais, que dão a possibilidade de
formação em nível superior em algumas disciplinas, sem a necessária certificação
como graduação ou tecnólogo. A outra novidade que ajudou a expandir a formação em
nível superior, é a instalação do ensino à distância, que possibilitou o acesso a este
nível de ensino a muitas pessoas que não o tiveram até então, por condições
geográficas ou até econômicas.
Uma das características do ensino brasileiro passa a ser seu caráter
descentralizado, através do qual os municípios e estados apresentam grande
autonomia, sendo-lhes permitido até mesmo a criação e organização de seu próprio
sistema de ensino, independentemente de supervisão estadual ou federal, com total
autonomia. O país apresenta também grande diversidade regional, o que não permite
57
um desenvolvimento uniforme em todas as regiões, sendo que os problemas de acesso,
permanência e sucesso escolar são bem mais sérios nas regiões mais pobres.
Devido a esta natureza descentralizada, o Governo Federal, através do MEC, se
constitui numa instância de coordenação das políticas educacionais, que deve atuar de
forma articulada com as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, uma vez que
é imensa a complexidade existente para que se alcancem metas estabelecidas para a
educação. Esta complexidade não impede, porém, que diversas frentes alternativas
sejam levadas a cabo com o intuito de melhorar a educação nacional. Quando se fala
em expansão da escolaridade, não se pode esquecer da melhoria da qualidade da
educação ofertada à população. Os índices lamentáveis de desempenho de crianças e
jovens brasileiros apresentados nas últimas avaliações realizadas tanto nacionais
(SAEB e ENEM) quanto internacionais (PISA), serviram de alerta a todas as pessoas
envolvidas no processo educativo. Chega-se à conclusão, hoje, que se deve investir
maciçamente na Educação Básica, especialmente nos anos iniciais do ensino
fundamental, muito mais do que vem sendo investido até aqui, e que a questão da
formação dos professores para tais níveis de escolarização são cruciais.
2.3 O lugar das séries iniciais do Ensino Fundamental
O Brasil tem procurado avançar em todos os níveis de ensino. Porém, é no
ensino fundamental que os avanços têm sido mais constantes e continuados, como se
pode perceber pelo grande crescimento do número de matrículas, que em apenas 07
anos, entre 1991 e 1998, apresentou uma taxa de acréscimo de 22,3%, conforme dados
do INEP. Para isso, muito tem contribuído o levantamento anual realizado através do
Censo Escolar, que mostra a capacidade que as redes de ensino têm para atender em
sua totalidade as crianças de 7 a 14 anos.
Esse aumento do número de matrículas no ensino fundamental se dá,
especialmente, pela investida dada pela reforma à questão do financiamento desse grau
de ensino. A nova legislação trouxe, além do aumento percentual de investimentos, a
58
criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de
Valorização do Magistério (FUNDEF)13, com o objetivo de melhor distribuição dos
recursos para este nível de ensino. Numa análise sobre a lei nº 9424 de 24/12/96, que
cria o FUNDEF, Saviani (2000, p. 39) afirma:
Numa apreciação sintética, de caráter conclusivo, cabe observar que, se essas medidas tinham o objetivo meritório de distribuir melhor os recursos tendo em vista o financiamento do ensino fundamental, elas limitaram-se, no entanto, a regular a aplicação dos recursos já vinculados, não prevendo novas fontes de recursos e, além disso, reduzindo a participação financeira da União (...). Como resultado, o custo mínimo por aluno foi fixado em R$ 300,00 (trezentos reais), cifra irrisória comparada com os valores praticados pelos países que lograram generalizar o acesso e a permanência no ensino fundamental. Trata-se, assim, de um patamar que consagra o estado de miséria da educação nacional, evidenciando a precária vontade política do atual governo no enfrentamento dessa questão.
O sistema escolar brasileiro apresenta sérias distorções entre os níveis de
ensino, especialmente no que se refere aos gastos com cada um deles. Conforme dados
do INEP de 1998 (EFA, 2000)14, os investimentos hoje são maiores na educação
infantil e na educação superior, quando se analisam as relações percentuais entre
matrículas e gastos. Fica, então, defasado o ensino fundamental, especialmente no que
se refere à questão da qualidade. Qual seria, então, o papel das séries iniciais do
Ensino Fundamental?
Se as políticas de universalização do atendimento no ensino fundamental,
levadas a cabo pelas três esferas governamentais, produziram resultados positivos,
com o atendimento de mais de 97% da população em idade escolar hoje no país,
segundo dados do INEP, percebe-se que os problemas deste nível de ensino não estão
no acesso, mas nos fatores que dificultam a permanência e a progressão escolar. Tem-
se um quadro onde a análise dos indicadores construídos a partir dos censos escolares
“permite diagnosticar os principais problemas a serem enfrentados: a repetência, da
qual decorrem as defasagens entre idade e série, o inchaço das matrículas e a evasão
13 O FUNDEF é um fundo composto por 15% dos recursos dos próprios Estados e Municípios, além de uma parcela de recursos federais, a título de complementação, que tem o objetivo de assegurar um valor mínimo anual de recursos por aluno, e que deve ser aplicado na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental público e na valorização do seu magistério. 14 O EFA 2000 constitui-se no relatório que os diversos países participantes da Conferência de Jomtien prepararam para demonstrar os resultados alcançados ao final da Década da Educação, instituída na referida Conferência.
59
escolar; as diferenças regionais; e a formação deficiente dos professores” (EFA, 2000,
p. 54).
Estudos indicam que a repetência se constitui em um dos problemas mais
graves do quadro educacional do país. Os alunos passam em média cinco anos na
escola antes de evadirem ou levam cerca de onze anos para concluir as oito séries da
escolaridade obrigatória. Apesar das políticas de universalização e expansão da
escolaridade apresentarem indicadores positivos no aspecto quantitativo, quando se
avalia o desempenho, percebe-se a necessidade de investimentos substanciais para
melhorar a qualidade do ensino e da aprendizagem no ensino fundamental. Como
proposta para essa melhoria, foi elaborado o Plano Nacional de Educação (PNE),
inclusive para atender ao disposto no artigo 87 da LDB/96:
Art. 87. É instituída a Década da Educação, a iniciar-se um ano a partir da publicação desta lei. (...) 1º A União, no prazo de um ano a partir da publicação desta lei, encaminhará, ao Congresso Nacional, o Plano Nacional de Educação, com diretrizes e metas para os dez anos seguintes, em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos. § 2º O Poder Público deverá recensear os educandos no ensino fundamental, com especial atenção para os grupos de sete a quatorze anos e de quinze a dezesseis anos de idade. (...)
Numa análise sobre o PNE, Saviani (2000, p. 82) afirma que:
Uma análise do conjunto do documento nos permite concluir que a proposta de “Plano” limita-se a reiterar a política educacional que vem sendo conduzida pelo MEC e que implica a compressão dos gastos públicos, a transferência de responsabilidades, especialmente de investimento e manutenção do ensino para Estados, Municípios, iniciativa privada e associações filantrópicas, ficando a União com as atribuições de controle, avaliação, direção e, eventualmente, apoio técnico e financeiro de caráter subsidiário e complementar.
No que se refere ao ensino fundamental, o plano propõe o estímulo à
participação da comunidade na manutenção física e na melhoria do funcionamento das
escolas, incentivando o trabalho voluntário. Esta participação é vista como um ponto
positivo, porém limitado, na questão da melhoria da qualidade, pois a mesma está
quase sempre voltada para o incremento da autonomia financeira da escola e para a
60
promoção de um envolvimento participativo dos pais, em sua gestão, por meio dos
conselhos escolares (EFA, 2000).
Porém, numa perspectiva mais global da melhoria aponta que, “na verdade, a
qualidade do ensino depende fundamentalmente, de outras variáveis, tais como a
qualificação dos professores, a qualidade da escola e os conteúdos curriculares” (EFA
2000, p. 98). A qualidade da escola vem sendo buscada através das alternativas
apontadas acima (a participação da comunidade e a criação do FUNDEF), bem como
através de medidas como a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)15
e dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)16.
Em relação à qualificação dos professores, há ainda um longo caminho a ser
percorrido. É em relação a um dos aspectos desta qualificação, a formação inicial do
professor para os anos iniciais do ensino fundamental, que nos deteremos a seguir.
2.4 A formação inicial do professor das séries iniciais do ensino fundamental no
Brasil
Ao fazer uma análise sobre a história da educação no Brasil, Cury (2003)
demonstra a dicotomia existente no sistema de ensino, onde sempre foi atribuída
grande importância à educação superior, considerada como distintivo das classes
dirigentes, e pouca prioridade atribuída à educação fundamental, que é o destino final
das classes populares. Em uma análise histórica sobre a formação docente, o referido
autor aponta que, em 1827, o Brasil teve sua primeira lei de educação, com um caráter
nacional, onde se garantia a gratuidade do ensino primário para os cidadãos, direito
este já previsto na Constituição, e também pressupunha a formação de docentes como
incumbência dos poderes gerais. Apesar disso, por um Ato Adicional, esta formação
15 DCE – as Diretrizes Curriculares Nacionais são as normas legais que referendam o sistema de ensino nas especificidades de cada um dos seus níveis. Constitui-se, portanto, em um documento normativo, emanado pelo CNE. 16 PCN – os Parâmetros Curriculares Nacionais constituem-se em uma coletânea onde se abordam os temas referentes às diversas áreas do conhecimento que deverão estar contempladas na proposta curricular de cada escola do ensino fundamental ou do ensino médio. São referenciais de apoio que foram elaborados e emanados pelo MEC.
61
foi descentralizada para as Províncias, que tomaram a iniciativa de criarem as escolas
normais, que tinham por finalidade a preparação docente para as primeiras letras.
Com a instauração da República, a descentralização continuou, justificada pela
autonomia dos Estados, que criaram então as escolas normais estaduais, que atuavam
independentemente devido à inexistência de um órgão central nacional que as
integrasse. As escolas normais estaduais republicanas buscaram a associação entre o o
quê ensinar e o como ensinar, porém com uma considerável variabilidade formativa. A
consciência da importância de uma base geral comum na formação do magistério
primário foi destacada no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que postulava
uma preparação geral nos estabelecimentos de ensino secundário e a formação do
espírito pedagógico nos cursos universitários, em faculdades ou escolas normais
elevadas ao nível superior e incorporadas às universidades.
A Constituição de 1934 permite mudanças, mas o quadro não se altera
substancialmente, pois os cursos de formação pedagógica apresentavam um caráter
distinto do científico ou profissionalizante apresentado pelos demais cursos. Os cursos
se dariam em centros de formação pedagógica, onde haveria integração entre os
campos de conhecimentos específicos das áreas com aspectos propriamente
pedagógicos, sem a preocupação com a investigação científica.
Em 1946 é criada a Lei Orgânica do Ensino Normal, que previa a formação do
pessoal docente para as escolas primárias. Mesmo a promulgação da Lei nº 4.024/61, a
primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, não trouxe alterações
significativas na formação do educador para o ensino primário. Com as alterações
propostas na Lei nº 5.692/71, houve a possibilidade da passagem da preparação
docente do ensino de 2º grau para o ensino superior, que seria de forma progressiva, e
propiciada, inclusive, pelo aproveitamento de estudos e pelo contato com outros
profissionais e especialistas. O Conselho Federal de Educação (CFE) da época sugeriu
uma revisão da política de formação docente, a partir do estabelecimento de diretrizes
gerais para o conjunto de professores e para os pedagogos em especial.
No final do governo militar (final dos anos 70 e início da década de 80), muitas
62
discussões em torno do fazer pedagógico aconteceram, em encontros e congressos,
dando início a um processo de busca da melhoria da formação docente. No final da
década de 80 foram criados os Centros de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério
(CEFAM)17, em nível de 2º grau. Já na década de 90, a participação do Brasil da
Conferência de Jomtien e algumas iniciativas de governos estaduais, propiciaram o
surgimento de Institutos Superiores voltados para a formação de docentes atuantes nos
anos iniciais de escolarização. Na década de 80 é criado o Comitê Pró-Formação do
Educador, e, em 1990, a Associação Nacional pela Formação de Profissionais da
Educação (ANFOPE), organismos que sempre se caracterizaram pela luta por uma
formação de qualidade em todo o país. Buscando uma compreensão teórica unida à
complexa realidade dos sistemas de ensino, muitas universidades redefiniram seus
currículos buscando a articulação entre a atividade teórica e a atividade prática,
procurando alterar as limitações dos currículos formulados nos anos 70.
Sobre a polêmica e a complexidade da formação de professores, Cury (2003, p.
14-15) afirma que:
Aos problemas vivenciados e sentidos pelos profissionais da educação nos aspectos formativos iniciais ou em exercício, às necessidades de uma formação holística não se tem obtido uma resposta ou respostas que tenham sido convergentes entre educadores e os poderes públicos sejam estes executivos ou normativos.Isto sem falar nos aspectos básicos de carreira, prestígio e valorização salarial (...) este assunto sempre foi polêmico e complexo e tal característica não viria a ser muito diferente junto à nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
A polêmica a que se refere Cury, deve-se ao estabelecido nos artigos 62 e 63 da
LDB/96:
Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal.
17 Os CEFAM nascem como resposta às críticas feitas aos cursos de habilitação para o magistério na vigência da Lei nº 5.692/71 e à queda de matrícula nestes cursos. Foi iniciativa do MEC, por meio das então SEPS/SDE/COES, que visava apoiar técnica, pedagógica e financeiramente os Estados que quisessem fortalecer estes cursos de modo qualitativo (CURY, 2003).
63
Art. 63. Os institutos superiores de educação manterão: I – cursos formadores de profissionais para a educação básica, inclusive o curso normal superior, destinado à formação de docentes para a educação infantil e para as primeiras séries do ensino fundamental; II – programas de formação pedagógica para portadores de diplomas de educação superior que queiram se dedicar à educação básica; III – programas de educação continuada para os profissionais de educação dos diversos níveis.
A possibilidade aberta, no artigo 62 da LDB/96, da formação em nível médio
para a atuação na educação infantil e nas quatro séries iniciais do ensino fundamental,
e a criação dos institutos superiores de educação como instâncias de formação dos
professores da educação básica, criou uma polêmica até hoje não superada no Brasil.
Com relação ao nível de formação, a LDB/96, nas Disposições Transitórias,
estabelece:
Art. 87. É instituída a Década da Educação, a iniciar-se um ano a partir da publicação desta Lei. (...) § 4º Até o fim da Década de Educação somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço.
Percebe-se, então, que há um prazo para que seja propiciada uma formação
adequada aos professores. Porém, o que está em discussão é o fato de que as
disposições transitórias de uma lei não podem se sobrepor às disposições definitivas. A
inevitável confrontação entre estes dois artigos vem causando interpretações confusas
e contraditórias e “evidenciam o teor complexo, polêmico que envolve os diferentes
atores e as atuais iniciativas no campo da formação docente” (CURY, 2003, p.16).
Muitos estudiosos do assunto apresentam posições antagônicas a esse respeito.
Por um lado, temos Demo (2002, p. 50-51) afirmando que:
O Art. 62 trouxe a perspectiva de “nível superior” para os docentes que atuam na educação básica, reforçado com “graduação plena”. Todavia, em parte por realismo, mas, sobretudo sob pressão, continua admitida como “formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental” a atual proposta da Escola Normal de nível médio. Um olhar mais crítico não deixaria de captar nisso uma contradição, porque não é compatível a expectativa de nível superior pleno com uma trajetória apenas média.
64
Sobre essa questão da formação mínima, Brzezinski (2001, p. 159) se posiciona
através do seguinte argumento: Outro motivo para perplexidade é a insistência da atual LDB em admitir como formação mínima para o “exercício de magistério na educação infantil e para as primeiras séries do ensino fundamental o nível médio na modalidade Normal” (art. 62), enquanto as investigações sobre o desenvolvimento infantil comprovam a necessidade de profissionais mais bem preparados, com formação mais aprofundada para atenderem a faixa etária não afeta a abstrações.
Em sua análise sobre a criação dos Institutos Superiores de Educação (ISES),
Silva (1999, p. 01) assinala: ... de forma extremamente breve ou minimalista (...) a LDB 9394/96 simplesmente criou um novo estabelecimento de ensino no âmbito do aparelho escolar brasileiro e, mais precisamente, uma nova agência formadora de professores, que funcionará paralelamente àquelas que já existem, ou seja, a Universidade e, vale lembrar, a ainda popularmente chamada Escola Normal.
Sobre isto, Veiga (1998, p. 87) alerta que “... a legislação, ao criar uma nova
instância de formação de profissionais da educação, estabelece uma estrutura paralela,
fora da ambiência universitária, mas no plano da educação superior”.
Em sua análise sobre os ISES, Demo (2002, p. 51) argumenta: O artigo 63 resgata, todavia, um pouco da rota moderna, ao estabelecer a idéia de “institutos superiores de educação”, para formação de “profissionais para a educação básica, inclusive o curso normal superior” (...) Podemos considerar isso uma inovação fundamental, desde que o curso normal superior, à revelia do artigo anterior, não volte a decair em “licenciaturas curtas”, ou coisas do gênero.
Esta estrutura paralela, fora da universidade, pode levar a uma formação
insuficiente do professor, sendo deixada de lado a formação orientada pela pesquisa,
trazendo algumas conseqüências como as apontadas por Santos (apud VEIGA, 1998,
p. 135), de que “o investimento no conhecimento prático, em detrimento do saber
teórico, certamente levará à formação de um profissional capaz de seguir diretrizes
curriculares, desenvolver propostas que lhe são apresentadas, mas com menos
65
possibilidade de criar projetos, tomar decisões e criticar políticas educacionais”.
No entender de Silva (1999), a formação universitária do professor o capacitará
para uma nova relação com o conhecimento acumulado, fazendo com que assuma a
postura de desconstrutor e construtor de saberes, pela sua relação com os alunos e com
os outros profissionais da escola, sendo tomado como produtor de conhecimento
pedagógico, como pesquisador, ou, enfim, como intelectual.
Antes mesmo da aprovação da LDB/96, Brzezinski (1996) já colocava que,
sobre a criação dos institutos superiores de educação, “tenho restrições a estes últimos
centros de referência de formação, sobretudo, por constituir uma estrutura paralela à
Universidade e, a meu ver, por propiciar um aligeiramento na formação do profissional
da educação, uma vez que pretende preparar tais profissionais em cursos de curta
duração”.
Muitas das polêmicas criadas em torno deste assunto, devem-se ao fato de a
legislação não apresentar um texto claro em relação a esta questão. Esta falta de
clareza gerou uma certa dificuldade até mesmo na regulamentação. O CNE emitiu
várias resoluções regulamentando o Curso Normal Superior, a saber:
- Resolução CNE/CP 02/97 de 26/06/97 – dispõe sobre os programas especiais
de formação de docentes para as disciplinas do Ensino Fundamental, do Ensino
Médio e da Educação Profissional em nível Médio.
- Resolução CNE/CP 01/99, de 30/09/99 – dispõe sobre os Institutos Superiores
de Educação, considerados os artigos 62 e 63 da Lei 9.394/96 e o artigo 9º, § 2º,
alíneas “c” e “h”, da Lei 4.024/61, com a redação dada pela Lei 9.131/95.
- Decreto 3.276/99, de 06/12/1999 – dispõe sobre a formação em nível superior
de professores para atuar na Educação Básica e dá outras providências.
- Decreto 3.554/00 – dá nova redação ao § 2º do artigo 3º do Decreto 3.276 de 06
de dezembro de 1999, que dispõe sobre a formação em nível superior de
professores para atuar na Educação Básica.
- Parecer CNE/CP 009/2001 – Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação
de professores para a Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura,
66
de graduação plena.
- Parecer CNE/CP 027/2001 – dá nova redação ao item 3.6, alínea c, do Parecer
CNE/CP 09/2001, que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
formação de professores da Educação Básica, em nível superior, curso de
licenciatura, de graduação plena.
- Parecer CNE/CP 028/2001 – dá nova redação ao Parecer CNE/CP 21/2001, que
estabelece a duração e a carga horária dos cursos de formação de professores da
Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena.
- Resolução CNE/CP 01/2002 – institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a
formação de professores da Educação Básica, em nível superior, curso de
licenciatura, de graduação plena.
- Resolução CNE/CP 02/2002 – institui a duração e a carga horária dos cursos de
licenciatura, de graduação plena, de formação de professores da Educação
Básica em nível superior.
Todos estes documentos acima indicados produziram considerável doutrina
sobre o enfoque de formação de professores no Brasil. Porém, o grande número de
atos normativos, como se vê, causa confusão e polêmica, o que evidencia a
necessidade de que as regras sejam consolidadas numa só Resolução. Assim, tem-se
agora, tramitando no CNE, um projeto de Resolução que define as regras sobre a
formação de professores para a Educação Básica, além das questões operacionais de
transição.
O que se apresenta no momento, no entanto, é um texto de lei que não tem
condições de, sozinho, acabar com as polêmicas causadas pela dubiedade de
interpretações que proporciona, o que aponta para dois problemas principais, como nos
mostra Demo (2002, p. 51):
a) banalizar a formação inicial em termos de tempo de formação, incidindo de novo em táticas que servem apenas para pagar mal, sem falar em sua desvalorização como profissão menor; se o professor inicial é o profissional mais estratégico dos tempos modernos, não poderia ter uma formação abreviada, sob hipótese alguma, se é absurdo inventar uma licenciatura curta para médico, é mais ainda fazê-lo para o profissional dos profissionais;
67
b) manter os vícios pedagógicos tradicionais, destruindo em seu âmago a inovação esperada; o que é mais comprometedor na esfera pedagógica é, com certeza, sua inconsistência em termos de capacidade de reconstrução do conhecimento, com qualidade formal e política; por conta disso, não se alcança manejar conhecimento de modo adequado, fazendo-se muitas vezes instâncias de resistência à inovação.
Hoje é discurso corrente que uma educação básica de qualidade é o diferencial
para o desenvolvimento dos povos. Desse modo, faz-se necessário repensar o curso
normal superior, para que supere os moldes dos cursos de formação que vêm sendo
apresentados, uma vez que há, entre o perfil de professor que a realidade criou até
agora, e aquele exigido pela realidade contextual como ideal, uma grande distância.
Assim, tem-se, para além dos conflitos legais, um referencial e uma proposta
curricular que busca atingir esse ideal, como se verá a seguir.
2.5 Referenciais para a formação de professores
De acordo com o que se viu até aqui, pode-se perceber a necessidade de não
apenas realizar melhor a formação, mas também de realizá-la de maneira adequada e
condizente com a realidade brasileira, que se caracteriza por ser complexa e
heterogênea, não permitindo um processo de formação linear, simples e único. Deve-
se dar atenção às desigualdades regionais, que apresentam ainda diversas necessidades
no tocante à formação: formação e titulação em serviço, de professores leigos;
reformulação da formação em nível médio nas localidades onde não puder ser atendido
o preceito legal de formação em nível superior de imediato; universalização gradual da
formação em nível superior para todos os professores da educação infantil e das séries
iniciais do ensino fundamental.
A formação inicial em nível superior é fundamental; porém, por si só, não é
garantia de qualidade. Uma educação que se pretende de qualidade precisa contribuir
para a formação de cidadãos capazes de responder aos desafios colocados pela
realidade para nela intervir. Com relação à finalidade da educação nacional, a LDB/96
estabelece em seu artigo 2º:
68
Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
O papel do professor é relevante na formação dos alunos, por isso há urgência
de uma formação adequada ao exercício profissional, uma vez que as últimas
pesquisas de desempenho dos alunos do ensino fundamental demonstram que a escola
brasileira não está cumprindo adequadamente sua tarefa. No entanto, não se pode
responsabilizar somente os professores pela insuficiência das aprendizagens dos
alunos, uma vez que há um conjunto de fatores que podem levar a esse insucesso. Um
destes fatores é a sua formação deficitária, que não lhe permitirá garantir o
desenvolvimento das capacidades imprescindíveis para que seus alunos conquistem
não só o sucesso escolar, mas condições de participação social num mundo cada vez
mais exigente sob todos os aspectos.
Assim, a definição de diretrizes para a formação profissional do professor tem
um papel fundamental na tarefa de identificar as tarefas próprias da educação escolar.
Estas diretrizes já estão postas na LDB/96, que estabelece em seu artigo 13:
Art. 13. Os docentes incumbir-se-ão de: I – participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II – elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; III – zelar pela aprendizagem dos alunos; IV – estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; V – ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; VI – colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade.
A formação de professores deve levar em conta, além das incumbências postas
pela lei, as demandas pelo acesso, permanência e sucesso e pela melhoria da qualidade
da educação escolar de crianças e jovens e as especificidades do trabalho profissional
do professor. Assim, a preparação do professor deve levar em conta o atendimento das
demandas de um exercício profissional específico, não podendo ser uma formação
69
genérica e nem apenas acadêmica. A aquisição das competências requeridas de um
professor deverá ocorrer mediante uma ação teórico-prática, e que envolva as
dimensões técnica, política, ética e estética (RIOS, 2001). A formação necessita, então,
possibilitar o desenvolvimento do professor como pessoa, como profissional e como
cidadão.
Nesse sentido, “é importante que a instituição de formação inicial se empenhe
numa reflexão contínua tanto sobre os conteúdos como sobre o tratamento
metodológico com que estes são trabalhados, em função das competências que se
propõe a desenvolver, já que as relações pedagógicas que se estabelecem ao longo da
formação atuam quase sempre como currículo oculto” (Referenciais para a Formação
de Professores, 2002, p. 68). As funções e competências necessárias aos professores
para garantir uma educação de qualidade, já estabelecidas na LDB/96, devem estar
explicitadas e serem contempladas nos currículos de formação de professores.
O conhecimento profissional do professor, que se constitui por um conjunto de
saberes teóricos e experienciais e que não pode ser confundido com uma somatória de
conceitos e técnicas, deve favorecer o exercício autônomo e responsável das funções
profissionais, ou seja, construir competências adequadas ao atendimento de demandas
e desafios da realidade contextual.
O Parecer CNE/CP 9/2001 normatiza as exigências formativas da formação de
professores, estabelecendo uma formação que atinja todas as atividades teóricas e
práticas articuladas em torno de eixos. A partir da aprovação do referido Parecer e das
conseqüentes Resoluções CNE/CP 01/2002 e CNE/CP 02/2002, o MEC editou o
documento chamado Referencial para Formação de Professores (RFP), com a
finalidade de levar as instituições responsáveis pela formação de professores a uma
reflexão sobre esta formação, e também para servir como subsídio para as necessárias
transformações nas políticas de formação.
Neste documento, determina-se que o conhecimento profissional deve ser
organizado em cinco âmbitos, os quais devem estar contemplados nos currículos de
formação:
70
- Conhecimento sobre crianças, jovens e adultos;
- Conhecimento sobre a dimensão cultural, social e política da educação;
- Cultura geral e profissional;
- Conhecimento pedagógico;
- Conhecimento experiencial contextualizado em situações educacionais.
Embora já tenham sido estabelecidas as Diretrizes para os Institutos Superiores
de Educação18, que são obrigatórias para o conjunto da formação de docentes, estas se
constituem em normas gerais e não em um currículo mínimo, o que propicia abertura
para as Instituições formadoras na elaboração de seus currículos. Assim, as diferentes
instituições que trabalham com a formação de professores têm produzido diferentes
experiências e conhecimentos sobre o assunto, configurando uma nova forma de
compreender e atuar na educação, uma vez que todos estes documentos são, de certa
forma, flexíveis, e apontam objetivos amplos a serem atingidos, abrindo a
possibilidade de que inúmeros currículos com diferentes perspectivas de formação
estejam hoje sendo efetivadas nas instituições de formação.
2.6 A prática pedagógica nos cursos de formação inicial para as séries iniciais do
Ensino Fundamental
Uma das prerrogativas na aquisição das competências requeridas do professor,
estabelecidas nos RFP, é a de que ela deverá ocorrer mediante uma ação teórico-
prática. As situações do cotidiano educativo ajudam a construir um conhecimento
embasado na experiência e na realidade articulado com uma reflexão sistemática sobre
as mesmas. Isso não prescinde o conhecimento teórico, pelo contrário, para se refletir
sobre a realidade é necessária a utilização dos referenciais teóricos.
Sobre isto, encontra-se respaldo em Kullok (2000, p. 115), que afirma:
Defendemos, portanto, que a formação do professor passe, necessariamente, pela escola – lugar onde se trabalha – e pela licenciatura – lugar onde se forma; no entanto, não acreditamos ser possível distinguir o lugar da prática e o lugar da teoria como dois loci estanques,
18 Estabelecidas pelos Parecer CP 115/99 e pela Resolução CNE/CP 1/99.
71
desarticulados, mas entendemos o lugar da formação como o espaço onde a ação pedagógica é refletida criticamente.
A despeito da importância da prática, porém, a realidade presente no sistema de
formação de professores do Brasil apresenta aspectos preocupantes, como afirmam
Lüdke e Moreira (2002, p. 65): “sua preparação se concentra em um conjunto de
disciplinas teóricas, com uma exígua introdução à pratica docente, que se poderia
paradoxalmente chamar de uma prática teórica, pois se reduz em geral, por parte do
estudante, futuro mestre, a uma série de observações do trabalho docente, em alguma
escola da rede, com a responsabilidade por ministrar algumas delas”.
O estabelecimento de um eixo articulador das dimensões teóricas e práticas é
necessário para que, na matriz curricular dos cursos de formação, a prática não fique
reduzida a um espaço isolado, onde o estágio seja algo fechado em si mesmo e
desarticulado do restante do curso. Assim, de acordo com o previsto nos documentos,
o planejamento dos cursos de formação deve prever situações didáticas em que os
futuros professores coloquem em uso os conhecimentos adquiridos ao mesmo tempo
em que mobilizam outros, de diferentes naturezas e de diferentes experiências, em
diferentes tempos e espaços curriculares, como os indicados a seguir:
- No interior de todas as disciplinas que constituem o currículo e não apenas das
disciplinas pedagógicas, pois todas têm sua dimensão prática, que deve estar
sendo permanentemente trabalhada tanto na perspectiva da sua aplicação no
mundo social e natural quanto na perspectiva da sua didática;
- Em tempo e espaço curricular específico, com atividades de atuação coletiva e
integrada dos formadores, que devem transcender o estágio e que se articulem
numa perspectiva interdisciplinar, com ênfase nos procedimentos de observação
e reflexão para compreender e atuar em situações contextualizadas;
- Nos estágios a serem realizados nas escolas de educação básica, que é
obrigatório e deve ser vivenciado ao longo de todo o curso de formação e com
tempo suficiente para abordar as diferentes dimensões da atuação profissional.
Deve acontecer desde o início do curso, culminando em seu final com a
72
docência compartilhada supervisionada pela instituição de formação. Para isso,
é necessário um projeto de estágio planejado e avaliado conjuntamente pela
instituição formadora e pelas escolas campos de estágio, o que pressupõe a
existência de relações formais entre as mesmas.
Esta relação entre teoria e prática, então, pode acontecer de muitas maneiras na
formação docente. Como exposto no Parecer CNE/CP 9/2001 (p. 22), “uma
concepção de prática mais como componente curricular implica vê-la como uma
dimensão do conhecimento, que tanto está presente nos cursos de formação nos
momentos em que se trabalha com a reflexão sobre a atividade profissional, como
durante o estágio nos momentos em que se exercita a atividade profissional”.
Assim, pode-se perceber a diferença conceitual entre a prática como
componente curricular e a prática de ensino como estágio obrigatório, definida na
LDB/96, em seu artigo 65: Art. 65. A formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no mínimo, trezentas horas.
A prática como componente curricular deve estar planejada no projeto
pedagógico e deve se dar durante todo o processo de formação, em articulação com as
atividades de trabalho acadêmico e com o estágio supervisionado, constituindo-se em
um movimento contínuo entre saber e fazer na busca de significados na gestão,
administração e resolução de situações próprias do ambiente da educação escolar. O
estágio supervisionado se caracteriza por ser um tempo de permanência do aluno em
formação em uma instituição escolar, sob a responsabilidade de um profissional já
habilitado.
Apesar de todas as orientações emanadas pelos órgãos administrativos e
normativos do sistema educacional, no modelo ainda vigente em muitos cursos de
formação docente, o aluno tem, no início de sua formação uma visão distanciada da
realidade vivida na sala de aula, adquirindo apenas conhecimentos teóricos que serão
trabalhados posteriormente no estágio supervisionado. A proposta apresentada e que
73
vem sendo colocada em prática por algumas instituições, busca uma formação que
leve ao domínio das relações que se estabelecem no trabalho pedagógico desde o
início da formação.
A despeito de todas as discussões e polêmicas criadas a partir dos aspectos
legais em relação à formação inicial dos professores das séries iniciais do Ensino
Fundamental, endossamos as palavras de Kullok (2000, p. 119) quando afirma: A questão da formação de professores tem sido um grande desafio para as políticas educacionais. Não adianta criar cursos dessa ou daquela natureza, com essa ou aquela estrutura ou falar em insumos para a educação, se não se pergunta, nenhuma vez, quem serão essas pessoas, os professores que responderão por essa formação e em que condições farão isso. Há aspectos do cotidiano escolar que escapam a qualquer legislação e cujo aprimoramento e transformação dependem inteiramente de quem faz educação nas salas de aula.
Assim, acredita-se que a prática pedagógica na formação inicial de professores,
como preparação profissional, tem um importante papel na organização desta
formação, por representar a qualidade na escolarização, cada vez mais necessária em
nosso país. Sabe-se que existe, ainda, um longo caminho a percorrer nesta matéria,
tendo-se em vista que, apesar de nas DCN estarem apontadas algumas direções, nos
RFP o que se encontra são apenas reflexões acerca da necessidade do que é chamado
neste documento de “conhecimento experiencial”, e não direções definidas a serem
percorridas.
CAPÍTULO III
A FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR DO 1º CICLO EM PORTUGAL
Figura 4 - Escola Superior de Educação - Viseu
Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar.
Paulo Freire (1996, p. 136)
75
3.1 Breve histórico
Em breve histórico sobre a formação da profissão docente em Portugal, Nóvoa
(1995a) coloca que a profissão de professor se constituiu graças à substituição da
Igreja pelo Estado na tutela do ensino. Esta mudança no controle da ação docente se
deu de forma específica em Portugal, pela precocidade das dinâmicas de centralização
do ensino e de funcionarização do professorado. Os reformadores portugueses do final
do século XVIII sabiam que a criação de uma rede escolar demandaria em progresso.
Durante o século XIX consolida-se uma imagem do professor que cruza o magistério
docente, o apostolado e o sacerdócio com a humildade e a obediência dos funcionários
públicos, além impregnar a profissão docente “de uma espécie de entre-dois, que tem
estigmatizado a história contemporânea dos professores: não devem saber de mais,
nem de menos; não devem se misturar com o povo, nem com a burguesia; não devem
ser pobres, nem ricos; não são (bem) funcionários públicos, nem profissionais, etc” (p.
16).
Desde a primeira metade do século XIX os professores foram submetidos a um
controle rigoroso do Estado, com a implantação de mecanismos de seleção e
recrutamento de professores. Porém, quando houve necessidade de se lançar as bases
do sistema educativo atual, a formação de professores passou a ocupar lugar de
destaque, constituindo-se o ensino normal como um dos lugares privilegiados de
formação docente, desde meados do século XIX.
Nas décadas da mudança do século XIX para o século XX, passam a
confrontar-se visões e projetos distintos da profissão docente: o primeiro, do Estado,
que investiu na formação mantendo mecanismos de controle, através da presença nas
escolas normais e de supervisão da atividade docente; e, o segundo, dos professores,
que reivindicavam uma maior autonomia profissional no contexto pedagógico e
científico da época. As escolas normais, então, mesmo sendo instituições criadas pelo
Estado para controlar um corpo profissional que ganha cada vez mais importância com
a escolarização de massas, tornam-se “um espaço de afirmação profissional, onde
emerge um espírito de corpo solidário” (NÓVOA, 1995a, p. 16).
76
Durante a Primeira República criou-se um conflito em torno da profissão
docente, que teve início já no final da Monarquia e durou até a fase inicial do Estado
Novo. O Estado tinha um projeto de “formar um homem novo”, concedendo aos
professores um importante papel simbólico, dando maior prestígio, qualificação e
autonomia; porém não podia abdicar de uma intervenção persistente. Passa, assim, de
um controle administrativo para um controle ideológico fazendo surgir inúmeros
conflitos no seio das escolas normais, e trazendo “no seio da educação correntes de
origem diversa que pugnam por uma maior autonomia dos professores, no quadro da
afirmação de um profissionalismo docente” (NÓVOA, 1995a, p. 17).
No período do Estado Novo, após muitas tentativas frustradas de reformar as
escolas normais republicanas, Nóvoa (1995a, p. 18-19) afirma que se decidiu:
(...) pura e simplesmente encerrá-las: primeiro, em 1930, as Escolas Normais Superiores, que não voltariam a abrir; depois, em 1936, as Escolas Normais Primárias, que reabririam na década de 40 completamente modificadas. Até os anos 60 o Estado Novo manteve uma atitude de suspeição em relação à formação de professores, sofisticando os mecanismos de controlo ideológico no acesso e no exercício da actividade docente.
Na década de 60, Portugal aparece em último lugar nos indicadores
educacionais europeus. Juntamente com este fator, estavam ocorrendo mudanças
econômicas e sociais, o que obrigou o governo a dar maior atenção à questão
educativa. Com a política de expansão da escolarização, assistiu-se a uma abertura no
acesso à atividade docente19, que levaram a uma crise de identidade no seio da
profissão docente.
A década de 70 ficou marcada pelos esforços de implantação de uma rede de
formação inicial de professores no seio das Universidades e das Escolas Superiores de
Educação, e também por iniciar o debate atual sobre a formação de professores.
Segundo Nóvoa (1995a, p. 21):
O essencial das referências teóricas, curriculares e metodológicas, que inspiraram a construção recente dos programas de formação de professores, datam deste período. A vários títulos, pode
19 Em vinte anos, o número de lugares docentes em Portugal triplicou, passando de cerca de 45.000 em 1964/65 para cerca de 90.000 em 1974/75 e para cerca de 140.000 em 1984/85 (NÓVOA apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992, p. 61).
77
mesmo argumentar-se que a reflexão em torno da formação de professores cristalizou nesta altura, tendo havido em seguida uma renovação muito limitada de abordagens e de problemáticas.
Na seqüência da Revolução de 1974, as Escolas do Magistério Primário
sofreram profundas transformações, confirmando o papel decisivo que a formação de
professores ocupa na produção de novas regulações sociais e políticas. A lógica da
supervisão estatal exercida sobre as Escolas de Magistério Primário prolongou-se no
lançamento do projeto das Escolas Superiores de Educação, que teve apoio do Banco
Mundial.
Paralelamente, desenvolveram-se programas universitários de formação de
professores. As universidades, mesmo desempenhando um papel importante no
desenvolvimento de uma comunidade científica na área da educação, depararam-se
com várias resistências, provenientes tanto dos setores conservadores quanto dos
setores intelectuais. Os conservadores continuavam a olhar com reservas a formação
de professores, e os setores intelectuais valorizavam apenas os aspectos acadêmicos da
formação de professores. Nóvoa (apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992, p. 61) afirma
que “por detrás destas resistências perfila-se sempre o receio da constituição de um
corpo profissional docente, prestigiado e autônomo”.
Tal como no início dos anos 60, na década de 80 o tema da reforma educativa
voltou a ser central a nível mundial. Na década de 60, os objetivos da reforma
centravam-se na redução das desigualdades sociais, buscando assegurar maior eficácia
dos sistemas educativos. Devido à democratização e expansão da escolaridade, “o
ministério viu-se obrigado a recrutar docentes ainda antes de terem concluído os seus
cursos, isto é, não só sem preparação profissional, mas também com preparação
acadêmica incompleta: os chamados ‘professores provisórios’” (ALARCÃO apud
MENEZES, 1996, p. 36).
Para remediar a situação, instituíram-se três tipos de programas:
profissionalização em exercício, formação em serviço e profissionalização em serviço,
os quais não apresentaram inovações nem do ponto de vista organizativo e curricular,
nem do ponto de vista conceitual. Revestiram-se de importância quantitativa e
78
estratégica para o sistema educativo, acentuando porém uma visão degradada e
desqualificada dos professores, além de acentuar o papel do Estado no controle da
profissão docente (NÓVOA, 1995a, p. 21).
Esta situação estabilizou-se na seqüência da aprovação da LBSE 46/86, que,
segundo Teodoro (1995), resulta de um compromisso no plano político, devido às
novas condições de uma sociedade democrática e aos novos desafios resultantes da
integração de Portugal na Comunidade Européia. Resulta também de um compromisso
no plano técnico, em especial no campo da formação de professores, onde as soluções
previstas são o resultado de uma sobreposição de diferentes projetos e concepções,
devido ao amplo confronto e debates intensos entre as propostas apresentadas pelos
diferentes partidos.
Se a década de 70 ficou marcada pelo signo da formação inicial dos professores
e a década de 80 pela profissionalização em serviço, os anos 90 caracterizaram-se pela
formação continua (NÓVOA apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992). A LBSE
considerou natural a dimensão universitária na formação inicial de professores, que já
vigorava após o encerramento das Escolas de Magistério Primário, as quais foram
substituídas pelas Escolas Superiores de Educação. Esta dimensão universitária acaba
sendo incorporada também à formação contínua, por esta ser atribuída aos
estabelecimentos de ensino superior responsáveis pela formação inicial. A formação
de professores em nível superior vem do reconhecimento da importância de uma
formação sólida para os professores a ser feita em instituições que têm por missão
integrar a formação, a investigação e a intervenção social de nível superior.
(ALARCÃO apud MENEZES, 1996, p. 43).
3.2 A formação inicial do professor do 1º ciclo a partir da LBSE 46/86
Para contextualizar a situação da formação inicial dos professores do 1º ciclo da
Educação Básica (ou professores de turma), acreditamos ser importante apresentar a
estrutura do atual sistema educativo português, definida pela LBSE: educação pré-
escolar, dos 3 aos 5 anos; ensino básico e obrigatório, com duração de nove anos, dos
79
6 aos 15 anos de idade, dividido em três ciclos (1º ciclo, de quatro anos; 2º ciclo, de
dois anos e 3º ciclo, de três anos); ensino secundário, com duração de três anos, com
cursos diversificados, nas áreas tecnológica, geral e profissional; e ensino superior, no
qual se situa a formação de professores, que pode ser politécnico (concede os graus
acadêmicos de bacharelado e licenciatura), ou universitário (além de bacharelado e
licenciatura, concede os graus acadêmicos de mestrado e doutoramento).
Com relação à organização do Ensino Básico, estabelece no artigo 8º:
Artigo 8º - Organização 1 – O ensino básico compreende três ciclos seqüenciais, sendo o 1º de quatro anos, o 2º de dois anos e o 3º de três anos, organizados nos seguintes termos: a) No 1º ciclo, o ensino é globalizante, da responsabilidade de um professor único, que pode ser coadjuvado em áreas especializadas; (...) 3 – Os objectivos específicos de cada ciclo integram-se nos objectivos gerais do ensino básico, nos termos dos números anteriores e de acordo com o desenvolvimento etário correspondente, tendo em atenção as seguintes particularidades: a) Para o 1º ciclo, o desenvolvimento da linguagem oral e a iniciação e progressivo domínio da leitura e da escrita, das noções essenciais da aritmética e do cálculo, do meio físico e social, das expressões plástica, dramática, musical e motora. (...)
A LBSE dedica o Capítulo IV aos Recursos Humanos, onde no artigo 31º
define a formação inicial dos educadores de infância e dos professores dos ensinos
básico e secundário, estabelecendo:
Artigo 31º - Formação inicial de educadores de infância e de professores dos ensinos básico e secundário 1 – Os educadores de infância e os professores dos ensinos básico e secundário adquirem a qualificação profissional através de cursos superiores que conferem o grau de licenciatura, organizados de acordo com as necessidades do desempenho profissional no respectivo nível de educação e ensino; 2 – O Governo define, por decreto-lei, os perfis de competência e de formação de educadores e professores para ingresso na carreira docente. 3 – a formação de educadores de infância e dos professores dos 1º, 2º e 3º ciclos do ensino básico, realiza-se em estabelecimentos de ensino universitário. (...)
O professor do 1º ciclo, conhecido também por professor de turma, é habilitado
a lecionar todos os componentes curriculares desse ciclo. Sua formação realiza-se em
Escolas Superiores de Educação (ESEs), que substituíram as Escolas Normais, e estão
80
integradas no ensino superior politécnico. As universidades podem qualificar
profissionalmente para a docência em todos os níveis e áreas da educação. Esta
formação em nível superior criou em Portugal um fenômeno chamado de
“universitarização” da formação de professores, que, segundo Campos (2002, p. 64),
corresponde a várias mudanças nas políticas públicas relativas a este assunto, das quais
destaca:
- a garantia da formação em nível superior a todos os professores, em cursos que
concedem grau acadêmico;
- a organização, pelas instituições de ensino superior, de cursos que garantem a
formação em todos os componentes que a preparação para o exercício docente
exige, ou seja, a profissionalização da formação;
- a unificação da formação, ou seja, formação em nível superior, que conduzem a
um grau acadêmico. E ainda, apesar da diversidade de qualificações docentes, a
existência de um tronco comum a todos os cursos que preparam para estas;
- o aumento da duração dos cursos, sobretudo dos cursos de formação inicial dos
professores do 1º ciclo, que, a partir de 1998, passou a ter quatro anos. O
objetivo é a melhor preparação científica nas disciplinas do saber subjacentes
ao currículo deste nível de ensino;
- o afastamento da administração pública da educação em relação à
responsabilidade direta na formação de professores.
O referido autor coloca ainda, como vantagens da universitarização: o fim da
dualidade, ainda existente na profissão docente, entre os professores de turma e os
professores de disciplinas; a aproximação da formação de professores à de profissões
mais antigas e prestigiadas; a melhor preparação científica nas disciplinas da docência,
de formação educacional e didática, teórica e prática; maior aproximação da formação
para a docência com a investigação dos contextos e processos de ensino e de
aprendizagem.
Sobre a criação das ESEs e dos cursos de formação de professores nas
universidades, criaram-se polêmicas, que Alarcão (apud MENEZES, 1996, p. 43) nos
mostra:
81
Se a contextualização dos cursos de formação de professores em escolas exclusivamente organizadas para esse fim, as ESEs, criadas nos anos 80 e integradas na rede do ensino superior politécnico, para substituição das antigas Escolas do Magistério Primário, de nível médio não foi isenta de alguma polêmica por se recear uma teorização da formação, não o foi igualmente a criação de cursos de formação de professores nas universidades, mas aqui por razões diferentes. A par de docentes impulsionadores dessa inovação, considerada relevante para as necessidades do país, opunham-se – e opõem-se ainda – os defensores de uma universidade cuja missão consiste em construir e divulgar o saber numa perspectiva de cultura. Argumentava-se, e argumenta-se ainda, que não compete à universidade profissionalizar ninguém, mas apenas proporcionar aos cidadãos conhecimentos que aplicarão e adaptarão à profissão que vierem a escolher.
Na segunda metade da década de 90, a preocupação com um ensino de massas
de qualidade, cria novas exigências à formação de professores. Campos (2003, p 7),
afirma que: Embora as mudanças ocorridas no período anterior tenham contribuído significativamente para resolver as questões quantitativas da formação de professores, começaram a surgir dúvidas quanto à semelhança qualitativa das qualificações que as diferentes instituições asseguravam para a mesma docência e quanto à adequação das mesmas às exigências do desempenho docente, dúvidas acrescidas com os novos desafios que o ensino de qualidade de massas levantava. A concorrência entre as instituições de formação, devida à progressiva diminuição da procura de professores por parte do sistema de ensino e dos estudantes que ingressam no ensino superior, fez com que elas próprias começassem a fazer-se eco destas dúvidas.
Assim, surgiram novas políticas de reconhecimento de habilitações para a
docência, com a criação do sistema para acreditação dos cursos de formação inicial de
professores da educação básica, através do Decreto-Lei nº 194/99, de 07 de junho.
Muitos foram os fatores que fizeram surgir o sistema de acreditação de cursos
de formação de professores, dentre os quais Campos (2002) destaca:
a) a massificação e a privatização rápidas do ensino superior, juntamente com a
maior autonomia na criação e desenvolvimento de cursos, o que poderia causar
assimetrias entre os mesmos;
b) o aparecimento de indícios de uma deficiente preparação profissional de seus
diplomados, que levantou dúvidas sobre a adequação da qualificação
assegurada pelo ensino superior com as exigências do desempenho docente;
c) a disparidade entre a oferta e a procura de professores e de cursos de formação,
levando a um declínio na qualidade destes cursos, e a preocupação política com
82
um ensino de qualidade, implicando novas exigências para o desempenho e
qualificação profissional dos professores.
Estes e outros fatores levaram à necessidade de regulação do processo de
reconhecimento de qualificações para o desempenho docente. Assim, o processo de
desenvolvimento do sistema de acreditação contou com ampla participação dos setores
envolvidos com a formação de professores, através de debates públicos e colóquios,
com a divulgação dos textos daí resultante na home page da entidade acreditadora e
em cadernos publicados por uma editora comercial.
Inicialmente, a entidade responsável pelo processo de acreditação era o Instituto
Nacional de Acreditação da Formação de professores (INAFOP), criado pelo Decreto-
Lei nº 2990/98, de 17 de setembro, que caracterizava-se por ser uma entidade pública
independente criada pelo Governo com delegação de competência para acreditar
cursos de forma independente, não cabendo recurso das suas decisões para o Governo.
O INAFOP era dirigido por um Conselho Geral onde estavam representados as
instituições de formação, os professores de educação básica e do ensino secundário, os
pais e alunos destes níveis de ensino, os empregadores públicos e privados dos
professores, os departamentos do Ministério da Educação, os alunos em formação e as
empresas. Os membros do Conselho Geral eram nomeados pelas instituições que
representavam e o presidente pelo Conselho de Ministros, cabendo a esse Conselho
Geral designar a Comissão de Acreditação, que era composta por individualidades de
reconhecida competência, que tinham por incumbência avaliar as candidaturas e dar
parecer a título individual.
O objetivo desta autonomia da entidade acreditadora era o de dar credibilidade
ao processo, tendo em vista que a auto-acreditação não tem sentido, e se a mesma
ficasse sujeita a critérios políticos e às pressões subjacentes a ele, deixaria de ter o
caráter científico, pedagógico e profissional para os quais havia sido criada. Para a
avaliação dos cursos foram estabelecidos alguns critérios, que foram designados de
Padrões de Qualidade da Formação Inicial de Professores e que referiam-se aos
objetivos e resultados dos cursos, aos processos para a implementação desses
objetivos, aos atores responsáveis por estes processos e aos recursos necessários para
83
que se atingissem os objetivos, ou seja, referiam-se a princípios de desenvolvimento
do currículo de formação de professores, tendo em vista a autonomia das instituições
de formação no estabelecimento dos princípios de seus currículos.
Em uma posição contrária ao INAFOP, Afonso (apud CATANI & OLIVEIRA,
2000, p. 34-35) afirma:
(...) também parece politicamente paradoxal que tenha sido este Governo (socialista) a dar o aval decisivo para o retorno conservador aos exames nacionais, bem como a impulsionar a criação de uma agência nacional de acreditação da formação de professores que parece estar a encaminhar-se no sentido de regular um campo profissional à custa da interferência na autonomia universitária e à custa da desvalorização das componentes das ciências da educação. Esta última decisão, aliás, é ainda mais incompreensível pelo facto de ter sido este mesmo Governo a tomar a iniciativa de propor à Assembléia da República a revisão da Lei de Bases do Sistema Educativo de modo a incluir uma das mais importantes e progressistas medidas de política educativa dos últimos anos: a consagração do grau de licenciatura (grau, em Portugal, superior ao bacharelato) como requisito mínimo para o exercício profissional dos educadores e professores de qualquer nível do sistema educativo.
Com a eleição de um novo Governo, o INAFOP foi extinto pela Lei nº 16-
A/2002, de 31 de maio, com a justificativa de que havia necessidade de diminuir as
despesas públicas. Assim, as competências de acreditação foram atribuídas a uma
Direção-Geral do Ministério da Educação. Em uma defesa para a continuidade do
processo de acreditação, Campos (2003, p. 24) argumenta:
De facto, a acreditação pode constituir uma ameaça a interesses corporativos, laborais e econômicos que, a pretexto da defesa de valores do interesse público, são assim protegidos. O importante é que o Ministério, a quem cabe defender o interesse público, nomeadamente o da qualidade da educação básica e do ensino secundário, também exerça o seu poder; tanto mais que a profissão, nesta matéria, não o consegue exercer de modo eficaz.
O objetivo da formação inicial é o de proporcionar aos professores a
informação, os métodos e as técnicas científicos e pedagógicos de base, bem como a
formação pessoal e social adequada ao exercício da função docente. De acordo com a
LBSE, a qualificação profissional para a docência deve corresponder às necessidades
do desempenho profissional, cabendo ao Governo definir os perfis de competência e
de formação de educadores e professores para o ingresso na carreira docente, uma vez
que nesta matéria a lei apresenta apenas uma definição global. A definição dos perfis,
84
então, se constitui em matéria de grande importância no desempenho profissional do
professor.
3.3 Os perfis de desempenho profissional
O acesso ao curso de formação inicial de professores pode ser feito a partir de
qualquer curso do ensino secundário concluído com aproveitamento. Como
conseqüência, a formação de base dos alunos do 1º ano é variada, tornando difícil a
organização e a gestão curriculares. Uma preparação fraca em qualquer uma das áreas,
obviamente vai trazer reflexos na formação dos seus futuros alunos.
Assim, o principal desafio que se apresenta para as instituições formadoras é o
de construir ou aprofundar uma cultura de formação do professor como profissional de
um ensino com novos objetivos e modos de organização. Às Instituições de formação
compete a definição dos objetivos dos cursos, a organização e o desenvolvimento do
ensino, da aprendizagem e da avaliação dos seus alunos, e ainda a certificação da
habilitação profissional, e à instituição de acreditação compete ajuizar e reconhecer o
curso que confere habilitação geral para a docência.
Para tanto, as mesmas devem se valer do estabelecido pelo Decreto-Lei nº
240/2001, de 30 de agosto, que definiu o perfil geral de desempenho profissional do
educador de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário, fixado pelo
extinto INAFOP. Juntamente com este Decreto, foi aprovado, no mesmo dia, o
Decreto-Lei nº 241/2001, de 30 de agosto, que estabeleceu os perfis específicos de
desempenho profissional do educador de infância e do professor do 1º ciclo do ensino
básico.
O perfil estabelecido no referido decreto busca responder aos novos desafios
colocados à formação inicial, decorrentes de algumas mudanças ocorridas na educação
básica e secundária em Portugal nos últimos anos, das quais podem-se destacar
aquelas que afetam mais diretamente a formação inicial dos professores do 1º ciclo: a
definição de competências essenciais a serem atingidas pelos alunos no final de cada
85
ciclo do ensino básico, a serem avaliadas em provas nacionais; a criação de formações
transversais que devem ser contempladas em todas as disciplinas; a criação de áreas de
projeto como metodologia alternativa; a ênfase no papel da avaliação formativa da
aprendizagem dos alunos como elemento central na gestão do processo de ensino; a
crescente autonomia das escolas, que demanda maior número de professores em
tarefas de desenvolvimento da própria escola, como as de gestão local do currículo
nacional, de auto-avaliação da escola e de articulação com os membros e instituições
da comunidade; o fomento do recurso às tecnologias de informação e de comunicação
(TIC) no ensino; a busca por melhores resultados de aprendizagem; a adoção de
objetivos relativos à dimensão européia da educação; o aumento da heterogeneidade
social e cultural dos alunos; os problemas de indisciplina e violência nas escolas
(CAMPOS, 2002, p. 17).
Na definição do perfil de formação, estão indicados, de forma genérica, os
resultados e serem atingidos e as componentes da estrutura curricular dos cursos de
formação. Esta estrutura deve concretizar alguns princípios relativos a processos e
resultados, definidos politicamente. Os três componentes curriculares estão assim
definidos:
1. Componente de formação pessoal, social, cultural, científica, tecnológica,
técnica ou artística, ajustada à especialidade da qualificação profissional;
2. Componente de ciências da educação (que inclui as didáticas específicas);
3. Componente de prática pedagógica.
Através destas componentes parece estar definida a finalidade da formação
profissional, que é a de “proporcionar aos candidatos à docência uma formação
pessoal e social integradora da informação, dos métodos, das técnicas e das atitudes e
valores científicos, pedagógicos e sociais adequados ao exercício da função de
professor” (FORMOSINHO & NIZA, 2002, p. 15). Estas três componentes estão
presentes durante o curso de forma paralela ou integrada.
No que se refere ao modelo integrado, Alarcão (apud MENEZES, 1996, p. 44)
afirma que “neste modelo concebe-se a formação a partir da integração dos
componentes acadêmico e profissional, científico e pedagógico e também teórico e
86
prático. Mas, se a integração já é difícil de praticar quando se discutem planos de
estudos e se negociam horas letivas, as divergências aumentam ainda mais quando se
passa da planificação à realização dos planos curriculares”.
A referida autora continua argumentando que a integração deve revelar-se como
um valor e uma prática conscientemente assumidos, assentada numa atitude de inter e
transdisciplinaridade. Não basta juntar disciplinas de diferente natureza e nem deixar
para o aluno a tarefa de integrar os conhecimentos, que para ele são apresentados de
forma fragmentada, para o curso ser considerado integrado. Na maior parte das
instituições os currículos foram operacionalizados numa lógica de justaposição e não
numa lógica de integração. Além da questão da dificuldade de integração entre o
conhecimento científico e o pedagógico, existe também a dificuldade da integração
entre o componente teórico e o componente prático.
Encontramos um argumento muito próximo em Nóvoa (1995a, p. 25) quando
afirma que “a formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos
ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de reflexividade crítica sobre as
práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso é tão
importante investir a pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência”.
A componente de prática pedagógica (PP)20, hoje, dispõe de uma definição
governamental mais pormenorizada, por se acreditar num maior valor formativo que
esta possui, no desenvolvimento das capacidades e competências que integram a
formação docente.
3.4 A Prática Pedagógica no curso de formação inicial do professor do 1º ciclo
A PP realiza-se nas escolas do ensino básico, sob a orientação das duas
instituições. O aluno estagiário é considerado exterior à escola, não recebendo
qualquer gratificação; é um aprendiz formando, ainda não apto para assumir
20 Nos diversos documentos e obras portuguesas pesquisadas foram encontradas as expressões “prática profissional”, “prática pedagógica” e “estágio pedagógico”, todas com o mesmo significado. Estaremos nos utilizando neste trabalho, da expressão “prática pedagógica”, ou simplesmente PP.
87
responsabilidades profissionais na sua plenitude. Os professores acompanhantes não
têm redução da carga horária, mas recebem uma gratificação da instituição de
formação; também não têm direito a atribuir uma classificação aos estagiários que
acompanham, embora normalmente sejam ouvidos nesse processo.Os objetivos da PP
são globais e abrangentes, incluindo, além da situação de ensino, a integração do
formando na organização da escola e na comunidade.
Em uma análise sobre a PP, Alarcão (apud MENEZES, 1996, p. 45-48) pontua,
entre outros, os seguintes problemas:
- Fragilidade da relação interinstitucional;
- Falta de implementação de estratégias de supervisão concertada e negociada
entre os orientadores das duas instituições;
- Dificuldades de operacionalização da PP devido ao número de alunos;
- As representações que os professores universitários têm dessa atividade;
- As exigências de contenção financeira que assolam as instituições de ensino
superior, e suas repercussões sobre os recursos humanos;
- A falta de formação específica para as funções de supervisão;
- O crescente número de estagiários, implicando sua colocação em escolas
geograficamente mais afastadas da instituição de formação;
- Diminuição do número de turmas onde os alunos possam realizar o seu estágio.
A referida autora levanta ainda a necessidade de se encontrar uma solução para
os problemas enfrentados. Na tentativa de superar alguns problemas existentes na
formação inicial, já explicitados por Alarcão, o INAFOP editou uma recomendação
sobre esta componente nos cursos de formação inicial de professores, através da
Deliberação nº 515/2002, de 03 de abril, e do anexo à recomendação.
Até então, o modelo legal de formação/certificação dos professores da educação
básica, que havia sido formulado para atender à necessidade de dotar as Escolas
Superiores de Educação de um instrumento legal para a prática pedagógica e para a
certificação profissional, e para regular as relações das instituições de formação com
as escolas e a comunidade profissional, não estava respondendo às necessidades do
sistema educativo.
88
Segundo Ceia (2002, p. 11), a iniciativa do INAFOP de editar a referida
Recomendação, após ampla discussão nacional sobre a PP, teve como objetivo
produzir uma legislação que “fosse o resultado de um acordo entre as instituições
formadoras e não o resultado de uma imposição política decretada por quem conhece
apenas a vida dos gabinetes ministeriais”. O referido autor afirma ainda que, com a
extinção do INAFOP, a questão da organização, estatuto e implicações da PP ficou
sem resolução. O atual quadro em vigor da PP não garante, salvo exceções, a
necessária articulação entre a formação e a investigação pedagógica.
A realidade hoje em Portugal é de discussão de uma proposta de lei que altera
substancialmente seu sistema educativo, que vai repercutir, obviamente na formação
inicial de professores do 1º ciclo, com a nova proposta de estrutura organizacional do
ensino. Esta proposta de reforma vem como conseqüência da Declaração de Bolonha,
que trouxe para toda a Europa uma dinâmica reformadora, marcadamente em dois
aspectos: a comparação das qualificações oferecidas pelas instituições de ensino
superior e a mobilidade de estudantes e professores pelo continente. A maior
preocupação dos legisladores europeus é com a competitividade dos respectivos
sistemas de ensino superior e dos seus graduados, reforçando sua capacidade para
atraírem os melhores estudantes, docentes e investigadores. A luta de Portugal é,
ainda, para superar a condição de país semi-periférico no contexto europeu.
CAPÍTULO IV
A REALIDADE DA FORMAÇÃO INICIAL NO BRASIL E EM PORTUGAL –
ENCONTROS E DESENCONTROS
Figura 5 - Universidade Federal do Paraná
Viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o momento, tomar a própria prática de abertura ao outro como objeto da reflexão
crítica deveria fazer parte da aventura docente. Paulo Freire (1996, p. 153)
90
Para uma análise de dados que tenha um caráter o mais objetivo possível, uma
vez que o processo comparativo conta com a presença de fatores subjetivos, procurou-
se não perder de vista as características e os limites da comparação, apontados por
Ferreira (2001), destacando-se o seu caráter fenomenológico, que permite apenas um
conhecimento aproximado da realidade; a globalidade, que exige que os fenômenos
sejam estudados de uma forma vinculada à complexa realidade que os envolvem; a
homogeneidade e a pluralidade, que exigem que sejam analisados ao menos dois
fenômenos que, ao mesmo tempo em que são diferentes apresentem semelhanças; a
subjetividade do sujeito que pesquisa e, por fim, a impossibilidade de se controlar
todas as variáveis que possam intervir no fenômeno. Estes são fatores que, ao mesmo
tempo em que podem comprometer um trabalho investigativo, se forem levados em
conta, podem levar a um aprofundamento do conhecimento sobre os fenômenos
investigados.
Assim, a partir do levantamento dos dados, levando-se em conta as
características e limites de uma abordagem comparativa, e da análise dos mesmos, que
foi realizada através da técnica de análise documental (BARDIN, 1977), procurou-se
aqui traçar um panorama sobre a situação da formação inicial do professor para os
anos iniciais da educação básica no Brasil e em Portugal na década de 90, decorrente
das suas últimas reformas educativas. Neste capítulo destacam-se os pontos comuns
e/ou divergentes identificados no percurso da investigação e que são considerados
mais significativos em relação ao tema proposto para a pesquisa.
Em primeiro lugar procede-se uma abordagem sobre o discurso presente nos
textos legais no que se refere ao tema da pesquisa, e sobre as conseqüências que a
clareza ou a falta dela nestes textos trazem na implementação das reformas educativas
investigadas, levando-se em consideração as formas de tratamento para uma análise
documental indicadas por Bardin (1977). Um segundo aspecto que foi analisado é o
dos pressupostos das referidas reformas, nos quais se identifica uma política social
mais ampla e quais os pontos que podem servir de apoio a uma afirmação de que os
mesmos estão muito próximos. A seguir, aborda-se sobre a elevação da exigência da
formação inicial do professor em ensino superior, analisando-se qual a repercussão da
91
mesma nos dois países, tendo-se em vista as condições em que ocorreu. Por fim,
analisam-se as políticas e os momentos atuais nos dois países, no que se refere à
temática abordada, tendo como premissa as atividades a serem desenvolvidas na
terceira fase prevista para esta investigação – fase comparativa – e que foram
embasadas em Ferreira (1999 – 2001).
Ainda levando-se em conta que os documentos são veículos vivos de
informação (LAVILLE & DIONNE, 1997), para corroborar as análises realizadas,
utilizaram-se as afirmações de profissionais da educação do Brasil e de Portugal
(professores do ensino superior, estudiosos do tema da formação e ocupantes de cargos
administrativos superiores em órgãos afins com a educação), aos quais foram enviados
questionários (apêndices 1 e 2), via e-mail, cujo teor encontra-se nos anexos a este
trabalho, juntamente com a identificação dos mesmos. Por se tratar de realidades
diferentes, os questionários foram estruturados de forma diferenciada, para que os
respondentes pudessem se adequar às mesmas, tendo-se em vista suas experiências,
estudos e vivências. Porém, a essência dos questionamentos está muito próxima, o que
nos permitiu proceder às análises pela pertinência das respostas apresentadas, apesar
do número reduzido de questionários respondidos.
Desse modo, através do tratamento qualitativo dos dados, pode-se afirmar que
as fases da pesquisa não sofreram separações marcadas (TRIVIÑOS, 1987), uma vez
que, ao mesmo tempo em que se procedeu às análises dos dados dos dois países,
ocorreu a sua interpretação e o estabelecimento do paralelo comparativo entre suas
similaridades, aproximações e diferenças, sobre as quais se discorrerá a seguir.
4.1 O discurso legal das reformas educacionais
Ao analisar os textos legais, pode-se constatar uma substancial diferença entre a
letra da lei brasileira e a da lei portuguesa, no que se refere à formação inicial dos
professores das séries iniciais e do 1º ciclo, respectivamente.
A LBSE, lei portuguesa, traz em seu Capítulo IV artigo 31º, que trata dos
Recursos Humanos, as indicações para a formação inicial de educadores de infância e
92
de professores dos ensinos básico e secundário, determinando de forma clara que a
formação inicial deve dar-se em instituições de ensino superior, seja nas Escolas
Superiores de Educação, seja nos estabelecimentos de ensino universitário. Como se
pode ver no Capítulo III (item 3.1), esta determinação vem em decorrência de um
percurso histórico de substituição das Escolas de Magistério Primário, fato que vinha
acontecendo desde a década de 70.
Há uma tendência internacional no sentido de consagrar a formação de professores (desde os educadores de infância até aos professores do ensino médio) num nível superior. É assim em quase toda a Europa. Portugal acompanhou naturalmente este movimento, após a Revolução de 1974. (ENTREVISTADO 4 – PORTUGAL)
Na lei brasileira, a LDB/96, o Título VI, que trata dos profissionais da
educação, nos artigos 62 a 63, está estabelecido que a formação do professor da
educação básica deverá ocorrer em nível superior, porém admite-se, para o professor
das quatro primeiras séries ensino fundamental, uma formação mínima em nível
médio, na modalidade Normal. No Título IX, em seu art. 87 que institui a Década da
Educação a iniciar-se um ano após a publicação da referida lei, no § 4º, há uma
tentativa de correção, com o estabelecimento de um prazo (... até o fim da Década da
Educação...) para a admissão de professores formados em nível médio. Abriu-se com
isto, profunda polêmica até hoje não superada no Brasil. Em primeiro lugar, os
defensores da formação do professor para os anos iniciais da educação básica em nível
médio, alegam que as disposições transitórias não podem se sobrepor ao que está
estabelecido no corpo da lei. Em segundo lugar, aponta-se que esta proposta condiz
com a realidade do Brasil, que devido às suas dimensões e às diferenças regionais,
apresenta imensas dificuldades para suprir a demanda escolar com professores
adequadamente formados, de modo especial nas regiões pouco desenvolvidas.
Contudo, permaneceram contradições, dentre as quais pode-se destacar a gerada pelo confronto da admissão da mera formação em nível médio, “na modalidade Normal” (art. 62) para o exercício do magistério na Educação Infantil e nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, e a exigência de graduação plena, em curso de licenciatura, para os profissionais que irão atuar nesse nível da educação básica. (ENTREVISTADO 3 – BRASIL)
93
Tem-se ainda o problema da ambigüidade dos cursos que podem se caracterizar
nesta formação, com uma grande parcela de educadores defendendo o curso de
Pedagogia como sendo aquele que daria melhor preparo aos professores para atuar nos
anos iniciais da educação básica.
As indefinições nasceram tanto por parte das associações inconformadas com as definições governamentais como por parte de uma escritura legal confusa. Vejo tudo isso como dependente da aprovação rápida da Lei sem uma verificação textual orgânica e sem querer que ela fosse mais uma vez objeto de discussão com e no parlamento. (ENTREVISTADO 1 – BRASIL)
Há ainda um agravante no Título IX, no mesmo art. 87, em seu § 3º inciso III,
com a determinação de que os sistemas de ensino realizem programas de capacitação
em exercício para todos os professores sem a formação exigida legalmente, inclusive
utilizando os recursos da Educação à Distância (EaD)21. Abriu-se aqui uma brecha
para que algumas instituições credenciadas para trabalhar com o ensino à distância
capacitem não somente professores já inseridos nas escolas, mas o que é muito grave,
aceitem como alunos pessoas que não têm vínculo com escolas, que pretendem
encurtar prazos e aligeirar a sua formação.
As diferenças apontadas na letra da lei indicam diferentes políticas de formação
de professores implementadas em conseqüência das mesmas. Em Portugal o nível de
formação inicial do professor do 1º ciclo exigido é claro, e as políticas que surgem em
seu horizonte têm como finalidade aumentar a qualidade desta formação. No Brasil,
pela falta de clareza da legislação, o foco das discussões ainda está centrado na
definição de qual a formação será exigida a partir da regulamentação da mesma. A
questão da qualidade parece ser secundária ou de somenos importância.
21 A EaD tem seu espaço garantido na LDB/96, podendo ser ofertada em todos os níveis e modalidades de ensino. Sua previsão veio com o intuito de atender às situações emergenciais de regiões mais distantes do país, onde há dificuldade de ser ofertada a educação regular. A legislação abriu uma brecha, ao demonstrar somente uma preocupação formalista com o assunto (DEMO, 2002), que tem sido usada por grupos ou pessoas com interesses exclusivamente econômicos, os quais demonstram o descompromisso e o descaso com uma educação de qualidade, massificando cursos, especialmente os de formação de professores.
94
4.2 Os pressupostos das reformas educativas do Brasil e de Portugal da década de
90
A globalização dos processos culturais e econômicos e o advento da sociedade
da tecnologia e da informação apresentam novas demandas ao processo de ensino que,
ao menos no seu discurso, as referidas reformas buscaram contemplar. As mesmas não
escaparam de apresentar um discurso muito próximo, tendo em vista que são
resultados das diversas conferências internacionais22 sobre educação que vêm
acontecendo desde a década de 50 e das políticas econômicas adotadas pelos dois
países, e que são os fatores preponderantes na implantação das mesmas. Isto se indica
não somente pelo vocabulário apresentado pelas mesmas, mas no discurso inerente a
este vocabulário: expansão/universalização, descentralização, autonomia, qualidade,
eficiência, competência, perfil de desempenho, entre outras expressões, demonstram a
similaridade vocabular e de discurso.
Há uma circulação de discursos e de programas políticos que influencia todos os países. No caso português, as influências no nível dos discursos notam-se com a importação dos paradigmas do professor reflexivo, das teses do professor como investigador etc. (ENTREVISTADO 4 – PORTUGAL)
Não acredito em influência de países, mas de classes sociais. As classes dominantes dos diversos países, em geral, aliam-se para dominar as classes oprimidas do mundo. O motor da História continua sendo a luta de classes. Neste sentido, o Professor António Teodoro já demonstrou (v. sua obra Globalização e educação; políticas educacionais e novos modos de governação. São Paulo: Cortez, 2003) que a agenda educacional dos diversos países são ditadas, em geral, por organismos multilaterais, como Banco Mundial, FMI e OCDE. (ENTREVISTADO 3 – BRASIL)
Outro fator que pode ser considerado como relevante nestas reformas é o
momento em que as mesmas se implantam nestes dois países: a de Portugal vem logo
após a Revolução de 1974, em um momento em que está acontecendo sua inserção à
Comunidade Econômica Européia (CEE), e que trazem grandes desafios a este país em
22 As conferências de Bombaim (1952), Cairo (1954), Lima (1956), Karachi e Adis (inicio dos anos 60) e Jomtien (1990) (TORRES, 2001).
95
termos de se adequar às exigências desta nova realidade. No Brasil, as discussões
sobre a reforma têm início com a abertura política que se dá com o fim do governo
militar, no início dos anos 80, e a reforma vem quando se discute a implementação do
Mercado Comum da América do Sul (MERCOSUL), e da Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA), no final da década de 80 e início dos anos 90, o que também traz
exigências de melhoria em seus indicativos sociais e educacionais.
No plano das políticas, as principais influências vêm da União Européia e das suas orientações em matéria educacional. (ENTREVISTADO 4 – PORTUGAL)
Há muito se vinha discutindo a formação de docentes no Brasil, por causa dos problemas e contradições acumulados ao longo dos anos, mormente por causa da sobrevivência de restos de ’lixo autoritário’ derivado dos governos militares, cuja legislação fragmentada − porque promulgada para atender a casuísmos − acabara por aprofundar contradições que necessitavam ser superadas. (ENTREVISTADO 3 – BRASIL)
Em relação ao discurso inerente a este vocabulário, a análise limitou-se a
algumas expressões (categorias) que dizem respeito à formação inicial dos professores
do início da escolaridade, de forma direta ou indireta e que estão presentes nos dois
países:
- Universalização/expansão: este conceito traz, em seu bojo, a necessidade de
mudar uma realidade apresentada, nos dois países, à época de suas reformas,
que urgia por soluções que pudessem alterar um quadro de extrema exclusão
escolar, e conseqüentemente, social. Em Portugal, o atendimento das crianças
do 1º ciclo é feito, na sua totalidade por professores com a formação exigida em
lei. Um fator agravante é o quadro que vem se apresentando de redução dessa
clientela escolar, com um decréscimo de aproximadamente um quinto na última
década, segundo dados do Ministério da Educação, o que vem acarretando um
nível elevado de excedentes de professores. No Brasil, apesar dos indicadores
positivos em relação ao atendimento das crianças em idade escolar (quase
100% segundo dados do INEP), um percentual muito alto dos professores que
atuam neste nível de ensino não possuem a formação exigida. Segundo dados
96
do INEP, no ano de 1998, 11,9% destes professores tinham formação somente
no Ensino Fundamental (dos quais a maior parte não tinha nem ao menos
completado sua formação neste grau de ensino). Para tentar corrigir este
quadro, foram criados programas de capacitação docente nos quais a
experiência pudesse ser validada na formação. Em termos quantitativos, os dois
países parecem ter atingido as metas de universalização e expansão. A busca
agora vem sendo para atingir a qualidade desejada e exigida pela realidade
atual.
A LDB tem uma orientação contemporânea que valoriza a experiência vivida como válida para a experiência escolar. Tem uma grande preocupação com a prática ou aplicação do conhecimento. Esta orientação geral também impregnou os dispositivos sobre formação de professores: validação da experiência docente como componente da formação. (ENTREVISTADO 2 – BRASIL)
- Descentralização/autonomia: este tema, talvez um dos mais significativos em
termos de mudança efetiva nos sistemas educativos, tem o mesmo pressuposto
nas duas reformas. Apesar das diferenças em termos geográficos e de estrutura
do sistema educativo, nos dois países a descentralização do sistema foi levada a
cabo, dando autonomia às instituições no seu gerenciamento administrativo e
pedagógico. Com relação às instituições que cuidam da formação docente, a
autonomia abriu um espaço, nos dois países, para a construção de seus próprios
currículos de formação, o que tem trazido como resultado, uma diversidade na
formação inicial dos professores e conseqüentemente na sua qualidade. Isto,
porém, pode se apresentar como um aspecto positivo, no encaminhamento de
soluções para os problemas estruturais que afetam a formação, pois os
(sub)sistemas podem efetivar a formação da forma que regulamentarem a partir
da lei.
Na verdade, algumas definições legais permitiriam a implantação de políticas descentralizadas e focalizadas. (ENTREVISTADO 1 – BRASIL)
97
Em alguns estados, como no de Minas Gerais, desde a sanção da lei, não houve hesitação, por parte do Governo Estadual quanto aos rumos a serem seguidos no tocante à formação inicial de professores e professoras da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. Estabeleceu-se a exigência mínima de formação em grau superior e formulou-se e iniciou-se um amplo programa de formação, em curso Normal Superior, em convênio com várias Universidades e Instituições de Ensino Superior instaladas no território do Estado de Minas Gerais, de modo a habilitar todos(as) docentes em exercício nas escolas públicas. (ENTREVISTADO 3 – BRASIL)
- Qualidade/eficiência/competência: estes termos aparecem não somente nas
reformas do Brasil e de Portugal, mas também nas de diversos outros países. O
que está presente nas entrelinhas deste discurso é principalmente, a superação
dos maus resultados apresentados em todos os indicadores educacionais. À
época de sua reforma, Portugal apresentava os piores índices europeus
(NÓVOA, apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992). O Brasil, mesmo hoje, tem
muito ainda a superar, tendo em vista os preocupantes índices que vem
apresentando, especialmente no que se refere ao desempenho dos alunos do
ensino fundamental nas avaliações nacionais e internacionais. Como o professor
e a qualidade de sua atuação estão no cerne deste problema, as tentativas de
superação vieram, no Brasil, com a edição das DCN e dos RFP, e em Portugal
com a edição dos Padrões de Qualidade, dos Perfis de Desempenho e da
Recomendação sobre a componente de PP nos cursos de formação inicial de
professores.
Muitos outros termos (categorias) podem ser encontrados e destacados nos
discursos reformistas; porém a análise deteve-se somente aos apresentados, por
entender que eles afetam mais diretamente à formação inicial dos professores dos anos
iniciais da educação básica, conforme a delimitação proposta para esta pesquisa.
4.3 Lócus de formação: diferença entre Escolas e Institutos Superiores de
Educação
No estudo efetivado, pode-se perceber que uma das grandes diferenças na
questão da formação diz respeito ao lócus de formação inicial. Em Portugal, antes
98
mesmo da implantação da LBSE/86, já havia um movimento de elevação da formação
dada nas Escolas de Magistério Primário, que estavam sendo transformadas nas ESEs.
Ou seja, uma instituição que já possuía a tradição da formação inicial do professor do
1º ciclo, passava a ter um novo status nesta formação. As polêmicas que surgiram em
conseqüência disto foram por se recear uma teorização da formação até então dada
nestas instituições, prejudicando seu aspecto mais prático, ao mesmo tempo que as
universidades defendiam que não é de sua competência profissionalizar, mas sim
construir e disseminar conhecimentos que poderão ser aplicados e adaptados a
qualquer profissão que o aluno vier a escolher (ALARCÃO apud MENEZES, 1996)
Esta mudança levou a que a maioria dos professores fossem formados nas Escolas Superiores de Educação, ainda que alguns programas estejam integrados nas Universidades (Aveiro, Minho, etc.). De uma forma geral, pode dizer-se que esta decisão foi importante por razões simbólicas e por razões de prestígio, bem como pela elevação do estatuto da profissão. Mas - e esta terá sido a parte mais crítica - perdeu-se uma certa cultura profissional do “magistério primário". (ENTREVISTADO 4 – PORTUGAL)
Já no Brasil, a proposta de encarregar os ISEs da formação inicial dos
professores dos anos iniciais da educação básica causou muitas polêmicas, que ainda
não foram consensuadas. Os ISEs, pela regulamentação da lei, devem estar vinculados
a uma instituição já existente de ensino superior. Ou seja, as escolas que até então
formavam os professores das séries iniciais, não tiveram o seu status elevado, como no
caso de Portugal, mas ao contrário, deixaram de existir enquanto instituições de
formação de professores, e os ISEs passam a ser “departamentos” das faculdades –
uma instituição dentro de outra instituição, que tem por finalidade cuidar da formação
docente, ou seja, dos cursos de licenciatura.
Destaque-se: (i) a normatização do ISE, que é agora necessário sempre que o curso de formação não estiver dentro de uma estrutura de universidade, isto é, quando é uma IES (instituição de ensino superior) isolada; (ii) a possibilidade de se pensar numa base comum para formar todos os professores que respaldou as diretrizes curriculares aprovadas pelo CNE; (iii) a necessidade de um projeto pedagógico integrador das diferentes licenciaturas.(ENTREVISTADO 2 – BRASIL)
99
Outra polêmica surgida é em relação ao curso que forma o professor das séries
iniciais: o Curso Normal Superior. No Brasil existe o curso de Pedagogia, que tanto
pode formar o aluno para funções administrativo-pedagógicas, quanto para ministrar
aulas na educação infantil ou nas séries iniciais do ensino fundamental. Na
regulamentação da LDB/96, o referido curso ficou autorizado a funcionar com tal
característica somente nas Universidades. As faculdades que desejarem trabalhar com
esta formação deverão, necessariamente, criar o ISE, e o curso será, então, o Normal
Superior.
Na verdade, o grupo que conseguiu levar adiante o projeto vitorioso de LDB queria descolar o curso de pedagogia do cursos de formação de professores de educação infantil e anos iniciais da escolarização. Assim, numa primeira leitura (que é parcial), a pedagogia cuidaria de formar "especialistas" enquanto que caberia ao normal médio e, sobretudo, ao normal superior a formação de docentes para a EI e 4 anos iniciais. As conseqüências foram de muita confusão. A aceitação do esquema foi bem menor, foram aprovados cursos de pedagogia com habilitação para magistério, exaram-se dois pareceres conflitantes no CNE, 2 decretos inconstitucionais ( os do "exclusivamente" e, depois, "preferencialmente") e até hoje o curso de pedagogia não tem diretrizes nacionais curriculares. (ENTREVISTADO 1 – BRASIL)
Apesar de o nível de formação exigido ser o mesmo nos dois países – o superior
– o quadro que se apresenta nos permite concluir que uma das grandes dificuldades da
aceitação, no Brasil, de que o curso normal superior seja, por força legal, o curso de
formação inicial do professor para os anos iniciais da educação básica, e de que o
lócus de formação de professores seja o ISE, deve-se exatamente ao fato de que eles se
apresentam como elementos novos e não suficientemente entendidos no contexto geral
da educação superior no Brasil.
4.4 As reformas da formação inicial no contexto atual
Apesar do caminho já percorrido a partir das suas últimas reformas, Brasil e
Portugal ainda apresentam um ponto nevrálgico da formação inicial em aberto: a PP.
Neste aspecto, Portugal apresenta um passo à frente, ao ter atribuído ao professor que
100
acompanha o estagiário na instituição que o recebe, uma parcela da responsabilidade
na formação do mesmo, com o pagamento de uma gratificação a ser feito pela
instituição de formação e com a sua participação na avaliação deste estagiário. No
Brasil não há essa responsabilidade do professor que recebe o estagiário, uma vez que
ele não é remunerado para realizar este acompanhamento, e, apesar de, em alguns
casos, avaliar o aluno estagiário através de fichas elaboradas pelo professor supervisor,
esta avaliação, na grande maioria dos casos, não é considerada na avaliação geral do
aluno.
(...) e recomendação específica de que a prática deve estar sempre presente na experiência de formação. (ENTREVISTADO 2 – BRASIL)
Os currículos da formação inicial devem ser revistos, rompendo com tradições mais "académicas" (e disciplinares" e reconstruindo as grades curriculares numa perspectiva de articulação com as práticas pedagógicas e com as situações profissionais. (ENTREVISTADO 4 – PORTUGAL)
Um passo que pode ser considerado um avanço neste assunto, é o
estabelecimento, nos dois países, de indicativos para a PP nos cursos de formação
inicial, como uma tentativa de efetivar a necessária dialética entre a teoria e a prática.
Uma diferença muito perceptível entre os dois países é a que se refere ao nível
das discussões e das práticas que se efetivam com relação à temática em questão. Pelos
dados apresentados, percebe-se que o Brasil apresenta ainda muitos desencontros tanto
nos aspectos legais quanto acadêmicos, o que vem causando um certo atraso em
relação à formação, quando a necessidade é de avanços urgentes. As discussões ainda
se referem ao texto de uma lei que está implantada há quase oito anos, a qual
apresenta, ela mesma, contradições que dificultam até hoje sua regulamentação. Dessa
forma, o enfoque que se dá nos meios administrativos e acadêmicos, quando se
discutem as políticas educacionais voltadas ao professor, é o da formação inicial.
Em Portugal, parece que as discussões em torno da formação inicial já não são
mais tão necessárias, tendo-se em vista que o que se evidencia é o discurso em torno
da formação contínua, da profissionalização do professor e da carreira docente.
101
As mudanças mais importantes prendem-se com a ligação entre formação inicial, anos de indução profissional e formação contínua. A formação tem de ser concebida no quadro de um desenvolvimento integrado da carreira docente. (ENTREVISTADO 4 – PORTUGAL)
Um outro aspecto que chama a atenção na realidade portuguesa é a discussão de
uma proposta de lei23 que, caso aprovada, trará significativas mudanças na estrutura do
seu sistema educacional, e conseqüentemente, nas políticas de formação dos
professores.
4.5 Reflexões acerca da formação inicial do professor dos primeiros anos no
Brasil e em Portugal
Analisar as políticas educacionais acerca do tema proposto requer um olhar um
pouco mais estendido em torno das variáveis que podem interferir na prática cotidiana
da sala de aula. As questões que se colocam ao professor em seu trabalho na
atualidade, transcendem os limites desta pesquisa. Estas questões não são exclusivas
de uma nem de outra das realidades analisadas. A escola, hoje, está passando por uma
crise, e a pergunta que paira sobre todos os envolvidos com a educação escolar, em
quase todo o mundo, é a mesma: a escola, da forma que está posta hoje, vai sobreviver
à crise pela qual está passando? Neste contexto, talvez muito mais do que falar em
formação de professores, deve-se questionar até quando vai existir a necessidade de
um professor como o que temos hoje, e de sistemas educacionais da forma como estão
estruturados hoje (CORTESÃO, 2002).
Antes, porém, de se analisar a situação da formação docente no atual contexto,
que é o de grandes transformações nos modos de produção e transmissão de
conhecimentos, é necessário que se reflita sobre as condições em que os professores
dos anos iniciais trabalham nos dois países pesquisados. Talvez um fator que possa ser
23 A proposta de Lei de Bases da Educação, já aprovada pelo Conselho de Ministros no dia 27 de maio de 2004, está para ser debatida na Assembléia da República. Seu texto está à disposição para consulta na página do Ministério da Educação na internet (www.min-edu.pt).
102
considerado dos mais agravantes nas situações que se apresentam no cotidiano das
escolas e das salas de aula, e que afetam a qualidade da educação, é a explosão escolar
ocorrida nos últimos anos, decorrente das políticas de expansão e de universalização
do ensino. O público que passou a freqüentar a escola é diferente daquele para o qual a
escola estava designada até então. Com isso, criou-se, não somente em Portugal, mas
também no Brasil, o “professor daltônico cultural”, ou seja, o professor que não
identifica a heterogeneidade dos grupos sócio-culturais com que trabalha (STOER &
CORTESÃO, 1999).
A despeito dos pontos de encontro e de desencontro apontados, no que se refere
à formação inicial dos professores dos anos iniciais da educação básica, talvez o fator
que mais aproxima Brasil e Portugal, não diga respeito especificamente a esta
formação em si, mas aos resultados que dela decorrem. O índice estatístico que os dois
países apresentam no que se refere ao insucesso das crianças deste nível de ensino
pode ser o indicador de que ainda há muito a ser feito em relação a este tema.
Falando das reformas em tempos de crise, Antoine Prost, citado por Nóvoa
(apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992, p. 67), afirma que “a verdadeira reforma não
consiste em sair da crise, mas em construir os meios de a assumir lucidamente,
tornando-a fecunda”. Os dois países, Brasil e Portugal, tentam sair de crises que os
colocam em condição de atraso com relação à realidade globalizante. O seu atraso
maior, porém, não reside na economia, mas no aparente descaso com a educação,
mesmo propondo-se que a escola assuma, então, nestes dois países, papel primordial
na elevação de seu status mundial. As políticas de formação de professores
decorrentes de suas reformas educativas podem ser consideradas como importantes
primeiros passos trilhados no longo caminho que os dois países ainda tem a percorrer
para a solução de seus urgentes problemas nesta área.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Figura 6 - crianças com aluna estagiária
Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se construindo na
experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas.
Paulo Freire (1996, p. 120)
104
A proposta de um estudo de cunho comparativo não é a de apontar modelos,
mas de lançar um olhar sobre o outro, compreendê-lo e buscar aprender com suas
experiências (FRANCO, 2000; GARRIDO, 1986). Sendo assim, a finalidade maior
deste estudo foi a de tentar encontrar os pontos de encontro e de desencontro entre as
realidades brasileira e portuguesa na formação inicial dos professores para os
primeiros anos da educação básica.
Uma ampla análise sobre o tema proposto requer uma análise contextual do
macro-sistema onde o mesmo se insere. As crises que afetam os países na atualidade
não são exclusivas. Muitos estão buscando ajustar-se às novas exigências de um
mundo globalizado e transformado pelas tecnologias da informação e da comunicação,
fatores que têm afetado drasticamente as relações sociais. A crise pela qual passa a
sociedade neste início de milênio deve estimular a reflexão sobre o preparo e a prática
do professor, uma vez que as transformações ocorrem também em relação aos modos
de produção e transmissão do conhecimento. Assim, nesta pesquisa evidenciou-se a
preocupação que os sistemas de ensino brasileiro e português apresentam em relação
ao tema, para que possam ajustar-se às mudanças em voga.
Esta investigação começou a ser construída pela angústia surgida a partir da
constatação das deficiências existentes tanto na formação quanto na prática cotidiana
dos professores no Brasil, e pelo desejo de um aprofundamento maior sobre este
problema. Sabendo-se da condição de que se vive hoje num mundo onde muitas das
fronteiras já não existem mais, e considerando-se a relevância de se conhecer outras
realidades, para poder se perceber até que ponto as deficiências se repetem nestas
outras realidades, optou-se por uma investigação de cunho comparativo, com uma
outra realidade, a portuguesa, tentando desvendar como a formação ali se dá. Assim, a
presente investigação teve como tema a busca de pontos comuns e/ou divergentes nas
políticas de formação inicial do professor para os primeiros anos da educação básica
nos dois países, na tentativa de encontrar contribuições recíprocas aos seus processos
educacionais.
A partir da análise sobre a reforma educativa implementada no Brasil com a
implantação da LDB/96, no tocante à formação inicial do professor para os primeiros
105
anos da educação básica, pôde-se constatar que a mesma é uma reforma ambígua e
polêmica, e que, por conta disto, as discussões ainda estão muito centradas em torno
de questões que exigem esclarecimentos, até mesmo legais, em relação a esta
formação. O que se evidencia na análise é uma preocupação com os aspectos formais
da formação, deixando-se de lado discussões mais avançadas em torno da necessária
qualidade do trabalho a partir da profissionalização do professor, e da conseqüente
qualidade da educação desenvolvida nas escolas.
Numa análise sobre a realidade atual portuguesa no tocante à formação inicial
do professor dos primeiros anos da educação básica, concluiu-se que a reforma
implementada com a LBSE trouxe avanços significativos a esta formação; porém,
apesar das avançadas discussões acadêmicas em relação à profissionalização docente,
muitos dos problemas detectados na realidade brasileira se apresentam também em
Portugal. Questões relativas aos problemas decorrentes de projetos pedagógicos e
curriculares mal estruturados nos cursos de formação, às dificuldades decorrentes da
falta de clareza da importância da componente curricular da prática profissional e aos
resultados decorrentes do trabalho do professor expressos nos índices de desempenho
das crianças e jovens, são cruciais para quem deve pensar e decidir sobre a formação
de professores tanto no Brasil quanto em Portugal, uma vez que estas questões
apresentam-se nas duas realidades investigadas.
Um aspecto a se considerar é que as reformas referentes à formação inicial não
apresentam um enfoque sistêmico da educação. Nesse sentido, acredita-se que a
formação não pode ser desvinculada das condições de trabalho dos docentes, e que as
políticas de formação devem ser políticas de Estado, de longo prazo, e não políticas de
governo, com duração efêmera. As demandas postas hoje sobre o professor, exigem
cada vez mais, que ele exerça o papel mediador que sempre deveria ter exercido nas
salas de aula. Exigem ainda, um novo perfil e um novo papel do professor, nos quais
devem se articular antigas e novas necessidades de aprendizagem docente.
A situação atual dos cursos de formação, porém, indica que, a despeito da
evidente preocupação dos que pensam e decidem sobre a formação, e da busca
incessante pela melhoria, necessita-se ainda de maior clareza acerca dos reflexos da
106
atuação do professor numa sociedade ampla e diversificada, em realidades onde se
apresentam condições adversas. As constatações que se apresentam derivam-se do
trabalho de recolha e análise de dados realizada nos dois países, in loco, e podem ser
consideradas relevantes para países que buscam a melhoria qualitativa de seus
sistemas educacionais, em momentos em que se inserem cada vez mais num contexto
mundial, com maior exigência aos cidadãos de qualquer nacionalidade, de algumas
competências que até há pouco tempo não eram necessárias.
A crise da formação de professores nestes dois países é uma crise da finalidade
da formação e da metodologia para melhor desenvolver esta formação. Se existe a
necessidade de adaptação às mudanças que estão ocorrendo na sociedade e na
economia, existe também a necessidade de se humanizar estas transformações. Nisso,
o papel do professor é fundamental. Neste aspecto, quando se fala em qualidade da
educação, muito antes de pensar em resultados estatísticos e de avaliações de
desempenho deve-se pensar como Rios (2001, p. 128): O ensino da melhor qualidade é aquele que cria condições para a formação de alguém que sabe ler, escrever e contar. Ler não apenas as cartilhas, mas os sinais do mundo, a cultura de seu tempo. Escrever não apenas nos cadernos, mas no contexto de que participa, deixando seus sinais, seus símbolos. Contar não apenas números, mas sua história, espalhar sua palavra, falar de si e dos outros. Contar e cantar – nas expressões artísticas, nas manifestações religiosas, nas múltiplas e diversificadas investigações científicas. A melhor qualidade é, na verdade, uma “qualidade ausente”.
Assim, a reflexão sobre as necessárias mudanças não é somente importante, é
urgente. O que se precisa é de eficiência na efetivação das mudanças. Reconhecer o
professor como profissional, como interlocutor e como sujeito das necessárias
mudanças educacionais, implica em desestruturar o esquema de reforma que coloca os
planejadores em conflito com os executores da mesma. É necessário que se criem
mecanismos de diálogo, de consulta e de participação de todos os envolvidos com a
educação e que sabem o que acontece na realidade do sistema educacional – os
pesquisadores, os políticos, os implementadores das reformas, os professores
formadores, os professores que atuam nas escolas, os alunos em formação – para
principalmente, tentar se superar a desconexão entre o que se ensina nos cursos e o que
se requer do desempenho do professor.
107
Neste estudo, percebeu-se que tanto no Brasil quanto em Portugal, alguns
caminhos já estão apontados no sentido de uma transformação na questão da formação
do professor. Talvez, o que ainda falte, seja a consciência da necessária urgência na
superação das longas discussões acerca dos aspectos legais e acadêmicos desta
formação, pois, enquanto se discutem as políticas nos gabinetes, a vida está
acontecendo nas salas de aula.
REFERÊNCIAS
Figura 7 - crianças com aluna estagiária
Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos, constatando apenas. A acomodação em mim
é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade.
Paulo Freire (1996, p. 86)
109
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APÊNDICES
Figura 8 - Instituto de Educação do Paraná
Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar,
a apostar no ser humano, a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas agressivas e injustas de quem transgride a própria ética.
Paulo Freire (1996, p. 146)
120
APÊNDICE 1 – Questionário enviado a profissionais da educação do Brasil
1. A última reforma educativa, implementada pela LDBEN 9394/96, trouxe
significativas mudanças no que se refere à formação inicial dos professores dos
anos iniciais do Ensino Fundamental no país. Conforme o estabelecido no título
VI, artigos 61 a 63, essa formação incorporou novos conceitos e significados.
Em sua opinião:
a) Que fatores levaram a essa mudança?
b) Quais as conseqüências dessas mudanças?
2. Mediante as indefinições das políticas governamentais quanto à implementação
da LDBEN 9394/96 no tocante a formação inicial dos professores dos anos
iniciais do Ensino Fundamental: a) Como V. Sª vê essa questão? b) A que
fatores pode ser atribuído tal fato?
3. Um dos efeitos da nova ordem política e econômica mundial é a influência que
alguns países exercem sobre os outros no que tange às suas políticas públicas.
Especificamente com relação à política educacional em curso no Brasil no que
se refere à formação de professores é possível identificar esse tipo de
influência? Em que aspectos podemos perceber isso?
4. V. Sª conhece as políticas de formação inicial do professor do 1º ciclo da
Educação Básica em Portugal? Qual sua impressão sobre as mesmas?
121
APÊNDICE 2 – Questionário enviado a profissionais da educação de Portugal
1. A última reforma educativa implementada pela LBSE 46/86, trouxe
significativas mudanças no que se refere à formação inicial do professor do 1º
ciclo da Educação Básica. Conforme o estabelecido no Cap. IV art. 30 e 31,
essa formação foi elevada ao Ensino Superior e incorporou novos conceitos e
significados. Em sua opinião, que fatores levaram a essa mudança?
2. Como ocorreu a implantação das mudanças relativas à formação inicial dos
professores do 1º ciclo do Ensino Básico?
3. V. Sª considera que são necessárias mudanças nas atuais políticas de formação
de professores? Em que aspectos?
4. Um dos efeitos da nova ordem política e econômica mundial é a influência que
alguns países exercem sobre os outros, no que tange às suas políticas públicas.
Especificamente com relação à política educacional em curso em Portugal no
que se refere à formação de professores é possível identificar esse tipo de
influência? Em que aspectos podemos perceber isso?
5. V. Sª conhece as políticas de formação inicial do professor dos anos iniciais do
Ensino Fundamental no Brasil? Qual sua impressão sobre as mesmas?
ANEXOS
Figura 9 - foto da Terra vista por satélite
A humildade exprime, pelo contrário, uma das raras certezas de que estou certo: a de
que ninguém é superior a ninguém. Paulo Freire (1996, p. 137)
123
Teor, na íntegra, das respostas dadas aos questionários, enviados via e-mail, pelos
experts dos países pesquisados.
ANEXO 1
Entrevistado 1 – Brasil: Professor Carlos Roberto Jamil Cury – membro do Conselho
Nacional de Educação
1. Na verdade, o grupo que conseguiu levar adiante o projeto vitorioso de LDB queria
descolar o curso de pedagogia dos cursos de formação de professores de educação
infantil e anos iniciais da escolarização. Assim, numa primeira leitura (que é parcial), a
pedagogia cuidaria de formar "especialistas" enquanto que caberia ao normal médio e,
sobretudo, ao normal superior a formação de docentes para a EI e 4 anos iniciais. As
conseqüências foram de muita confusão. A aceitação do esquema foi bem menor,
foram aprovados cursos de pedagogia com habilitação para magistério, exaram-se dois
pareceres conflitantes no CNE, 2 decretos inconstitucionais (os do "exclusivamente" e,
depois, "preferencialmente") e até hoje o curso de pedagogia não tem diretrizes
nacionais curriculares.
2. As indefinições nasceram tanto por parte das associações inconformadas com as
definições governamentais como por parte de uma escritura legal confusa. Vejo tudo
isso como dependente da aprovação rápida da Lei sem uma verificação textual
orgânica e sem querer que ela fosse mais uma vez objeto de discussão com e no
parlamento. Na verdade, algumas definições legais permitiriam a implantação de
políticas descentralizadas e focalizadas.
3. A percepção disso é muito discreta e se refere a uma ênfase na formação continuada
(mais barata?) em detrimento da formação inicial, exatamente quando ambas devem
ser consistentes e correlativas.
4. Não as conheço bem de modo a poder palpitar sobre elas.
124
ANEXO 2
Entrevistado 2 – Brasil: Professora Guiomar Namo de Mello – membro do Conselho
Nacional de Educação
1-a) A LDB tem uma orientação contemporânea que valoriza a experiência vivida
como válido para a experiência escolar. Tem uma grande preocupação com a prática
ou a aplicação do conhecimento. Esta orientação geral também impregnou os
dispositivos sobre formação de professores: validação da experiência docente como
componente da formação e recomendação específica de que a prática deve estar
sempre presente na experiência de formação. Além disso, houve influência da crítica à
formação fracionada que o Brasil tinha (e ainda tem). A insistência de haver uma
instituição que reúna a formação de professores dos diferentes níveis e áreas de ensino
– o ISE – decorre dessa visão crítica da estrutura de formação vigente.
b) São várias. Destaque-se: (i) a normatização do ISE, que é agora necessário sempre
que o curso de formação não estiver dentro de uma estrutura de universidade, isto é,
quando é uma IES (instituição de ensino superior) isolada; (ii) a possibilidade de se
pensar numa base comum para formar todos os professores que respaldou as diretrizes
curriculares aprovadas pelo CNE; (iii) a necessidade de um projeto pedagógico
integrador das diferentes licenciaturas.
2 – Não respondeu.
3 - Acho que o Brasil acabou por desenvolver uma estrutura de formação tão peculiar
que não vejo nenhuma influência direta nesse sentido. Vejo sim influências teóricas de
pedagogia, didática, psicologia da aprendizagem, entre outras. Mas no que tange à
estrutura da formação, que é mais diretamente dependente de decisões de política
educacional, não vejo influências facilmente perceptíveis.
4 - Não conheço o suficiente, como conheço por exemplo a inglesa, americana ou
125
alemã. Sei alguma coisa por meu contacto com alguns acadêmicos como Isabel
Alarcão e Antonio Nóvoa, mas não o suficiente para dar uma opinião a respeito. No
site www.redeensinar.com.br/guiomar há alguns artigos meus sobre o tema da
formação do professor.
126
ANEXO 3
Entrevistado 3 – Brasil: Professor José Eustáquio Romão – Centro de Ensino Superior
Juiz de Fora e Centro Universitário Nove de Julho (Uninove), São Paulo.
1-a) Há muito se vinha discutindo a formação de docentes no Brasil, por causa dos
problemas e contradições acumulados ao longo dos anos, mormente por causa da
sobrevivência de restos de “lixo autoritário” derivado dos governos militares, cuja
legislação fragmentada − porque promulgada para atender a casuísmos − acabara por
aprofundar contradições que necessitavam ser superadas.
b) Contudo, permaneceram contradições, dentre as quais pode-se destacar a gerada
pelo confronto da admissão da mera formação em nível médio, “na modalidade
Normal” (art. 62) para o exercício do magistério na Educação Infantil e nas quatro
primeiras séries do Ensino Fundamental, e a exigência de graduação plena, em curso
de licenciatura, para os profissionais que irão atuar nesse nível da educação básica. E
se o subsistema ou escola não se organizar em série? E se as unidades de ciclos ou
períodos adotados ultrapassarem a 4.ª série, como, por exemplo, nos ciclos que vão da
1.ª à 3.ª série e da 4.ª à 6.ª (como admite o artigo 32)? Aí, também poderá lecionar o
docente formado em nível médio?
A ambigüidade da lei tem causado muita confusão nos Estados.
2) Não sei se entendi bem a questão. Não sei se há indefinição das políticas
governamentais. A que nível de governo se refere a questão? Em alguns Estados,
como no de Minas Gerais, desde a sanção da lei, não houve hesitação, por parte do
Governo Estadual quanto aos rumos a serem seguidos no tocante à formação inicial de
professores e professoras da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. Estabeleceu-
se a exigência mínima de formação em grau superior e formulou-se e iniciou-se um
amplo programa de formação, em curso Normal Superior, em convênio com várias
Universidades e Instituições de Ensino Superior instaladas no território do Estado de
127
Minas Gerais, de modo a habilitar todos(as) docentes em exercício nas escolas
públicas.
A segunda parte da questão fica prejudicada.
3) Não acredito em influência de países, mas de classes sociais. As classes dominantes
dos diversos países, em geral, aliam-se para dominar as classes oprimidas do mundo.
O motor da História continua sendo a luta de classes. Neste sentido, o Professor
António Teodoro já demonstrou (v. sua obra Globalização e educação; políticas
educacionais e novos modos de governação. São Paulo: Cortez, 2003) que a agenda
educacional dos diversos países são ditadas, em geral, por organismos multilaterais,
como Banco Mundial, FMI e OCDE.
4) Não conheço. Prejudicada.
José Eustáquio Romão
128
ANEXO 4
Entrevistado 4 – Portugal: Professor António Nóvoa – Universidade de Lisboa
Uma resposta mais elaborada levaria demasiado tempo. Só poderei cerca de meados de
Maio. Até lá, se o desejar, ficam alguns apontamentos breves.
1. Há uma tendência internacional no sentido de consagrar a formação de professores
(desde os educadores de infância até aos professores do ensino médio) num nível
superior. É assim em quase toda a Europa. Portugal acompanhou naturalmente este
movimento, após a Revolução de 1974.
2. Esta mudança levou a que a maioria dos professores fossem formados nas Escolas
Superiores de Educação, ainda que alguns programas estejam integrados nas
Universidades (Aveiro, Minho, etc.). De uma forma geral, pode dizer-se que esta
decisão foi importante por razões simbólicas e por razões de prestígio, bem como pela
elevação do estatuto da profissão. Mas - e esta terá sido a parte mais crítica - perdeu-se
uma certa cultura profissional do "magistério primário".
3. As mudanças mais importantes prendem-se com a ligação entre formação inicial,
anos de indução profissional e formação contínua. A formação tem de ser concebida
no quadro de um desenvolvimento integrado da carreira docente. Os currículos da
formação inicial devem ser revistas, rompendo com tradições mais "académicas" (e
disciplinares) e reconstruindo as grades curriculares numa perspectiva de articulação
com as práticas pedagógicas e com as situações profissionais.
4. Há uma circulação de discursos e de programas políticos que influencia todos os
países. No caso português, as influências no nível dos discursos notam-se com a
129
importação dos paradigmas do professor reflexivo, das teses do professor como
investigador, etc. No plano das políticas, as principais influências vêm da União
Européia e das suas orientações em matéria educacional.
5. É difícil falar sobre realidades que não conheço bem.
Um abraço
António Nóvoa
Por e-mail em 28/04/2004
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