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A Gente é Só Amigo

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“A Gente é Só Amigo” é uma publicação da ESTANTE CHEIA - CRIA

Título originalA GENTE É SÓ AMIGO

Nº Registro (Biblioteca Nacional): 654.802

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, ou transmitida por qualquer forma ou meio eletrônico

ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou sistema de armazenagem e recuperação de informação, sem a

permissão escrita do editor.

Senra, MarinaA Gente é Só Amigo / Marina Senra - Minas Gerais, 2015Projeto gráfico: Marina Senra

1. Amizade - Literatura. 2. Romance. 3. Relações humanas. 4. Ficção.

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Agradeço a Deus, por ser o amigo mais constante.

Dedico à uma grande amiga, por aquela conversa na praça que gerou a ideia do Gustavo & Mel.

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19 de abril de 2008, sábado

Remédio pra ressaca, remédio pra ressaca...Onde que tá esse inferno desse remédio? Talvez fosse a visão embaçada de Gustavo, mas, ele não conseguia encontrar o remédio em lugar nenhum. Sim, já era tarde e, sim, ele devia estar quieto em casa, dormindo, mas, não deu para resistir. Quando seus amigos ligaram falando de uma festa que ele PRECISAVA ir, Gustavo nem pensou duas vezes. Inventou que ia assistir a um filme na casa de alguém e sumiu. Agora, às três horas da manhã, precisava dar um jeito de evitar a ressaca para que seus pais continuassem acreditando que ele havia ido à uma inofensiva sessão de cinema com os amigos, e não para uma balada do outro lado da cidade. Isso geraria perguntas que Gustavo não queria responder. Finalmente, encontrou o analgésico que procurava. Era um remédio eficaz e familiar, que ele já tinha usado inúmeras vezes antes. Falando desse jeito, fica parecendo que Gustavo vivia enchendo a cara, mas, não era bem assim. Ele era um jovem normal, que curtia ficar bêbado com os amigos, nada mais do que isso. Claro que o preço pago por essas bagunças costumava ser uma ressaca brutal no dia seguinte, mas, não era nada que ele não pudesse resolver com alguns analgésicos e água, muita água. Com o remédio em mãos, Gustavo foi pegar algumas garrafinhas de água. Em ocasiões como essa, ele sempre agradecia aos céus por morar bem em frente à uma farmácia que ficava aberta 24 horas. Era a sua salvação. Pronto, água. Gustavo cambaleou até o freezer, pronto para abraçar todas aquelas garrafinhas e já se imaginando pulando na cama em breve, quando reparou na garota parada bem ali perto. Mesmo com os olhos quase fechando, Gustavo podia ver a calça que ela usava. Era branca com estampa de peque-nos corações. O moletom, cinza e enorme, cobria mais da metade do corpo dela. E, sério, quem sai pra rua com um cabelo desses? O coque, que ela claramente havia feito às pressas, estava no topo da cabeça e os fios soltos iam para todos os lados. Foi só isso que Gustavo registrou antes de resolver deixar aquela estranha para lá. Meu Deus, é cada coisa que a gente vê às três horas da manhã... Estava pronto para sair dali com todas as suas lindas garrafas de água, mas acabou sendo abordado pela estranha. - Desculpa, mas você consegue ver se tem sorvete de abacaxi aqui? Eu esqueci meus óculos em casa e não tô conseguindo enxergar nada. Ela nem saiu do lugar, simplesmente continuou parada ali, apertando os olhos para o freezer cheio de potes de sorvete. Gustavo se aproximou do freezer e logo encontrou o sorvete que a menina estava pro-curando. Estava bem ali, de frente para ela. Ela era cega ou o que? Pegou o sorvete e entregou para ela. - Você deve gostar mesmo de sorvete de abacaxi para sair de casa no meio da noite para comprar. - Minha irmã tá grávida e parece que o bebê gosta de serviços delivery no meio da noite - ela disse, com um sorriso cansado. Aí, ela olhou para todas aquelas águas que Gustavo carregava - E você? Não tem água na sua casa? - Tem, tem sim. É que eu... - ele se atrapalhou com as garrafas e com os analgésicos - ... eu preciso tomar um remédio. A garota apertou os olhos, parecendo tentar identificar os remédios que Gustavo lhe mostrava. - Analgésicos - ele explicou - Pra dor de cabeça, você sabe. - Ah, sim... Pra ressaca, você quer dizer. - Ahn... é, não sei, talvez. Ela acenou discretamente e começou a caminhar para o caixa. Gustavo foi atrás, tomando cuidado para não tropeçar nos próprios pés. A garota caminhava rapidamente e, quando Gustavo a alcançou, ela já estava no caixa. O atendente, com uma cara de tédio que dava dó, nem pareceu notar a presença dela, muito menos a de Gustavo. Já tô bêbado mesmo, então, que se dane. - Como você se chama? - Mélanie. - Mélanie? Diferente nome. - Meu pai tava com mania de filme francês na época em que eu nasci, aí tinha uma atriz ou personagem

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com esse nome, sei lá. E você? - Gustavo. - Seu nome tem alguma história também? - Não que eu saiba. Conhecendo a minha sorte, deve ter sido o nome do cachorro de alguém. Mélanie riu. - Cachorros são legais. - Tão legais que eu acabei pegando o nome de um deles. Já estavam na entrada da farmácia quando Mélanie perguntou: - Você tá de boa pra voltar pra casa? Não que eu vá te dar uma carona, até porque eu não tenho carro e vai saber se você não é um assassino maluco, mas, eu posso pedir um táxi e... - Não precisa, valeu. Eu moro naquele prédio ali - Gustavo disse, apontando. - Sério? E eu moro ali. Depois do prédio de Gustavo, havia aquele outro onde morava aquele casal de velhinhos com 500 gatos e, então, o prédio para onde Mélanie apontava. Eram todos parecidos, bem pequenos e, à essa hora, com todas as luzes apagadas. - Sério que você mora ali? Há quanto tempo? - Uns seis meses. E você? - Praticamente a minha vida toda. Você não deve sair muito de casa, né? - Não muito nesses últimos meses, é verdade. Deve ser por isso que a gente nunca se esbarrou. Bom, é melhor ir eu andando antes que a minha irmã dê à luz de tanto desespero. - Ah, é claro. Sua irmã. Bom, a gente se vê por aí. - Boa sorte com a sua ressaca. Mélanie saiu antes que Gustavo pudesse responder. Antes de andar até seu prédio, enfiou um analgé-sico na boca, abriu uma garrafa de água e bebeu quase tudo. Deu uns três tapas no rosto e, só então, se sentiu pronto para entrar em casa. Enquanto caminhava apressado pela rua, Gustavo viu Mélanie, um pouco mais abaixo na rua, apertando os olhos para abrir o portão do prédio. Ele pensou em ir ajudá-la, mas, aquele sono gostoso que precede uma ressaca infernal estava começando a tomar conta dele. Entrou no prédio e, em poucos segundos, já estava desmaiado na cama, abraçado à inúmeras garrafas de água.

22 de junho de 2012, sexta-feira

Então, era essa a sensação de liberdade? Mélanie respirou fundo, sentindo-se até mais leve enquanto caminhava pelo campus da sua faculdade. Tirou os óculos e, por alguns segundos, quase viu unicór-nios multicoloridos pulando pelo campo, de tão feliz que estava. Ou talvez fosse o tal “pão da alegria” finalmente fazendo efeito. De qualquer maneira, com unicórnios ou não, Mélanie estava realmente alegre. Havia acabado de entregar o último trabalho gigantesco do semestre, um calhamaço de folhas e mais folhas que misturavam biologia, física, química e intermináveis noites sem dormir. Mas, agora ela estava passeando com unicórnios. E, como se não bastasse, ela tinha conseguido tirar uma folga do estágio, então, ela estava livre o dia inteiro. Agora, os unicórnios deixavam rastros de arco-íris por onde passavam. Estava caminhando feliz da vida quando ouviu o celular tocando. - E aí? Tá livre? - Gustavo foi logo perguntando. - Tô! Tô tão feliz que até os unicórnios apareceram pra comemorar comigo! Gustavo riu. - Você tá passando tempo demais nessa faculdade, Mel. - Nunca mais até agosto, meu amigo. - Ótimo. Você vai pra casa? - Sim! Vou comemorar minhas férias dormindo até morrer hoje. Onde você tá? - Saindo pra buscar o Daniel. Depois, tenho que voltar para o trabalho, mas, a gente vai sair hoje à

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noite, né? - Claro. O que você tá pensando? - Não sei, o que você quer fazer? Uai, o que era isso? Gustavo era quem organizava as saídas, porque ele sabia que se deixasse isso por conta de Mélanie, eles acabariam passando o final de semana trancados em casa, assistindo a algum seriado que a garota houvesse desenterrado da internet. - Como assim o que eu quero fazer? Você não pensou em nada? - Sei lá! Eu pensei que, por ser o seu último dia de aula, a gente podia sair para comemorar, encher a cara, quebrar algumas coisas... - Muito engraçado, Macedo. Sério, o que você tá pensando? - Meu Deus, Mélanie! Só tô falando pra gente sair, mais nada. Aqui, vou ter que desligar. Depois a gente conversa mais. Mélanie encerrou a chamada e mal teve tempo de respirar antes de começar a correr como uma louca para pegar o ônibus. Entrou no veículo quase sem respirar, mas, logo estava assentada, pronta para ir pra casa. Huummm, casa. Pijama. Cabelo pra cima. Mélanie queria pular de alegria, ainda sem acredi-tar que estava de férias. Encostou a cabeça na janela do ônibus e fechou os olhos, sabendo do risco que corria de, em questão de segundos, desmaiar de sono ali mesmo. Bom, que se danasse. Era essa a vida dela agora. Qualquer folguinha que tinha, Mélanie fechava os olhos e dormia. Já tinha perdido as contas de quantas vezes dormira em pé no ônibus, ou no meio do banho, ou até em cima dos tubos de ensaio do laboratório onde trabalhava. O medo de ter misturado sua baba com amostras de sangue foi tão grande que agora ela só dormia no trabalho quando conseguia fazer uma pausa, ir ao banheiro, se trancar em um reser-vado e desmaiar de sono sentada em um vaso. Esse foi o último pensamento coerente de Mélanie. Quando ela abriu os olhos de novo, o trocador do ônibus estava sacudindo seu ombro. - Moça, seu ponto é o próximo, não é? Claro, o trocador teve que acordar Mélanie. Ele já devia ter marcado a cara da menina, porque ela costumava pegar esse ônibus quando havia uma oportunidade mágica de almoçar em casa ao invés de comer aquela massa desforme que eles chamavam de comida no refeitório da faculdade. De qualquer maneira, Mélanie se levantou rapidamente, agradeceu ao trocador e desceu do ônibus limpando a baba. O ponto de ônibus não ficava longe do seu prédio, o que era ótimo porque Mélanie realmente temia que pudesse cair de cara no chão de tanto sono. Já em casa, jogou a mochila em cima do sofá, tirou o par de tênis imundo e o jogou em um outro can-to, prendeu o cabelo em um coque e foi abrir a geladeira. Fala sério, ela merecia aquela grande e linda barra de chocolate que Paula havia comprado em uma grave crise de TPM. Pegou o bendito chocolate e se jogou em um sofá. Estava ali, reinando em sua pequena sala, quando ouviu a porta abrindo. A con-versa que ouviu, vindo do lado de fora, mostrou que todo o momento de paz e descanso que Mélanie tanto esperava logo sumiria. Mas, não tinha problema. - Ah, bom dia, bela adormecida! - Gustavo gritou. Mélanie nem se moveu. - Tia, a gente trouxe comida pra você! Obviamente, Daniel pulou em cima de Mélanie. Não tinha jeito de resistir àquele menino, sério. Mé-lanie puxou Daniel e começou a fazer cócegas no sobrinho, que ria escandalosamente. - Trouxe comida pra mim, foi? Que comida gostosa você trouxe pra mim? - A gente foi no japonês! - o menino respondeu. - Japonês? - Mélanie olhou para Gustavo - Humm... peixe cru, hein? Que delícia! Gustavo foi levar a comida para a cozinha e Daniel foi atrás. Ah, homens... Mélanie acabou se levan-tando e indo atrás também. Na última vez em que Gustavo e Daniel ficaram sozinhos na cozinha, eles tiveram a brilhante ideia de fritar ovo no microondas. O caso era que ainda havia manchas da gororoba no teto, então a instrução era nunca deixá-los sozinhos na cozinha novamente. Nunca. - A Paula vai te matar quando ela descobrir que você levou o Dani pra comer peixe cru. - Ele não comeu peixe cru, Mel. Lá tinha arroz, feijão...

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- Comida de gente normal, você quer dizer. - Japonês é super normal. - Tio, cadê meu chocolate? Mélanie lançou um olhar de reprovação para Gustavo, enquanto ele tirava uma pequena barra de chocolate de uma das sacolas e entregava para Daniel. - Japonês e chocolate. É, a Paula com certeza vai te socar até a morte. - Só se alguém contar para a Paula. Alguém vai contar pra ela? - Não! - Dani gritou e saiu correndo da cozinha. Claro que logo eles ouviram o som do menino tro-peçando em alguma coisa, mas, logo ele estava correndo de novo. Gustavo olhou para Mélanie, rindo. - E eu não trouxe peixe cru pra você, bebê. Você devia entrar nessa mesma onda saudável da sua irmã, mas, quais as chances disso acontecer? - Desculpa, mas, eu não entendo porque não fritam essa chatice desse peixe, ainda mais com tanto óleo por aí - Mélanie já estava com uma batata frita na boca quando respondeu. - Mas, a gente faz uma excessão pra hoje à noite. E aí, aonde você quer ir? - Cinema? - Não, vamos sair de verdade, Mel. Tem um tempão que a gente não vai em um restaurante - Gustavo olha o relógio - Eu tenho que voltar para o trabalho. Te busco às nove horas, a gente vai num lugar novo lá na Savassi, tá? - Huummm... como somos chiques e ricos, gente... - É, eu tô nadando na grana. Gustavo dá um rápido beijo na testa de Mélanie e sai apressado. - Tchau, Dani! - ele grita. - Tchau, tio - o menino responde aos berros também. Quando Mélanie escuta o som de Gustavo trancando a porta, ela já está se afogando no prato de ba-tatas fritas. Não consegue deixar de suspeitar que por trás dessa vontade de Gustavo de sair para algum lugar, haja algo mais. Com certeza ele fez alguma merda. Será? Ai, meu Deus! Não, espera, não pode ser isso. Ele deve só falar que vai passar mais alguns meses fora. Talvez ele tenha sido promovido e tenha que ir pra São Paulo. Ele sempre falou que em São Paulo ficam os melhores empregos pra publicitários. Nossa, é isso, com certeza é isso. O Gustavo vai para São Paulo. Talvez Mélanie estivesse exagerando, mas, ela conhecia Gustavo bem demais para saber quando ele estava arrumando alguma coisa. Mas, pela madrugada, essas batatas estavam boas demais para que Mélanie se preocupasse com alguma coisa além de devorá-las.

E lá estavam eles, em um restaurante badalado da Savassi. Não era o lugar favorito de Mélanie, mas ela admitia que a comida dali era sensacional. Gustavo vivia arrumando esses lugares novos, com gente que ela nunca havia visto antes e todas muito mais bem vestidas que ela. E que Gustavo também. Mas, dava para rir bastante e comer muita coisa boa. Gustavo e Mélanie passaram a primeira parte da noite falando sobre o dia de cada um. Isso era ridí-culo porque eles já estavam cansados de saber da rotina um do outro, do que eles gostavam ou não no trabalho, daquele professor infeliz que merecia ir para o sétimo círculo de fogo do inferno, do filme novo que ia estrear e que eles precisavam assistir. O ritmo da conversa era sempre o mesmo, mas, até Mélanie, uma “antissocial assumida”, como Gustavo falava, tinha que admitir que aquele sanduíche enorme deixava qualquer conversa mais interessante. - E aí? O que você quer me contar? - ela perguntou de repente. - O que eu quero te contar? Como assim? - Gustavo dá outra dentada no sanduíche. Mélanie acaba pendurando o guardanapo no colarinho da camisa dele. - Ai, Gustavo, você ainda acha que consegue esconder as coisas de mim. Pode ir falando! Você vai pra São Paulo? - O que? Mel, não tem nada disso - ele responde, limpando a boca no guardanapo. - Ok, então, não é São Paulo. Mas, tem alguma coisa, não tem?

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- Por que você pensa que tem alguma coisa? - Cut the crap, tá bom? Gustavo fica em silêncio por alguns segundos, enquanto Mélanie continua observando o amigo. - Posso pelo menos terminar meu sanduíche? - Ah, eu sabia! - Mélanie diz, batendo na mesa - Sabia que tinha alguma coisa! O que é? - Vamos terminar de comer, Mel! Esse sanduíche é caro demais pra gente ficar conversando ao invés de comer. - Isso é verdade. Quem que paga trinta reais num hambúrguer, pelo amor de Deus? - Esse é o preço para se comer bem. - Na Savassi, né? A gente podia tá comendo naquela pizzaria lá do bairro. - Se você quiser, a gente larga os sanduíches aqui e vai pra lá. - Sem chance. Esse negócio tá muito bom. E para de me enrolar, Gustavo. Você tá escondendo alguma coisa de mim e eu odeio quando você faz isso. - Que tal a gente parar de falar e só comer esse sanduíche em paz, hein? Era o que Mélanie precisava escutar. Alguns minutos mais tarde, seu prato já estava praticamente lim-po, apenas as migalhas denunciando que, há pouco tempo, um sanduíche monstruoso passou por ali. Ela ficou encarando Gustavo, que parecia mastigar o sanduíche umas 50 vezes antes de engolir. Mélanie acabou perdendo a paciência. - Eu vou tirar esse hambúrguer da sua mão se você não acabar com ele em um minuto. - Um minuto? Quer que eu morra engasgado? - Eu tô falando sério, Gustavo Macedo. - Mélanie Vasconcelos, você consegue ser um pé no saco quando quer. - Obrigada. Gustavo terminou o sanduíche com mais três mordidas. Mélanie já estava batendo o pé de nervosis-mo, tentado adivinhar o que Gustavo ia falar. Dava para ver que era alguma coisa importante. PELOA-MORDEDEUSGUSTAVODÁPRAFALARRÁPIDOEUTÔMORRENDOAQUI... - Tudo bem, você me pegou. Aconteceu uma coisa, sim. - Isso não é novidade. Desde a hora em que você me ligou hoje cedo eu saquei que tinha alguma coisa. O que é? - Mel, eu... - Eu o que? - Eu tô namorando. - Para com isso, cara. - É sério. - Quão sério? - Muito sério. Mélanie se recostou à cadeira novamente. Então era isso? Gustavo estava namorando? E ele falou que era “muito sério”. O que isso significava? De boa, o que “muito sério” poderia significar para um garoto que ficava nervoso quando um menino de quatro anos ganhava dele em uma partida de jogo da memória? Mélanie resolveu entrar na brincadeira. - Então, você tá namorando? - É, eu tô. - Quem é a doida ? - Não sei se você vai se lembrar dela. É a Patrícia. - Patrícia quem? - Lembra do meu aniversário do ano passado? Ela era uma amiga que o meu primo levou. - Você tá pegando a ex-namorada do seu primo? - Ela não namorou o meu primo, Mel. - E de onde ela brotou, assim, tão de repente? - Uns dois meses atrás, naquele dia que eu saí com os meus primos e você não quis ir comigo. Ela estava lá. Aí, a gente conversou um pouco e, desde então, a gente tem se falado todos os dias.

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- E por causa disso, você a pediu em namoro? - Não, não foi só por isso. Ela é uma garota legal, gosto muito dela e não tinha sentido em continuar nessa coisa indefinida. Aí, a pedi em namoro. - Quando? - Ontem à noite. - E por que você não me contou que tava de rolo com essa menina? - Porque você nunca gosta das meninas que eu gosto. - Que mentira! Teve aquela lá que eu gostei, a... qual era o nome dela? A Sandra, Sônia... - Samanta. E você só gostou dela porque ela arrumava desconto no cinema pra gente. - Uma garota adorável. - É diferente com a Patrícia, Mel. Ela é... bom, ela é diferente. - Diferente? Em que sentido? - Não dá pra explicar. Você precisa conhecer a Pati. Tenho certeza que você vai gostar dela. - Ela consegue arrumar desconto de alguma coisa pra gente? - Eu não vou nem comentar. Ele parecia estar mesmo falando sério. Pátricia. Huummm... Mélanie não fazia ideia de quem era essa menina. Não se lembrava dela de jeito nenhum. Aniversário do ano passado? Por favor, Mélanie não se lembrava nem do que ela havia comido no almoço. - E você já falou sobre mim pra ela? - Claro que sim. Ela também quer muito te conhecer. - E como eu vou ser apresentada dessa vez? Como uma menor abandonada que você tirou das ruas? Como a sua escrava? Como... - Eu sempre te apresento como a minha amiga, Mélanie.

6 de maio de 2010, quarta-feira

17 de agosto de 2010, terça-feira

4 de fevereiro de 2011, sexta-feira

28 de setembro de 2011, quarta-feira

- Clara, essa é a Mélanie, a minha irmã adotiva.

- Vanessa, essa é a Mélanie, ela é a minha...prima!

- Juliana, essa é a Mélanie, ela é... - ... a amante secreta do Gustavo e, no momento, grávida do terceiro filho dele! Oi! - Mélanie!

- E, Poliana, você precisa conhecer a Mélanie. Ela é... - ...a esposa número 1 do Gustavo. A gente é mórmon. Bem-vinda à família! - Mas, o que...? Mélanie!

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22 de junho de 2012, sexta-feira

- O negócio é que eu já deixei claro pra ela que eu tenho uma melhor amiga e ela é muito tranquila com isso, você vai ver. Você não parece muito convencida. - É que eu já vi essa história antes, Gustavo. E, depois de uns dois meses, todas elas têm o mesmo fim. - Falta de fé no melhor amigo, hein? - É porque eu te conheço muito bem, querido. - A gente pode sair amanhã pra você conhecer a Pati? - Amanhã? Já? - É. A gente pode ir ao cinema. - Agora você quer ir ao cinema, seu safado?! Não, muito obrigada, não quero ficar de vela. Além do mais, acho que a Paula vai sair amanhã, então eu devo ficar com o Dani. - Em um sábado à noite, Mel? Sem chance. Eu vou falar com a Paula. A gente vai sair amanhã, com-binado? - Eu não quero sair. - Dane-se. Vou ver com a Patrícia que filme ela quer assistir e a gente decide o horário. O que? Não olha pra mim com essa cara, é a primeira vez que nós vamos sair juntos, nós três, então, nada mais educado do que deixar que ela escolha o filme. - Gustavo do céu, eu vou arrebentar a sua cara se você tiver arrumado uma namorada que gosta de... - Ela não gosta de Crepúsculo. É sério, a gente já conversou sobre isso. Vai ser legal amanhã, eu pro-meto. - E se ela não gostar de mim? - Mel, por favor! Como ela não gostaria de você? Já falei de você pra ela, você é a minha melhor amiga. Ela tá de boa com isso, sem ciúme nem nada, você vai ver. - E não vai mudar nada com a gente, né? - Nunca, Mel. Aliás, vou almoçar na sua casa amanhã, tá? Meus pais arrumaram uma reunião de negócios e eu não tô a fim de comer miojo. - Ah, a Paula vai ficar super feliz em fazer uma das receitas novas dela pra você experimentar. - Qual era o nome daquele negócio que a gente comeu outro dia? Salada o que? - Salada Dinamitada. Era por causa da manga explodida que ficava no meio, você lembra? - É verdade, tinha uma manga. Riram se lembrando das saladas de Paula e ficaram mais um bom tempo sentados no tal restaurante. Tempo suficiente para ficarem com fome novamente e pedirem uma sobremesa gigante, uma mistura exótica de sorvete, caldas e bolo, tudo banhado em chocolate. - A Paula infartaria se visse isso daqui - Gustavo disse. - Vamos deixar as preocupações vegetarianas para amanhã. Gustavo e Mélanie riram de novo e, antes que ela percebesse, Gustavo passou sua colher lambuzada de chocolate no nariz da garota. Ela riu ainda mais e fez a mesma coisa com o amigo. Os dois foram embora com o rosto sujo de chocolate.

23 de junho de 2012, sábado

Gustavo estava caminhando para o prédio de Mélanie quando ouviu o celular tocando. Não fazia ideia de quem poderia ser àquela hora da manhã, já que todos os seus amigos sabiam que as manhãs de sábado eram sagradas para Gustavo e que ele não saía da cama antes das 11 horas. Era uma questão de princípios. Só tinha acordado mais cedo hoje porque tinha prometido a Daniel que iriam jogar video-game, e como o garoto tinha um horário determinado para ficar na frente da televisão, cada segundo era precioso. Equilibrando o videogame em um braço e tentando atender a chamada no outro, ao mesmo tempo

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em que pegava as chaves do prédio no bolso, Gustavo não conseguiu ver quem estava ligando. Atendeu mesmo assim. - Alô? - Bom dia! Patrícia! Claro! Ela ainda não conhecia a regra NÃO ME PERTURBE de Gustavo. - Bom dia! E aí, como você tá? - Ótima! E você? - Com sono. Patrícia responde rindo. - Você tá sempre com sono. O que você vai fazer agora? - Indo almoçar. Por que? - Você não quer sair pra almoçar? A gente podia ir naquele restaurante japonês que você gosta. - Humm... bem que eu gostaria, viu? - Gostaria? - Não vou poder ir. Eu combinei de jogar videogame com o Daniel. - Quem é Daniel? - Meu sobrinho, uai. Eu te falei dele, Pati. - Não, você... Gustavo, você não é filho único? - Sim, mas, o Dani é o meu sobrinho - Gustavo já está abrindo a porta do prédio de Mélanie - Ele é filho da Paula, irmã da Mélanie. Lembra que eu falei deles pra você? - Ah, tá! Na verdade, ele é sobrinho da Mélanie, né? - Meu sobrinho também. O caso é que hoje é o único dia que a mãe dele libera o videogame, então, ele tá me esperando. - Não, sem problemas. Te avisei em cima da hora mesmo. Mas, a gente se encontra à noite, né? - Com certeza! - Ótimo! Então, até mais e bom videogame pra vocês. - Valeu, Pati! Te vejo daqui a pouco. Gustavo já está parado na porta do apartamento de Mélanie, numa confusão de celular, chaves e vi-deogame. Com muito esforço, consegue abrir a porta, apenas para encontrar Mélanie sentada no sofá com Daniel no colo. - Tio! - E aí, Dani? - Nossa, graças a Deus você chegou - Mélanie disse - Já não aguento mais esses desenhos do Mickey. - Eu gosto do Mickey - Daniel fala. - Então, você quer continuar assistindo ao Mickey e deixar o videogame pra depois? - Gustavo per-gunta. - Não, né, tio? Eu quero jogar aquele de lutinha! Mal o garoto termina de falar, Paula já está gritando ordens da cozinha. - Daniel Vasconcelos, nada de jogo de lutinha! E, Gustavo, ai de você se eu pegar meu filho atirando em alguém. - Não é de verdade, Paula. É só catchup. - Eu gosto de catchup - Daniel fala. Mélanie faz um sinal para que Daniel fique em silêncio. Paula não precisa saber de todas as batatas fritas encharcadas de catchup que Mélanie e Gustavo sempre dão um jeito de passar para o garoto. Dani coloca as mãozinhas na boca. - Você o que? - Paula pergunta, saindo da cozinha. - Nada! - os três respondem juntos. Paula faz cara de cansada. - Olha, não quero saber. Jogo de lutinha não, entenderam? - ela aponta para Gustavo e Daniel com uma colher de pau. - Tá bom. De futebol pode? - Gustavo pergunta enquanto monta o aparelho. - Do Galo! - Dani grita.

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- Que tal da Europa, Dani? - De quem? - Esquece. É de futebol também, você vai gostar. - Se eu ouvir algum som de tiro aqui, Gustavo, eu vou fazer você pagar pela terapia do Daniel, enten-deu? - Paula fala. - Sem problemas. Vem, Dani. Os dois se acomodam no chão, de frente à TV, já devidamente preparados para passarem duas horas ali, sem sair do lugar. - Mel, vem me ajudar no almoço. - Nossa, você vai me deixar mexer na sua preciosa comida? - Você só vai picar as coisas pra mim, só isso. - Você tá fazendo salada? - É uma lasanha de quatro queijos. Gustavo e Mélanie olham espantados para Paula. - O que foi? Não posso comer lasanha? - E a onda da dieta? - Gustavo pergunta. - Já tô na luta com a onda vegetariana, a dieta vem depois. Mel, dá pra ser ou tá difícil? Mélanie se levanta com um esforço exagerado, mas, vai até a cozinha. Gustavo volta a se concentrar no jogo. Colocou no nível mais fácil e, de vez em quando, tem que dar alguns deslizes para que Dani consiga marcar um gol. O menino fica tão feliz que acaba compensando as besteiras que o time de Gustavo faz ao longo da partida. Até Daniel faz piadas. - Você perdeu o gol, tio! - É, eu tô precisando treinar mais. Continuam jogando sem nem prestar atenção no que está acontecendo na cozinha. Só de ter ouvido que eles não almoçariam salada, Gustavo já tinha ficado aliviado. De uns tempos pra cá, Paula tinha ficado com mania de comida mais saudável. Se fosse só ela, não tinha problema. O negócio foi que ela arrastou Mélanie, Gustavo e até o coitado do Dani pra essa onda vegan. Então, a tal lasanha de quatro queijos era a melhor coisa que Paula preparava em semanas. Não dava para reclamar. De repente, Gustavo sentiu o celular vibrando no bolso. Deu pause no videogame e Daniel olhou assustado para ele. - Tio, por que parou? - Eu só preciso ver uma coisa aqui, amigão. Era uma mensagem de Patrícia. “Como que tá o videogame? Lembra de deixar o seu ‘sobrinho’ ganhar tá? Beijo!” Primeira coisa que precisava falar com Patrícia: não se referir a Daniel como seu “sobrinho”, assim, entre aspas. Era sobrinho mesmo, não tinha nada de aspas no meio do negócio. - Anda, tio - Dani começou a falar com a sua voz chorosa. - Só um segundinho, Dani. Gustavo digita rapidamente uma resposta para Patrícia. “O Dani é melhor do que eu em tudo, nem preciso deixar ele ganhar. Haha! Beijão!” Celular de volta no bolso, bola correndo novamente e logo Dani já estava apertando os botões da manete quase com fúria. Enquanto Gustavo tentava mostrar para o garoto o que ele devia fazer para marcar um gol, ele não conseguiu deixar de imaginar como seria ter Patrícia ali. Será que ela se adapta-ria bem à família? Sim, porque Mélanie, Paula e Dani já eram sua família há bastante tempo, não havia discussão quanto a isso. As outras namoradas de Gustavo não sabiam lidar muito com esse arranjo, tanto que ele nem se lembrava de já ter levado alguma delas para conhecer os Vasconcelos. A maioria desistia depois de conhecer Mélanie. Mas, Patrícia era diferente. Gustavo já tinha falado sobre Mélanie para ela, antes mesmo de começar a rolar alguma coisa. Ele até entendia que algumas meninas tivessem ciúme da “melhor amiga do namora-do”, mas, não precisava de todo o circo que elas costumavam arrumar. Patrícia parecera entender como a coisa toda funcionava, graças a Deus. Gustavo esperava sinceramente que ela se desse bem com Mélanie.

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- Ok, garotos, larguem isso daí e venham comer. Obviamente, Daniel e Gustavo nem se mexeram. Paula chamou de novo. - Daniel e Gustavo, vamos com isso, por favor? - Deixa a gente jogar, manhêêê... - Dani e sua voz chorosa de novo. - Não na hora do almoço. Depois vocês jogam mais. - Pode mesmo jogar mais? - Só se você comer tudinho. Gustavo deu pause no jogo e pegou Biel no colo. O garoto falava animado da partida de futebol, como se fosse o próprio campeonato europeu que ele havia acabado de disputar. Paula pegou Daniel e se assentou com ele à mesa, enquanto Gustavo e Mélanie pegaram seus pratos e se assentaram no sofá. Era hora de assistir seriados. - Vocês não podem deixar essa televisão desligada nem na hora do almoço? - Paula perguntou. - Acho que tá passando Friends agora - Mélanie responde - E, que milagre, a lasanha ficou muito boa. - Mesmo? - Gustavo pergunta, ainda com dúvidas. - Gustavo! - Paula reclama. - Tá boa, Gu. Pode comer sem medo. Eles se acomodoram no sofá e Paula continuou assentada à mesa com Dani, tentando convencer o menino que o Batman só era forte porque ele comia abóbora.

- Nossa, Gustavo, você é tão previsível. - Por que? - Porque ela é do jeito que eu tava imaginando - Mélanie diz, apontando para algum lugar - Alta, magra e cabelo liso. Que surpresa. - Linda, né? - Cala a boca. Patrícia está vindo em direção aos dois e, pelo jeito que ela mexe o cabelo, dá pra ver que ela está ner-vosa. Gustavo acha, sinceramente, que ela e Mélanie vão se dar bem. Ele não estava brincando quando disse que Mélanie não gostava de nenhuma de suas namoradas, talvez porque ela soubesse que, no fim das contas, não ia dar em nada mesmo. Mas, Gustavo queria que fosse diferente agora. Tinha que ser, né? Ele já estava com 24 anos, estava na hora de ter um pouco de seriedade na vida, pelo amor de Deus. - Olá! - Patrícia diz, animada. - Oi, Pati - Gustavo se inclina e lhe dá um rápido beijo. Ela está realmente muito bonita. Obviamente, foi essa a primeira coisa que chamou a atenção de Gustavo: o fato de Patrícia ser muito gata - Tudo certo? - Tudo bem, e você? - Tudo bem. Vem cá, deixa eu te apresentar à Mélanie, a amiga que eu te falei. Gustavo fala rápido demais, antes que Mélanie falasse alguma outra coisa. É claro que Mel olha para ele de um jeito engraçado, entendendo porque ele falou rápido daquele jeito, mas, logo ela volta a sua atenção para Patrícia. - É, eu sou a amiga. - Muito prazer, ouvi falar muito sobre você. - Bem, eu espero. - Você vai acabar se acostumando com o drama da Mel, Patrícia - Gustavo diz, passando o braço pela cintura dela. - Eu, dramática? Só tô falando que é uma surpresa saber que você tá falando bem de mim para as pessoas! - Sim, muito surpresa - ele se vira para Patrícia - Vamos lá escolher o filme? - Achei que vocês já tinham escolhido. - Não, não. Como essa é a primeira vez que você sai com a gente, você vai ter a honra. - Desde que não seja nada dublado nem de adolescente - Mélanie completa - A gente é meio chato com filme, desculpa.

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Patrícia parece um pouco confusa com todo aquele diálogo entre Mélanie e Gustavo, mas, acaba concordando com o arranjo. Gustavo sabe que ela não curte esses filmes, mas, também não é tão ligada em cinema como Gustavo. Mas, só o fato dela não gostar dessas porcarias que Hollywood andava pro-duzindo, já era suficiente para ela ganhar muitos pontos com Mélanie. Sim, Gustavo estava preocupado com isso. Queria, quase precisava, que Patrícia e Mélanie se dessem bem. Esse negócio de ter uma namorada e uma melhor amiga era complicado às vezes, mas, Patrícia era diferente. Ela não parecia o tipo que teria ciúmes ou qualquer coisa infantil desse jeito. E Mélanie só precisava ser convencida de que o negócio de Gustavo com Patrícia era sério, senão ela a trataria como mais um caso passageiro, como as outras. Agora, os três estão parados olhando para os cartazes. Patrícia e Mélanie observavam atentamente todas aquelas fotos e Gustavo sabia que, àquela altura, Mélanie já devia estar gritando internamente para que eles assistissem àquele novo filme de espionagem, que tinha um jeito meio cabeça desses que deixam você pensando pelo resto da vida se você entendeu o final. Milagrosamente, porém, ela conse-guiu ficar calada enquanto Patrícia continuava olhando. - Gente, eu não sei. O que vocês gostam de assistir? - Patrícia pergunta. - Tem esse daqui que... - Não, não - Gustavo interrompe - O que você gosta de assistir, Pati? Você que escolhe, lembra? Gustavo olha para Mélanie e a manda calar a boca, sem falar uma palavra. Mélanie manda ele ir à merda, também sem falar nada. - Esse daqui parece bom - Patrícia fala, apontando para o cartaz do filme que Mélanie queria ver. Gustavo e a amiga arregalam os olhos. - Sério? - Gustavo pergunta. - Eu gosto de filme policial. Vocês não? - Gostamos, sim. Pode ser esse, Mel? Mélanie e Gustavo se entreolham rapidamente e a garota faz um sinal de positivo com a mão. Isso é bom. Significa que Patrícia está aprovada ou, pelo menos, com grandes chances de ser. - É, pode ser - ela responde com voz de indiferente. Gustavo sabe que ela só está fazendo isso para encher o saco, então, nem responde. - Ótimo. Vamos comprar os ingressos?

Algum tempo mais tarde, Gustavo sai do cinema agradecendo aos céus silenciosamente. Mélanie gos-tou do filme, Patrícia gostou do filme e, agora, as duas conversavam sobre quem tinha entendido o final do filme, quem tinha sacado quem era o vilão logo no início e como o protagonista se esforçava, sem sucesso, em ser o próximo Tom Cruise. Gustavo estava aliviado. Pediram algumas pizzas e se assentaram. A praça de alimentação estava bem cheia e barulhenta, coi-sa bem típica em um shopping de Belo Horizonte em um sábado à noite. Gustavo, Patrícia e Mélanie continuaram conversando sobre o filme. A certa altura da conversa, Mélanie fala: - Acho que a Paula ia gostar desse filme. - Paula é a sua irmã, certo? - Patrícia pergunta. - Minha irmã mais velha. - Você tem mais irmãos? - Não, a Paula já dá trabalho suficiente. E você, tem irmãos? - Tenho um irmão mais velho, mas, ele mora no Rio. Casou com uma carioca e tá lá há um ano já. - Ele vem muito aqui? - Pouco. Eu vou mais lá do que ele vem pra cá. Mas, é legal. Ele mora em um apartamento grande, a esposa dele é bem legal também. - Bem que a Paula podia ter casado com um carioca também. Praia todo final-de-semana. Patrícia ri. - Ah, quem dera fosse assim. Eu tento ir lá pelo menos uma vez por mês. A sua irmã não é casada? - Não, não. Ela fez o Dani antes da hora mesmo. Gustavo tenta lançar mais um olhar comunicativo para Mélanie, pedindo para que ela falasse de um

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jeito menos escrachado, mas, a amiga simplesmente o ignora. Patrícia, por sua vez, só ri. - Sério? E o pai dele, onde que ele tá? - Ah, ele aparece às vezes, mas, faz mais o tipo que dá o dinheiro e é isso aí, sabe? A Paula é meio louca. Ela veio pra cá pra estudar e, quando já tava quase formando, ela conheceu esse cara e, um mês depois, surpresa! - Então, vocês não são de BH? - Itabira. Minha família toda é de lá. - Entendi. Quantos anos você tem? - Eu? 23. E você? - 23 também. E você já tá formando na faculdade? - Ano que vem, se Deus quiser. - A Mel faz biomedicina, Pati. Vocês devem ter alguns assuntos em comum - Gustavo fala. - Eu faço veterinária, Gustavo. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. - Ah, o Gustavo é assim. Ele acha que tudo que tem biologia é a mesma coisa. Logo, Gustavo vê, com certo horror, sua namorada e sua melhor amiga rindo da cara dele. E olha que elas tinham acabado de se conhecer. Ele não poderia ter pedido por uma harmonia melhor. Geral-mente, as namoradas que ele apresentava para Mélanie torciam o nariz quando iam conversar com ela. Mélanie era bem irônica. Até demais, pra falar a verdade. A conversa se manteve amigável por mais um bom tempo. Patrícia queria conhecer mais sobre Méla-nie, então continuou perguntando sobre a vida dela, sobre as diferenças entre Itabira e Belo Horizonte, sobre o sobrinho dela e por aí vai. Gustavo acompanhava tudo com atenção e tranquilidade, sem inter-ferir muito na conversa. Queria que Pati e Mel tivessem esse momento para travarem conhecimento. Elas podiam ficar amigas. Na verdade, elas meio que tinham que ficar amigas, senão a vida de Gustavo seria um pesadelo. A conversa estava tão boa, que ele só foi perceber que estava tarde quando as lojas da praça de alimentação começaram a fechar. Mesmo na fila para pagar o estacionamento a conversa não parou. Agora, Mélanie e Patrícia conver-savam sobre os professores em comum que elas tinham tido. Como estudavam na mesma faculdade, elas acabaram descobrindo que tiveram aula com o mesmo professor chato de sociologia e com a mesma doida de estatística. Elas só pararam de conversar quando chegaram ao carro de Patrícia. Ela e Mélanie se cumprimentaram. - Foi um prazer conhecer a melhor amiga do Gu - Patrícia disse. Mélanie riu. - O Gustavo não me falou que você era tão boazinha! Vamos sair mais vezes, tá? - Com certeza - Pati diz, sorrindo. Gustavo olha para Mélanie, agora indicando que ela devia sumir dali para poder se despedir da sua namorada com certa privacidade. Mélanie entende o recado. - Vou deixar vocês em paz. - Pode me esperar no carro. - Tô indo pra lá, Gu. Mélanie sai antes de olhar para a cara de Gustavo. Que negócio era aquele de Gu? - Eu gostei da Mel, de verdade. Ela é muito engraçada - Pati diz. - Que bom. Sério, eu tô aliviado. - Por que? Gustavo se dá conta da besteira que fez, mas, não tem jeito de contornar. Talvez, dar uma amenizada. - É porque... bom, as outras meninas... elas sempre têm ciúme da Mel. - Outras meninas? - Esquece. A Mel é legal mesmo, minha irmã. Patrícia dá um sorriso irônico. - Percebi. Quer almoçar lá em casa amanhã? - Nossa, já vou conhecer a família? - Tá com medo?

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- Não, é que... - Você não conheceu a família dessas outras meninas? Gustavo tenta pensar em alguma desculpa qualquer, mas, Patrícia é mais rápida. Ela se aproxima e o beija rapidamente antes de abrir a porta do carro. - Te espero amanhã, meio-dia. Ele continua parado ali, com um sorriso bobo no rosto, olhando sua namorada indo embora. Ele está realmente gostando dela.

- Antes de você falar qualquer coisa, vamos deixar uma coisa clara. Você não vai me chamar de “Gu”. - Por que não? Por que a sua namorada pode e eu não posso? - Justamente por isso. Ela é a minha namorada. Você não. - Vocês já têm apelidos carinhosos? - Não. E nem vamos ter. - Gustavo amoreco, Gugu Docinho-de-Coco, Guguzinho... - Mélanie começa a falar com voz de bebê. - Cala a boca - ele diz, rindo. Gustavo está dirigindo de volta para casa e Mélanie, no banco ao lado, olha pela janela enquanto prende o cabelo em um coque. Ela tem mania de coque. - E aí, o que você achou dela? Mélanie pareceu ficar pensativa. - Bom, sejamos sinceros, né? Ela é a melhor de todas que você já arrumou. Escolheu um filme bom, é boa de conversa e parece que não é do tipo que vai encher o saco com a gente. Claro que eu acabei de conhecer a menina, mas, sei lá, ela parece ser legal. - O que falta pra ela ser aprovada? - Me levar pro apartamento dela no Rio, é claro. - O apartamento não é dela, é do irmão dela. Que é casado, caso você não se lembre. - Tanto faz. Quem liga pro irmão dela? Eu quero é ir pra praia. - Muito tempo que você não vai, né? - Bastante tempo. Olha aí, é mesmo! Nossa, Gustavo, você arrumou a namorada perfeita na melhor época possível. Eu tô de férias, ela tem um apartamento no Rio e eu preciso ir pra praia. É o destino. - O apartamento não é dela! E a gente começou a namorar há dois dias, Mel! Não vou sair pedindo pra gente ir pro apartamento no Rio. Que é do irmão dela. - E por que não? A gente vivia pedindo desconto no cinema pra aquela outra lá, a Simone, Sônia... - Samanta. - Essa daí. - É diferente agora. - O que é diferente agora? - Não sei, a Pati é diferente. Ela é mais tranquila com tudo. - Você tá gostando dela, não tá? - Acho que sim, viu? Acho que sim. - É pra eu ficar preocupada? - Não, pode ficar tranquila - Gustavo responde rindo - Não tô a fim de ficar fazendo hora mais. - Você tá falando igual a um adulto. - Eu sou adulto! - Ah, tá, claro que é. Diz isso para o seu cobertor do Buzz Lightyear! - Foi minha tia que me deu, eu guardo por razões sentimentais. - Gustavo, você ficou cinco dias chorando depois que a gente assistiu Toy Story 3! - Até você chorou nesse filme, Mel. - Aquele final foi muito triste, me dá um desconto. - Então para de falar do meu cobertor. Já estavam quase chegando em casa. Não era muito tarde ainda, dava para zoar um pouco mais, mas, Gustavo sentiu que precisava descansar bem. Ora, ia conhecer os sogros no dia seguinte, isso com

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apenas dois dias de namoro! Era quase desesperador. Gustavo parou o carro em frente a sua garagem e esperou Mélanie descer. - Quer ir lá pra casa assistir alguma coisa? - ela perguntou. - Não, hoje não. Mélanie estranhou. - Por que? - Tenho que acordar cedo amanhã. Vou almoçar na casa da Patrícia. - Já? - É, já. Mélanie fez cara de surpresa e começou a caminhar em direção ao seu prédio. - Beleza, então - ela disse - Já combina com o sogrão pra gente ir pro Rio, tá? Gustavo só foi parar de rir quando precisou fazer silêncio para entrar em casa.

21 de fevereiro de 2009, sábado

Mélanie gostava muito de praia. Muito mesmo. Era do tipo que só saía da água quando sentia que a pele ia começar a derreter. Na verdade, era do mar que ela gostava mesmo. Não entendia essa mania do povo de ficar estendido na areia, torrando igual a um frango assado, quando se tinha aquele mar geladinho logo ali. Naquela manhã de sábado, em pleno carnaval, a praia estava absurdamente lotada. Era difícil até de respirar. Bem que Paula avisou que era uma péssima ideia ir para Cabo Frio, em pleno Rio de Janeiro, bem na época do carnaval. Era muita gente junta, muito barulho, muito tudo. Mas, Mélanie queria tanto ir para a praia que ela relevou tudo isso. Assim que Gustavo disse que ele e mais alguns primos estavam planejando passar o carnaval na praia e perguntou se Mélanie queria ir com ele, ela já estava praticamente com as malas prontas. Sozinha no mar, Mélanie se lembrou das poucas vezes em que pode ir à praia quando era mais nova e ficava imaginando que era uma sereia. Claro que isso era por causa do filme da Disney, mas, além do cabelo vermelho e da barriga chapada de Ariel, outra coisa que Mélanie não tinha da pequena sereia era uma cauda de peixe. Portanto, precisava se contentar com a sua imaginação. Era quase vergonhoso descobrir que, vários anos depois, ela ainda sentia essa alegria infantil quando estava no mar. O resto da galera, toda aquela cambada de primos e amigos de Gustavo, estava na areia, bebendo cerveja, jo-gando frescobol ou, é claro, torrando debaixo do Sol. Imbecis. Mélanie deu algumas braçadas indo para o fundo. Sua mãe era daquelas que ficava gritando para ela voltar pro raso quando a água começava a bater nos joelhos dela. Como essa era a primeira vez que ela viajava sem os pais, precisava aproveitar cada segundo. - Ei, Mel! O grito a parou alguns segundos antes dela mergulhar de novo. Virou-se para trás e viu aquele amigo do primo do amigo do vizinho de outro primo de Gustavo. Ela nunca conseguia entender essas rela-ções muito bem, mas, se lembrava do nome do garoto porque ele foi um dos poucos que conversou com ela quando ela chegou. Se chamava Júlio. Gente boa pra caramba. - Finalmente alguém criou coragem pra entrar! - ela disse, quase sem fôlego por ter nadado tanto. - Não gosto de água gelada - ele respondeu, meio que se desculpando - Mas, o calor tá demais pra ficar na areia. - Foi o que eu tentei falar com vocês assim que a gente chegou. - É, devia ter escutado você. O garoto era desses charmosos, sabe? Não era o cara mais gato do mundo, mas, tinha um sorriso bonito e um jeito de falar que era bem fofo. Mélanie não sabia o que pensar disso. Era óbvio que havia mais meninas por ali, todas elas infinitamente mais bonitas que Mel. Porque diabos Júlio estava ali conversando com ela era algo que ela não entendia. E talvez nem quisesse entender.

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- Você sabe nadar, né? - Claro, por que? - Porque eu tô a fim de ir mais para o fundo e, se você for me acompanhar, não quero ficar preocupada caso você resolva se afogar ou tomar um caldo. Júlio riu. - Caso eu me afogue, eu vou tentar ficar fora do seu caminho. - Ótimo. Bora lá? Mélanie voltou a nadar, ora mergulhando, ora dando braçadas. Se Júlio estava atrás dela ou não, era impossível dizer. Furou algumas ondas, mergulhou de novo e nem se incomodou em olhar para trás. Só foi parar quando sentiu que se desse mais uma braçada, seus braços se descolariam do corpo. Ficou batendo os pés sem sentir o chão. Onde quer que sua mãe estivesse agora, o sexto sentido dela devia estar apitando como um louco. Júlio se esforçava para chegar onde Mélanie estava e a garota não con-seguiu evitar não rir da cara dele, todo esforçado, coitado. - Que preparo físico, hein? - Sou bom no futebol. Esse trem de nadar não é comigo - ele respondeu ofegante. Mélanie riu de novo. - Tem certeza que você não tá morrendo nem nada disso? - Tenho. Quer apostar uma corrida até a praia? - Ahn... depois. Eu não quero sair ainda. - Desculpa, mas, eu tenho que te perguntar. É a primeira vez que você vem à praia? - Não, não. É a... - Mélanie faz uma rápida contagem - ...quinta vez. A última vez que eu entrei no mar foi há uns quatro anos. - Por isso essa emoção toda? - Exatamente. Vai saber quando eu vou poder voltar de novo, né? - A gente pode combinar de viajar mais vezes. A semana santa tá logo aí. O que pensar desse convite? Mélanie resolveu sair pela tangente. - Acho que não vai rolar. Semana santa é o feriado da família. Vou ter que passar alguns dias na minha cidade. - De onde você é mesmo? - Itabira. Mélanie já estava ficando cansada de bater os pés. Júlio estava falando alguma coisa, mas ela não prestou atenção. Estava de olho na onda que estava vindo. Poderia pegar uma carona nela e voltar mais para o raso. - Quer apostar a corrida agora? - ela perguntou. - O que? - Tá vindo uma onda boa aí pra gente pegar carona. Vamos? A onda agora parecia gigante e estava bem perto. Mélanie se preparou. - Não morra afogado, tá? Júlio não teve tempo de responder. Mélanie esticou os braços e nadou de braçadas em cima da onda. Emendou com um mergulho e logo estava com os pés no chão novamente. Passou a mão nos cabelos, ciente de que eles ficariam embaraçados como o inferno, e olhou para trás, procurando Júlio. Ele ainda estava há uma vida de distância, tossindo água. Claramente, tinha tomado um caldo. Mélanie esperou pacientemente para que ele chegasse, tentando segurar o riso. Paula já tinha falado da mania que ela tinha de rir de todo mundo, até de gente que ela tinha acabado de conhecer. Aparentemente, isso era falta de educação. - É melhor você ficar só com o futebol mesmo, Júlio. - Tô tão quebrado que até o futebol eu vou dispensar - ele respondeu, se ajoelhando na água. Já per-to da beirada, não tinha muitas ondas por lá, só grito de criança. De repente, Mélanie sentiu falta do sobrinho. Daniel estava com cinco meses e era a coisa mais fofa desse mundo. Mas, não era hora para ficar sentimental. - Essa praia sempre fica lotada desse jeito? - Nessa época de carnaval, fica sim.

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- Vocês devem vir muito aqui, né? - Ah, às vezes... eu venho mais quando o Leandro anima, afinal de contas a casa é dele. - Me lembra quem é o Leandro, por favor. - Ele que é amigo do Válter, primo do Gustavo. - Ah, tá... agora eu lembrei. - Você lembra do meu nome, né? Mélanie riu. - Claro que sim, Juliano! Ele fez cara de decepcionado, realmente decepcionado. Meu Deus, será que esse menino não consegue ver quando eu tô brincando? - Antes que você comece a chorar, eu só tava zoando. Eu sei que o seu nome é Júlio. Júlio respirou aliviado. - Nossa, por dois segundos eu pensei... deixa pra lá. - Ia ser tão ruim assim se eu esquecesse o seu nome? - Um pouco, sim. Eu não esqueci o seu nome. - Graças ao meu pai, eu tenho um nome meio difícil de esquecer. - Mélanie... Eu gosto do seu nome. - Valeu. Ninguém sabia falar meu nome quando eu era mais nova, aí eu passei os meus primeiros dez anos de vida achando que meu nome era só Mel. Júlio riu e começou a fazer as perguntas de sempre. De onde você é, o que você faz da vida e tal. Não tinham tido muito tempo de conversar no primeiro dia por causa da bagunça, todo mundo se ajei-tando na casa e Mélanie logo correndo para o mar. Agora, sentados no mar, debaixo de um Sol super quente, Mélanie e Júlio travavam uma conversa amena e tranquila. Claro, ainda havia todas aquelas crianças ali por perto, correndo e espirrando água e areia nos dois, mas, não era nada terrivelmente insuportável. Para sua surpresa, Mélanie percebeu que estava gostando de conversar com Júlio. Ele parecia ser bem atencioso. De repente, Mélanie escutou alguém gritando por ela. Virou-se e viu Gustavo, em toda a sua bran-quidão, acenando para ela da praia, fazendo sinal para que ela saísse da água. Mélanie gritou de volta: - Depois! Gustavo continuou gritando, mas, Mélanie deu as costas para ele. - Será que não é nada importante? - Júlio perguntou. - Duvido. Ele deve tá me chamando pra comer alguma coisa. Dá pra esperar mais um pouco. Se você quiser sair, não tem problema. - Não, não. Eu saio com você. O que era aquilo? Será que Júlio estava dando em cima dela? Mélanie não tinha muita experiência no assunto, então, era complicado dizer. - Posso te perguntar uma coisa? - Claro. - Você e o Gustavo... Estava demorando. É sério. Se Mélanie ganhasse um real para cada vez que alguém perguntasse sobre ela e Gustavo, a essa altura ela estaria reinando em uma cobertura em Nova York. - Não. - Mas, eu ainda nem perguntei! - Faça a pergunta então, uai! - Você e o Gustavo... rola alguma coisa? Tipo, entre vocês dois? - Não, a gente é só amigo. - Mesmo? - Mesmo. Por que? Ele deu de ombros. - É porque eu não quero entrar numa disputa com um amigo. - Disputa?

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- Quer dar uma volta? Rápido, mas, mesmo assim, sutil. Mélanie olhou para Júlio, tentando resolver o que faria. Claro, o menino não estava a pedindo em casamento e jurando amor eterno, só estava a chamando para dar uma volta. O que era mesmo que Paula sempre lhe falava? Vá viver sua vida, menina! É, era isso, uma clara referência à mania de Mélanie de sempre complicar o que era para ser simples. Ela se levantou pensando nas palavras da sua irmã. - Ok, vamos lá! Júlio se levantou rapidamente, com um sorriso estúpido no rosto. Vá lá, ele era bonitinho. Não fazia o estilo playboy igual a muitos amigos de Gustavo, mas, também não era o tipo de cara favorito de Mélanie. Não que ela tivesse um estilo definido. Ela só gostava de caras mais normais. Só isso. Mas, não ia arrancar pedaço se ela fosse andar um pouco com o Júlio, certo? Mélanie pensou em passar na mesa onde o grupo todo estava para pegar sua camiseta. Foi mal, mas, aquele corpo lindo e escultural da maioria das meninas da turma não era uma realidade na vida de Mélanie. Quando ficou de biquíni na frente de todos eles, rolou aquele momento de insegurança, afinal de contas ela tinha o corpo de uma pessoa normal que gostava de comer pizza ao invés de salada, com pneuzinhos e tudo mais. No final, ela mandou todo mundo para o inferno e foi nadar. Mas, agora, ela ia dar uma volta com um menino. Cristo, isso é tão quinta série! Decidiu mandar a camisa para o inferno também. Viu Júlio avisar rapidamente a uma das meninas que ele e Mélanie iriam andar por aí e logo o garoto já estava com ela de novo. - E aí, para onde vamos? - Sei lá! Eu não conheço nada daqui, esqueceu? - ela respondeu enquanto prendia o cabelo em um coque alto. - Eu também não! - replicou ele, sorrindo. - Vamos pra qualquer lugar então. E eles foram. Andaram por um bom tempo, conversando sobre qualquer coisa. Em poucos minutos, Mélanie já sabia praticamente tudo da vida de Júlio. Ele fazia direito, tinha dois irmãos mais velhos, morava com os pais, era dois anos mais velho que ela, gostava de Velozes e Furiosos e sua atriz favorita era Julia Roberts. Mélanie não entendeu muito bem como alguém que falava que Julia Roberts era sua atriz favorita conseguia gostar de uma coisa como Velozes e Furiosos e, se esquecendo do outro conse-lho de Paula (de guardar as suas opiniões para si), acabou abrindo a boca e falando demais. Isso levou a uma interminável conversa sobre filmes, que era um assunto que Mélanie gostava e até dominava. No final das contas, acabou admitindo que Júlio era uma boa companhia. E, se sentindo como uma adolescente idiota pela primeira vez em muito tempo, respondeu “sim” quando Júlio perguntou se eles podiam andar por mais um tempo.

Abençoado seja o cara que inventou esse creme-gel-pós-queimadura-de-Sol-que-arde- como-o-in-ferno. Mélanie já tinha quase acabado com um pote inteiro da meleca verde, mas, ainda sentia seus ombros arderem só de olhar para eles. Uma das meninas com quem estava dividindo o quarto, Luciana, olhou com pena para ela. - Nossa, você tá muito vermelha, Mélanie. - É, eu reparei. Já tomei um banho desse gel, mas, nada adianta. - Deixa eu te ajudar - Luciana tirou um pote de algum outro creme e passou para Mélanie - Eu uso esse daqui quando acontece um desastre desses. Acho que é melhor que esse que você tá passando. Mélanie agradeceu à garota e voltou a tarefa de lambuzar o corpo com creme. Depois de ter passado o dia inteiro debaixo do Sol, era óbvio que ela podia esperar por algo desse tipo. E mesmo ela que nem era tão branquela assim conseguiu ficar vermelha. Vai entender. Por fim, quando Mélanie já não achava que era fisicamente possível passar mais nada nos ombros sob o risco de todos aqueles produtos entrarem em combustão, ela colocou a blusa branca que Paula tinha lhe emprestado. Era uma roupa enorme, que Paula usou quando estava no auge

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da gravidez, e que agora havia sido transformada em vestido. Era bonita e, principalmente, confortável. Mélanie terminou de passar gel no rosto e saiu do quarto. A casa onde estavam era bem grande. Tinha uns cinco quartos, uma sala gigante e uma varanda maior ainda. Para essa noite de sábado, a galera tinha combinado um churrasco e, pelo visto, alguns amigos do dono da casa iriam para lá. Mais gente ainda. Sim, Mélanie era uma antissocial convicta. Gustavo estava tentando mudar isso nela, sempre a chamando para sair nos finais de semana e, agora, sendo muito bem sucedido ao convidá-la para ir pra praia (não que isso exigisse muito esforço). E, verdade seja dita, Mélanie estava gostando da galera. Era uma turma completamente diferente da que ela estava acostumada, mas, em geral, todo mundo era muito gente boa, tranquilo, ria demais e muito barulhento. Não muito diferente da família dela. A varanda já estava cheia quando Mélanie chegou. Mais gente para conhecer. OK, sem prob-lemas, vamos lá ser social com as pessoas. Viu Gustavo sentado um canto, em uma rodinha de amigos. Estava indo até ele quando sentiu alguém a puxando pelo braço. Se virou para encon-trar o sorriso simpático de Júlio. - Oi, pimentão! - ele disse. - Por que você não tá vermelho também? - Por causa dessa coisa revolucionária chamada protetor solar - ele respondeu, rindo. - Mas, eu passei! Uma vez, mas, passei! - Claro que passou. Quer beber alguma coisa? - O refrigerante mais gelado que você tiver, por favor. Foram juntos pegar as bebidas, conversando. Mélanie viu, pelo canto do olho, Gustavo ace-nando para ela, mas, não teve tempo de responder. Júlio estava perguntando alguma coisa para ela, provavelmente qual refrigerante ela queria. Pegaram as bebidas e se assentaram um pouco mais afastados. Agora, Júlio queria saber sobre a faculdade de Mélanie. O que ela estava achando do curso, todas essas perguntas que você faz para alguém que acabou de conhecer. Logo, estavam conversando animadamente, e Mélanie resolveu deixar de lado a preguiça que tinha de conhecer gente nova, pelo menos durante aquele feriado. Júlio era um cara legal, e, por alguma estranha razão, ele parecia interessado no que ela tinha para dizer. As meninas do seu quarto também eram muito simpáticas. Não custava nada tentar se aproximar dessa galera. Paula ficaria tão orgulhosa...

22 de fevereiro de 2009, domingo

- E aí, graças a essa inteligente, tivemos que voltar pra casa e perdemos todo o feriado! Gustavo não foi o único que riu da história de como seu primo Fábio perdeu um final de semana por causa de uma ex-namorada. Fábio era cheio desses casos, mestre em transformar as situações mais fer-radas nas coisas mais engraçadas. Agora, ele já estava contando um novo caso, mas, foi nessa hora que Gustavo percebeu que sua cerveja tinha acabado. Fez sinal para uns quinhentos garçons, mas nenhum deles pareceu sequer notá-lo. O jeito era levantar e ir até o balcão. A turma inteira estava em um restaurante que ficava em frente à praia. Era fim de tarde e o calor in-fernal agora estava mais suportável. Enquanto Gustavo ia até o balcão, ele viu Mélanie sentada ao lado de Júlio. Os dois conversavam com outra garota, aquela baixinha que Gustavo não lembrava o nome. Lúcia, Luciana, era algo do tipo... Gustavo ficou surpreso. Mélanie não era a pessoa mais fácil do mun-do para conversar com gente que ela não conhecia. Não era timidez nem nada disso. Era pura preguiça.

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Mas, desde que eles chegaram à praia, Gustavo e Mélanie mal conversaram. Gustavo se debruçou sob o balcão e logo foi atendido por um rapaz. - Me arruma uma cerveja, por favor. Enquanto esperava, um dos primos de Gustavo, o Válter, chegou por trás e lhe deu um tapa no ombro. - O que você tá fazendo aqui? - Pegando cerveja. E você? - Pegando cerveja. Parece que não tem mais garçom nessa bagaça. Gustavo riu, como sempre fazia quando estava com os primos. Eles eram todos mais velhos que Gus-tavo, mas, o incluíam em tudo o que faziam, principalmente nessas viagens malucas. Válter era uns seis anos mais velho que Gustavo e, de longe, o primo favorito dele. O garçom finalmente apareceu com a cerveja de Gustavo e Válter aproveitou para pedir a dele. - E aí, tá gostando da viagem? - Tô, cara. Tinha bastante tempo que eu não vinha aqui. - Agora você tá todo ocupado com faculdade, né? - É...quinto período agora. - Só fica complicado, priminho. - Valeu pelo incentivo. Válter pegou sua cerveja, mas, nem ele nem Gustavo fizeram menção de voltar aos seus lugares. Con-tinuaram sentados ali. - Posso te falar uma coisa, cara? - Claro. - Vou pedir a Bárbara em casamento. Gustavo quase se engasgou com a cerveja. What the hell?! Válter casado? Não, não dava para imagi-nar! - Cê tá zoando com a minha cara. - Não, tô falando sério. Já comprei a aliança e tudo mais. Até com o pai dela eu já conversei. - Cê tá muito zoando com a minha cara. - Não tô, Gustavo - Válter responde, rindo - A gente vai sair pra almoçar amanhã, só nós dois, e eu vou fazer o pedido. - Não tô conseguindo acreditar. - E por que não? Eu namoro a Bárbara há um tempão, já tá na hora da gente se arrumar, uai! - Mas... eu sei que você tá certo e, cara, eu tô muito feliz por vocês dois, mas, meu Deus, cara! Você vai casar! Você tem certeza que é isso mesmo que você vai fazer? Tipo, que você quer fazer? Válter deu de ombros e deu um gole em sua cerveja. - É, é isso, sim. Já tem um tempo que eu tô pensando nisso, sabe? Cheguei naquela fase que eu já não consigo imaginar como é a vida sem a Bárbara. - Olha só você, todo romântico - Gustavo brinca, puxando o primo para um abraço de lado. Válter ri de novo. - É segredo, tá? Espera para falar que já sabia depois que a gente voltar do almoço amanhã. Isso se a Bárbara aceitar o meu pedido, né? - É claro que ela vai aceitar. Do jeito que ela é, vai começar a planejar o casamento amanhã mesmo. - É, vai ser legal. Válter parece estranhamente tranquilo para um cara que vai pedir a namorada em casamento, Gusta-vo repara. Mas, não apenas tranquilo, feliz também. Bárbara é uma garota muito legal, já está presente na família deles há uns quatro anos. Realmente, não tinha ninguém melhor para o Válter. Gustavo fica sinceramente feliz pelo primo. Ele ergue a sua garrafa de cerveja. - Isso pede por um brinde. - Ao meu casamento? - E que vocês sejam felizes para sempre. Eles brindam e voltar a beber, tranquilamente. Sentado ali, Gustavo consegue escutar a conversa que vem da mesa onde estão os seus amigos. Se sente novamente feliz pelo primo ter contado sobre o casa-

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mento primeiro para ele. Válter podia ter contado para qualquer um dos outros primos, mas, escolheu Gustavo, sabe-se lá porque. - Você viu que o Júlio tá se amarrando na sua amiga, né? - “Se amarrando”? Quem que fala “se amarrando” hoje em dia? - Tanto faz. Mas, você viu, né? - Acho que todo mundo já viu. - E você tá de boa com isso? - Por que não estaria? - Achei que você e a Mélanie tinham alguma coisa. Essa era a sexta vez que alguém fazia um comentário desse tipo sobre Gustavo e Mélanie só nesse feriado. Os dois precisavam fazer alguma aposta nesse sentido. Quem ouvisse mais vezes alguma fala sobre os dois terem alguma coisa teria que dar dinheiro para o outro. Ou o contrário. - Ela é minha amiga. Só isso. - Sério? Vocês não parecem só amigos... - É porque a gente tá sempre junto. E olha que desde que a gente chegou aqui, a gente nem ficou junto. Nem pra conversar, nem nada. Válter olhou para Gustavo de um jeito irônico. - Você tá com ciúme, cara. - Lógico que não. - Não negue. - Tô falando sério. Se tiver algum ciúme, é ciúme de irmão. Tipo quando a gente ficou quando a Cla-rinha apareceu com aquele namorado imbecil, você lembra? - Cara mais idiota de todos. Clara era a prima mais nova deles. Devia ter uns 14 anos quando apareceu com um garoto, falando que era o namorado dela. Os primos mais velhos só não se juntaram para encher o miserável de por-rada porque a avó deles não deixou. - É tipo isso. Mas, eu conheço a Mel. Acho muito difícil ela cair na conversa do Júlio. - O Júlio é um cara legal, tem um papo bom. - Você vai pedir é a Bárbara em casamento, né? Válter dá um soco no ombro de Gustavo, um pouco forte demais. - Só tô querendo saber, seu idiota. Então, tá tudo bem se o Júlio e a Mélanie ficarem? - Vai por mim, eles não vão ficar. - Você não respondeu a minha pergunta. - Sim, tá tudo bem. Parecia que Válter ia falar mais alguma coisa, mas, preferiu deixar pra lá. Os dois primos continuaram no balcão por mais um tempo, tomando suas bebidas e apreciando o fim da tarde.

24 de junho de 2012, domingo

A mãe de Gustavo estranhou quando viu o filho sair do seu quarto às onze horas de um domingo. Deu pra ver na cara dela. - Está se sentindo bem, Gustavo? - Claro, mãe. Por que a surpresa? - Porque ainda nem é meio-dia e você já está de pé. E arrumado. Vai a algum lugar? - Sim, eu vou... na casa de uma amiga. - Amiga? Na casa da vizinha, você quer dizer? - O nome dela é Mélanie. Em algum momento da sua vida, você vai ter que aprender o nome dela, mãe. - Não fale comigo desse jeito.

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- Desculpe. E não, não é na casa da Mel. É outra amiga. Sua mãe fez cara de surpresa de novo. - Outra amiga? Quem? - Você não conhece. Olha, mãe, eu tenho que ir. - Cheio de segredos, hein? Tudo bem, Gustavo. Eu e seu pai vamos almoçar no clube, tudo bem? - Já tava imaginando... - O que você falou? - Nada, nada... bom almoço pra vocês. Gustavo correu para a garagem. Sabia que veria seus pais novamente só à noite, então, não se pre-ocupou muito em dar explicações para onde estava indo. Geralmente, sua mãe só queria saber a que horas ele voltaria. Fora isso, ele podia ir para o fim do mundo que eles não ligariam muito. Seus pais eram meio desligados. Enquanto ligava o carro, ele se deu conta da estranheza que seria o seu dia. Gustavo estava acostuma-do a almoçar na casa de Mélanie aos domingos. Eram raras as vezes em que ele animava de sair com os pais e mais raras ainda as vezes em que seus pais ficavam em casa. Agora, parecia que ia arrumar uma nova companhia para os seus domingos. E ele não poderia ter pedido companhia melhor. Só esperava que a família de Patrícia fosse tão tranquila quanto ela. Pelo o que ela tinha falado, ele não precisava se preocupar com pai ciumento ou mãe chata. Todos eram de boa, da paz. Ficou imaginando como seria quando levasse Patrícia para conhecer os seus pais. Marta e Antônio eram...complicados. Eles quase nunca estavam em casa e, quando estavam, falavam pouco com o filho, apenas o suficiente para saber que ele estava vivo e bem. E ainda havia a complicação de Marta não ir com a cara de Mel. Gustavo não sabia explicar porque, mas, sua mãe simplesmente não parecia gostar de Mélanie, muito menos de Paula e do Dani. Seu pai era indiferente quanto a isso. Era apenas Marta que fazia cara de bunda quando Mélanie aparecia ou quando Gustavo falava alguma coisa sobre ela. Vai saber porque era assim, Gustavo já tinha desistido de tentar entender. Ele só podia torcer para que fosse diferente com Patrícia. Em menos de 15 minutos, Gustavo já estava em frente ao prédio onde Patrícia mora. Cedo demais. Nervoso, ele pega o celular e, sem saber muito bem o que fazer, acaba ligando para Mélanie. - Chora. - Cheguei na casa da Pati, mas tô com vergonha de entrar. - Fala sério. - É sério. Cheguei cedo demais. Você ainda tá dormindo? - E o Dani me deixa dormir? A gente vai almoçar no shopping com ele. - Vocês só fazem isso quando eu não tô aí. - Ah, Gugu... você vai almoçar com a sua namorada. Quer coisa melhor do que isso? - Você é uma idiota, Mel. - Não sou eu que tô parada na frente de um prédio por vergonha de entrar. Olha, eu tenho que ir. Boa sorte com o sogrão aí e não esquece de falar sobre o Rio. - Mel, eu... - Rio! Não esquece do Rio! Tchau. E desligou. Gustavo pensou em ligar para ela novamente, só para encher o saco, mas, desistiu. Sabia que Mélanie não iria atender. Então, o jeito, era entrar. Deu alguns tapas no rosto, respirou fundo e ligou para Patrícia. - Olá! - Tô na frente do seu prédio, com vergonha de entrar. - Mentira, Gustavo. - É sério! - Nossa, que ridículo - ela respondeu, rindo - Vou abrir a porta pra você. Pode entrar sem medo, meus pais não mordem. Gustavo tentou se lembrar das vezes em que chegou a conhecer os pais de suas namoradas. Não foram muitas as vezes, mas, ele se lembrava muito bem de ficar nervoso em situações assim. Já enfrentara pais

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ciumentos, mães chatas e irmãs mais velhas que davam em cima dele na frente da irmã mais nova, que era a namorada em questão. Bagunça, como sempre. Gustavo tentou confiar nas palavras de Patrícia, de que seus pais eram tranquilos. Não estava com cabeça ou paciência para enfrentar famílias esquisi-tas. Já bastava a sua. Patrícia estava na porta esperando por ele. Cabelo solto, maquiagem leve e com um sorriso no rosto. Cada vez que a via, Gustavo tinha mais certeza que estava realmente gostando dela. Ele se aproximou dela e perguntou baixinho: - Posso te beijar ou seu pai vai socar a minha cara? - Beijo rápido. Um beijo rápido mais tarde, Gustavo e Patrícia já estavam entrando no apartamento da garota. Senta-do no sofá, o pai de Patrícia assistia a um jornal esportivo. Ele parecia tem uns cinquenta anos e olhava com preocupação para a televisão. - Pai, vem conhecer o Gustavo. O cara se levantou, mas não despregou os olhos da televisão. - Pai! - Claro, claro! Gustavo, seja bem-vindo! - ele disse, estendendo a mão - Desculpe, mas, esse Atlético ainda vai me matar do coração. - O senhor é atleticano? - Doente - Patrícia respondeu pelo pai - E não precisa chamar meu pai de senhor. Ele não gosta. - Eu não gosto. - Pai, esse é o Gustavo. Gu, esse é o meu pai, Elias. - Muito prazer, senhor. Quer dizer, Elias. Muito prazer, Elias. - Igualmente, garoto. Você gosta de futebol? - Sim. Não sou fanático, mas, gosto. - Atleticano também? Gustavo teve o primeiro ataque de pânico do dia. Não, ele não era atleticano. Era cruzeirense. Havia decidido torcer pro Cruzeiro depois que seu pai comprou uma camisa do Atlético para ele, quando tinha uns oito anos. Só pra implicar, Gustavo foi para o time adversário e permanece lá. Mélanie que era a atleticana doente. - Cruzeirense, graças a Deus - ele respondeu, tentando dar um tom de brincadeira na voz. Não funcionou. A cara de decepção que Elias fez foi tão grande, que Gustavo esperou ser expulso dali aos chutes e socos. - Vem conhecer minha mãe, Gustavo. Patrícia o puxou de lá rapidamente, mas, Gustavo teve tempo de ver Elias voltando a se assentar no sofá, balançando a cabeça em aparente negação. Parabéns, Gustavo, não tinha jeito melhor de começar mesmo. - Seu pai já tá me odiando, é claro. - Não tá, não. Ele é meio fanático com futebol, mas, com o tempo vocês se entendem. A minha mãe torce pro São Paulo e ela tá viva até hoje. - Mas, ela é a esposa dele. Eu sou o namorado da filha, que, ainda por cima, é cruzeirense. Patrícia riu. - Não sabia que você era medroso assim. Olha, só pra você ficar mais tranquilo, eu também sou cru-zeirense. - Sério? Por que? - Por incentivo da minha mãe. Mas, acho que ela só fez isso para irritar o meu pai. Venha, minha mãe tá na cozinha. O apartamento da família de Patrícia era bem grande e Gustavo percebeu que correria o risco de ficar perdido ali caso fosse deixado sozinho. Segurando sua mão, Patrícia o guiou pelos corredores até chegarem à cozinha. - Mãe, olha quem chegou! Uma versão mais velha de Patrícia levantou os olhos do fogão e olhou para Gustavo. Era impressionante.

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Elas tinham o mesmo sorriso. - Ah, finalmente - ela disse. Se aproximou de Gustavo e lhe deu um rápido abraço - Sou a Joana. É um prazer conhecer você, Gustavo. Ouvi falar muito de você! - Não vai me fazer passar vergonha, mãe. - O prazer é meu, Joana. Também ouvi falar muito sobre a senhora. - Sem isso de “senhora”, por favor. Você chegou cedo, garoto. O almoço ainda não está pronto. Quer comer alguma coisa? - Não, obrigado. E, desculpa ter chegado mais cedo, eu... - O Gustavo tá sofrendo de nervosismo, mãe - Patrícia diz, rindo de Gustavo. - Por que, meu Deus? - Deve ser porque é difícil conhecer pai de namorada, né? - Patrícia responde, rindo ainda mais. À essa altura, Gustavo já está completamente sem graça, mas, acaba entrando na conversa. - Quero ver quando você for conhecer os meus pais - ele diz. - Vai ser perfeitamente normal, sem nervosismo. Você me viu nervosa ontem, quando conheci a Mel? - Uma coisa é conhecer a Mel, outra é conhecer os meus pais. - Quem é Mélanie? - Joana pergunta. - A melhor amiga do Gustavo. - Você tem irmãos, Gustavo? - Não, sou filho único. - Humm... filho único? Deve ter sido muito mimado, hein? - Joana falou. - Não, até que não. Minha família é bem grande, com muitos primos e tal, então, não tive chance de ser mimado. A partir daí, se iniciou a típica conversa de conhecimento. Joana perguntou várias coisas sobre a vida de Gustavo. Era compreensível, já que ele era o cara que estava namorando a filha dela. Gustavo falou sobre os pais dele, sobre as viagens que costumava fazer, sobre a agência em que trabalhava e sobre os meses em que passou nos Estados Unidos. Enquanto conversavam, Joana continuava preparando o al-moço. Ela recusou ajuda, falando que gostava de cozinhar sozinha. Gustavo logo pensou que ela daria super bem com Paula. Não havia outra pessoa mais obcecada com cozinha do que Paula. - A senhora me lembra uma amiga. Ela também gosta muito de cozinhar. - Minha mãe não gosta de cozinhar, Gustavo. Ela precisa de terapia pra tratar esse vício. - Que exagero, Patrícia. Eu só gosto de ninguém mexendo na minha comida. É, Joana parecia ainda pior do que Paula. Ela ainda deixava Mélanie picar o tomate para um molho. E esse era o máximo de coisas que Mélanie sabia fazer em uma cozinha. Continuaram conversando, dessa vez sobre comida. Joana quis saber o que ele comeu durante o tempo que passou nos Estados Unidos. Gustavo estava no meio de uma explicação elaborada sobre o hambúrguer de quatro carnes que costumava comer em Nova York, quando Elias apareceu. - E aí, família? O almoço não sai mais? - Já está quase pronto - Joana respondeu - Podem ir se assentando. E você, Elias, pode desligar a televisão. Elias saiu cabisbaixo e Joana explicou: - Ele é igual criança. Tenho que mandar desligar a televisão na hora do almoço. Se eu não falasse nada, ele ficaria sentado ali o dia inteiro, assistindo programa de esporte. - Meu pai também precisa de terapia - Patrícia completa, pegando na mão de Gustavo e o levando até à mesa. - Será que a sua mãe não vai precisar de ajuda? Patrícia riu e apertou a mão de Gustavo com força. - O dia em que a minha mãe pedir ajuda na cozinha, pode mandar internar.

Gustavo estava impressionado. Já era fim de tarde e ele ainda estava no apartamento de Patrícia. O almoço tinha sido ótimo, os pais de sua namorada eram engraçadíssimos e até arrumar a cozinha com Patrícia foi bom. De verdade. Agora, os dois estavam assentados na área externa do apartamento,

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enquanto Joana e Elias assistiam a um filme na sala. O dia todo tinha sido tranquilo, como Patrícia prometera. Agora, sentado ao lado dela, ele tinha ainda mais certeza que as coisas tinham tudo para caminhar bem. - E aí? Minha família foi aprovada? - Claro que sim. Eu tô quase pedindo para os seus pais me adotarem. - Isso seria meio doentio. E nojento. - É verdade. Mas, seus pais são bem legais. - Você ficou nervoso à-toa, não disse? - É normal ficar nervoso quando você vai conhecer a família da sua namorada. - Você parece ter muita experiência no assunto, hein? - Não é tanta assim... - Quantas namoradas você já teve, Gustavo? Gustavo teve que pensar. Namoradas oficiais, que ele se lembrava, foram quatro, sem contar Patrícia. Fora isso, foram só alguns casos. - Quatro, eu acho. Fui na casa de três... eu acho, de novo. - Quatro? Foi até menos do que eu esperava. - E você? Quantos namorados já teve? - Só um e nem foi tão sério. Namoro de colégio. Acabou assim que a gente se formou. - E você ficou esse tempo todo esperando pelo cara gato e engraçado que ia te salvar da solidão? - Acho que ainda tô esperando por ele. Gustavo olha para Patrícia, que começa a rir assim que vê a expressão emburrada dele. O riso de Patrícia é natural e a deixa ainda mais bonita. Gustavo olha para os lados e sussurra: - Não tem ninguém olhando, né? - Por que? - Eu posso não ser o cara gato e engraçado que você tá esperando, mas, preciso muito te beijar agora. Patrícia olha para os lados também, o sorriso se abrindo ainda mais. - Não tem ninguém olhando. Gustavo a puxa para mais perto e a beija. É aí que tem a certeza de que nunca gostou de nenhuma outra garota como gosta de Patrícia.

27 de junho de 2012, quarta-feira

Mélanie nunca entendeu muito bem as quartas-feiras. Ela já tinha falado, mais de uma vez, que quando fosse presidente do Brasil, a primeira coisa que ela faria seria decretar feriado em todas as quartas-fei-ras. Para sempre. Claro, isso era apenas o cansaço falando. Por mais que estivesse de férias das aulas, ela ainda precisava ir ao campus todos os dias, por causa do estágio no laboratório. E ela gostava do estágio, realmente gostava. Tinha sido um custo para conseguir essa vaga. O processo de seleção foi um teste para a paciência de Mel, mas, no final das contas, ela e mais dois nerds conseguiram entrar para o laboratório de pesquisas científicas da sua faculdade. Mélanie estava lá há um ano. Ela, que se formaria em uma ano, esperava, do fundo do coração, que fosse contratada para continuar trabalhando lá. Gostava desse ambiente de tubos de ensaio, líquidos azuis e verdes, detalhes que não podiam passar despercebidos. Gostava de entender o que estava fazendo. E seus colegas de serviço também eram ótimos. Mas, nessa quarta-feira em especial, Mélanie estava com vontade de ir para casa. Talvez por ter passado boa parte da noite acordada, tentando fazer Daniel dormir, hoje ela não estava com a cabeça boa pra muita coisa. Só que-ria ir pra casa e desmaiar na cama. - Ei, Mel, quer fazer uma pausa pra tomar um café? Gabriela, uma das colegas de Mel no laboratório, olhava para ela com jeito de preocupada, como se já estivesse prevendo que Melánie cairia em cima dos tubos de ensaio. De novo.

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- Tô com aquela cara de novo? - Tá pior hoje. Não dormiu à noite, filha? - Pior que não. O Dani arrumou uma gripe do inferno e não deixou ninguém dormir - ela disse, se levantando pesadamente - Tive que ficar com ele durante a noite toda. - E a sua irmã? - Gripada também. Cadê o café? - No lugar de sempre. Você vai precisar que eu caminhe com você até lá ou você consegue chegar lá sozinha? - Consigo chegar sozinha. Se eu não voltar em cinco minutos... - Eu vou atrás de você, Mélanie. Arrastando os pés pelo corredor afora, Mélanie caminhou até a pequena copa do laboratório, onde se assentou pesadamente e se serviu de um copo transbordando café. Ela estava com muito sono. Ver-dade seja dita, ela estava sempre com sono. Mas, hoje era pior. Daniel fazia um drama danado quando ficava gripado, tossindo e revirando na cama. Era claro que ele tinha puxado isso da mãe dele. Quando Paula ficava gripada, ela praticamente se preparava para o enterro. Só sobrava Mélanie para dar conta das coisas. - Bom dia. Droga. - Bom dia, Luís. - Tá tudo bem? - Sim, é só sono. - Que dia você não tá com sono, Mel? - Acho que nunca... - Até mais. E Luís sai, sem ver Mélanie esparramada na mesa, com o rosto escondido entre os braços. Deus, isso é tão ridículo. Luís, um cara que já tinha passado dos 30 e QUE TEM NAMORADA, conseguia deixar Mélanie se sentindo uma adolescente. Ele era um dos chefes do laboratório. Gato pra cacete. Não aque-la beleza óbvia de galãzinho de Hollywood, mas, com um jeito mais maduro. Obviamente, todas as ga-rotas do laboratório eram alucinadas por ele, Mélanie incluída. Era bem provável que A NAMORADA DELE não gostasse muito disso, mas, fazer o que? Não dava para não olhar pra ele e, cinco minutos mais tarde, imaginar o casamento, o nome dos filhos e onde eles iriam morar depois da aposentadoria. Com sono e se sentindo uma idiota, Mélanie fez a única coisa sensata que poderia ser feita em mo-mentos assim: ligou para Gustavo. - Olha quem resolveu aparecer! - Cala a boca. Você que não tem tempo para mim mais, sempre muito ocupado com a sua namorada. - Eu chamei você pra sair com a gente. - Não quero ser vela de ninguém, Gugu. - Idiota. E aí, tudo bem? - Tô com sono e o Luís acabou de passar por aqui. - Ixi... quer que eu passe aí pra deixar um chocolate? - Não, valeu. - Você sempre fica melhor depois que come chocolate, Mel. - Isso tem que parar em algum momento. Se eu comer chocolate em todas as vezes que eu me achar uma imbecil, não vai sobrar para o resto do mundo. - Isso é verdade. - Não era pra você concordar, seu imbecil. - Vamos fazer o seguinte, então. Sorvete, eu e você, assim que eu chegar em casa. Pode ser? - Huumm... você não vai ter que sair com a namorada hoje, Gu? - Mel, se você continuar assim, eu vou começar a achar que você tá com ciúme. - E o inferno congelou, né? Só tô te zoando. Eu topo o sorvete. - Ótimo. E sai de perto desse Luís. Ele tem namorada.

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- Eu sei, eu sei... mas, ele é tão gato. - Tchau, Mélanie. Desligaram e Mélanie continuou deitada ali por mais alguns instantes. Por que diabos ela não con-seguia se interessar por um cara normal? Não, claro que não podia, claro que ela tinha que complicar tudo e crescer o olho para um cara mais velho QUE TEM NAMORADA. Ela precisava manter isso em mente. Por fim, bebeu todo o café de uma vez, queimou a língua e se levantou, dando alguns tapas no rosto para ver se acordava de vez. Nunca funcionava, mas, era o mínimo que podia fazer para evitar de cair em cima dos tubos novamente.

- Mel, tem jeito de você me trazer aquele remédio de gripe? Paula se comunicava por ruídos. Sua voz estava rouca e, segundo ela, parecia que uma batata havia entalado em sua garganta. Mélanie chegou no quarto da irmã e teve que se segurar para não rir da cena. Paula e Daniel estavam deitados na cama, os dois empacotados em agasalhos, enrolados em cobertores e com a mesma cara de doente. - Nossa, isso aqui tá parecendo uma enfermaria na época da Peste Negra - Mélanie disse, passando o remédio para Paula. - Mel, se eu morrer... - E o Oscar de melhor atriz de drama vai para... - Cala a boca. Se eu morrer, cuida do Dani, tá? Se ele furar a orelha e descolorir o cabelo, a culpa vai ser sua e eu vou voltar pra te assombrar pelo resto da sua vida. - Toma o seu remédio e fica quietinha aí, Paula. E você, Dani? Como você tá? O menino respondeu com um acesso de tosse, mas, logo ele abriu um sorriso. Ô menino bonito, sô! - Tô doente, tia. - É claro que está. É por isso que você tem que tomar seu remédio - Mélanie encheu o copinho com o xarope que o médico tinha receitado para Daniel. O menino tomou todo aquele líquido viscoso que, supostamente, tinha gosto de morango. Pelo menos é o que estava escrito na caixa, e Daniel pareceu acreditar. - E o meu remédio? - Paula grunhiu. - Tá aí do lado da sua cama. Desculpa, mas, não vou te dar remédio na boquinha. - Eu não consigo mexer o braço, Mel... - Rainha do drama. Olha, eu tenho que sair. Se vocês precisarem de alguma coisa, me liguem. Mélanie já estava na porta do quarto quando ouviu o que restava da voz de Paula. - E onde você vai? - Vou sair com o Gustavo. - E com a namorada dele? - Não, só nós dois. Paula fez um cara esquisita, que ficou ainda mais acentuada por causa do aspecto de doente que ela estava, mas, não falou mais nada. Mélanie olhou de novo para a irmã e viu que ela tinha caído no sono. Daniel também. Esses remédios te nocauteavam com força. Gustavo já estava esperando por ela na porta do prédio. - E aí, como tá todo mundo? - Gripados e dramáticos. - Você não tá gripada também, né? - Não. Pelo menos, ainda não. Vamos? A sorveteria não ficava muito longe da rua deles. Caminharam conversando sobre o dia, enfrentando o frio daquele início de noite. Mélanie pensou se seria uma boa ideia encher a cara de sorvete em um dia frio desses e sabendo que ela poderia ficar gripada a qualquer momento. A dúvida durou cinco segundos. Logo eles estavam na sorveteria, Gustavo fazendo o favor de pedir a banana split que eles amavam, aquela coisa enorme que vinha banhada em chocolate, marshmellow e mais chocolate. - Por que você sempre fica desse jeito quando vê esse Luís? - Gustavo perguntou, depois que os dois já estavam assentados.

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- Porque ele é o cara mais perfeito do universo. Só isso. - Tão perfeito que até já tem uma namorada. - Valeu por me lembrar. - E é o que? Uns quinze anos mais velho que você? - Dez anos. Nem é tanto assim. Olha o Michael Douglas e a Catherine Zeta-Jones. - Eles são famosos. Gente famosa pode fazer o que quiser. - É verdade. Eu queria ser famosa. Aí eu ia poder namorar um cara velho e chamar meu filho de Le-golas, e ninguém ia ficar me julgando. - Eu não vou ser tio de um menino chamado Legolas. - Você não é meu irmão! - Nossa, isso foi pesado, Mel. Mélanie deu um soco no ombro de Gustavo e esperou que a garçonete colocasse a banana split mo-numental na mesa deles para voltar a falar. - Você, como meu pseudo-irmão, deveria me dar alguns conselhos agora - Mélanie disse entre uma colherada e outra. - Que tipo de conselhos? - Gustavo disse, já com a boca cheia de sorvete. - Falar que eu não preciso de um cara como o Lúis, que eu sou especial, que eu vou conhecer um cara maravilhoso... - Isso não é conselho, Mel. Isso é palestra de auto-ajuda. - Deus me livre. - Amém. Mas, falando sério agora, você tá na desse cara há um tempão, Mel. Já tá na hora de sair disso, não acha? Mélanie olhou para Gustavo de um jeito irônico. - E é o mestre em relacionamentos que tá falando, né? O que foi? Agora que você começou a namorar sério, vai virar conselheiro amoroso também? Gustavo voltou sua atenção para a banana split, balançando a cabeça. - Você tá na tpm? - Acho que sim. Por que? - Você tá mais ácida do que o normal. - Achei que você já tinha se acostumado. - Nunca vou me acostumar com tpm, Mélanie. Ficaram em silêncio por alguns instantes, concentrados no sorvete. Mélanie pensava no que Gustavo tinha lhe falado. Aquilo não era novidade nenhuma para ela. Ele vivia falando que já tinha passado da hora de Mélanie deixar esse Luís pra lá. Claro que Gustavo ficava achando que Mélanie estava perdida-mente apaixonada por Luís, o que não era verdade. Era só uma atração. Uma leve e passageira atração, que Mélanie tinha certeza que iria acabar assim que ela ou Luís se mudasse para o fim do mundo, cor-tando todas as chances de comunicação. Comunicação, esta, que já é praticamente inexistente. - Eu sou muito ridícula. Gustavo não respondeu nada. Mélanie olhou brava pra ele. - “Não, você não é ridícula, Mel. Você é uma ótima garota, Mel...” - Nesse exato momento, eu também tô te achando meio ridícula. - Valeu. - De nada. - Pode me explicar por que? - Eu já cansei de te falar desses caras. Primeiro foi o Júlio, agora é o Luís. Você tem um dom pra achar caras imbecis. - Você tá se incluindo nesses “caras imbecis”? - Não, claro que não. Eu devo ser o único cara legal de verdade que você conhece. - Conselheiro sentimental e convencido. Se você continuar desse jeito, eu vou te trocar por um novo melhor amigo. - Você nunca faria isso, Mélanie - Gustavo disse, passando calda de chocolate no nariz da amiga. Ela

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retribuiu o gesto. - É verdade. É você que vai acabar me trocando... - Não começa com isso, por favor. Mélanie ri. - Desculpa, é só que é muito fácil encher seu saco. - Você quer que eu vá ao laboratório e dê umas porradas nesse Luís? - Não vai precisar, obrigada. Eu sei me virar. - Ah, claro, você faz um ótimo trabalho quando cisma que sabe se virar. - Você não vai querer me irritar agora, Gustavo. - Eu tô mentindo, Mélanie? Ela olhou cabisbaixa para o sorvete. - Não, não tá. Eu odeio quando você tá certo. - Então você me odeia o tempo inteiro. - Cala a boca. - Você vai continuar desse jeito? - Desse jeito como? - Caindo aos pedaços todas as vezes que encontrar esse imbecil? - Não sei - Mélanie enche a boca de sorvete - É bem provável que sim, pelo menos por um tempo. - Você tem que arrumar um namorado. - Oi, mãe? Gustavo quase engasga com o sorvete, de tanto que ri. - Meu Deus, eu falei igualzinho a sua mãe! - Credo, Gustavo! Você andou conversando com ela, foi? - Não, claro que não! - Gustavo ri de novo - Nossa, foi mal, Mel. Mélanie ri também. - Ai, meu Deus... Realmente, o que eu faria sem você, hein, Gugu? - Cala a boca! Eles viviam mandando um ao outro calar a boca. Era a regra básica quando já não tinham mais ar-gumentos. Mélanie e Gustavo voltaram a se concentrar na banana split. - Você vai ficar bem - Gustavo fala, de repente. - Como você sabe disso? - Você sempre acha um jeito de ficar bem no final. - O problema é que o final demora para chegar. - A gente se vira até lá. Os dois se olham e dão um sorrisinho de lado, se lembrando de várias vezes em que tiveram que ajudar um ao outro a chegar até o final do que quer que fosse. - Sabe de uma coisa, Gustavo? - O que? - Tem chocolate na sua bochecha.

5 de agosto de 2008, terça-feira

Gustavo já estava perdendo a paciência. De verdade. - Mãe, eu não quero discutir isso pela milésima vez, sério. - Isso não é uma discussão, Gustavo. Só estou falando isso porque ainda dá tempo de você mudar de ideia. - Mãe, não quero mudar de ideia. Não vou mudar de ideia. Será que você não vai desistir disso nunca? Ela fez cara de decepcionada. - Meu filho, você poderia estar tão longe, fazer tão mais...

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- Eu tô fazendo o que eu gosto de fazer. - Você consegue fazer mais do que está fazendo agora, Gustavo... Ele desiste de tentar manter uma conversa racional com a mãe. Olha para o relógio e anuncia: - Vou sair. - Estamos conversando, Gustavo. - Desculpa, mãe, mas, a gente não tá conversando. Você tá falando de uma coisa sem sentido e eu não quero mais ficar escutando isso. - Não fale comigo desse jeito. - Volto mais tarde. Gustavo sai do apartamento rapidamente, respirando fundo para não colocar todos os seus pensa-mentos para fora. Se isso acontecesse, ele tinha certeza que sua mãe nunca mais olharia na cara dele. O jeito era sair de perto. Quando sua mãe começava com aquele papo de “você ainda tem chances de não ser um perdedor na vida”, a melhor coisa a se fazer era sair de perto. Gustavo desceu as escadas correndo, ao mesmo tempo em que tentava pensar em alguém com quem pudesse conversar, que o ajudasse a esfriar a cabeça. Tentou se lembrar. Os amigos estavam no futebol, que era onde ele devia estar também. Ele não estava com cabeça para futebol agora. Alguma das suas amigas, talvez... Não, não tinha ninguém. Seus primos? Gustavo também não conseguiu se lembrar de nenhum que estivesse disponível agora. Foi só então que se lembrou de Mélanie. Sabia que ela não ficava na faculdade à tarde nas terças, então, ela só podia estar em casa. Era meio bizarro, até porque tinha acabado de conhecer Mélanie, mas, nesses meses, eles acabaram ficando amigos. Ainda mais depois daquela noite idiota. Sim, Mélanie seria uma boa companhia, Gustavo pensou. Ligou para ela. - Oi, Gustavo. - Mel! Tudo bom? - Beleza, e você? - Mais ou menos. - Aconteceu alguma coisa? - Ah, minha mãe enchendo o saco. Escuta, você tá ocupada agora? - Não. Quer fazer alguma coisa? - Já tô aqui embaixo. - Tô descendo também. Em menos de dois minutos, Gustavo já via Mélanie saindo pelo portão do prédio dela. Naturalmente, estava com o cabelo preso em um coque alto e usava aquele mesmo moletom cinza gigantesco da noite em que se conheceram. Ela caminhou apressada até ele. - E aí? - E aí? - O que você quer fazer? - Não sei, eu só... sei lá, tava precisando sair um pouco de casa. Mélanie balança a cabeça. - Entendi... bom, tem aquela sorveteria na rua de cima. Você anima? - Claro, vamos lá. Caminharam sem pressa para a sorveteria. Gustavo conhecia bem o lugar, já tinha ido lá algumas vezes, mas, era a primeira vez que ia com Mélanie. Sabia que, assim que chegassem lá, ele teria que falar porque tinha chamado Mélanie para sair, então, para preencher o espaço, perguntou sobre o dia dela. Mélanie não tinha nenhuma novidade. As aulas ainda não tinham começado, então, ela estava passando a maior parte do dia aturando o final da gravidez de Paula. Gustavo riu quando Mel contou sobre as manias de grávida da irmã mais velha. Era o que ele estava precisando no momento, de um pouco de distração. - Vou pedir a maior banana split do universo, pode ser? - Mélanie perguntou quando chegaram na sorveteria. Gustavo deu de ombros, concordando - Ótimo. Pode se assentar enquanto eu faço o pedido. Obediente, Gustavo se assentou em um dos bancos da calçada. A rua não estava com muito movi-mento àquela hora, o que era perfeito. Mélanie logo voltou, se assentando de frente para Gustavo. Eles

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se olharam, meio embaraçados, mas, Gustavo decidiu deixar o início da conversa por conta de Mélanie. - Então... - Então... - O que aconteceu? Gustavo olha para frente. De repente, se sente ridículo, com dramas de adolescente. - Você vai falar, né? - Agora tá parecendo meio idiota. - Não tem importância. Gustavo respira fundo, subitamente cansado. Por fim, decide falar. - Minha mãe ainda tá insistindo que eu devia largar o meu curso e ir fazer outro. Aí, toda vez que ela fala nisso, a gente discute. Ela não me escuta. - Mas, você já tá no quarto período, não é? - Minha mãe não liga para isso. Aliás, ela liga porque, segundo ela, eu tô perdendo o meu tempo. - E ela queria que você fizesse o que? - Os de sempre. Medicina, direito, engenharia de alguma porcaria qualquer... Mélanie ia responder alguma coisa, mas, é interrompida pela chegada da banana split. Quando ela disse que era a maior banana split do universo, Gustavo não levou muito a sério. Agora via que a coisa era realmente monstruosa. Olhou assustado do sorvete para Mélanie. - Você vai comer isso tudo? - Eu não! Nós dois vamos - ela disse, passando uma colher para Gustavo - Vai por mim, é a melhor coisa do mundo. Mas, você estava dizendo... - Era isso, só isso. Minha mãe me tirando do sério. Tem certeza que a gente vai dar conta de comer isso tudo? Gustavo não tinha tido muitas chances de sair com Mélanie até então. Na maioria das vezes, os dois se esbarravam no campus da faculdade em que estudavam e comiam alguma coisa juntos. Já tinha reparado que Mélanie comia mais que as meninas com quem estava acostumado a sair, mas, não era grande coisa. Agora, vendo aquela banana split gigantesca, ele começava a suspeitar que Mélanie ti-vesse algum problema com comida. Bom, não vai dar pra fugir daqui. Gustavo deu uma colherada no sorvete e enfiou tudo na boca de uma vez, congelando o cérebro, mas, tendo tempo de concordar com Mel. Realmente, esse trem era muito bom. - Sentiu como é bom? - Mélanie perguntou. - Sensacional - Gustavo respondeu, já pegando mais sorvete. - Eu disse. Mas, aqui, deixa eu te perguntar. Quando você prestou vestibular, rolou essa confusão também? - Foi um inferno, não gosto nem de lembrar. Até cheguei a fazer vestibular para direito em alguma faculdade, mas, foi só para minha mãe parar de me encher o saco, pelo menos um pouco. - E seu pai? - Ele não liga pra essas coisas - Gustavo responde, dando de ombros - Na verdade, ele não liga pra quase nada. Desde que eu esteja estudando, tá tudo certo. - Você já tentou conversar com ele? - Ele não passa muito tempo em casa. De repente, Gustavo se sentiu mal. Parecia aqueles adolescentes mimados que têm tudo que pode-riam sonhar em ter, mas, mesmo assim, não estão satisfeitos. Gustavo não era garoto de muitos capri-chos, mas, tinha tudo o que queria. Um carro legal, dinheiro para sair no final-de-semana, liberdade para chegar em casa a hora que quisesse, amigos de quem gostava e uma faculdade muito boa. O que mais poderia pedir? Que sua mãe parasse de encher o seu saco, talvez. Ou que pudesse conversar com o seu pai sobre isso. - Você não parece o tipo de cara que tem problemas em casa. - Não tenho. É só que... sei lá, meus pais são meio estranhos. - Você é filho único, né? - Sou.

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- Filho único sofre mais com isso. Filho mais velho também. Meus pais encheram muito a paciência da Paula com essas chatices de faculdade e tal. - O que você tá falando? Que eu devia arrumar um irmão mais velho pra sofrer por mim? Mélanie ri. - Acho que já tá meio tarde pra isso. Eu não sei o que você faz quando sua mãe começa a falar demais. Comigo, eu só saio de perto. - Eu faço a mesma coisa, mas, ela sempre dá um jeito de me achar de novo. - Eu não sei como os pais funcionam, de verdade. - Como são os seus pais? - Gustavo pergunto, distraído. - Normais, eu acho. Preocupados como todos pais são. Eles piraram quando a Paula falou que tava grávida. Tipo, ficaram sem conversar com ela e tal. Só agora que tá voltando ao normal. Eles nunca encheram muito o meu saco, só preocupação normal mesmo. - Você é a santa da casa, Mélanie? - Eu sou a normal da casa. Sem grandes coisas, só... normal. A Paula que dava trabalho. E ainda dá, né? - Eu não tenho irmãos, então, não sei como é isso de dividir atenção. Tenho uns primos mais velhos, mas, eles são parecidos comigo. Só os meus pais que enchem o meu saco mesmo. - Isso acontece com todo mundo, Gustavo. Mas, a gente tem que aguentar isso, eu acho. Mais cedo ou mais tarde, essas pressões diminuem. - Achei que você ia falar que elas acabam. - Não, elas só diminuem. Sua mãe vai acabar cedendo, em algum momento da vida. - Acho que só quando eu for um publicitário montando na grana, casado com alguma filhinha de papai. Mélanie ri de novo. - Se você se casar com alguma filhinha de papai, não vai precisar trabalhar. - É verdade. Acho que eu posso largar a faculdade, então, e ir atrás de uma esposa. - Sei de um tando de menina na faculdade que entraria na fila. - Agora eu só vou andar com gente rica, Mélanie. - O que você tá fazendo comigo, então? - Você pode ser minha escrava quando eu ficar rico. Mélanie joga sorvete na cara de Gustavo. O garoto fica tão surpreso que não consegue falar nada. - Você tava falando o que mesmo? - Você jogou sorvete em mim! - É o que acontece quando falam coisas imbecis pra mim. Ainda com sorvete escorrendo pelo rosto, Gustavo pegou sua colher, aquela toda lambuzada de calda de chocolate, e, num ímpeto, a passou no rosto de Mélanie. Logo ela estava com uma faixa de chocolate cobrindo a testa. - GUSTAVO! - É o que acontece quando jogam sorvete em mim! Mélanie enfiou a colher no sorvete e Gustavo viu que ela estava se preparando para continuar a ba-gunça. Seria uma boa e velha guerra de comida, mas, Gustavo foi mais rápido. - Ei, você não vai querer desperdiçar essa maravilha jogando tudo na minha cara, né? Ela abaixou a colher, parecendo pensar no que Gustavo disse. - É, acho que a banana split não merece ir parar na sua cara. - Muito bom. Agora, que tal a gente voltar a comer e a conversar como duas pessoas normais? - Tem sorvete no seu cabelo. - Tem chocolate na sua testa. Os dois ficaram se olhando por alguns segundos e, em seguida, começaram a rir da idiotice que es-tavam fazendo. - Eu não limpo o meu chocolate se você não limpar o seu sorvete. - E por que eu não limparia?

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- Não sei. Você tá engraçado assim. - Você também. - Ótimo. Você tá precisando rir um pouco. E ficaram assim, saboreando a banana split, ambos com os rostos manchados. Quando terminaram o doce e dividiram a conta (ambos tentando ignorar o olhar de estranheza do rapaz do caixa), Mélanie perguntou: - Você já quer voltar pra casa? - Na verdade, ainda não. - Quer ir lá pra minha casa, então? A gente pode achar algum filme pra assistir. - A Paula não vai importar? - Não, não. Acho que ela vai até gostar de ter mais alguém lá pra servir de garçom. Ela não tá conse-guindo levantar do sofá, sabe? - Entendo. Bom, pode ser, então. Caminharam de volta para a rua deles, agora já com o sorvete e o chocolate secos em seus rostos. Era ridículo e todo o mundo ficava olhando para eles, com a mesma cara estranha do moço do caixa. Gustavo achou meio constrangedor, mas, ao ver que Mélanie estava rindo da cara dele, acabou rela-xando também. Logo estavam na casa dela. Como não teriam aula no dia seguinte, Mélanie disse que eles podiam fazer uma super maratona de filmes. Gustavo topou. Não estava nem um pouco a fim de voltar pra casa.

29 de junho de 2012, sexta-feira

O restaurante estava bem cheio. Claro que estava. Era noite de sexta-feira, em Belo Horizonte. Que restaurante na cidade não estaria cheio? Graças a Deus, eles tinham conseguido arrumar um lugar decente, senão, estariam lá fora até agora, no frio. E com fome. Muita fome. Gustavo sabia que Patrícia estava com fome, era só olhar pra cara dela. O problema era que Mélanie ainda não tinha chegado. - Por que a gente não faz o pedido, Gustavo? A Mélanie faz o dela quando ela chegar, uai! - Eu... eu tenho essa mania, sabe? - Gustavo responde, apertando as teclas do celular com força - Gos-to de todo mundo junto pra fazer o pedido. - Sabe, eu acho que existe terapia pra isso... - Pati, por favor. - Gustavo, se eu não pedir comida agora, eu vou começar a pegar resto de pizza da mesa do lado! Eu tô falando sério! Gustavo olha para Patrícia, que o encara de volta. Ela tem razão. Não faz sentido esperar por Mélanie. Com o celular ainda pendurado no ouvido, ele falou: - Tá, pode pedir. - Ah, muito obrigada - Patrícia respondeu, irônica - E o que você vai querer? - Vou esperar a Mélanie chegar. - Fala sério, Gustavo. - Tô falando. Patrícia, já sem muita paciência, começa a olhar o cardápio. Gustavo continua insistindo em ligar para Mélanie. Por que diabos ela nunca atende esse celular? Já ligou para ela umas cinco vezes. O com-binado era que ela ia direto do estágio para o restaurante, para conseguir pegar um lugar bom. Mas, até agora, ela não tinha chegado. Gustavo estava começando a ficar preocupado. Merda, Mélanie, cadê você? O celular da amiga chamava e chamava, e ele já estava pronto para discar novamente, quando alguém atendeu. - Mel? - É a Paula. - Oi, Paula. Cadê a Mélanie?

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- Morrendo de gripe. - Não acredito. - É verdade. O chefe dela a liberou para voltar pra casa mais cedo de tão doente que ela tá. - Você sabe que ela pegou isso de você, né? - E você ajudou a levando para tomar sorvete num tempo desses. Valeu, Gustavo. - Ai, que droga. E você e o Dani? Já estão melhores? - Sim. O problema agora é que o Dani viciou no remédio de morango dele. - Deve ser porque você encheu a cara do menino disso, né? - Falou o médico que sabe cuidar de um garoto de três anos. - Esquece, Paula. Como que a Mel tá? - Como eu disse, morrendo. - Do jeito dramático que só vocês conseguem, né? - Como sempre. Onde você tá? - Com a Patrícia, no restaurante mais lotado da cidade. - Que dia você vai trazer a sua namorada pra eu conhecer? Depois daquela última lá, não tenho grandes expectativas. - Você é muito exigente, Paula. - Tenho que ser. Olha, eu tenho que ir. Ouvi alguma coisa quebrando na cozinha e acho que foi o Dani, tentando pegar o remédio dele. Você vem aqui amanhã? - Provavelmente. - Bom restaurante lotado pra você, então, Gu. - Falou, Paula. Gustavo encerrou a chamada na mesma hora em que o garçom acabava de anotar o pedido de Patrícia e saía. - E aí, cadê a Mel? - Gripada. Dá pra acreditar? - Normal ficar gripada num tempo desses, uai. - É, eu sei. - Por que você ficou irritado desse jeito? - Nada, nada. Só que a Mélanie podia ter me falado. Tava preocupado com ela não atendendo ao celular. - Ela tá doente, Gustavo. Dá um tempo pra coitada. Olha, você pode fazer o seu pedido agora? Patrícia fez um sinal para o mesmo garçom de antes e Gustavo, ainda emburrado, pediu uma pizza. Droga, Mélanie. Sabia que sua raiva era irracional, mas ele sempre ficava assim quando alguma coisa estragava os planos que ele fazia com Mel. Mas, não fazia sentido ele ficar assim. Patrícia estava ali com ele, e não havia nada que ele queria mais do que passar um tempo com a sua namorada. Depois acer-tava as contas com a melhor amiga. Gustavo perguntou sobre o dia de Patrícia e logo os dois já estavam mantendo uma conversa amena até a hora em que o garçom voltou com os pedidos deles. Entre uma garfada e outra na pizza, Pati falou sobre a viagem que estava planejando em fazer. - Aí, como eu consegui esses dias de folga no serviço, pensei em ir ao Rio. Tem bastante tempo que eu não vejo meu irmão. - E quando você vai? - Gustavo pergunta. - Na quarta que vem. Você podia ir comigo, hein? - Não posso. Tenho que trabalhar, lembra? - Ah, você consegue alguns dias de folga, Gu... - Posso tentar, mas, acho difícil. A gente tá no meio de uma campanha pra um cliente chato pra ca-ramba. Tô com medo do meu chefe me colocar pra trabalhar até no final de semana. - Que cliente é esse? - É um empresário musical. Aí ele tá querendo reformular marca, fazer um marketing mais pesado, essas coisas... tá todo mundo ficando louco na agência.

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Patrícia continuou comendo, em silêncio. Alguns segundos mais tarde, ela perguntou: - Quando você sai de férias? - Só em dezembro. Por que? - O que você costuma fazer nas suas férias? - O de sempre. Viagem com os primos, sair com a galera, coisas do tipo. - Você podia ir pro Rio comigo. Meu irmão ia gostar de receber a gente lá. Eles estavam em junho e Patrícia estava conversando sobre uma possível viagem em dezembro. Será que era hora de acender o pisca-alerta do “vocês estão andando rápido demais”? Gustavo não sabia. Claro que gostava de Patrícia, era óbvio. Amava estar perto dela, amava conversar com ela e ela era, de longe, a garota mais maravilhosa com quem já estivera. E não havia nada de anormal em fazer uma viagem com a sua namorada. Eles iriam passar uns dias na casa do irmão dela, não teria problema nenhum. Talvez até conseguisse ir no final de semana seguinte. Todos esses pensamentos passaram na cabeça de Gustavo em questão de segundos, enquanto Patrícia o encarava com curiosidade. - É, eu acho que ia ser muito bom. Eu vou ver se consigo ser liberado no final-de-semana que vem. Aí, posso encontrar você no Rio. Que tal? Patrícia abriu aquele lindo sorriso de novo. - Eu ia amar! - Vou ver o que posso fazer, bebê. - Bebê? - Deixa pra lá. Passaram mais um bom tempo conversando. O lugar ia ficando tão lotado que logo eles estavam conversando praticamente aos gritos. Por fim, Gustavo não aguentou. Pediu a conta, pagou e saiu do restaurante, agarrado à mão de Patrícia para que ela não se perdesse no meio daquele tanto de gente. Fora do restaurante, eles conseguiram, finalmente, respirar um pouco de ar puro. Se encostaram no carro de Gustavo, ainda sem vontade de voltar pra casa. - Acho que tô ficando velho. - Por que você acha isso? - Patrícia pergunta enquanto Gustavo a puxa para mais perto. - Não tô com paciência para restaurante lotado, gente barulhenta... - É, isso é coisa de gente velha, com certeza. O que você quer fazer agora? Ficar em casa, escutando um rádio de pilha enquanto eu faço um cachecol de crochê? - Você sabe fazer crochê? - Posso aprender. - E aí a gente pode comprar um gato. - Adoro gatos. - Obrigado. - Nossa, que piada ridícula, Gustavo. Eles riem e se beijam, por um momento esquecendo o barulhento restaurante logo atrás deles.

Gustavo volta para casa flutuando. Depois de deixar Patrícia em casa e de ter passado um bom tempo com ela, ele voltava para casa tranquilo e feliz. Iria fazer o possível para viajar com ela pro Rio. Seria perfeito, um final de semana inteiro com Patrícia, em uma bela praia... Não podia pedir por coisa me-lhor. Estava pensando nisso quando, depois de guardar o carro na garagem do prédio, saiu novamente e foi até o prédio de Mélanie. Já era tarde, mais de meia-noite, mas, era sábado no outro dia (ou no mesmo dia, sei lá), então, não precisava se preocupar. Além disso, não podia deixar de ir ver como Mélanie estava. Era um mal da família Vasconcelos, e Gustavo já estava mais do que acostumado. Quando um deles caía gripado, só faltava encomendar o caixão. Paula e Daniel ainda estavam se recuperando, mas, agora que Mélanie estava doente, era como se a humanidade estivesse com os dias contados. Entrou no apartamento e, como esperado, encontrou Paula sentada na sala, com um pano cobrindo o rosto. Ela tomou um susto quando viu Gustavo. - Desculpa, mas, quando foi que você se mudou pra cá?

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- Vim ver como vocês estão e se eu já posso cancelar o funeral. - Coitada da Mel - Paula falava com a voz abafada por causa do pano - Acho que dessa vez não vai dar. - Sem comentários, Paula. Gustavo caminhou até o quarto de Mélanie e entrou. Mergulhado na escuridão do jeito que estava, claro que ele bateu o joelho na quina da cama e quase caiu no chão. O quarto de Mélanie era bem pe-queno, não cabia um selo ali. Com toda a tralha que Mélanie guardava pro ali (os livros, coleções de dvds e enciclopédias), o lugar parecia ainda mais minúsculo. Gustavo conseguiu se desviar de tudo. Fez um barulho considerável, mas, o sono de Mélanie já era pesado. Nocauteada por remédios como ela devia estar, Gustavo tinha certeza que ela não acordaria nem se uma bomba caísse ao seu lado. Com cautela, se assentou na cama de Mel, ao lado dela. Ela parecia respirar com dificuldade e estava bem quente, mas, apesar da sentença de Paula, Mélanie iria sobreviver. Passou a mão de leve no cabe-lo da amiga e se levantou. Foi até o quarto de Dani, que era um pouco maior que o de Mel. O garoto dormia a sono solto, debaixo de 500 cobertores que Paula tinha colocado em cima dele. Gustavo não conseguia evitar ficar sentimental quando via o sobrinho. Tinha visto aquele menino nascer e agora ele já estava com três anos. Era essa sensação que ele tinha toda vez que estava com Mel, Dani e Paula, como se eles fossem sua verdadeira família. Agora, com a chegada de Patrícia, essa “família” parecia realmente completa. Isso também o fazia se sentir culpado. Não tinha essa ligação com os seus pais. Talvez nunca tenha tido e era bem provável que não tivesse. Eles pareciam viver em um mundo completamente diferente do de Gustavo. E nenhum dos deles, Gustavo e seus pais, pareciam se esforçar para entender o mundo um do outro. Reflexivo, em plena madrugada, Gustavo passou um bom tempo no quarto de Dani, vendo o garoto dormir. Foi assim que Paula o encontrou. - Fiz chocolate quente. - Diet? - Não, é chocolate de verdade. Vai se servindo lá enquanto eu pego um cobertor pra você. - Por que? - Você tá com aquela cara de que não quer voltar pra casa. Vou preparar o sofá pra você. Paula, sua irmã mais velha, sempre cuidado dele. Gustavo foi até a sala, tirou o tênis e foi até a cozi-nha. Se serviu de um balde de chocolate quente, só então sentindo o sono tomando conta dele. Paula não demorou parar aparecer, carregando um cobertor e um edredom gigantesco. - Pra que isso tudo? - Pra você não acabar morrendo também. Paula colocou tudo aquilo no sofá e se assentou com Gustavo na cozinha. Seu copo com chocolate quente era quase tão grande quanto o de Gustavo. Beberam em silêncio. Paula não era nem um pouco parecida com Mélanie. Enquanto Paula era branquela e com cabelo escorrido (mesmo que por meio de sabe-se lá quantas químicas), Mélanie tinha herdado a pele morena do pai e tinha o cabelo cacheado, muito cacheado. Mas, o jeito delas era parecido. Elas tinham mania de ficar olhando pro nada. - E aí, como tá a vida? - Gustavo perguntou. - Tudo na mesma. Trabalhando muito. E você? - Idem. - Idem nada. E a sua namorada? Quero saber tudo. Gustavo sorri, cansado. - Tudo mesmo? - Tudo. Você conhece a Mel, ela não consegue dar detalhes nem se a vida dela dependesse disso. Va-mos, pode começar a falar. E Gustavo falou. Falou sobre como Patrícia era divertida, diferente de todas as meninas com quem já esteve. Falou, meio constrangido, que até enxergava um futuro pro relacionamento. Paula se divertia com o relato. - Olha você, ficando adulto... - Cala a boca.

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- É sério! Falando de relacionamentos, futuro... Nem parece aquele cara bêbado que veio bater na minha porta no meio da noite. - Você nunca vai esquecer isso, né? - Jamais. Vou falar isso no dia do seu casamento com a Patrícia. - Casamento? De onde você tirou isso, Paula? - Você que tá falando, uai! Se você quer um futuro no relacionamento, só pode ser casamento. - Não, pelo amor de Deus, nem fala uma coisa dessas. Tá cedo demais. - Só não faça a mesma besteira que eu fiz. Gustavo olhou assustado pra ela. - Ah, não me olhe desse jeito. Eu amo o Daniel mais do que tudo nesse mundo, eu trocaria a minha vida pela dele, mas, é meio difícil. Às vezes, é... difícil, sabe? Gustavo engoliu em seco, sem saber muito bem o que falar. Paula, assim como Mélanie, não era nem um pouco sentimental. Era muito difícil encontrar qualquer uma delas falando sobre o que estavam sentindo e toda essa coisa. - A gente tá aqui pra te ajudar, Paula. - Eu sei... - ela disse, suspirando, parecendo pensativa - Que mulher moderna que eu sou, hein? - Você tá indo bem e você sabe disso. - Criar filho é complicado, Gu. Não lembro dos meus pais terem me falado disso - ela fala, rindo - Achei que ia dar conta, mas, nossa...Você vê como eu fico quando o Dani pega o mínimo resfriado que seja. Entro em pânico, achando que fiz alguma coisa errada. - Todo mundo faz coisa errada, Paula. Olha pra mim. Meus pais fizeram um tanto de coisa errada e eu tô legal. - É diferente... Você só vai entender quando tiver um filho. Dá medo pensar que tudo o que eu faço, qualquer coisa, vai refletir na vida do Dani. Eu não tinha esse tipo de preocupação antes e tive que lidar com isso muito mais cedo do que eu esperava. Achei que ia conseguir, todo esse papo de mulher moderna... Bom, acabou que não combinou muito comigo. - Você não faz ideia de como você tá errada, Paula. Não tem ninguém mais moderna do que você. Ela deu de ombros. Gustavo continuou a falar. - Paula, você tá fazendo um ótimo trabalho. Sério. Não conheço nenhum garoto tão maravilhoso como o Dani. Paula olhou para Gustavo com um misto de sorriso e tristeza. - Você sabe que eu amo vocês, né? - Eu sei. A gente também te ama, Gu, e te atura no que precisar - ela fez uma pausa, ainda pensativa. Em seguida, completou - Hora de dormir, né? - Acho que sim. Gustavo foi se acomodar no sofá enquanto Paula fechava a porta da cozinha. Era outra mania dela. - Uma última coisa. - O que? - Que dia você vai trazer a Patrícia aqui? - Não sei. Que dia você sugere? - Amanhã está bom, eu acho. - Vou ligar pra ela. - Ótimo. Boa noite, Gustavo. - Boa noite, Paula. Ah, quase esqueci... Paula já estava no corredor, mas, se virou ao ouvir Gustavo. - Que foi? - Você é uma mãe maravilhosa. Não esquece disso. Ela deu um sorriso de lado e balançou a cabeça, em agradecimento. Saiu apagando a luz da sala, e logo Gustavo estava desfrutando do silêncio confortável do apartamento de Mélanie. Não dava pra explicar o quanto era ligado à essa família. E logo Patrícia faria parte do grupo também. Acabou caindo no sono com um sorriso bobo no rosto.

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30 de junho de 2012, sábado

Mélanie teve que tampar a boca de Daniel com a mão para que ele não estragasse tudo. Caminharam nas pontas dos pés até a sala, onde Gustavo estava esparramado no sofá, dormindo como um anjinho. Mélanie conta até três e Daniel, que mal conseguia se segurar de tanta ansiedade, finalmente consegue fazer o que tanto queria: pular em cima de Gustavo e acordá-lo com o susto. - Tio! Gustavo quase caiu do sofá. - Bom dia - foi tudo o que ela conseguiu falar com aquela garganta inflamada. Gustavo, com a cara amassada de sono, tentou voltar a se enrolar no cobertor, mas, Daniel começou a pular em cima dele. - Vamos jogar videogame, tio! - Deixa o tio dormir, Dani... - Gustavo murmurou. - Já são mais de onze horas da manhã, Gustavo. - Madrugada ainda - ele respondeu, puxando o cobertor pra cima do rosto. - Gustavo, você não ia ligar pra Patrícia? - o grito de Paula veio da cozinha. - Ligar pra Patrícia? Pra que? - Mélanie perguntou. - O Gu vai chamá-la pra almoçar aqui. O que eu faço de almoço? Gustavo, do que ela gosta? - Tio! Daniel continuou pulando em cima de Gustavo, mas, ele estava muito enrolado em várias camadas de cobertor e edredom para sentir qualquer coisa. Mélanie resolveu deixar que os dois se resolvessem e voltou para o seu quarto. Teria visita hoje, logo, ela teria que se arrumar. Paula encheria o saco para arrumar o apartamento, colocar todas as tralhas do mundo no lugar e, por fim, acabaria trancando o quarto de Mélanie “porque ninguém era obrigado a contemplar essa visão do chiqueiro do inferno que é o seu quarto”. Ela não estava esperando por isso. Teria que soltar o cabelo, colocar uma calça jeans nova, talvez até passar maquiagem. Passar maquiagem para ficar em casa, era só o que faltava mesmo. Sem contar a gripe. Maldita gripe que quase a matara. Ainda podia matar, na verdade. Sua garganta continuava inflamada, nariz entupido e a tosse era interminável. Ótimo, simplesmente ótimo. Enquanto se equilibrava entre as pilhas de enciclopédias que ficavam espalhadas pelos cantos do seu quarto, Mélanie ouvia a conversa de Daniel e Gustavo na sala. Pelo visto, Gustavo tentava conversar com Patrícia no celular, mas, Daniel ainda tentava puxá-lo pra fora do sofá. Paula, na cozinha, come-çava a fazer barulho com as panelas. Era um típico sábado em sua casa. Mélanie abriu o guarda-roupa, tentando se lembrar que roupa usara na última vez em que Gustavo levara uma menina até a sua casa. Provavelmente, o de sempre: jeans, camiseta, rasteirinha. É, era isso mesmo. Talvez um pouco de maquiagem para esconder as olheiras gigantescas. Aliás, talvez MUITA maquiagem para esconder a cara inteira, porque a coisa tá feia. Estava no meio do processo de passar maquiagem quando Gustavo apareceu na porta do seu quarto, Daniel pendurado no seu pescoço. - A Pati tá vindo pra cá. - Beleza. - Como você tá? - Doente. - Não melhorou nada? - Não. Talvez. - Videogame, tio. - Vou lá em casa pegar o videogame, tá? - Ok. - Você tá bem? - Como assim? - Você tá esquisita. - Não tô, não. - Tá sim.

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- É que eu tô com preguiça de me arrumar. - Então, não se arruma, uai. - Mas, a Pati tá vindo pra cá. - E daí? - Tio, videogame! - Olha pra minha cara, Gustavo! Tenho que me arrumar. - Você tá ótima, Mel. - Mentiroso! - TIO! - Meu Deus, Daniel! Olha, eu vou, mas, volto. Gustavo saiu com Daniel e Mélanie continuou no processo de tentar esconder o cansaço do seu rosto. Trocou de roupa (ainda estava de pijama e tinha planejado ficar assim o dia inteiro), soltou o cabelo (uma profusão de cachos indo para todos os lados) e se olhou no espelho. É, dava pro gasto. Um pensamento cruzou a mente de Mélanie, rápido como um raio: será que estava fazendo isso porque se sentiu intimidada por Patrícia? Bom, isso era ridículo. Ridículo e estúpido. Patrícia até tinha um estilo parecido com o de Mel, com roupas “normais”, mais natural. Não tinha nada disso. Por que diabos pensou nisso? Foi até a cozinha e encontrou Paula no meio de uma bagunça de ovos, farinha e água. - Vou fazer panquecas. Sabe se a Patrícia gosta? - Acho que sim, não sei. - O que foi? - O que foi o que? - Você tá estranha. - Ai, que cisma de vocês! - Por que? O Gustavo também falou? - Falou! Quer ajuda em alguma coisa? - Não. É porque você tá esquisita. O que foi? Não gostou da Pati vir pra cá? - Você nem conhece ela e já tá chamando de Pati, Paula? - Do jeito que o Gustavo fala dela, parece que ela é bem tranquila. Você tá com ciúme, é isso? - Ciúme, eu? Parece que você não me conhece. - O Gustavo já teve outras namoradas, você sabe. - Claro que eu sei. - Então por que é diferente agora? - Paula disse, olhando para Mélanie com os olhos apertados. Era o olhar dela de “vou acabar descobrindo o que você tá tentando esconder de mim”. Mélanie deu de ombros, ela mesma confusa. Será que era isso que estava sentindo? Ciúme por ter que dividir o melhor amigo? Mélanie nunca foi de ligar para essas coisas, mas, era preciso admitir que ela tinha ficado um pouco assustada com o jeito que Gustavo falava de Patrícia. Com as outras garotas, era óbvio que a coisa era passageira, Gustavo estava só curtindo, então, Mélanie nem se dava ao trabalho de levar o amigo a sério. Agora, porém, ele parecia realmente empenhado em fazer o namoro funcio-nar. Ela sentia, e feria o seu orgulho ter que admitir isso, que estava prestes a perder seu irmão. E que sentiria falta dele. - Ciúme de irmão, nada mais... - O Gustavo não vai sair da sua vida só porque tá namorando. - As namoradas dele sempre enchem o saco por minha causa - Mélanie disse, olhando distraída para o nada. - A Pati, ou Patrícia, o que for, parece diferente. Ela tá vindo aqui em casa, pelo amor de Deus. Não lembro de nenhuma outra garota ter vindo aqui. - Acho que teve uma, sei lá... Nessa hora, escutam a porta se abrindo e logo a voz estalada de Daniel ecoa por todo o apartamento, pedindo para Gustavo montar logo o videogame. Mélanie sussurra para Paula: - Não vá falar nada com o Gustavo, tá?

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- Claro que não. Quem você acha que eu sou? - Não quero ele preocupado com isso. - Você com ciúmes, quem diria... - Cala a boca.

- Meu Deus, é a melhor panqueca que eu já comi na vida! Deve ser a quinta vez que Patrícia fala isso. Não que isso seja um problema. O rosto de Paula se ilumina toda vez que a namorada de Gustavo solta um elogio para o almoço. Patrícia parece mesmo ter gostado. Ela não fez cerimônia quando Paula falou para ela repetir o prato e, agora, quando todos já tinham limpado os pratos (até mesmo Mélanie), Patrícia pegava as últimas panquecas da travessa. Mélanie ficou admirada e acabou achando mais um motivo para gostar de Patrícia. Ela não era de fres-curas. Fala sério, será que dessa vez Gustavo tinha realmente achado a garota ideal? Desde que chegara ao apartamento de Mélanie, Patrícia tinha sido a convidada perfeita. Cumpri-mentou Paula, falou do cheiro bom da comida, deixou-se ser levada por Daniel para conhecer todos os brinquedos dele e, como se não bastasse, levou uma torta de chocolate para comerem de sobremesa. Ela era perfeita ou o que? - Posso jogar videogame? - Daniel perguntou, a boca toda suja de panquecas. - Ainda não. Você não quer comer sobremesa? - Paula pergunta. - Uai, Paula! Vai deixar o Dani comer doce? - Gustavo diz, o tom de riso explícito em sua voz. - Por que? Vocês não comem doce, é isso? - Patrícia pergunta, já com os olhos arregalados por, talvez, ter quebrado alguma regra da família. Paula logo a acalma. - Claro que comemos. É que eu tento cuidar da dieta do Dani. Se eu deixasse, ele comeria biscoito recheado o dia inteiro. Ainda mais com esses dois por perto - ela diz, apontando para Gustavo e Mel. - Eu? - Mélanie pergunta - Eu nunca fiz nada. Vivo dando alface para o Daniel. - Mélanie, você não deve nem saber o que é alface - Paula retruca. - É aquele troço verde que eu mando tirar do meu hambúrguer, claro que eu sei o que é! Patrícia ri. - Deve ser muito difícil comer salada quando você, Paula, cozinha esse tanto de coisa gostosa. - Eu tento. Mas, esses dois estão sempre trazendo pizzas, sanduíches... e passam tudo escondido pro Daniel, que eu sei. - Que mentira! - Gustavo fala. - O tio me deu chocolate! - Daniel fala, distraído demais com a sua colher para perceber Mélanie e Gustavo trocando um olhar de cúmplice, enquanto Paula os fulmina com o olhar e Patrícia ri mais ainda. - O Dani deve ter sonhado com isso, sei lá - Mélanie fala. - Sei. Vocês vão sonhar com a minha mão na cara de vocês se continuarem dando chocolate escondi-do para o meu filho - Paula diz. Ela se levanta e começa a recolher os pratos. - Deixa eu te ajudar - Patrícia fala, se levantando também. - Não, não. Você é a nossa visita! - A Paula só deixa a gente ajudar na cozinha depois da quarta vez que a gente vem aqui, Pati - Gustavo fala, rindo. - Ah, o Gu me falou que você é... - Obcecada com a minha cozinha? Bom, isso é verdade. - Minha mãe sofre do mesmo mal. Posso, pelo menos, pegar a sobremesa? - Não, nada disso. A Mélanie me ajuda. - A Mélanie o que? - Mel pergunta. - Vem logo, Mel. Meio a contragosto, Mélanie se levanta e vai atrás de Paula. Era mais do que óbvio e evidente que Paula queria cochichar alguma coisa com a irmã. Óbvio. - Amei a Patrícia - ela disse. - Sabia que você ia gostar dela. É meio difícil não gostar dela, na verdade.

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- Você ainda tem as suas suspeitas, né? - Que estão começando a se dissipar. - Ela comeu todas as panquecas. - E vai começar a lamber a vasilha se a gente não levar a sobremesa logo! Logo Paula e Mélanie estão de volta à sala, segurando as vasilhas e a torta de chocolate que Patrícia havia levado. A conversa segue animada enquanto Paula serve a todos. Patrícia pergunta a quanto tem-po elas moram em Belo Horizonte, pergunta sobre a família delas em Itabira e se elas sentiam saudade de casa. Conversa bem tranquila, amena, sem nenhuma surpresa. Patrícia ri muito das histórias que Mélanie conta sobre Gustavo, e isso a encoraja a falar ainda mais, apesar do olhar de “cala a boca” que o amigo estava lhe lançando. Nesse meio tempo, Daniel dormiu no colo de Gustavo e ele foi levar o menino para o quarto. Mélanie captou o olhar de Pura Ternura que Patrícia lançou para Gustavo. Não era de se admirar. Que garota não fica toda derretida quando vê o garoto que gosta sendo todo fofo com uma criança? - O Daniel é doido com o Gustavo - Paula comenta, como que lendo os pensamentos de Patrícia. - É, deu pra perceber. O Gu tá sempre falando dele. E o Daniel é muito fofo também. - Os dois até se parecem, acredita? - Paula comenta - O Dani tá com a mesma mania do Gustavo de dormir com o cobertor tampando a cara. - O Gustavo faz isso? - Faz. Tem vez que a gente senta no sofá e acaba sentando em cima do Gustavo, porque ele tá tão debaixo do cobertor que nem dá pra perceber que ele tá aqui - Mélanie responde. - Vocês quatro são engraçados juntos - Patrícia fala. - Como assim? - Desde que eu conheci o Gustavo ele fala de vocês, como se vocês fossem irmãos, sei lá. Agora tá dando pra entender o que ele queria dizer. Vocês realmente parecem irmãos. - Ou, no mínimo, uma família bem esquisita - Mélanie completa, fazendo Patrícia rir. Logo Gustavo volta e se assenta ao lado de Patrícia. - E aí, do que estamos falando? - ele pergunta. - Da nossa família disfuncional - Paula diz. - Ah, claro. Você vai se acostumando, Pati. - Espero que sim. Gostei muito de ter vindo aqui, de verdade. As outras namoradas do Gustavo já vieram aqui também? Mélanie e Paula trocam um olhar divertido e Gustavo arregala os olhos, em pânico. - Acho que teve uma que veio, não me lembro bem... - Ah, era aquela loira, não era? - Mélanie, por que você não leva a Paula para ver seus livros? A Mel tem muito orgulho da coleção dela, você tem que ver. Patrícia balança a cabeça enquanto Paula e Mélanie riem da cara de Gustavo. - Sim, vamos lá - Mel fala - A gente pode deixar a conversa das namoradas pra depois.

Já é tarde quando Mélanie finalmente consegue se assentar em seu querido sofá, enrolada em um cobertor e totalmente dopada de remédios pra gripe. Ia ter uma maratona de filmes de animais assassinos, todas aquelas aranhas radioativas ou piranhas pré-históricas prontas para invadir o final da noite da Mel. Ela adorava esses filmes. É sério. Mas, com os olhos pesados do jeito que estavam, era bem provável que ela caísse no sono no meio de algum ataque de tubarões. Estava tão distraída, tentando prestar atenção nas vespas gigantes ao mesmo tempo em que era inundada pelo sono, que só percebeu que Paula estava ali quando ela começou a falar. - Foi um dia bom, né? - É, foi legal. - Gostei muito da Patrícia. Acho que ela é melhor namorada que o Gustavo já arrumou.

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- Falei a mesma coisa com ele. - Huummm... então, você gostou dela? - Gostei, uai! Por que não gostaria? - Sei lá. Ciúme de irmão, talvez. - Cala a boca. Paula ri. Ficam em silêncio por algum tempo. - O que é isso que você tá assistindo, pelo amor de Deus? - Filme de vespa gigante psicopata. Eu gosto, então, fica quieta. - Por que você não foi sair com o Gustavo e a Pati? - Pra ficar de vela? Não, muito obrigada. - Você não ia ficar de vela. - Claro que ia. - Mel, quando eu tava na sua idade, eu nem sabia o que era ficar em casa num sábado à noite. - Paula, por que você não fala de uma vez o que você tá querendo falar e me deixa ver meu filme em paz? - Você não vai virar uma mulher das cavernas só porque o Gustavo tá namorando, né? Eu sei que ele que é sua companhia para sair, mas, agora você vai ter que dar um jeito. Não quero saber de você criando teia de aranha aqui dentro. - Você devia ficar feliz porque eu prefiro ficar em casa do que ir pra alguma boate. - Mel, à essa altura, se você sair de casa e ir pra qualquer quebrada que for, eu ficaria feliz. - Eu vou pra casa do Gustavo quando ele voltar, então. Tá bom assim? - Como assim? - Vou pra casa do Gustavo, uai. Não é isso que você quer que eu faça? Saia de casa? - Sim, mas, ir para algum lugar com mais pessoas, não ir dormir na casa do seu amigo que, caso você não se lembre, agora tem namorada. - E daí que ele tem namorada? - Como assim “e daí”, Mélanie? Você não pode mais ficar indo dormir na casa do Gustavo. - E por que não? Ele vive dormindo aqui! - É diferente. Eu tô sempre aqui, o Dani também. Mas, você só dorme lá quando os pais dele não estão. Você realmente acha que a Patrícia ia gostar de saber que você tá indo dormir na casa do Gustavo e que vocês vão ficar sozinhos lá? Mélanie não estava entendendo a situação. E ela estava se esforçando. O que diabos era isso? Agora que Gustavo estava com a Patrícia, eles não poderiam mais fazer o que SEMPRE fizer-am? - Ahn... Paula, você sabe que quando eu vou pra casa do Gustavo, a gente não faz nada além de assistir filme, né? - Não vou nem comentar isso, Mel. Só tô falando pra você pensar um pouco. Imagina se você tivesse um namorado e descobrisse que ele tem uma melhor amiga que dorme na casa dele quando não tem mais ninguém por lá. - Não ia fazer nada, uai. - Duvido. - Fala sério, Paula. O Gustavo é o meu melhor amigo. A própria Patrícia falou que a gente parece irmão. Não tem nada a ver eu ir pra casa dele. - Mas, dormir lá, Mélanie? Só vocês dois? Irmãzinha, não vai dar mais pra vocês fazerem isso. - E por que não?! Mélanie já estava parecendo uma criança teimosa, o próprio Daniel quando fazia birra no shopping porque Paula não queria comprar alguma coisa pra ele. Ela simplesmente não en-

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tendia porque a chegada de Patrícia causaria uma mudança tão brusca na sua amizade com Gustavo. Sempre que os pais de Gustavo estavam viajando para algum lugar, e isso aconte-cia muito, Mélanie ia para o apartamento do amigo, onde passavam a madrugada assistindo qualquer coisa que estivesse passando na televisão. Conversavam, riam, comiam e assistiam filmes ou seriados, ou as duas coisas. Só isso. Completamente inofensivo, certo? CERTO? - Você tá falando merda, Paula. - Não tô, e você sabe. Mélanie, você tem que se acostumar com o Gustavo namorando. Ele é um completo retardado, então, se ele falar pra você ir pra casa dele, você vai recusar. Entendeu? - Não, não entendi. - Mas, vai entender. Vai ter que entender. E tem que entender rápido, senão, em breve, as suas únicas companhias vão ser essas vespas gigantes.

15 de novembro de 2008, sábado

- Então, você gosta de ficar sozinho em casa? - Já tô acostumado, eu acho. - Sério? Nossa, eu detesto ficar sozinha em casa. - É que pra mim não faz muita diferença, sabe? Meus pais nunca estão aqui mesmo... - E você não é daqueles caras que dão festas gigantescas quando os pais viajam? - Não, Deus me livre! Imagine umas 40 pessoas aqui, no meu apartamento! Todo mundo bêbado, sem poder ligar o som... não, é melhor sair com os amigos para alguma festa gigantesca, de preferência longe daqui. - E por que você não foi em nenhuma festa gigantesca hoje? É sábado à noite, com certeza você ia arrumar alguma coisa. - Não tava a fim de sair hoje. - Você tá andando demais comigo, Gustavo. Mélanie e Gustavo estão esparramados no sofá da casa dele, assistindo Jurassic Park. Depois de ter recusado todos os convites dos amigos para sair, Gustavo se viu sozinho em casa. Simplesmente não estava com vontade de sair, e ele não sabia explicar porque. Ele sempre estava com vontade de sair, ainda mais quando os pais não estavam em casa. Se ele já tinha bastante liberdade para fazer o que bem entendesse com os pais presentes, quando eles estavam fora, a coisa ficava melhor ainda. Mas, nesse sábado em especial, ele quis ficar em casa. Tinha passado por uma semana particularmente chata, com provas na faculdade e um trabalho gigante que não tinha rendido a nota que ele esperava. Daí, como um velho, decidiu ficar em casa no sábado à noite. Poderia sair no domingo, para não perder o final-de-semana todo. Estava se preparando para se jogar no sofá e ficar por lá para sempre quando Mélanie lhe mandou uma mensagem no celular: “Amo meu sobrinho, mas, se eu ficar mais um segundo aqui ouvindo o choro dele, eu mando o me-nino pra adoção. Vamos fazer alguma coisa?”. Gustavo respondeu na mesma hora: “Acho que você me passou preguiça aguda do mundo, aí não tô a fim de sair. Quer vir aqui pra casa?” “Seus pais não vão encher o saco?” “Eles não estão aqui. Vem logo!” “Quer que leva alguma coisa?” “Comida, por favor!” “Tô aí em três minutos.” De fato, três minutos mais tarde, Mélanie já estava na cozinha do apartamento de Gustavo, fazendo pipoca de microondas (segundo Mel, era a única coisa comestível que ela tinha coragem de fazer),

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enquanto Gustavo continuava esparramado em seu sofá. Mélanie logo se juntou a ele, segurando dois baldes de pipoca. Horas mais tarde, eles quase não tinham mudado de posição. Jurassic Park já estava chegando à metade, aquela parte emocionante em que o tiranossauro rex aparece e destrói tudo, quan-do Mel perguntou: - Fala aí, por que você não quis sair hoje? - Não sei. Ela olhou desconfiada para ele. - Tô falando sério. Eu não sei porque eu não quis sair. Deu vontade de ficar em casa, sem contar que a minha semana foi uma droga. - Sério? O que aconteceu? - Tive um tanto de prova, um trabalho que deu errado... tô cansado pra caramba. - Final de semestre é uma droga. - E como foi a sua semana? - Cansativa também. Faculdade me matando e um bebê que não para de chorar. - Tô com saudade do Dani. - Vai lá em casa amanhã, uai. - Posso? - Claro que pode. Que pergunta idiota, Gustavo. Continuaram assistindo ao filme. Gustavo não fazia ideia de quantas horas eram e também não estava se importando. Sua noite de sábado tinha saído melhor do que o planejado. Ele estava em casa, descan-sando, assistindo alguns ótimos filmes e comendo pipoca com uma boa amiga. De repente, percebeu que essa devia ser a primeira vez que ele estava sozinho com uma menina e não estava rolando nada. Sério, nada. E olha que eles tinham todas as oportunidades para fazer alguma coisa rolar. Estavam sozi-nhos no apartamento dele, deitados no sofá-cama. Mas, era algo que nem passava pela cabeça de Gus-tavo. Talvez ele nunca tenha pensado nisso, de ter alguma coisa com Mélanie. Os dois eram só amigos e, estranhamente, Mélanie estava caminhando para se tornar a amiga mais próxima que ele já tivera. Isso era muito esquisito. Gustavo sempre teve muitos amigos, mas, aquele melhor amigo, companhei-rão de todas as horas, essas coisas todas, ele não tinha. Nunca se incomodou com isso, pois achava que sua turma já era suficiente. Mélanie era completamente diferente. Primeiro, ela não fazia parte da sua turma. Foi há pouco tempo que ela conhecera seus amigos. E ela não tinha nada a ver com as garotas com quem ele estava acostumado a sair. Talvez fosse por isso que nunca enxergara nada nela além de uma amiga. Uma boa amiga. Quem sabe, sua melhor amiga. Amizade entre homem e mulher dava problema, ele sempre ouvira isso. Mas, verdade seja dita, ele nunca tinha se sentido tão confortável com um garota antes quanto se sentia com Mélanie. Ela parecia não ligar muito pra essas convenções. Porém, outra verdade tinha que ser dita também: Gustavo não sabia se Mélanie estava na mesma linha de pensamento que ele. Ela poderia achar que Gustavo tinha alguma segunda intenção, afinal de contas, ele estava sempre ligando pra ela, sempre dando um jeito de se encontrarem, sem contar aquela noite estúpida. Se fosse assim, se Mélanie estivesse achando que tinha algo mais da parte dele, ela não parecia demonstrar nada. Talvez devessem conversar sobre isso. Mélanie era maravilhosa, mas, não era o tipo de garota que dei-xava Gustavo maluco. Mélanie também já tinha dito, meio zoando, que gostava de caras mais velhos, e Gustavo era apenas um ano mais velho que ela. Será que poderia haver alguma confusão no meio disso tudo? Sim, seria bom conversar sobre isso, deixar claro que era só amizade. Só pra garantir, sabe? Assim, poderiam continuar sendo amigos sem ter que passar pela chatice de confundir alguma coisa. Isso era sempre um saco. - Mel, eu queria... Ele se virou para falar com ela, e qual não foi a sua surpresa quando viu que ela tinha dormido? Mé-lanie tinha, simplesmente, apagado. Toda aquela confusão de cachos estava jogada em cima do rosto e, abraçada à almofada daquele jeito, Gustavo pensou se ela ainda não dormia agarrada à algum bicho de pelúcia. Pensou no que faria. Mélanie realmente devia estar caindo aos pedaços de tanto sono para dormir no meio de um filme. Não achou que seria legal acordá-la. Gustavo olhou o relógio e viu que

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já era quase meia-noite. Ah, dane-se. Gustavo tirou um pouco dos cachos de cima do rosto de Mel, abaixou o volume da televisão e voltou a se acomodar confortavelmente no sofá. Não demorou muito para que o celular de Mélanie tocasse. - Oi, Paula. - Gustavo, tudo bom? - Tudo bem, e você? - Por que você tá cochichando? - A Mélanie dormiu? - Fala sério. - É sério. - O que você fez com ela? - O que eu fiz com ela? Ficou doida, Paula? - Vocês não estão, tipo... - Deus, não! Ela só dormiu, Paula, só isso! Paula fica em silêncio por alguns instantes. - E ela vai ficar aí? - Acho que sim. - Gustavo, se minha irmã voltar grávida pra casa, eu... - Hora de desligar, Paula. - Tô de olho em vocês dois, garoto. - Certo, certo, o que você quiser... ah, vou almoçar na sua casa amanhã, tá? - Ótimo. Tô precisando de uma babá pro Daniel. - Boa noite, Paula. - Boa noite, Gugu. Assim que o filme terminou, Gustavo já estava com os olhos pesados de sono. Desligou a televisão e pensou, por dois segundos, se não seria melhor ir para o seu quarto e deixar Mélanie à vontade no sofá. Não teve tempo de responder a si mesmo. Logo já estava desmaiado de sono, bem ao lado da garota.

16 de novembro de 2008, domingo

Qual não foi a surpresa de Mélanie quando a primeira coisa que ela viu quando abriu os olhos foi Gus-tavo? Logo ali, do seu lado, dormindo com a boca aberta e com jeito de que não acordaria mesmo se a 3º Guerra Mundial começasse dentro da casa dele. O que diabos tinha acontecido? Talvez fosse seu cérebro ainda dormindo, mas, ela não conseguia se lembrar do que tinha acontecido na noite passada. Sua memória só ia até metade do filme que estavam vendo, Jurassic Park. O que tinha vindo depois dos dinossauros? Por Deus, o que tinha vindo depois dos dinossauros? Ainda lenta, ela conseguiu puxar o cabelo para o lado e fez uma trança de qualquer jeito, imaginando como seu cabelo devia estar uma juba. Como sempre, né? Olhou para o relógio pendurado na parede e viu que ainda não eram dez horas da manhã. De um domingo. Cedo pra caramba. Não se lembrava das horas em que dormiu na noite anterior, mas, sabia que tinha sido durante o filme. Não se lembrava de ter bebido nada, logo, não poderia estar bêbada, logo, não poderia ter feito nenhuma idiotice com Gustavo. Pelo menos, não havia nenhuma roupa fora do lugar, nem dela, nem de Gustavo. Ótimo, muito bom, muito bom. Convencida de que não havia acontecido nada, só um pequeno acidente por ter dormido no meio de um filme excelente (foi mal, Spielberg), Mélanie se espreguiçou e virou para o lado, pronta para dormir mais um pouco. Ela não estava contando em acertar o nariz de Gustavo no meio do processo. - Ai! - Ai, meu Deus! Me desculpe, Gustavo! O garoto se virou para o lado, com a mão no nariz. Mélanie quase pulou em cima dele. Era só o que

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faltava, quebrar o nariz do dono da casa depois de ter dormido no sofá dele. - Pelo amor de Deus, não fala que eu quebrei seu nariz, não! Gustavo se virou novamente, a cabeça virada pra cima, segurando o nariz dramaticamente. Mélanie olhava para ele, quase apavorada. Alguns segundos mais tarde, o garoto começou a rir. - Vou sobreviver, Mélanie. Mas, ai! Mélanie deu um tapa nele. - Quase você me mata de susto, imbecil! Gustavo continua rindo e Mélanie se deita novamente. Ainda com a mão no nariz, Gustavo se vira para ela. - Bom dia! - ele fala, ainda rindo. Mélanie acaba rindo também. - Eu dormi no meio do filme? Foi isso mesmo que aconteceu? - ela disse, esfregando os olhos. - Foi exatamente isso que aconteceu. Quando o velociraptor ia começar a correr atrás dos moleques, você já tava babando na minha almofada. - Meu Deus, não acredito que eu fiz isso. - E no meu sofá, ainda por cima. - Não foi pior do que aquele dia que você dormiu no meu sofá. - Eu não tive escolha, é diferente. Tava muito bêbado pra voltar pra casa. - Você mora do lado da minha casa, Gustavo. - Não moro, não. - Não vou discutir com você num domingo às nove e quarenta da manhã. - Nove e quarenta?! Pelo amor de Deus, é madrugada ainda, Mélanie! Por que você me acordou agora? - Eu não te acordei. Eu dei um soco no seu nariz, sem querer. - Claro, claro. Obrigado por isso. - A hora que você quiser. Pararam de falar e olharam para o teto, os dois com preguiça demais para sair do sofá. Mélanie sentiu que poderia dormir por mais algumas horas, mas, pensou na esquisitice da cena, deitada no sofá de um garoto, os dois sozinhos em casa. Ela tinha consciência do seu cabelo desarrumado, da cara amassada e do gosto de guarda-chuva da sua boca. O que será que estava se passando na cabeça de Gustavo? Provavelmente, que ela estava dando em cima dele do jeito mais descarado possível, dormindo na casa dele, fazendo pipoca, o convidando para almoçar na casa dele...Mas, ela sabia que era impossível que um garoto como Gustavo gostasse dela. Simplesmente impossível. É, não era algo com o qual ela pre-cisasse se preocupar. Gostava de ser amiga de Gustavo e isso já era suficiente. - Acho que vou dormir mais um pouco - Gustavo fala, a voz carregada de sono. De repente, Mélanie se lembra que não ligou para Paula na noite anterior. Ela deve estar louca de preocupação. - Preciso ligar pra minha irmã, ela não sabe que eu tô aqui... - Sabe, sim - Gustavo responde, já virando para o lado - Ela ligou ontem e eu conversei com ela. - Sério? E o que ela disse? - Falou que ia me matar se você voltasse grávida pra casa. - Mentira que ela falou isso. - Falou, sim... e daqui a pouco a gente tem que ir pra lá pra almoçar. - Gustavo, o que... - Boa noite, Mel. Gustavo e suas regras sobre não acordar antes do meio-dia durante o final de semana. Sim, verdade seja dita, era uma regra que Mélanie respeitava, mesmo que nos últimos meses, Daniel estivesse fazen-do o possível para que essa regra fosse infringida. O garoto chorava como se ninguém nunca tivesse dado nada para ele comer, e ele era tão malandro que parecia deixar esse choro estridente reservado para as madrugadas e para as manhãs de sábado. Pensando nisso, esse era o primeiro domingo, desde que Daniel tinha nascido, que Mel conseguia dormir sem se preocupar com choro de bebê. Era uma benção, um presente celestial. Presente, este, que não poderia ser desperdiçado. Mélanie se virou para o outro lado e, novamente abraçada à almofada, logo voltou a cair no sono.

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5 de julho de 2012, quinta-feira

É agora, hein? É hoje! Você consegue, Mélanie! Você consegue! Você foi a garota que socou cinco moleques no jardim de infância porque eles roubaram sua merendeira! Você consegue sair com o pessoal do seu trabalho! Mélanie encarava o espelho há uns cinco minutos, repetindo esse mantra de que ela conseguia se di-vertir com a galera do serviço. Era só um happy hour, umas cervejas, uma conversa retardada e, pronto, já estava em casa. Ela sabia que precisava fazer isso. Paula não iria parar de encher o seu saco enquanto Mel pelo menos não tentasse sair com uma galera nova. Na verdade, a galera nem era tão nova assim, mas, em quase dois anos de estágio, essa seria a terceira vez que Mélanie sairia com eles. Nas outras vezes, eram festas de fim de ano e era óbvio que Gustavo havia ido com ela. Agora, ela estava sozinha. Mélanie saiu do banheiro e voltou para a sua mesa, onde vários tubos de ensaio aguardavam para serem catalogados. Ali perto, Gabriela examinava um livro gigantesco com atenção, provavelmente estudando mais sobre vírus, bactérias e todo esse tipo de coisa agradável com as quais elas trabalhavam o dia inteiro. Como não amar o seu serviço? Mas, deixemos as bactérias e os vírus de lado. Mélanie se assentou, xingando Paula mentalmente por ter enchido a cabeça dela de idiotices, falando que era hora de procurar novos amigos. Paula falava isso como se a vida de Mel girasse em torno de Gustavo. Ela tinha outros amigos. Ok, talvez não amigos, mas, bons colegas, pessoas divertidas e que faziam parte do círculo social de Mélanie. Círculo social quase inexistente, é verdade, mas, quem ligava para isso? Gustavo era o seu melhor amigo e era óbvio que eles conseguiriam se arranjar agora que ele estava namorando sério. Paula, porém, insistia em falar que Gustavo teria que dedicar boa parte do seu tempo à Patrícia, que ele não poderia mais ficar dor-mindo na casa delas, saindo com Mel, sendo babá de Daniel. Patrícia tinha chegado. Paula estava exagerando, é claro. Gustavo fazia parte da família delas, um irmão. Já não dava para imaginar como seria a vida delas se Gustavo não estivesse presente. Por que tudo tinha que mudar só por causa de uma namorada? Mélanie perguntou isso para Paula. Com cara de cansada, já sem paciên-cia para continuar discutindo, sua irmã mais velha respondeu: - Ok, Mélanie, faça o que você quiser. Mas, mesmo que você e o Gustavo continuem do jeito que são, você não iria morrer se fizesse novos amigos. Agora, aqui estava ela, criando coragem para falar com Gabriela que, nesta quinta-feira em especial, ela queria sair com a galera do laboratório. Por que isso era tão difícil? Paula tinha razão: Mélanie não tinha nenhum traquejo social. Isso era um problema. Talvez precisasse de terapia pra resolver isso. Pro inferno com isso. - Ei, Gabi, eu tava pensando... - Sim? - ela falou, sem tirar os olhos do livro. - Eu queria saber... - Sim? - ainda sem tirar os olhos do livro. - Vocês vão sair hoje, depois do serviço? - Claro, uai! Hoje é dia de beber e chorar os dramas. Por que? - É que, bom, eu tava pensando em ir com vocês. Finalmente, Gabriela tira os olhos do livro e olha para Mélanie, com cara de desconfiança. Gabi é extremamente gente boa, baixinha e dona de um par de óculos gigantescos, o que deixava seu olhar desconfiado ainda mais medonho, como Mel percebeu. - Você tá doente? - Não. - Você tá pagando alguma promessa ou qualquer coisa do tipo? - Ahn...não. - Você tá morrendo e por isso quer sair com a gente pra despedir? - O que?! Não! - Por que você quer sair com a gente? - Porque sim, uai! Deu vontade. Não posso?

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- Claro que pode, é só que você nunca sai com a gente, Mel. - Eu sei, mas, hoje deu vontade. Gabi continuava olhando para Mel com desconfiança, mas, um sorriso irônico começava a tomar forma. - Deve ser o alinhamento dos planetas. Você tá na TPM? - Não. Eu só quero sair com vocês. Dá pra ser ou tá difícil? Gabriela dá de ombros. - Dá pra ser, claro que dá pra ser. Só vou mandar uma mensagem pra galera já ir se preparando pro dilúvio. - Cala a boca! - Não acredito que você vai sair com a gente, Mélanie. - É, nem eu. Aliás, quem vai? - Só a nossa galera daqui mesmo. Eu, você, os garotos do andar de cima, sei lá mais quem... Claro que Mélanie queria perguntar se Luís estaria lá. Óbvio. Talvez ele estivesse, sim. Ele e A NAMORADA DELE, quem sabe. O negócio era que, agora, não tinha jeito de voltar atrás. Mélanie tinha marcado de sair com os colegas do serviço e não haveria ninguém para tirá-la de lá. Por Deus, parece que eu tô indo ser executada em praça pública. Eu sou uma idiota.

- Mel, quer beber mais alguma coisa? - Não, tô feliz com o meu suco, valeu. - Tinha que ter alguém sensato no grupo, né, gente? E logo todos na mesa estavam rindo, incluindo Mélanie. Eles estavam em um agradável bar, desses de beira de rua, e todo o mundo parecia feliz, sorridente, piadista. Eles já eram assim no laboratório, mas, era claro que a coisa ficava mais solta depois de sabe-se lá quantas cervejas. Mélanie era a única que não estava enchendo a cara. Depois de ter voltado bêbada de uma festa, aos 15 anos, e ter enfrentado o que pareceram três vidas e meia de ressaca, ela havia decidido que ela e o álcool eram melhores separados. - Você descobriu que eu sou a sensata do grupo só agora, Marcelo? E só por causa de um copo de suco? Olha só pra mim, até fazendo piadas. Paula, essa foi pra você. Marcelo riu e levantou sua garrafa de cerveja. - Eu já sabia que você era um poço de sabedoria, Mélanie. Continue assim. Alguém tem que honrar a fama de seriedade do nosso laboratório. Mais risadas, conversas paralelas, casos que precisam ser contados. Além de Mélanie, mais oito pes-soas estão ali, todos colegas do seu laboratório, gente que ela via todos os dias. Mas, de todos ali, a única com quem ela conversava de verdade era Gabriela. E olhe lá. Luís não contava, porque, além de um “oi” ocasional, eles não falavam mais nada um com o outro. A NAMORADA DELE devia amar isso. O resto da galera, bom, eram colegas, desses que conversam sobre o tempo no elevador ou sobre o juiz ladrão do último jogo do Galo. E só. Agora, sentada em uma mesa de bar com eles, Mélanie se surpreendia ao vê-los conversando como velhos amigos. Sentiu uma pontada de remorso por não ter participado dessa roda desde o início. E esse remorso era novidade pra ela. - Mas, fala aí, Mélanie! Que milagre foi esse de você querer sair com a gente? - Tô fazendo uma pesquisa sobre o comportamento de primatas evoluídos em um grupo. Sério, por que eu não consigo conversar como uma pessoa normal? Claro que todo o mundo riu da resposta sarcástica dela, até Luís deu um sorrisinho de lado, mas, será que custava ter respondido um simples “ah, deu vontade de passar um tempo com vocês”? - Ai, não é nada disso - Gabriela exclamou - A Mélanie tá carente e precisando de amigos. Aí, deu a louca nela hoje. - Eu, carente? Parece que você não me conhece, Gabi. A conversa rolou solta e feliz. O bar onde estavam era perto do campus da faculdade, um lugar pequeno, mas muito agradável. Mélanie achava que já havia estado ali com Gustavo, em algum mo-mento da vida deles, mas, não conseguia se lembrar direito. A coisa estava bem diferente agora, de

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qualquer maneira. Era tanta gente junta, tantas conversas paralelas, que ficava difícil para Mélanie acompanhar tudo. O legal é que, apesar do tempo de antissocial, ainda assim seus colegas a incluíram no papo, ainda expressando surpresa pela mera presença dela ali. Ok, ela tinha que concordar: era mesmo surpreendente que ela tivesse topado passear com a turma. Mel estava no meio de uma acalorada discussão com Marcelo, Douglas e Mariana, comentando sobre as novas contratações do Atlético, quando sentiu o celular vibrando no bolso. Era uma mensagem de Gustavo. “Onde você tá?” Mélanie respondeu rapidamente, os dedos voando pelo teclado. “Sendo social. Saí com o pessoal do meu trabalho, acredita?” A resposta não demorou nem um minuto para chegar. “Você o quê? Cê tá doente, é?” “NÃO TÔ DOENTE! O que você quer?” “Tô na sua casa com o Dani e você não chegou até agora, uai! Queria saber onde você estava!” “Pode ficar tranquilo, pai. Daqui a pouco eu tô chegando.” “Quem é você e o que você fez com a minha melhor amiga que odeia gente?” “Cala a boca.” Mélanie voltou a enfiar o celular no bolso da calça, pronta para voltar à discussão, mas, o assunto tinha mudado. Agora, seus colegas estavam conversando sobre um tal show que aconteceria na sex-ta-feira da semana seguinte. - E aí, Mel? Anima? - Marcelo perguntou. - Animo pra que? - A banda de um amigo meu vai tocar na sexta-feira da semana que vem. Vai ter um concerto no parque, ou qualquer coisa do tipo. A galera tá toda indo. - Show? Em uma sexta-feira à noite? Mélanie já estava fazendo uma careta de pura preguiça, imaginando que não dava para abrir mão do conforto de sua casa numa sexta-feira à noite. Gabriela reconheceu a expressão de Mel e foi mais rápida. - Não, não! Deixa de ser uma velha, Mélanie! - ela se virou para Marcelo - Ela vai, sim. Eu também vou e vou levar o meu namorado. - Ei! Mas, eu... eu tenho que ficar com o Daniel. - Que mentira! O Daniel vai ficar com a sua irmã. Olha pra você, Mélanie! Usando seu sobrinho como desculpa pra não sair de casa! Você não tem vergonha, não? - Olha, sinceramente, não. - Pois vai começar a ter. A gente vai, Marcelo, e não tem discussão. - Ótimo! Vai ser muito legal, os caras fazem um som muito bom - Marcelo respondeu, animado - Vou falar com o resto do pessoal. Marcelo repassou a informação. Show. Sexta à noite. Quero todo mundo lá. Blábláblá. E, pelo o que Mélanie percebeu, todos os seus colegas animaram de ir. Até Luís! Isso era bom, certo? Não a parte em que Luís estaria lá, porque, afinal de contas, ELE TEM NAMORADA, mas, a parte em que Mélanie sairia novamente com o pessoal do seu trabalho e que toda a galera parecia bem animada com isso. Estranhamente, eles insistiam para que Mélanie estivesse presente, como se a presença dela realmente fosse importante. Ela não entendia o porquê disso, ainda mais depois de ter passado tanto tempo reclusa e sem fazer parte da vida social que acontecia além das portas do laboratório. Isso era muito esquisito. Mas, para a sua surpresa, ela estava gostando.

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7 de julho de 2012, sábado

Gustavo não conseguia fazer muita coisa além de amaldiçoar a sua falta de sorte. Era para estar na praia

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agora, se divertindo com Patrícia, passando um tempo com a namorada, mas, não. Em plena tarde de sábado, estava se remoendo na cama, gripado, com febre e achando que poderia morrer a qualquer momento. Era a mesma gripe que tinha se abatido sobre Mélanie, Paula e Daniel e, agora, estava sobre ele. Droga. Ele tinha começado a sentir os sintomas na quarta-feira, mas, achou que não era nada demais, só uma tosse chata. A coisa ficou feia na sexta-feira, quando já quase não conseguia respirar e sentia a cabeça explodindo de dor. Pesquisou no Google o que poderia ser e acabou descobrindo que estava com um tipo de câncer raríssimo em alguma parte nebulosa do cérebro, que o mataria em questão de horas. Ou era apenas gripe. Passadas algumas horas, como Gustavo continuava vivo, ele viu que era gripe mesmo. Não teve outro jeito a não ser cancelar o final-de-semana- que passaria com Patrícia no Rio e se enrolar em vários cobertores e sentir pena de si mesmo. Por algum milagre qualquer, sua mãe estava em casa naquela tarde. Por algum milagre ainda maior, ela tinha feito sopa (que foi parar na privada porque Gustavo não conseguiu engolir nem uma colher daquela gororoba) e, a cada meia hora, ia no quarto do filho para medir a temperatura dele. Claro que ela já havia dito que iria sair à noite, ia se encontrar com o pai de Gustavo em alguma festa, mas, du-rante uma boa parte do dia, ela até tinha conseguido agir como uma mãe normal. Gustavo tinha que reconhecer isso. Estava quase caindo no sono de novo, quando ouviu a campainha do apartamento tocar. Devia ser Mélanie. Logo pela manhã, ela havia ligado pra ele para perguntar se ele ia almoçar na casa dela. Ela não demorou dois segundos para perceber que Gustavo estava gripado, estava morrendo e que não tinha forças para sequer levantar um dedo pra fora da cama. Rindo, Mélanie disse que iria na casa dele logo após o almoço. Gustavo achava que, até lá, sua mãe já teria saído de casa, mas, não foi isso que aconteceu. Encolhido em sua cama, ele ouviu os sons abafados que vinham da sala. Imaginou a cara que a mãe faria quando abrisse a porta e desse de cara com a vizinha. Quais as chances disso dar certo? - Ahn... oi, dona Marta, tudo bom? - Olá. Posso te ajudar em alguma coisa? Sempre a mesma voz seca e sem emoção. Era sempre assim quando Marta se dignava a trocar algu-mas palavras com Mélanie. Gustavo achava que acabaria se acostumando com isso, mas, ainda sentia uma vergonha descomunal toda vez que ouvia sua mãe se dirigindo daquele jeito à sua melhor amiga. - A senhora não deve tá lembrando de mim, eu sou... - Eu sei quem você é, sim. - ...amiga do Gustavo. Ele disse que tá doente, aí eu vim pra dar uma olhada nele. - Acho que ele está dormindo agora, querida. Meu Deus, como a minha mãe consegue ser tão falsa? Gustavo reúne as poucas forças que lhe restam e, sentindo a garganta arranhando, consegue emitir um ruído que lembra o nome de Mélanie. - Ah, parece que ele está acordado. Posso entrar? - Eu acho que é melhor o Gustavo descansar um pouco. Gustavo chama Mélanie de novo. Ele quase consegue visualizar sua mãe se dando por vencida, mas, não deixando transparecer. - Por favor, não demore muito com ele. - Claro, não vou demorar nada. Gustavo quase ri quando escuta essa última fala de Mélanie. Não vai demorar nada... tá bom, viu? Mélanie entra no quarto de Gustavo com a cara de assustada que ela sempre fica quando tem o despra-zer de topar com Marta. - Juro que ela tava tentando me matar usando telepatia. - Desculpa por isso. - Se ela continuar me olhando desse jeito, acho que não vai demorar muito pra eu acabar caindo morta mesmo. - Fecha a porta, por favor - Gustavo consegue falar em meio a um acesso de tosse. Mélanie fecha a porta e vai até a cama de Gustavo. Ele se encolhe mais ainda, abrindo espaço para que Mel se assentasse ao seu lado. Depois de se assentar, a primeira coisa que Mel faz é amarrar a blusa

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de frio no rosto. - Pra que isso? - Não quero ficar gripada de novo. E aí, como você tá? - Morrendo. - Você tá parecendo a Paula. - Como se você também não ficasse morrendo quando fica gripada. - Foi o desespero da hora, nada mais. Mel coloca a mão na testa de Gustavo e o garoto nem se mexe. - É, o trem tá feio mesmo pra você, hein? - Era pra eu estar na praia agora. - Como assim praia? - A Pati foi pra lá no início da semana. Eu ia encontrar com ela lá, pra passar o final de semana. - Ah, tá... Mélanie fica em silêncio, mas, com aquele jeito de que quer falar mais alguma coisa. Mesmo dopado de xaropes como estava, Gustavo conseguia identificar cada olhar de Mel. - E você ia assim, sem falar nada? - Eu falei com você. - Não falou, não. - Claro que falei. - Você acha mesmo que eu iria esquecer se você falasse que ia pra praia? Com certeza, eu ia fazer um escândalo por eu não ir junto e, convenhamos, um escândalo meu não é algo fácil de se esquecer. - É verdade. - Então, você ia pra praia sem me falar nada, safado? É isso mesmo? Mélanie dá um cutucão forte na barriga de Gustavo e o garoto se retrai ainda mais. - Ai! Para de ficar pegando em mim. Eu tô doente, esqueceu? - Você merece. - Eu esqueci de te falar, desculpa. E nem sei porque você tá ligando pra isso. Não foi você que arrumou uma turma nova de amigos? - Não acredito que você tá falando isso. - Mas, é verdade! - Ok, então. Já que estamos falando disso, não foi você que arrumou uma nova namorada? Gustavo fala em tom de brincadeira, e Mélanie responde no mesmo tom, mas, Gustavo não deixa de pensar que pode haver alguma verdade escondida por trás da fala um do outro. Claro que foi uma surpresa grande quando Mélanie falou que tinha saído com os colegas do serviço dela. Isso nunca acontecia. Era quase um sinal do apocalipse. Achou legal que Mel estivesse sendo social (isso aconte-cia uma vez a cada, sei lá, quatro séculos), mas, por mais que ele não quisesse admitir, rolou uma leve preocupação. O que era isso de Mélanie sair com amigos que ele não conhecia, sem avisá-lo e, pior, sem chamá-lo? Gustavo fazia isso direto, de sair com a turma, mas, ele só tinha parado de chamar Mélanie porque sabia que o céu cairia antes da garota aceitar fazer alguma coisa que envolvesse sair de casa. Agora, lá estava ela, finalmente dando um jeito de sair com amigos. Isso era estranho e Gustavo não tinha certeza se estava gostando dessa ideia. - Então, você vai começar a sair com outras pessoas só porque eu tô namorando? - É, acho que tá na hora da gente sair com outras pessoas... Gustavo ri da resposta de Mélanie. Mesmo com o tom descontraído da amiga, ele quis aproveitar a oportunidade para falar algumas coisas sérias. - Mel, eu falei com você que nada ia mudar. - Gustavo, você acha que a Patrícia ia ficar feliz se soubesse que, neste exato momento, eu tô deitada na sua cama? - Que droga é essa? Essa não é você falando. - A Paula andou conversando comigo, só isso. - Preocupação de irmã mais velha. Típico da Paula.

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- Mas, fala que ela não tem razão? - Não, ela não tem razão. - Ah, não tem? Então, liga pra Pati agora e fala com ela que eu tô aqui. Gustavo cala a boca. É bom porque sua garganta estava realmente doendo de tanto falar. Mas, em compensação, isso acaba o levando a pensar no que Mel estava falando. Agora, pela primeira vez desde que começou a namorar, pensou se Pati realmente levaria a coisa toda tão de boa assim, como ele ima-ginava. Uma coisa era levá-la à casa de Mel, almoçar com a família. Outra era ela saber que ele estava doente e que Mélanie estava ali, com ele, cuidando dele. Teria que descobrir isso. - Me passa o celular. - Você vai ligar pra ela? - Mel perguntou, surpresa - Sério mesmo? - Foi um desafio, não foi? Eu não digo “não” para desafios. - Você ri na cara do perigo? - Tipo o Simba, comigo é assim. Me passa o telefone. Mel passa o celular para Gustavo, com cara de incrédula. O garoto não faz caso disso e logo disca o número da namorada, colocando no viva-voz para que Mel pudesse escutar a conversa. Patrícia não demora muito para atender. - Olá! Ouvir a voz animada de Pati só serviu para deixar Gustavo com mais saudade ainda. Praga de gripe maldita! - Oi, linda. Tudo bom? - Nossa, Gustavo, sua voz tá horrível. Como você tá? - Morrendo - a resposta de praxe. Gustavo responde à careta de Mel com outra careta. - Imagino. Você foi ao médico? - Não, não. Minha mãe me deu uns remédios e - hora da verdade - a Mel tá aqui, me dopando de pastilhas pra garganta também. - Ah, a Mélanie tá aí? Manda um abraço pra ela. Gustavo e Mélanie arregalaram os olhos no mesmo instante. Fala sério, não tem namorada mais perfeita! - Bom, manda outro pra ela - Mélanie sussurra. - Ela tá mandando outro pra você. - Fala pra ela cuidar bem de você até eu chegar. - Pode deixar, Pati. - Fica melhor rápido, Gu. Queria tanto que você estivesse aqui comigo... - Eu também, você não faz ideia do quanto. - Na próxima vez, você vem comigo mesmo que esteja morrendo de tuberculose. - Vou doente e feliz, prometo. - Ótimo! Bom descanso pra você e, se precisar de qualquer coisa, me liga. - Tudo bem. Beijo, Pati! - Beijo! E abraço pra Mel. Gustavo encerra a chamada e, com o mesmo olhar incrédulo que vê estampado no rosto de Mélanie (mesmo que o rosto em questão esteja coberto por uma blusa de frio), fala: - Ela mandou outro abraço pra você. - Qual é o problema dessa garota? - Ei! Minha namorada não tem problema nenhum! - Deve ter, não é possível. Todas as outras meninas, todas, me odiavam! Armavam uma guerra quan-do eu chegava perto de você. - Eu te falei que a Pati é diferente, Mel. - É? Diferente quanto? Ou melhor, até quando? - Mel, sério que você quer discutir isso agora? Eu tô morrendo, lembra? - Claro, claro que sim. Vou te deixar descansar em paz. Mel faz um movimento para sair da cama, mas, Gustavo a puxa pela mão.

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- E você vai ter coragem de me deixar aqui? - Sua mãe já deve tá encomendando as flores do meu caixão, Gustavo. - Eu falo com ela que você quer ser jogada no mar, pode deixar. Fica aqui. - Eu vou ficar gripada de novo. - Tem xarope ali. À essa altura, a fala de Gustavo não está fazendo muito sentido. Suas palavras começam a ficar embo-ladas, seus olhos ficam mais pesados do que nunca e não demora para que ele caia no sono.

- Gustavo, eu... Gustavo acorda ao ouvir a voz de sua mãe, mas, nem se mexe. Continua de olhos fechados, imaginan-do que assim ela não o incomodaria com nada. A voz que ouviu em seguida que lhe causou surpresa. - Ele dormiu, dona Marta. - Desculpe, é que eu achei que você já tinha ido embora. Por mais grogue que estivesse, Gustavo ainda conseguia perceber o desprezo na voz de sua mãe. Aliás, ela não fazia questão nenhuma de esconder que era exatamente isso que ela sentia por Mélanie. Porque era assim, ele não sabia e já tinha desistido de tentar descobrir. - O Gustavo pediu para eu ficar mais um pouco. Ele acabou dormindo, e... - Você vai ficar até ele acordar? - Ahn, acho que sim, se não tiver problema. A voz de Mélanie era pausada, e Gustavo sabia que ela não falava com ninguém desse jeito, só com a sua mãe. Era como aquela expressão velha... como se Mel estivesse pisando em ovos toda vez que trocava algumas palavras com Marta. - Fale com ele que eu saí para encontrar com o pai dele. Ele sabe do que se trata. - Tudo bem. Mais alguma... - Obrigada. Gustavo escuta o som dos saltos da mãe batendo com força no chão enquanto ela se afasta do seu quarto. Seus pais sempre têm um milhão de coisas para fazer no final de semana, eles nunca estão em casa. Por isso, é normal que Gustavo vá pra casa de Mel, ou o contrário. Ele ir pra casa de Mel era mais comum, até porque Gustavo não suportava ver a amiga sendo tratada pela sua mãe desse jeito ridículo. Ele ouviu Mélanie respirando fundo. Com certeza, ela estava contando até 100, domando a raiva e a vontade de mandar Marta pro meio do inferno que a carregasse. - Desculpe por isso - ele diz, com a voz mais rouca do mundo. - Já acostumei. - Isso é uma merda. Sério, me desculpa. - Não precisa pedir desculpa por sua mãe não gostar de mim, Gustavo. - Preciso sim. Eu já tentei conversar com ela, mas, parece que... - Você tá melhor? Eles se olham, sem falar nada. Isso é bem típico de Mélanie, cortar um assunto desconfortável com alguma frase banal. Gustavo sabe que Mel não é a pessoa mais sentimental do mundo e que ela real-mente não gostaria de gastar tempo conversando sobre como a mãe de Gustavo era um saco e como o mundo é injusto, essas coisas. - Não sei. Mel coloca a mão na testa de Gustavo de novo. - Você ainda tá meio quente. - Mas, eu vou sobreviver, né? - Acho que sim. Quer comer alguma coisa? - Nada passa pela minha garganta. - Então, fica quietinho aí enquanto eu como. Mélanie tirou uma barra de chocolate da bolsa que havia trazido e voltou a ler o livro que tinha pega-do da estante de Gustavo. O garoto sentiu que poderia dormir por mais uma semana. - Ei, me dá um pedaço... - Cala a boca e dorme, Gustavo.

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10 de julho de 2012, terça-feira

É por pouco que Gustavo não assoa o nariz em um dos seus desenhos. Quase tremendo, imaginando a tempestade que seria caso esse acidente realmente tivesse acontecido, ele coloca o desenho bem longe dele e, então, pega um inofensivo lenço de papel. Ainda está gripado pra caramba, mas, sabe que seu chefe não aceitaria uma desculpa tão estúpida quanto “gripe”. - Toma uma vitamina C, menino, e vem trabalhar logo! - foi o que seu chefe disse para o último fun-cionário que ligou falando que não iria trabalhar porque estava gripado. Logo, cá estava ele, debruçado em cima de uma prancheta, tentando pensar em algo que funcionasse para essa nova campanha que o chefe tinha lhe confiado. Gustavo amava isso. Amava o processo criativo, amava a correria, amava as alternativa, amava o mundo. Mas, nesse exato momento, as duas únicas coisas que ele amava eram a sua cama e o seu xarope. Mais nada. A dor de cabeça não ajudava em nada. Ele precisava apresentar as propostas, nem que fossem rabis-cos, na sexta-feira, mas, era como se o seu cérebro estivesse travado. Ou morto, vai saber. O negócio era que Gustavo não estava conseguindo pensar em nada. De repente, pensou que nem seria tão horrível assim se o acidente envolvendo seu desenho e seu nariz tivesse acontecido. Aquele rabisco ali não ia adiantar pra nada mesmo... Depois de um acesso de tosse que pareceu drenar todas as suas forças, Gustavo não aguentou e des-montou em cima da prancheta, amassando papeis, deixando os lápis caírem, não estava nem aí. Era assim que ele ficava quando não tinha ideias. Deprimido, impaciente e com preguiça. Junte-se à esse estado a sua gripe e, pronto, é o fim do mundo. Com um esforço descomunal, Gustavo estica o braço e pega o celular. Quer ligar para Mélanie, chorar seus dramas com ela e falar que vai morrer e quer deixar sua coleção de livros pra ela, mesmo que sua mãe se recuse a cumprir o último desejo do seu filho. Está discando o número de Mel quando outra chamada chega. Patrícia. - E aí? - Ei, Pati. Tudo bom? De repente, não mais que de repente, Gustavo é invadido por um sentimento estranho e inédito. É uma mistura de dúvida e culpa. Por que pensou em ligar pra Mélanie e não para Patrícia? Afinal de contas, Pati era a sua namorada, era a ela que ele tinha que recorrer em momentos desesperados, como esse em que estava. Humm... é só o costume de ligar pra Mel toda hora. Só isso. - Tudo bom. Tenho uma boa notícia. - Sério? Tô mesmo precisando de uma boa notícia! - Tô aqui, na porta do sua agência. Vim te levar pra almoçar. Gustavo se levanta de um pulo, como se Patrícia estivesse ali dentro. - Você tá falando sério? - Por que não estaria? Tô aqui, uai! - ela responde, rindo. - Nossa, não acredito! Tô aí em três minutos. Com toda a agilidade que sua gripe lhe permite, Gustavo sai da sua sala e desce as escadas correndo, antes que alguém o segure no caminho. Tecnicamente, ele tem uma hora de almoço, mas, em tempos de correria como esse em que estava vivendo, ele mal tinha tempo de chupar uma bala. Patrícia está parada logo ali, do outro lado da rua. O mesmo sorriso simpático, a mesma expressão tranquila de sempre. Gustavo correu até ela, já se preparando para beijá-la. Para o movimento a milí-metros de distância do rosto dela. - Eu tô gripado. - Não tem problema - ela diz, sorrindo. - Eu tô todo nojento. - Ok, então tem problema - Patrícia estende a mão - Acho melhor a gente se cumprimentar assim, então, até você melhorar. Gustavo puxa Patrícia pela mão e lhe dá um rápido abraço. Quer lhe dar um beijo, mas, não quer que a namorada morra de gripe, então, tenta se conter. Os dois caminham de mãos dadas em direção a um

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restaurante que fica ali perto. Gustavo trabalha em um prédio comercial na Savassi, e sua agência ocupa um andar inteiro desse prédio. Tudo por ali é caro e ele ainda se surpreendia por não ter que pagar pelo ar que respirava (pelo menos, por enquanto). Ele e Pati chegaram ao restaurante, montaram seus pratos e se assentaram em uma das mesas da área externa. Patrícia não gostava de lugares abafados. - Tem problema a gente ficar aqui fora? - ela perguntou depois que eles já tinham se assentado - Es-queci que você tá gripado, Gu. A gente pode ficar lá dentro se você quiser. - Não precisa preocupar. Tô tranquilo. O que não era inteiramente verdade, já que o vento frio estava fazendo Gustavo ter vontade de se enrolar no pano da mesa e se encolher em um canto. O frio é psicológico. O frio é psicológico... - E aí? Como tá sendo o seu dia? - Um saco. Tô doente e sem criatividade nenhuma. Mas, tô feliz que você veio almoçar comigo. - Que bom! Eu consegui sair mais cedo do serviço, aí, pensei em vir aqui, fazer uma surpresa. - Melhor surpresa que eu poderia ter. - Por que você não ficou em casa, Gustavo? Você é louco de vir trabalhar nesse estado. - Não tinha jeito. A não ser que você esteja esteja com sangue jorrando dos olhos, meu chefe não deixa você faltar. Aliás, acho que até se você estivesse com sangue saindo do olho, ele provavelmente te mandaria colocar uns band-aids e pronto, tá curado. - Isso não é serviço, é escravidão. - Bem-vinda ao mundo da publicidade. - E o que foi que você falou? Que você tá sem criatividade? - Infelizmente, sim. - O que você precisa criar? Gustavo começa a explicar a campanha que está em suas mãos, que, na verdade, não era tão com-plicada assim. O dono de uma boate famosinha de BH queria dar uma revitalizada na marca, chamar mais gente, essas coisas. O chefe de Gustavo assumiu que o garoto era o que mais conhecia da vida no-turna de Belo Horizonte, então, passou a bomba pra ele. Agora, Gustavo estava atolado de serviço pra uma coisa que ele nem gostava tanto assim. OK, ele até já foi em boates, mas, prefere mil vezes passar o final de semana no sítio de algum amigo, com toda a sua galera, enchendo a cara sem medo, jogando futebol e fazendo churrascos. - Que engraçado. - O que? - Eu super achava que você curtia boates. Até achei que isso seria um problema pra gente. - Eu, gostar de boates? Não, nem um pouco. Eu vou só se for o último caso, sabe? Tipo, ou é boate ou é ficar em casa? Nesses casos, eu prefiro a boate. - Qual o problema de ficar em casa? - Não tem nada pra fazer lá, uai! Se bem que, nesse exato momento, não tem nada que eu queira mais no mundo do que ir pra casa. - Ah, valeu! - Não tô falando por você, Pati! É por causa dessa gripe. Eu não consigo nem ficar de olho aberto direito... E eu tenho que buscar o Dani hoje ainda - Gustavo se lembra, sentindo-se ainda mais cansado. - Buscar o Dani onde? - Hoje o Dani vai ficar até mais tarde na escolinha, aí, eu tenho que ir lá. - Por que a Paula não faz isso? - Porque ela trabalha o dia inteiro também. É só na sexta que isso acontece. Geralmente, a Paula con-segue sair no horário normal dela, às duas horas, mas, hoje ela vai ter que ficar na loja até mais tarde. - Onde ela trabalha? - Ela é gerente de uma loja no shopping. - E a Mélanie não pode pegar o Dani? - A Mel trabalha também, esqueceu? Patrícia balança a cabeça, concordando silenciosamente. Gustavo tinha realmente se esquecido que precisava buscar Daniel. Não era tão problemático assim. Poderia pegar um táxi até o colégio de Dani

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e, de lá, pegava um ônibus com o garoto. O moleque adorava andar de ônibus. - Isso é meio estranho, não acha? - O que? - Você todo preocupado com o Daniel. Você age como se, realmente, fosse o tio dele. - Mas, eu sou o tio dele. - Gustavo, por favor... Patrícia limpa a boca com um guardanapo e volta a falar, em um tom delicado, como quem tenta explicar alguma coisa muito difícil para uma criança. - Eu só acho engraçado que você assuma tantas responsabilidades com um menino que nem é da sua família. - Pati, quantas vezes eu vou ter que repetir que o Daniel é meu sobrinho? - Gustavo, você não tá me entendendo. Eu não tô falando que eu acho isso errado, nem nada disso. É só, sei lá, estranho. - Não tem nada de estranho nisso. Eu tava lá no dia que o Dani nasceu. Eu amo aquele menino. Patrícia estica o braço e pega na mão de Gustavo. - Eu sei que sim. Desculpa por encher o saco com isso. Acho muito fofo o jeito com que você trata o Dani. - Acha mesmo? - Acho sim. E ele é doido com você também. - O Dani é uma das coisas mais importantes que eu tenho na vida. Você... você entende isso, né? - Claro que entendo. Gustavo, eu já disse que não tenho problema nenhum com a Mélanie e a família dela. Eu sei que eles são sua família também. Eu só falei essa coisa do Dani porque... sei lá, nem sei porque eu falei isso. Gustavo dá um jeito de mudar de assunto, falando sobre o novo filme que ia estrear no cinema e que ele queria assistir. Mas, não conseguiu deixar de lado a sensação de que Patrícia estava incomodada com alguma coisa. Ou que ela viria a se incomodar. Não, por favor, não. Ele tinha certeza que Patrícia era diferente das outras namoradas que já tivera. Fala sério, ela não tinha ligado pro fato de Mélanie ir pra casa dele, então, por que essa súbita implicância com ele por ir buscar Daniel na escola? Não fazia sentido nenhum. Terminaram de almoçar e o assunto não foi mais trazido à tona. Voltaram para a agência de Gustavo, caminhando lentamente, sem falar muito. Foi só quando chegaram à agência que Patrícia se virou para ele e, passando as mãos pelo seu pescoço, disse: - Você ficou chateado com o que eu disse sobre o Daniel, não ficou? - Não fiquei chateado. - Tudo bem. Agora, fala a verdade. - Tá, fiquei um pouco chateado, sim. Pati, você tem que entender que... - Eu já entendi. Sério, de verdade. Me desculpa por ter falado demais. - Mas, Pati... - Eu gosto muito do Dani, da Mel e da Paula. Eles são importantes pra você e eu respeito isso. De verdade, Gustavo. Ele balança a cabeça, sem muita ideia do que falar em seguida. - Então, tá tudo bem? - Pati pergunta, com um tom de preocupação novo na voz. - Tá tudo bem. - De verdade? - De verdade. Ela sorri aliviada. Puxa Gustavo para mais perto e lhe dá um longo beijo. Por um momento, Gustavo deixa suas preocupações de lado e se concentra em manter Patrícia perto de si pelo maior tempo pos-sível. Mas, não demora para que ela se afaste. - Eu tenho que ir e você tem que voltar pro trabalho. - Valeu por me lembrar. - De nada, meu bem.

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Gustavo viu Pati se afastar e logo ele entrou em sua agência, arrastando os pés até o escritório e esquecendo as recentes preocupações. Patrícia tinha sido muito firme ao falar que gostava de Mel e sua família. Com o tempo, Gustavo tinha certeza disso, Patrícia entenderia que a verdadeira família de Gustavo era Mélanie, Paula e Daniel. Ele era mais ligado a eles do que a seus pais e todo o mundo percebia isso. Patrícia era uma adição à essa família e as coisas teriam que funcionar desse jeito. Sentado em frente à sua prancheta, Gustavo custava a colocar a cabeça no trabalho. Suas lembranças se misturavam. Lembrava-se da conversa que teve com Mel, assegurando à amiga que nada mudaria. Ao mesmo tempo, repassava as perguntas de Patrícia, ainda sem saber o que ela quis dizer com todo o papo de “é esquisito você cuidar do Daniel desse jeito”. Confuso e com uma dor de cabeça lancinante, ele desistiu de vez e se esparramou em cima da prancheta. Em menos de dois minutos, já estava dor-mindo.

19 de setembro de 2008, sexta-feira

Era meio arcaico, mas, não tinha coisa mais eficiente. O professor fazia rápidas anotações no quadro, puxando setas para todos os lados e ligando essas mesmas setas com coisas que Mélanie nem tinha visto que estavam ali. Ela anotava todos os detalhes no caderno, também puxando setas para frases importantes e assuntos que ela tinha que lembrar. O final de semestre estava chegando e, passado o desespero do primeiro período, Mélanie só podia esperar sofrimento, lágrimas e noites sem dormir, tudo em dobro. E ainda havia o bebê chegando. Por Deus, o bebê. Já estava tudo pronto no apartamento dela e de Paula. Mélanie teve que sair do quarto grande e ir para aquele cubículo que não merecia ser chamado de “quarto”, para que o berço e todos os milhões de apetrechos que Paula comprara pudessem caber sem problemas. Nesse exato mo-mento, Paula devia estar andando pelo apartamento, enorme como alguém que tinha engolido cinco melancias inteiras, e mastigando uma pimenta. Era o jeito de apressar o parto, ela dizia. Mélanie achou melhor não contestar os métodos da sua irmã. Ela tinha provado na pele que era uma missão suicida questionar uma mulher grávida. De verdade. O único dilema ainda não resolvido era o nome do garoto. Passado o choque inicial de ter uma filha grávida e que não iria se casar, os pais de Mélanie e Paula bateram o martelo e falaram que o menino ti-nha que ter o mesmo nome do avô das garotas, Dirceu. Paula falou que ninguém, em pleno século XXI, dava um nome desses para o filho, e a confusão continuou. Mélanie não deu muito pitaco nessa his-tória também, ainda mais depois de ter sugerido, assim como quem não quer nada, que seu sobrinho deveria se chamar D’artagnan, por causa do livro de Alexandre Dumas, que era um dos seus favoritos. Paula respondeu algo não muito apropriado para uma mulher que carregava uma criança no ventre. Agora, prestes a dar à luz, Paula estava entre dois nomes: Daniel (por causa do ator Daniel Day-Lewis, que, segundo Paula, era o homem mais perfeito que já pisou nesse mundo) ou Alvo (por causa de Alvo Dumbledore. É sério). Mélanie culpava os hormônios típicos da gravidez por terem deixado sua irmã ainda mais louca que o normal. Estava assim, dividida entre pensamentos, quando ouviu o professor falar, do nada: - O que você deseja? Mélanie levantou os olhos do caderno e olhou para o professor que, por sua vez, havia parado no meio de uma anotação para olhar pra porta da sala. Ali, parado e com olhar aflito, Gustavo mal con-seguia responder. - Desculpa, professor, mas, eu tô procurando a Mélanie Vasconcelos. - Nós estamos no meio de uma aula, garoto. - Eu sei, eu sei, foi mal mesmo, mas, a coisa é importante. Gustavo olhava para a sala gigante, mas, à essa altura, Mélanie já estava enfiando suas coisas de qual-quer jeito na mochila. - O que aconteceu? - ela gritou, sem ligar para os colegas da sala que olhavam para a cena.

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- Tá na hora, minha filha! - Gustavo respondeu, quase pulando pra dentro da sala. Mélanie viu, de relance, seu professor olhando atônito para tudo aquilo. Previu que sua nota na próxima prova não seria tão boa assim - O menino tá nascendo! A Paula me ligou porque não conseguiu falar com você! - Não acredito! - Mélanie respondeu, rindo. Ela se virou para a turma e disse - Fessor, mal aí, mas, eu preciso ir embora! Vou ser tia, galera! Mélanie e Gustavo saíram correndo pelo corredor do prédio, mas, a garota podia jurar que conseguia ouvir seus colegas de turma aplaudindo e gritando palavras de incentivo.

Já era o quinto copo de café que Gustavo tomava. Se Mélanie não tivesse roubado alguns outros copos, ele já teria tomado uns 30. Estavam no hospital há mais de cinco horas e, até agora, nenhum sinal de bebê, fosse ele Daniel, Alvo, Dirceu ou D’artagnan. Mélanie só queria que o garoto nascesse logo para que ela e Gustavo pudessem parar de tomar café a cada dois minutos. A ida até o hospital tinha sido uma loucura. Correndo com Gustavo para chegarem no carro dele, Mélanie conseguiu ligar para Paula. Entre os gritos de “POR QUE DIABOS VOCÊ TEM ESSA PRAGA DESSE CELULAR SE VOCÊ NÃO ATENDE NUNCA?” e “TEM UM MUNDO SAINDO DE DEN-TRO DE MIM E VOCÊ PERGUNTA SE EU TÔ LEGAL?!”, Mélanie conseguiu entender que o vizinho tinha ouvido Paula gritando e, agora, o pobre coitado a estava levando para o hospital. O cara foi gente boa o bastante para ficar por lá até que Mélanie chegasse. Depois, ele sumiu como um passe de mágica. Mélanie não o culpava. Os gritos de uma Paula grávida realmente tiravam qualquer um do sério. - Pelo amor de Deus, o que mais falta pra fazer esse menino sair? - Eu sei. Eu tô quase indo lá e arrancando essa criança no tapa. - Acho que eles já fazem isso quando demora demais, não? - Sei lá. Minha mãe falou que ficou mais de dez horas sofrendo antes da Paula nascer. - Fala sério. - É sério! - E quando foi a sua vez? - Dezesseis horas. - Deus que me livre! - Gustavo disse, se levantando - Juro que se sua irmã tiver puxado a sua mãe nisso de gastar meia vida pra parir um bebê, eu largo vocês aqui e vou jogar videogame. É perigoso eu zerar o jogo e ainda não ter nada do Felipe. - Ele não vai se chamar Felipe. - Por que não? É um nome legal, nome do meu avô. - Gustavo, minha irmã não vai dar o nome do seu avô pro filho dela. Se a Paula tivesse um pingo de juízo, colocaria o que eu indiquei. - O que? D’artagnan? Você não tem amor pelo seu sobrinho, Mélanie? Com um nome desses, o me-nino ia apanhar no colégio todo dia. - Lógico que não! D’artagnan é nome de herói, de um cara super... - Com licença. Mélanie e Gustavo se viraram. Um médico com cara de cansado e preocupado olhava para eles. - Vocês são os parentes da Paula Vasconcelos? - Sou a irmã dela. - E o senhor é o pai da criança? Mélanie não conseguiu segurar o riso diante da cara de pânico de Gustavo. - Eu o que?! Deus, não! Não, senhor. Credo! Não, eu... não! - Ele é só um amigo imbecil que a gente tem, doutor. Como a minha irmã tá? - Ela já está pronta para dar à luz. Vocês querem entrar na sala para ver? - Eu quero! Gustavo ainda não tinha recuperado a cor do rosto e parecia prestes a vomitar. - Ahn... eu não sei se... - Cala a boca, Gustavo. Mélanie puxou Gustavo pela mão e seguiram o médico quase correndo. Ele instruiu Gustavo e Mel

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a colocarem as roupas, lavarem as mãos e, principalmente, NÃO ENCOSTAREM EM NADA. Mel e Gustavo foram para perto de Paula, um de cada lado. Era muito estranho ver Paula bufando, gritando e suando como um porco daquele jeito. Toda a sua gravidez tinha sido bem tranquila. Pelo visto, ela tinha reservado todo o desespero para a parte final. - CADÊ A ANESTESIA? - Paula berrou. - Paula, se eu te der mais anestesia, o hospital me demite. Agora, cala a boca e faça força. Mélanie gostou desse médico. Ignorando os olhos arregalados de Gustavo, Mel segurou a mão de sua irmã com força. - Só faz o que o médico mandou, Paula. - EU QUERIA VER SE FOSSE VOCÊ DANDO À LUZ, MÉLANIE! - Paula, não é porque você tá grávida que eu não posso te bater! - Calem a boca, vocês duas! - Gustavo falou. - Obrigado, rapaz - o médico disse - Agora, Paula, faça força como se a sua vida dependesse disso. Definitivamente, Mélanie gostava desse médico. - Mais força? - Paula gemeu. - É, mais força. Anda rápido, garota, você consegue. Mélanie viu Gustavo segurando a mão de Paula também. A careta que ela e Gustavo fizeram quando Paula apertou a mão dos dois com uma força esmagadora foi idêntica, mas, pareceu ajudar. Em pouco tempo, o choro agudo do bebê encheu a sala. Mélanie não podia acreditar. O médico segurava o bebê com segurança, mas, ele era tão pequenininho e parecia tão frágil, que parecia poder se desmontar com um espirro. Mélanie queria falar alguma coisa, mas, nada saía. Pela primeira vez em muito tempo, Mélanie ficou sem palavras. Mas, não demorou muito para que Gustavo soltasse uma pérola. - Cristo, como isso é nojento. E desmaiou.

Algumas horas mais tarde, à noite. Paula dormia, totalmente dopada de anestesia, enquanto Mélanie segura seu sobrinho. Ele tinha acabado de mamar e Mel aproveitava cada segundo com o pequeno antes que a enfermeira viesse e o arrancasse de seus braços. Assim mesmo, com bastante drama. Sentado ao seu lado, Gustavo olhava para o bebê com atenção. - Ele é muito pequeno. Olha o tamanho da mãozinha dele. E ele veio careca, hein? Eu achei que com esse tanto de cabelo que você e sua irmã têm, o menino ia nascer no mínimo com um black power. - Cala a boca, Gustavo. - Eu desmaiei mesmo? - Aham. Em cima da enfermeira. Foi ela que te segurou, senão você teria batido a cabeça no chão. - Nossa, que ridículo. - Nem fala. - Parece que eu tenho nervoso de sangue. - Ou medo de mulheres dando à luz. - Uma experiência traumatizante, com certeza. - Como você vai fazer quando for a sua esposa dando à luz? - É pra isso que a sogra serve, não? - Você é um imbecil, Gustavo. - Eu sei. Posso segurar o menino um pouco? - Não. - Só um pouco, Mel. - E se você desmaiar em cima dele? - Não vou desmaiar em cima dele. Anda, Mel. - Ele é meu sobrinho, Gustavo! - De certa maneira, é meu também. Anda, me dá ele aqui. A contragosto, Mel passa aquele pequeno pacotinho para os braços de Gustavo com todo o cuidado

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do universo. Realmente, o bebê é espantosamente careca. Mas, é um cabeçudinho muito lindo. Muito, muito lindo. Gustavo pega o garoto sem nem piscar direito. Mel e Gustavo passam um tempo olhando para o bebê, que dorme a sono solto. - Ele é o carinha de joelho mais bonito que eu já vi. - Para de falar que o meu sobrinho tem cara de joelho. - Mas, é verdade. E ele é meu sobrinho também. - Desde quando você virou nosso irmão? - Desde a hora em que eu fui obrigado a ver Paula dando à luz. - Quando eu ficar rica, prometo que vou pagar a sua terapia. - Bom mesmo. Ficaram em silêncio, só observando o bebê respirando. Um pouco antes de apagar de sono, Paula disse que tinha decidido que ele se chamaria Daniel, Deus seja louvado. Mas, por enquanto, ele era só “bebê”. Um bebê com bochechas grandes, com três fios de cabelo na cabeça e com dedinhos tão pequenininhos que eles se perdiam no macacão azul. Fala sério, não era o bebê que precisava de baba-dor, e sim Mélanie e Gustavo. Eles ficaram parados ali, sem falar nada, até a enfermeira aparecer e, com jeito de quem pede desculpas, disse que precisava levar o bebê para o berçário. Claro que ela quase teve que bater em Gustavo para que ele largasse o menino, mas, depois de alguma briga silenciosa, ela saiu carregando o pequeno Daniel. Pela primeira vez na vida, Mélanie sentiu um aperto no coração em relação a alguém. Era isso que ela ia sentir pelo resto da vida, toda vez que visse Daniel saindo de perto dela? Subitamente, sentiu toda a neura de preocupação que seus pais sentiam quando ela ou Paula saíam de casa e demoravam para voltar. Daniel era filho de Paula, mas, Mélanie seria uma espécie de segunda mãe. Esse pensamento deu um nó no seu cérebro e em seu estômago. - O que foi? - O que? - Você tá com cara de quem vai vomitar. Até ficou meio verde. Vai desmaiar também? - Quem, eu? Desculpa, mas, eu não dou ataque de menininha quando vejo sangue. - Você vai ter que pagar minha terapia pra isso também. Cansada como nunca, mas, sabendo que não ia conseguir dormir por causa dessa súbita e inédi-ta preocupação com seu sobrinho recém-chegado, Mélanie encosta a cabeça no ombro de Gustavo, tentando se lembrar que eles estavam em um hospital e que as enfermeiras sabiam o que faziam. E também que se alguma coisa acontecesse com seu sobrinho, ela seria capaz de botar fogo nessa bagaça e cuspir em cima depois. - É engraçado isso, né? - O que é engraçado, Mel? - Gustavo pergunta, passando o braço pelos ombros dela. - O menino acabou de nascer e eu já tô aqui, morrendo de preocupação com ele, onde ele tá, o que tão fazendo com ele... - Ele tá bem, Mel. Pelos próximos quatro meses, ele só vai dormir. E chorar de madrugada. Não tem como ele não ficar bem. E, além disso, olha só pra Paula. Ela não parece nem um pouco preocupada. Rindo, Mel dá um tapa em Gustavo. - Ela acabou de ter um filho, seu insensível. - Então! Pra quem acabou de ter um filho, ela tá tranquila demais. - Eles devem ter dado a anestesia que ela pediu. - Acho que o hospital inteiro escutou ela pedindo anestesia. Alguém deve ter vindo aqui e dado. Tem certeza que ela tá viva? - Tomara que sim. Eu não vou ficar cuidando de filho de ninguém! - Você acabou de falar que tá preocupada com o moleque, Mélanie! - Preocupação de tia. - Você vai ser daquelas tias neuróticas, não vai? - Vou ser a tia legal que dá chocolate escondido pro sobrinho. - Então eu que vou ser o tio do mal, que dá bronca? - Aham, viu? Essa sou eu acreditando que você vai dar bronca em alguém.

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- Eu consigo dar bronca. - Claro que consegue. Gustavo, eu acho que vou dormir um pouco. - Pode dormir, uai! - Você me avisa se acontecer alguma coisa? - Não vai acontecer nada, Mel. - Tô falando sério. - Eu também. Agora, fica quieta e vai dormir.

14 de julho de 2012, sábado

A noite estava deliciosamente fria, perfeita para uma massa quente e um bom vinho, mas, sem ne-nhuma razão aparente, Gustavo estava com vontade de comer comida japonesa. Apresentou todos os argumentos possíveis para Patrícia e, depois de muita conversa, conseguiu convencer a namorada a ir com ele até um dos seus restaurantes japoneses preferidos. Depois, poderiam dar uma volta pela Lagoa da Pampulha, o que seria um programa super romântico e com cara de cult. Haviam acabado de chegar no restaurante, lá pelas dez da noite, quando Gustavo sentiu o celular vibrando. Mensagem de Mélanie. “Você é um imbecil. Até eu que sou chata tô curtindo o show. Você devia ter vindo pra cá e não ter ido comer peixe cru.” Gustavo foi digitando sua resposta enquanto andava por entre as mesas, sendo seguido por Patrícia. “Não queria atrapalhar você e seus novos amigos.” A resposta de Mélanie chegou em segundos. “E eu não queria atrapalhar você e sua nova namorada.” “Você nunca atrapalha a gente, Mélanie. Já te disse isso só umas 324728947291 de vezes.” - Gustavo? “Ah, é? E eu falei com você pra vir pra cá, você e a Pati!” “A Pati não gosta de shows.” “Duvido que você falou com ela do show.” - Gustavo? “Tá, eu não falei.” “SABIA! E por que você não falou?” “Porque eu não queria ir pro meio do mato em um sábado à noite!” “Meio do mato? Gustavo, a gente tá no Parque Municipal, não na Amazônia! Você tá escondendo coisa de mim?” “Eu? O que eu estaria escondendo de você, Mélanie?” “Você tá com ciúme, é?” - Gustavo! Patrícia coloca a mão em cima do seu celular, sem dar a Gustavo tempo de responder a última men-sagem de Mélanie. Ele, com ciúmes? Por favor, o mero pensamento já era ridículo. Precisava falar isso com Mélanie, mas Patrícia ainda não tinha largado o seu celular. - Será que dá pra você deixar esse celular pra depois, por favor? - Eu só preciso responder uma mensagem. - É tão urgente assim que você não pode esperar? Gustavo já estava com os dedos posicionados no teclado, pronto para digitar uma mensagem furiosa para Mélanie, mas, o olhar de Patrícia indicou que essa seria uma péssima ideia. Com um sorriso leve-mente falso, Gustavo colocou o celular no bolso e seguros as mãos de Pati. - Você tá certa, me desculpe. - Tá desculpado. Será que a gente pode fazer o pedido agora? Eu tô com muita fome. - Claro, claro. Desculpa por não ter prestado atenção. Gustavo não precisava olhar o cardápio, já que ele sempre pedia a mesma coisa. Enquanto Patrícia

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analisava as ofertas, ainda segurando a mão de Gustavo, o garoto mal conseguia se conter de vontade de ligar para Mélanie. Estava se sentindo como um pai ciumento que queria que a filha voltasse logo para casa, mas, ele nunca admitiria isso, mesmo sob pena de morte. Mas, verdade seja dita, ele não estava se adaptando bem a essa ideia de ter uma Mélanie social e com amigos que: a) não eram ele nem Paula, b) ele não conhecia e c) estavam mostrando pra ela que era legal sair de casa de vez em quando. Em suma, eles estavam fazendo o que Gustavo já tinha desistido de fazer há muito tempo. Ele já tinha se acostumado ao jeito de Mel, sabia que ela gostava de ficar em casa, sem muito agito, e, às vezes, realmente não tinha coisa melhor do que se esparramar no sofá da casa dela, assistirem a um filme juntos e conversarem idiotices. Agora, parecia que tudo tinha mudado. O que tinha sido mesmo que ela disse? Que estava na hora deles começarem a sair com outras pessoas, não era? Que ridículo. Sério, que ridículo! - Gustavo?! - Ahn... oi? Oi, Pati? - Você tá viajando hoje, hein? - Não, não tô. Eu só... - Você tá preocupado com alguma coisa? - Não, é sério. Eu tô de boa. - Você sabe que você não mente bem, né? - Eu tô praticando. Não melhorei em nada? - Não, nem um pouco. Vai, me fala o que tá acontecendo, por favor. - É a Mel me tirando do sério, só isso. - O que ela fez dessa vez? - Inventou de sair com um pessoal novo. - E você tá com ciúme? - Não! - Lembra daquele dia em que eu falei que você não mente bem? - Mas, eu não tô com ciúme! - Gustavo, você tá parecendo um irmão mais velho que tá vendo a irmãzinha sair com os amigos pela primeira vez. O que é isso? Você e a Mélanie não são siameses. - É porque você não conhece a Mélanie. Ela é a pessoa mais antissocial do planeta e agora tá saindo pra tudo quanto é lado. - E qual é o problema disso? - Você escutou o que eu acabei de falar? - Escutei perfeitamente e ainda não entendi qual é o problema. E daí se a Mel tá saindo com gente nova? Isso é ótimo, uai! As coisas mudaram um pouco, você tá namorando agora e eu duvido que a Mel vai querer ficar de vela toda vez que a gente sair. - A Mel não ficaria de vela. - Gustavo, eu gosto muito mesmo de você, mas, tem umas horas em que um balde é mais esperto que você. - O que?! Nessa hora, a comida chega. Por alguns breves momentos, Patrícia para de falar e se concentra em descobrir como funcionam os palitinhos. Não demorou para que ela trocasse tudo por um garfo. - Então, você parou naquela parte em que falou que um balde é mais esperto que eu. - E, desculpa, mas, é verdade. Você não parou pra pensar que talvez a Mel queira fazer novos amigos? - Mas, por que? Patrícia arregalou os olhos, como quem não acredita no que está ouvindo. Mas, as dúvidas de Gustavo eram sinceras. Em quatro anos de amizade, Mélanie sempre pareceu satisfeita em ter um bom amigo e sua família. Por que agora, assim do nada, ela começou a querer conhecer novas pessoas? - Porque o melhor amigo dela tá namorando e, talvez, quem sabe, ela queira seguir com a vida tam-bém. - Então, a gente não pode mais ser amigo, sair junto, só porque eu estou namorando?

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- Talvez ela fique incomodada, sei lá. - Você ficaria incomodada? - Com o que? - Com a Mélanie saindo com a gente? - Claro que não! Já te falei quinhentas vezes que eu gostei dela. Mas, você não tá olhando o lado dela, Gustavo. - Duvido que o balde entenderia isso. - Acho que ele teria entendido, sim. Pensa comigo, meu bem. Você é o melhor amigo da Mel. Pelo o que você me conta, talvez você seja o único amigo de verdade que ela tem. Agora, você tá namorando, vai ter que dividir o seu tempo entre a namorada e a melhor amiga. Você acha que a Mel vai querer ficar em casa enquanto você namora? - Mas, é o que ela sempre fez! - Bom, parece que agora ela não quer mais fazer isso. E você não devia ficar desse jeito. Pelo contrário, devia apoiar essa mudança, essa vontade dela de... de... de socializar. - Isso não é coisa da Mélanie. Ainda acho que a Paula tá fazendo a cabeça dela. - E se tiver? É a melhor coisa que ela poderia fazer pela irmã dela. Empurrar a Mel pra frente, entende? - Continuo achando isso ridículo. A Mel não precisa disso. - Por que ela não precisa? Porque ela já tem você? Gustavo sentiu as bochechas queimando, como uma criança pega desobedecendo aos pais. Era isso que ele estava sendo agora, uma criança. Como se Mélanie fosse seu brinquedo favorito que ninguém mais podia encostar. Um garoto mimado. Mimado e idiota. De todas as loucuras da sua vida, Mélanie era a única certeza que ele tinha. Não podia contar com seus pais, eles nunca estavam presentes, mas, ele não ficara traumatizado por isso. Mas, a amizade de Mel era uma espécie de porto seguro. O simples pensamento de que podia perder isso dava um nó em seu estômago. Ou será que isso tudo era exagero? - Gustavo, - Patrícia começou a falar, com o mesmo tom que se usa para conversar com uma criança - eu entendo que a Mélanie seja uma espécie de irmã pra você. De verdade, eu entendo isso. Mas, mesmo para irmãos, chega um momento que... - Jura que você vai entrar nesse papo de “chega um momento na vida”? - Acho que você tá precisando. - Não tô. Eu só tô estranhando essa súbita vontade da Mel de sair com gente desconhecida, só isso. Vou acabar me acostumando. Patrícia balança a cabeça em negação. - O que foi? - Ah, Gustavo, não é possível que você nunca pensou nisso. - Pensei no que? - A Mel não pode ser sua sombra pra sempre.

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15 de julho de 2012, domingo

Mélanie é daquelas que prefere perder um membro do corpo do que admitir que alguém está certo e ela não. Mas, era preciso falar que Paula tinha acertado em encher seu saco para que ela saísse com outras pessoas além de Gustavo. Mélanie estava curtindo a sua noite. Aliás, estava curtindo MUITO. Até a banda era legal! Claro, ela não entendia porque eles tinham escolhido fazer o show num parque em pleno inverno, mas, a Mélanie Social relevaria isso, certo? Mas, era preciso fazer mais uma confissão: ela estava sentindo falta de Gustavo. Ela não estava acos-tumada a sair sem ele. Na verdade, nos últimos quatro anos, ela nem conseguia se lembrar direito das vezes em que saiu sem Gustavo. Isso não acontecia. Ele que era o animado, ele que era quem a arrastava pra fora de casa, que a levava para o cinema, para os bares com a turma, até para aquela boate imbecil.

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Porém, cá estava ela, sozinha no meio de uma turma, sem o apoio do melhor amigo. Mas, ela até que estava se saindo bem. É sério! - Mel, trouxe um cachorro-quente pra você! Gabriela, sempre uma fofa. Mel pegou o lanche enquanto Gabi se assentava ao seu lado. Estavam sentadas de frente ao palco, mas, agora era outra banda que estava tocando e, pelo visto, ninguém da turma tinha gostado muito. Eles aproveitaram o momento para arrumarem alguma coisa para comer. - Onde tá todo mundo? - Tão na fila do cachorro-quente ainda. - Ha, perdedores. - E aí, tá curtindo a noite? - É, legalzinha... - Mélanie... - Tá bom, eu tô curtindo. Tá feliz agora? Gabriela ri. - Sim, tô feliz. Só mesmo um milagre pra fazer você sair de casa, hein? Mas, eu sabia que você ia gostar. - Mesmo com esse frio horroroso? - Mesmo com esse frio horroroso. Mas, me fala uma coisa. Por que você deu de sair com a gente essa semana? Mélanie dá de ombros. - Deu vontade, só isso. - Deu vontade? Que desculpa horrorosa! Sério, o que foi? - Ai, que saco. Não vai contar pro resto da galera, tá? - Claro que não. Vai, desembucha. Elas iam intercalando a conversa com mordidas no cachorro-quente. Mélanie sabia que era impossí-vel comer cachorro-quente e ser bonita ao mesmo tempo, então, ficou grata por Luís não estar ali por perto. Outra pessoa que não estava ali era A NAMORADA DELE, porque é sempre bom lembrar que ele tem namorada. - Lembra daquele meu amigo, o Gustavo? - Aquele bonitinho, que mora perto da sua casa? - Se é assim que você quer definir o Gustavo... - Sei quem ele é, sim. Ele estava na nossa festa de fim de ano, certo? - É ele mesmo. Ele é uma espécie de melhor amigo, sabe? Aí, ele começou a namorar há pouco tempo e, pelo visto, a coisa parece ser séria, e eu não quero ficar de vela. Pelo menos foi o que a minha irmã disse, entre outras coisas. - Entendi. Aí, o Gustavo te largou e você teve que procurar novos amigos? Nem um pouco interesseira da sua parte, hein, Mel? - Ah, valeu. - Tô só te zoando, filha! Sério, eu achei muito legal quando você decidiu sair com a gente. - Eu também gostei de ter vindo. - Posso te perguntar outra coisa? - Claro. - Você e esse Gustavo são só amigos mesmo? Claro que essa pergunta não podia deixar de estar presente. Óbvio! - Só amigos mesmo. - Então, nunca rolou nada. - Nunca rolou nada. - Você não tá me convencendo, Mel. - É verdade! A gente é só amigo mesmo. - Mas, você gosta dele. - Como assim?

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- Porque, sinceramente, tá parecendo que você tá com ciúme dele. - Eu não sei do que você tá falando, sinceramente. - Fala sério, Mel. Vocês são amigos há quanto tempo? - Uns quatro anos. - E nesse tempo todo, você nunca sentiu nada por ele? Nem uma coisinha? - Não! - Fala a verdade! - Meu Deus, por que essa insistência de que eu e o Gustavo temos alguma coisa? A gente é só amigo. - Desculpa, Mel, mas, se tem uma coisa que não acredito nessa vida é em amizade entre homem e mulher. Mélanie quase derrubou o cachorro-quente de tanto espanto. Como alguém como Gabriela, uma garota divertida, com ideias legais e super social, podia falar uma coisa primitiva dessas? - Pra que essa cara de surpresa? Mel, amizade entre homem e mulher nunca dá certo. Ou alguém já entra na amizade interessado e passa o resto da vida achando que poderia rolar alguma coisa, ou, lá pelo meio do caminho, alguma coisa sai fora do planejado e bagunça a amizade toda. É sempre assim. - Você tá falando por experiência própria, é? - Pior que eu tô, sim. Eu e o meu namorado, por exemplo. O André é amigo de um amigo e, um dia, ele viu uma foto minha no perfil desse nosso amigo. Aí, eles deram um jeito de combinar um passeio pra turma. Ou seja, a gente ficou amigo já com uma segunda intenção. - Isso pode ter acontecido com você, mas, eu e o Gustavo... já tem quatro anos que a gente é amigo, Gabi. - E daí? - Daí que eu e o Gustavo somos a prova viva de que existe amizade entre homem e mulher, sim. - Então, por que você tá aqui com a gente e não com ele? - Já te disse que não queria ficar de vela. - Desculpas - Gabi fala, balançando a cabeça - Fala a verdade, Mel! Você nunca pensou, nem por um segundo, como seria se você e o Gustavo namorassem? - Não! - Mentira. - Eu realmente não quero discutir isso com você, Gabi. - Porque você sabe que eu tô falando a verdade. - Os meninos voltaram, graças a Deus! Gabriela olha para Mel de um jeito engraçado, mas, não fala nada. Logo o resto do pessoal está as-sentado perto delas, e os assuntos são variados, para o alívio de Mélanie. Seus colegas de trabalho são surpreendentemente engraçados e ela tenta entender como não percebeu isso ao longo de tanto tempo trabalhando com eles. Talvez por pura preguiça. Por achar que não precisava deles também, quem sabe. Mas, agora, ela via, quase arrependida, que tinha perdido um precioso tempo longe deles. Até Luís, com quem mal conversava, se mostrava extremamente simpático e divertido. Mélanie sempre o vira como um cara misterioso, de poucas palavras, e talvez tudo isso tenha ajudado a criar essa atração platônica e ridícula. Mas, nessa madrugada fria, ele estava ali, perto dela, conversando sobre futebol com os outros garotos. Mélanie, como boa e fiel atleticana que era, se sentiu segura o suficiente para entrar no papo. Ia ser a primeira vez em séculos que ela trocaria mais do que dez palavras com Luís. Até a namorada dele participou da conversa. Não que isso tenha sido uma coisa boa, mas, enfim. Lá pelas tantas da noite, quando o grupo começou a demonstrar cansaço, eles foram dividir as caro-nas. Com exceção de Mel e Gabi, todo mundo tinha bebido bastante, então, as garotas e André ficaram esperando que todos os seus amigos fossem cambaleando até alguns táxis e, depois de assegurar que eles estavam a salvo dentro dos carros, Gabi, Mel e André foram até o estacionamento. André era um cara tranquilo pra caramba, brincalhão. Ele tinha um jeito de urso que contrastava radicalmente com o físico de bonequinha de Gabriela. Mesmo assim, André e Gabi faziam um casal muito engraçado, desses que são tão fofos que você tem vontade de apertar. - Que isso, hein, Mélanie? Ficando na rua até de madrugada, doidona...

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- Não liga pra ele - Gabriela diz, em tom de desculpa - Ele tá bêbado. E aí, gostou de tudo? - Gostei bastante. Vocês são mais legais do que eu imaginava. - Ah, muito obrigada! E você não sentiu falta do seu amiguinho especial? - Cala a boca, Gabi. Mélanie faz cara de brava enquanto Gabriela ri e arrasta André. - Ai, ai... Você tá ficando nervosa porque sabe que eu tô falando a verdade. Ou pelo menos uma parte da verdade. - Não tem nada de verdade em nada. Meu Deus, Gabi, a gente é só amigo. - Você tá com ciúme dele, Mélanie, admita! - Não! Dá pra gente ir embora e parar de falar nisso? Que saco! Gabriela dá de ombros e ri sozinha. Ajuda André a entrar no carro e ri mais ainda do namorado quando ele começa a falar alguma coisa sobre as estrelas estarem refletindo nos olhos dela. Mélanie, tentando ignorar toda a conversa ridícula que teve com Gabi, manda uma mensagem para Gustavo, mais para provar que Gabi está errada e que Gustavo é seu melhor e mais presente amigo. E só. “Você vai almoçar lá em casa amanhã? Ou hoje, sei lá?”. Gabriela está dando partida no carro quando a resposta de Gustavo chega. “Não vai dar. Vou almoçar com a Pati amanhã, na casa dela.” Emburrada, Mélanie colocou o celular de volta no bolso. Gabriela percebeu o gesto. - O que foi? - Nada. Não é nada.

16 de julho de 2012, segunda-feira

Paula fez chocolate quente de novo. E em uma noite fria pra cacete como essa, Gustavo não podia pedir por nada melhor do que isso. Os dois estavam assentados no sofá da casa dela, assistindo a novela (não tinha sido a primeira escolha de Gustavo), sem falar muita coisa. Mélanie estava colocando Daniel para dormir. O garoto tinha feito um escândalo quando Gustavo apareceu sem o videogame e esperneou mais ainda quando Paula disse que ele só podia jogar videogame no sábado. Dani só parou de chorar quando Mélanie o levou para o quarto e passou o resto da noite brincando de pirata com ele. Nesses casos, a cama dele era o navio, os bichos de pelúcia eram os polvos gigantes que queriam devorar o capitão (que era o Dani, claro) e o chão era o mar. Quem caía nele, era imediatamente devorado pelos polvos. Mélanie vivia caindo no chão. Nesse meio tempo, Gustavo e Patrícia estavam confortáveis na sala. Gustavo não estava a fim de ir pra casa, só iria pra lá quando já não estivesse mais conseguindo manter os olhos abertos. Ele não aguenta-va o silêncio da sua casa, sempre gelado, sempre distante de tudo. Aqui, no apartamento de Mel, mes-mo o silêncio era confortável. Mas, claro, havia coisas que precisava resolver com Mélanie. Os dois mal tinham se falado durante o final de semana e isso o incomodava mais do que qualquer outra coisa. Não era aquele afastamento confortável, quando ambos sabiam que eles estavam com tanta coisa para fazer que nem tinham tempo de se ver direito. Coisas assim aconteciam no final de semestre, quando eles costumavam estar atolados em coisas de faculdade, trabalho e por aí vai. Mas, agora, Mélanie estava de férias da faculdade e Gustavo nem estudava mais, pelo amor de Deus! Logo, não dava para justificar o fato deles nem terem se visto durante o final de semana. Mas, Gustavo tinha tentado. Não no sábado, quando, depois de ter passado o dia na casa de Pati, resolveu sair com ela para se encontrar com os primos dele. Mélanie não quis ir. No domingo, um almoço de família totalmente inesperado obrigou Gustavo a passar mais tempo do que gostaria com a família da sua mãe. Um bando de hipócritas, desses que dão tapinhas nas costas quando se encontram e passam os próximos meses torcendo para não se encontrarem de novo. Mas, era aniversário do avô de Gustavo, não dava para escapar. Ele não teve coragem de levar Patrícia para esse ninho e Mélanie já tinha tido o suficiente da sua família pelo resto da vida. Portanto, passou o dia sozinho no meio de

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um tanto de gente e, quando voltou para casa, não queria nada além de se trancar no quarto e se sentir miserável. Foi só agora, na casa de Mel, que ele conseguiu colocar a cabeça no lugar e ficar em paz. A novela já estava acabando, graças a Deus, quando Mélanie voltou para a sala. Ela se assentou pesa-damente ao lado de Gustavo. - O Dani dormiu, finalmente. Se jogou no chão, os polvos comeram ele e por lá mesmo ele ficou. - Você deixou meu filho no chão?! - Claro que não, Paula. Ainda mais no meio daquele tanto de polvo gigante. Você é doida? - Às vezes, eu acho que você é pior que Daniel, Mel. - Você pensa isso às vezes? - Gustavo pergunta - Eu tô sempre pensando isso. - Olha só quem tá falando - Mel fala, dando um tapa no joelho do garoto - Era pra ter sido você lá com ele, brincando de pirata. - Eu quis ir, mas, você não deixou, uai! - Eu deixei, sim! Você que não quis ir! Gustavo não acreditava no que estava escutando. Sério. - Como assim? - ele perguntou, já ficando com a voz esganiçada - Eu falei que eu podia ir brincar com o Dani, numa boa. - E eu falei que você podia ir, Gustavo! - Mel retrucou, quase gritando também. - Não falou! Se você tivesse falado, eu teria ido! - Se você tivesse me escutado ao invés de ficar mexendo nessa porcaria de celular, você teria ido mesmo! - Qual o problema com vocês dois? - Paula gritou. Nesse momento, o choro de Daniel cortou a gritaria. Os três ficaram olhando um para o outro, ner-vosos, respirando profundamente. Por fim, parecendo soltar raios de nervosismo pelos olhos, Mélanie se levantou. - Eu faço ele dormir de novo. E saiu rapidamente, pisando duro. Gustavo olhou para Paula, ainda nervoso. Logo o silêncio voltou a reinar no apartamento, mas, dessa vez, não tinha nada de confortável nisso. - O que foi isso, Gustavo? - Ahn... eu... eu não sei. - Você e a Mel brigaram, foi isso? Porque eu não tô entendendo mais nada. - A gente não brigou! E eu não tava mexendo no celular, Paula! - Tava, sim, Gustavo. Você tava mandando mensagem pra alguém. Mensagem para Patrícia. Agora Gustavo se lembrava. Ele estava combinando alguma coisa com ela, sobre o que fariam no próximo dia 20, quando completariam um mês de namoro. - Droga - ele falou, baixinho. - Lembrou agora? - Eu tava conversando com a Pati. A gente faz um mês essa semana, aí, a gente deve sair pra algum lugar... - Você tá vendo o que tá acontecendo aqui, né? - Não tô vendo nada. - Será possível que você é tão idiota assim, Gustavo? - Olha, vou te falar que essa tem sido uma opinião compartilhada por muita gente ultimamente. - Então, eu tô falando a verdade - Paula abaixa o tom da voz - Você e a Mel precisam se resolver com esse seu namoro, garoto. - Mas, resolver o que? Não tem nada pra resolver. A gente tá de boa! - Essa gritaria que vocês arrumaram na minha casa parece “de boa” pra você? - Eu já namorei antes, Paula, e nunca tive problema com a Mel por causa disso. - Mas, agora é diferente. - Por que? - Porque você falou que tá levando a sério. Não precisa fazer essa cara de ofendido, Gustavo. Seus ou-tros namoros duraram, no máximo, duas semanas, e isso por causa da sua amizade com a Mel. Agora,

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você finalmente encontrou uma garota que encara de boa a amizade de vocês e, pelo visto, vocês dois não estão sabendo lidar muito bem com isso. - É porque não tem nada com o que lidar! É a Mel que tá criando dificuldade onde não existe. - Como assim? - Uai, eu vivo chamando a Mel pra sair com a gente, mas, ela nunca vai. - Com a gente quem? Você e a Pati? - É! - Meu Deus do céu, Gustavo! - Paula ainda sussurrava, mas, era possível ver que ela estava realmente nervosa. Gustavo não conhecia mais ninguém que conseguia gritar e sussurrar ao mesmo tempo. Só Paula tinha esse poder - Como você consegue ser tão tapado? Você não pode ficar carregando a Mel para todos os lados agora que você tá namorando. Ela não pode ficar de vela pra sempre. Gustavo fez cara de espantado. - Ah, eu sabia! Sabia que tinha sido você que tinha enfiado coisa na cabeça da Mel! - Que coisa? - Você tá fazendo a sua irmã sair com um tanto de gente que eu não conheço! - E isso é ruim por que? - Porque aí a Mel vai fazer novos amigos e aí mesmo que ela não vai querer sair comigo e com a Pati! - Você tá com ciúme dos novos amigos da Mel? Que, aliás, nem são tão novos assim, é tudo gente do trabalho dela. - Eu não tô com ciúme de ninguém! Só não tô entendendo porque, do nada, ela deu pra sair com esse pessoal. Você conhece a Mélanie, sabe que ela não gosta nem de colocar o pé pra fora de casa. E agora, ela fica na rua até de madrugada, como se vivesse fazendo isso! Paula faz cara de pensativa e, por fim, fala: - Sabe o que você tá parecendo? - O que? - Com um namorado ciumento. - O QUE? - Para de gritar, imbecil! - Paula exclama, dando um tapa nele - Mas, é exatamente isso que você tá parecendo. Melhor ainda, você tá parecendo um ex-namorado que não superou o término do namoro e agora fica enchendo o saco da ex-namorada porque ela tá retomando a vida. - Paula, você colocou vodca no chocolate quente de novo? - Não que eu me lembre. Mas, não é surpresa pra mim, viu? Eu sabia que esse dia iria chegar. - Que dia? Do que você tá falando? Paula se levantou. - Você e a Mel podiam dar as mãos e sair andando pelo parque, viu? Nunca vi duas pessoas mais imbecis do que vocês. - Ahn... obrigado? - De nada. Boa noite, Gustavo. Ela saiu da sala e Gustavo escutou quando ela parou no quarto de Dani e disse: - O Dani dormiu? Alguma resposta murmurada e Paula falou novamente: - Ótimo. Agora, vá lá resolver a sua vida com o Gustavo. Outra frase murmurada. - Agora, Mélanie. E se vocês começarem a gritar, me façam o favor de ir lá pra rua, tá? Boa noite. Gustavo desligou a televisão e ficou escutando Paula caminhando até o quarto dela. Ele conhecia Mé-lanie o suficiente para saber que ela deixaria ele plantado ali a noite inteira, de muito bom grado. Mas, Gustavo queria tanto resolver essa situação estúpida, que estava disposto a ficar acordado a madrugada toda, só pra poder conversar com Mel. O que diabos Paula quis dizer com “eu sabia que esse dia iria chegar”? Que merda de dia era esse? Sério, Gustavo não estava entendendo. E que papo ridículo era esse de “ex-namorado ciumento”? Não fazia sentido nenhum, era algo totalmente sem fundamento. No fundo, bem lá no fundo, ele até estava feliz por Mélanie sair de casa, se divertir, como qualquer jovem

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normal. Mas, era estranho não estar ao lado dela. Eles faziam tudo juntos. Por que não podiam conti-nuar fazendo? Por que a inclusão de Patrícia precisava causar tanta bagunça? Apesar de Gustavo ter achado que Mélanie o largaria ali, ela até que não demorou para aparecer. Novamente, sentou-se ao seu lado, olhando para o chão. Ótimo. Agora, qual dos dois seria o primeiro a falar? O silêncio seria interminável, então, Gustavo resolveu tomar a dianteira. - Desculpa por ter gritado aquela hora. Eu tava mandando mensagem pra Patrícia, aí não prestei atenção quando você me chamou pra brincar com o Dani. - Desculpa por ter gritado também. Se olharam e logo o silêncio desconfortável foi substituído por sorrisos de lado. Gustavo puxou Méla-nie para mais perto e a abraçou. Era bem assim que os dois funcionavam. Não precisavam falar muito, o que, na verdade, era ótimo. Mélanie gostava de posar de durona e não se sentia à vontade pra falar coisas dela. Gustavo já tinha se acostumado. Ele, por sua vez, era tranquilo demais. Não tinha muito do que reclamar. - Não vai ser assim pra sempre, né? - Mel pergunta. - O que? - A gente desse jeito. Tipo, isso é só a gente se adaptando ao seu primeiro namoro sério. - Para de falar assim. - Mas é verdade! A gente vai ter que se acostumar com isso. - Eu já falei que não vai mudar nada. - Mas, já tá mudando, Gustavo. Olha só pra gente. Eu quis te matar por você não ter vindo aqui em casa no sábado e você tá enchendo o saco com os meus amigos. - Não tô acostumado com você tendo amigos, assim, no plural. Mélanie ri. - Tenho que arrumar um jeito de me manter ocupada. - Isso não é coisa sua, Mel. - É, é coisa da Paula, mas, ela tem razão. Tá na hora de... como é mesmo que ela falou? - DE ANDAR COM A SUA VIDA! - Paula gritou do quarto dela. - Obrigada, Paula. Boa noite, Paula - Mel fala. Gustavo e Mel esperam alguns segundos para ver se Paula vai retrucar alguma coisa, mas, ela parece não ter mais nada para acrescentar. É a vez de Gustavo falar novamente. - Mas, eu não posso andar com você? - Claro que pode. Não precisa ser tão dramático. Mas... - Mas... - Mas, agora, tem outra pessoa que tá andando com você. E eu não quero ficar no caminho de vocês. - Mel, você nunca vai ficar no meu caminho. Eu nunca namoraria uma garota que implicasse com você, você sabe disso. - A Pati não implica comigo, e isso é legal. Mas, ela é sua namorada. Eu sou sua amiga. Em escala de importância, ela vem na frente, ainda mais se você estiver a fim de algo sério mesmo. Um tom de seriedade tinha tomado conta da voz de Mel e Gustavo não estava reconhecendo isso. A garota não olhava para ele enquanto ela falava, o que deixava tudo ainda mais estranho. Sabia que não ia adiantar falar nada e, nesse momento, ele teve que apelar para a razão. Era triste admitir, mas, Mélanie tinha razão até certo ponto. Se ele quisesse mesmo que seu namoro com Pati desse certo, e ele queria mais do que tudo nessa vida, ele teria que avaliar algumas coisas. Suas outras namoradas foram embora porque não entendiam sua amizade com Mélanie. Pati parecia entender, então, ele não podia desperdiçar isso. Mas, também, não podia esperar que Mel ficasse jogada às moscas. Paula estava certa. Droga. - Sabe, - Mel começou a falar - minha amiga disse que não acredita em amizade entre homem e mu-lher. Eu disse que isso era ridículo, eu e você nunca tivemos problema com isso. - E é verdade. - Até agora, né? A gente vai ter que fazer alguns ajustes. Era a única coisa que Gustavo não queria ouvir. Não conseguia imaginar tendo que fazer “ajustes”

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na sua amizade com Mélanie, fosse lá o que isso significasse. Queria que as coisas continuassem como estavam. Ele e Mel, sem problemas. Será que era pedir demais? - E que ajustes são esses? - Acho que isso aqui, por exemplo, não pode ter mais. - O que? Eu vir à sua casa? - Não, você praticamente mora aqui, Gustavo. Tô falando disso. Ela apontou para os dois, sentados daquele jeito. Foi só então que Gustavo percebeu que Mélanie estava se referindo ao abraço. - O que? Eu não posso mais te abraçar? - Eu... eu não sei o que a gente pode fazer ou não! - Mélanie diz, meio desesperada - Você é meu melhor amigo, Gustavo! Mas, você tá namorando e, sei lá, parece que por causa disso, tudo tem que mudar. - Nada tem que mudar, Mélanie! Você é a minha melhor amiga e já tem sido assim há quatro anos! E daí se eu tô namorando? Eu gosto da Pati, mas, você tá na minha vida há mais tempo. Não vou mudar nada, não preciso mudar nada. Mel e Gustavo se olharam, ambos com cara de confusos. Agora, Gustavo via uma esperança. Mélanie tinha que entender que a chegada de Patrícia não ia acarretar em nada na amizade dos dois. Pelo me-nos, não nessas coisas básicas. Ele percebia que teria que dividir o tempo dele. Agora, não teriam mais almoços na casa de Mel aos sábados. E, consequentemente, não fazia sentido ficar nervoso quando Mélanie saísse com os novos amigos. Os dois lados teriam que ceder em alguma coisa. - Quer saber, então? Dane-se isso tudo. A gente continua do jeito que tá e pro inferno com quem encher nosso saco. Ouviu, Paula? - Vocês são dois idiotas, mas, ouvi, sim - Paula responde, do quarto dela - Quais as chances de dar certo? - Por que não daria certo? - Gustavo responde - Tem dado certo há bastante tempo. - Pelo amor de Deus, não deve existir gente mais cega do que vocês dois! - O que você quer dizer com isso? - Boa noite! - Paula gritou de novo. - O que ela quis dizer com isso? - Gustavo perguntou. Mélanie olhou pra ele e Gustavo percebeu, ou pelo menos imaginou perceber, que ela ia falar alguma coisa, mas, mudou de ideia em questão de milésimos de segundos. - Não sei - ela diz, por fim - Vai entender a Paula, né? Gustavo conhece Mélanie como ninguém. Sabe que tinha mais coisa que ela queria falar, mas, tam-bém sabe que, quando ela não quer falar alguma coisa, é melhor não insistir. Portanto, escolhe a saída mais fácil. Dá um sorriso e beija a testa da amiga. - É, vai entender a Paula.

17 de julho de 2012, terça-feira

Daí que o mundo saiu um pouco da órbita, virou de cabeça pra baixo, deu três pulinhos e uma ro-dadinha e, como se não bastasse, caiu em cima da cabeça de Mélanie. Exageros à parte (ou não), era exatamente isso que Mélanie estava sentindo agora, andando com Patrícia pelo shopping, escolhendo roupas para Gustavo. Não tinha jeito de ficar mais bizarro do que isso. Tudo tinha começado logo pela manhã, quando Mel estava no serviço, tentando fazer Gabriela falar de alguma coisa que não fosse a imaginária relação de Mel e Gustavo. Mélanie não ia admitir, é claro, mas, esse assunto tinha a incomodado mais do que ela gostaria. Não que, de repente, ela estivesse descobrindo “sentimentos” por Gustavo. Por favor, isso era ridículo e fazia Mélanie sentir vontade de vomitar. Mas, toda essa conversa de Gabriela, de que não dava pra ter amizade entre homem e mulher, e todas aquelas insinuações de Paula (claro que Mel tinha

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entendido todas), tinham enchido a sua cabeça de dúvidas. Será que estava na hora dela e Gustavo avaliarem a amizade deles? Nunca tinha havido nenhum problema, eles nunca tinham confundido os sentimentos, eram melhores amigos e toda essa coisa que Mel já estava cansada de repetir. Então, por que agora ela e Gustavo estavam tão preocupados em mudar as coisas? Aí, para piorar, Mel recebe uma mensagem de Patrícia. A menina era muito gente-boa, não tinha como não gostar dela. Toda educada, Pati perguntou para Mel se elas podiam se encontrar mais tarde. Pati queria comprar um presente para Gustavo, de um mês de namoro, mas, não tinha ideia do que comprar. A saída lógica era pedir a ajuda da melhor amiga do namorado. Mélanie ficou tentada a falar que não poderia ir, mas, não tinha motivos para fazer isso. Verdade seja dita, Mélanie ainda não estava acostumada com essa ideia de dividir o melhor amigo. Antes era mais fácil. As namoradas de Gustavo não gostavam dela de cara e logo elas eram dispensadas. De início, Mel achou que esse seria o fim de Patrícia também. Porém, para a sua surpresa, Patrícia parecia realmente empenhada em ficar amiga de Mélanie também. Insistia para que Gustavo a convidasse para sair com eles, mandava mensagens falando que não se viam há muito tempo, chegando ao ápice agora, ao convidar Mel para dar uma volta no shopping com ela. A primeira preocupação foi não ter assunto para não conversarem. Elas iam falar sobre o que? Sobre a faculdade? Não dava, Mélanie estava de férias e ela não queria gastar esse tempo precioso lembrando de professores que a faziam querer fugir para o Uzbequistão. Sobre Gustavo? Ahn... também não, pelo simples fato de que Mel duvidava que Gustavo ficaria feliz se soubesse que ela andava contando casos constrangedores dele para a namorada. Sobre futebol? Pati não tinha jeito de quem assistia o programa esportivo em pleno domingo à tarde. Não, diferente de Mélanie, ela tinha uma vida. Política mundial? Por favor. Já estavam no shopping há cerca de meia hora e, até agora, elas só tinham compartilhado as novida-des. Patrícia perguntou sobre Paula e Daniel, reafirmou que tinha adorado conhecê-los e queria muito vê-los de novo. Mélanie não conseguia enxergar falsidade nela, tudo sobre Patrícia era muito natural. Mel já estava acostumada com as “meninas de Gustavo” que olhavam torto pra ela, dando um sorri-sinho quando, na verdade, elas queriam falar algo como “agora ele tem dona, bitch”. Mas, aí, aparecia Patrícia, com seus sorrisos, super de boa com o namorado dormindo na casa de outra menina... ou ela era muito estranha ou, realmente, ela era excessivamente tranquila com tudo. Mélanie ainda não tinha conseguido decifrar. - Ah, aquela loja tem umas camisas legais - Pati diz, apontando para a tal loja - O Gustavo tá preci-sando de umas camisas novas. É um bom presente, né? - Você diz um bom presente pro Gustavo? Ahn...não sei, Pati. O Gustavo é desses que só compra roupa quando todas as outras pegaram fogo, sabe? Patrícia ri. - É, ele é bem desse jeito. Acho que vale a pena a gente dar uma olhada aqui, só pra garantir. Elas entram na loja e logo um cara bonitinho, simpático e todo cheio de sorrisos apareceu. Patrícia explicou que estava procurando um presente para o namorado e não demorou para que o vendedor a levasse para ver algumas blusas. Mélanie não saiu do lugar, ainda achando que Patrícia não conseguiria muita coisa por ali. Entenda, Gustavo não era muito ligado à roupas. Ele tinha as de sair no final de semana, as de trabalhar e as de ficar em casa. Pronto. Não precisava de muita coisa além disso. Agora, se você soltasse esse garoto numa loja de videogames, era bem provável que ele sairia de lá falido. Mel viu Patrícia olhando algumas blusas, conversando com o vendedor com o mesmo jeito simpáti-co de sempre. O risco de ficar entediada era grande, mas, Mel sabia que precisava se esforçar para ser amiga de Pati. Ela era namorada do seu melhor amigo, pelo amor de Deus! O mínimo que podia fazer era retribuir o esforço da garota. Com esforço, Mel caminhou até Pati, disposta a ajudar. - Ah, Mel, olha essa blusa, que bonita! Você acha que o Gu vai gostar? Patrícia segurava uma blusa branca, no estilo bata. Mélanie olhou para aquilo e não conseguiu evitar uma careta. Gustavo nunca usaria aquilo. O vendedor olhava para elas com um sorriso e Patrícia tinha os olhos esperançosos de um gatinho. Como Mélanie teria coragem de despedaçar os doces sonhos deles? Simples.

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- O senhor pode dar uma licencinha pra gente, por favor? - Claro, podem ficar à vontade. O rapaz saiu, deixando Mel e Patrícia sozinhas. - O que foi? Você não gostou? - Pati, eu acho que essa blusa não vai fazer muito o estilo do Gustavo. - Por que não? É bonita e tá super na moda. - A gente já fez bullying com um menino que tava usando uma blusa igualzinha a essa. - Mélanie! - Pois é, não foi nosso momento mais honrado. Mas, digamos que o Gustavo não é bem o tipo de cara que segue a moda. Patrícia olha para Mel, olha para a blusa, olha pra Mel outra vez e, suspirando, devolve a blusa para o cabide. Mélanie respira aliviada. - Isso, muito bom, muito bom! Olha, se você quer mesmo dar uma camisa pro Gustavo, por que não tenta uma pólo basicona mesmo? Tipo aquelas ali! - Pólo é tão sem graça, Mel. - O Gustavo também. Vai combinar. Patrícia ri de novo e segue com Mel para perto das camisas. As duas olham algumas camisas e, graças a Deus, não demorou para que Patrícia escolhesse uma, sob aprovação de Mélanie. Pati parecia real-mente satisfeita com a compra, mesmo que a camisa que levava não tivesse sido sua primeira escolha. Mélanie fez um lembrete mental, para contar para Gustavo sobre a blusa que ele iria ganhar se ela não tivesse intervindo em favor do amigo. Às vezes, Mel achava que era boazinha demais. - Eu tô com fome - Pati disse. - Eu também, viu? - Vamos comer alguma coisa? Isso não estava nos planos de Mel. Na verdade, cansada como estava, ela queria mesmo era ir pra casa. Mas, novamente, seu senso de “preciso-ser-boazinha-com-a-namorada-do-meu-melhor-amigo” falou mais alto, o que a fez responder: - Claro. Por que não?

- Eu tô com muita fome! Patrícia deve ter falado isso por causa do olhar espantado de Mélanie. O hambúrguer que Pati tinha comprado era quase do tamanho da cabeça dela. Sem zoeira. - É, eu percebi. Como você consegue comer desse jeito e ter corpo de modelo? - Corpo de modelo, eu? - Patrícia ri, mas logo parando a risada para dar uma dentada no sanduíche. Nesse meio tempo, ela pergunta - E você vai comer só isso aí? - Tô com fome, mas, acho que eu sobrevivo só com uma simples pizza. Patrícia dá de ombros e as duas começam a comer. Não se passa muito tempo até que Pati fale alguma coisa. - Posso te perguntar uma coisa? Ih, lá vem. - Claro. - Por que você parou de sair com a gente? - Ah, isso. Bom, não sei... eu não queria ficar atrapalhando vocês dois. Ficar de vela, sabe? - O Gustavo falou que já conversou isso com você. Você nunca ia atrapalhar a gente, Mel. - Acho que ia, sim. Eu sempre atrapalhei com as outras namoradas dele, então, aprendi a lição agora. Era essa a política de Mélanie agora. Paz. Reconciliação. Vamos ser amigos. Ela precisava entender qual era a dessa Patrícia, se acostumar com os novos arranjos de ter mais alguém disputando a atenção de Gustavo. Enquanto isso não acontecia, ela ia fazendo o que Paula mandou ela fazer: ser legal com as pessoas de vez em quando. - O Gustavo me falou que você era teimosa. - Ele me conhece bem.

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- E você também o conhece bem. Até demais - Pati limpa a boca, parecendo mais séria - E é por isso que você não pode se afastar desse jeito dele, Mel. Você não tem noção de como ele fica quando você não tá por perto. Mélanie não estava entendendo. Ou Patrícia estava a atraindo para uma armadilha (algo como “SUA VACA, EU SABIA QUE VOCÊ SEMPRE GOSTOU DO GUSTAVO, MAS, ELE É MEU!) ou ela real-mente se preocupava com a amizade do namorado e de Mel. Sinceramente, Mélanie não sabia qual das duas possibilidades era mais desconcertante. - Patrícia, você é muito esquisita. - Por que? - Porque você tá basicamente insistindo que outra garota tome conta do seu namorado - dane-se o “ser legal com as pessoas” - Era pra você me odiar, morrer de ciúmes, querer me ver longe, essas coisas. - Mel, você é importante pro Gustavo. E você tá na vida dele há muito tempo antes de eu chegar. Não faz sentido eu ficar enchendo o saco por causa disso. E... eu confio no Gustavo. - E em mim também? - Mel perguntou, incrédula. - Se vocês falam que eu não preciso me preocupar com nada, então, eu não me preocupo com nada. Não quero roubar o Gustavo de você. Que merda de conversa é essa? Paula não me preparou pra isso! - Mas, eu também não quero ficar no caminho de vocês. E, eu já expliquei isso pro Gustavo, eu não quero ficar de vela, muito menos que vocês achem que vocês têm que me carregar para todos os lados. - Ah, os seus novos amigos, né? O Gu tá se mordendo por causa disso. Ótimo. E agora, o que era pra Mélanie entender disso? Aqui estava a namorada do seu melhor amigo, falando que o já citado garoto estava com ciúmes da turma de Mel. Novamente, as falas de Gabriela invadiram a mente de Mélanie. Será que eles estavam chegando ao ponto de confundir as coisas? Mel nunca sentira ciúme dos amigos de Gustavo, ainda mais porque sabia que ele era mais ligado a ela do que em todos os outros. As namoradas dele também nunca interferiram na vida de Mel. Por que es-tava tudo diferente agora? Já que Mel estava afirmando que não tinha nada a ver, que a amizade dela e Gustavo continuaria intacta, por que essa urgência em se afastar e, como ela mesma disse, “sair do caminho” de Pati e Gustavo? Era contradição em cima de contradição e, no final das contas, nada fazia sentido. - Isso é coisa da Paula. Ela falou que eu não podia ficar em casa, esperando o Gustavo aparecer. Pela primeira vez na vida, resolvi ouvir a minha irmã e, acredite se quiser, eu gostei. - Eu acho isso ótimo, e eu falei com o Gustavo sobre isso. Mas, parece que ele não tá conseguindo se acostumar com a ideia de que a irmãzinha dele tá saindo sozinha. - Eu não sou irmã dele, Patrícia. As duas se olharam, subitamente num clima mais pesado. Mélanie se esmurrou mentalmente. Não era pra ela ter falado nada disso. Cadê o “ser legal com as pessoas”? Ah, sim, ela tinha mandado se danar há alguns segundos. Mas, agora, ela estava arrependida. Pelo jeito que a coisa estava caminhan-do, logo Mel e Patrícia poderiam estrelar a próxima temporada de Malhação, mas, ainda não estava claro pra Mel quem seria a vilã-líder-de-torcida e quem seria a mocinha ingênua que entra em lugares pegando fogo para salvar gatinhos. E, claro, Gustavo seria o popular do colégio. Mel teria que ser a madura da história e por um fim nisso. - Pati, eu não quero competir com você. O Gustavo é meu melhor amigo, meu melhor amigo do mundo. E eu sei que ele quer fazer o namoro de vocês dar certo. E eu quero ver o Gustavo bem. Ele é meio imbecil, então, não consegue enxergar as coisas direito. Mas, como você mesma disse, você não precisa se preocupar comigo. Ou com o Gustavo. Patrícia pareceu aliviada, de verdade. Talvez, tudo o que ela quisesse escutar, era Mélanie assegurando que ela era só amiga de Gustavo e que ela ficaria no lugar dela. Não iria interferir no namoro. Patrícia deu um sorriso tranquilo, mas, Mel sentiu gosto de cimento na boca. Não por causa dela, porque Pati era realmente uma garota legal, mas, por causa de toda essa situação estúpida. - Eu não quero atrapalhar você, Mélanie. De verdade. - Você não vai atrapalhar. Pode ficar tranquila.

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3 de abril de 2010, sábado

Mélanie não gostava muito de casamentos. Não a entenda mal. Ela achava a cerimônia bonita e sempre sentia um leve aperto no coração quando via a noiva entrando pela igreja. Mas, toda a ideia de 500 pessoas reunidas para ver um evento de 30 minutos deixava Mel nervosa. Casamentos de família eram assim. Tias que ela não via há séculos indo até ela pra perguntar o que ela estava fazendo da vida, se ela já estava namorando, se já estava casada, se já tinha se formado e por aí vai. Sem contar os inúmeros apertos na bochecha. Pra que isso, meu Deus? - Só me lembra quem é aquele ali, por favor. Pobre Gustavo. Ele estava perdido no meio da família gigantesca de Mel. - Aquele ali é meu tio-avô. Ele é irmão do meu avô, por parte de mãe. - Entendi. Então, aquele outro ali é quem? - É primo do meu tio-avô. Esqueci o nome dele. - Onde que seus pais estão mesmo? - Lá na frente. Eles são padrinhos da noiva. - Quem que tá casando? - Minha prima, Camila. - E ela é filha de quem? - Daquela moça de vermelho lá na frente. Ela é irmã da minha mãe. - Eu já esqueci tudo o que você falou. - Eu imaginei. Nem eu sabia que eu tinha tanto parente assim. Os dois riram baixinho, lutando para prestar atenção na cerimônia. Era meio impossível, pois os comentários que tinham que ser feitos não podiam esperar. Era o vestido de alguma louca, o choro escandaloso do pai da noiva, a dama de honra que não quis entrar. Gustavo e Mélanie estavam apon-tando alguma coisa toda hora. E o calor de Itabira deixava ainda mais impossível ficar quieto durante a cerimônia. Sentada ao lado deles, Paula tentava fazer Daniel parar de tentar pegar o arranjo do cabelo da mulher sentada à frente deles. Era onde eles estavam. Itabira. Haviam chegado no dia anterior, depois de sabe-se lá quantas ho-ras dentro de um ônibus estranho, que Gustavo jurava que havia sido remendado com fita crepe em algumas partes. Casamentos na família de Mélanie eram coisas importantes, não dava para faltar. E essa prima em particular, Camila, tinha transformado seu casamento em um espetáculo maior ainda do que o esperado. O sítio em que estava acontecendo a cerimônia era gigante, o vestido dela parecia ter sido feito com 300 metros de todos os tecidos existentes no planeta (e fora dele também) e a festa duraria o dia inteiro. Mas, verdade seja dita, Mélanie estava se divertindo bastante com Gustavo. Foi um alívio quando ele topou ir com ela para Itabira. “Nem precisa pedir”, foi o que ele respondeu. Paula riu quando descobriu que Gustavo iria com elas e disse, meio zoando, que todo mundo ia achar que ele era namorado de Mel. Ao invés de xingar Paula, Mélanie achou a ideia ótima. Seria perfeito se Gustavo pudesse fingir que era namorado dela. Desse jeito, todas as tias inconvenientes se dariam por satisfeitas e não ficariam enchendo o raio do saco falando que Mel estava ficando velha e que os homens decentes do mundo estavam acabando. Gustavo, abençoado seja, animou de entrar na brincadeira também. De modo que agora estavam os dois de mãos dadas, reprimindo risos. - Sério, se eu ficar aqui mais dez minutos, eu começo a derreter. - Acho que já tá acabando, namorado. Só faltam umas quinze damas pra entrar.

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- Eu gosto muito do Gustavo - Patrícia fala, como uma criança. - Eu também. Patrícia sorri e Mélanie decide sorrir também. Ela só espera que Pati não perceba como o sorriso é falso.

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- Você tá zoando! Olha pra mim, Mel. Eu já tô ficando desidratado. Gustavo estava vermelho, parecendo terrivelmente espremido dentro do terno que a mãe de Mélanie o forçou a usar. - Se eu não sair daqui agora, você vai ficar viúva antes da gente casar. - Nossa, que exagero. A gente tá num casamento, não em uma tragédia grega. Tira o terno, uai! - Eu tô todo nojento. - Não tem problema. - Você vai continuar namorando comigo mesmo eu suando igual a um porco? - Cala a boca! Rindo baixinho, Gustavo tira o seu terno e, antes que tivesse chance de dobrá-lo, Daniel se joga em cima dele. Bom, pelo menos o garoto parou de se contorcer todo para puxar o arranjo do cabelo da mulher. Agora, ele parece eternamente atraído pelos botões do terno. Gustavo deu de ombros quando Paula fez cara de nojo. - Não é minha culpa se o Dani me ama tanto que nem liga pro meu terno nojento - ele sussurrou. - Você vai dar banho nele depois, idiota - Paula retruca. - Sou seu cunhado agora, Paula. Você não pode falar comigo desse jeito. - Claro, claro. Continue esfregando meu bebê no seu terno e daqui a pouco você vai falar com a mi-nha mão na sua cara. - Meu Deus! Ainda bem que eu tô namorando a irmã pacífica. Mélanie continuou se esforçando para segurar o riso. Gustavo estava levando essa história de na-morado muito a sério, pelo visto. Ele passou o braço pelos ombros de Mel e a puxou para mais perto. Quem olhasse, deveria pensar que não havia casal de namorados mais apaixonado. Nunca uma coisa foi tão mentira. Um namoro entre Gustavo e Mélanie? Sério? De verdade? Já há muito tempo que eles tinham passado da fase de achar que o outro interpretaria errado alguma coisa. Gustavo vivia dando abraços em Mélanie, e ela já não pensava duas vezes antes de falar alguma coisa com ele. Antes, no início da amizade, os dois ainda inseguros quanto ao que poderia ser dito, as coisas eram mais restritas. Mas, pelo amor de Deus, Mélanie tinha dado uma cópia da chave do seu apartamento para Gustavo. Eles já estavam em um nível de intimidade tal que, fingir que eram namo-rados era a coisa mais fácil e mais ridícula do universo. Só mesmo um cego para cair nessa história. - Pelas barbas de Zeus, a calça daquele cara tá furada! - Ai, meu Deus! É o meu avô! - Juro pra você que a cueca dele é do Superman! - Gustavo! Dessa vez, até o noivo olhou para os dois. Não deu pra segurar o riso. Mal aí!

- Mélanie, querida! Tia de número 16, here we go! - Oi, tia! Beijinho na bochecha, sorrisos, olhar avaliativo que vai da cabeça aos pés, dos pés à cabeça. O roteiro não mudava muito. - Meu Deus, como você está diferente! A última vez em que eu vi você, você ainda estava tão pequena. - Pois é... - Os anos te fizeram bem, Mel. Seu cabelo está uma graça, que bom que você assumiu os seus cachos de vez. - É, eu não tenho paciência com chapinha. - E que vestido lindo. Roxo combina com você, querida. Mas, me conte. Sua mãe me disse que você está estudando biomedicina. Que chique, hein? E como está a vida em Belo Horizonte? - Normal. Tô estudando e... ahn... acho que só. - Só? E esse namorado lindo que você arrumou? Finalmente, hein, Mélanie? Onde ele está? Queria conhecer o sortudo! - Ah, ele tá com o Daniel. Quando esses dois se juntam...

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- Seu namorado ajudando a cuidar do seu sobrinho, que gracinha! Mas, cuidado, viu? Não vá fazer a mesma besteira que a sua irmã fez. Você tem tanto pela frente. - Claro, claro. A tia ia continuar falando para sempre, mas, graças a Deus, Gustavo apareceu lá atrás, a chamando. Finalmente. - Tia, o Gustavo tá me chamando. Eu vou lá ver se ele tá precisando de alguma coisa. - Claro, querida! Não vá se esquecer de trazê-lo aqui para eu o conhecer, hein? - Pode deixar. Até mais. Mélanie sai correndo dali antes que mais alguma tia saída das cavernas venha atrás dela pra falar sobre como ela está grande, sobre o cabelo dela, sobre a faculdade, sobre qualquer coisa. Gustavo está parado com as mãos no bolso, na porta do salão, olhando um pouco assustado para toda aquela gente. - Vamos sair daqui, pelo amor de Deus! - O que aconteceu? - Tias! Muitas tias aconteceram! Mélanie saiu puxando Gustavo pela mão e logo os dois estavam longe do salão, perto de uma piscina gigante que estava toda decorada com velas flutuantes e mais algumas dezenas de coisas bregas. Mal chegaram à piscina, Gustavo já foi tirando os sapatos e dobrando a barra da calça. - O que você tá fazendo? - Enfiando o pé na água. Só não pulo na piscina de vez porque eu não quero me queimar com esse tanto de vela. É uma boa ideia. Mel tira os sapatos (de salto, coisa que ela só usa em ocasiões MUITO especiais) e se senta ao lado de Gustavo, tendo que se lembrar que ela estava usando um vestido que quase não a deixava dobrar as pernas. Mas, deu para se ajeitar. A sensação da água gelada em suas pernas foi a coisa mais refrescante que poderia ter acontecido. - O que aconteceu com a sua tia? - Já devia ser a milésima tia que aparecia para falar do meu namorado lindo. - Ela falou que eu sou lindo? - Ela já devia tá bêbada. - Cala a boca. Eles riem e não falam mais nada por algum tempo. Mel sabe que vai ter que voltar para o salão em breve, e o jogo do namoro vai continuar. Uma das suas primas já tinha até falado que o próximo casa-mento seria o de Mélanie! Logo, não era à-toa que Mel estava adiando sua volta para o salão. Gustavo também não parecia com vontade nenhuma de sair de lá. - Minha mãe tá achando que é pra valer. - O que é pra valer? Nós dois? - Aham! Eu tentei explicar umas quadrilhões de vezes pra ela, mas, ela não entende. Aí a coitada tá lá, super feliz. - E o seu pai que quase me matou? - Pai ciumento é assim mesmo. Silêncio de novo. O dia estava muito bonito, mesmo com o calor descomunal. Mélanie estava com muita vontade de pular na piscina, de roupa e tudo, e sabia que Gustavo a acompanharia numa boa, mas, existem certas coisas que não são muito bem aceitas socialmente, como pular numa piscina no meio de um casamento. - Você acha que você vai casar um dia? - Gustavo pergunta, de repente. - Sim, acho que sim. E você? - Eu também acho que sim. Ia ser estranho. - Não consigo imaginar você casando, Gustavo. - Por que? - Sei lá. Você é tão...criança! - Como assim?! - Você fica rolando no chão com o Daniel!

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- Uai, é isso que a gente faz com um bebê, não? - E você ficou com medo de Jogos Mortais. - Aquele filme é do demônio e a gente não vai mais assistir aquilo. - Tá vendo? Como você vai casar se ainda acha que o Jigsaw pode sair de debaixo da sua cama a qualquer momento? - Mélanie, aquele cara é um psicopata. - Enfim, acho que tá muito cedo pra você pensar em casar. - Eu sei. Não tô falando que eu vou casar semana que vem. Mas, é um plano legal... Vai falar que você não pensa nisso. - Claro que eu penso. Eu sou menina, esqueceu? - Tenho que me lembrar disso de vez em quando. Mélanie joga água em Gustavo, que tenta se proteger e rir ao mesmo tempo. - Calma, calma! Só tô te zoando! - Idiota. - Brincadeira, brincadeira! Você é a menina mais menina que eu conheço. - Cala a boca. - Mas, falando sério agora, com quantos anos você quer se casar? - Não sei. Tem tanta coisa que eu quero fazer antes. Viajar, terminar a faculdade... Sem contar que vai ser um custo encontrar o cara certo. Minhas tias vivem falando que não existe mais homem que presta nesse mundo. - E eu sou o que? - Você não conta, Gustavo. - Super conto. Eu posso servir de estepe pra você. - Não, sem estepe. Eu quero um cara mais velho, com a cabeça no lugar, e não um que tenha medo do Freddie Kruegger. - Outro que também é do demônio. O Júlio é mais velho e, aparentemente, tinha a cabeça no lugar. E deu no que deu... - Jura que você vai entrar nesse assunto? De novo? - Só tô lembrando. Talvez, dona Mélanie, você tenha que rever os seus conceitos... - Você andou conversando com a minha mãe de novo, foi? - Não, juro que não. Até porque, ela tá caindo de amores por mim, então, não preciso falar muita coisa. - É, você é o genro que ela pediu a Deus. - Previsível. - Imbecil. Continuam conversando por algum tempo, nada de muito especial, até Mélanie escutar sua mãe a chamando. - O que foi? - ela grita de volta. - A Camila vai jogar o buquê! Vai que é a sua vez? Mel e Gustavo se olharam, segurando o riso. Gustavo se levanta e, em seguida, ajuda Mélanie a se levantar também. Enquanto a garota ajeita o vestido, ele comenta: - Se você pegar o buquê, vou interpretar isso como um sinal claro de que a gente tem que se casar. - Você tá levando essa história muito a sério. Assustadoramente a sério. - Me senti ofendido agora. É tão assustador assim o pensamento de me namorar, Mélanie Vasconce-los? - Seria como namorar um irmão. Nojento. Será que eu posso ficar descalça? - Acho que não. - A gente tá num sítio. Quem anda de salto alto em um sítio? - Mel diz, se abaixando para enfiar os sapatos-tortura nos pés de novo. - Você e todas as outras convidadas do casamento. Anda, coloca esse trem rápido pra gente voltar, você pegar o buquê e eu rir da sua cara.

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- Você que devia ir pegar o buquê, já que tá tão desesperado assim. - Acho que esse tipo de coisa não funciona pra homem. Tá pronta? - Tô. Bora lá, namorado. - Bora lá, namorada. De mãos dadas, como deve ser com um casal de namorados, Mel e Gustavo voltam para o salão onde a festa está acontecendo. Mélanie mal tem tempo de pisar no lugar e logo já está sendo arrastada por sua mãe, bem para o meio de mais um tanto de mulher desesperada pra pegar um punhado de flores. Cristo, que vergonha! A maior preocupação de Mel, na verdade, é se manter de pé mesmo com aquele empurra-empurra e com os saltos gigantes que está usando. De relance, olha para Gustavo e, obvia-mente, o garoto está passando mal de rir da situação da amiga. Mélanie acaba rindo também, dessa situação absurda. Em seguida, escuta a contagem regressiva da sua prima Camila, a noiva, irradiando alegria, toda princesa com aquele vestido branco. As mulheres apertam Mélanie, que parece estar bem no meio da bagunça. E aí, Camila joga o buquê.

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21 de julho de 2012, sábado

O inverno de Belo Horizonte é uma coisa engraçada. Têm uns dias em que você não consegue colocar o nariz pra fora do cobertor, e tem outros em que você acha que o Sol está prestes a cair na sua cabeça. Hoje era um dia desses, de Sol quente, brilhante, digno de praia. E aí estava um dos grandes problemas dos mineiros: a falta de praia. Gustavo sofria com isso, principalmente em dias de calor como esse. Em horas assim, a coisa certa a se fazer era ir ao clube. Era onde ele estava agora, com Patrícia e Daniel. O menino tinha ficado louco com toda aquela água e, toda hora, Gustavo tinha que ficar puxando o garoto pela gola da camisa para que ele não fosse correndo pra piscina sozinho. - Eu acho que eu nunca vim nesse clube. - Meus pais são sócios daqui há séculos. Eu venho muito pouco, gosto mais de um menorzinho que fica perto da minha casa. - Por que você não vem aqui? - Porque meus pais são sócios daqui. - Nunca vou entender o que você tem com os seus pais, Gustavo. - Pois é, nem eu. Onde tá o Dani? Gustavo olha rapidamente para a piscina infantil e lá está o seu sobrinho, entretido demais em enfiar seu caminhão de plástico na água e, em seguida, jogar a água em cima da própria cabeça. Cada maluco com a sua maluquice, certo? - Ê, neurose! Deixa o menino ser feliz - Patrícia fala, rindo. - Você não conhece o Dani, Pati. Se eu não ficar de olho, daqui a pouco esse menino tá em cima do toboágua. - Ia ser engraçado. - Ia ser maravilhoso, mas, aí a Paula me mataria. - E isso não ia ser engraçado. - Nem um pouco. - Por que ela não quis vir com a gente? - A Paula ia ter que trabalhar hoje, aí ela pediu pra eu ficar com o Dani. A gente já tinha combinado isso no início da semana. - Uai, e a Mélanie? - Ela ia participar de um seminário, alguma coisa do serviço dela. Já tava combinado há bastante tempo também. - E você tá de boa? - Claro que sim, por que não estaria?

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Patrícia dá de ombros, ou pelo menos é o que parece já que ela está deitada, tomando sol e mal mexe o pescoço. - Porque, talvez, você tenha ciúmes da Mel saindo com pessoas que não sejam você. - Eu não vou entrar nesse assunto de novo. Eu vou lá ficar com o Dani. - Não, Gu, fica aqui um pouco. Ele tá bem. - É rapidinho. Se Patrícia protesta, Gustavo não escuta. Ele anda rapidamente até Daniel que, agora, está brincando com outro garoto, os dois correndo pela piscina com o que parecem ser caminhões voadores. Gustavo se assenta na beirada da piscina e fica olhando o sobrinho. Ah, que saudade desse tempo... Daniel já está com os dedinhos enrugados, molhado até os ossos, mas, Gustavo sabe que se ele ao menos fazer menção de tirar o garoto da piscina, o escândalo vai reinar. Portanto, ele fica quietinho ali, observando o sobrinho. Só quando ele se afasta demais, que Gustavo grita: - Dani, pode voltar pra cá! Daniel se vira e dá tchau para Gustavo, que repete o gesto de chamá-lo para perto. O menino volta, acompanhado do novo amigo, os dois espirrando água em todo mundo. - Tio, você viu meu caminhão? - Esse que tá na sua mão? - Não, ele tá voando, tio! E Daniel joga o caminhão na água, molhando Gustavo. Antes que ele tenha a chance de ralhar com o menino, Daniel já saiu correndo com o amiguinho novo. O garoto parece mais novo, mas, como um cachorrinho, segue Daniel para todos os lados. Gustavo decidi ficar ali por mais um tempo, só para garantir que Daniel não iria jogar o caminhão na cara do garotinho. Ou sentar em cima dele na água, sei lá. Não é a primeira vez que Gustavo traz Daniel para o clube, é claro. Mas, nas outras vezes em que eles estiveram lá, Mélanie ou Paula, ou as duas, estavam também. Gustavo ainda não sabia o que tinha dado na cabeça de Paula pra deixar ele sozinho com Daniel em um clube, mas, não tinha coisa mais legal do que ver o menino todo feliz da vida na piscina. Estava tão entretido, vendo Daniel brincando, que não reparou na mulher que se assentou ao seu lado. - É seu filho? Gustavo se assustou e se virou rapidamente. A mulher, já na casa dos 30, apontava para Daniel. - Desculpe, eu não escutei... - Perguntei se ele é seu filho. - Não, não. Meu sobrinho. - Ah, sim. Como ele se chama? - Daniel. - Vocês se parecem, por isso perguntei... - Não tem problema. Eu escuto isso muito. - Ele está brincando com o meu filho, o Lucas - ela falou, apontando para o pequenininho que tentava acompanhar o ritmo de Daniel. - Ah, sério? Desculpa pelo Dani ter jogado o caminhão no rosto do seu filho. - Não tem problema - ela responde, rindo. Não demora para que Daniel e Lucas venham correndo de volta a beirada da piscina. Enquanto o pequeno Lucas chega conversando baixinho com a sua mãe, Daniel se atira nos braços de Gustavo. - Cansou de nadar, menino? - Não! Vem nadar comigo, tio! - Você não quer ir tomar um picolé primeiro? Você ainda não comeu nada, Dani. - Picolé de chocolate? - Pode ser - Gustavo disse, se levantando com Daniel no colo - Só não conta pra sua mãe. Daniel coloca as mãozinhas na boca e Gustavo tem que se equilibrar para segurar o garoto e o ca-minhão que ele soltou de uma vez. A mãe de Lucas ri da cena, fazendo Gustavo se lembrar dos bons modos que ele tem ensinado para Dani:

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- Você já deu tchau para o seu amigo? - Tchau, amigo! A mãe de Lucas balança a mão do menino em resposta. Gustavo sai da piscina carregando Daniel, vai com ele até a lanchonete e logo os dois estão sentados perto de Patrícia. Ela não gosta muito de clube, mas, parece tranquila deitada ali, lendo um livro. Ela ri quando vê Daniel se lambuzando com o picolé. - Cuidado aí, Dani. - Oi? - Nada, não - ela se levanta e, com uma toalha, limpa o rosto de Daniel. Aí, ela olha pra Gustavo e começa a rir - Olha pra você, Gu! - O que tem eu? - Você também tá todo sujo! Vou ter que arrumar um babador pra você também? - Não, eu tô legal - Gustavo responde, limpando o rosto. - Tal tio, tal sobrinho - ela retruca, dando de ombros. - Teve uma moça aqui que achou que o Dani era meu filho. - Sério? - Sério! Ela falou que a gente se parece. Patrícia olha para ele e, depois, para Daniel. - É, se for olhar no quesito da lambança que vocês fazem com picolé... - Tio, pode voltar pra piscina? - Já terminou seu picolé? - Já! - Daniel responde, gritando e pulando ao mesmo tempo. - Pode, mas, depois você vai sair pra almoçar, tá bom? - Eu não quero almoçar! - Mas, vai mesmo assim. Pode ir. Daniel sai correndo, sob o olhar atento de Gustavo, e pula na piscina infantil de novo, espirrando água para todos os lados. Gustavo não vai conseguir nadar despreocupado, sabendo que Daniel está solto sozinho em uma piscina. Por isso, ele resolve se acomodar na cadeira e ficar por ali mesmo, de onde ele consegue enxergar Daniel. Patrícia volta a se esticar na esteira. O clube não está tão barulhento, então, fica mais tranquilo para Gustavo descansar a cabeça, relaxar um pouco. Teve uma semana corrida no trabalho, juntamente com uma gripe que custou a ir embora. Agora, já se sentindo melhor, ele aprovei-tava para curtir esse Sol inesperado. Paula pediu para eles irem embora logo depois do almoço, já que não era bom deixar Daniel o dia inteiro na piscina. Gustavo não via problema nenhum nisso, mas, apa-rentemente, você não pode contestar a ordem de uma mãe. A coisa boa era que Daniel desmaiaria de sono assim que entrassem no carro. Aí, seria só esperar Mel ou Paula voltarem de seus compromissos e passar Dani para uma delas. Se bem que, pensando agora, elas talvez estivessem cansadas do dia cheio, enquanto Gustavo só fez ficar sentado debaixo da sombra. É, seria melhor se ele cuidasse de Daniel, poderia falar com Patrícia para saírem amanhã ou... - Isso não te incomoda? - O que me incomoda? - O povo achando que você é pai do Daniel. - Não, uai! Por que me incomodaria? O Dani é um garoto ótimo. - Eu sei! Mas, é que você é muito novo para ser pai, Gustavo. Você já deve ter afastado um tanto de menina por elas acharem que você já é pai. - Você que pensa! Elas ficam doidas quando vêem o Daniel - ele responde, rindo - Esse menino chama mais atenção do que eu. - Então, você usa o Dani para chamar a atenção da mulherada? - Não, claro que não! Pelo menos, não mais, né? Patrícia dá um tapa nele e Gustavo ri. - Mas, de qualquer maneira, você age como se fosse mesmo o pai dele. É muito engraçado. - O que tem de engraçado? Eu só dou chocolate pra ele. - Você vai ser um bom pai.

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O comentário pega Gustavo de surpresa. Ele fica esperando alguma complementação, mas, Pati nem se mexe. - Você acha mesmo? - Acho. Você vai saber cuidar bem dos seus filhos. Gustavo reparou que ela não falou “nossos filhos”. Sinceramente, ele não sabe se isso é bom ou ruim. Claro, tem pouco mais de um mês que eles estão namorando e quem seria louco de falar em filhos com tão pouco tempo? Mas, às vezes, Patrícia era um mistério para Gustavo, por mais que ele não gostasse de admitir isso. Ela parecia realmente gostar dele, e Gustavo ainda se admirava por ela ter aceitado tão bem tudo aquilo que ele considerava importante. Mas, algumas vezes, parecia que ela ainda estava vendo onde podia pisar. Isso deixava Gustavo confuso. Precisava conversar com Paula sobre isso. Ela entendia dessas coisas. - É bom ouvir isso. Significa que eu não tô estragando o Daniel como eu achei que aconteceria. - Não, não. Ele te adora. - E eu adoro esse menino - Gustavo responde, a cabeça cheia de lembranças - Vou lá ficar com ele. Ele se inclina e dá um rápido beijo em Patrícia. Em seguida, vai até a piscina infantil e chama Daniel. - Dani! O menino se vira e logo sai correndo em direção a Gustavo. Ele pega o menino no colo. - Você já quer ir embora? - Não! - Quer ir na piscina de gente grande comigo? - Quero! Daniel tem essa mania de gritar bem na orelha de Gustavo, mas, depois de tanto tempo, Gustavo já se acostumou. Sai andando com o garoto no colo até a “piscina de gente grande” e, sem pensar duas vezes, pula com o sobrinho na água. Pela cara de Daniel, esse parece ser o dia mais feliz da vida dele.

23 de julho de 2012, segunda-feira

Com o cabelo pra cima e olheiras quilométricas, Mélanie estava até com medo de olhar no espelho. Depois de um final de semana super corrido, com esse seminário que ela nem estava lembrando que ia acontecer, Mel não tinha tido tempo para dormir. Ela não considerava que fechar os olhos durante cinco horas fosse “dormir”, ainda mais em um final de semana. De modo que, agora, em plena segun-dona, tudo o que ela mais queria era ir pra casa, tomar um banho e desmaiar de vez. Ia ter que trancar a porta do seu quarto, para evitar intrusos como Paula ou Daniel, mas, não tinha problema. A única coisa que ela queria era dormir. Só isso. Era pedir demais? Mélanie andava apressada pelo campus da faculdade, quase correndo para pegar o ônibus. Distraída, pensando apenas em sua cama, ela custou a perceber que tinha alguém chamando por ela. - Mélanie? Ela se virou, irritada, pensando que pudesse ser algum colega da sua sala que, por algum azar qual-quer, havia a visto andando quase correndo daquele jeito. Mas, é claro que não era ninguém da sala dela. Nada no mundo poderia tê-la deixada preparada para quem ela encontrou ali, do outro lado da rua. - Júlio? Ele acenou, sorridente e, olhando para os dois lados, atravessou a rua para se encontrar com Mélanie. Enquanto isso, a garota olhava para ele com um misto de pânico e incredulidade. Em que momento do dia ela caiu em uma fenda temporal e voltou para 2009? Ok, eu tô precisando dar um tempo em Doctor Who... - Nossa, não acredito que é você! - Júlio disse, beijando a bochecha de Mel. - Pois é, nem eu! - ela responde, tentando manter o tom de alegria e surpresa que está na voz de Júlio. Eles se olham, Mélanie ainda sem entender o que de fato está acontecendo. Como diabos Júlio brotou

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assim, do nada, na faculdade dela? Pelas suas contas, o garoto já devia estar formado. O que ele estava cheirando ali então, pelo amor de Deus? - O que você tá arrumando por aqui? - Eu tô fazendo parte de um projeto de pesquisa. Um dos meus antigos professores tá coordenando, aí ele me chamou pra ajudar. E você? Ainda não formou? - Quem dera. Formo ano que vem, se Deus quiser. Eu tô trabalhando no laboratório, aí tenho que vir aqui, mesmo nas férias. - Nossa, que bom, Mel! - ele responde, com um sorriso. De repente, Mélanie se lembra da sua cara de derrota, com as olheiras quilométricas. Ah, que ótimo. Tem cinco milênios que eu não vejo o menino, e ele escolhe aparecer no dia que eu tô parecendo um Gremlin... - E como tá a vida? Tem tanto tempo que eu não te vejo. Você não mudou nada. - Ah, sim. Mesmo cabelo bagunçado, mesma cara de cansada... Júlio ri e Mel aproveita para dar uma boa olhada nele. Ah, sim, como se não bastasse, ela tinha deci-dido usar óculos hoje, por pura preguiça de colocar suas lentes. Simplesmente ótimo. Mas, de qualquer maneira, Júlio também não tinha mudado muito. Ele estava com barba, o que era sempre bom. Com um jeito mais de adulto também. O sorriso simpático era o mesmo. - Não foi isso que eu quis dizer. Mas, admito que você tá realmente com cara de cansada. Trabalhando muito? - Como se não houvesse amanhã. E você? - Também. Foi um custo conseguir uma folga no escritório para vir aqui hoje. Eles se olham, atingindo aquele momento da conversa em que as coisas ficam meio sem graça, cons-trangedoras talvez. Júlio olha para o relógio. - Olha, eu ainda tenho um tempinho antes da reunião. Você, sei lá, quer tomar um café? O convite pega Mélanie completamente de surpresa. Em um piscar de olhos, sua cabeça se enche de lembranças e ela se pergunta porque Júlio fez tanta questão de parar para cumprimentá-la e, agora, chamá-la para tomar café. Se ele estivesse em seu perfeito juízo, teria passado de cabeça baixa, disfar-çado e fazendo o sinal de vade retro para Mélanie. Mas, não! Cá estava ele, sorrindo, todo simpático, o mesmo jeito fofo de sempre. A vontade de Mel era de sumir, ligar para Gustavo, perguntar o que era pra ela fazer, correr para casa, tudo ao mesmo tempo. Mas, aí ela se lembrou de tudo o que Paula vinha falando. De todas aqueles pensamentos confusos sobre Gustavo, Patrícia e toda essa bagunça. Por isso, seguindo a filosofia de Paula, e se lembrando daquele dia, tão tão distante, em que Júlio a chamou para dar uma volta na praia, Mélanie responde: - Claro, vamos lá!

18 de junho de 2009, quinta-feira

Mélanie já estava com o texto todo decorado. Tinha ensaiado umas dez vezes em frente ao espelho. Claro que, nesse meio tempo, Paula continuava falando que ela ia cometer o erro mais estúpido da sua vida, mas, não tinha outra saída. Mel precisava fazer isso, precisava por um fim no que quer que fosse que estava acontecendo entre ela e... Júlio. Bizarro. Mel nem sabia direito se, de fato, tinha alguma coisa acontecendo. Eles estavam se vendo muito, isso é verdade. Na última vez em que saíram, Júlio tinha passado o tempo todo segurando a mão de Mel. E os beijos estavam ficando mais constantes. E, por Deus, ele tinha ido na casa dela, almoçado lá, brincado com Daniel! O que viria em seguida? Apelidos carinhosos e “ah, deixa eu te apresentar a minha namorada”? Não, não, não! Mélanie não estava prepa-rada para isso, então, a melhor coisa a se fazer era cair fora. Se fosse um erro, paciência. Ela estava em uma das lanchonetes da faculdade, aquela em que a única coisa que descia era o café. O resto era intragável. Quinta-feira era o dia em que Júlio conseguia dar uma escapada do estágio para passar um tempo com Mel. Eles não faziam muita coisa. Só se assentavam naquela lanchonete, pagavam um absurdo pelo café e falavam sobre seus respectivos dias. Nessas horas, Mélanie realmente

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pensava se Paula não teria razão. Júlio era desses caras que eram tão fofos que chegavam a ser irreais. Ele é super atencioso, tem um papo legal, é inteligente e é bonitinho, nesse jeito fofo. Então, qual é o problema? Na verdade, o problema era Mélanie, como Paula vinha dizendo há dias: - Pelo amor de Deus, para de ser neurótica desse jeito! O garoto é legal, super fofo e, vai saber porque, parece gostar de você! E você quer jogar isso fora?! É, Mélanie queria jogar isso fora. Ela não estava se sentindo à vontade, ela não estava pronta para ter algo sério. Não era nada oficial, mas Mel sabia que ela e Júlio estavam caminhando para um compro-misso de verdade, todo aquele “namorado e namorada” coisa e tal. Seria o primeiro namoro sério de Mel. E, sinceramente, ela estava com medo. Gostava de Júlio, é claro, ele era um cara ótimo, maravi-lhoso, e ela ainda não entendia porque ele estava tão na dela assim. Fosse o que fosse, era hora de parar isso. Ela respirava fundo, tentando esquecer Paula e se lembrar do que Gustavo tinha lhe falado. Era só falar o que tinha que falar e sumir dali. Pronto. The end. Era mais fácil falar do que fazer. Quando Júlio chegou, com aquele mesmo sorriso simpático de sem-pre, Mélanie sentiu toda a sua coragem indo embora. Júlio era legal, gente boa. Por que não arriscar um namoro? Por que não ver aonde isso ia dar? Não! Para! Seja forte, mulher! - Olá! Desculpa o atraso - ele fala, dando um beijo rápido nos lábios de Mel e se assentando - Tá tudo bem? - Tá tudo bem. E você? - Tô bem também - Ele faz uma uma cara engraçada - Tem certeza que tá tudo bem? - Por que? - Porque você tá com jeito de preocupada. O que foi? Aconteceu alguma coisa? Nessa hora, Júlio segura a mão de Mel e olha para ela com atenção, do jeito que ele faz quando quer conversar, trocar ideia. É agora, Mélanie pensa, respirando fundo. - Eu... Ahn... Eu tava querendo conversar com você. E ele entende tudo. Saca assim, de cara. Mélanie sente que não precisa falar mais nada, mesmo saben-do que precisa explicar um tanto de coisa. Mas, cadê a coragem? Ela abaixa os olhos, nervosa demais para pensar em alguma coisa certa, e só então repara que Júlio ainda não soltou sua mão. Depois de um tempo que pareceu eterno, ele finalmente fala: - Eu já tava esperando por isso. - Como assim? - ela consegue dizer. - Simplesmente, que não é nenhuma surpresa - ele dá um sorriso triste - Dava pra ver que você não tava animada. Mélanie abaixa os olhos de novo, se sentindo ridícula. Qual é o problema dela, pelo amor de Deus? Júlio era um cara legal, por que ela tinha que deixá-lo ir embora? Havia várias respostas para isso, e todas deixavam Mélanie envergonhada. Medo, confusão, imaturidade. Ela podia escolher qualquer uma dessas alternativas. Gostava de Júlio, é claro, mas, lá no fundo, sentia que não sabia onde estava pisando. Já tinha visto tanta coisa dando errado, tantas pessoas próximas saírem machucadas por irem de cabeça em uma coisa incerta. Ela não queria que isso acontecesse com ela. Portanto, a melhor coisa a se fazer, era mandar Júlio embora. Podia ter falado tudo isso pra ele, tentado explicar, mas, ela preferiu ser prática. - Me desculpa. Sua voz saiu sussurrada e, só então ela criou coragem para olhar para ele. Júlio não parecia abalado nem surpreso, só um pouco desapontado. - Eu posso só saber por que? - Porque eu sou uma idiota. - Só por isso? - É um bom motivo, não acha? Ele balança a cabeça, pensativo. Passa um tempo, eles continuam calados. A cabeça de Mel está a mil, mas, ela não quer encarar esses pensamentos agora. Na verdade, a única coisa que ela quer é que Júlio vá embora e ela possa ficar livre para se sentir miserável à vontade. Por fim, ele aperta a mão de Mel e, com o mesmo sorriso triste, diz:

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- Eu gosto de você, Mel. Gosto mesmo, de verdade. Mas, não quero forçar você a fazer nada. Se um dia, quem sabe, você deixar de ser uma idiota, a gente se fala de novo. Pode ser assim? - Aí você vai ser o idiota se for ficar esperando isso acontecer. Ele dá de ombros, se levantando. - Tá tranquilo. A gente se fala, Mel. Júlio dá um beijo na testa de Mélanie e sai rapidamente, sem olhar pra trás, sem sentimentalismo nem nada. Mélanie, por sua vez, afunda na cadeira, rosto escondido nos braços, tentando convencer a si mesma que ela tinha feito a coisa certa. Não queria um relacionamento sério agora. Tinha acabado de completar 20 anos, ainda tinha tanta coisa pra fazer. A verdade, claro, era outra. Ela sabia que tinha mandado Júlio embora por puro medo do que viria a acontecer. Mélanie gostava de certezas. Suas dú-vidas e confusões a respeito de Júlio a levaram a conversar com o garoto. Eu sou uma completa imbecil. Sem vontade de sair do lugar, Mélanie continuou ali por um bom tempo, pensando, remoendo o que tinha acabado de acontecer, falando para si mesma que logo tudo voltaria ao normal. Ela tinha Gusta-vo, Paula e Daniel, as coisas mais importantes de sua vida. Eles a fariam se sentir melhor. Era esse o seu mundo, a sua certeza. Júlio, por mais fofo que fosse, ainda era uma interrogação. Se sentindo no fundo do poço, Mel pega o celular e liga para Gustavo. Ele atende logo no segundo toque. - E aí? - Eu sou muito idiota. - Você conversou com ele? - A gente nem conversou direito. Ele foi olhando pra minha cara e vendo que tinha alguma coisa estranha. - Como você tá? - Me sentindo um lixo. - Tô indo aí. - Não precisa, Gustavo. - Te vejo em cinco minutos, Mel. E, de fato, cinco minutos mais tarde, lá estava ele. Mélanie ainda não entendia porque se sentia tão segura com Gustavo. Eles tinham ficado amigos rápido demais, compartilhado muita coisa (o nasci-mento do Dani, aquele dia que ele tinha ficado bêbado e tantas outras coisas) e parecia que ele era a única pessoa no mundo que conseguia entender Mélanie. - Trouxe chocolate - Gustavo diz, estendendo o doce para Mel. - Valeu. - E aí, como foi? - Foi como eu te disse. A gente nem falou nada direito. Eu disse que tava querendo conversar com ele, ele sacou na hora o que era, eu disse que eu sou uma idiota, ele concordou com isso e... - Ele te chamou de idiota? - Não! Ele foi super fofo. Só disse que, caso eu deixe de ser idiota, era pra gente se falar de novo. - Esse cara é esquisito, Mélanie! E ele praticamente te chamou de idiota, sim. - Ele não me chamou de idiota, para de encher o saco com isso! E, na verdade, se tiver chamado tam-bém, qual é o problema? É o que eu sou, não é? - Para com isso, Mel! Você não é uma idiota por ter terminado com um menino. Eu vivo terminando com as meninas e tô aí, vivo até hoje. - Gustavo, você realmente quer usar você mesmo de exemplo? Ainda mais em um assunto como esse? Sério? - Eu posso não ser o cara mais indicado, tudo bem, mas, você não precisa se sentir uma idiota por ter despachado o cara. Você não quer namorar agora, certo? Então, beijo pro cara, bora seguir com a vida. - Ah, sim, no seu mundo tudo é tão fácil, né? - E por que não seria? Você que tem mania de complicar tudo! - Você nunca gostou do Júlio, Gustavo, admita!

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- Não é que eu não gosto dele. Eu só acho que vocês dois não tem nada a ver, só isso. - Ah, é? Então, me fala um cara com quem eu tenho a ver. - O ponto não é esse. - Esse é exatamente o ponto. O Júlio tinha a ver comigo, sim! Eu que sou uma idiota! Ai, meu Deus, o que foi que eu fiz? - Mélanie esconde o rosto com as mãos. - Não, Mélanie! Para com isso - Gustavo tira as mãos de Mel do rosto dela e a força a encará-lo - Como você consegue ser toda, sei lá, normal para tudo e ficar desse jeito por causa de um cara? - Eu não sei! - ela responde, quase gritando - Minha mãe vive falando que eu tenho problemas de segurança. A Paula acha que eu gosto de me auto-sabotar. Sei lá, eu preciso de terapia. Gustavo se aproxima e abraça a amiga. - Você não precisa de nada, sua grande idiota. Você vai ficar bem. Você sempre fica bem. - Eu vou morrer seca, sozinha e com 30 gatos. - Tecnicamente, se você tiver 30 gatos, você não vai estar sozinha. - Cala a boca. Gustavo ri e beija o topo da cabeça de Mélanie. Em seguida, olha para ela. - Você sabe que, se você ficar sozinha, eu vou ficar sozinho com você, né? - Duvido. Você, bonitão desse jeito, daqui uns dias aparece quase casando. - Eu, quase casando? Até parece que você não me conhece, Mélanie. - Mas, fala se não é isso que vai acontecer? Aí, você vai me esquecer completamente e eu só vou ter os meus 40 gatos. - Não eram 30? - A solidão aumentou. - Nossa, que depressão. Vem, vamos embora. - Mas, eu ainda tenho aula. - Problema é seu. Você tá precisando se distrair, a gente pode ir ao cinema. - Gustavo, eu tenho aula agora à tarde! - Que parte de “o problema é seu” você não entendeu? - ele se levanta e puxa Mélanie pela mão - Vem, eu posso fingir que sou seu namorado, pra você não ficar tão triste. - Ah, que caridoso da sua parte. - Tudo pra te ver feliz. Eles saem andando de mãos dadas pelo campus e Mélanie imagina, por uma fração de segundos, Júlio surgindo do nada e vendo essa cena. Ia ser difícil explicar, por mais que Júlio falasse que não ti-nha problema nenhum com Gustavo, pelo contrário, o achava um cara muito legal. Mas, Mélanie não queria pensar nisso agora. Por mais que sua consciência estivesse pesada por causa do que havia feito com Júlio e, como se não bastasse, por matar aula agora, ela realmente queria deixar isso tudo de lado e ir curtir um cinema com o seu melhor amigo. Gustavo era tão idiota que, perto dele, Mélanie não se sentia tão imbecil assim. Aparentemente, é assim que os seus amigos têm que fazer você se sentir.

24 de julho de 2012, terça-feira

Gustavo não está conseguindo entender. De verdade. Já é segunda vez na semana que ele vai ao apar-tamento de Mélanie e é também a segunda vez que ele não a encontra lá. Ontem, ela tinha ficado até mais tarde no campus, indo tomar café com um colega, quem quer que fosse esse cara. Agora, em plena noite de terça-feira, Gustavo estava parado na sala do apartamento dos Vasconcelos, com Daniel dormindo em seu colo. E só. - O que a sua tia tá arrumando, hein, Dani? É claro que o menino não respondeu. Depois de terem brincado de ninjas invisíveis, Daniel e Gustavo se assentaram na sala para assistir àqueles horríveis desenhos que o garoto adorava. Graças a Deus, não demorou para que Dani desmaiasse de puro cansaço no colo de Gustavo, de modo que agora, ele podia

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assistir CSI sem medo. Mas, ele estava incomodado. Era terça-feira, droga! O que Mélanie poderia estar fazendo numa noite de terça-feira? Ele já tinha tentado ligar pra ela, mas, ela não atendeu. As mensa-gens também não foram respondidas. Gustavo estava começando a ficar preocupado, a ponto de não conseguir prestar atenção no que os detetives de CSI estavam descobrindo. De repente, ouviu barulho de chave e ficou aliviado. Era Mélanie chegando, finalmente eles poderiam... - Paula? - Gustavo? O que você tá fazendo aqui? - Cuidando do Dani, uai! Cadê a Mélanie? - Eu não sei. Achei que ela já ia estar em casa - Paula fecha a porta, joga a bolsa no sofá e se inclina para beijar Daniel - Você deu janta pra ele? - Uma mamadeira cheia de Toddy conta como janta? - O objetivo da sua vida é apodrecer os dentes do meu filho, né, Gustavo? - Por incrível que pareça, não. Aqui, cadê a Mélanie? - Já disse que não sei. Você pode ficar aqui por mais um tempo, enquanto eu tomo um banho? - Claro, vai lá. Logo, Gustavo estava sozinho de novo. Em seu colo, Daniel respirava pausadamente e, por alguns segundos, Gustavo teve inveja da tranquilidade do menino. Seu sobrinho dormia profundamente, to-talmente alheio às confusões dos adultos. Aliás, já que entramos nesse tópico, que confusões são essas? Mélanie sendo social era a primeira. O namoro sério de Gustavo e Patrícia era a segunda. E... não, era só isso mesmo. O problema era que a primeira confusão estava diretamente ligada à segunda, e vice-versa. Tudo ficava mais complicado. Gustavo sabia que estava sendo egoísta, beirando o ridículo, mas, ele não conseguia deixar de se sentir incomodado. Por tanto tempo, era só ele e Mélanie. Por mais que Gustavo tivesse outros amigos, Mélanie era pra quem ele voltava no fim de tudo, quando ele não tinha mais ninguém. Sinceramente, Gustavo não sabia como transformar Patrícia nessa pessoa. Porque era isso que tinha que acontecer, certo? Era o que Paula vinha martelando em sua cabeça há séculos e, agora, até Mélanie tinha entrado nessa onda. Claro que ele gostava de Patrícia. Óbvio! De todas as garotas com quem ele já esteve, Patrícia era, de longe, a mais especial. Tinham completado um mês de namoro e Gustavo sabia que era diferente. A única coisa que estava o incomodando era Mélanie. Os dois estavam esquisitos. Mélanie não queria sair com ele e com Patrícia, Gustavo não estava conseguindo lidar muito bem com isso de ter que dividir o tempo entre a namorada e a melhor amiga e, no meio disso tudo, Mel estava fazendo novos amigos. Será que o egoísmo dele tinha atingido esse estágio? Cansado desses pensamentos, Gustavo se levanta com cuidado e vai até o quarto de Dani, onde coloca o garoto em sua cama. O menino mal se mexe. Gustavo dá um beijo na testa de Daniel e sai rapidamente do quarto. Não é hora pra ficar sentimental, como sempre acontece quando ele está com o pequeno. Gustavo volta para a sala, se joga no sofá e tenta se concentrar no episódio de CSI. Por causa de todas as suas viagens, ele já perdeu boa parte do raciocínio da trama, então, acaba desistindo de tentar entender o que diabos está acontecendo, quem morreu, quem matou. Simplesmente, continua jogado ali no sofá, com vontade zero de ir pra casa. Poderia ligar para Patrícia, ver se ela queria fazer alguma coisa, mas, sabia que não seria a melhor companhia de todas, não hoje. Portanto, era melhor continuar por ali mesmo. Logo Paula apareceu, já vestida com pijama e com os cabelos amarrados em um coque alto. Gustavo já estava acostumado com essa mania das Vasconcelos de prender o cabelo de um jeito que desafiava as leis da física, tais quais ele as conhecia. Ficaram assentados na sala, silenciosos, Gustavo começando a se sentir miserável com todos os pensamentos que passavam pela sua cabeça. - O que você tá assistindo? - CSI. Pode trocar se você quiser, eu não tô conseguindo prestar atenção. - Por que? - Por que o que? - Por que você não tá prestando atenção? Gustavo deu de ombros, sem responder. Paula pareceu aceitar essa resposta e voltou a se calar. Porém,

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não demorou para que ela se levantasse e, para a surpresa de Gustavo, desligasse a televisão. - Ei! Eu tava assistindo. - Você mesmo disse que não tava prestando atenção - ela respondeu, voltando a se assentar. - Mesmo assim, eu... - Gustavo, cala a boca. A gente tem que conversar. Gustavo conhecia Paula o suficiente para saber quando ela estava falando sério. Ela sempre fez o papel de irmã mais velha, que dava conselhos, tomava conta de tudo, se certificava de que todo mundo estava bem alimentado. Segundo ela, tudo isso era culpa de Daniel, que tinha dado um ponto final em sua vida louca, graças a Deus. Então, quando Gustavo viu Paula olhando para ele daquele jeito, ele sabia que podia começar a se preocupar. - Beleza, vamos lá. - É sobre a Mélanie... - Eu já imaginei. - ...e você. - O que tem eu? - Primeira regra da conversa: se você gritar e acordar o Daniel, você apanha. - Paula, eu... - Segunda regra: eu falo, você escuta. - Mas, aí não... - Terceira regra: eu vou começar a falar agora, então, cala a boca. Emburrado, Gustavo fechou a boca e ficou esperando Paula falar alguma coisa. Ela olhou desconfiada para ele, mas, por fim, disse: - Eu sei onde a Mel está, eu vou te contar, mas, se você pirar, lembra que eu sou mais forte que você e eu tenho total direito de te sentar a mão. - Por que eu... - Eu tô falando, então, cala a boca. Gustavo se calou novamente. - A Mel encontrou com o Júlio ontem, eles saíram pra tomar um café e hoje eles saíram de novo. Foram ao cinema. Paula soltou toda a informação em um fôlego só, em um piscar de olhos. Gustavo olhou para ela sem entender muito bem o que tinha acabado de escutar. Júlio? Quem diabos é Júlio? Então, em menos de dois segundos, tudo voltou a sua mente. Júlio, o cara que quase namorou Mélanie. O cara que deixou sua amiga em pedaços. Como assim ele tinha voltado dos mortos?! - Mas... eu não... espera um pouco... o Júlio é... - Eu ainda não terminei de falar. A Mel encontrou com ele ontem, no campus. Conversa vai, conversa vem, eles acabaram combinando de se encontrarem de novo. - Mas, a Mel nem gosta desse cara. Ela nunca gostou dele! Ela gosta daquele cara do serviço dela, o que é velho. - Quem, o Luís? Por favor, Gustavo! Eu, você, o mundo inteiro sabe que isso é só paixão platônica da Mel, igual quando ela cisma de se apaixonar por algum personagem de livro. Mas, ela teve uma história com o Júlio, então... - História? Eles ficaram por uns dois meses, e você acha que isso é história? O cara não presta, Paula, e você sabe disso. - Como assim ele não presta? Se eu me lembro bem do caso todo, foi a Mel que não quis ir pra frente com o que quer que fosse que eles tinham. E ele respeitou a vontade dela, em todos os momentos. Ago-ra que a Mel tá mais madura e, pelo o que me consta, tá solteira, por que não tentar de novo? Gustavo, que a essa altura já estava quase caindo do sofá, voltou-se pesadamente para trás. Agora, ele entendia tudo. - Foi você que falou com ela pra se encontrar com ele, não foi? - Foi, sim. Na verdade, o convite pra eles se encontrarem de novo partiu do Júlio. Ela tava na dúvida, como sempre fica com tudo, mas, eu falei com ela pra ir.

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- Por que você fez isso, Paula? - Porque eu não quero ver a minha irmã criando teia de aranha dentro de casa. - A Mel não tá criando teia de aranha! - Gustavo retruca, à beira do desespero - Ela já tá saindo com a turma do trabalho, e eu tô aqui também. - Não, Gustavo. Tenta entender de uma vez. Durante todo esse tempo, você e a Mel foram amigos, ótimo. As suas namoradas não aguentaram isso, o que é perfeitamente compreensível. Agora, com a Pati, você tá tentando fazer a coisa funcionar, certo? Logo, você não pode mais continuar nessa amiza-de colorida que você tem com a Mel. E eu não quero ver a minha irmã jogada às traças enquanto você tá de namorada nova. - Eu já disse, quinhentas vezes, pra Mélanie sair com a gente. Não tem problema nenhum, a Pati gosta da Mel. - Que vontade de te bater, Gustavo! A Pati pode falar o quanto ela quiser que não tem nada a ver a sua amizade com a Mel, que não interfere em nada, mas, até um imbecil como você deve saber que isso não é verdade. Imagina se a Pati tivesse um melhor amigo e ela cismasse de levar o garoto pra tudo quanto é lado com vocês dois. É isso que você quer que a Mel faça? Vire uma mala pra você arrastar pra todos os lugares? - Eu não... Gustavo se calou, ciente de que qualquer coisa que falasse agora não faria sentido algum. Por mais que doesse admitir, Paula tinha razão. Ele não tinha o direito de transformar Mélanie em uma espécie de posse particular. - Ainda tem uma segunda parte da conversa. - O que é agora? - Gustavo pergunta, desanimado - Vai me falar que a Mel e o Júlio fugiram pra Las Vegas pra se casarem? - Não. Essa segunda parte... A Mel não sabe que eu vou conversar isso com você. E nem pode ficar sabendo. - Paula, que merda você tá falando? - Gustavo, durante todo esse tempo, eu achei que vocês iam saber lidar com essa amizade de vocês. De verdade, eu achei que vocês conseguiriam deixar as coisas separadas, sabe? - Do que você tá falando? - Cala a boca e me deixa falar. Mas, agora, com esse seu namoro com a Patrícia, eu acho que vocês não conseguiram separar bosta nenhuma. Você gosta da Mel? - Que pergunta é essa? Claro que eu gosto! Eu amo a Mel, ela é a minha melhor amiga. - Esquece isso de melhor amiga. Se ela fosse, de fato, a sua melhor amiga, você não ia ficar se morden-do desse jeito porque ela tá saindo com um cara. - A gente não vai entrar nesse assunto de novo, né? - Eu nunca questionei nada entre você e a Mel. Achei que, depois de tanto tempo, se não tinha rolado nada é porque não era pra rolar mesmo. Mas, do jeito que as coisas estão andando, até eu fiquei confu-sa. E eu tô preocupada com a Mel. Isso que vocês estão vivendo agora, o que quer que seja, tá afetando a minha irmã e eu a conheço bem demais para saber como ela consegue transformar uma pequena confusão em um monstro de sete cabeças. - E o seu ponto é... - Tá na hora de vocês definirem as coisas. Para de balançar a cabeça, Gustavo. Você sabe do que eu tô falando. Ou vocês são amigos ou namorados, não vai ter meio termo nisso. - Eu não acredito que eu tô ouvindo isso de você. - Ah, não? Então, por favor, me explica porque você tem essa necessidade absurda de ter a Mel do seu lado mesmo quando você tá com a sua namorada. Me explica também porque você tá aqui e não na casa da sua namorada. Ah, e não esquece de falar daquele dia em que você ficou doente e quem foi cuidar de você foi a Mélanie e não a Patrícia. - É diferente - Gustavo disse, se levantando. - Larga a mão de ser teimoso, menino! E eu não terminei de conversar com você. Gustavo se assenta de novo, pesadamente, nervoso demais para pensar em algo racional para falar

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com Paula e mostrar o quanto ela está errada. Mas, não tem nada para dizer, ele sabe disso. - Não dá pra continuar do jeito que vocês estão - Paula diz, com cuidado - Ou vocês viram amigos, só amigos, sem isso de dormir na casa um do outro, de depender um do outro, ou então, partem para algo mais...sério. - E o que seria mais sério do que a amizade que eu tenho com a Mélanie? - Gustavo pergunta, já prevendo a resposta de Paula. - O que você acha? Seria vocês assumirem de vez que gostam um do outro e namorarem. - Você é nojenta, Paula. - Vai falar que você nunca pensou nisso! Eu via como você ficava todo feliz quando tinha que fingir que era namorado da Mel. - É o que os amigos fazem. E a Mel é maravilhosa, qualquer cara ficaria feliz de namorar com ela. Paula pareceu segurar o riso. - O que foi? - Escuta o que você tá falando, Gustavo. - Eu não... - Ou você sempre foi apaixonado pela Mélanie ou é simplesmente um idiota. Ou os dois, eu não sei. - Você é louca. - Beleza, você pode não acreditar em nada que eu falei, Gustavo. Mas, eu cansei de ver a minha irmã parada em casa, esperando por você. Eu amo você, garoto, de verdade, mas, tá na hora de você cair na real em relação à Mel. Ela não vai ficar esperando você pra sempre. Gustavo olha para Paula, sem saber o que falar. Sim, já tem um tempo que ele está confuso em relação a tudo, mas, nunca tinha ido tão profundo em seus questionamentos como Paula estava fazendo agora. Ele precisava... ele precisava... - Eu tenho que ir embora. - Não vai dormir aqui? - Não. - Não quer encarar a Mel? - Tchau, Paula. E obrigado pela paranoia. - A hora que você precisar, querido. Rapidamente, ele sai do apartamento, descendo as escadas quase tropeçando nos próprios pés. Gus-tavo quer ir pra casa, quer ligar para Pati, provando para si mesmo que o namoro dele consegue sobre-viver junto com a sua amizade com Mel. Que as duas coisas podem coexistir, que ele não precisa abrir mão de nada. Equilíbrio, era do que ele precisava. Era o que ele achou que tinha, ainda mais depois de um mês de namoro com Pati. Mas, agora, à medida que as coisas ficavam mais sérias com Patrícia, ele via que teria que ceder em alguma coisa, e essa coisa era Mel. Ele sentia que estava perdendo Mélanie, que ele gostava de ver como a única segurança da sua vida, algo que nunca falharia. A verdade era que ele não estava pronto para abrir mão de Mélanie. Nem de Patrícia. Droga.

25 de julho de 2012, quarta-feira

- Me conta tudo! Foi assim que Mélanie começou o dia. Sem nem um “bom dia” ou um “como você está?”. Não, nada disso. Quando Gabriela estava animada com alguma coisa, ela geralmente se esquecia da educação básica. Ela se assentou ao lado de Mélanie, preparada para escutar todo o relato da amiga. Mélanie não era boa nisso, mas, precisava, ao menos, começar a se acostumar com isso de falar da sua vida para os outros. Pelo visto, você precisa fazer isso quando quer fazer novos amigos. - Você tá de um jeito que parece que eu vou casar. - E você vai?

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- Não! Gabi, pelo amor de Deus, né? - Ah, sei lá, uai! Do jeito que você fala desse Júlio, eu não me surpreenderia se você aparecesse aqui hoje com um anel de noivado do tamanho da minha cabeça. No dia anterior, Mélanie se viu obrigada a conversar com alguém que não fosse Paula. Precisava de uma segunda opinião quanto ao que fazer com o convite totalmente inesperado de Júlio para se en-contrarem de novo. Gabriela era a pessoa mais indicada. Não podia nem sonhar em conversar com Gustavo sobre isso, estava fora de questão. Ela já sabia o que ele iria falar. Com certeza, iria surtar, ia xingar Júlio com todos os palavrões já inventados pelo homem e, depois, compraria chocolates para Mélanie. Bom, já estava na hora disso mudar. - Nossa, que exagero! - Esqueça o exagero, então! Me conta tudo, anda! - Ah, foi muito de boa. Nos encontramos no shopping, escolhemos o filme e fomos pro cinema. - Que filme vocês viram? - Aquele desenho novo da Disney. - Desenho?! Você vai num encontro com um cara e leva o menino pra assistir desenho, Mélanie? - Era a única coisa boa que tava passando, uai! - Tá, enfim. Como foi? Ele te beijou? Ele pegou na sua mão? - A gente só assistiu ao filme, Gabriela. - Ai, que chatice vocês dois! Não aconteceu nada? Mélanie sentiu as bochechas ficando vermelhas. Isso era tão quarta série! - Ahá! Aconteceu alguma coisa! O que foi? - Não foi nada! Meu Deus, Gabi, precisa desse escândalo todo? - Depende da sua resposta. Anda, fala logo! - Nada de mais. Ele foi me deixar em casa, aí, na hora de despedir ele... - Ele... - Me beijou. A gente se beijou. Quer dizer, ele me beijou. Eu não sei de mais nada... Gabriela começa a rir. - Olha pra você, toda crescidinha, mas, ao mesmo tempo, retardada como uma adolescente. - Prazer. - Mas, e aí? Vocês vão sair de novo? - Acho que sim. Ele ia ter que vir ao campus hoje, por causa daquele projeto dele. Aí, se desse tempo, ele iria passar aqui. - Hummm... - O que? - Você tá gostando dele, não tá? - Gabi, eu só saí com o menino uma vez! - É, mas, você saiu com ele antes. E, também pelo o que você me disse, você gostava dele, mas, não estava certa se queria namorar com ele. - Nossa, você presta mesmo atenção em mim. Tô impressionada. - Idiota. Mas, me conta, o que mudou agora? Mel dá de ombros, tentando achar alguma explicação plausível para todas as mudanças desse último mês. - Sei lá. Acho que faz parte dessa campanha que vocês estão fazendo de “Vamos tirar a Mélanie de casa” e tal. - Bom, parece que ela tá funcionando, né? - Tá muito cedo pra falar qualquer coisa, Gabi. - Deixa de ser medrosa, Mélanie! Vai viver a sua vida, filha. - A cada dia que passa, eu te acho mais parecida com a minha irmã. - É porque ela deve ser uma mulher ajuizada como eu. - Claro, porque é assim que eu sempre defino a Paula. Como a pessoa mais ajuizada do mundo. - Outra pergunta.

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- Fala. - E o seu amigo Gustavo nessa história toda? - Acho que tá na hora da gente ir trabalhar, não? Mélanie se levanta, mas, Gabriela é mais rápida e a puxa pelo braço, fazendo a amiga retornar para o seu lugar. - Sem essa de tentar fugir. E a gente tá com tempo. Pode começar a falar. - Olha, não tem o que falar. Eu nem conversei direito com o Gustavo nesses últimos dias, nada além do necessário, só pra saber se a gente tá vivo. E eu nem sei se ele tá sabendo que o Júlio voltou. - Você não contou pra ele? - Não. Eu acho que a Paula contou, aquela vaca. Mas, ela não quer me falar nada. Só disse pra eu ficar de boa. - Ótimo conselho. - Isso não é conselho. Isso é uma frase pronta que a gente fala pra calar a boca de alguém. - Ih, ficou nervosa, foi? - Nem vem com isso, porque foi você quem começou com essa bagunça. - Eu só abri os seus olhos para algo que, talvez, você ainda não tivesse visto - Gabriela responde, toda inocente. Mélanie só balança a cabeça. - Isso é idiota. Eu não tenho que ficar preocupada com o Gustavo acha ou deixa de achar. - Sabe o que isso tá parecendo? - O que? - Frase pronta pra calar a boca de alguém. - Ai, que saco, Gabriela. - Fala se não é? Olha, eu acho super legal você dar uma chance pro Júlio, tentar fazer a coisa fun-cionar. Você precisa disso, Mélanie. Mas, eu acho que você ainda tem tanta coisa mal resolvida com o Gustavo... - Você não sabe de nada, Gabi. - Eu sei de algumas coisas, sim. Faz o seguinte: por que você não liga pro Gustavo agora e fala com ele que você quer conversar com ele? - E pra que eu faria isso? - Uai, ele não é o seu melhor amigo? Ele tem que ficar feliz com a novidade, que você também tá namorando. - Eu não tô namorando. - Você tá de rolo, que seja. O Gustavo é o seu melhor amigo, como você sempre gosta de lembrar. Logo, ele tem o direito de saber o que tá acontecendo na sua vida. - Não tem, não! - Mélanie retruca, como uma criança teimosa. Gabriela dá de ombros. - Tudo bem. Na minha humilde opinião, tá parecendo que você tá tentando se esconder dele, mas, quem sou eu para falar alguma coisa, né? Bom, eu vou lá... fazer alguma coisa. Gabriela sai, dando um sorrisinho enigmático que Mélanie tem vontade de fazer desaparecer na base do tapa. Geralmente, ela não liga para as opiniões de outras pessoas, então, ela não conseguia entender porque esses comentários estúpidos de Gabriela sobre Gustavo estavam a incomodando tanto. Talvez, muito talvez (e era assustador pensar isso), porque houvesse um fundo de verdade nisso aí. Ela estava mal resolvida com Gustavo. Mel não se lembrava da última vez em que ficara mais de três dias sem ver o amigo, mas, era esse o mundo em que ela estava vivendo atualmente. Parecia que eles estavam... o que? Se evitando? É, talvez fosse isso mesmo. Que se dane. Era a hora da verdade, então. Que merda era essa? Estava com vergonha de ligar para Gustavo? De contar para ele o que estava acontecendo? O que estava pensando? Ele não era o seu melhor amigo? Pro inferno com isso. Mélanie pegou o celular e ligou para Gustavo. Dois toques mais tarde, ele atendeu. - Ora, ora! Que surpresa. - Pois é, quem é vivo sempre aparece. Onde você tá? - Trabalhando, uai. E você?

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- Trabalhando também. - E aí? O que você manda? Tinha alguma coisa errada. Intimidade é uma droga mesmo, né não? Depois de todo esse tempo junto de Gustavo, Mélanie podia falar como o amigo estava só de ouvir a voz dele pelo celular. A mesma coisa servia para mensagens de texto. Agora, ouvindo Gustavo falar com a aquela voz carregada de tédio e uma raiva muitíssimo mal disfarçada, ela podia ver que a confusão tinha aumentado. E que, pior, ele sabia sobre Júlio. Ah, Paula, sua vaca, dessa vez eu te mato... - Ahn... eu... você vai lá em casa hoje? - Não sei. Devo sair com a Pati hoje. - Ah, sair com a namorada, é claro. Mélanie se esmurrou mentalmente. O seu tom foi de brincadeira, mas, pelo atual estado de espírito, essa não era a coisa mais indicada para se fazer. O efeito foi imediato e Gustavo parou de falar. Isso era um saco. Desde quando tinha que medir palavras ou se preocupar com uma piada por causa de Gus-tavo? Eles já tinham passadi dessa há tanto tempo. - E você? Não tem nenhum plano pra hoje? - Talvez, eu não sei ainda. - Não sabe ainda? Nossa, essa sua agenda deve tá apertada mesmo, hein, Mel? - Gustavo, por que você tá sendo tão cavalo desse jeito? - Eu, cavalo? Não tô fazendo nada. Só tô te perguntando da sua agenda. - Você não tá perguntando nada. Gustavo, eu... - Mel, tá difícil de falar agora. Pode ser amanhã? - À noite? - À noite. A gente se fala. E desligou. Mélanie teve que se segurar para não jogar o celular na parede, de tanta raiva que estava sentindo. Se assentou pesadamente, a cabeça dando voltas. O que diabos estava acontecendo com os dois? Ok, Mélanie não queria entrar nessa de pensar a fundo no assunto, mas, viu que não tinha esca-patória. Se levantou e correu até o banheiro do laboratório, se trancando em um dos reservados. Ela precisava pensar. Toda a bagunça tinha começado com Gustavo namorando Patrícia. O problema nem era a Patrícia em si, mas, o que aconteceu a partir desse namoro estúpido. Mélanie achou, e ela suspeitava que Gus-tavo também teve o mesmo pensamento, que esse seria mais um dos famosos namoros de Gustavo, em que a menina aparecia, mas, logo ia embora. Elas não aguentavam a presença de Mélanie, por mais que eles insistissem que eram apenas amigos. O que aconteceu dessa vez, a grande surpresa, foi que Patrícia não apenas aceitou a amizade de Mel e Gustavo como também quis fazer parte disso, da família. E, pior, o próprio Gustavo tinha falado que agora a coisa era séria, que ele queria que desse certo. E estava dando certo. Em contrapartida, a amizade de Mel e Gustavo estava dando muito, muito errado. Mas, por que estava dando errado? Não, sério, sejamos racionais aqui. Mélanie não estava (eca!) apaixonada por Gustavo. Deus, não! Era apenas ciúme de amigo, só isso. Sentia falta de Gustavo, estava mais do que acostumada em ter o garoto ao seu lado a qualquer hora do dia. É, pelo visto, Mel estava tendo dificuldades em dividir Gustavo com outra pessoa. Não duvidava, nem por um segundo, da amizade que Gustavo tinha por ela. Mas, o grande problema era descobrir se essa amizade se manteria intacta agora que ele tinha cismado de namorar sério. Gustavo estava sofrendo com essa fase, digamos, social de Mélanie. Isso provava que ele também sentia falta dela. Tá, mas, e daí? O que eles fariam agora? Se eles continuassem nessa, de serem melhores amigos pra sempre, os namoros de Gustavo nunca dariam certo e Mélanie voltaria a assistir vespas assassinas gi-gantes no sábado à noite. A não ser que... bom, não tinha outra saída. Mel sabia o que Paula achava. Que ela e Gustavo deviam dar o próximo passo. Na verdade, o próximo passo que Mélanie queria dar era um chute na cara de Paula por falar tanta idiotice, mas, sejamos nobres. O resumo da ópera é que Mélanie tinha que resolver sua vida com Gustavo. Ela não podia ficar com raiva dele por estar namorando, e ele não podia ficar com raiva dela por estar, como dizem, começando a viver a vida. Se continuassem nisso, era certo de que a confusão aumentaria. E Mélanie tinha certeza que ela e Gustavo

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não seriam o típico casal de amigos que, à certa altura, acabam confundindo os sentimentos e decidem embarcar em um relacionamento que nunca, em hipótese alguma, daria certo. Porque era isso que aconteceria caso ela e Gustavo fossem... Ah, que ótimo. Agora, eu tô pensando no “e se...”. Era tudo que Mel não podia fazer. Não havia “e se...” nesse caso. Era só amizade. Nada mais. Mel e Gustavo teriam que lidar com isso como adultos. O que eles não eram, mas, enfim. Mel olha as horas no relógio do celular e vê que já passou do horário de começar a trabalhar. Ela se levanta, dá uns três tapas no rosto, pra acordar e tirar a mente desses pen-samentos ridículos e volta para a sua sala. Se assenta, pronta para ler os resultados das últimas amostras que chegaram, quando o celular toca indicando uma nova mensagem. “Amo meu chefe. Ele deixou eu sair um pouco mais cedo. Posso passar aí pra te ver?” Júlio, seu fofo. Mélanie não estava com cabeça para encontrar ninguém. Na verdade, queria ir pra casa, deitar no chão em posição fetal e ficar pensando em como ela conseguia transformar tudo em uma terrível bagunça. Mas, a filosofia agora era outra, certo? “Claro! A gente pode se encontrar no café?” “Com certeza! E como está o seu dia?” “Cheio de amostras de vírus. Uma lindeza. E você?” “Cheio de papéis. Não sei qual de nós dois está pior.” “Eu, com certeza! A qualquer momento, eu posso pegar alguma doença pré-histórica totalmente des-conhecida e o máximo que pode acontecer com você é cortar o dedo com algum papel.” “Cortar o dedo com papel é pior que doença pré-histórica, acredite. Existem vacinas pra doenças pré-históricas.” Mélanie está digitando a resposta, uma frase bastante inspirada, quando outra mensagem de Júlio chega. “Eu tenho que voltar pra minha papelada. Mas, te vejo hoje à tarde, sem falta e sem atrasos, prometo. Cuidado com os seus vírus aí.” Com um sorriso no rosto, meio bobo e meio triste, tudo ao mesmo tempo, Mel apaga a mensagem que estava escrevendo e opta por uma simples despedida. Coloca o celular de lado, na esperança se-creta de que ele toque de novo, mas, dessa vez, com alguma mensagem de Gustavo, pedindo desculpas por ter sido tão estúpido. O dia passa lentamente e o celular de Mel só vai tocar de novo quando Júlio liga, falando que já está na porta do seu laboratório, esperando por ela. Decidida a não perder o precioso tempo dela com Júlio pensando em Gustavo, Mel enfia o celular na bolsa e vai se encontrar com o seu quase-namorado-o-que-quer-que-seja-que-isso-signifique. Andando rapidamente, ela só consegue ver Gabriela de longe. A amiga dá um sorriso de incentivo pra ela e Mel se sente mais aliviada. Responde com outro sorriso, esperando fazer tudo certo dessa vez. Vai ser bom deixar toda a bagunça de lado por algumas horas.

Gustavo estava tentando se concentrar, de verdade. Mas, era muito difícil prestar atenção no filme que Patrícia tinha escolhido para eles assistirem naquele começo de noite. Ele tinha ido direto do serviço dele pra casa dela e tentava, sem muito sucesso, tirar sua cabeça do mundo da bagunça e aproveitar o tempo com a sua namorada. - Então, só me explica de novo quem é esse menina. - Ela é a irmã da principal. A que foi sequestrada. - Ah, tá... sequestrada por quem mesmo? - Pelo chefe da principal. Ela trabalha na polícia, esqueceu? - Patrícia olhou para ele - Gustavo, onde que você tá? - Como assim? Eu tô aqui, do seu lado, uai! - Não é isso. Eu sei que você tá aqui do meu lado, cabeção. Eu tô falando daqui. Patrícia coloca o dedo na testa de Gustavo, com um olhar cheio de indagação. O garoto, por sua vez, fica tentando achar as palavras certas, mas, nada sai. Pati continua olhando para ele e, por fim, se levanta e desliga a televisão. Tecnicamente, os dois estão sozinhos no apartamento, porque o pai

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de Pati ainda não voltou do trabalho e a mãe dela foi assistir novela no apartamento da vizinha, para, segundo ela, dar privacidade ao casal. O Gustavo normal estaria aproveitando essa oportunidade como ninguém, é claro. O fato dele estar se sentindo uma ameba em uma hora dessas só mostrava o quanto a coisa era grave. Mas, ele não sabia o que falar com Pati. - Eu tive um dia cheio no trabalho, só isso. - Gustavo, o que eu já te falei sobre as suas tentativas de mentir pra mim? Ele dá um suspiro cansado. - Que eu não sou bom nisso. - Exatamente. E então? O que tá realmente acontecendo? Patrícia volta a assentar ao seu lado, olhando com paciência e carinho pra ele. Gustavo se pergunta se vai valer a pena entrar nessa discussão com Pati, se vai ser bom se ele falar que o motivo de toda essa preocupação é Mélanie. Na verdade, é o que ele sente por Mélanie. Ele não sabe se Patrícia vai entender o que ele tem pra dizer. Provavelmente, ela vai pensar que Gustavo está praticamente confessando que prefere estar com outra menina. Não como namorada, mas, simplesmente como amiga. Porque era isso que Mélanie era. Sua melhor amiga do mundo. Da vida. É, não tinha como falar isso sem soar esquisito. Ele realmente gosta de Patrícia, de verdade. Adora es-tar com ela, mas, está tendo um mau momento por ter que ficar tanto tempo longe de Mélanie. E, pior, por saber que ela saiu, foi conhecer outras pessoas e, no meio disso, outro cara apareceu na vida dela. Por muito tempo, Gustavo foi o único cara na vida de Mélanie. Era quem saía com ela, quem estava com ela em todas as horas. Claro, ciúmes. Isso já era mais do que evidente. Mas, que tipo de ciúme era esse. Será que era só ciúme de amigo ou havia algo a mais nisso daí? Paula tinha martelado essa ideia tão fundo em sua cabeça, que agora, Gustavo estava tendo dificuldades em definir tudo. E ele gostava de coisas definidas. Tudo isso passou em sua cabeça em uma questão de segundos, enquanto encarava o olhar de Patrícia. Sabia que ela estava esperando por uma explicação e era direito dela saber o que de fato estava aconte-cendo. Gustavo esperava que ela mostrasse o bom senso e a cabeça no lugar que vinha mostrando ao longo desse tempo de namoro. Beleza, era hora de colocar as cartas na mesa. Nossa, que gíria velha... - Eu não queria falar sobre isso com você. - Por que não? - Tô com medo de você não entender muito bem. Dessa vez, é Patrícia que dá o suspiro cansado. - É a Mélanie, não é? - É - Gustavo admite, relutante. - O que aconteceu dessa vez? - Eu tô... quer dizer, a gente tá... estranho. - Defina “estranho”. - A gente não tá conseguindo lidar bem com as novidades, sabe? E a Paula andou falando demais... - O que ela falou? - Não vem ao caso agora. O problema é que... sei lá qual é o problema. A gente tá diferente um com o outro e eu... bom, eu não tô gostando. Parece que a Mel me esqueceu rápido demais. - Gustavo, ela não esqueceu de você. Isso tudo é porque ela não tá saindo mais com a gente? - Também! E agora que o Júlio voltou pra assombrar a vida dela... - Júlio? Quem é Júlio? - Ah, é um ex-qualquer coisa da Mel. Ele surgiu assim, do nada. Eles saíram ontem e a Mel não me falou nada. Patrícia olha pra frente, parecendo pensativa. Quando volta a falar, ela está olhando para o chão. - Gustavo, eu nunca encuquei com a sua amizade com a Mélanie. Eu sempre soube o quanto isso é importante pra você. Mas, sinceramente, tá sendo complicado entender agora. Gustavo joga a cabeça pra trás, esgotado demais. - Eu falei que você não ia entender muito bem. - Pois é, você tinha razão. Você tá com ciúme da Mel...

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- Não tô. - ...mas, eu já não sei se isso é ciúme de amigo ou, sei lá, se isso é só mais uma prova de que você gosta dela. - É claro que eu gosto da Mélanie, Pati! Ela é a minha melhor amiga. Mas, é só isso. Eu não sei mais quantas vezes eu tenho que falar isso, meu Deus... - Se ela é só sua melhor amiga, por que você não fica feliz por ela estar seguindo com a vida dela? - Eu me preocupo com ela, uai! - Não, isso não é preocupação. Isso é ciúme. Primitivo e irracional ciúme. - Patrícia, eu... Patrícia respira fundo, mordendo o lábio. Gustavo está à beira do desespero, tentando consertar tudo. Precisa se arrumar com Patrícia, mas, também não consegue parar de pensar em como sua vida com Mélanie está uma droga. Mas, Gustavo é um desastre nisso de consertar coisas. Ele sempre acha que está tudo bem até o momento em que a bomba explode bem na sua cara. Freud culparia os pais do garoto por isso e Gustavo concordaria, com certeza. - Gu, eu gosto muito de você. De verdade. - Eu também gosto, Pati, e eu... - ...Mas, é muito ruim sair com você, sabendo que a sua mente tá em outro lugar. Tá com a Mélanie. - Não é assim, Pati. Ela dá um sorriso triste. - Então, me prova. - O que você quer que eu faça? Eu quero muito que o nosso namoro dê certo, você é maravilhosa, Pati. Parece que Patrícia nem ouviu essa súplica de Gustavo. Ela olha firme para ele e, depois de alguns segundos de um silêncio carregado, ela fala: - Eu gosto muito da Mel, mas, eu não quero ficar disputando a sua atenção com ela. Então, se eu te pedisse para escolher, eu ou a Mel, quem você escolheria? Nesse momento, o silêncio se torna ainda mais pesado, quase físico. Gustavo só conseguia ouvir o seu coração batendo, mais nada. - Mas, você não me pediria isso, né? Patrícia abaixa a cabeça e não responde. - Tipo, a Mel é praticamente a minha família. Eu não posso... - Acho que você acabou de escolher, Gustavo. - Não! Patrícia, olha pra mim, por favor. Gustavo faz Patrícia olhar pra ele, a puxando pelos ombros. A garota lhe devolve um olhar devastado e Gustavo sente que seria capaz de pular pela janela, de tão imbecil que ele é. Por que ele tem que ser tão estúpido? Ou melhor, por que a vida, de repente, ficou tão complicada? - Eu não... eu não gosto da Mélanie desse jeito. Eu tô falando sério. Patrícia balança a cabeça em negação. - Desculpa, mas, dessa vez, tá difícil de acreditar, Gustavo. Ela se levanta e caminha até a porta. Gustavo já entendeu tudo. Até alguém lerdo como ele já percebeu que todas as chances de se explicar não existem mais. Ou, mesmo que existissem, elas não valeriam de muita coisa. Se ele mesmo está confuso, como vai conseguir convencer qualquer pessoa, ainda mais alguém tão esperta quanto Pati? Se sentindo o maior imbecil miserável do mundo, ele se levanta e caminha até a porta. Tenta ensaiar alguma coisa, alguma frase que mostre pra Pati o quanto ela está errada em achar que existe algo mais entre ele e Mélanie, mas, sua inspiração é zero. Pati está olhando para o chão quando ele se aproxima. - Eu... - Não precisa falar nada. Eu devia ter visto antes. - Não tem nada pra ser visto, Pati. - Ah, Gustavo... - ela passa a mão pelos cabelos do garoto - ... você é mesmo muito idiota. Gustavo só concorda. É a verdade, não é? - A gente se fala? - ele pergunta, inseguro.

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26 de julho de 2012, quinta-feira

Tô cansado dessa merda. É o primeiro pensamento de Gustavo quando ele começa a subir as escadas do prédio de Mélanie. Ele mal conseguiu trabalhar durante o dia. Na verdade, tudo tinha começado com a noite NÃO dormida, por simplesmente não conseguir parar de pensar no que havia acontecido com Patrícia e com Mélanie. Por isso, já no final do dia, era óbvio que ele estava se sentindo um caco. Mas, não dava mais para adiar a conversa. Precisava resolver a sua vida com Mélanie e precisava ser hoje. Gustavo não fazia ideia do que aconteceria. Ele tinha treinado, pensado em como começar a con-versa, mas, nenhuma ideia boa surgiu. Então, o jeito seria encarar logo... o que quer que fosse. Ele não tinha muita certeza do que iriam conversar, nem como lidariam com tudo isso. OK, o melhor jeito era entrar logo de uma vez e resolver a parada. Respirando fundo (e pensando em quão ridículo é toda essa situação, já que ele nem se lembra da última vez em que ficou nervoso ao entrar no apartamento de Mel), Gustavo abre a porta e entra. A luz da sala está acesa, mas, o apartamento parece deserto. - Oi, cheguei! - ele grita. - Já tô indo. A voz de Mélanie parece vir do quarto dela. Gustavo se assenta, nervoso demais para pensar em qualquer coisa, e espera a amiga chegar. Eu vou deixar ela falar primeiro. Não, eu vou falar primeiro. Eu tenho mais coisa pra falar. Droga. Talvez fosse melhor se eu... - Oi. Mélanie está logo ali, no corredor. São seis horas da tarde, mas, ela já está de pijama, usando a mesma blusa de moletom gigante. Gustavo sabia que essa blusa era do pai de Mel e por isso ela gostava tanto de usá-la. Obviamente, o cabelo dela estava preso em um coque alto, que mal conseguia segurar toda aquela multidão de cachos. Gustavo se lembrou do dia em que conheceu Mélanie. Não, não é hora de ser sentimental, homem! - Oi. - Oi - ela repetiu, se assentando de frente para Gustavo. - Cadê a Paula e o Dani? - Saíram. Eu mandei a Paula sair, senão a gente não ia ter paz pra conversar. - É verdade, nem tinha pensado nisso. Silêncio constrangedor. Beleza, e agora? Eu faço o que? - Então, você queria conversar... - É, eu queria mesmo. - Fala, então, uai! - Você tá estranho. - Eu tô estranho? - A gente tá estranho, que seja. Queria ver o que tá acontecendo pra gente resolver de uma vez. - Por que você não me contou do Júlio? Sinal de alerta. Não era assim que Gustavo tinha planejado entrar no assunto, mas, simplesmente escapou. Mélanie olhou para ele com uma expressão dura, mas Gustavo nem se moveu. - Eu não sei porque eu não contei. - Não sabe? Você ficou com medo de alguma coisa? De eu não gostar, de eu dar, sei lá, uma crise de

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- Não, acho que não. - Certo. Bom, eu... - Tchau, Gustavo. Não há mais nada para Gustavo fazer ali. Ele se aproxima de Pati, dá um rápido beijo na testa da garota, murmura um pedido de desculpas e sai rapidamente. Atrás dele, a porta se fecha do jeito mais discreto possível. Gustavo desce as escadas se sentindo o cara mais miserável do mundo.

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ciúme? - Que é isso que você tá fazendo agora? - Eu não tô... - Gustavo se calou para reformular a frase - Não importa o que eu esteja fazendo. O problema é que você não me contou. Por que não me contou que ele tinha voltado? - Eu já disse que não sei. Por que isso é tão importante? - Porque eu sou seu melhor amigo. Supostamente, a gente tem que contar tudo um para o outro. - Tá, beleza. O Júlio voltou. Tá feliz agora? A gente saiu na segunda, na terça e ontem. Só não saí com ele hoje de novo porque eu queria ver você. E o que mais eu não te contei? Ah, sim, a gente já combinou de se encontrar de novo no final de semana. Ele continua o mesmo cara legal de sempre, um fofo. O que mais você quer saber? E o sarcasmo pingava de cada palavra de Mélanie. Dava pra ver que ela estava falando sério, mas, mesmo assim, seu tom era de desafio, praticamente empurrando Gustavo para um combate verbal. Ele, por sua vez, queria muito ser o maduro da história toda, mas, não tinha jeito. Gustavo estava tão nervoso, com tanta vontade de esclarecer tudo, que ele acabou entrando no jogo. - Vocês tão namorando? - Tem algum problema se a gente estiver namorando? - É porque é no meu ombro que você vai chorar depois que der errado, de novo. Ia ser bom se você já tivesse me deixado avisado. - Você é um idiota, Gustavo. Não vai dar pra conversar com você assim. - Eu não tô te entendendo, Mel. Você nem gosta desse cara! - Você ainda tá vivendo no passado. - Ah, sim! Então é com a Mélanie do futuro que eu tô falando agora? A Mélanie social, madura e que não precisa mais de mim, certo? Mélanie se levanta, o rosto duro de raiva. Pro inferno com isso. Gustavo não estava nem ligando. - É melhor você ir embora antes que eu comece a te socar. Gustavo se levanta também e puxa Mélanie pelo braço. Surpresa, a garota logo se solta e empurra o amigo. Mas, Gustavo está nervoso demais, chegando àquele ponto perigoso em que ele não consegue mais raciocinar. - Qual é o seu problema? - Mel pergunta - Você tá namorando, tá feliz da vida com a Patrícia. O que você quer que eu faça? Fique em casa, sentada, esperando você aparecer pra gente assistir a algum filme repetido? - Eu não tô mais com a Patrícia. Mel parece surpresa. - Como assim? - É, Mélanie. Ela me fez escolher e, pelo visto, eu não fiz a escolha certa. - O que?! Você terminou com ela por minha causa? - Não, Mélanie! - Gustavo responde, quase gritando - Ela terminou comigo por sua causa! - E você quer que eu faça o que? Peça desculpas? Foi você quem disse que nada ia mudar! - Então, agora a culpa é minha? - Tudo mudou depois que você começou a namorar, Gustavo! - Mélanie fala, em tom de acusação. - A culpa é da Patrícia, então? - Não tô falando isso, merda! Não era pra estar acontecendo nada disso! Por que você terminou com a Patrícia? - Eu já disse que foi ela quem... - Não, Gustavo! Por que você terminou com a Patrícia? Gustavo para de falar e apenas olha para Mélanie. A garota, que sempre teve o rosto tranquilo e de boa com a vida, tem uma expressão dura e impaciente. É difícil para Gustavo ver Mel desse jeito, com raiva dele. Ele também está com raiva. Com raiva dele mesmo, de Mélanie, de Patrícia, do mundo inteiro! Mas, não dava pra escapar agora. Ele precisava resolver essa situação absurdamente ridícula e isso co-meçava com a resposta certa à pergunta de Mélanie. - Ela acha que eu gosto de você.

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- E? - E o que? Não tem nais nada! É isso, uai! Não importa o que eu fale, ela continua achando que eu gosto de você e não dela. - E você não falou nada? Não disse que é mentira, que a gente é só amigo? - Eu tentei, mas, ela não me escuta. Parecia que Mélanie ia falar alguma coisa, mas, ela desistiu no meio do caminho. Gustavo viu que era a sua vez de falar alguma coisa. - E você, hein? - O que tem eu? - Você nunca gostou da Patrícia. - Para de viajar, Gustavo. Eu gostei dela, sim. Tanto que eu não tô entendendo porque vocês termi-naram. - Não vou entrar nisso de novo - ele responde, se afastando. Mélanie vai atrás. - Ei, não vem com essa de fugir da situação, Gustavo! Você é mestre em fazer isso, mas, agora não. - Eu não tô fugindo de nada. - O que foi que aconteceu? De repente, você descobriu que, sei lá, gosta de mim? - Não! Mélanie, pela milésima vez, a gente é só amigo! Eu amo você, mas, como minha amiga. - Ótimo, eu também! Então, por que toda essa confusão? Silêncio de novo. Gustavo, mesmo nervoso do jeito que estava, entendeu o que Mel queria dizer. Se eles eram só amigos, nada além disso, toda essa bagunça não fazia sentido nenhum. Tentando se acal-mar, e mal acreditando nas palavras que estão pra sair da sua boca, ele fala: - Por que a gente nunca tentou nada? Mélanie faz cara de confusa. - O que? - É isso que você queria ouvir? O que todo mundo queria ouvir, não é? Por que a gente nunca tentou nada? - Porque não tinha nada pra tentar, uai! A gente é amigo, você mesmo disse que... - Não, Mel, vamos parar de falar isso, tá legal? Vamos falar sério agora! Você gosta de mim? - Não. Mélanie sempre curta e grossa, mas, dessa vez, Gustavo não ia se dar por vencido. Ele se aproxima da garota. - Tem certeza? - Tenho certeza. É você que parece que tá confuso. - Eu não tô confuso com nada. - Então por que você tá na minha casa e não tentando voltar com a Patrícia? - Porque ela não quer mais olhar na minha cara. Por sua causa. - Eu não vou pedir desculpas por ser sua amiga, Gustavo. Você e essas suas namoradas... elas nunca gostaram de mim. A gente devia ter previsto isso, que ia chegar um dia em que você ia ter que escolher. Gustavo não podia acreditar no que estava escutando. - É tão surpreendente assim que eu tenha escolhido você? - Sinceramente? É, sim. Eu sou sua amiga, Gustavo. Não sua namorada, não alguém com quem você vai se casar e ter uma família. De tudo o que Mélanie podia ter falado, nada doeria mais do que essa última frase. Gustavo ficou tão abalado que ele temia ter transparecido isso, em um momento em que ele não queria mostrar nenhu-ma fraqueza. Mélanie, sua melhor amiga do mundo, estava ali, na sua frente, falando que o futuro da amizade deles não contava pra muita coisa, chegando quase a ser inexistente. - Você tá falando sério? É isso mesmo que você pensa... que você pensa da gente? Que eu vou te trocar por qualquer garota que eu conhecer? - Não foi isso que você fez com a Patrícia? - ela responde, com a voz carregada de raiva - Você ten-tou conciliar as duas coisas e, no meio tempo, queria que eu ficasse trancada em casa, esperando você voltar. Não era assim?

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- Eu terminei todos os meus namoros por sua causa, Mélanie. - E eu nunca saí com ninguém por sua causa. Isso significa o que? - Não sei. - Talvez seja por isso que a gente nunca tentou nada. Porque a gente não sabe de nada. - Ou porque você tenha medo de tudo. Mélanie olha para Gustavo. Ele sabe que esse tópico não é fácil de ser tratado com Mélanie. Ela nunca foi a pessoa mais tranquila do mundo quando o assunto era namoro, relacionamentos. Ela gostava de certezas, coisa difícil de se encontrar quando você gosta de alguém. Gustavo se sentiu ainda mais estú-pido, quase um sádico ao jogar a fraqueza de Mel na cara dela desse jeito. Mas, era um caminho sem volta desde que eles resolveram que era hora de ajeitar as coisas. Gustavo, porém, achava que a coisa toda estava ainda mais na merda do que no início. - Se for pra gente continuar assim... - ela começa a falar, em um sussurro. - Eu também acho, viu? Eu também acho - ele retruca, já não se preocupando em parecer um grosso imbecil - Então, como vai ser isso? A gente não vai se ver mais? Vai ser tipo um, sei lá, divórcio? - Você é um idiota, Gustavo. - Uai, Mélanie, é você que não decide o que você quer! Ou a gente vira só dois conhecidos ou a gente tenta alguma coisa, porque, de acordo com o mundo, não dá pra ter uma merda de um meio termo nisso. - Vou preferir o divórcio. Eu não lembrava de você ser tão estúpido desse jeito. Pode ir embora agora. Mélanie caminha de volta pelo corredor e Gustavo ouve a porta do quarto dela batendo com força. Não há mais nada para falar. Com raiva, mas, mais triste do que nervoso, ele sai do apartamento e deixa as chaves na fechadura. Pelo visto, não ia precisar mais delas.

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27 de julho de 2012, quinta-feira

Quando Mélanie finalmente chegou à tal boate, o primeiro impulso dela foi de dar meia volta e sair correndo de lá. Ela detestava boates. Já tinha ido algumas vezes com Gustavo, mas, nunca teve paci-ência para suportar o barulho, o povo bêbado e os caras que ficavam tentado passar a mão em você quando você se espremia entre a multidão para chegar ao banheiro. Era nojento. Mas, Mélanie não pa-rava de surpreender a si mesma. Cá estava ela, prestes a entrar em uma boate. Qual é o meu problema? Mas, era o que ela estava querendo. De verdade. Por uma noite, ela seria como Gustavo, que fugia para qualquer lugar quando alguma coisa saía errado. Era comum ele ir para o apartamento de Mélanie depois de ter uma discussão com os pais, ou quando ele estava simplesmente precisando descansar. Já fazia bastante tempo que ele não ia em boates... De repente, Mélanie se dá conta que passou os últimos minutos pensando no que Gustavo faria. Não, hoje não! Nada de Gustavo! Nada de bagunças, coisas mal resolvidas, brigas idiotas. Ela queria se divertir, mesmo que achasse improvável que isso aconteces-se em um lugar desses. Queria esquecer, tal como Gustavo sempre fazia. Graças a Deus pelos amigos malucos que Mel tinha. Ela sabia que seus colegas de faculdade costuma-vam se encontrar toda sexta-feira para ir em algum lugar, alguma balada qualquer. Claro que Mélanie nunca ia e, por isso, dá pra imaginar a surpresa de todo mundo quando ela respondeu ao convite na rede social da turma, falando que iria à tal boate. Ninguém acreditou, ela insistiu, marcou a carona e, agora, ela já ia entrando pelos corredores escuros da boate. Estavam na Savassi, em uma parte do bairro que Mélanie não se lembrava de já ter visitado antes. Bom, não importava. Era tempo de novidades, não era? - Mel, pode se assentar aqui com a gente. Laura, a baladeira oficial da turma, chamou Mélanie para se assentar perto dela. Era bem claro que ela tinha adotado Mélanie pela noite, super disposta a mostrar para a garota do interior como as noitadas de Belo Horizonte funcionavam. Por mais que Mel falasse que já tinha ido à boates antes, Laura conti-nuava se fazendo de desentendida. Mélanie acabou não se importante muito. A sua filosofia do dia era

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aproveitar tudo e perguntar depois. O melhor estilo dane-se da coisa. - Você deu sorte, Mel - Laura foi falando assim que Mélanie se assentou - Hoje o bar tá com promo-ção. Cerveja de graça e os drinques estão com um super desconto. Tinha isso também. Mélanie não bebia uma gota de álcool desde o desastre da ressaca de 15 anos. Mas, à merda com isso. - Ótimo! É tudo que eu tô precisando agora. - Que isso, hein, Mel?! - Laura fala, rindo - Beleza, a gente pode beber alguma coisa agora, aí depois, pista de dança. - O que vocês quiserem. Laura faz o pedido e logo Mel está empurrando uma garrafa inteira de cerveja garganta abaixo. Ela tenta não parar pra pensar no que está fazendo. Simplesmente bebe e, quando Laura vê que a cerveja da colega já terminou, pede outra. Dessa vez, Mélanie tem que fazer um esforço maior, alternando os goles com aquela pizza que parece deliciosa, mas, na boca de Mel, tem gosto de borracha. A vida parece ter gosto de borracha. Nossa, nem Adele me aguentaria agora. Claro, teria sido muito mais fácil ter aceitado o convite de Júlio para sair com ele, ou apenas ter ficado em casa, assistindo Titanic e se afogando em um balde de brigadeiro, como deve ser feito em ocasiões como essa. Mas, Mélanie realmente não queria ficar deprimida. Ou, pelo menos, não ficar deprimida em casa. Paula queria conversar, saber o que estava acontecendo, e Mélanie não estava com saco para isso. Já sabia o que Paula ia falar. Que ela devia ia atrás de Gustavo, que eles tinham que se resolver, blábláblá. Mélanie já estava se sentindo um lixo sem precisar que sua irmã a lembrasse disso. - Mel, quer experimentar esse coquetel de maracujá? - Claro, por que não? Daí, o jeito foi falar com Paula que ela ia sair com Júlio. Precisava descansar a cabeça, foi o que Mel disse. Na verdade, ela iria sair com Júlio na noite de sábado, algo sobre um festival de música que ia acontecer na Praça da Liberdade, Mel não se lembrava. Mas, até lá, ela ainda tinha muita culpa pela frente. Ao seu redor, a galera conversava animada e Mel percebeu que logo eles iriam pra pista de dan-ça. Seria ótimo se ela já pudesse estar bastante bêbada até lá. Terminou de engolir a segunda garrafa de cerveja. O coquetel não demorou para sumir também. - Ei, tem jeito de me arrumar mais um desse daqui? - Mel, você já tá falando embolado. Vai com calma. - Eu tô bem, sério. Mas, me arruma mais um desse - ela fala, levantando o copo. Mélania está ciente de que Laura está olhando com preocupação pra ela. É compreensível. Mélanie é o tipo de garota que só enche a cara de café, então, é esquisito ver a quietinha da turma entornando todas daquele jeito. Bom, não era hora de ligar pra isso, Mélanie pensou enquanto bebia o segundo copo de coquetel. Ou o terceiro, ela não lembrava mais. Claro que não demorou nem um pouco para que ela começasse a sentir a cabeça mais leve. Ótimo. Tinha atingido o objetivo, de esquecer as complicações nas quais ela tinha se metido e que tinham lhe custado o seu único e melhor amigo. O riso agora era mais fácil. Mélanie já nem se lembrava direito das coisas. Era exatamente o que ela precisava.

Se seus primos o vissem agora, a primeira coisa que eles falariam seria: seu canalha. Porque era exatamente assim que Gustavo estava se sentindo nesse momento. Um canalha. Um cana-lha de marca maior. Mas, fazer o que? Sofrendo de dor de cotovelo em casa é que não dava, né? Depois de ter passado a pior noite da sua vida, Gustavo sabia que precisava fazer alguma coisa. E, já que ele já estava sendo um completo idiota, por que não tentar subir na escala de idiotice e convidar uma colega de trabalho para pegar um cinema? Pois é, quando você achava que não havia nada mais imbecil para acontecer nessa vida, Gustavo Macedo aparecia e provava o contrário. E olha que a Carolina era bonitinha, hein? Gente boa, riso fácil, cabelo grande e liso... Sim, valia a pena o risco. E Gustavo sabia, aliás, toda a agência sabia, que ela tinha uma quedinha por ele. Por ele e por outros três funcionários, é verdade, mas, na hora do desespero, quem liga? Graças aos céus, ela aceitou o convite de Gustavo para sair com ele. Ela não pareceu surpresa nem perguntou o motivo

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desse convite súbito. Carolina agiu como se sempre soubesse que esse convite aconteceria, mais cedo ou mais tarde. De modo que, naquele final de noite, lá estavam os dois, assistindo a um filme ridículo. Gustavo tinha cometido o erro de deixar Carolina escolher o filme. Mas, não importa. Mesmo que fosse o melhor filme do planeta, ainda assim ele não conseguiria prender a atenção de Gustavo. Verdade seja dita, ele estava sofrendo. Era uma dor constante, como se ele o Mike Tyson tivesse lhe dado um soco no peito e, depois, sambado em cima. Claro, como se não bastasse toda essa dor, ele ain-da precisava imaginar Mike Tyson sambando. Dava pra ficar pior que isso? Gustavo duvidava muito. Discretamente, ele olha para o relógio e quase cai da cadeira quando percebe que se passaram ape-nas minutos. Ele ainda tem sabe-se lá quantas horas de filme ruim pela frente. Ao seu lado, Carolina parecia prestar atenção no filme. Gustavo pensou se ele deveria fazer alguma coisa. Pegar na mão dela, abraça-la, vai saber. A vontade de fazer qualquer uma dessas coisas era zero, é claro. Mas, ele tinha convidado a garota para ir ao cinema. No mínimo, ela devia estar esperando alguma coisa. Bom, que continue esperando. Dane-se. Gustavo permanece jogado na cadeira do cinema, curtindo uma terrível fossa, que era exatamente o que ele vinha tentando evitar com essa saída estúpida com uma garota com quem ele nem conversava direito. Ele merecia ser chamado de canalha pelos seus primos. Imbecil também. Sem dúvida nenhu-ma, um completo idiota. A quem ele queria enganar? Estava um caco, se sentindo destruído. O que antes nem passava na sua cabeça, acabou acontecendo. Ele havia perdido sua estabilidade. Porque era isso que Mélanie representava pra ele. E, em uma tacada só, Paula e Daniel agora também estavam fora do seu alcance. Por causa de uma série de erros estúpidos, ele tinha perdido a sua família. Sua vontade era de se jogar no chão. Que se exploda essa droga desse filme. Essa droga desse cinema. Essa droga dessa vida! Mas, ele não saiu do lugar. Não podia, uai! E a pobre coitada da garota ali, ao seu lado? Ah, que se exploda também. Gustavo sabia que estava sendo completamente irracional. Foi ele quem pediu o divórcio, não foi? Bom, agora lide com isso! O problema é que ele não queria lidar. Na verdade, o que ele queria era ir para o apartamento de Mel, implorar pelo perdão dela, brincar com Daniel, tomar chocolate quente feito por Paula e dormir no sofá. Era pedir demais? Mas, toda essa confusão o impedia de sair do lugar. Esse terrível mal entendido com Mel. Como expli-car isso? De verdade. Falemos sério agora. Como Gustavo podia ter deixado isso acontecer? Confundir as coisas desse jeito? Deixar Mélanie jogada daquele jeito, fazendo com que ela se sentisse esquecida? Que merda de amigo ele era? Claro que ele gostava de Mélanie, amava estar com ela. Então, como ele tinha conseguido transformar tudo isso em uma bola de neve que chegou e arrasou com tudo? Tá bom, Mélanie também tinha que ter contado pra ele sobre Júlio, mas, ele tinha que ter se tocado para o que estava acontecendo. Mélanie estava achando um jeito de seguir com a vida dela, e Gustavo sofria por achar que agora, mais do que nunca, não faria parte disso. Estava assim, no meio de uma série de pensamentos de autocomiseração e puro ódio, quando sentiu o celular vibrando em seu bolso. Pegou o aparelho e viu que era o número da casa de Mélanie. Oi?! Como assim? E o divórcio? Por três terríveis segundos, Gustavo fica sem saber o que fazer. Toda a desgraça do dia anterior passou por sua mente como um raio e, por fim, ele encerrou a chamada. Enfiou o celular no bolso da calça novamente e, dessa vez, estava nervoso demais para pensar em qualquer coisa. Será possível que Mélanie estivesse ligando? Já eram mais de onze horas da noite. Conhecendo Mel, ela já devia estar dormindo. Ou então saído com Júlio, maldito seja. Não, mais do que isso, Gustavo conhecia Mel o suficiente para saber que ela era teimosa como uma mula. Não cedia nunca. Se, em algum mo-mento da vida deles, houvesse uma reconciliação, ela teria que partir de Gustavo. Ok, eu sou mesmo um patético imbecil e carente. O celular começa a tocar de novo. Mas, pelo amor de Deus, gente... O mesmo número, uma chamada da casa de Mel. Alguma coisa não tá legal. Gustavo, se sentindo um fraco por ir contra o código dos caras rejeitados (de desligar a merda do celular e mandar a garota pro inferno), ele se abaixa e atende o celular, sussurrando. - Oi? - Gustavo, a Mélanie tá com você? Paula. Claro, o que ele estava esperando? Que fosse Mélanie ligando para pedir desculpas? Por favor...

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- Ahn... oi, Paula. Ela não tá comigo, não. - Ah, que merda! Eu vou matar aquela menina, Gustavo! Tem certeza que ela não tá com você? - Claro que tenho. A gente meio que... não importa. O que aconteceu? Algum lado do cérebro de Gustavo registra que Carolina está olhando com raiva pra ele, talvez por ele não estar prestando atenção no filme nem tentando se aproximar dela de alguma maneira, mas, esse mesmo lado do cérebro manda ela ir se danar. Paula parece genuinamente preocupada. - Ela falou que ia sair com o Júlio, mas, ele ligou aqui em casa pra falar com ela. Aí eu fiquei toda preocupada, é claro, e ele disse que ela não atendia ao celular, e eu tô ligando pra ela já tem um século e ela não atende AQUELA MERDA DAQUELE CELULAR E EU VOU MATAR ESSA GAROTA SE ELA APARECER MORTA EM ALGUM BURACO! - Paula, calma! Eu tô indo aí. Gustavo nem pensa duas vezes. Ele desliga o celular antes que Paula começasse a gritar de novo e se vira para Carolina. - Olha, aconteceu um imprevisto e eu vou ter que ir embora. Carolina olha pra ele como se ele tivesse falado que ia correr pelado pelo shopping e, em seguida, se jogar em frente a um ônibus. Passado o choque, ela sussurrou de volta: - Você não vai me deixar aqui, sozinha, né? Você não pode fazer isso. - Ahn, posso, sim - ele abre a carteira - Toma um dinheiro pra você voltar de táxi. - Gustavo, você não... - Uma amiga minha tá precisando de mim, foi mal. Até mais. Graças a Deus, Gustavo estava sentado na primeira cadeira. Antes que Carolina sequer tivesse a chan-ce de pensar em retrucar, o garoto já estava descendo as escadas correndo.

- Então, ela não tá atendendo a porcaria do celular, como sempre? - Como sempre. Claro que Gustavo praticamente se teletransportou para o apartamento de Mel. Já passa de meia-noi-te e não há sinal de onde Mélanie possa estar. Gustavo está mandando mensagens para o celular dela como um louco, enquanto Paula continua discando o número da irmã. Até agora, nada. - Eu vou MATAR essa menina, sério. - E eu te ajudo - Paula responde, a voz tão desanimada que chega a doer. - O que foi que o Júlio disse quando você ligou pra ele? - Ele ligou pra cá. Disse que a Mel não tava atendendo ao celular, aí ligou pra cá pra combinar alguma coisa sobre eles saírem amanhã. Só que a imbecil tinha me falado que ia sair com ele. Dá pra você ima-ginar o pânico que eu fiquei quando o Júlio me ligou perguntando onde tá a Mélanie?! Gustavo, sério, se tiver acontecido alguma coisa a minha irmã... Gustavo podia ver, bem nitidamente, que Paula estava prestes a ter um ataque de nervos. Ele também não estava muito longe disso. O que diabos Mélanie estava pensando? E fazendo? Por que ela mentiu para Paula, falando que ia sair para um lugar e... Ah, merda. Que merda. - Você já ligou pra mais alguém? - Telefonei pra Gabriela, a amiga dela do serviço, mas, ela também não sabe onde a Mel se enfiou. - Onde que ela poderia ter ido? Algum desses amigos novos dela, sei lá... - Eu não sei, Gustavo! - Ela disse alguma coisa? Não tem nada que ela possa ter falado que pudesse indicar alguma coisa? - Gustavo, desde ontem a Mel tá me evitando. Ela não quis falar o que aconteceu com vocês, a tal conversa que vocês iam ter. Falando nisso, que droga de conversa foi essa que vocês tiveram pra deixar a minha irmã desse jeito? - A gente... a gente meio que se divorciou - ele resmunga, ainda apertando as teclas do celular com fúria. - Vocês o que?! - Paula, você quer realmente falar sobre isso agora ou quer encontrar a Mélanie? Paula balança a cabeça, parecendo devastada. Ainda estava com o telefone pendurado na orelha, na

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remota esperança de que a imbecil da sua irmã atendesse ao celular. - Eu tô com medo de como vou encontrar a Mel, Gustavo. Eu não sei o que você falou com ela, mas... Paula para de falar tão de repente que Gustavo se assusta. De repente, ela pula do sofá, gritando ao telefone. - Alô!? Mélanie?! Mélanie, onde você tá? Gustavo, ainda um pouco mais racional do que Paula, pega o telefone das mãos de Paula e resolve tomar conta da situação. - Mel, onde você tá? É difícil de escutar. O som parece abafado, uma mistura de música com centenas de pessoas conver-sando ao mesmo tempo. - Quem tá falando? Que droga é essa? Essa voz não é da Mélanie. Gustavo sente seu estômago dando um nó, mas, ele está nervoso demais para se deixar levar por aquilo. - É o Gustavo. Esse celular é da Mélanie e eu preciso falar com ela - o garoto responde, praticamente gritando. - A Mel tá aqui comigo. Eu sou amiga dela, a Laura, e... - Posso falar com a Mel, por favor? - Gustavo ainda tentava ser educado, pelo amor de Deus. E isso lá é hora pra ser educado? Ao seu lado, Paula revira os olhos, de pura impaciência. - Olha, ela tá muito mal. Ela bebeu um pouco além da conta e agora... - Ela o que?! Dessa vez, Gustavo gritou pra valer. Paula ficou branca e quase arrancou o telefone das mãos do ga-roto, que se afastou a tempo. Ele lutava para conseguir entender o que essa tal de Laura falava. - O negócio é que ela tá passando mal, muito mal. Ela precisa ir embora. - Onde vocês estão? - Gustavo pergunta, já se dirigindo à porta. Laura fala o nome da boate e Gustavo reconhece o local imediatamente. Já foi lá várias vezes com os amigos. O que sobrou do seu lado racional se pergunta que merda a Mélanie estava fazendo num buraco daqueles. - Pode me esperar do lado de fora. Chego aí em dez minutos. Gustavo passa o telefone para Paula, que pergunta: - O que aconteceu? - A Mel caiu bêbada em uma boate na Savassi. - ELA O QUE?! - Eu sei. Tô indo lá buscar essa idiota. Gustavo sai correndo escadaria abaixo, sem esperar pela resposta de Paula. Em questão de segundos, ele já estava acelerando o carro em direção à três vezes maldita boate. Por Deus, o que tinha dado em Mélanie?! Ficar bêbada? Mélanie mal suportava o cheiro de álcool, não desde o porre que ela tomou aos 15 anos. Agora, depois de todo esse tempo, com certeza um mero copo de cerveja já serviria para deixá-la doidona. Gustavo, cego de raiva do jeito que estava, ainda lutava para permanecer frio. Era óbvio que Mel tinha feito essa idiotice toda por causa dele. Ou melhor, por causa do aconteceu entre eles. Ele não podia ser tão estúpido a ponto de pensar que ele, Gustavo, teria causado uma coisa dessas em Mélanie. Certo? Enquanto dirigia, apertando o volante com tanta força que seus dedos chegavam a doer, ele não con-seguia pensar em nada específico. Seus pensamentos variavam de Patrícia para Mel, de Mel para Patrí-cia, da conversa que havia tido com Mélanie, alguns fragmentos de antigas lembranças, como aquela em que ele e Mel foram juntos ao casamento do primo dele, o Válter. Cara, como tinha sido engraçado! Tudo isso para chegar a esse ponto, a essa merda desse fim de poço. Os dois, Mélanie e Gustavo, com-pletamente imbecis pondo um fim à uma amizade que significava tudo para ele. Depois da conversa de ontem, Gustavo já não tinha tanta certeza se para Mel era a mesma coisa. Mas, aqui estava ele, indo buscar sua amiga (ou ex-amiga, vai saber) em uma boate porque ela tinha ficado bêbada demais para se manter em pé. Foi assim que ele chegou à boate, esgotado e cansado demais para sequer conseguir formular alguma

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frase. Só queria pegar Mélanie e sumir dali. Ele, que geralmente era tão baladeiro, mal conseguia olhar para a boate. Estacionou o carro e saiu correndo para a entrada do local, obviamente abarrotado de gente. Teve que sair empurrando todo mundo até chegar à uma das muradas da boate. Lá, ele viu Mé-lanie praticamente caída no ombro de uma garota que ele nunca tinha visto. - Mel? - ele foi dizendo, sem nem se importar com a garota desconhecida. - Você é o Gustavo? - Sou. Mélanie, olha pra mim. Ele segura o rosto da amiga entre as mãos, praticamente gritando com ela, mas, Mel nem se mexeu. De olhos fechados e com o cabelo jogado em cima do rosto, ela resmunga alguma coisa incompreensí-vel. Gustavo decide que hora de ir embora. - Me ajuda a levar a Mel até o carro, por favor. Os dois puxam Mel pelos braços, cada um segurando de um lado. A garota parece nem estar ciente do que está acontecendo à sua volta, e isso só serve para aumentar a raiva de Gustavo. Ele não consegue entender o porquê dessa atitude de Mel. Não podia ser por causa dele, podia? Então, ele tinha causado isso? O divórcio dos dois, essa coisa idiota, tinha levado Mel a esse extremo? Era coisa demais pra ca-beça de Gustavo e ele tentou tirar isso da cabeça, pelo menos agora. Precisava levar Mélanie para casa e era isso que importava agora. Com cuidado, ele e Laura conseguiram colocar Mélanie no banco traseiro do seu carro. A garota parecia preocupada. - Eu não sei o que deu na Mel, eu nem sabia que ela bebia desse jeito. - Ela não bebe desse jeito. Aliás, ela não bebe nada - ele responde já entrando no carro, com raiva demais para ligar se está sendo grosso ou não. - Você é o Gustavo, amigo dela, não é? - Eu acho que sim. - Ela falou de você, alguma coisa sobre vocês terem brigado. Por essa, Gustavo não esperava. Ou esperava. Intimamente, ficou aliviado. De uma maneira bem louca e perturbada, isso mostrava que Mel estava ligando para o que tinha acontecido. Ótimo. Era a prova de que ele precisava que ele não era o único retardado dessa história toda. Gustavo dá a partida no carro. - Vou tentar resolver essa história - ele fala para Laura, que só acena com a cabeça, concordando. Ele sai com o carro e, volta e meia, olha pelo retrovisor, se sentindo mal cada vez que vê Mélanie naquele estado. Gustavo acelera o carro. Tudo o que ele quer no momento é ir pra casa, ao lado de Paula, Daniel e, claro, Mélanie.

13 de julho de 2008, domingo

Bêbado demais para pensar em qualquer coisa, Gustavo sai cambaleando do carro, uma parte mínima do seu cérebro gritando em alerta pela estupidez de ter dirigido nesse estado. Mas, ele tinha chegado vivo até ali, não tinha? Aliás, onde exatamente era “ali”? Ele esperava que fosse a sua rua. A rua da sua casa, ele quer dizer. Não que ele estivesse com vontade de ir para casa, é claro. Pelo contrário. Se fosse pra escolher, ele teria continuado caído no chão do boteco onde, há meia hora, ele estava se divertindo com alguns colegas da faculdade. Mas, tinha chegado a hora de ir embora e ele insistiu que estava bem pra dirigir e, agora, cá estava ele. Sozinho numa noite muito fria, totalmente bêbado e sem rumo, mes-mo que fosse na rua onde morava. Ele se assentou pesadamente no meio fio, a cabeça rodando. Ele podia entrar com o carro na garagem, mas, isso requereria esforço e, pior, teria que ir pra casa e se encontrar com os seus pais. Sua vontade de que isso acontecesse era de menos 87,6. O álcool já tinha começado com seus ótimos poderes en-torpecentes, que o faziam esquecer boa parte do que tinha acontecido, mas, havia algo sobre uma briga com os seus pais. Sim, eles falando que ele precisava dar um rumo na vida. Em seguida, anunciaram

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que iam passar a próxima semana em São Paulo, sabe-se lá por qual motivo. Seus pais viviam viajando, Gustavo já estava acostumado com isso. Mas, jogar a vida dele no meio da discussão? Isso era ridículo. Eles nem sabiam o que Gustavo faziam o dia inteiro, então, com que direito eles podiam chegar desse jeito e mandá-lo dar um rumo na vida? Pro inferno com isso. O fato é que ele quer mesmo que os seus pais viajem. Ia ser ótimo ficar uma semana sozinho. Claro, Gustavo já passava a maior parte do tempo sozinho, mas, ter a casa só pra ele, poder chegar a hora que quiser, beber tudo o que quiser... isso era outra história. Ele sabia que não podia ir pra casa desse jeito, bêbado como estava. Mas, também, não podia dormir na rua. E se ele dormisse no carro? Não, péssima ideia. Ele podia ser roubado, morto, vai saber que mais. Com os olhos pesados e sentindo dor em cada músculo, fosse dor imaginária ou real, ele consegue se colocar de pé novamente, sem fazer a mínima ideia de porque tinha feito isso. Por que não continuar sentado ali, meu Deus? Tropeçando nos próprios pés, Gustavo voltou para perto do carro e, só então, percebeu que a farmácia estava aberta. É verdade, ele morava em frente a uma farmácia que ficava aberta 24h. Então, como um relâmpago, ele se lembra daquela noite, meses atrás, quando conheceu aquela menina do nome esquisito. Melissa, Melinda... Mélanie! Isso, Mélanie! Gustavo se vira para os prédios. Sua mente, totalmente confusa e atrapalha a uma hora dessas, mal consegue diferenciar os prédios que estão ali, bem na sua frente. Mas, ele sabe que se andar pra sua direita, vai acabar tropeçando no seu próprio prédio e ele não quer fazer isso nem a pau. Mas, por outro lado, ele sabe que Mélanie mora logo ali, naquele prédio pequeno que, agora, parece um oásis de salva-ção. Ele não pensa duas vezes. Praticamente arrastando os pés e lutando para manter os olhos abertos, Gustavo caminha até o prédio em que Mélanie mora. Qual era o andar? O primeiro? É, era o primeiro. Tomara que fosse o primeiro. Mesmo que não fosse, não tinha problema. O garoto estava disposto a apertar todos os botões do interfone, a noite inteira se fosse preciso, porque isso seria melhor do que voltar para casa. Aliás, qualquer coisa seria melhor do que voltar para casa. Em último caso, ele dormi-ria por ali mesmo, na rua, e de muito bom grado. Ele começa apertar os botões do interfone. Vai primeiro no apartamento do primeiro andar e pendu-ra o dedo ali, sem medo. Ele não faz ideia de que horas são e está pouco se lixando se essa é ou não uma hora socialmente aceitável para tocar a campainha da casa de uma pessoa que ele viu pouquíssimas vezes. Mas, ele não arreda o pé. Está prestes a ir para o próximo apartamento, quando alguém atende o interfone. - É melhor você ir embora antes que eu chame a polícia, seu imbecil. - Mélanie! - ele grita, a voz super embolada. Do outro lado, apenas o silêncio. - Quem tá falando? - É o Gustavo! - ele responde, gritando de novo. Por que ele está gritando mesmo? - Seu vizinho, lembra de mim? O Gustavo! - Gustavo? Mas, eu... Aconteceu alguma coisa? - Eu tô legal! Eu bebi um pouco, pra caramba, bebi muito, eu acho que eu não tô... - Aguenta aí, tô descendo. Cadê a Mélanie? Por que ela parou de responder? Gustavo volta a apertar o interfone e, de longe, es-cuta alguém mandando ele calar a merda dessa boca ou qualquer coisa do tipo. Ele nem liga. Continua apertando o botão do interfone e gritando pela garota. De repente, como um passe de mágica, o portão se abre e Gustavo, que estava pendurado nele, quase cai de cara no chão. Consegue se equilibrar no último segundo, mas acaba batendo os joelhos com força no chão. Nem tem tempo de processar a dor, porque logo alguém está ali, ao seu lado, o ajudando a se levantar. - Meu Deus, Gustavo! O que você fez, seu idiota? É a garota, a Mélanie. De onde ela surgiu mesmo? Ele se deixa levar, se esforçando para, ao menos, sustentar o próprio peso com as pernas. Gustavo passa o braço pelos ombros de Mélanie e a garota faz um esforço tremendo para ajudá-lo a dar uns passos. Está tudo embaralhado demais para que ele consiga ver o que está fazendo. Vê, de relance, alguns degraus e sabe que Mélanie está ali, ao seu lado, o segurando com uma firmeza assustadora, e falando com ele onde ele deve pisar e será que dá, por

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favor, de parar de puxar o cabelo dela. Sem saber muito bem como, logo Gustavo está esparramado no melhor sofá desse mundo. Graças a Deus, Mélanie mantém a luz apagada. O cérebro de Gustavo também está semi apagado, mas, ele ainda consegue registrar a seguinte conversa: - O que tá acontecendo, Mel? - Lembra que eu comentei do Gustavo, o vizinho? Parece que ele bebeu demais... - Bebeu demais? Ele tá com cara de quem tomou todas as cervejas de Belo Horizonte. Som de passos. Seria ótimo se Gustavo tivesse força suficiente para abrir os olhos... - Ele é bonitinho mesmo, hein? - Paula, por favor. Não era pra você estar terminando de tricotar a blusa do Voldemort? - Ele vai se chamar Dumbledore. E eu desisti de tricotar, joguei tudo fora. - Claro que sim. Então, por que não vai dormir? - O bebê andou brincando com a minha bexiga de novo. Tô indo ao banheiro a cada dois minutos. - Quer que eu vá lá comprar uma fralda pra você? - Cala a boca. - Boa noite, Paula. - Boa noite. E se esse daí vomitar no meu chão, eu chuto ele pra fora daqui, me ouviu? - Perfeitamente. Mais sons de passos. De repente, Gustavo sente alguém colocando um pano úmido em sua testa. É a melhor sensação do universo. - O que você fez, Gustavo? - Humm... - Aparecendo bêbado desse jeito. Você ficou maluco? - Acho que não sei... Um riso abafado. - Vou deixar você dormir. - Fica aqui. - Aqui onde? - Aqui - ele murmura, sentindo a garganta seca. Quer pedir um copo de água, mas, a preguiça não deixa. - Você vai vomitar em mim? - Fica aqui, Mel... Impossível falar “Mélanie” nesse estado, simplesmente impossível. - Tá legal. Mais som de alguém se mexendo e com o pouco de força que lhe resta, Gustavo abre os olhos e, mesmo no escuro, consegue perceber os movimentos de Mel, tentando se encaixar no sofá que foi completamente tomado por ele. Com cuidado, ela coloca a cabeça dele em seu colo. - Mel, eu... - Cala a boca e vai dormir, Gustavo. E não precisa nem se preocupar em acordar caso você vomite em mim, só te falo isso. A última sensação de Gustavo antes de cair em uma deliciosa escuridão (mesmo que a ressaca do outro dia tenha tudo para ser apocalíptica) foi a de Mélanie mexendo no seu cabelo.

28 de julho de 2012, sábado

Se um caminhão tivesse passado em cima dela, seguido de uma passeata de elefantes e, depois, saísse rolando morro abaixo apenas para cair em cima de uma floresta de espinhos, ainda assim Mélanie achava que seria menos horrível do que agora. Definitivamente, ela não tinha sido feita com a estrutura necessária para tomar um porre. Não tinha jeito, não adiantava tentar mudar. E o que dizer desse gosto

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pastoso na boca? Uma mistura de guarda-chuva com sola de sapato podre. Huumm, delícia. E o que dizer dessa luz? É como se aquele mero raio de Sol que entrava pela janela do seu quarto queimasse cada pedacinho da sua pele. Cara, isso vai ser difícil. Mélanie tenta puxar o cobertor para cima do rosto, em um gesto que exige todo o seu esforço, mas, algo parece prender o cobertor. Ela puxa de novo, ainda de olhos fechado, mas, a praga do cobertor parece presa em algum lugar. O jeito é abrir os olhos e ver que droga é essa que está prendendo o seu cobertor. Gustavo. Sentado na beirada da cama, lá no final. Claro, quem mais poderia ser? Alguns flashes da noite anterior passam rapidamente pela cabeça de Mélanie. Ela se lembra vagamente de ter bebido. De ter bebido muito. Depois disso, nada. Imediata-mente, uma sensação de tremenda estupidez foi tomando conta dela. Gustavo, com aquela cara de cansado dele (e parecendo triste também), não precisava falar nada. Desse jeito que estavam, Mélanie já estava se sentindo a pessoa mais culpada e idiota da galáxia. - Você... - ele começa a falar - Você é uma idiota, Mélanie. Ela não responde. Não precisa. Além disso, sua cabeça está doendo que é uma barbaridade. - Olha o que você fez. Você deixou a gente doido atrás de você. Eu não... Ele para de falar. Ótimo. Mélanie não está com saco para aguentar lição de moral agora, ainda mais de um cara a quem ela só conheceu por causa da terrível mania que ele tinha (ou tem) de beber além da conta. Ela tem vontade de xingar Gustavo, falar que tudo isso só aconteceu por culpa dele, por causa daquela ideia imbecil do divórcio, que era pra ele sumir da vida dele, mas, ela não fez nada disso. Só se encolheu mais um pouco, esperando que ele continuasse a bombardeá-la. - Por que você fez isso? - Por que você acha? É tudo o que ela consegue falar. Por Deus, como a sua garganta está seca! Era como se, além do ca-minhão, dos elefantes, do morro e dos espinhos, tudo isso tivesse acontecido ao longo de um mês no Saara. - Por minha causa? Ou por nossa causa, sei lá? - Pode escolher a que você achar melhor. Eu não tô a fim de conversar agora. - Dane-se. Que merda deu na sua cabeça? - Gustavo, eu... - Não, não! Sem essa de “Gustavo, eu...”. É pra ser sincero, então, vamos ser sinceros. O que você tá querendo provar, hein? Que sabe se virar sozinha? Que é independente, que não precisa de ninguém? Bom, parabéns, Mélanie, essa foi a prova ideal de que você é tão idiota quanto eu. E quer saber mais? - Dá pra parar de gritar? - Não, não dá! Quer saber o que mais? Você acha que pode sair como se nada tivesse acontecido, como se a gente, a nossa amizade, o que for, não fizesse a mínima diferença pra você. Mas, olha só que espetáculo que você arrumou, que merda de show! Eu deixo você sozinha por um dia, um dia, e você vai encher a cara do outro lado da cidade e cai bêbada em uma boate! O que foi? Andou tanto comigo que decidiu virar o Gustavo por uma dia? Eu que faço isso, eu que bato na casa dos outros quando eu tô vomitando de bêbado. Você... você é a certa, a segura de tudo. Sempre foi assim, né? O engraçado é que eles não saíram do lugar. Mélanie continua deitada, toda encolhida, e Gustavo continua assentado ali embaixo, as costas apoiadas na parede. A dor de cabeça de Mélanie deu lugar a uma tremenda depressão, dessas que te dão vontade de cair no chão em posição fetal e não sair do lugar nunca mais. E, claro, a última coisa que ela queria era chorar, mas, é exatamente isso que acontece. Não aquele choro desesperado, mas, apenas algumas lágrimas que ela corre para esconder de Gustavo. Mas, é lógico que ele percebe. - E agora você chora? Claro, ótimo. Por fim, ele se levanta e fica andando pelo quarto, parecendo não saber o que fazer em seguida. Não tem mais nada pra fazer, uai! Ele já disse tudo o que tinha pra dizer, já jogou na cara de Mel o tanto que ela foi egoísta e falsa, tentando sair por cima de uma situação que tinha a deixado em pedaços. Porque foi isso que ela fez, mesmo que não quisesse admitir.

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- Gustavo. - O que foi? - Eu sou uma idiota. - Eu sei. Eu também sou. Nós dois somos completos idiotas, e imbecis e por aí vai. - Me desculpa. Ele para de andar e se aproxima da cama de Mel novamente. Ela não tem coragem de olhar pra ele. Está envergonhada demais, feia demais, culpada demais. Gustavo se assenta ao seu lado e os dois ficam um tempo em silêncio. Agora, além do caminhão, dos elefantes, do morro, dos espinhos e do Saara, uma música bem triste podia ser ouvida, dessas que te davam vontade de pular de uma ponte. - O que aconteceu ontem? - Você ficou bêbada e eu fui te buscar. - Por que você me buscou? - Eu não podia deixar você jogada em qualquer lugar. Além disso, sua irmã já estava quase tendo outro filho aqui. Ela vai te matar, você sabe. - É, já tava esperando por isso. Como você aguenta ficar com ressaca? - Já tem bastante tempo que isso não acontece comigo. Você, em compensação... - Eu tava triste, só isso. - Não pareceu só isso. - Foi por sua causa. Por causa da gente. Tá feliz agora? - Admito que eu tô aliviado. Achei que você não tinha ligado pra nada do que aconteceu. - Parece que você não me conhece, Gustavo. - Tem vezes que eu fico na dúvida. Mélanie acaba de limpar os olhos, ainda se sentindo zonza e com a cabeça girando para todos os lados. Gustavo tem razão. Ela foi uma completa idiota. Mas, ele estava aqui agora. Do seu lado, logo ali. Seu melhor amigo. Era estranho isso. Ela amava Gustavo, é claro, mas, pelo visto, tinha feito pouco caso da amizade dele ao longo desses anos, ao ponto dele pensar que o divórcio não a tinha afetado em nada. Bom, o jeito que ela estava agora mostrava o quanto ela tinha ficado afetada, sim. - Gustavo. - Oi? - Tem jeito da gente suspender esse divórcio? Ele parece não ter escutado, mas, logo um sorriso de lado começa a aparecer em seu rosto. Era o que Mélanie precisava. - Você quer suspender? - Quero. Sem mais confusões. Sem divórcio. Só... a gente. Gustavo parece pensar no que Mel acabou de falar. É isso que ela quer, simples assim. Voltar a ter Gustavo ao seu lado para todas as coisas. Depois de alguns segundos, ele fala: - Sem divórcio? - Sem divórcio. - Só a gente? - Só a gente. - Pode ser, então. Ele se aproxima e dá um beijo na testa de Mélanie, como ele tinha mania de fazer. Eles ficaram apenas um dia divorciados, mas, como Mélanie sentiu falta dele. Gustavo era o seu idiota. Ela também. No final das contas, eram dois idiotas. - Você já quer levantar? - Jamais. - Então, arreda pra lá. Gustavo se deita ao lado de Mélanie e a garota, com a cabeça encostada no ombro do amigo, se pre-para para dormir por mais umas 500 horas. Sabe que, quando sair da sua caverna (ou quarto, tanto faz), terá que enfrentar a fúria da irmã mais velha. Mas, isso é coisa pra se pensar mais tarde. Um pouco antes de cair no sono novamente, ela promete a si mesma que essa será a última vez que ela vai tomar

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24 de novembro de 2013, domingo

Pela milésima vez no dia, Mélanie se xingou mentalmente por ter escolhido usar saltos altos. Por que diabos tinha aceitado se submeter a essa tortura novamente? Beleza, já deviam fazer uns cinco meses desde a última vez que ela colocara saltos altos, mas, a dor era a mesma. Mesmo que ela nem estivesse se mexendo muito. Só de olhar para os seus pés, ela já sentia dor. - Aquela ali que é a mãe da Márcia? Mélanie olhou para onde Paula estava apontando e confirmou com a cabeça. Era ela mesma. Não tinha jeito de confundir. Mãe e filha eram parecidíssimas. - E aquele ali é o pai dela? - Exatamente. Márcia e seus pais eram o retrato da família feliz. Estavam sorridentes, abraçando os convidados, tirando fotos, aceitando os cumprimentos de todo o mundo. Mélanie não podia deixar de imaginar como isso devia ser chato. Ela mesma, que nem era a estrela da noite, já tinha distribuído tantos sorri-sos que suas bochechas estavam doendo. Gustavo devia estar na mesma situação de Márcia. Coitado. - Aquele cara ali tá olhando pra você, Mel - Paula está apontando para algum lugar, mas, Mel nem se vira para olhar. Simplesmente, não está com cabeça pra esse tipo de coisa. O jeito é mudar de assunto. - Onde tá o Dani, Paula? - Tá no parquinho com as outras crianças. - E você deixou ele lá sozinho? - Eu consigo ver daqui, neurótica. Olha ele ali. Realmente, lá está Daniel, lutando para acompanhar os meninos maiores em um jogo de futebol. Seu terninho, que Paula tinha comprado especialmente para o noivado, já estava todo amassado e cheio de grama e areia. Típico de um garoto de cinco anos. Paula tinha falado com ele que, se ele ficasse quietinho durante todo o jantar, ia ganhar uma caixa de chocolates mais um carrinho de brinquedo. Parece que o garoto esqueceu da promessa assim que viu um grupo de meninos se juntando para jogar futebol. - E você? - O que tem eu? - Tá legal? - Claro que sim! Por que não estaria? - Sei lá - Paula responde, dando de ombros - O Gustavo tá ficando noivo, Mélanie. - É, eu sei... meio difícil de acreditar, né? - Nem me fala. - Eu falei com ele que eu acho meio cedo, mas, ele não me escuta... - Você não parece feliz... - Não vamos começar com isso de novo, Paula! É claro que eu tô feliz! É o meu melhor amigo, é o noivado do meu melhor amigo! Claro que eu tô feliz! E Mélanie estava falando a verdade. Realmente, ela estava muito feliz por Gustavo. Sabia que essa era a realização de um sonho dele. Ela ainda achava que a coisa toda estava acontecendo rápido demais (ele havia conhecido Márcia há pouco mais de um ano e já estava ficando noivo dela), mas, sabia que esse era um passo natural que seu amigo tinha que tomar. E Mélanie gostava de Márcia. Ela era tudo o que Gustavo precisava. Uma menina com a cabeça no lugar, engraçada, fofa. Do jeito que ele gostava. E convivia perfeitamente bem com Mélanie, Paula e Daniel, a família disfuncional de Gustavo. E era sem falsidade. Mélanie e Márcia viviam saindo juntas, muitas vezes sem Gustavo e, de um jeito bizarro, elas acabaram ficando amigas também.

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um porre. Definitivamente, ela não tem estômago (nem cabeça, nem braços, nem pernas...) pra isso. Ainda bem que o Gustavo tá aqui...

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Então, nada mais justo do que apoiar Gustavo nessa nova loucura dele. Mas, ela estava feliz, tranquila. Sabia que Gustavo estava fazendo a coisa certa. - Mel, você não quer ir atrás do Daniel pra mim? Acho que tá na hora de dar o remédio pra ele. - E depois eu sou a neurótica, hein? Deixa o garoto, Paula. Ele nem tá gripado mais. E, além disso, você sabe que eu não consigo andar com esses saltos. - Ê preguiça, hein?! Eu vou lá, então. Paula se levanta, ainda resmungando, mas, antes que consiga ir atrás de Daniel, Gustavo chega, acom-panhado de Márcia e dos pais da garota. - Paula, deixa eu te apresentar para os pais da Márcia - Gustavo fala - Vem cá também, Mel! Cadê o Dani? - Tá tocando o terror lá no parquinho - Mélanie diz, se levantando. - Não é tanto assim. Eu vou atrás dele e já volto - Paula fala. - Não precisa - Gustavo fala, para, em seguida, começar a gritar por Daniel. Não demora para que ele venha correndo e pule direto nos braços de Gustavo - E aí, garoto? Onde você tava? Na guerra? - Eu tô jogando futebol, tio! - E quantos gols você já fez? - Eles não deixam eu fazer gol. - Então, eu vou lá com você e a gente vai fazer um tanto de gol! - Promete? - Prometo! Daniel fica radiante e Mélanie, mais uma vez, se admira em como o seu sobrinho é ligado a Gustavo. Claro, não podia ser diferente. Gustavo estava ali desde o dia em que Daniel nasceu. O pai do menino não era lá essas coisas, então, era Gustavo quem acabava por ter que fazer as vezes de pai/tio/melhor amigo. Eles até se pareciam... - Agora, Fernando e Tereza, - Gustavo fala, se virando para os sogros - quero que vocês conheçam a minha família.

Os pais de Gustavo não puderam ir ao noivado. Não foi nenhuma surpresa nem algo que levaria Gus-tavo a enfrentar anos de terapia. Era algo mais do que o esperado. Mesmo com o jantar marcado há semanas, eles conseguiram dar um jeito de inventar uma viagem para o Rio de Janeiro. Estavam hospe-dados com alguns amigos importantes, para alguma reunião importante. Claro que era algo doloroso, mas, ele tentou não se importar. As três pessoas que realmente importavam estavam ali. - Essa é a Paula, esse é o Daniel e essa é a Mélanie - ele fala, fazendo as apresentações. Fernando e Tereza, seus sogros, logo passaram a cumprimentar a família Vasconcelos, brincando com Daniel, falando em como Mel e Paula eram parecidas (cismaram que tinham os olhos parecidos, mesmo que isso não fosse verdade) e perguntaram o que estavam achando do noivado. À essa altura, Márcia estava inclinada para escutar as reclamações de Daniel, que não conseguia entender porque os meninos maiores não lhe passavam a bola no jogo de futebol. Mélanie e Paula conversam educadamen-te com os sogros de Gustavo, que escuta, alarmado, a hora em que Paula quase começa a contar suas histórias constrangedoras. Ok, hora de parar. - Muito bom, né? Eu acho que a irmã da senhora está te chamando naquela mesa ali, Tereza. Gustavo aponta para uma mesa que ficava do outro lado do salão, na qual boa parte da família da sua noiva estava. Do lado dele, alguns primos e, claro, Mel, Paula e Daniel. Honestamente, ele não precisava de mais gente do que isso. Fernando e Tereza pedem licença rapidamente e Márcia os segue, não sem antes dar um abraço em Mel e falar que elas precisam conversar depois, pra começarem a pensar nos preparativos do casamen-to. Gustavo se sente aliviado, do fundo do coração. Mel e Márcia ficaram amigas e ele não podia ter pedido por coisa melhor. Depois de toda aquela confusão do ano passado, que Gustavo não gostava de se lembrar, Mélanie e Márcia se deram bem logo de cara. Dessa vez, Gustavo não quis forçar nada. Quando começou a se interessar por Márcia, disse que ele tinha uma amiga, uma melhor amiga, que significava o mundo para ele. Mas, eram amigos. Só isso. Se é que você podia definir a amizade de

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Gustavo e Mélanie com um “só”, mas, enfim... Márcia quis conhecer Mel e a família toda, a família que Gustavo tinha adotado. O resultado não poderia ter sido melhor. - Eu vou lá atrás do Daniel - Paula diz, se levantando com esforço. - Mas, ele tava aqui há dois segundos! - Gustavo exclama. - Já voltou pro futebol, uai! Vou lá e, vocês dois, - ela fala, olhando para Gustavo e Mel - se comportem. Gustavo e Mélanie não conseguem evitar revirar os olhos com a advertência de Paula. Se comportar? Por favor, Gustavo e Mélanie eram os reis do bom comportamento. Sim, eles tiveram alguns problemas no meio do caminho, mas, nada que não pode ser resolvido. Mélanie está bem bonita nessa noite. Gus-tavo falou que ela não precisava colocar saltos altos, mas, lá estava ela, com cara de sofrimento e com jeito de quem queria jogar esses sapatos longe. - Tem uma piscina ali atrás. Bora? - Você quer nadar agora, Gustavo? - Claro que não, Mel! Só colocar o pé na água, ficar de boa um pouco. - E você pode sair assim? Afinal de contas, não sei se você tá lembrando, você é o noivo, a estrela da festa. - Cala a boca. Gustavo puxa Mélanie pela mão e, rapidamente, eles vão para o outro lado do pátio. Foi ideia dos pais de Márcia fazer um jantar para comemorar o noivado. Os noivos mesmo não faziam questão, mas, um presente dos sogros não é algo que você possa simplesmente recusar, né? Era algo moderado, ali mesmo no prédio em que Márcia morava e isso foi bom porque a piscina era mais isolada, um lugar perfeito para que Gustavo pudesse ter alguns momentos de paz com a sua melhor amiga. Já não tinham isso há um bom tempo. Quando chegam à piscina, Gustavo tem que ajudar Mélanie a achar a melhor posição para se assentar. É engraçado vê-la assim, de vestido, com o cabelo preso em um coque que, pela primeira vez na vida, está arrumado e sem nenhum cacho fora do lugar. Ela tira os sapatos e Gustavo faz o mesmo. Ficam um tempo sem falar nada, só aproveitando a companhia um do outro. - E aí, o que você tá achando? - Achando do que? - Do noivado, uai! Da festa, das pessoas... - A comida tá muito boa. - Fala sério, Mélanie. - Estressadinho, hein? Mas, tô curtindo. Sua nova família parece ser bem legal. - Mélanie... - Eu tô falando sério! O que mais você quer que eu diga? - Que você tá feliz comigo. Que você acha que eu tô fazendo a coisa certa. - Eu já disse que eu achei tudo muito cedo, mas, você não me escuta. De qualquer maneira, antes que você comece a surtar, eu gosto muito da Márcia e acho que vocês vão ser muito felizes. Tá satisfeito agora? Gustavo sorri, se lembrando de como a teimosia de Mélanie é uma coisa que transpassa o conheci-mento humano. - Mas, e você? Tá feliz? - Tô feliz, sim. Talvez tudo esteja acontecendo muito rápido, mas, sei lá, parece a coisa certa a se fazer. - Sempre soube que você ia casar primeiro do que eu, Gustavo. - Por que você sabia disso? - Olha só pra você! Bonitão desse jeito, é claro que ia arrumar alguma menina fofinha pra casar com você, se mudar pra uma casa de campo e ter cinco filhos. - Que exagero! E eu não quero ter cinco filhos. Só três, você sabe. - Três?! Coitada da Márcia - Mélanie responde, rindo - Contando com você, vão ser quatro meninos pra ela tomar conta. - Ei, eu sou o adulto da casa! Sou mais adulto do que você e a Márcia juntas. - Aham, é sim, viu?!

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Mélanie ri mais um pouco, mas, logo volta a ficar em silêncio. - O que eu vou fazer agora que você vai casar, hein? - Não vai mudar nada. - Olha você com esse papo de que nada vai mudar. Parece que não aprendeu nada com o que acon-teceu ano passado. - Ano passado... ano passado foi um erro. A gente era muito idiota. - A gente é idiota, Gustavo. E vai mudar, sim. Você vai se casar e eu vou voltar pra minha casa e passar os finais de semana assistindo, sei lá, The Big Bang Theory. - Você nem gosta desse seriado. - Vou ter que arrumar seriados novos, uai. Ainda mais agora que eu perdi meu companheiro de sá-bado à noite. - Você podia sair com... - Não, Gustavo. Equilíbrio, lembra? Claro que ele lembrava. Foi um custo para eles chegarem à essa palavra. Eles tiveram que bater muito a cabeça e abrir mão de muita coisa por causa desse “equilíbrio”. Era o único jeito deles conseguirem seguir com a vida e de manter a amizade. Por mais que Gustavo falasse que nada ia mudar, ele sabia que isso não era verdade. Muita coisa tinha mudado. Mel tinha os seus amigos, ele tinha a sua noiva. Continuavam melhores amigos, cúmplices, a rotina dos almoços de sábado era a mesma. Mas... equi-líbrio. Era difícil e, às vezes, enchia o raio do caso, mas, era o que eles precisavam para não confundir as coisas de novo. Mélanie continuava sendo (e sempre seria) o porto seguro de Gustavo. Sem ela, sem Paula e o Daniel, ele ficaria perdido. - Você pensa no “e se...”? - Como assim? - E se a gente tivesse tentado? - Você quer realmente falar disso na noite do seu noivado? - Quando a gente vai poder conversar sobre isso de novo? E, também, por que a gente sempre evita de falar nisso? - Sei lá. É estranho, meio inapropriado até. - Você tá fugindo da conversa, Mel. - Não tô, não! É só que... é esquisito. Se a gente pensar no “e se...”, a gente pode ficar meio maluco. - Então, você nunca pensou nisso? - Eu não... ah, sei lá! Ano passado foi meio confuso. - Defina o “meio confuso”. - Ah, você sabe muito bem do que eu tô falando. Ou era a gente continuar melhor amigo pro resto da vida, e só, ou a gente tentava alguma coisa ou a gente se divorciava. - A gente é bem extremista. - É o jeito. Mas, hoje eu até entendo. Não sei se eu ia gostar de saber que o meu namorado tá dormin-do na casa de outra menina. - Isso é a Paula falando, não você. - Pode até ser. Mas, faz sentido, não faz? - Um pouco, sim - ele acaba admitindo - Não precisava fazer sentido. - Como você achou que seria com a gente no mundo do “e se...”? - Não sei dizer. Acho que não ia mudar muita coisa. Claro que a gente ia dar uns pegas, mas, com exceção disso... Mélanie dá um tapa em Gustavo. - Você é um nojento. Você realmente consegue imaginar a gente se pegando, Gustavo? Nós dois? - Ano passado, isso passou pela minha cabeça. Na sua também, não adianta mentir. - Tá, ok, eu pensei nisso, mas, e daí? Você tá noivo agora e você ama a Márcia, certo? - Certíssimo. - Então, isso responde à sua pergunta. Não tem “e se...” pra gente, meu amigo. Gustavo não teve tanta certeza disso no ano anterior, e ele sabe que, por mais que Mélanie não admita,

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ela também sofreu com essa dúvida. Hoje a coisa toda estava bem mais clara, é verdade, mas, durante as confusões anteriores, ele pensou no “e se...”. Acabou que não adiantou pra muita coisa, só pra deixá-lo ainda mais confuso. Hoje ele tinha plena convicção do que queria. Finalmente, depois de muitos anos andando por aí, sem muito rumo na vida, Gustavo estava de boa. Mélanie também, e isso o deixava ainda mais feliz. - Sabe, eu acho que, em algum universo paralelo por aí, a gente tá junto. - Tipo aquele episódio de... - ... de Doctor Who, exatamente. Mélanie ri. - Acho que a gente nunca vai descobrir isso, Gustavo. - E você tá legal com isso? - Você é o meu melhor amigo da vida. Você sabe disso, né? Gustavo se aproxima de Mel e a abraça, beijando o topo da sua cabeça. - E você é a minha. Mel encosta a cabeça no ombro dele e Gustavo pensa que a noite poderia terminar agora.

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