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A presente edição segue a graa do novo Acordo Ortográco da Língua Portuguesa [email protected] www.marcador.pt facebook.com/marcadoreditora © 2017 Direitos da edição portuguesa reservados para Marcador Editora uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena © 2015, Editora Novo Conceito Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer forma sem permissão por escrito. Título original: Eu Fico Loko Título: Eu Fico Loko Autor: Christian Figueiredo de Caldas Adaptação e revisão: Joaquim E. Oliveira Paginação: Gráca 99, Lda. Arranjo de capa versão portuguesa: Gráca 99, Lda. Fotos do interior: arquivo pessoal do autor Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Grácas, Lda. ISBN: 978-989-754-243-5 Depósito legal: 425 474/17 1.ª edição: maio de 2017

fi co da Língua Portuguesa Queluz de Baixo Título: Eu Fico ... · Em minutos, o carrinho estava rodeado de amigos (dele!). Eu, o pai e a irmã ... uma aura de alegria e uma espécie

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A presente edição segue a grafi a do novo Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa

[email protected]/marcadoreditora

© 2017Direitos da edição portuguesa reservados para Marcador Editorauma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 Barcarena

© 2015, Editora Novo ConceitoTodos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer forma sem permissão por escrito.

Título original: Eu Fico LokoTítulo: Eu Fico LokoAutor: Christian Figueiredo de CaldasAdaptação e revisão: Joaquim E. OliveiraPaginação: Gráfi ca 99, Lda.Arranjo de capa versão portuguesa: Gráfi ca 99, Lda.Fotos do interior: arquivo pessoal do autorImpressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráfi cas, Lda.

ISBN: 978-989-754-243-5Depósito legal: 425 474/17

1.ª edição: maio de 2017

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PA R A C O M E Ç A R E S T E L I V R O ,

V O U D I Z E R S Ó U M A C O I S I N H A :

Como é que é, pessoal loko? Tá tudo bem com vocês?

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Para quem não me conhece, eu fui o clássico

adolescente do tipo personagem fi ctício dos fi lmes americanos.

Mas não um daqueles que se dão sempre bem

com o pessoal todo, SÃO FORTES, NAMORAM A NAMORAM A

LÍDER DA CLAQUELÍDER DA CLAQUE e jogam na equipa de

basquetebol da escola. Eu era mais da onda

óculos fundo de garrafa, saco de pancada do pessoal,

e um bocado lerdo. Vá, agora sem exageros,

nunca usei óculos nem levei na boca,

mas é melhor não me esticar na parte do lerdo.

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Como não sou o personagem de um fi lme americano,

vou deixar agora a minha imagem um bocado

menos estereotipada e defi nir-me como um

adolescente que vivia mais no seu mundo, tendo

as suas próprias ideias e conclusões sobre tudo.

Absolutamente FORA DO BARALHOFORA DO BARALHO. Tendo em

conta estas simples características, pode dizer-se que

tive uma adolescência muito pouco convencional.

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Christian Figueiredo de Caldas

T EM A PALAV RA T EM A PALAV RA A LOK Í S S IMA , A LOK Í S S IMA , M I N HA MÃE !M I N HA MÃE !

MANHÃ DE DOMINGO. VESTI-LHE UM FATINHO MANHÃ DE DOMINGO. VESTI-LHE UM FATINHO

DE MARINHEIRO, UM DAQUELES ÀS RISCAS COM UMA DE MARINHEIRO, UM DAQUELES ÀS RISCAS COM UMA

GOLA DE BABETE ATRÁS. A PARTE MAIS GIRA DO TRAJE GOLA DE BABETE ATRÁS. A PARTE MAIS GIRA DO TRAJE

ERA O CHAPÉU VERMELHO COM UMA ÂNCORA GIGANTE. ERA O CHAPÉU VERMELHO COM UMA ÂNCORA GIGANTE.

FOI O PRIMEIRO CHAPÉU DELE. DELICADAMENTE, TENTEI FOI O PRIMEIRO CHAPÉU DELE. DELICADAMENTE, TENTEI

PÔR-LHO NA CABEÇA. FORCEI UM BOCADINHO, MAS TIVE PÔR-LHO NA CABEÇA. FORCEI UM BOCADINHO, MAS TIVE

DE DESISTIR. QUE FRUSTRAÇÃO! A IRMÃ DE SETE ANOS VEIO DE DESISTIR. QUE FRUSTRAÇÃO! A IRMÃ DE SETE ANOS VEIO

A CORRER COM UM BONÉ DELA, TENTOU ENFIAR-LHO, A CORRER COM UM BONÉ DELA, TENTOU ENFIAR-LHO,

MAS NÃO CONSEGUIU. FOI ENTÃO QUE OLHOU PARA MAS NÃO CONSEGUIU. FOI ENTÃO QUE OLHOU PARA

MIM, ARREGALOU OS OLHOS E DISSE: «GANDA CABEÇA!»MIM, ARREGALOU OS OLHOS E DISSE: «GANDA CABEÇA!»

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Como boa mãe-galinha que sou, fui tendo cada vez mais orgulho da

inteligência «muito acima da média» que tamanha cabeça devia

simbolizar. Descemos a avenida principal da pequena cidade

onde morávamos naquela altura, com o Chris sentado no

carrinho, mas com a cabeça de um geminiano já a mil, olhos a

mexer-se em todas as direções, a fazer scan da rua para ver a

quem seduzir com o enorme sorriso que lhe iluminava a cara

redonda. Acenava a toda a gente, como um político a tentar

angariar votos em vésperas do ato eleitoral. Em minutos, o

carrinho estava rodeado de amigos (dele!). Eu, o pai e a irmã

fomos sempre um bocado antissociais, daqueles que atravessam a

rua para não terem de cumprimentar ninguém, e estranhávamos

bastante aquele ser tão diferente de nós. Do outro lado da rua,

alguém gritou: «Olá, Chris.» E, para nós: «Este rapaz ainda

vai ser presidente da câmara!». O Chris tinha um ano e meio.

ESTE RAPAZ

ESTE RAPAZ

AINDA VAI SER

AINDA VAI SER

O PRESIDENTE

O PRESIDENTE

DA CÂMARA!DA CÂMARA!

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O Chris aterrou neste mundo com uma aura de alegria e uma espécie de sabedoria

bastante incomum numa criança. Um dia, durante uma

discussão, dessas que os adultos têm à frente dos miúdos e que

depois os fazem sentir-se uma porcaria, ele veio ter comigo e

disse-me:

— MÃEZONA, FINGE QUE CONCORDAS. VAIS VER QUE É MAIS FÁCIL.

Ele devia ter para aí uns três anos.

Desde que o Chris apareceu, o meu sentido de humor

tornou-se muito mais afi ado e as coisas da vida perderam o peso

e a realidade que eu lhes costumava dar. Era como se ele me

tivesse feito lembrar de qualquer coisa antes oculta. Quando ele

tinha uns sete anos, uma amiga que tinha acabado de chegar da

Índia, onde vivia com um mestre espiritual, um guru, arregalou

os olhos ao vê-lo: «Ai, meu Deus.

Parece-me que sinto qualquer coisa

de diferente quando estou ao pé

deste menino. Acho que só senti

isto com o meu guru.»

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O CHRIS NUNCA LEVOU NADA A SÉRIO. NUNCA O VI CHORAR. Bem, vá, duas vezes. O que não quer

dizer que não seja responsável. Foi sempre muito certinho. A minha única tristeza com ele foi aquela com

o chapelinho de marinheiro. Neste mundo, literalmente tudo é

motivo de piada para este cabeçudo. Sempre achei que este lugar

a que chamamos mundo estava virado do avesso, e foi por isso

que estimulei constantemente o Chris a ser quem é, a que brilhasse

com a sua própria luz, porque acho que só conseguimos lembrar-nos

de quem realmente somos quando brilhamos com a nossa luz e

quando servimos. Fico contente por ver o Chris a brilhar com essa

luz e a servir. A servir ao fazer as pessoas rir. Acho que o mundo

começou e vai acabar com uma enorme gargalhada.

Os lokos é que são saudáveis. Desculpa-me, Chris, a interferência

de mãe. O teu canal devia chamar-se Eu Fico Saudável em vez

de Eu Fico Loko. Eternamente grata por existires na minha vida. 

Amo-te. 

Mãe.

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EU FICO LOKO

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EU ACHO QUE A VIDA DE UM ADOLESCENTE NUNCA É UMA COISA NORMAL, E QUE, QUANTO MAIS NORMAL FOR, MAIS E QUE, QUANTO MAIS NORMAL FOR, MAIS

LOUCA É! RACIOCÍNIO DE COMPLEXIDADE INUSITADA? LOUCA É! RACIOCÍNIO DE COMPLEXIDADE INUSITADA?

SIM. OS MEUS PAIS NUNCA SE ENQUANDRARAM NO SIM. OS MEUS PAIS NUNCA SE ENQUANDRARAM NO

PADRÃO DOS PAIS QUE EU VIA QUANDO TINHA PADRÃO DOS PAIS QUE EU VIA QUANDO TINHA

13 ANOS. AINDA HOJE ME LEMBRO DA MÃE DO 13 ANOS. AINDA HOJE ME LEMBRO DA MÃE DO

MEU MELHOR AMIGO, QUE NOS DIZIA, SEMPRE, MEU MELHOR AMIGO, QUE NOS DIZIA, SEMPRE,

MAS SEMPRE, ANTES DE SAIRMOS À NOITE:MAS SEMPRE, ANTES DE SAIRMOS À NOITE: – Filho, se eu descobrir que

andaste a beber… Ai, ai, ai! JÁ COMIGO, QUANDO ME VIA SAIR COM OS JÁ COMIGO, QUANDO ME VIA SAIR COM OS AMIGOS, A MINHA MÃE DIZIA:AMIGOS, A MINHA MÃE DIZIA:

– Tu?! Tu vais sair?! Eh, lááá! Então diverte-te!!!

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Christian Figueiredo de Caldas

Eu nunca fui muito de sair à noite, justamente por ter uns pais

tão liberais quando comparados com os dos outros. Se eu saísse de

casa e voltasse cinco dias depois, acho que nem abririam a boca

para me perguntar o que é que eu andei a fazer. Só me pergunta-

riam: «Divertiste-te?»

A minha mãe era do tipo que deixava fazer tudo, e por essa razão nunca tive vontade de fazer o

que os meus amigos faziam às escondidas dos pais – justamente

porque não precisava de fazer nada às escondidas.

Acho que, no momento em que os pais nos proíbem de fazer

qualquer coisa, vamos, com toda a certeza, querer fazer aquela coisa.

Porquê? Porque é proibida! O QUE É PROIBIDO É SEM-PRE MAIS APETECÍVEL, e não me venhas dizer que não!

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EU FICO LOKO

Nessa altura, quando os meus amigos queriam sair e beber às

escondidas nas sextas-feiras à noite, eu queria era ver um bom fi l-

me, com um balde de pipocas e um belo copo de sumo.

Não diria que, na adolescência, os nossos pais proíbem as

coisas porque são chatos e não querem que nos divirtamos. Eles

proíbem-nos porque têm medo daquilo que podemos fazer por

aí. Afinal de contas, um pai é um pai, certo? Mas o certo é que

eu via que os pais que mais proibiam eram os que tinham os

filhos mais passados da escola!

Havia um miúdo na minha turma que levou uma garrafa de

vodca para a escola, para bebermos depois das aulas. Sim, uma

garrafa, inteira, cheia, na mochila!

QUANDO ELE NOS MOSTROU A GARRAFA, HOUVE UMA EXCITAÇÃO COLETIVA, parecia até que

a vodca tinha gerado um efeito alucinogénio nos meus amigos.

Só por verem o líquido na garrafa, fi caram parvos, felicíssimos e

varridos da cabeça, loucos para dar um gole. Mal nos mostrou a

garrafa, disse:

– Já viram, pessoal? Olhem só para isto! Trouxe lá de casa. Era

do meu pai! Bora esvaziá-la no fi m das aulas!

A reação de todos foi qualquer coisa como: «Ehhhh! Somos bué

de malcomportados! Bora fi car bêbados depois das aulas!»

Já a minha reação foi uma pergunta a que o miúdo nem deu

resposta:

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Christian Figueiredo de Caldas

– Eh, pá, gamaste a garrafa ao teu pai? E se ele descobre?

Digamos que eu era um cagão. O meu maior medo era ser cas-

tigado por me ter metido numa cena que alguém fez e levar por ta-

bela por querer ser um miúdo fi xe e não contrariar o resto da malta.

Os meus pais eram demais! Mesmo assim, tudo

o que fazia era a pensar neles. Era como uma troca: eles eram liberais

e deixavam-me fazer tudo, mas eu não queria dececioná-los. Só por

pensar que me poderia lixar por estar num grupinho a beber vodca

à saída da escola… Acho que os iria dececionar bastante.

Enfi m, desde que aquela vodca apareceu, e só por ter olhado

para a garrafa, eu já estava metido no esquema pós-escola para

irmos beber aquilo. Mas querem saber uma coisa?

DETESTO BEBIDAS DETESTO BEBIDAS ALCOÓLICAS! ALCOÓLICAS!

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EU FICO LOKO

Na adolescência é assim. Fazemos muita coisa não porque

gostamos, mas para sermos aceites no grupo. Se eu fi zesse só

aquilo de que gostava na adolescência, provavelmente seria o

puto mais isolado e odiado da turma. Tentei sempre dosear o que

queria com um bocadinho (muito) do que não queria, só para ser

aceite.

Voltando à garrafa de vodca: o dia estava a correr bem…

até que chegámos à última aula do dia: Educação Física.

Só aqui para nós: uma disciplina que eu detestava. Nunca fui

muito dado aos desportos, não gostava de correr e era péssimo

em tudo. Sobrava o quê? Ser gozado pelo pessoal todo, por não

saber jogar nadinha nas aulas.

Estava borradinho de medo. Algo me dizia

que aquela cena da garrafa de vodca ia dar merda. Primeiro, era

uma garrafa inteira na mochila de um aluno; segundo, ele queria

beber dentro da escola, antes de irmos embora. E aí é que está a

estupidez: porquê na escola? Não podíamos ir para um sítio qual-

quer, afastado, isolado, que não desse problemas? Não! Na ado-

lescência, se não há adrenalina, não há gozo.

Havia um pequeno corredor na escola onde era deixado o

lixo. Ninguém lá ia, na verdade. Só quem queria inventar se metia

ali. Pois bem. Era lá que estavam a combinar beber a vodca.

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Christian Figueiredo de Caldas

Os meus amigos ora corriam para um lado, ora corriam para o

outro. Estávamos a jogar futebol, uma modalidade em que eu era

pós-graduado em ser péssimo.

O momento da minha premonição – de que algo ia correr mal –

estava quase a acontecer. Foi quando um menino da turma rematou

a bola com tanta força que o objetivo dele não era acertar na baliza,

mas acertar na Muralha da China!

Há sempre um totó que dá cabo das cenas, não é? Quis armar-se em engraçadinho e chutou a bola com força.

E o fi m da história é sempre: ou a bola magoa alguém, ou desaparece,

ou vai para tão longe que o pessoal tem de tirar à sorte para ver quem

é que a vai buscar. NAQUELE DIA, A BOLA ACERTOU NA MOCHI-

LA DO MIÚDO QUE TINHA TRAZIDO A VODCA. A minha reação

foi olhar para todas as quarenta mochilas que estavam a um canto do

campo e pensar: «NEM DE PROPÓSITO!»Naquele momento, eu só queria saber de uma coisa: ter-se-ia

partido a garrafi nha? Obviamente, tinha acontecido. Fui logo bus-

car a bola e verifi car as condições da mochila.

Não podia ser de outra maneira. A mochila estava a começar a

fi car ensopada, e o cheiro a álcool já dominava aquele espaço do

campo de jogos, e, pior ainda, um caco de vidro atravessou a mo-

chila e furou a bola. Eu, por ser o que mais preocupado estava, era

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EU FICO LOKO

o que tinha mais tendência para fazer asneira. Hoje, pergunto-me:

«Mas porque é que fui buscar a bola?»

Tinha inúmeras opções à disposição naquele momento: não ir

buscar a maldita bola e deixar as coisas acontecer. Porém, pelo fac-

to de ter ido, teria de ser eu a explicar tudo ao professor, que, aqui

entre nós, era um quadradão, MESMO QUADRADÃO. E já estava

nervoso.

EIS A QUESTÃO: COMO EXPLICAR QUE A BOLA ESTAVA

FURADA, A CHEIRAR A VODCA, E QUE O CHÃO ESTAVA

MOLHADO E TINHA AQUELE CHEIRO DE FIM DE BAILE DE

FIM DE ANO? A minha sorte foi o toque. Pois, o toque. É, de cer-

teza, a sorte mais cliché do mundo, e até parece a cena de um fi lme.

Naquele instante em que tive tempo de analisar a situação e pensar

«Estou feito», deu o toque para a saída!

Os meus amigos vieram a correr, juntaram-se os quatro que

sabiam da existência da garrafa, apanhámos imediatamente a mo-

chila, escondemos a bola e fomos para os balneários.

A vodca escorria sem parar mochila abaixo. Era como uma grande peneira coadora de sumo. Eu não

sabia o que estava ali a fazer, a dar cobertura aos meus amigos que

se queriam embebedar na escola. Como é que me fui meter naquela

situação?!

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Christian Figueiredo de Caldas

Acho que, quando um adolescente está lixado, põe-se a rir. Ime-

diatamente, perceberam? Os meus amigos começaram a ter um ata-

que de riso, e eu entrei na onda e ri-me da situação também. Cinco

idiotas a secar vodca na casa de banho da escola, a rir e a falar alto.

É preciso fazer mais alguma coisa para chamar a atenção? Pois…

Foi exatamente cinco minutos depois. A porta da casa de banho abriu-se e só ouvimos uma voz tonitruante:

– O QUE É QUE SE ESTÁ A PASSAR AQUI? MAS QUE CHEIRO VEM A SER ESTE?!

Ficámos todos congelados. Ninguém se mexeu e, claro, todos

fi caram mudos e calados. Acho que, quando estamos entre a espa-

da e a parede, e sabemos que agimos mal, a nossa primeira atitude

é fechar a boca, fazer cara de desespero e baixar a cabeça – decla-

rando-nos culpados –, não?

O professor olhou para a cara de cada um de nós. O momento

de tensão prevaleceu e ninguém disse nada. Só me vinham duas

palavras à cabeça: «Estamos feitos.»

Acho que, se não tinha já feito cocó nas calças, estava quase.

Odeio os momentos de tensão por isso mesmo: porque não sei o

que vai acontecer, e fi co com medo e dá-me uma vontade enorme

de cagar, literalmente.

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EU FICO LOKO

Depois de encarar cada um de nós e de criar um dos maiores

momentos de tensão da minha vida, o professor olhou para um

dos meus amigos, que por coincidência era o dono da mochila e

consequentemente da vodca, e disse:

– Se qualquer coisa deste género se repetir, vai haver conse-

quências. Limpem essa porcaria e vão para casa!

Quando ouvi aquele «VÃO PARA CASA!», entrei no

Paraíso. Foi o que desejei ouvir durante todo o dia: «VAI PARA CASA, CHRISTIAN.»

Eu não queria armar-me em malandreco e pôr-me a beber aquela

vodca depois das aulas; não queria estar na aula de Educação Física e,

bem vistas as coisas, também não queria ter ido às aulas. Aquele «vai

para casa» podia ter acontecido mais cedo; poupava-me um dia inteiro

de tensão, por saber que as coisas iam correr mal com aquela vodca.

OU EU SOU UM AZARADO DOS SETE COSTA-DOS OU ENTÃO AS COISAS QUE FAZEMOS ÀS ESCONDIDAS GERAM UM CARMA INSTANTÂ-NEO. É INCRÍVEL: FAZES CENAS ÀS ESCONDIDAS E HÁ SEMPRE ALGUÉM QUE DESCOBRE TUDO. VÁ-SE LÁ PERCEBER ISTO!

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