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1
Índice
PREFÁCIO ....................................................................................................................................................................... 3
1. INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................. 5
1.1 ENQUADRAMENTO METODOLOGICO ......................................................................................................................... 8 1.2 UMA PESQUISA SITUADA ........................................................................................................................................ 12
1.3 DEMARCAÇÃO DO CAMPO DE ESTUDO .................................................................................................................... 14
2. UM BAIRRO SÓCIO ESPACIALMENTE CARACTERIZADO ......................................................................... 18
2.1 UM TERRITÓRIO LONGAMENTE SEGREGADO........................................................................................................... 19 2.2 UM BAIRRO POPUPLAR ............................................................................................................................................ 22 2.3 A IDADE DAS TRANSFORMAÇÕES ........................................................................................................................... 25
3. AS INTERVENÇÕES URBANÍSTICAS E O OLHAR ANTROPOLÓGICO .................................................... 29
3.1 A ACÇÃO SOBRE O ESPAÇO PUBLICO....................................................................................................................... 31 3.2 A INTERVENÇÃO SOBRE O CONTEXTO SOCIAL ........................................................................................................ 33 3.3 O DISCURSO DO PATRIMÓNIO E DA CRIAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ......................................................................... 35
4. OS PLANOS DE INTERVENÇÃO NA MOURARIA ............................................................................................ 38
4.1 REDEVELOPING THE PAST TO BUILD THE FUTURE: QREN MOURARIA .................................................................... 39 4.1.1 O PA QREN................................................................................................................................................... 40 4.1.2 Do papel à rua ............................................................................................................................................... 42 4.1.3 Dentro do plano ............................................................................................................................................. 45
4.2 DESDE O “URBANO” PARA O “SOCIAL”: PLANO DE DESENVOLVIMENTO COMUNITARIO DA MOURARIA ................ 47 4.2.1 O Plano de Desenvolvimento Comunitario da Mouraria .............................................................................. 48 4.2.2 Fase I: O grupo e os seus valores .................................................................................................................. 52 4.2.3 Fase II: a avaliação do territorio ................................................................................................................... 54 4.2.4 Fase III: a definição dos objectivos ............................................................................................................... 57
5. A ANÁLISE DOS PLANOS: METODOS, IDEIAS E SIGNIFICADOS DAS INTERVENÇÕES ..................... 65
5.1 OS EIXOS DAS INTERVENÇÕES ................................................................................................................................. 65 5.1.1 A (re-)definição das fronteiras ....................................................................................................................... 66 5.1.2 A prática do espaço público .......................................................................................................................... 68 5.1.3 A composição sócio-económica .................................................................................................................... 72 5.1.4 Patrimonialização e identidade ................................................................................................................... 75
5.2 A “ABERTURA” .................................................................................................................................................... 77 5.2.1 As linhas da “abertura” ................................................................................................................................. 78 5.2.2 O enfoque da participação ............................................................................................................................. 80 5.2.3 Participação, arte e “abertura” .................................................................................................................... 83 5.2.4 O paradigma da “abertura”: para uma hemenêutica do processo de reforma ............................................. 86
6. VIVER A REFORMA: EXPECTATIVAS, MUDANÇAS E VIDA QUOTIDIANA NO BAIRRO .................... 92
6.1 A MUDANÇA DO ESPAÇO PÚBLICO .......................................................................................................................... 93 6.2 A MUDANÇA DO CONTEXTO SOCIAL ....................................................................................................................... 95 6.3 A MOURARIA ENTRE FADO E “MULTICULTURALIDADE”: ALGUMAS DEFINIÇÕES ENDÓGENAS ............................... 97 6.4 A ABERTURA NOS DISCURSOS DOS MORADORES ..................................................................................................... 99
CONCLUSÕES ............................................................................................................................................................. 101
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................................................... 105
SITES CONSULTADOS .............................................................................................................................................. 111
NOTÍCIAS EM JORNAIS, BOLETINS INFORMATIVOS, REVISTAS .............................................................. 111
REFERÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS ................................................................................................................ 112
ANEXO I / II .......................................................................................................................................................... 113/118
2
La città vecchia (A cidade velha)
Nei quartieri dove il sole del buon dio non dà i suoi raggi,
ha già troppi impegni per scaldar la gente d’altri paraggi;
Una bimba canta la canzona antica della donnaccia:
“Quel che ancor non sai tu lo imparerai tra le mie braccia”;
[...]Una gamba qua, una gamba là gonfi di vino,
Quattro pensionati mezzo avvelenati al tavolino;
Li troverai là col tempo che fa, estate e inverno,
A stracannar, a stramaledir: le donne, il tempo e il governo;
[...] Se ti inoltrerai lungo le calate dei vecchi moli,
In quell’aria spessa carica di sali, gonfia di odori;
Lì ci troverai i ladri, gli assassini e il tipo strano:
Quello che ha venduto per tremila lire sua madre a un nano.
Se tu penserai e giuducherai da buon borghese,
Li condannerai a cinquemila anni, più le spese;
Ma se capirai e li cercherai fino in fondo,
Se non sono gigli, son pur sempre figli,
Vittime di questo mondo.
(F. De André 1965)
3
Prefácio
Pouco passava do meio-dia quando a Jaipur Maharaja Brass Band cruzou aquele
pequeno largo através do qual a Rua Marquês Ponte de Lima desemboca no Largo do
Terreirinho. Um pequeno grupo de homens e mulheres desfilava entre uma confusão de
percussões e flautas em frente de uma multitude de faces surpresas e curiosa.
Quando me comecei a interessar pela Mouraria estavam a começar as Festas
Populares naquele largo, desde os becos às esquinas, e por entre seus arredores
ressoavam palavras, cheiros e sons de uma tradição cheia de costumes para mim
«exóticos» e desconhecidos. Pelas ruas gargalhadas cruzavam-se com berros enquanto as
sardinhas a grelhar em cada esquina deixavam um rasto de odor ao som da música pimba
propagada através das janelas e portas sempre abertas. Dois meses depois, naquele
mesmo largo, os mesmos sentidos vinham estimulados por cores e sons diferentes,
provocados por uma comitiva de indianos, residentes e estrangeiros, que desfilavam
através das ruas ao ritmo de uma fanfarra.
Como pode mudar a ideia que nós temos de um lugar? O que é que muda o aspecto
de um sítio em tão pouco tempo? Será a transformação da sua estrutura arquitectónica?
Será a alternação dos tipos de pessoas que lá moram ou que costumam utiliza-lo no dia-a-
dia? Ou dependerá talvez da mudança face às representações e aos significados que lhe
vem atribuídos pelas instituições que o governam e as pessoas que o visitam, ou pelo
contrario, por quem lá mora e constrói lá a sua existência quotidiana?
O tipo de desorientação que eu tive, jovem italiano que escolheu estudar em Lisboa,
frente a duas situações completamente diferentes que aconteceram a distância de pouco
tempo, no bairro de Mouraria, provocou a minha curiosidade e estimulou o meu
imaginário. A uma primeira visão característica que tinha da Mouraria, referida aos
Santos Populares, aos arraiais e ao Fado, se puntava-se uma outra, tão diferente quanto
fortemente caracterizada. Decidi então começar a investigar sobre este bairro, e cruzei-
me logo com um importante processo de mudança que estava a acontecer.
4
Desde o Outono do 2011 até ao Verão do 2012, o bairro da Mouraria e os seus
arredores estão envolvidos numa radical acção de intervenção a nível urbanístico que
pretende restaurar o tecido arquitectónico e reorganizar o cenário económico e social do
território. Ela age principalmente no espaço público no qual pretende dar início a uma
melhoria da qualidade dos equipamentos ao mesmo tempo que pretende requalificá-los
sob diferentes significados identitários e culturais que fazem referência ao lugar. Para
além disso, a acção tenta incutir novas práticas de utilização e apropriação do espaço
público, através do envolvimento de novas e diferentes forças sociais, actividades
artísticas e culturais e novos padrões de desenvolvimento económico. Este projecto de
reforma articulado é implementado através das obras de dois planos principais: o QREN
Mouraria e o PDCM. O primeiro aponta para a requalificação do espaço público, a
reabilitação de prédios de interesse histórico e cultural e a disposição e capacitação do
conjunto territorial para a sustentação de um novo e massivo processo turístico. O
segundo complementa-se com o primeiro desenvolvendo importantes projectos de acção
social, desde a prevenção de fenómenos de risco e pobreza que caracterizam o território
até a promoção de eventos e actividades artísticas que apontam para o envolvimento da
população numa renovada forma de participação na vida pública do bairro.
A análise destes dois planos levou-me a considerar a existência de importantes
visões e conceptualizações que inspiram a acção e as práticas políticas de alguns modelos
de reforma urbanística que tentam intervir no território para implementar determinadas
dinâmicas de mudanças sociais e representativas que definem (endogena e
exogenamente) um bairro.
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1. Introdução
Applied anthropology is philosophy in action.
(Godin 2005: 111)
A investigação pretendeu fazer uma análise sobre os planos de reforma sócio-
urbanística1 que se estão a desenvolver no bairro da Mouraria. No contexto de estudo da
antropologia aplicada, que é a especialização deste mestrado, o presente trabalho tenta
estudar de uma perspectiva crítica os eixos de intervenção, as práticas e as acções sobre
as quais se implementam estes planos. Procura-se analisar quais serão os focos da
reforma e as operações de produção de sentido que legitimam tais intervenções. Tenta-se
portanto perceber como através das peculiaridades sociais, económicas e “culturais” de
um bairro, os planos de reforma sócio-urbanística tentam implementar dinâmicas de
mudança social e económica no território e como tais dinâmicas serão suportadas pela
construção e a introdução de novas imagens e valores caracterizados do bairro. Em
segundo lugar, a pesquisa tenta perceber como e em que medida esta obra de reforma terá
sido concebida a partir do ponto de vista dos moradores, qual será o grau de
envolvimento deles no processo de planificação e actuação, qual será o nível de
1 Neste trabalho decidiu-se utilizar a locução “reforma sóciourbanística” em referência ao conjunto de planos,
estratégias e tipologias de intervenção que pretenderam implementar uma mudança social ou espacial no bairro da
Mouraria. Como se verá no capítulo 3, no âmbito dos programas de intervenção das políticas urbana dos últimos vinte
anos, procedeu-se a uma categorização das especificidades que distinguiam objectivos e métodos de implementação das
diferentes obras de intervenção no contexto urbano. Deste enquadramento saíram quatro tipos de intervenção (p. 29).
Com o substantivo “reforma” no entanto, não se entende identificar um preciso critério de intervenção, mas um um
mais amplo conjunto de métodos e planos implementados ao fim de uma mudança urbana e social do território,
enquanto esta resumem dentro de si estratégias e intervenções de diferente orientação.
6
concordância entre as acções dos planos e as reais necessidades expressadas pelos
habitantes do bairro e, por fim, como foi vivido por eles todos o período de
implementação da obra.
Para tentar alcançar estes objectivos o trabalho foi desenvolvido através das
seguintes fases operativas:
1) Perceber a estruturação dos planos de reforma assim como as suas componentes
institucionais e associativas: as entidades envolvidas e os papéis que elas desenvolvem no
bairro.
2) Através da observação participativa no processo de planificação, identificar as
questões, os temas e as soluções destacadas pelos diferentes actores sociais que fazem
parte da implementação dos planos.
3) Evidenciar as questões, os temas e as soluções propostas pelos indivíduos e os
grupos sociais que moram ou vivem quotidianamente no bairro e que, no entanto, não
foram abrangidas na estruturação dos planos.
4) Identificar temas e focos de actuação da obra de reforma para tentar definir as
ideias subjacentes através das quais foram implementadas as acções e as intervenções dos
diferentes planos.
5) Viver a obra de mudança em contacto com a população do bairro para entender
como ela é percebida pelos moradores, de que forma condiciona a suas vidas e se ela
respeita as suas expectativas e necessidades.
Este trabalho é elaborado no âmbito do Mestrado em Antropologia Aplicada,
domínio que está desenquadrado do tradicional contexto académico para experimentar
um novo tipo de enfoque dirigido à acção e à implementação dos conhecimentos
antropológicos, onde estes possam ser um contributo nos processos de planificação de
mudança sociocultural.
Segundo a definição de Georg Foster (1969), esta perspectiva identifica aquele
campo antropológico que sai das teorizações do contexto académico para participar em
7
programas sociais que têm por objectivo a mudança de determinados comportamentos
humanos, ou a procura da melhoria de problemas sociais ou económicos contemporâneos
que afectam determinados grupos humanos. Esta perspectiva, como argumenta Erve
Chambers, define o complexo conjunto de perspectivas teóricas, métodos e estratégias
dirigido à aplicação das práticas e dos dados antropológicos ao estudo e á resolução dos
problemas sociais contemporâneos (Chambers 1989). Aliás, John Barnes identifica-a
como um tipo de “disciplina” que parte das teorias, dos métodos e das práticas
etnográficas da ciência antropológica para entrar de maneira “activa” e propositada nas
problemáticas que envolvem os diferentes contextos humanos (Barnes 1977).
Delineia-se assim um tipo de disciplina que se afasta, pela sua necessidade de agir
em contexto, dos métodos e das finalidades da antropologia clássica formada no âmbito
académico. Para Satish Kedia e John Van Willigem (2005), a antropologia aplicada
representa uma perspectiva multidisciplinar, com metodologias rápidas para dar respostas
a problemas que precisam de uma acção imediata. Por sua vez, Marcial Gondar (2003)
afirma que a antropologia aplicada é outro tipo de antropologia, uma linha autónoma com
diferentes objectos, teorias, papéis, métodos e intenções.
Fora do âmbito académico, o papel da antropologia transforma-se e integra-se nas
dinâmicas contemporáneas que dantes só estudava. Com ela, modifica-se também o papel
do antropólogo que troca de referentes na entrega dos resultados dos seus estudos. Como
explica Chambers (1989), o “antropólogo aplicado”, encontra-se mais dependente de
contratos do que de subsídios, como acontece na antropologia académica. Assim os seus
interlocutores tornam-se os governos, as organizações não-governamentais, associações
culturais, tribais e étnicas, etc.
As tipologias de estudos que se podem desenvolver a partir desta perspectiva são,
portanto, múltiplas. Van Willigem (1993) resume-as em dois grupos principais:
intervention antrhropology e political research studies. O primeiro grupo identifica as
actividades de pesquisa referidas aos campos da cooperação ao desenvolvimento, a
mediação cultural e o marketing social. Neste grupo entra também um enfoque
antropológico particular definido sob o nome de “antropologia activa”. Esta perspectiva
de análise, como explicam Kirstem e Elsass, não se limita à pesquisa e à divulgação das
informações, mas contribui e colabora com os sujeitos estudados para promover, apoiar
ou defender as suas revindicações e as suas necessidades (Kirstem & Elsass 1990). Esta
“linha” dos estudos aplicados pode ser também definida com o nome de antropologia
defensiva ou representativa, o seu papel é aquilo que Sol Tax (1975) define como
advocacy anthropology ou seja o de uma antropologia que se torna porta-voz e
8
representante dos problemas locais que afectam as comunidades em contextos de
reivindicações ou negociação em particulares dinâmicas de mudança.
No segundo grupo identificado por Van Willigen (1993) entram aqueles estudos de
investigação trabalhados no âmbito da avaliação e implementação de políticas sociais,
nomeadamente os estudos de verificação de politicas públicas como os relacionados com
o desenvolvimento tecnológico de um grupo social ou com a gestão dos recursos
culturais de um território. Por exemplo, os estudos de impacto social que apontam para a
investigação do tipo de adaptação e integração num dado contexto social de dinâmicas de
mudança particulares desenvolvidas através de políticas de reforma.
A vertente aplicada desta pesquisa decorre principalmente do facto de sair de
questões de natureza prática, como a reforma sócio urbanística de um bairro, para
problematizar de forma crítica alguns dos temas do “enfoque aplicado” aqui em cima
indicados. Em particular, ao longo deste trabalho deu-se grande importância a perceber e
considerar o ponto de vista dos locais no decorrer do processo de reforma; analisar e
avaliar a implementação de uma política urbana num determinado contexto socio-
espacial.
Como temos considerado, a figura do antropólogo aplicado é assim “utilizada” em
processos de diferente natureza que o envolvem em dinâmicas particulares de intervenção
sobre contextos sociais, económicos ou culturais específicos. Apesar disso, este trabalho
não se apresenta como uma pesquisa comissionada por uma instituição o por um
programa específico de desenvolvimento ou intervenção num contexto de mudança
sociocultural, antes pelo contrario, diferencia-se por ser um trabalho produzido dentro de
contexto académico. Neste sentido, a perspectiva da antropologia aplicada foi utilizada
como ponto de partida para um estudo sobre um plano de reforma sócio-urbanística, que
implicava a projectação e a implementação de processos de mudança social de um
território. Neste trabalho, tentou-se estudar de perto os mecanismos e as dinâmicas que
subjazem à organização e à planificação de um programa de reforma, assim entendido
pelas instituições e as entidades promotoras; ao mesmo tempo que se analisavam os
resultados desta reforma e o seu impacto na população.
O trabalho de campo então esteve baseado na participação nas fases de projecto e
divulgação do plano implementadas pelas instituições e as entidades associativas que o
promoviam e também por uma prolongada presença no território de estudo, que tentou
definir eventuais relações de poder ou dinâmicas de subalternidades entre os agentes
implicados no processo de reforma. Isto trousse a estabelecer profundas e amistosas
relações com os diferentes actores que protagonizaram este processo de mudança:
9
representantes e lideres das associações, moradores e pessoas envolvidas na vida
socioeconómica e cultural do bairro no intuito de tentar definir como este processo age no
contexto social local.
1.1 Enquadramento metodologico
O procedimento adoptado neste trabalho foi o de observar elementos provenientes
tanto da teoria como da observação empírica, sem recusar um desvio pela história social a
partir de certos elementos capazes de contribuir para a compreensão e a explicação dos
fenómenos estudados na particularidade do seu contexto social. Assim, servimo-nos de
diversos mecanismos e processos metodológicos de forma a assegurar o trabalho de
recolha, de organização e de análise dos materiais.
Na primeira fase do trabalho, optou-se pela pesquisa no terreno a partir de algumas
técnicas que se consideraram fundamentais: a observação participante; a entrevista
centrada sobre um determinado tema; a entrevista livre sobre um tema geral, ou até
mesmo a conversa informal que se revelou muito enriquecedora, permitindo encontrar
chaves de leitura que, de outra forma, não seriam encontradas. Através destas entrevistas,
os informantes exprimiram as suas ideias, contaram a suas experiências e relembraram
momentos da própria vida que definiram as suas relações com o local. Porém, mais do
que registar os discursos dos inquiridos e quantifica-los, procurou-se descobrir os
significados, as visões e as concepções que estavam atrás dos seus discursos. Porém,
sobretudo pelo que se refere a alguns discursos institucionais, teve-se em conta que, por
vezes, o que estava dito podia aparecer uma tentativa de encobrir aquilo que era
fundamental. Mas, como refere Moisés Espírito Santo, é na descoberta dos verdadeiros
porquês que reside o papel da ciência que é, por definição, um combate sobre as
aparências e um questionamento do senso comum (Geertz 1999). Para atingir ao
verdadeiro significado de determinados discursos políticos ou sociais, produzidos na
construção de uma reforma sócio - urbanísticas, é necessário reconhecer o sistema de
valores em que estas se enraízam.
A observação participante em alguns acontecimentos, nomeadamente as fases de
projecto desenvolvidas pelas entidades institucionais e as associações que operam no
território e as realidades de vida quotidiana desenvolvidas pelos moradores, revelou-se
fundamental porque permitiu a recolha de informações pertinentes. Neste sentido,
10
privilegiou-se a observação participante porque permitiu perceber a complexidade das
interacções sociais definidas no interior do processo de planeamento. Além disso, a
observação participante resultou a técnica mais apropriada para perceber o significado
emocional de muitos discursos feitos sobre o lugar, que identificavam posições e
conceptualizações diferentes nas escolhas das estratégias que deviam definir uma
intervenção sobre este lugar.
Outro aspecto que resultou da observação foram os contrastes internos com os quais
os discursos das associações, dos moradores e das instituições tentavam descrever o
contexto social do bairro e condicionar as estratégias politicas e sociais para implementar.
Isto resolveu-se num processo de mediação entre as diferentes sugestões e ideologias,
sem no entanto excluir dinâmicas hierarquizadas referidas aos processos decisionais e ao
controlo de poder. É nestas situações que volta se volta a definir a grande tarefa do
etnógrafo, a qual consiste, como afirma Claude Lévi-Strauss, em evitar idealizações
preconcebidas para que as categorias sociais sejam explicadas desde o interior e não
sejam definidas a priori (Lévi-Strauss 1978).
A conjugação de diferentes técnicas permitiu-nos obter dados sobre valores,
sentimentos, reacções emotivas (ou aparentemente racionais) dos indivíduos envolvidos
na experiência de mudança do bairro onde vivem. A selecção dos informantes teve em
conta as diferentes classes etárias, de género, de status politico ou social, que
representassem as diferentes categorias implicadas no processo de mudança.
Uma segunda fase do trabalho insere-se uma “metodologia da interpretação”, onde
se dedicou importante espaço à análise e à avaliação do material recolhido. Como refere
Bernardo Bernardi, “o trabalho de análise representa a cúpula do trabalho científico. Da
fase ‘gráfica’ da recolha passa-se à fase ‘lógica’ e comparativa” (Bernardi 1974:147).
Passa-se assim da fase técnica ligada à observação e à recolha no trabalho de campo, para
a fase principal da descrição e da explicação dos materiais recolhidos. Esta explicação,
perante material tão diversificado, acabou por basear-se numa análise comparativa e
multidimensional. A simples observação etnográfica cumpre a importante função de nos
auxiliar a compreender o modo como as dinâmicas sociais se realizam no contexto de
estudo situado. O propósito da investigação científica é, no entanto, ir além da descrição
e procurar uma explicação. Um tal nível de análise poderá tentar descortinar os porquês
da implementação deste programa de reforma, a sua função (casos existam algumas) e as
condições segundo as quais serão perpetuadas e modificadas. Por isso é importante saber,
como defende Evans-Pritchard (1978), os significados que os indivíduos lhe atribuem.
11
Na definição do tema de estudo, foram consultados diferentes autores que abordam
os diferentes temas que saíram da análise da reforma. A operação de focalização teórica,
no enquadramento da pesquisa, não se revelou simples enquanto tal reforma abrangia
diferentes aspectos sociais, económicos e culturais, cada um dos quais representa
peculiares objectos de estudos da ciência antropológica. O intento principal do trabalho
foi descrever os processos de mudança que envolvem um bairro. Partiu-se então da
definição de bairro, através das significações sociais às quais isto remetia. Tentou-se
depois aprofundar os temas e as dinâmicas que vinham a desenvolver-se dentro das obras
de reforma urbanística, tendo em consideração a especificidade do contexto no qual se
desenvolviam. Para fazer isso, foi importante aprofundar o conhecimento sobre o
contexto social no qual se verificavam as dinâmicas investigadas. A este respeito foram
consultados diferentes documentos, monografias, artigos e imprensas locais, os quais
constituíram fontes importantes para o fornecimento de dados socioculturais e históricos
relevantes para o desenvolvimento da investigação.
Resumindo, o procedimento adoptado no desenvolvimento desta investigação foi o
de observar elementos provenientes tanto da teoria como da observação empírica,
recorrendo à monografia intensiva, ao exercício da interdisciplinaridade e à análise
estatística. A observação participante, a entrevista estruturada ou semi-estruturada e a
interpretação dos dados recolhidos serão, pois, as técnicas privilegiadas no
desenvolvimento desta investigação. Teve-se em consideração a observação feita por
Roberto da Matta quando diz que “a nada vale um conjunto de técnicas muito sofisticadas
se o pesquisador não esta preparado para observar a realidade, transformando as
experiências vividas em dados sociológicos” (da Matta 1986:92). Ao mesmo tempo teve-
se em consideração também a posição de Henri Mendras quando afirma que a observação
dos factos sociais não pode ser iniciada sem um mínimo de teoria (Mendras 2000). A
mesma ideia é retomada, entre os outros, por Evans-Pritchard ao referir que a
investigação antropológica não se pode levar a cabo sem teorias e sem hipóteses, pois as
coisas só se encontram se se procuram, embora muitas vezes se encontre algo diferente
do que se pretendia encontrar (Evans-Pritchard 1978). Daì a importância de um quadro
teórico e conceptual que sustente, mas ao mesmo tempo problematize, os dados
recolhidos. Porém, não podemos esquecer, como nos lembrava o mesmo autor, que uma
teoria bem fundamentada não é mais que uma generalização obtida a partir da
experiência e por ela confirmada.
No passado considerava-se que os documentos eram a matéria-prima necessária ao
investigador social. Hoje, a matéria-prima são os próprios processos sociais. Durante esta
12
investigação, procurou-se participar de forma mais cuidada, nas fases de projectação da
obra de renovação. Participando das suas diferentes fases, dentro e fora do contexto
tentou-se perceber como estas constituiam o complexo conjunto de práticas e valores que
remetiam para o desejo/necessidade de mudança de um bairro. A pesquisa de campo
revelou intenções, pontos de vista e conceptualizações de como um determinado território
devia ser modificado, segundo as exigências das diferentes componentes sociais que lá
actuam.
1.2 Uma pesquisa situada
Esta pesquisa situa-se num espaço e tempo particulares.
O espaço é o bairro da Mouraria, ou melhor, aquele novo território que está sendo
definido pela reforma sócio - urbanística, como sendo Mouraria. É um espaço amplo e
variado seja nas suas especificidades urbanísticas seja nos diferentes contextos sociais
pelas quais as diferentes partes do território são caracterizadas.
Nessa Mouraria moram portugueses de velha geração, alguns lisboetas de gerações,
outros imigrados do norte do país há cinquenta, sessenta anos. Eles compõem o estrado
social que se identifica (e é identificado) culturalmente através da revivificação, em
particulares momentos do ano, de ritos e de práticas ligadas à tradição popular. Estes
habitantes do bairro identificam-se sócio – espacialmente numa “zona histórica” do
bairro, dentro aquilo que uma vez era considerado o “arrabalde mouro” e agora vem mais
bem referido como o “berço do Fado”.
Mas essa Mouraria é também um território fortemente implicado em dinâmicas de
imigração. A componente chinesa no bairro, conta com um vasto número de indivíduos
que, na sua maioria, geram actividades económicas ligadas à importação de produtos
têxteis e alimentários. Em particular esta gere os dois lugares símbolos do comercio na
Mouraria: O “Centro Comercial da Mouraria” e o “Centro Comercial de Martim Moniz”.
A comunidade bengali, de recente instalação, representa uma outra componente
socioeconómica e cultural muito forte dentro do bairro. Esta trata em particular das
actividades económicas ligadas às lojas de internet-point e minimercados. Esta representa
uma entidade bastante coesa e definida dentro do bairro uma vez que se se organiza numa
comunidade que se identifica através da partilha de determinados espaços de culto (a
mesquita), e a a organização de eventos que reafirmam as próprias tradições e práticas
culturais. Outras minorias são compostas pelos indianos, africanos e ciganos que
13
desenvolvem uma estreita convivência na parte norte do bairro, nos arredores do Largo
do Intendente.
A forte presença de imigração junto com a recente chegada de novos indivíduos
provenientes de outros bairros sociais recentemente requalificados complexificou
algumas problemáticas de exclusão social já condicionadas por precedentes dinâmicas
ligadas à venda e ao consumo de substâncias estupefacientes.
É por isso que no cenário social do território regista-se a forte presença de
associações e entidades não institucionais que agem nas diferentes dinâmicas sociais que
caracterizam o bairro. Muitas destas operam no contexto da luta contra a exclusão social
com projectos de suporte das faixas sociais mais debeis, acções de prevenção dos
fenómenos de risco e de marginalidade, ou incluso a promoção de iniciativas lúdicas ou
culturais para jovem ou idosos da zona. Outras operam na promoção e na valorização
cultural do território que fundam as suas obras na organização de eventos folclóricos e
nas actividades abertas à “comunidade”. Os promotores e os “funcionários” destas
associações muitas vezes não moram no bairro, nem cresceram nisso, mas tem uma longa
experiência feita de actividades e iniciativas desenvolvidas no território e conhecem
muito bem os diferentes contextos e as dinâmicas sociais sobre as quais actuam dentro do
bairro.
Pensar estudar a Mouraria é como pensar observar um caleidoscópio: cada olhar
tem mil tons, cada movimento determina a aparição de outros olhares. O horizonte
humano tinge-se de tons variegados na paisagem de têmpera do bairro; e o tecido social
revela-se denso e particular.
O tempo da pesquisa inscreve-se dentro dos doze meses nos quais se organizou,
implementou e acabou a primeira parte do plano de reforma que envolve o bairro da
Mouraria. Este tempo foi caracterizado pela sucessão de rápidos eventos. Sendo a obra de
reforma baseada sobre dois planos concebido e planejados em alturas diferentes,
conseguiu-se observar no campo tanto as fases de projectação de um, como as fases de
implementação do outro. A observação no território definiu-se então através de um
“antes”, um “durante” e um “depois” da obra de reforma. Muito embora os limites da
pesquisas fossem aqueles interlocutores e “informadores” diferentes ao longo desta
unidade de tempo. Se no “antes”, nas fases de planeamento, os interlocutores
privilegiados foram os indivíduos das associações e das entidades institucionais que
promoviam os planos da reforma; nas fases “durante” e “depois” do cumprimento das
obras, os interlocutores privilegiados foram os moradores e as pessoas ligadas ao bairro
14
profissionalmente ou emotivamente. Isto comportou um bocado um desequilíbrio, em
sentido cronológico, dos dados e das referências recolhidas no curso da pesquisa, sendo,
os dados recolhidos num primeiro tempo, de matriz diferente respeito aos recolhidos num
segundo. Muito embora esta dinâmica fosse condicionada pelo feito que o
desenvolvimento rápido dos acontecimentos induzia a definir algumas prioridades sobre
onde concentrar no dado momento a própria atencão. Este trabalho apresenta-se então
como um collage temporal de factos e acontecimentos desenvolvidos dentro de um
diversificado contexto social.
1.3 Demarcação do campo de estudo
Se pensarmos na Mouraria descrita por Marluci Menezes (2003, 2004, 2005) , ou
aquela dos arraiais dos Santos Populares, a zona à qual nos referíamos não é maior do
que aquele rectângulo sombrio que encontra o seu centro entre a rua do Capelão e a rua
da Guia, chegando, talvez, aos Lagares, mas não fora das velhas construções do arrabalde
mouro. Pelo contrário, os projectos que estão actualmente a decorrer, os dois planos de
renovação socio-urbanística, estendem o território do bairro de uma maneira exponencial,
delineando novos limites e abrangendo novas zonas.
“Tentar definir como o bairro da Mouraria se inscreve no espaço da cidade a partir
de um perímetro constituído por limites e fronteiras visíveis, pode ser um problema de
difícil resolução, bem como encontrar uma consciência colectiva e homogénea que possa
ser o confim de um bairro, pode tornar-se uma busca sem fim” (Menezes 2004:131). Este
problema revela-se frequente nos estudos sobre os bairros populares de Lisboa, cujos
limites apresentam-se como fruto de construções sociais mais ou menos dinâmicas. Se
pomos como exemplo alguns estudos precedentes sobre outros bairros populares
nomeadameente a Bica (Cordeiro 1997), a Madragoa e Alfama (Costa 1999), estes
evidênciam a maleabilidade dos contornos territoriais que aparecem como territórios
geográficos e sociais aproximativos2.
De uma perspectiva dinâmica e estrutural, “estes territórios aproximativos são
considerados como núcleos de referencia identitária ligados a pertenças sociais, culturais,
físicas e espaciais; mais como demarcações face à outros bairros da cidade, do que
propriamente por uma configuração rígida dos seus limites e fronteiras” (Costa; in
Menezes 2004:132). Então, as dificuldades em trabalhar com as noções de limite e
2 O conceito de territórios geográficos e sociais aproximativos foi expressado pela primeira vez por Olivier Brachet e
pode-se encontrar também na obra de Graça Índia Cordeiro sobre o bairro da Bica.
15
fronteira também vão ao encontro de uma questão bastante actual para a própria teoria
antropológica: a reflexão sobre a noção de lugar. Dito isto, é sempre importante
lembrarmo-nos que os caminhos e as estratégias que um pesquisador poderia tomar na
resolução da controvérsia sobre a definição deste assunto, facilmente poderiam resultar
múltiplos e diferentes. O estudo sobre a demarcação de um campo poderia ser expressado
através da sua distribuição territorial, ou das narrativas e dos discursos nele implícitos;
através dos seus limites ou das conceptualizações e representações dos seus habitantes
(como dos que o vêem desde fora); através das relações sociais ou das práticas que se
desenvolvem nele. Este olhar caleidoscópico arrisca-se a minar ou tornar vão o trabalho
do pesquisador, que se confunde com múltiplas vozes e se perde na relatividade do tempo
e do espaço. A produção do conhecimento sobre as dinâmicas de demarcação
socioespacial de um bairro então, aparece como um processo de fazer e desfazer uma
enorme manta de retalhos para a qual não se sabe que agulha utilizar.
Talvez será melhor começar a considerar a questão a partir do mesmo contexto
bidimensional no qual se situa um bairro. A integração do tempo com o espaço define por
si as construções geográficas e sociais que definem um território. Se a Mouraria na época
mourisca não era mais que um cunho sombrio ao pé de duas colinas, depois de uma
primeira abertura para a cidade o seu território já se expandia de poucos metros, os
suficientes para abraçar a zona das Olarias e criar um primeiro precedente de
reivindicações e estigmatização. A época tinha mudado o curso e o espaço tinha alargado
os seus horizontes. Este fenómeno aconteceu cada vez que a Mouraria esteve envolvida
em processos de mudança arquitectónica e territorial que coincidiam com as necessidades
de a cidade se relacionar com ela de maneiras diferentes. Um território então modifica a
sua forma e o seus limites em relação com os outros territórios, sofre aberturas e
restrições ligadas aos contextos políticos e sociais decorrentes nessa altura e isto muda
também as percepções e as construções símbólicas e cognitivas, (emic e etic), que se
fazem dele.
No caso da Mouraria contemporânea este tipo de olhar assume um significado
evidente. A paisagem urbana está sendo condicionada mais uma vez pelo interesse das
entidades administrativas, e o bairro começa a viver uma época de profundas
transformações urbanísticas (e sociais), dentro de planos geográfico-territoriais bem
circunscritos. Através da análise destes planos, da rede de relações entre os sujeitos
implicados, dos eixos de acção entre instituições e associações, e das iniciativas e
políticas que através deles são promovidas no território, podem-se reconstruir os novos
limites e a nova estrutura do bairro. O bairro, a partir deste olhar, pode ser interpretado
16
como o conjunto daqueles espaços que adquirem umas mesmas circunstâncias políticas
num continuum territorial e local. A Figura 1 (pagina seguinte), por exemplo, descreve o
território da Mouraria segundo a Câmara Municipal e os eixos de actuação do projecto de
reforma urbana no triénio 2010-2013. Aparece aqui uma nova visão do território da
Mouraria, uma concepção ampliada e alargada até aos limites extremos que ainda podem
conter esta palavra. Limites e território completamente arbitrários que não têm em conta
o contexto local, as dinâmicas internas, as diferentes realidades de vida que se
desenvolvem dentro (e fora) dele, mas que aparecem como linhas geométricas traçadas
aproximadamente para compor uma figura que se torne funcional ao tempo e ao lugar.
Por outro lado, a Mouraria está habituada a ver o seu território definido pelo exterior,
visto que nunca teve uma unidade administrativa homogénea e as percepções dos seus
moradores remetiam sempre a um cenário dividido e irregular.
As questões resultantes do meu trabalho surgem do contexto e dos
acontecimentos que envolvem a Mouraria nesta exacta época histórica; e daquela porção
de território que, com ou sem um sentido prévio, definirá uma mesma condição de
mudança para as pessoas e os lugares envolvidos. Foram traçados então limites
arbitrários, mas foram também estabelecidos destinos comuns. Não posso, pelo menos
perante os objectivos que me proponho nesta tese, subtrair-me então à visão e à descrição
expressada pelos agentes que estão a pôr em acção na Mouraria uma profunda mudança
territorial.
17
Figura 13
3 Mapa das intervenções do projecto QREN Mouraria
Fonte: Jornal “Rosa Maria”, Ass. Renovar a Mouraria, Outubro 2011
18
2. Um bairro sócio espacialmente caracterizado
“Lisboa plebeia, quer se revista de resignação, quer se tome de revolta, tem
sempre uma coisa boa na desgraça das suas Mourarias …”
(Araújo[1931]1991:27 vol.3)
“Mouraria rima com chungaria”
(trabalhador no Centro Comercial da Mouraria 1997)4
“Vale dos Vencidos”, “Horta”, “Olaria”, são muitos os epítetos conferidos na
história a esta porção de território da cidade de Lisboa. Vale alagadiço, terra ribeirinha: a
morfologia desta zona foi o motor caracterizador do seu desenvolvimento histórico,
político e social. E pensar que, há séculos atrás, ao pé da Mouraria desembarcavam os
navios5! Da série de ribeiros existentes naquela zona, serpenteavam as águas que
regavam os terrenos férteis de hortas, prados e quintas, que mais de uma vez deram de
comer à população de toda a cidade. A mesma água serviu na implementação da sublime
arte da olaria, criada pelos romanos e continuada pelos mouros. Cunho pendurado que
sobe as encostas das duas colinas primogénitas da cidade, funil capotado: também a sua
forma, bem clara nas visões das pessoas que a habitam e a conhecem, se esclarece com o
advento dos acontecimentos e das épocas históricas. A Mouraria liga a sua fisionomia ao
passado mourisco. Da permanência desse povo “estrangeiro” têm vindo uma série de
características peculiares e uma estruturação particular feita de ruas sinuosas, vielas,
becos sem saida, mas também hortas e casais, num espaço público organizado em função
dessa vida social e religiosa. Escreve Vera Mendes “[Mouraria] nasce depois da
conquista de Lisboa aos mouros por D. Afonso Henriques e testemunha uma história de
cercos, guerras e conquistas que pela benevolência do nosso primeiro Rei irrompe como
4 Frase transcrita durante uma conversa e relatada no trabalho de campo de Marluci Menezes na tese de doutoramento
da mesma autora, intitulada “Entre o mito da Severa e o Martim Moniz, Estudo antropológico sobre o campo de
significações imaginárias de um bairro típico de Lisboa”, UNL-FCSH 2003 5 “Defendem alguns autores que as relíquias de S.Vicente, mandadas trazer por D. Afonso Henriques, teriam
desembarcado no cais situado onde até a pouco tempo se erguia Arco do Marques do Alegrete” [hoje a Praça Martim
Moniz] (1996:13). MENDES V. “Socorro, uma Freguesia Mourisca”, Câmara Municipal, 1996
19
albergue da população mourisca, autorizada a permanecer na cidade mas em território
próprio” (Mendes 1996:16). Deste passado tão autêntico ainda hoje se preserva uma
toponímia perpetuada no tempo e nos lugares: Rua da Mouraria, Beco do Jasmim,
Borratém (de Ber-Atten, Poço da Figueira), conferem os nomes às ruas estreitas e
sinuosas e aos becos ocultos que se desdobram no labiríntico tecido urbano, que de forma
espontânea organizava o arrabalde mouro.
2.1 Um território longamente segregado
De certo modo, como escreve Marluci Menezes (2004), a Mouraria é uma invenção
datada e instituída, através do foral do 1170. Esta origem formal repercutiu,
inclusivamente, na própria materialidade e visibilidade do arrabalde que, inventado como
um espaço segregado para os “mouros vencidos”, teve limites e fronteiras que na época
eram exactos e reconhecíveis. Inicialmente o arrabalde era amuralhado e a sua entrada
facultada por portas com horários de abertura e fecho (Brito J.P. 1999). A Mouraria,
nome que remonta mesmo a esta época, aparecia como um gueto isolado do resto da
cidade. Mas esse primeiro período formativo e constitutivo seria ultrapassado com o
decorrer das circunstâncias sociais, económicas e urbanas, de modo que o território
transbordou as suas próprias muralhas e estendeu-se pelas áreas circundantes, aquelas do
Norte e do Oriente. Devido à intensa actividade económica que ali se desenvolvia (em
particular comercial e artesanal), o arrabalde acabou para atrair segmentos cristãos da
população, que viram a instalar-se na envolvência próxima do bairro (Araujo
[1931]1991). Contudo o bairro continuaria fora das muralhas da cidade, “constituindo-se
como uma espécie de espaço intersticial que, mesmo após a extensão da cidade, com a
urbanização dos campos e o derrube da Cerca Fernandina, condicionou-o do ponto de
vista simbólico e urbano à elaboração de um complexo processo de estigmatização
territorial” (Menezes 2003: 81).
O bairro sempre se caracterizou pela sua pobreza e precariedade habitacional
atraindo, ao longo da sua história, sobretudo segmentos da população com dificuldades
socioeconómicas. Tais características ficaram particularmente evidenciadas a partir do
século XV, com a crescente tendência da cidade de voltar-se para o rio e com aumento da
sua população em função de movimentos migratórios oriundos das zonas rurais do país.
A partir do século XVIII a até meados do século XX, assistiu-se a um exponencial
aumento de população da cidade de Lisboa, pelo que o bairro da Mouraria atingiu a sua
capacidade de ocupação e, em decorrência da sua precariedade socioeconómica e
20
funcional passou, juntamente com outros bairros, a ser conhecido como o bairro pobre da
cidade (Cordeiro 1997). Nos últimos cinquenta anos o território foi atingido por um
fenómeno massivo de imigração de indivíduos provenientes da Índia, da China e de
África que estabeleceram lá o centro das suas vidas económicas e sociais. Isto veio
reforçar a “ideia” de a zona ser um lugar “acolhedor da diversidade” e aumentou os
preconceitos ligados a questões de falta de segurança e perigo. Durante a sua existência, a
Mouraria conviveu com a má fama e a estigmatização dado o seu contexto socioespacial.
A história urbana e social da Mouraria mostra como “o bairro foi inventado e
posicionado de forma a estar depois ou a seguir a algum outro elemento ou referencial
com mais representatividade urbana: nas traseiras do castelo de São. Jorge, por detrás da
zona ribeirinha, atrás da Baixa, etc. À par dos processos sucessivos de mudanças, a
Mouraria continúa a ser indicada como um bairro que está nos lugares traseiros da
cidade”. (Menezes 2005:34). Isto leva-nos a considerarmos a Mouraria como um
território fortemente construído a nível social e espacial face a uma condição de
segregação. De facto, como afirma Van Kempem, o conceito de segregação urbana
implica concentração territorial (Van Kempen & Őzuekren 1998). que, no caso da
Mouraria, nasceu de um espaço demarcado por limites bem definidos que remetiam para
um determinado território, à concentração de aspectos ligados ao “outro” e à diferença.
Tal caracterização determinou a presença de um grupo social particular marcado por uma
divisão espacial, social e cultural.
A própria palavra segregação remete para a ideia de separação de determinados
grupos sociais no espaço das sociedades, como reflexo ou manifestação das relações
sociais que se estabelecem a partir da estrutura e das estratificações sociais (Machado
2009). A história da Mouraria esteve sempre caracterizada por ser um lugar subordinado
ao estabelecimento de determinados grupos sociais e socioeconómicos, bairro que
hospedava as diferenças e os problemas de uma sociedade rigidamente estratificada
socioculturalmente. Nascido como gueto, foi depois território “ocupado” por imigrantes
portugueses e estrangeiros. Ainda hoje, a estigmatização e segregação social da Mouraria
passam pelos conceitos de pobreza e de fenómenos ligados à prostituição, à vadiagem e
ao alcoolismo. Uma estratificação social que se expressava - e ainda se expressa - não só
através da diversidade socioeconómica, mas também através da exclusão no âmbito do
pleno desenvolvimento e acessibilidade aos recursos presentes nas melhores zonas da
cidade.
A segregação é entendida como um fenómeno espacial (Healey 2000). As figuras
históricas que representam o poder e a sua ideologia inscrevem-se no espaço promovendo
21
diferentes valores e manipulando o imaginário socioespacial. A identificação da Mouraria
como lugar traseiro da cidade, a sua conformação urbana, constituíram portanto uns dos
elementos da sua segregação.
O presente trabalho pretende partir da base que o fenómeno da segregação responde
a um processo socioespacial inerente ao exercício de dominação política e à apropriação
desigual tanto dos recursos do espaço como do trabalho, apontando para as relações
dialécticas entre espaço e sociedade (Machado 2009). Ela revela-se na perspectiva crítica
presente na abordagem utilizada para a análise dos planos de requalificação urbana que
pretendem intervir no território, visto que, ainda hoje, bairros como a Mouraria são
naturalmente omissos e inexistentes na estrutura política e administrativa da cidade, nas
estatísticas por freguesia, em registos escritos e documentais de vários tipos (Cordeiro
1997).
No enfoque desta tese a perspectiva dos estudos sobre a segregação ajudar-nos-á a
entender os processos socioespaciais responsáveis pela estruturação do território e a
compreender os mecanismos produtores de relações de integração entre diferentes grupos
e classes sociais. Neste sentido, torna-se essencial termos em conta a importância das
políticas urbanas que são consideradas neste estudo, pois ao mesmo tempo que procuram
encontrar soluções que promovam uma maior mistura socioeconómica e um maior acesso
aos recursos podem, também, vir a revelar mecanismos produtores de uma nova
segregação.
22
Figura 26
2.2 Um bairro popuplar
A condição histórica e as características sociais da Mouraria proporcionaram-lhe
sempre uma posição privilegiada na construção de um imaginário colectivo
continuamente recriado dentro e fora do bairro. Seja qual for o território que ela defina, o
nome Mouraria evoca idealizações referidas a lugares, indivíduos e acções bem
determinadas no espaço e no tempo. O seu passado histórico convidou - e continua a
convidar - a uma estigmatização ligada à “alteridade”, à “pobreza” e ao “perigo”. O seu
estar “de costas viradas” relativo aos outros lugares da cidade, o seu ser segregador de
condição humana e “terra de conquista” de povos extrangeiros - antes os mouros, do qual
vem o nome, e hoje os imigrados - definiu sempre sentimentos fortes e contrastantes
respeito a este território.
6 Mapa da cidade de Lisboa por como definida das duas cercas de muralhas que delimitavam a sua extensão em duas
diferentes épocas históricas. A porção de território à direita do leitor representa o espaço da Cerca Moura (construída
por Dom Afonso Henrique no 1147, logo depois a conquista da cidade). Na parte esquerda do desenho é representada a
sucessiva extensão da cidade definida pela Cerca Fernandina (1373-1375). Mouraria em nenhuma das duas fases
aparece integrada na cidade e o seu território, na época, devia corresponder à parte do desenho onde aparece a escrita do
título.
23
A estigmatização do seu contexto social enraizou-se no tempo com a peculiaridade
de algumas formas artísticas que lá se desenvolveram predominantemente. É assim que,
algures no século XIX, a Mouraria foi “socialmente construída como um bairro que
detinha algumas tradições,” (Menezes 2005:71) No tentativa de descobrir os precedentes
que justificam essa tipicidade e tradição, torna-se necessário ir ao encontro de um sistema
de representações em que se desenvolve numa complexa rede de elementos culturais,
sociais, históricos, urbanos e rurais, sonhos, mitos e idealizações. Nasce assim a
construção social do Fado7, arte musical que canta a poética dos marinheiros que vão por
mar; amor, saudades e vida quotidiana de uma classe pobre e excluída. Nasce neste
período o mito da Severa, que vinculava a tradição do Fado à realidade social da
Mouraria, sendo ela prostituta e cantora que conseguiu casar com um nobre e melhorar a
sua condição humana - sonho e perspectivas comuns entre aquela gente - mas que morreu
cedo com 27 anos, tornando o conto tragédia e a história lenda. Se desenvolve assim a
criação de uma tradição popular, ligada ao povo e à realidade social do lugar, que
introduzia símbolos e representações e reificava um denso e articulado imaginário
colectivo. Mais uma vez este imaginário era produzido e reproduzido quer num contexto
interno ao bairro quer nas representações que a cidade tinha deste.
Durante a época do Estado Novo, estas representações sofreram uma ulterior
marcação e a sua reprodução foi institucionalizada. A tradição popular se convertiu num
veículo de valores e símbolos representativos de uma cultura (Costa 1999). Nasceram as
Festas Populares, através das quais esta tradição é expressada e reproduzida. O processo
de “institucionalização” da cultura popular leva à instituição das marchas populares onde
através da competição e o encontro/confronto entre os diferentes bairros era construído e
fortalecido um discurso sobre a identidade. Identidade, cultura e tradição que
permanecem hoje em dia e se revivificam no período de Junho, quando cada ano se
repetem as celebrações para os Santos Populares e o seu poder tipificatorio revive nos
arraiais, nas marchas, e nos cantos da tradição. Como afirma Graça Cordeiro, “Nos dias
de hoje essas tradições diferenciam esses bairros e a sua gente dos outros locais e dos
outros bairros da cidade por causa de uma herança cultural que continua a afirmar-se
através de sistemas culturais locais, […] como se tivessem incorporado uma cultura local
com traços de continuidade com o passado” (Cordeiro 1997:163). Entre estigmatização
política e representação popular – continua Cordeiro - estes bairros são com certeza
7 Durante o período de escritura desta tese, o Fado foi declarado pela UNESCO, património imaterial da humanidade.
Isto obriga a que o nome deste tipo de música (e tradição musical) seja tratado publicamente com a letra maiúscula.
24
percorridos por um sentimento de pertença que se gera em quem lá vive, e que se revela
em situações diárias mais ou menos ritualizadas (Cordeiro 1997).
A Mouraria hoje em dia é caracterizada por a tipicidade dos seus cenários de vida
quotidiana, coloridos e “castiços”. “A Mouraria do presente pode ser descrita pela
vivencia de rua, as roupas estendidas nas janelas e pátios, as crianças a brincar, os
edifícios históricos e degradados, as conversas à soleira da porta ou à janela, os homens a
conversar nas esquinas, largos e travessas, as sardinhas a assar em braseiros colocados na
rua; como também, pelos arraiais dos Santos Populares e as marchas” (Menezes
2005:73). Todos estes elementos contribuem a produzir uma ideia caracterizada do lugar,
que continua, ao mesmo tempo, a lidar com uma forte heterogeneidade social e as velhas
dinâmicas de pobreza. “O Fado, as severas e marialvas, as tascas, as peixeiras, os
operários, os (i)migrantes, os visitantes, os desempregados, os reformados coexistem com
as lojas e as mercearias chinesas, os cabeleireiros luso-africanos, os bazares indianos,
[…] os toxicodependentes e os sem-abrigo” (Menezes 2005:73). Ali se cruzam
indivíduos e situações que tornam o lugar numa extraordinária amálgama humana e
social.
A idealização da Mouraria como bairro popular, foi sempre reiterada no curso das
épocas. As suas tradições e representações, social e historicamente construídas, foram
sempre renovadas e promovidas pelas instituições e as entidades às quais era atribuída a
tarefa de a governar, controlar, e valorizar. A construção do imaginário por ela contido é
sistematicamente reproduzido em relação ao contexto cultural da cidade pois estes
lugares se encarregam de ser as paisagens de fundo de uma imaginação colectiva,
símbolos de emoções e sentimentos de uma comunidade e uma cidade enaltecidas
(Cordeiro 1997). Ele é utilizado muitas vezes na promoção turística e económica do
território e como motor inspirador de políticas de valorização e patrimonialização. Apesar
disso, ao longo das épocas, a construção de um imaginário “bom para pensar” e a
invenção da tradição foram elementos funcionais na mistificação dos problemas reais que
aquele território tem em relacão com a cidade. Com base na promoção do carácter
identitário desenvolveram-se numerosas intervenções sócio-urbanísticas que derrubaram
aquele conjunto urbano e a sociedade segregada que o habitava. A intervenção no espaço
e o desenvolvimento de dinâmicas e políticas sociais, ambos carregados de significados
simbólicos e representativos, representaram a rotina para a existência deste bairro nos
últimos cem anos. Neste trabalho tentaremos mostrar como os planos actuais de
renovação do bairro se apoiam, mais uma vez, nos elementos da tradição popular para
legitimar as intervenções a nível sócio-urbanístico. Ao mesmo tempo que, através de
25
políticas sociais e práticas socioespaciais, esta tradição quer ser mais uma vez renovada e
reinventada com o fim de criar novos caracteres identidatários fundados sobre velhos e
novos valores, símbolos e idealizações.
2.3 A idade das transformações
Antes de entrar no tema do nosso trabalho, gostaria de continuar esta reflexão
introdutoria revelando como, no decorrer da história, as relações entre a cidade de Lisboa
e o território da Mouraria estiveram sempre caracterizadas por uma certa
complementaridade coerciva, onde a primeira - a cidade - impunha a própria dimensão
valorativa sobre a segunda, determinando a modificação social e espacial daquele
aglomerado urbano. Desde a sua criação, como ja foi visto, o bairro sofreu diferentes
transformações socioespaciais e, neste parágrafo, trataremos daquelas que aconteceram
no último século em que a Mouraria foi objecto particular do interesse das políticas
urbanas. Perceber a hermenêutica das obras desenvolvidas no tempo sobre o território,
ajudar-nos-á a contextualizar as intervenções que se pretende pôr em prática hoje em dia,
visto que a história da Mouraria passa também através dos planos que projectaram e
definiram a sua mudança no tempo.
A configuração urbana da Mouraria, com a articulação mourisca das suas ruas e dos
becos, resistiu praticamente inalterada até a metade do século XIX. Nem o terremoto do
1775, conseguiu derrubar aquele conjunto “sem ordem” de prédios e casas populares,
embora tenha destruído grandes áreas da cidade. Contudo, com o começo do novo século,
foi manifestado, por parte das instituições administradoras da cidade, a intenção de
intervir no bairro de forma a conciliar o ideal modernizador da época com uma
concepção estética de embelezamento e higenização da cidade. As obras principais deste
período concentraram-se na parte baixa do bairro com o intuito de tentar abrir uma
conexão entre o centro e a zona norte da cidade8. De facto, é só durante o Estado Novo
que se vai implementar uma efectiva intervenção reformadora sobre este território guiada
por uma atitude demolidora.
Entre as décadas de 30 e 60, procedeu-se à demolição total da parte baixa da
Mouraria - hoje constituída pela Praça Martim Moniz - pondo fim àquele “entrelaçar de
8 Com este objectivo se implementa a criação da Rua Nova da Palma, que, mais tarde, condicionou o sentido da Av. dos
Anjos, e da futura Almirante Reis. Outra obra significativa foi desenvolvida esta vez na parte alta do bairro com a
criação da Rua Marquês de Ponte Lima que implicou a criação de um eixo meridional que se desenvolvesse até o
interior da zona do Castelo.
26
ruas, prédios antigos e igrejas, etc.” (Andrade 1998:15) e deixando um espaço vazio, que
já desde aquela época foi intitulado de Martim Moniz9.
Com a ajuda do Largo Martim Moniz, pretendia-se reconverter a Mouraria em
território de passagem e de monstra, composto por avenidas grandes, prédios modernos e
prestigiados a custo de isolar na periferia da cidade os moradores que pudessem vir a
comprometer o ideal de modernização e higienização. Além da intervenção do espaço, foi
apresentada uma primeira intervenção da composição social desse núcleo urbano
favorecendo a expulsão de indivíduos “socialmente incompatíveis” com os valores e os
ideais que a cidade - através das suas expressões de poder - cunhava para esse lugar.
Contudo, o Estado Novo não conseguiu fazer muito mais e a Mouraria continuou a ser
aquele conjunto socioespacial de segregação e estigmatização pelo qual todos o
conheciam. Só no fim do Estado Novo, viriam a ser identificadas mais e novos olhares
políticos de intervenção sobre o território.
Entre as décadas de 70 e 80 do século XX, o bairro e as áreas adjacentes ainda se
tornaram focos de interesse de políticas de modernização da cidade. Os espaços vagos
deixados pela destruição ainda estavam à espera de uma reconversão na sua edificação
que se manifestou através da construção dos dois centros comerciais, emblemas de uma
nova representação social da Mouraria: o Centro Comercial da Mouraria e o Centro
Comercial Martim Moniz10
. Com eles, as dinâmicas urbanas, sociais, culturais e
económicas do território viram-se alteradas, o que facilitou a instalação de um comércio
grossista que reuniu, ao longo das épocas, comerciantes provenientes da Índia, da China e
de África.
No entanto, como refere Menezes, “face à degradação do parque edificado local,
em muitos casos em risco de ruína iminente ou consumada - situação ainda mais
agravada pela precariedade socioeconómica local e pela dificuldade de implementação de
actividades que permitissem a dinamização económica e cultural da área” (Menezes
2005:73) - no ano 1985 foi instituído o Gabinete Local da Mouraria. Com isto abre-se um
período de profunda redefinição da relação histórica entre o território e a cidade. É
reconsiderado, por um lado, o papel que ele representa no contexto urbano e, por outro, o
dirigido pelas intervenções que apontam para o seu desenvolvimento e é redireccionada a
atenção para os pormenores na reconstrução social da realidade simbólica e da imagem
9 A atribuição dada ao largo (que se tinha criado), do nome de Martim Moniz, soldado cristão que sacrificou a sua vida
na reconquista da cidade, representa a vontade expressada pelo poder da época de reafirmar a simbologia e as
refigurações ligadas à reconquista e a victoria crista sobre os mouros. Ao mesmo tempo esta reafirma também a história
social da Mouraria, marcando mais uma vez os aspectos de diferença que o caracterizam. 10
A intervenção que deu a Martim Moniz o aspecto que conhecemos actualmente, remonta a um projecto do 1997,
quando se recuperou a ideia de transformar o largo numa praça com estacionamento subterrâneo.
27
urbana do bairro. Como afirma Costa, o bairro define-se como objecto de reabilitação
urbana (Costa 1999), o que constitui uma quebra significativa das antigas concepções
sociourbanísticas e de intervenção: “esta nova política urbana é movida pelos ideais de
reabilitação, requalificação, revitalização sociocultural, económica e urbana, e
recuperação do património arquitectónico” (Andrade 1998:22).
A este respeito, os objectivos deste novo modelo de intervenção visam a “fixação e
a melhoria das condições de vida dos residentes, proporcionando melhores condições de
habitabilidade, reconvertendo e criando novos equipamentos. Pretende-se deste modo a
revitalização económica, estimulando a população residente a participar neste processo
global”11
. Aparecem assim, novos e importantes olhares nas estratégias de intervenção da
cidade sobre o bairro. Já não se aponta para a destruição mas sim para a requalificação do
tecido urbano, com particular interesse na implementação de equipamentos funcionais
para o melhoramento dos recursos sociais oferecidos pelo território e, consequentemente,
o aumento das possibilidades disponibilizadas pelos habitantes. Desenvolve-se um novo
interesse no social, também desde o ponto de vista do desenvolvimento económico,
referido aos fluxos de investimentos e actividades comerciais que aí convergem. Em fim,
constitui-se um novo olhar, baseado na participação da população nos eventos de
mudança do bairro, quebrando a barreira segregativa e trabalhando para uma maior
emancipação sócio e económica da população. O bairro assim tem estado envolvido num
longo e moroso processo de realização de obras que ao mesmo tempo que motiva
mudanças territoriais, “exige da população uma capacidade de readaptação continuada ao
seu próprio quotidiano” (Menezes 2004:61).
Como veremos a seguir, estes parâmetros de acção foram reafirmados nos actuais
planos de reforma que iremos analisar neste trabalho, pois a Mouraria é também
redefinida exogenamente no seu território de acordo com os interesses políticos e sociais
em vigor. A Área Crítica de Recuperação e Reconversão Urbanística da Mouraria,
definida pelo Gabinete Local12
, traça novos eixos de pertença, englobando parte da colina
do Castelo de São Jorge e alastrando o território para o Norte e o Oeste, compreendendo
a Graça, o Castelo, Alfama e o Martim Moniz. Esta visão territorial permanece até hoje,
embora possa vir a ser posteriormente redefinida pela aplicação dos planos a acontecerem
11
Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Mouraria (PUNHM), 1996, vol. 4:1 12
O Gabinete Local da Mouraria foi fundado pela Câmara Municipal de Lisboa no 1985. Nasceu de uma experiência
precedente que viu alguns cidadãos técnicos e autarcas das freguesias da Alfama juntar-se para começar um debate
sobre a necessidade da conservação e a reabilitação desse bairro. Desta forma, constituiu-se o Gabinete Local da
Mouraria cujo objectivo primário era identificar uma primeira Área Critica de Intervenção para uma requalificação do
territóro.
28
na actualidade. Como se tem visto, a Mouraria, ou o território definido por este nome, foi
um lugar longamente emblematizado na sua relação com a cidade, já que da
estigmatização, da pobreza e da segregação urbana foi, ao longo do tempo, “reabilitado”
para diferentes usos sociais. Hoje em dia, a Mouraria é considerada um lugar estratégico
para a implementação de novos modelos de reforma urbana e de novas formas de
socialização no espaço, naturalmente em função das políticas de desenvolvimento
socioeconómico da cidade.
29
3. As intervenções urbanísticas e o olhar antropológico
O bairro não é uma entidade isolada e imutável mas participa das transformações
gerais que envolvem as cidade e experimenta diferentes eixos de mudança ao longo do
tempo (Ledrut 1978). Pode ser o caso de uma nova população que se estabelece no
bairro, ou um programa de intervenção que modifica a sua função e o seu destino de uso.
A mudança de um bairro implica processos complexos, considerado a vasta variedade de
elementos e factores contextuais que compõem as suas dinamicas (Hannerz 1980). Nos
processos de mudança de um bairro actuam assim múltiplos factores (físicos,
económicos, políticos e sociais) (Zajczyk in Borlini & Memo 2008).
No plano das políticas urbanas dos últimos vinte anos, importantes programas de
requalificação e luta contra a exclusão social promovidas em campo comunitário, ou mais
em geral, o desenvolvimento de concepções participativas de planeamento e intervenção,
tem conferido atenção à ideia de que o bairro è um terreno de acção e atenção central, no
qual se activam sinergias nos assuntos sociais, económicos e ambientais (Paquot 2009,
Galster 2001, Smith 2002, Savage M., Bagnal G. & Longhurst B. 2005). Compoem-se
assim, práticas e estratégias dedicadas às temáticas sobre a acessibilidade, as infra-
estruturas, os equipamentos locais, bem como à necessidade de mudanças significativas
do espaços público (Portas 2003), à qual se junta um “renovado olhar de intervenção
sobre os contextos socais e culturais que caracterizam o território” (Peixoto 2009: 47). De
acordo com Marluci Menezes (2005) ao conjunto de programas e projectos de
intervenção urbana sobre o bairro que se vão cada vez desenvolver, viria gradualmente a
associar-se um conjunto de noções que, começadas por “re-”, expressam aquilo que se
considera importante para a mudança de um territoro urbano: reabilitar, revitalizar,
requalificar, renovar. Associadas a modos de intervenção no/sobre o espaço público, a
vida socio-económica e os aspectos culturais que tendem a qualificar um conjunto
urbano, estas noções acentuam também a importância de reflectir sobre a dimensão
temporal enquanto recurso de construção e legitimação desses mesmos modos de
actuação (Menezes 2005).
Nesta perspectiva assume particular sentido no contexto português o importante
documento elaborado no âmbito do “Primeiro Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitação
30
Urbana”13
, que define tais conceitos para a implementação das actuais e das futuras
políticas urbanas.
a) Renovação Urbana
Acção que implica a demolição das estruturas morfológicas e tipológicas existentes
numa área urbana degradada e a sua consequente substituição por um novo padrão
urbano, com novas edificações (construídas seguindo tipologias arquitectónicas
contemporâneas), atribuindo uma nova estrutura funcional a essa área.
b) Reabilitação urbana
Estratégia de gestão urbana que procura requalificar a cidade existente através de
intervenções múltiplas destinadas a valorizar as potencialidades sociais, económicas e
funcionais a fim de melhorar a qualidade de vida das populações residentes; isso exige o
melhoramento das condições físicas do parque construído pela sua reabilitação e
instalação de equipamentos, infra-estruturas, espaços públicos, mantendo a identidade e
as características da área da cidade a que dizem respeito.
c) Revitalização urbana
Acçao que engloba operações destinadas a relançar a vida económica e social de uma
parte da cidade em decadência. Esta noção, próxima da reabilitação urbana, aplica-se a
todas as zonas da cidade com identidade e características marcadas.
d) Requalificação urbana
Aplica-se sobretudo a locais funcionais da “habitação”; tratam-se de operações
destinadas a tornar a dar uma actividade adaptada a esse local e no contexto actual.
Além da estratégia de “renovação”, que vem desenvolvida em presencia de “tecidos
urbanos degradados, aos quais não se reconhece valor como património arquitectónico ou
conjunto urbano a preservar”14
, nas noções acima referidas as acções de intervenção vêm
implementadas no contexto urbano existente, sobretudo nas suas áreas degradadas e mais
decadentes, em termos de uma vitalidade social, económica e cultural. As dinâmicas, os
processos e as problemáticas que induzem tais modelos de intervenção no contexto do
bairro, podem acontecer, como explica Francesca Zajczyk (2008), por causa de diferentes
dinâmicas que agem no território urbano e que às vezes se revelam ser complementares
ou consequenciais. Estas por exemplo podem ser as “tendências à policentralidade” dos
13
I Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitação Urbana, Lisboa 1995; Acta I: “O interesse manifestado por algumas
cidades brasileiras, pelo processo de reabilitação urbana implementado em Lisboa, levou ao início de uma reflexão
conjunta que, iniciada no I Encontro de Reabilitação Urbana em Lisboa, em Março de 1993, foi continuada no Rio de
Janeiro em Abril de 1994, tendo o, realizado em Lisboa, em Outubro de 1995, constituído uma etapa decisiva que
permitiu chegar a conclusões úteis para os dois países. No Plenário de encerramento deste encontro foi aprovada, por
aclamação, uma proposta segundo a qual deveriam as respectivas conclusões ser consagradas na Carta da Reabilitação
Urbana Integrada - Carta de Lisboa. Esta Carta tem por finalidade, para além de foliar uma linguagem comum, com as
necessárias adaptações nacionais, o estabelecimento dos grandes princípios que deverão nortear as intervenções, bem
como dos caminhos para a sua aplicação”.
14
Carta da reabilitação Urbana Integrada – Carta de Lisboa p.1 Art. 1
31
antigos centros urbanos, no quadro de um alargamento incessante da malha urbana e da
consequente produção de novos centros e novas margens; a consolidação de um mercado
urbano de lazer construído à volta da ideia de espaço público; a importância de factores
representacionais e imagéticos, assim como de intervenções urbanísticas arquitectónicas
que concretizam no espaço símbolos de afirmação e identificação (Zajczyk 2008).
Contudo, como afirma Paulo Peixoto, a génese da locução de palavras como re-
qualificar ou re-abilitar submete-se aos processos de urbanização e aos efeitos que eles
induzem nas urbes. O carácter aleatório destas não deixa de esconder uma determinada
visão política do que tem que ser a cidade, remetendo para velhas questões tal como o
enobrecimento urbano (Rubino 2009), higienização e haussmanizaçao15
(Peixoto 2009),
mas também à construção de novos contextos simbólicos e espaciais, e à valorização de
discursos identitários específicos ou tradicionais (Menezes, 2005).
3.1 A acção sobre o espaço publico.
As formas e os métodos através dos quais se concretizam as diferentes tipologias de
intervenções no contexto urbano apontam para uma profunda acção sobre o território
desenvolvida em níveis diferentes e contextuais (Fortuna C. & Leite R.P. 2009). A
intenção de fundo destas operações (que em muitos casos, como estamos a considerar,
dirige-se a porções definidas e limitadas das cidade, como por exemplo um bairro) aponta
para uma reconversão profunda do território tanto desde o ponto de vista arquitectónico
quanto desde o ponto de vista social e económico. Neste trabalho, se tenteara abordar as
intervenções sobre o urbano baixo os diferentes aspectos que as caracterizam.
A intervenção de requalificação urbana, por exemplo, define um modelo de
intervenção dirigido a operações urbanas de larga escada, para a reconversão funcional de
um dado espaço público (Peixoto 2009). Por espaço público, no contexto urbano,
entende-se um espaço físico caracterizado por um uso social e colectivo (AAVV 2005).
Saindo de uma perspectiva estreitamente urbanística, para abordar concepções mais
socioantropologias, é importante focalizar a atenção sobre os aspectos sociais do espaço
público, que se revelam estreitamente ligados às práticas e às relações sociais que neste
15
A “haussmanização refere-se a uma politica de demolição, levada a cabo em Paris por Georges-Eugebne
Haussmann, na segunda metade do século XIX, que pretende intervir no espaço urbano de modo a controlar, disciplinar
e higienizar os comportamentos, assim como a criar referencias e marcadores do espaço através da monumentalização”
(Peixoto 2009:41).
32
se desenvolvem, mas também às concepções políticas que, através da modificação deste,
as condicionam e as influenciam.
De acordo com Pier Luigi Crosta, o carácter “público” de um espaço não vem
conferido só pelo “uso em comum” que se faz deste, mas também “define-se público um
espaço onde experiências diferentes de uso e apropriação aprendem, através da interacção
social, a lidar e conviver com a diversidade” (Crosta 2010:6). O espaço público, então,
apresenta-se como o cenário físico onde se desenvolvem as interacções e as práticas
sociais (Giddens 1990). Considerar “público” um espaço que é definido pela interacção
social, remete para um paradigma que tomarei em consideração enquanto me proponho
analisar o carácter finalístico das estratégias de intervenção no contexto urbano. Este
paradigma remete para a consideração de que “o espaço é o uso que se faz deste”
(Preteceille 1974; Calabi e Indovina 1973)16
.
Esta concepção permite partir de uma orientação prática que considera o espaço em
função das transformações que agem sobre ele. O espaço deixa de ser considerado
somente pela sua condição físico-geografica, para passar a ser considerado como uma
construção, um produto social (Lefebvre 1974), sendo definido pelo conjunto de regras
(socialmente definidas), que orientam, finalizam, dão sentido e governam as relações de
uso e as interacções sociais que aí se desenvolvem. Parafraseando um termo cunhado por
Michel Foucault (1994), o espaço é um “dispositivo social”. Tal “dispositivo”, pode ser
codificado através da análise da sua organização e dos significados que este quer
comunicar (Rappoport 1980). A este propósito Edward Soja (1989) afirma que a
“produção social do espaço” e a sua organização, são produtos de práticas que mudam, se
reproduzem e vêm continuamente significadas, em relação com os contextos históricos e
sociais onde são produzidas. Isto implicaria que as figuras históricas que gerem a
sociedade, dirigindo as acções sobre o espaço, promovam também diferentes valores e
manipulem a sua construção socio-espacial (Low 2000).
No entanto, seria redutor considerar o espaço público como simples resultado de
práticas induzidas e construídas hierarquicamente. Assim como afirmou Michel de
Certau (1980) que os indivíduos ao agir nos espaços públicos desenvolvem práticas
criativas que lhe permitem formas de re-apropriação do espaço, fora daquelas que são os
constructos sociais, também o espaço público não pode ser considerado como mero
receptor das ideologias políticas e urbanas que agem sobre isso (Menezes 2004). De
16
Este paradigma foi cunhado nos anos setenta a partir de algumas análises sociológicas sobre as maneiras com as quais
as instituições entendiam utilizar (no sentido mais comum de explorar), um território e o significados que estas lhe
queriam conferir nas suas especificidades sociais, económicas e culturais. A variante mais fundamental deste enfoque
de análise foi aquela chamada do “uso capitalístico do território”.
33
qualquer forma, uma análise de um processo de reforma sócio – urbanística qualquer, tem
que considerar, pelo menos em parte, um enfoque de tipo funcionalista, enquanto se
propõe descodificar ideias, concepções, fins e significados de uma acção política
implementada sobre o espaço publico. Se considerará então a intervenção urbanistica
sobre o espaço público a partir da atribuição de imagens e significados que se definem
sobre este, e através das formas de utilização e apropriação que neste se querem difundir
na construção de uma ideia de bairro re-qualificado.
A este respeito, um aspecto central, que também se apresentará na reforma socio-
urbanística por mim analisada, é o tema da “acessibilidade”. Paulo Peixoto, voltando à
definição de requalificação urbana, afirma que o fim último deste modelo de intervenção
é “introduzir novas qualidades urbanas de acessibilidades a um dado território” (Peixoto
2009:42). A acessibilidade representa, nos estudos urbanísticos, um factor essencial para
a qualidade ambiental urbana. Esta é entendida como a possibilidade de se atingir um
lugar, estando relacionada com a disponibilidade de infra-estrutura, de sistema de
transporte e de recursos para cobrir tempos e distâncias (Crosta 2010). Nos estudos
sociológicos sobre a cidade, este termo alarga o próprio significado, pois é considerado
como o complexo de possibilidades que os indivíduos e os grupos sociais possuem na
negociação e na apropriação dos espaços fundamentais para as suas vidas quotidianas, de
modo a cumprir as práticas e manter as relações que eles consideram significativas para a
própria vida social (Borlini B. & Memo F. 2009). Neste ámbito, o conceito de
“acessibilidade” mais uma vez remete para as relações que se determinam no espaço
entre as acções de planejamento e regulação do território e as práticas de re-apropriação
do espaço que os grupos sociais desenvolvem no contexto local.
3.2 A intervenção sobre o contexto social
Na análise dos modelos de intervenção no espaço urbano, (e em particular pelo que
se refere às intervenções sobre o bairro), não se pode ignorar o aspecto que estes
implicam nas mudança dos contextos sócio - económicos onde actuam. De acordo com
Nuno Portas estas formas de intervenção na cidade passam a considerar, além dos
contextos físico-espaciais, também os contextos económicos e sociais, intervindo na
trama de relações sociais e de actividades que aquelas estruturas físicas suportam e
reflectem (Portas 2003). A intervenção urbanística contempla então uma intervenção
desde o ponto de vista socioeconómico.
34
Na acção de intervenção de revitalização urbana por exemplo, nota-se como esta
contempla a reforma do território através da revitalização das actividades comerciais e
dos serviços tradicionais, tendo em consideração a presença de uma população residente,
mas definindo ao mesmo tempo um diferente acesso aos recursos para tornar o lugar mais
atractivo para novos estratos da população, sejam eles visitantes, ou novos residentes
vindos de fora (Peixoto 2009). Revitalizar, significa, na prática dinamizar as actividades
económicas de uma parte da cidade, para dinamizar o afluxo de novas classes sociais
dentro deste.
Numa perspectiva estritamente sociológica, este tipo de intervenção urbana
desenvolve um papel fundamental nos fenómenos de conversão ou mudança dos
contextos sociais onde agem (Frùgoli 2007). Isto a partir de uma série de factores
contingentes. Em primeiro lugar a atracção de novos visitantes vem muitas vezes
perseguida através do desenvolvimento de uma actividade turística ex novo, ou diferente
respeito àquela anterior, induzindo a uma reconversão da economia local no sector
terciário (Ley 1996). Isto comporta de alguma maneira uma desnaturalização do tecido
económico da zona, que ao contrario, perderia o seu carácter originário em favor de uma
condição de “mercantilização do seu territorio” (Borlini & Memo 2008). Contudo, as
novas possibilidades económicas disponibilizadas pela zona em questão, chamariam ao
estabelecimento de novos estratos socioeconómicos da população implicando uma
mudança demográfica, e uma profunda diversificação do tecido social local (Galster,
Cutsinger & Lim 2007).
Nos estudos da antropologia urbana esta temática reflecte-se na análise das
problemáticas relativas à expulsão de alguns estratos da população mais
socioeconomicamente “debeis” e discriminados das zonas centrais e históricas da cidade
(Rubino 2009). Este fenómeno foi tratado sob o nome de gentrification17
.
Embora a alternância de população numa zona de cidade tivesse sido há um tempo
considerada como “factor ecológico” (Park, Burgess & McKenzie 1925) e, mais
recentemente, as mudanças sócio - urbanísticas como dinâmicas contextuais de um
sistema económico (Smith 2002), parece evidente, olhando para as políticas actuais de
17
Este termo, cunhado pela primeira vez por Ruth Glass no 1964, se refere a um processo de transformação gradual,
principalmente em em contexto urbano, de uma zona popular numa zona com um mais alto nível de capital
socioeconómico e cultural. Este fenómeno de enobrecimento urbano porta frequentemente à descaracterização
sociocultural do bairro e ao desaparecimento do antigo tecido populacional.
35
algumas cidades europeias, que em alguns casos, alguns processos de intervenção
seguem exactamente planos de acção precisos e definidos. Em particular nos contextos de
imigração e “delinquência” nas zonas centrais de algumas cidades, parecem actuar
modelos de desenvolvimento e “revitalização” que seguem estratégias e padrões bem
codificados. Poderá ser este o caso da obra de “revitalização” do bairro Ravál de
Barcelona (Horta 2010), ou daquele da Goute d’Or em Paris (Palumbo in De Biase &
Rossi 2006). Que tipo de cenários estes processos gerarão, só o tempo e as dinâmicas
socio - espaciais os poderão revelar, mas o que se apresenta claro é que através de
algumas dinâmicas de inclusão (e exclusão) social, se chega à mudança do contexto
social e urbano do território.
3.3 O discurso do património e da criação de uma identidade
Na análise das estratégias de reforma sócio urbanística, é importante adiantar outro
tipo de consideração que remete para a construção de uma nova imagem do bairro através
da valorização dos caracteres culturais que o identificam para a produção de novos
sentidos identitários. Volta-se em parte, neste assunto, a discutir a relação intrínseca que
subsiste entre a acção sobre o espaço e os significados a esta atribuídos (Bourdin 1984),
mas também à valorização de práticas e aspectos que remetem para supostos valores e
tradições que representam um lugar. De acordo com António Arantes, um bairro define-
se por ser um agregado de marcos territoriais, culturais e históricos. Assim, o papel da
intervenção revela-se um importante factor para compreender a dimensão patrimonial que
o caracteriza (Arantes 2007). Tomando como exemplo a definição de reabilitação
urbana, Paulo Peixoto (2009) afirma que esta reproduz um modelo de intervenção urbana
baseada em obras de diferente natureza orientadas para a conservação da identidade e das
características peculiares do lugar. Configura-se então uma certa analogia entre a
estratégia de reabilitação e a constituição de um património cultural que liga o lugar
(bairro, território) às complexas estruturas de representatividade e identidade
sociocultural relacionadas com um dado contexto social (Vicente 2009).
José Gonçalves (2002) afirma que a intervenção sobre a estrutura urbana, revela
importantes assuntos relativos à representatividade de um lugar, tentando se fundar na
criação de uma memória e uma identidade. A ligação entre a estrutura urbana e a
identidade é retomada por António Arantes quando afirma que “os grupos humanos
atribuem valor diferenciado à estruturas edificadas e elementos da natureza que balizam
36
os seus territórios, ancoram – a estes – as suas visões do mundo, materializam crenças ou
testemunham episódios marcantes da memória colectiva” (Arante 2009:11).
Este tipo de conceptualização deriva em parte da mudança do discurso sobre a
patrimonialização, que a partir das últimas décadas do século passado começou a atribuir
ao conceito de património arquitectónico, (antes apenas identificado na esfera da
produção arquitectónica e monumental), uma nova caracterização feita de dimensões
físicas e sociais, simbólicas e culturais, nos contextos de intervenção no urbano (Bourdin
1984, Choay 1992, Arantes 2007, Vicente 2009). Ao mesmo tempo a criação do conceito
de património cultural, ampliou esta visão atribuindo tal significado a todos os bens e os
valores culturais que são expressão da identidade de uma comunidade, tais como a
tradição, os costumes e o conjunto de bens materiais e imateriais que possuem um
particular interesse histórico, artístico, arquitectónico, urbano, mas também a todas e as
manifestações, os produtos e as representações da cultura popular18
.
De acordo com Françoise Choay (Choay 1992) o discurso sobre a
patrimonialização, no fundamental, remete para uma questão de atribuição de valores e
construção de sentidos. Analisar então os processos de reabilitação a acontecer na cidade,
significa analisar os significados que vêm atribuídos por parte das entidades
“reabilitadoras” aos espaços reabilitados mas também ao conjunto de praticas tradicionais
que nesses se propõem desenvolver. A relação entre o património e as formas de
intervenção que o suportam revela-se então como construção social, que reflecte ideias e
concepções dos processos de urbanização a se desenvolver (Peixoto 2009). No entanto os
parâmetros e as estratégias de atribuição de valor patrimonial a determinados edifícios ou
aspectos representativos referidos a um lugar abre a importantes reflexões em quanto “os
diálogos e as lutas em torno do que seja o verdadeiro património são lutas pela guarda de
fronteiras, do que pode ou não receber o nome de património, uma metáfora que sugere
sempre unidade no espaço e continuidade no tempo no que se refere à identidade e
memória de um indivíduo ou de um grupo” (Gonçalves 2002: 121-122).
No entanto Firmino da Costa salienta a existência de uma certa atitude, por parte
das “entidades reabilitadoras” para efectuar “operações de selecção” (Costa 1999) nas
18
Extrapolado do cap.III do Text of the Convention for the Safeguarding of Intangible Cultural Heritage, UNESCO
Convention, Paris 29 de Stermbro – 17 Outubro 2003
37
acções intervenção sobre lugares e espaços, que podem incorporar significados
representativos e identitários para uma colectividade. As operações de reabilitação do
urbano revelam-se marcadas por preocupações relativas à procura e à construção de uma
certa ideia de autenticidade. A reabilitação urbana passa através de um processo de
“revisitação da preexistência”, sendo como escreve Yanez Casal, que o mesmo prefixo
“re”, remete para uma promessa de reordenação do presente através do reencontro com o
passado (Yanez Casal 1994). Marluci Menezes, afirma a importância que o discurso
sobre o património assume nos contextos urbanos, na construção social de uma
especificidade que advém de determinadas formas culturais e simbólicas utilizadas na
construção de um estatuto de tradição a salvaguardar ou reabilitar (Menezes 2005).
Contudo, do confronto com perspectivas de intervenção urbana que se apoiam no
prefixo “re” para aludir àquilo que é necessário “fazer pelo património”, importa
questionar em que medida nelas se encontra plasmada uma reflexão aturada, e em que
medida informada, sobre as múltiplas implicações que as intenções de reabilitar,
revitalizar, requalificar, ou renovar, podem ter nas dinâmicas socioculturais. O urbano
define-se não apenas pelas especificidades da sua fisionomia arquitectónica e urbana, mas
também pelos modos como determinadas dinâmicas socioculturais se encontram
territorializadas, continuadamente assistindo-se a processos de (re-)produção e (re-)
configuração das mesmas (Arantes 2009). Embora como, afirma José Gonçalves, o
património cultural representa uma estratégia por meio da qual os grupos sociais e os
indivíduos narram a sua memória e sua identidade, buscando para si um lugar público de
reconhecimento (José Gonçalves 2002), é importante questionar que muitas vezes as
representações simbólicas que sustentam as intervenções no espaço urbano não são
propriamente construídas pelos colectivos sociais endógenos do território de intervenção,
mas decorrem de dinâmicas protagonizadas por agentes e processos, muitas vezes,
exógenos.
38
4. Os planos de intervenção na Mouraria
“The city is malleble and waiting for a brand identity.
Decide who you are, and the city will again assume a fixed form around you.”
(Jonathan Raban)
“Se vai depressa vai sozinho, se vai devagar, vamos todos.”
(Provérbio africano. Morador da Mouraria, 2011)
“Cada cidade, na sua história, sofreu épocas de profundas modificações urbanísticas e
arquitectónicas, de requalificações territoriais, e de reestruturação ou desmantelamento de
amplas áreas edificáveis. Isso pode acontecer para reconstruir uma zona fortemente
danificada da cidade, (por exemplo por causa de um evento natural ou o propagar de um
incêndio), para estender os limites da cidade e ampliar os seus espaços de
aproveitamento, ou mesmo para renovar e requalificar uma zona que até esse momento
foi, segundo a opinião das autoridades e as administrações que a governam naquele
momento, aproveitada em maneira pouco eficaz, ou pelo menos não partilhada”(Borlini
& Memo 2008). No entanto, territórios, zonas, espaços das cidades vivem e
experimentam mudanças que vão bem além da modificação paisagística, e que afectam
os tecidos sociais dos grupos de pessoas que vivem e habitam aqueles espaços.
“Requalificar” ou “reabilitar” um território da cidade, entende-se como um agir sobre
uma determinada zona para mudar as suas qualidades peculiares e substitui-las por outras
capazes de caracterizar um outro grau de juízo sobre esta. Neste processo, a acção de
“requalificação” não distingue entre as qualidades urbanísticas e sociais, (esta pode
39
acontecer através da inserção de uma nova população num dado território, ou um
programa de requalificação que modifica a função e as finalidades de uso do bairro), mas
muitas vezes se foca numa mudança estrutural tanto do espaço como das pessoas. Se
presenta então como um argumento complexo, pela vasta variedade de elementos e
factores contextuais dos quais se tem que ter em conta.
No contexto da Mouraria contemporânea, a mudança do território dá-se através de
dois planos de obras, que tentam complementar-se na profunda acção de mudança
urbanística e social do bairro. Os dois explicitam uma visão própria do que deve ser a
Mouraria, em relação aos outros bairros e ao resto da cidade, qual a sua função actual e
aquela que deverá assumir no futuro, quais os problemas para resolver e as questões para
levantar, em sume: qual mudança aquele conjunto de casas e cidadãos deve sofrer, e qual
o futuro este território deve acolher.
4.1 Redeveloping the past to build the future: QREN Mouraria19
No começo do outono de 2011, (quando teve inicio esta tese), o bairro da Mouraria
vê-se envolvido num projecto de renovação territorial, com objectivos ambiciosos e
grandes quantidades de dinheiro: o QREN Mouraria. O QREN Mouraria é um programa
de requalificação urbana e social que decorre de um empréstimo da União Europeia. Isto
faz parte do Quadro de Referência Estratégico Nacional mais amplo que constitui o
enquadramento para a aplicação da política comunitária de coesão económica e social
em Portugal, em particular no período 2007-201320
. Os objectivos fundamentais deste
plano, (que bem ilustram a visão da Câmara Municipal de Lisboa - CML), apontam para
produzir uma Requalificação do espaço público e do ambiente urbano (Operação 1)21
,
uma valorização do património histórico e cultural, com destaque para a promoção da
identidade, memória e tradição e para a valorização sociocultural e turística (Operação
4)22
do território. Para conseguir os fins estabelecidos, o plano QREN Mouraria se
baseará num sistema de cooperação entre diferentes entidades parceiras, cada uma das
quais desenvolverá o seu próprio papel na actuação dos objectivos do plano. Como
precisa a CML, o envolvimento conjunto destas entidades possibilita uma
19
Slogan promocional que aparece nos pamphletes ilustrativos do plano Qren Mouraria 20
�
Dados fornecidos pelo site www.qren.pt, Outubro 2011. 21
Dados fornecidos pelo site www.cm-lisboa.pt, Março 2012. 22
Dados fornecidos pelo site www.cm-lisboa.pt, Março 2012.
40
operacionalização de acções que, em diversos níveis, garantem a intervenção no
edificado, no espaço público e no ambiente urbano, no sector social, nas actividades
económicas e nos sectores turístico e cultural23
.
Isto apresenta-se como um plano bastante ambicioso, através do qual, além da
necessidade de colaboração da população residente, revelar-se-á também necessário
estabelecer de maneira firme uma série de etapas dentro das quais os problemas e os
desconfortos deverão ser subordinados ao tempo de realização. Obras como esta parecem
quase faraónicas no contexto de Mouraria, onde durante décadas nada, de facto, foi
mexido: como demonstra a escavadora abandonada durante muitos anos no topo das
Escadinhas da Saúde. Nuno Franco, presidente da Associação Renovar a Mouraria parece
ter razão quando interpreta o estado de espírito dos vizinhos, que parecem estar cheios de
vontade para que as obras comecem.
4.1.1 O PA QREN
O Plano de Acção (PA) do QREN Mouraria, aprovado o 11 de Agosto do 2009, tem
um prazo de três anos repartidos em duas partes: um ano para submissão dos dossiers de
candidatura das operações; dois anos para a realização das obras e das actividades. Este
prazo só em parte foi respeitado na sua primeira fase, sendo que as obras começaram só
em Setembro 2011. O Plano de Acção define o modus operandi do QREN Mouraria, a
suas linhas gerais, as perspectivas ideais e o conjunto de acções urbanísticas e materiais
através das quais se constitui o plano. O Plano de Acção estrutura-se em cinco eixos
operativos agrupados em dois eixos estruturantes e três eixos instrumentais.
Os eixos estruturantes do PA QREN Mouraria centram-se sobre aqueles aspectos
pensados como desencadeadores de novas oportunidades de mudança e de
desenvolvimento24
para o bairro. Estes afirmam-se como operações de reorganização do
espaço veicular, em particular pelo que se refere aos aspectos de gestão, manutenção e
optimização das formas de mobilidades e acessibilidades ao território. Juntamente com
isto revela-se central a recuperação de um edifício assinado a pólo de desenvolvimento
económico e social do “bairro”. Os eixos instrumentais, são definidos como agentes
integradores dos valores de identidade, memória e tradição25
e articulam-se através do
equipamento de estruturas destinada a um uso social e da promoção do património
histórico e cultural da zona.
23
Ibidem. 24
Dados fornecidos pelo site www.cm-lisboa.pt, Março 2012 25
Ibidem.
41
Eixos estruturantes e instrumentais como definida pelo documento oficial do
Plano de Acção QREN Mouraria26
Eixos estruturantes
Operação 1: Requalificação do espaço público e do ambiente urbano
Acção 1.1 Requalificação do Espaço Público
Acção 1.2 Melhoria de Acessibilidade e Mobilidade
Acção 1.3 Sinalética
Acção 1.4 Estrutura de Gestão e Manutenção do Espaço Público
Operação 2: Refuncionalização e reabilitação do Quarteirão dos Lagares para criação do
Centro de Inovação da Mouraria.
Eixos instrumentais
Operação 3: Valoração das Artes e dos Ofícios
Acção 3.1 Extensão das Instalações da Junta de Freguesia de São Cristóvão e São Lourenço
em _________edifício no Largo dos Trigueiros
Acção 3.2 Extensão das Instalações da Junta de Freguesia do Socorro em edifício na Rua da
Guia
Acção 3.3 Residências Universitárias
Acção 3.4 Sítio do Fado na Casa da Severa
Acção 3.5 Acções de Redução de Riscos e de Minimização de Danos de
Toxicodependência
Acção 3.6 Conhecimento e Criatividade
Acção 3.7 Publicação Gastronomia da Mouraria
Operação 4: Valorização Sócio-Cultural e Turística
Acção 4.1 Restauro de Troço da Cerca Fernandina
Acção 4.2 Reabilitação da Igreja de São Lourenço
Acção 4.3 Corredor Intercultural
Acção 4.4 Festival Multicultural Há Mundos na Mouraria
Acção 4.5 Percurso Turístico-Cultural
Acção 4.6 Visitas Guiadas ao Património Histórico e Cultural da Mouraria
Acção 4.7 Publicação História da Mouraria em banda desenhada
Acção 4.8 Edição em CD de música com referência à Mouraria
Acção 4.9 Jornal Bimestral sobre a Mouraria
Operação 5: Plano de Divulgação e Comunicação do Programa de Acção
Tabela 1
26
Ibi.
42
O PA QREN Mouraria assenta num Protocolo de Parceria Local concebido como
um processo estruturado e formal de cooperação entre as entidades que se propõem
implementá-lo, sendo que cada parceiro tem que desempenhar um contributo concreto e
relevante para a sua execução27
. A comissão de parceiros desempenha um rol
representativo e de responsabilidade sobre a evolução das obras e os objectivos
aprovados pelo projecto do plano. Este grupo operativo convergiu na estrutura do GABIP
(Gabinete de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária), um aparado que coordena e
organiza os diferentes planos a actuar no território. Quem constitui esta commisão de
parceiros são as entidades institucionais locais, representadas pelas juntas de freguesias
da area, a Câmara Municipal de Lisboa, a Empresa Pública de Urbanização de Lisboa
(EPUL), uma empresa de turismo de Lisboa, um instituto para a prevenção da saúde e das
toxicodependências e duas associações sem fins lucrativos locais das mais conhecidas no
território.
Grupo de parceiros:
-Associação Casa da Achada - Centro Mário Dionísio (CMD)
-Associação Renovar a Mouraria (ARM)
-Associação de Turismo de Lisboa - Visitors and Convention Bureau (ATL)
-Câmara Municipal de Lisboa (CML) – GABIP
-Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL)
-Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT)
juntas de freguesia:
-Anjos (JFA)
-Graça (JFG)
-Santa Justa (JFSJ)
-São Cristóvão e São Lourenço (JFSCSL)
-Socorro (JFS)
4.1.2 Do papel à rua
O carácter principal da obra do plano é constituído pelas intervenções no espaço
público. As obras são o elemento mais caracteristico do plano QREN Mouraria e
representam o fulcro da acção de renovação urbana que este quer implementar. Aliás, as
obras de intervenção no espaço publico, através do seu factor visual, representam o plano
a actuar no território, e determinam frente à população a prova evidente do efectivo
27
Dados fornecidos pelo site www.cm-lisboa.pt, Março 2012
43
desenvolvimento deste. Estas são dirigidas através de diferentes aspectos de intervenção e
condicionamento físico, em quatros fases operativas que “empenham”o território desde o
Outono 2011 até o Verão 2012. Ao longo destas quatro fases as obras intervêm sobre um
conjunto de espaços, estruturas, lugares e monumentos que apontam para a mudança do
aspecto fisionómico (em múltiplos aspectos) da zona. As intervenções sobre o espaço
público vão interessar primariamente obras de reabilitação de ruas, largos e praças.
Estão neste momento a reabilitar-se:
Ruas: Rua das Farinhas, Rua Marquês Ponte de Lima, Rua da Guia, Rua do Capelão, Rua
de João
de Outeiro, Rua de Bemformoso
Largos: Largo Adelino Amaro da Costa, o Largo dos Trigueiros, o Largo da Achada, o
Largo da
Rosa, o Largo João de Outeiro, o Largo da Severa, Largo do Intendente.
Praças: Praça Martim Moniz (só numa fase sucessiva)
Outro tipo de reabilitação do espaço público é feito através da restruturação ou mesmo da
edificação de edifícios definidos de interesse patrimonial, seja na sua acepção material
como naquela imaterial. Neste se efectua:
- Reabilitação da igreja de São Lourenço
- Restruturação da Cerca Fernandina
- Renovação da Praça Martim Moniz
- Edificação da Casa da Severa
- Recuperação do Quarteirão dos Lagares
Outros tipos de intervenções são realizados através do estabelecimento e da restruturação
de sítios de importância estratégica na gestão e no apoio social, tal como, equipamentos
sociais, apartamentos e parques de estacionamento28
:
- Equipamento social no Largo do Trigueiros para actividades com jovens e idosos
- Equipamento social na Rua da Guia para actividades com jovens e idosos
- Parque sénior e infantil na Rua do Capelão
28
Este tipo de “divisão conceitual” das obras é concebido pelo autor, enquanto as diferentes intervenções vêm
desenvolvidas por programas diferentes sem uma necessária ordem de continuidade. Todas, entretanto, pertencem ao
conjunto projectual do QREN Mouraria.
44
- Reabilitação de diferentes edificíos de habitação para um total de 36 fogos
- Adaptação do Antigo Mercado do Chão do Loureiro para silo automóvel e
supermercado
Poder-se-ia vislumbrar nesta altura como as obras de renovamento urbano, físico e
espacial retomam o sentido estruturante dos objectivos fundamentais expressos pelo
plano: a requalificação do espaço público, a valorização do património histórico-cultural
e uma atenção particular às questões de carácter social. Mas o QREN Mouraria chega
mais à frente no desenvolvimento da sua obra de renovação territorial. Através das suas
entidades parceiras, o plano desenvolve de maneira mais articulada iniciativas e
estratégias para o cumprimento dos objectivos fundamentais. Se as obras incidiram no
espaço físico, este segundo tipo de iniciativas incidem num contexto mais representativo
e simbólico do lugar. A valorização da identidade da memória e da tradição consegue-se
através da produção e publicação de material cultural, (um livro em banda desenhada
sobre a história de Mouraria, um livro sobre a gastronomia tradicional da Mouraria, um
CD de Fado com referência à Mouraria)29
, e a organização de eventos artísticos e
culturais, (iniciativa Leitura Furiosa, sessões regulares dec inema ao ar livre, realização
do festival Há Mundos na Mouraria)30
.
Outro objectivo da fase de planeamento é a questão ligada à promoção turística do
território. Esta tarefa é cumprida através da instituição de um Percurso Turístico-Cultural
que se desdobra longo todo o “sentido geografico” das obras. São depois promovidas
visitas guiadas ao património histórico e cultural da Mouraria e um guia cultural de
edição bimestral. Ao mesmo tempo o plano empenha-se também em tratar através das
suas iniciativas, as sérias questões de carácter social que afligem a toda a zona. Dado o
equipamento de novas estruturas e o apoio das parcerias locais, serão desenvolvidos
programas de prevenção e redução dos fenómenos de risco ligados às toxicodependências
e aos casos de marginalidade social.
29
Estas produções serão realizadas pela Associação Renovar a Mouraria.
30
Estas iniciativas serão realizadas pela Associação Casa da Achada - Centro Mário Dionísio. Para o que
concerne o festival de cultura e música do mundo Há Mundos na Mouraria, a sua realização é obra de uma parceria
entre as várias entidades do plano.
45
4.1.3 Dentro do plano
As intervenções de tipo urbanístico, dirigidas a alterar de maneira significativa a
paisagem actual do bairro, são, como visto anteriormente, implementadas a partir da
melhoria das condições de acessibilidade e mobilidade no bairro, em função das quais se
operará uma profunda requalificação do espaço público. A este propósito foi definido
como princípio estratégico a criação de “espaços exteriores de qualidade,
multifuncionais, com soluções conceptuais adequadas ao tecido histórico, urbanístico e
patrimonial da Mouraria, atentas às necessidades da população residente (e dos seus
visitantes)”31
. O plano QREN Mouraria então, entende requalificar o espaço público
mais além do que uma simples renovação de infra-estruturas, mas como uma
revitalização do património cidadão e a requalificação da imagem urbana. A este respeito,
junto com as obras, vem-se delinear um Percurso Turístico-Cultural, que envolve os
visitantes na observação das mudanças em acto, e constrói, por isto, pontos de interesse
históricos e arquitectónicos. O conceito de mobilidade e acessibilidade assume então um
sentido mais amplo e completo em relação à simples acepção ligada ao trânsito de
veículos. Se por um lado é evidente que se irão efectuar profundas reformas na gestão e
regulamentação do tráfico, (sinalética, proibições, lugares de estacionamento), por outro
as iniciativas do plano implicam o envolvimento de velhos e a criação de novos lugares
de interesse artísticos, cultural e social. Com isto, a criação de redes espaciais de conexão
entre os diferentes pontos de interesse promovem a afluência de indivíduos em lugares
até agora “fechados” ao aproveitamento turístico. Mobilidade e acessibilidade assumem
no projecto do QREN um significado ligado sobretudo à capacidade das reformas em
criar novas formas de movimentação e apropriação das ruas, dos largos e das praças, seja
para a população residente, seja em particular para os novos agentes externos atraídos
pela zona. Esta visão, como se verá mais adiante, desemboca naquele sentido mais amplo
de abertura que guia e condiciona a obra do plano.
Dentro da recuperação e da edificação de novos lugares desencadeadores de novas
oportunidades de mudança e de desenvolvimento identificam-se numerosos imóveis
públicos e privados e a criação de importantes centros de inovação para o
desenvolvimento social e cultural do bairro. Serão estabelecidos dois equipamentos
sociais para actividades com jovens e idosos e um parque sénior e infantil; serão
instituidos um sítio temático sobre o Fado na antiga Casa da Severa, e um edifício
multifuncional que servirá como Centro da Inovação da Mouraria, no antigo Quarteirão
31
Dados fornecidos pelo site www.aimouraria.cm-lisboa.pt, Outubro 2011.
46
dos Lagares; se operarão obras de revitalização da Praça Martim Moniz e do Largo do
Intendente. As obras que o plano QREN Mouraria quer estabelecer não se limitam ao
renovamento urbano, mas têm a ver mais com a ideia de construção de uma nova imagem
do bairro: quebrando a estigmatização e dando-lhe um novo papel caracterizador nas suas
relações com os cidadãos e com a cidade. A este respeito revela-se a atitude do plano de
agir sobre os temas caros à tradição do bairro, e os que mais o caracterizam ou o
mistificam. Nota-se então a atenção sobre o discurso do Fado e os seus lugares de
representação, sobre o passado mourisco e a sua herança arquitectónica, sobre o
fenómeno da imigração e da convivência intercultural. Assim, nas linhas gerais do
Programa de Acção, identificam-se lugares e actividades que compõem a “estrutura
identitária do bairro”32
.
Os financiamentos do QREN serão também usados para a promoção de visitas
guiadas ao património histórico e cultural da Mouraria, dentro do qual se destaca um
“Corredor Intercultural” localizado entre a rua dos Cavaleiros e a rua do Bemformoso.
Concentram-se aqui pequenos comércios ligados à gastronomia e aos hábitos culturais de
comunidades de matriz cultural e religiosa não portuguesa33
. Serão financiadas, também,
as publicações de um livro em banda desenhada sobre a “história da Mouraria” e sobre a
“gastronomia tradicional da Mouraria”; a promoção de um concurso de Fado (e a relativa
edição de um CD), e a realização de um festival “multicultural” que vai ser intitulado
“Há Mundos em Mouraria!”. Parece então manifestar-se através da requalificação do
espaço público, (e consequente requalificação da imagem urbana), a vontade de atribuir
ao bairro novos impulsos identitários, bem definidos e facilmente reconhecíveis. Esta
vontade opera em dois níveis separados mas complementares. Por um lado, através da
construção de lugares que representem e renovem estes “impulsos”, tornando-os
acessíveis aos residentes através da acção quotidiana no território. Por outro, através da
criação de linhas temáticas facilmente reconhecíveis por um público visitante, que possa
assim aceder ao bairro através dos aspectos pelos quais este se caracteriza.
O orçamento do QREN para estas obras é de cerca de sete milhões de euros e o tempo
estimado para as realizar não mais de doze meses, (do começo das obras). A isto se
juntam no mesmo prazo, as intervenções urbanas promovidas pela Câmara Municipal de
Lisboa. As obras municipais integram-se neste cenário de “revolução urbana”,
promovendo a reabilitação de oito edifícios de habitação (para um total de trinta e seis
32
Ibidem.. 33
Ibi.
47
fogos)34
e a adaptação na zona de São Cristóvão, do Antigo Mercado do Chão do
Loureiro para um silo automóvel com supermercado e restaurante de luxo. A Câmara
Municipal em particular tomou como foco da obra reabilitadora o Largo do Intendente,
uma zona que só há pouco tempo, estava “fechada” ao aproveitamento da maior parte da
população da cidade. Depois de um longo período caracterizado pela prostituição, pelo
tráfico e o consumo de droga, o Largo é aberto repentinamente à vista da cidade, à
apropriação dos seus lugares e à promoção de numerosas iniciativas de desenvolvimento
social. Uma entre outras é a designação de um edifício que hospedará ateliers e
apartamentos para artistas vocacionados a trabalhar sobre o bairro. O projecto
denominado LARGO propõe-se como uma ferramenta de produção artística e social no
novo contexto do bairro. Mas o Largo do Intendente vai se revelar também como núcleo
de um novo centro para estudantes (com a abertura de residências para Erasmus) e lugar
de importantes edifícios institucionais. Foi decisão do presidente da Câmara Municipal
de Lisboa, António Costa, estabelecer o seu Gabinete nesta praça para conferir maior
visibilidade ao papel das instituições, e talvez, como ele explica, “para gerar a confiança
necessária para a população e para o desenvolvimento de outras iniciativas que tragam
uma contribuição à revitalização social do bairro”35
. Sempre por decisão da Câmara
Municipal, será estabelecido nesta praça, cenário da mais baixa marginalização social, o
gabinete do Alto Comissariado para a Imigração e o Dialogo Intercultural das Nações
Unidas.
4.2 Desde o “urbano” ao “social”: Plano de Desenvolvimento Comunitário da
Mouraria
Na teia emaranhada dos processos de recuperação urbanística e social do bairro,
avançou timidamente um projecto de potencial relevância que volta assuas atenções para
a nomeada questão social e procura recrear um consenso alargado e partilhado nas
relações com os moradores. Tal projecto pretende complementar as mudanças do
território com algumas reformas de carácter social que irão ser aplicadas dentro do
contexto “comunitario” que vê mudar as suas antigas referências e suas dinâmicas
quotidianas. Na transformação de um bairro, não se pode apenas mudar suas ruas, mas é
necessário a preocupação com, e a dedicação às problemáticas da vida das pessoas
envolvidas nisso. Assim, a ideia que prevaleceu no projecto parte do princípio de que a
34
Dados fornecidos pelo pamphlete de presentação das obras, A Mouraria vai mudar para melhor. 35
Extraído do comunicado do presidente da Câmara Municipal de Lisboa António Costa, no pamphlete de
presentação das obras, A Mouraria vai mudar para melhor.
48
liberdade e a cidadania plena só se atingem com o desenvolvimento integral dos
indivíduos e das comunidades e que o desenvolvimento político, económico, social e
cultural tem no combate à exclusão social e na promoção da qualidade de vida uma
prioridade36
. Nasce assim ideia de desenvolver um plano que assista e reforce as obras de
reabilitação urbana com projectos e respostas que se foquem na melhoria de vida dos
moradores e tentem acabar com alguns problemas de estigmatização social do bairro.
Além disso, a sugestão deste novo projecto parece acolher os numerosos protestos que
criticaram o QREN Mouraria, querendo estabelecer uma estrutura acêntrica,
desverticalizada, e que actue conforme às “decisões comunitárias”. Na discussão pública
do assunto, (e como afirma também o relatório final PDCM), o bairro da Mouraria é
considerado cheio de questões sociais37
e pessoas necessitadas38
. Portanto, este plano
aponta para a criação de uma rede de parceiros “endógenos” do território que ajudem a
identificar os problemas e as questões mais urgentes do bairro, e colaborem na
implementação de projectos e iniciativas que sirvam à resolução destes. É assim que
nasce o Plano de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria (PDCM).
Este segundo plano como se entenderá pelo texto, nascerá e desenvolver-se-á ao
longo de mais do que um ano depois da aprovação do Plano de Acção QREN Mouraria.
Isto determina o facto de que ainda hoje o Plano de Desenvolvimento Comunitário da
Mouraria não tenha um plano de acção próprio, mas tão só um relatório final onde são
indicadas algumas iniciativas e os objectivos finais. Entretanto, o percurso de
constituição, planeamento e avaliação deste plano coincidiu por inteiro com a altura do
meu trabalho de campo. Serão então aqui descritas detalhadamente as fases de formação
deste plano a partir da minha experiência de campo.
4.2.1 O Plano de Desenvolvimento Comunitario da Mouraria
O Plano de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria (PDCM) tem uma
paternidade definida e uma série de parceiros que o representam e se encargam dele.
Como declara Nuno Franco, O Plano de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria é
36
Relatório final PDCM pag. 3 37
Embora cheia de potencialidades e recursos endógenos, a Mouraria é historicamente um território composto
por vulnerabilidades sociais, designadamente grupos em risco ou em situação de pobreza ou exclusão social, baixos
índices de qualidade de vida, algumas inseguranças, e níveis de “guetização territorial” acima do comum desejável
Brano extraído do Relatório Final PDCM pag. 5 38
“Especificamente, alguns dos desafios actuais tem a ver com um elevado número de pessoas em situação de
prostituição, toxicodependências e sem-abrigo, com a consequência de uma população envelhecida, com a forte
presença de comunidades imigrantes (e itinerantes), com o trafico de droga, com um certo fechamento face ao exterior
e com alguma degradação urbana e de espaço público” Ibi.
49
uma encomenda do Doutor António Costa39
. O projecto nasce por volta de Setembro de
2010, quando já estavam alocados os fundos do QREN Mouraria e no horizonte se viam
as obras começar. Foi naquela altura que o presidente da Câmara Municipal contactou o
então Director Municipal do Gabinete de Acção Social, João Menezes. A indicação era a
de sondar o território da Mouraria a partir das suas instituições representativas, na
tentativa de constituir um grupo de parceiros interessados num programa sustentado de
reforma social no bairro. O plano, nas suas primeiras fases, teria consertado as entidades,
(associações de base local e externas, juntas de freguesias e paróquias), e aprofundado
um “levantamento dos objectivos, das metodologias e dos âmbitos dos projectos” que
actuavam na Mouraria. Afirma a história que, ouvidas as águas a mexer-se, o Nuno
Franco, presidente da Associação Renovar a Mouraria, pessoa estimada, conhecido e
conhecedor do bairro, começou a mobilizar umas quantas associações que operavam no
terreno, ao mesmo tempo que João Menezes40
procurava informações.
Eu, que ando no terreno todos os dias, tinha vindo conhecer ao longo destes três anos
muitos grupos da sociedade civil, e de algumas associações aqui do bairro.. Comecei a
perceber que por exemplo os Médicos do Mundo não conheciam as pessoas do ACIDI
[Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural ndr], as pessoas da Santa
Casa [da Misericórdia ndr] não conheciam o Contacto Cultural, o Contacto Cultural não
conhecia as Irmãs Oblatas.. Havia uma seria de movimentos que trabalhavam todos no
mesmo território, (e quando estamos a falar de território estamos a falar de um espaço
que vai desde o Intendente até a zona de São Cristóvão), mas não se conheciam entre si.
(Nuno Franco) 41
Foi assim que, com a intenção de se informar e conectar em rede os agentes locais do
bairro, a Associação Renovar a Mouraria, por obra do seu presidente, convocou no dia 7
de Novembro de 2010, uma reunião introdutória para dar a possibilidade às diferentes
componentes associativas de se apresentarem e se conhecer. Foi uma daquelas
coincidências da vida que fez com que a equipa presidida por João Menezes chegasse a
saber que nesse dia do 7 de Novembro, se teriam reunido por sua conta as associações da
Mouraria. Através de um dos funcionários da Câmara Municipal foi então contactado
Nuno Franco e foi-lhe perguntado se não havia inconveniente na participação de uma
figura institucional a tal assembleia. Como contou ainda o mesmo Nuno Franco:
39
Dados extraídos dà entrevista a Nuno Franco. 14 Novembro 2011 40
João Menezes é o actual presidente do GABIP (Gabinete Apoio Bairro Intervenção Prioritária), na altura dos
acontecimentos era presidente do Gabinete de Acção Social da Câmara Municipal como revelado também na entrevista
com Nuno Franco. 41
Citação retomada dà entrevista a Nuno Franco. 14 Novembro 2011
50
Eu marquei uma reunião com todos os elementos que conheci ao longo destes anos para
uma determinada data: e a primeira data acontece o dia 7 de Novembro de 2010. Uns
dias antes da reunião, o Doutor João Menezes, sempre por intermédio de uma equipa
com a qual ele já trabalhava há algum tempo, (que era a equipa que tratava do QREN
Mouraria), que era a Sra. Teresa Duarte (...), souberam que havia esta reunião com toda
esta gente, comentaram com o Doutor João Menezes, deram-lhe o meu número, e o
Doutor João Menezes tornou para mim a perguntar se não havia inconveniente em que
ele, que era Director Municipal da Acção Social, viesse à reunião. Evidentemente eu
disse que não havia inconveniente nenhum! Pelo contrario, até achava muito bem! O que
acontece aqui é curioso, e é que nem eu conhecia ao Doutor João Menezes, nem o
Doutor João Menezes me conhecia a mim! E então eu, ao fim e ao cabo, andava a
preparar o terreno que ele também queria preparar! Então houve aqui uma união de
esforços. (Nuno Franco)42
João Menezes, na qualidade de Director Municipal do Gabinete de Acção Social,
participou naquela reunião que ficou como a primeira sessão oficial do Plano de
Desenvolvimento Comunitário da Mouraria (PDCM). Naquela ocasião, o então Director
da Acção Social, apresentou aos participantes as ideias constitutivas do projecto do
presidente da Câmara Municipal. Num primeiro tempo o projecto não tinha nome e as
sessões centravam-se no levantamento de informações que podiam ajudar a delinear os
objectivos.43 Sem forma e sem conteúdo, a ideia de base que isto queria expressar era
complementar o QREN Mouraria com um plano que se ocupasse das questões (definidas)
sociais que afectavam o bairro. No entanto, tratava-se de criar um projecto capaz de
intervir nos “problemas do bairro”, curar as “fraquezas”, e assistir desde o “ponto de vista
social”, o programa de renovação urbanística que teria acontecido em seguida. Difícil
saber se sem a existência do QREN Mouraria, teria existido um “plano de
desenvolvimento comunitário”: provavelmente não; mas há muito tempo se somavam nos
escritórios municipais os pedidos de assistência das associações que operam no bairro, e
teria sido difícil ignorar as questões sociais no momento em que toda a opinião pública
estava olhar para a Mouraria e para o seu enorme programa de requalificação.
42
Ibi. 43
A denominação de Plano de Desenvolvimento Comunitário é fruto da consertação entre os parceiros. Estes
identificaram no adjectivo comunitário uma qualifica central da entidade desse plano. No entanto, nos primeiros
tempos, o plano carecia de um acrónimo definitivo e as documentações as vezes vinham assinadas baixo do título de
Plano de Desenvolvimento Social. Será Cristina Silva, funcionária do GABIP, a explicar o feito e a motivação da
existência de numerosos documentos assinados com um título diferente daquilo original. Retomando as suas palavras:
se optou para a denominação de “Comunitário” porque era comum, entre os parceiros, a ideia que um plano de
desenvolvimento da Mouraria devesse abranger mais genericamente todas as temáticas e as questões da vida da
população que mora na Mouraria; as quais iam muito além do simples aspecto social. Além disso a característica
distintiva do plano é que tudo que esteja feito, seja em parceria com a comunidade. (Cristina Silva, 7 Dezembro 2011).
51
Durante a escrita desta tese, passou mais ou menos um ano e um mês daquele
primeiro apontamento colectivo. Desde então contam-se mais oito reuniões plenárias44
,
uma reunião com o presidente da Câmara Municipal45
, um jantar de grupo46
e mais três
reuniões extraordinárias abertas ao confronto com os moradores47
, além de umas quantas
supervisões efectuadas no bairro à procura de lugares e espaços idóneos para o projecto.
Hoje em dia o PDCM é uma entidade real dentro do contexto de renovação do bairro e
nas acções da política municipal. Este tem estratégias precisas e modelos de intervenção,
um grupo definido de parceiros e uma série de projectos para actuar, um financiamento e
uma data para acabar. Se tudo acabar bem, este projecto terá também alguns
beneficiados. Por enquanto, ainda antes de ter redigido o seu Plano de Acção, a vida deste
plano no seu primeiro ano de idade pode dividir-se em três fases organizativas e
preparativas à sua futura implementação. Os primeiros meses ocuparam uma fase
diagnóstica do projecto, onde se procedeu a um levantamento das instituições e
associações envolvidas na Mouraria: uma espécie de mapping dos agentes sociais e dos
objectivos e das metodologias com que estes actuam na tentativa da identificação de um
plano de trabalho comum e partilhado. Isto significou juntar entidades e concepções
diferentes e avaliar um nível de concordância interna48
sobre diversos temas. Uma
segunda fase, no entanto, dedicou-se à implementação de um diagnóstico social do bairro
que delineou as vulnerabilidades e os problemas do território e analisou os diferentes
projectos a ser envolvidos neste. Esta fase foi protagonizada por uma prática muito
aproveitada no contexto das políticas sociais, que consiste na reutilização de padrões e
modelos de intervenção já implementados em outros contextos. A última parte deste
planejamento operativo, foi dedicada à definição das principais forças e fraquezas do
contexto social, à identificação dos principais eixos de intervenção e públicos alvos e
finalmente à organização das estratégias, dos objectivos e da equipa de trabalho. Esta foi
paradoxalmente a fase mais rápida e ao mesmo tempo mais densa de todo o
planejamento, mas como se perceberá mais afrente esta condição foi devida ao longo
44
7 Novembro 2010 - Associação Irmãs Oblatas
17 Novembro 2010 - Casa do Minho
2 Decembro 2010 - C.E.M.
6 Janeiro 2011 - Associação Con Tacto Cultural
14 Março 2011 - Associação Renovar a Mouraria
5 Abril 2011 - Grupo das Irmãs Adoradoras
11 Abril 2011 - Junta de Freguesia dos Anjos
19 Abril 2011 - Junta de Freguesia dos Anjos 45
Em data 12 Abril 2011 46
Em data 14 Janeiro 2011 47
Outubro 2011 – Casa da Achada
17 Novembre 2011 – Centro Desportivo da Mouraria
21 Novembro 2011 – Grupo Gente Nova 48
Relatório final PDCM pag. 7
52
procedimento de “aproximação ao território”. Ir-se-á agora descrever fase por fase as
etapas que caracterizaram o primeiro ano do plano.
4.2.2 Fase I: O grupo e os seus valores
Desde que começaram as reuniões plenárias no Outono de 2010, as entidades
envolvidas no plano de desenvolvimento começaram a desenvolver um trabalho de
conexão e partilha dos conhecimentos e das competências que cada uma daquelas tinha
relativamente ao bairro. Tentou-se o mais possível cruzar as sabedorias e confrontar os
métodos com os quais se abordavam diferentemente as questões daquele conjunto
territorial. Associações e colectividades eram procuradas e convidadas na tentativa de não
deixar a descoberto nenhum assunto relativo ao contexto social do bairro. A primeira
parte da vida deste plano resumiu-se evidentemente numa trabalhosa colagem de pessoas
e ideias. E de qualquer maneira, pessoas e ideias ainda continuam a reunir-se
esclarecendo ou talvez complexificando o cenário projectual que se tenta dar ao plano.
Para falar verdade, todo o procedimento de convocação e coordenação entre as várias
associações e instituições do bairro apareceu como a resolução de um puzzle complicado,
onde sempre parecem avançar pedaços mas ao mesmo tempo sempre aparecem outros
pedaços para encaixar.
Lista dos parceiros do PDCM49
Tabela 2
49
A lista está actualizada ao Janeiro 2012. Entretanto outros grupos e associações se juntaram a esta comissão.
53
Foi tão importante conectar os grupos, quanto necessário começar a delinear
algumas linhas gerais que baseassem as acções e as intenções dos grupos dentro do plano,
e do plano dentro do bairro. Desde o primeiro momento o PDCM quis-se manifestar
como um plano dirigido horizontalmente, onde as decisões e as problemáticas fossem
discutidas e resolvidas de maneira colectiva. Está claro que as decisões precisam de ser
tomadas, da mesma maneira que é necessário definir umas linhas de actuação, por tanto é
inevitável que se chegue a escolhas onde prevaleça uma maioria respeito a uma minoria.
Mas parece evidente que a prerrogativa do plano foi sempre a de estimular um diálogo
plural onde saissem as opiniões mais diferentes. Aliás, aparte de uns casos que veremos
mais à frente, as pessoas que trabalham no território têm bem presente o que valoriza e o
que danifica o bairro. Assim, na maioria das vezes, (em relação às decisões tomadas com
as associações e os grupos de voluntariado), os assuntos tratados tiveram sempre um
consenso plenário. Foi assim que de maneira “espontânea” surgiu uma análise geral de
crenças partilhadas e comum aos indivíduos e aos grupos que constituíam aquelas
reuniões iniciais. Esta primeira prova de “colaboração projectual” apresenta uma atitude
muito clara com a qual os grupos se queriam envolver no plano, e como, por sua vez, este
último devia aparecer na forma e nos conteúdos. Importa explicitar aqui o conjunto de
visões e concepções que as entidades detêm sobre o bairro e o foco de análise que estas
entendem actuar.
A análise geral de crenças elaborada pelos parceiros desenvolve-se nestes dez
pontos50
:
-A autonomia e a liberdade (de escolha) das pessoas e das comunidades;
-Assumir uma perspectiva safety e não security na promoção da segurança na Mouraria
(i.e. adoptar uma estratégia de promoção da segurança assente no uso colectivo do espaço
público, descentralizada e assente nos cidadãos, e não em forças de seguranças e na
repressão);
-Promover o acesso a equipamentos e reconhecer as actuais respostas no terreno e não
tanto promover a proliferação de novas respostas (redundantes);
-A participação / processo de desenvolvimento “de-baixo-para-cima”;
-A adopção de modelos de intervenção holísticos, integrados, globais;
-As parcerias e a optimização dos recursos disponíveis;
-A possibilidade de uso do espaço público de forma acessível e criativa;
-A especificidade/adaptação das respostas face aos diferentes problemas e públicos-alvo e
a sua eficácia no combate à exclusão social e à pobreza;
-A diversidade;
-A inovação e o empreendedorismo social nas respostas aos desafios sociais.
50
Dados fornecidos pelo Relatório final PDCM pag. 13
54
4.2.3 Fase II: a avaliação do territorio
Estabelecido o conjunto de valores ontológicos a alcançar, o plano entrou na sua
segunda fase. Tratava-se de redigir um diagnóstico social da Mouraria onde identificar
as principais vulnerabilidades e os problemas do bairro a necessitar de respostas. A isto
juntava-se um trabalho da identificação dos projectos e dos recursos no terreno onde se
enumeraram os projectos e as iniciativas já existentes no território com os recursos
humanos, materiais e financeiros que estes envolviam. Era de facto a única maneira para
perceber quantos e quais recursos-se podiam partilhar dentro do programa comum e quais
faziam falta e precisavam de um aprofundamento.
Na tentativa de um diagnóstico social do terreno, tentou-se de ter acesso à
multiplicidade de informações e dados elaborados sobre este, tentando criar um quadro
coerente e suficientemente representativo. Esta não foi tarefa fácil sobretudo porque a
zona da qual se está a falar representa uma porção de cidade espalhada no território de
cinco autarquias diferentes, cada qual com uma sua condição e um seu representante.
Então, só para atingir aos dados públicos e institucionais (que deveriam estar certos e
confiáveis), revelou-se oportuna uma verificação e uma avaliação do material obtido.
Como explícita também o Relatório final PDCM: realizar um diagnóstico social com
base na informação disponível não é tarefa fácil - dada a escassez, a falta de qualidade e
as contradições a nível de informação existente, e dado o carácter
dinâmico/diverso/complexo das realidades sociais51
. Embora fossem muitas e
provenientes por vários meios, as informações raramente encaixavam uma com outra,
deixando enormes buracos de compreensão, e também nos casos onde estas excedessem,
muitas vezes acabavam para se desacreditar uma à outra. Começou-se em primeiro lugar
a recensear a população do bairro e o número de habitantes que beneficiavam de
prestações sociais.
51
Relatório final PDCM pag. 27
55
Tabela relativa à percentual de prestações sociais proporcionadas ao território em
questão52
Tabela 3
Como já se tem referido, metade do território da Mouraria (também alargando os
seus limites ao extremo), fica sob à administração da Junta de Freguesia do Socorro. Isto
significa que se podem considerar totalmente os dados pertencentes àquela freguesia. O
mesmo não se pode fazer para as outras freguesias, em particular para aquela muito
povoada dos Anjos. A Freguesia dos Anjos declara quinze mil habitantes, mas só a
esquina de Rua de Bemformoso e o Largo de Intendente fazem parte da zona sujeita às
obras de reforma. Esta é uma zona muito pequena que nem sequer chega a mil
moradores, mas os dados da Freguesia de Anjos foram recolhidos enquanto entre os
parceiros do PDCM, aparecem uns grupos com sede no Mercado do Forno do Tijolo, (já
sede da Junta de Freguesia dos Anjos), que trabalham no território com um público muito
mais vasto daquele que compõe só a Mouraria. E' imaginável, de qualquer maneira, que
sendo uma tabela sobre o uso das prestações sociais, a percentajem mais alta de
indivíduos que usufruem destas, seja provavelmente constutuido por indivíduos que
moram na zona considerada pelo plano, ou pelo menos nas zonas limítrofes (o mesmo
vale no caso da freguesia de Santa Justa). No entanto, isto faz perceber duas questões: por
um lado como estes dados não representam uma situação real, (se se pensa que também
52
Dados fornecidos pelo Ministerio do trabalho e da Solidariedade Social.
56
não aparece Graça)53
, mas só um quadro hipotético e representativo. Por outro, que o
PDCM, da mesma forma que o QREN Mouraria, concebe o território e os recursos a ele
acessíveis, de maneira alargada e dinâmica, abrindo ao envolvimento de associações até
agora externas às dinâmicas territòriais.
Esta análise colectiva baseada nas informações dos parceiros trouxe-nos um outro
dado muito interessante mas novamente incerto. A Tabela 4 exemplifica o quadro das
problemáticas sociais incorporado pelas pessoas que vivem e frequentam o bairro.
Segundo os dados fornecidos54
, na zona de interesse do PDCM resultaram 222
toxicodependentes (entre residentes e frequentadores do bairro), 34 sem abrigos (entre
homens e mulher numa faixa de idade inclusiva desde os 24-74 anos) e um total de 111
mulheres a exercer a prostituição que sobem a 200, se se contam aquelas que exercem na
zona compreendida entre Martim Moniz e a Praça de Figueira. A completar o quadro são
os dados relativos à outras problemáticas sociais consideradas, como a imigração, o
envelhecimento, a sobrelotação habitacional, o insucesso escolar e a ausência de espaços
colectivos.
53
A tabela apresentada chama a atenção num factor determinante: aparecem só quatros Juntas de Freguesia sobre
cinco. Revela-se logo como não apareçam na tabela os dados referidos à Junta de Freguesia de Graça. A ausência da
Junta de Freguesia de Graça nas fases estratégicas do PDCM é devida a uma questão que poderia ser considerada
marginal e um bocado “castiça”, mas leva dentro precisas razões políticas. Graça através da representação da sua junta
não quis presenciar às reuniões do PDCM. Esta decisão é devida (como explica numa entrevista Cristina Silva do
GABIP, Câmara Municipal de Lisboa), às posições políticas contrastantes que dividem o Presidente da Junta e o
Presidente da Câmara Municipal e a uma sorte de vingança pessoal que o primeiro perpetua contra o plano. De facto a
Junta de Freguesia de Graça faz parte dos parceiros do projecto QREN Mouraria. Agora, (sempre segundo as
infirmações obtidas por Cristina Silva), parece que enquanto o QREN Mouraria não actua nenhum tipo de investimento
dentro do território da freguesia, o Presidente da Junta decidiu-se a não participar às reuniões do novo plano. Com ele
nenhum, (até agora), funcionário ou perito da freguesia apareceu em algum apontamento do PDCM.
54
Relatório final PDCM pag. 27
57
Tabela 4
Um momento importante da segunda fase foi quando se traçou um “mapa” dos
projectos e das actividades já existentes no território. Cada parceiro apresentou a sua
função no território, a sua área de actuação, os projectos a implementar e os recursos dos
quais possuía e dispunha a partilhar. Apareceu assim em cenário denso de objectivos e
conteúdos que disponibilizavam capacidade e experiência para as linhas estratégicas do
plano. A partir deste criou-se uma trama de pessoas e materiais, recursos e
conhecimentos, que concretizavam as intenções e as ideias geradoras da obra. O PDCM
começava a tomar corpo e substância. Os meios e os recursos identificaram
possibilidades e necessidades ao mesmo tempo que os objectivos apareceram mais claros.
58
Georeferenciação do conjunto de problemas e de respostas para afrontar, dividido
por zonas e juntas de freguesias55
.
Tabela 556
4.2.4 Fase III: a definição dos objectivos
A terceira parte da análise estratégica começou com uma síntese das principais
forças, fraquezas, ameaças e possibilidades que se apresentavam ao plano à luz das
considerações saídas até esse momento. Implementou-se então uma analise SWOT. A
analise SWOT (Strenghts - Weaknesses - Opportunities - Threats) é um instrumento de
planificação estratégica utilizado para avaliar decisões e objectivos de um projecto. A
prática, surjida já ao final dos anos sessenta, é ainda muito utilizada nos contextos das
organizações no-profit e dos programas governativos, em projectos a decorrer e na
planificação preventiva de fenómenos de crise. As considerações que saíram no contexto
da Mouraria descrevem a situação desenhada pelos parceiros do PDCM e podem resumir-
se nesta tabela.
55
Pode-se observar como mais uma vez não apareça a Junta de Freguesia de Graça. 56
Relatório final PDCM pag. 35
59
Análise SWOT da Mouraria57
Tabela 6
Como descreve este quadro, muitos dos pontos de força do território são
potencialmente também pontos de fraquezas. O facto da Mouraria (ou a zona considerada
por esta), ser um território heterogéneo enquanto contexto social e cultural, pode
promover um tipo de desenvolvimento rico e articulado mas também, como muitas vezes
aconteceu, pode ser causa de uma forte fragmentação social junta com uma “guetização
cultural”. A exclusão social e o tráfico de droga são fenómenos que podem ser
combatidos através da implicação do território em iniciativas lúdicas e culturais e, como
já temos visto, com a abertura deste a um turismo definido e massivo. E' importante
também relatar como os parceiros do PDCM consideraram a eventualidade ameaçadora
de uma intervenção invasiva do mercado e da especulação, juntamente com o respeito das
57
Dados fornecidos pelo Relatório final PDCM pag. 40
Forças Fraquezas -Área com boa dimensão (15 mil habitantes)
-População bastante heterogénea
-Instituições da sociedade civil bastante actuantes
e empenhadas
-Território muito próximo do centro de Lisboa (e
com facilidade de acesso)
-Existência de edifícios devolutos (disponíveis
-Forte identidade histórica (ex. Fado, Marchas
Populares)
-Boa rede de transportes públicos
-Boas áreas em espaços públicos (ex. Largo do
Intendente, Martim Moniz, fontanário, etc.,)
-Beleza de alguns edifícios e espaço públicos
-Insegurança associada ao tráfico de droga
-População bastante heterogénea (fragmentação
cultural e social)
-Envelhecimento da população
-Degradação urbana e elevados números de
prédios devolutos
-Território disperso
-População com elevada rotação/mobilidade
-Falta de qualidade de vida
-Proliferação de fenómenos de exclusão social e
pobreza
-Falta de espaços disponíveis para novos projectos
de urbanismo
-Ausência de oferta lúdica e cultural ancora e
consistente
-Estigma/má imagem
Oportunidades Ameaças -Aposta do actual executivo da CML,
designadamente do presidente
-Projecto de reabilitação urbana QREN Mouraria
e outras iniciativas da CML (Festival Todos,
BIP/ZIP)
-Sobrelotação (lúdica e cultural) do bairro alto e
de outras zonas de Lisboa
-Aumento do turismo em Lisboa
-Ganhos decorrentes de uma maior articulação
entre os agentes sociais locais
-Especulação imobiliária e aumento do preço da
habitação, empurrando para fora da Mouraria os
seus habitantes
-Má ou deficiente gestão urbanística por parte da
CML, comprometer os objectivos sociais
pretendidos, devido actuação contraproducente
dos agentes privados no território
-Concorrência de outros bairros histórico e da
zona ribeirinha
-O executivo da CML alterar o seu compromisso
relativamente a este território
-Conjugação do tráfico de droga e afluência de
novos públicos
60
tarefas por parte da Câmara Municipal, o que é o factor mais condicionante do sucesso do
plano.
A terceira fase continua com a definição de linhas de orientação estratégicas que
vão definir os principais eixos de intervenção e os públicos-alvo. Este foi um trabalho
incessante que perdurou ao longo de todas as sessões, sendo de facto o primeiro passo
para estabelecer uma futura aplicação. Os públicos-alvo e os eixos de actuação
prioritários foram sistematizados dentro de um esquema que definiu as questões
correntes. Os parceiros concordaram com os pontos que mais exigiam prioridade e
aqueles que de momento podiam ser subordinados. A combinação das questões
prioritárias definiu indutivamente a criação de seis linhas de orientação estratégicas para
o PDCM.
Esquema analitico das seis linhas estrategicas de acção58
Tabela 7
A Tabela 759
evidencia treze eixos de intervenção prioritários, ou seja, questões
relevantes nas quais se deviam concentrar as primeiras acções do plano. Estas acções
intervem sobre questões ligadas à promoção da Saúde para grupos como as prostitutas, os
sem-abrigo e os toxicodependentes.; à Educação, à Formação e à Empregabilidade para
grupos sociais tais como os imigrantes os jovens, (e mais uma vez as prostitutas e os
toxicodependentes). Acções catalogadas sob o título de Cultura e Desporto definem
58
Como indicado pelo Relatório final PDCM, as fronteiras entre eixos de actuação e grupos-alvo nem sempre
foram fáceis de traçar, dado o carácter holístico das pessoas e dos territórios, e dado o carácter desejavelmente integrado
das acções a desenvolver.
59
Dados fornecidos pelo Relatório final PDCM pag. 42
61
iniciativas relativas aos contextos familiares e de “comunidade”. Finalmente, destacam-se
dois temas fundamentais que envolvem todos os grupos sociais considerados, e
distinguem o particular enfoque do modelo operativo do plano. Estas são as acções
referidas à Boas Práticas no Espaço Publico e à Segurança, que trataremos mais em
detalhe no próximo capítulo. O quadro completa-se com a voz atribuída à Coordenação e
à Capacitação de todas estas iniciativas, as quais competem às instituições locais. Uma
vez individualizadas as questões prioritárias, procedeu-se agrupando-as por afinidades de
temas e de âmbitos. Surgirá assim a definição de seis linhas de orientação estratégicas,
que finalmente resumiam os focos de intervenção do PDCM.
Esta fase continuou com a explanação dos sentimentos e das motivações que
inspiravam e definiam o plano. A comissão de parceiros resumiu através de um consenso
alargado a Missão, a Visão e os Valores que iam realizar através a sua acção60
.
Missão: Contribuir decisivamente para a valorização da Mouraria e para a felicidade e a
liberdade dos seus habitantes, promovendo a coesão social e a qualidade de vida.
Visão: A população da Mouraria circula, usufruiu e participa amplamente nos processos
de desenvolvimento do território, é o principal actor do seu destino e do lugar, e está
capacitada para fazer face a oportunidades de mobilidade social. A Mouraria é
cosmopolita e aberta à cidade de Lisboa.
Valores: Capacitação, Participação “de baixo para cima”, Mobilizar, Diversidade,
Parceria, Empreendedorismo e inovação social.
O trabalho de concordância dos sentimentos e das intenções que deviam inspirar a
acção comum dos agentes envolvidos, realizou-se ao longo das sessões, através de longas
e participadas discussões de grupo, onde cada parceiro promovia os pontos para ele mais
sentidos e contratava com os outros os assuntos fundamentais. Como já se disse, as
vontades dos parceiros foram sempre bastante concordantes nas modalidades de acção e
de significação que o plano tinha que implementar. A vida no terreno e obra que estes
levam cada dia nisso, não deixam muita margem para a interpretação dos problemas e de
diferentes soluções. O quadro estava bem visível a todos, e basicamente se tratou de
explica-lo de maneira detalhada e coerente aos representantes da Câmara Municipal.
Através destas discussões de grupo chegou-se à identificação dos objectivos do futuro
PDCM. Tendo a pretensão de ser um plano social, (ou seja um plano que pretende
implementar um processo de mudança nas condições e nas práticas sociais do território),
é evidente que os resultados procurados pelo PDCM, não representem obras que se
60
Dados Fornecidos pelo Relatório final PDCM pag. 46
62
possam evidenciar a curto prazo. No entanto os projectos que se pretende implementar
precisam de anos para que os resultados se possam identificar. A melhoria das condições
de vida de um bairro necessitado, não é coisa que se alcance de um dia para outro. O
PDCM entende plantar as sementes, mas demorará tempo para que os frutos possam ser
colhidos. Com esta ideia se procedeu com a designação de dois momentos diferentes para
a implementação dos objectivos. Os dois momentos representam fases diferentes da
futura vida do bairro e tentam-se sobrepor a duas etapas significativas do processo de
renovação urbanística que envolve a cidade de Lisboa nos próximos dez anos. Como
objectivos a médio prazo foram considerados objectivos que se tentará satisfazer dentro
do final do 2013. Este é o prazo do qual dispõe também o projecto QREN Mouraria, para
finalizar as obras planeadas. Com este detalhe se sublinha a vontade estratégica e política
de associar os dois planos a um mesmo “destino temporal” e facilitar a sua
complementaridade. O ano de 2013, segundo os planos da actual Junta Municipal,
deveria ser o ano das grandes transformações (pelo menos estéticas e físicas) da
Mouraria, ponto de início para um novo curso histórico desse território e momento
conclusivo de aquele tempo de semeadura ao qual aludi pouco antes. Para 2013 prevêem-
se a finalização dos equipamentos necessários e o avanço daqueles planos cívicos e
sociais que permitiriam um desenvolvimento completo do território.
Nesta situação o QREN Mouraria dá um forte apoio ao PDCM, enquanto o fornecimento
dos equipamentos necessários ao PDCM vem das obras desse plano. Não se descreverá
neste trabalho quais e em que maneira os lugares restaurados pelo QREN serão utilizados
pelo PDCM, mas só para dar uma ideia, a sede do plano de desenvolvimento da
Mouraria, e dos projectos a este associados, será no futuro Centro de Inovação da
Mouraria no Quarteirão dos Lagares61
. O ano de 2013 então é uma etapa importante para
este território e um teste para superar para o PDCM, que até àquela data beneficia de um
financiamento já avaliado e atribuído. Os objectivos a longo prazo (ou finais), pelo
contrário, apontam para a criação de um cenário inclusivo, onde seja objectiva a melhoria
da vida social e comunitária no bairro, aportando forte equidade, integração e
desenvolvimento económico em toda a área. Estes objectivos aparecem muito ambiciosos
dada a sua abrangência, mas se integrarão num contexto mais geral que verá a futura
cidade de Lisboa transformada por um complexo de reformas urbanas e territoriais. A
data fixada para a satisfação destas finalidades é 2020. Nessa altura a cidade de Lisboa
estará redesenhando a sua paisagem urbana modificando a sua estrutura habitacional,
61
Veja-se a secção sobre o QREN Mouraria cap. 4.1.2.
63
ambiental, cultural e de mobilidade62
, e nesta, o bairro da Mouraria representará um foco
importante nas formas de apropriação do centro da cidade. Em baixo são relatados os dois
tipos de objectivos, que os parceiros do PDCM concordaram estabelecer63
.
Objectivos intermédios (Até final 2013)
Objectivos finais (Até 2020)
A) Maiores possibilidades de emprego;
B) Maior formação e qualificação;
C) Maior acesso à saúde;
D) Maior capital social e participação;
E) Maior utilização e fruição do espaço
publico (para moradores e visitantes);
F) Promoção da identidade e valorização da
Mouraria (interna e externa);
G) Capacitação das instituições da sociedade
civil a actuar na Mouraria;
H) Maior coesão social e qualidade de vida na
Mouraria;
I) Maior auto-estima da população (individual
e colectiva)
J) Maior sentimento de segurança (por parte
de moradores e visitantes);
K) Maior diversidade socioeconómica da
população da Mouraria (moradora e
visitante);
L) Instituições da sociedade civil mais
robustas e participativas;
Tabela 8
O procedimento de determinação dos alvos desenvolve-se como uma estrutura de
caixas chinesas onde cada factor encaixa dentro do outro e completa a sua definição.
Neste caso, as linhas de orientação estratégicas, constituíram o núcleo essencial das
práticas de intervenção, os objectivos intermédios definiram a sua forma, e os objectivos
a longo prazo, se conseguidos, deveriam constituir a moldura final do plano, e representar
as intervenções em frente da opinião pública. A Tabela 964
mostra nos o desenvolvimento
deste processo tripartido. Em amarelo aparecem as seis loe, enquanto as letras alfabéticas
representam os diferentes objectivos seguindo a representação da tabela aqui em cima.
62
“Estratégia de reabilitação urbana de Lisboa 2011/2024, Câmara Municipal de Lisboa” , Documento da
Câmara Municipal de Lisboa – Direcção Municipal de Gestão Urbanística 63
Dados fornecidos pelo Relatório final PDCM pag. 47 64
Relatório Final PDCM pag. 48
64
Tabela 9
Esta outra tabela mostra de outra maneira as relações que ocorrem entre os dois tipos de
objectivos.
65
Tabela 10
65
Relatório final PDCM pag. 49
65
5. A análise dos planos: métodos, ideias e significados das intervenções
“As sociedades de bairro [...]
são atravessadas por significativos processos de mudança
que se constituem enquanto cenários de múltiplas intersecções
de carácter estrutural, institucional, relacional e cultural”
(Cordeiro & Costa 1999)
5.1 Os eixos das intervenções
Os dois planos a cima descritos apontam para a requalificação territorial através de
reformas de tipo urbano e social. Como já vimos, o primeiro enfoca a sua acção
principalmente na recuperação do edificado e no fornecimento de novos equipamentos. O
segundo concentra a sua obra na construção e promoção de redes de suporte,
potenciamento e capacitação dos recursos territoriais para uma melhoria das condições
sociais de vida na zona. Os dois planos são estruturados para ser complementares seja no
aspecto temporal seja no fornecimento de equipamentos e serviços. A reforma socio-
urbanística da Mouraria passa por um processo diversificado e articulado que vai
abranger diferentes perspectivas de intervenção. No entanto através de uma análise dos
projectos, das concepções e estratégias desenvolvidas e das ideias expressadas pelo seus
protagonistas, sobressai periodicamente um conceito fundamental que parece traçar as
linhas guias desta obra de “renovação”: o conceito de abertura. Na primeira parte deste
capítulo analisaremos os eixos e as estratégias de intervenção pelos quais se realiza a obra
de reforma. Na segunda parte, consideraremos como o conceito de abertura aparece e se
estrutura dentro de tal obra, convertendo-se em ideia chave das suas intenções e definindo
em si mesmo um termo de reflexão para uma “hermenêutica da reforma”.
66
5.1.1 A (re-)definição das fronteiras
Como mostraram os diferentes planos de acção (Figura 1), o interesse
demonstrado pela obra de renovação envolve um território muito vasto, comparado com
o que definiu a Mouraria socio-espacialmente até hoje em dia66
. Como já foi descrito no
capítulo 2, a questão da demarcação do terreno é fundamental para definir qualquer tipo
de análise, estudo ou intervenção: os dois planos, que apontam entre outras coisas, para a
definição de uma nova ideia identitária e cultural da Mouraria67
, expandem o território
do bairro exponencialmente, delineando novos limites e abrangendo novas zonas. Passa-
se a englobar por inteiro a freguesia de São Cristóvão e circunda amplamente os
arredores do Largo do Intendente. Entre estas duas zonas, o território abrange a Praça
Martim Moniz, enquanto na sua vertente vertical, sobe até o topo da colina prolongando
os dois lados até às bases do Castelo de São Jorge e ao Miradouro da Graça. O território
aparece assim claramente situado no meio de três focos fundamentais na construção de
um lugar, “bom para pensar e bom para viver” no contexto da cidade de Lisboa.
Como já foi referido no capitulo 3, as intervenções da Câmara Municipal
concentraram-se em duas zonas em particular: o Largo do Intendente e os arredores da
igreja de São Cristóvão, zonas que nunca pertenceram nem culturalmente (se este termo
faz sentido), nem por composição socio-económica, ao território definido até agora como
Mouraria. A este respeito é fruto da minha experiência de campo saber que São Cristovão
e o Intendente, nunca foram consideradas Mouraria antes da implementação destes
planos. A este propósito vou referir duas anedotas. A primeira é aquela da Eduarda
Dionísio, gerente da Casa da Achada, lugar social e cultural situado no Largo da Achada
(Freguesia de São Cristóvão - São Lourenço), que num debate com o presidente do
GABIP João Menezes, afirma “eu não vivo na Mouraria! Se digo aos meus vizinhos que
são da Mouraria, eles zangam-se comigo!”68
. Isto dá para ver como São Cristóvão, desde
66
Este território apresenta-se mais vasto também daquele redefinido pela Area Crítica de Recuperação e
Reconversão Urbanística da Mouraria, estabelecido pelo Gabinete Local da Mouraria no 1985. 67
Dados fornecidos pelo site www.cm-lisboa.pt, Março 2012 68
No final de Outubro de 2011, aconteceu em Lisboa uma conferência internacional de antropologia sobre os
estudos de carácter urbanìstico (SICYUrb). Nessa ocasião foi organizado um workshop com o título A
interculturalidade nas estratégias de intervenção local. Para abordar este tema foi tomado como exemplo o caso actual
da Mouraria. A este respeito foram convidadas a falar três figuras públicas do bairro que participam em conjunto como
parceiros do plano QREN Mouraria. Cada uma destas pessoas, representa a sua maneira uma posição diferente sobre o
processo de mudança que está a acontecer no território. O primeiro convidado, João Menezes, foi o coordenador do
GABIP, (Gabinete de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária), o gabinete instituido pela Câmara Municipal que
supervisiona as obras do QREN e coordena os vários projectos em curso no bairro. A segunda convidad foi Eduarda
Dionísio, filha do escritor e pintor Mário Dionísio, gerente no Largo da Achada de um espaço que se propõe ser centro
artístico e cultural a disposição dos residentes e da cidadania em geral. A Casa da Achada (assim se chama o local)
partecipa na commissão de parceiros dos dois planos. A fazer de pacificador entre as duas figuras está Nuno Franco,
67
as suas escadinhas que descem para a Baixa até às calçadas que sobem até ao Castelo, é
uma zona que não partilha nenhum sentido identitário com a Mouraria, para além da
proximidade geográfica
A segunda anedota refere-se à impossibilidade de encontrar nenhum material que
ligue o Largo do Intendente com a Mouraria. Estes acontecimentos remontam ao verão de
2011, quando estava à procura de material sobre o PDCM. Como descrito pela Divisão
Administrativa de Freguesias69
(e dos mostruários e das bandeiras nas esquinas das ruas)
o Largo do Intendente pertence à Freguesia dos Anjos. Por duas vezes andei à procura de
documentação naquele edifício moderno que é da Junta de Freguesia dos Anjos, e por
duas vezes voltei sem ter encontrado nada. É de referir que cada vez que pronunciava o
nome “Mouraria”, a secretária mandava-me calar, excluindo qualquer relação entre eles e
o bairro da Mouraria. Nenhum documento, nem uma folha, mas só uma frase: “Aqui não
é Mouraria!”
A redefinição territorial expressada pelos planos tem a ver com o contexto político-
económico no qual estes desenvolvem. Na altura em que os planos (em partcular o
QREN Mouraria) apresentaram o seus projectos, a Câmara Municipal encontrou-se na
situação de ter que justificar o pedido de uma grande quantidade de dinheiro para resolver
os problemas socio-económicos e urbanísticos de uma zona bastante pequena do centro
cidade. Tomou-se então a decisão de intervir numa zona mais ampla onde tais problemas
só se apresentavam numa parte de um território muito maior que iria ser requalificado e
tornado mais apetecível ao aproveitamento do sector turístico e imobiliário.
A este respeito a Eduarda tinha razão quando afirmava que ela não era da Mouraria,
acrescentando que, “a Mouraria -esta da qual se fala agora- foi criada mais ou menos há
três anos, quando chegou aquele dinheiro da Europa”70
. É sem nenhuma hipocrisia que o
coordenador do GABIP revela que a definição e a demarcação territoriais desta zona são
funcionalmente instrumentais. Tratou-se de uma conveniência prática para a intervenção
no espaço público, onde um território mais amplo podia ser identificado através de uma
zona “antiga” e “tradicional” cujo centro estava incluido dentro deste território. A
definição destas novas fronteiras, e o facto de incluir na Mouraria zonas que desde
sempre não lhe pertenceram foi então meramente instrumental. Como concluiu também
presidente da renomada Associação Renovar a Mouraria. O debate foi um óptimo momento para confrontar várias
visões dos acontecimentos e traçar as linhas para o começo de uma reflexão teórica.
O brano é extraído do discurso da senhora Eduarda Dionísio, Workshop: A interculturalidade nas
estratégias de intervenção local. O caso da Mouraria, 12 de Outubro 2011. 69
Câmara Municipal de Lisboa, Divisão Administrativa de Lisboa, Lisboa, C.M.L. 70
Extraído do discurso de Eduarda Dionísio, Workshop: A interculturalidade nas estratégias de intervenção
local. O caso da Mouraria, 12 de Outubro 2011.
68
João Menezes, “...então nós alargamos as fronteiras da Mouraria: mas é verdade também
que a Mouraria nunca teve fronteiras né!?”71
Não se pode contrariar o coordenador do
GABIP por ter feito esta afirmação; embora seja uma opinião um pouco arriscada, aquela
da Câmara Municipal, de pensar que as zonas adjacentes ao núcleo propriamente dito
Mouraria, não sofram uma estigmatização negativa (pelo menos auto-induzida). Nuno
Franco, presidente da Associaçao Renovar a Mouraria, apoia esta ideia, acrescentando
que os mouros também se estabeleceram à volta do seu arrabalde, e que de qualquer
forma, esta zona constitui um bairro aberto no sentido do movimento interno das pessoas,
onde os indivíduos de São Cristóvão participam nas actividades da zona do Socorro,
tendo também estes últimos interesses frequentes no Largo do Intendente.
Seja qual for a interpretação que se dê a esta acção, a redefinição territorial da
Mouraria traz consigo importantes significados simbólicos e sócio-espaciais. A quebra
das barreiras que antes “confinavam” a Mouraria, acaba com aquela ideia de segregação
de bairro fechado, retraído e pouco inclinado ao “aproveitamento” do seu espaço; esta,
pelo contrário, renova a introdução de uma acção exógena, que favorece novos modelos
de apropriação dos recursos materiais e imateriais que o bairro tem. Ao mesmo tempo a
dilatação das fronteiras, expande um “universo simbólico-representativo” já definido
sobre outros territórios, tentando atribuir-lhes novos discursos identitários enquanto se
constroem novas representações do lugar. No entanto, esta dilatação sugere uma certa
concepção sobre o facto de que a (re-)definição apriorística dos contornos da Mouraria
crie uma nova entidade dentro da qual os seus habitantes reproduzem práticas e
representações que definem o bairro. Surgem aqui algumas perguntas de carácter
epistemológico ligadas a esta redefinição instrumental dos limites do bairro. Em que
modo a população viverá esta recolocação espaço - identitária? Será que se ampliará,
junto com as fronteiras, também o tipo de ligação geográfica e sentimental que intercede
entre os moradores e o bairro onde moram?
5.1.2 A prática do espaço público
Na articulada obra de reforma que os planos desenvolvem resultou ser central a
intervenção operada a nível espacial, quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista
social. O QREN Mouraria, aponta precisamente para a uma intervenção no espaço
público para constituir uma maior acessibilidade e mobilidade dentro e em redor do
71
Extraído do discurso do coordenador do GABIP João Menezes, Workshop: A interculturalidade nas
estratégias de intervenção local. O caso da Mouraria, 12 de Outubro 2011.
69
bairro. Ao mesmo tempo, a reabilitação física do bairro, com a criação de novos edifícios
e equipamentos deveria contribuir para estimular novas formas de uso e aproveitamento
do espaço. Como aparece descrito no PA QREN, “a requalificação do espaço público será
a intervenção de maior visibilidade e indutora de novos comportamentos”72
. A
reabilitação do espaço é acompanhada do desejo de criar impulsos para novas formas de
sociabilidade e apropriação no espaço publico. Neste sentido a participação e o
envolvimento dos indivíduos e das entidades sociais nas estratégias de organização,
revela-se importante para sensibibilizar e induzir novos padrões e práticas
comportamentais. Das reuniões desenvolvidas nas fases de planeamento do PDCM
resultou fundamental e de interesse comum a todos os grupos sociais consultados, a
resolução de temas relativos às “boas práticas no espaço público” e a um maior grau de
segurança no bairro.
A acessibilidade ao bairro e a maior liberdade de movimentação dentro do seu
território constituem factores que promovem a possibilidade de desenvolver uma série de
opções mais diversificadas de utilização e aproveitamento do espaço público, entendido
como o conjunto de edifícios, ruas, praças, jardins. Entretanto, os novos modelos de
comportamento auspicados nos objectivos dos dois planos são suportados por uma série
de normas que regulamentam as práticas que se querem implementar dentro do espaço
público. Parece quase indicar, por um lado, a aquisição de um direito, (nova fruição e
reapropriação dos lugares), e, pelo outro, a consideração de um dever (o respeito de
novos códigos nas formas de apropriação e realização da sociabilidade). Cristina Silva,
funcionária do GABIP Mouraria, explica como o tema das “boas práticas no espaço
público” incorpora mais características logísticas do que um aviso social.
As boas práticas no espaço publico já faziam parte dos objectivos para a candidatura
QREN e retomam um modelo europeu. Estas práticas consistem principalmente em fazer
intervenções sustentáveis, que respeitem as leis de mobilidade, de acessibilidade, etc. etc.
Estas têm muito a ver com a parte física, não tem nada a ver com o "social". Portanto
consistem em escolher materiais que respeitem o património histórico do território, a
sustentabilidade das reformas.....Claro que isto comporta as normas sociais também: a
acessibilidade é uma questão social...Civismo, esta é uma questão muito controversa
porque a Câmara não multa individuos e actividades que têm um comportamento “anti
cívico”, há pessoas que acham que se deveria multar.. [por comportamento anti cívicos a
funcionaria do GABIP se refere ao respeito dos tempos e dos lugares de entrega do lixo e
do higiene dos cães ndr] Então o que a Câmara pretende com “boas práticas” são
realmente acções de sensibilização e de instrução dos moradores sobre as práticas
correctas de convivência. (Cristina Silva)73
72
www.aimouraria.cm-lisboa.pt, Outubro 2011. 73
Extrato dà entrevista a Cristina Silva. 7 Dezembro 2011
70
A questão referida às “boas práticas no espaço público” inclui o tema do civismo. Com a
intenção de se referir aquelas atitudes e comportamentos que no dia-a-dia manifestam os
cidadãos na defesa de certos valores e práticas assumidas como fundamentais para a vida
colectiva, visando a preservação da sua harmonia e o facto de melhorar o bem-estar de
todos. Este termo pertence então à esfera da cultura política, tanto que em alguns casos é
“manipulado” pelos governos municipais para promover reformas do ordenamento cívico
e leis de comportamento público. Neste caso, no entanto, o civismo é considerado como
uma prática à qual se precisa aceder através da informação e da persuasão da
colectividade e não através de uma acção punitiva.
Mas uma maior acessibilidade e liberdade de movimentação favorecem também
uma melhor gestão do espaço público, desde o ponto de vista do acesso aos recursos, até
ao ponto de vista do controlo e a regulação que se pode impor sobre este. Como referido,
algumas das zonas abrangidas pela acção dos planos, é cenário de práticas de ilegalidade
e fenómenos considerados de “degradação social”. Ainda presente no território é um
difuso tráfico de substâncias estupefacientes, seja na venda, seja no consumo ao ar livre;
existe um número considerável de pessoas a exercer a prostituição e sem-abrigo, muitos
casos de alcoolismo e de vadiajem (Tabea 4). Estas seguramente não entram na
concepção ideal das “boas práticas no espaço público”, além disso representam uma
questão social e um problema político. É assim que apareceu, nos discursos dos
moradores, das instituições e das associações, o tema da segurança.
Desde muitas partes, durante o levantamento de dados e a obra de sensibilização
dos planos, levantaram-se vozes e pedidos de maior protecção e de intervenção contra os
fenómenos de violência ou mal-estar que aumentam a sensação de insegurança. É preciso
especificar que a Mouraria não é um lugar violento, mas é compreensível que alguns
tipos de pessoas, por exemplo idosas ou famílias, não se sintam confortáveis em ruas
frequentadas por toxicodepentes. Na verdade, este tipo de sentimento (segundo a
percepção de quem escreve, adquirida no trabalho de campo), está maioritariamente
presente na zona norte do bairro, onde é mais evidente a presença de indivíduos
estrangeiros e de comunidades imigrantes. Por outro lado, as queixas e os pedidos não se
registam pelos moradores que moram no centro do bairro, onde é estabelecida uma parte
consistente do tráfico de droga, e os residentes são na maioria portugueses. É evidente
então que o sentimento de segurança (assim como o de insegurança), é um tema denso de
significados humanos e sociais, que associam ou distanciam indivíduos e grupos. Assim,
71
desde o ponto de vista da prática política, o tema da segurança é um discurso complicado
de afrontar, que, muito frequentemente, é manipulado para desfavorecer os mais fracos.
Todavia, esta não parece ser a linha inspiradora das estratégias do PDCM. Já na
análise geral de crenças foi posto como segundo ponto um modelo ideal de como deve
ser entendida a segurança no próprio plano. Através da colaboração de alguns estudiosos
e dos parceiros foi assim definida uma linha teórica que dividia o conceito de segurança
em dois “universos significativos” diferentes: aquele da security e aquele da safety74
.
Security identifica aquele modelo de segurança baseado no controle e na
autoridade sobre o território. A protecção em alguns casos pode estar condicionada à falta
parcial de liberdade e identifica um sistema que privilegia a proibição e a repressão dos
direitos e das diversidades. O conceito de safety por outro lado identifica um modelo
contrário, onde a segurança é fruto do bem-estar e das práticas cívicas dos cidadãos. O
conceito de safety vai mais além do proteger um estado situacional predefinido, mas
entende a segurança como fruto da prevenção dos fenómenos de risco. Esta visão abrange
a trezentos sessenta e cinco graus o tema da segurança e não o considera apenas uma
questão ligada à legalidade, senão à saúde e aos direitos. Portanto a safety actua no
âmbito da criação de ambientes que assegurem o bem-estar das pessoas e salvaguardem
as suas condições físicas, sociais, espirituais, políticas, emocionais, psicológicas,
ocupacionais, etc. Como escrevem os parceiros no Relatório final PDCM, trata-se de
adoptar uma estratégia de promoção da segurança ausente no uso colectivo do espaço
público, decentralizada e ausente nos cidadãos75
. Este discurso é retomado também por
Cristina Silva, a qual comenta: “a ideia não é por um polícia em cada esquina: é tornar o
espaço público agradável, para que as pessoas se sintam seguras neste e porque práticas
marginais não dominem o espaço público” (Cristina Silva)76
.
Volta mais uma vez o tema do espaço público, das suas novas formas de
apropriação e as boas práticas de uso. Junto com isto, aparece mais uma vez o factor
74
Security and safety, assim como referidos neste contexto, identificam dois conceitos cunhados ao final dos anos
oitenta para qualificar tipologias diferentes de políticas de intervenção relativas à protecção dos indivíduos no espaço
público. Segundo a definição de Bruce Schneier “security identifica uma acção dirigida ao contraste dos perigos, dos
danos, das perdas, e dos crimes que ameaçam os indivíduos e os seus bens. Ou seja uma forma de protecção que põe ao
centro da questão os riscos e os perigos e que tende a proteger indivíduos e os lugares em quanto considerados bens
públicos ou privados” (Bruce Schneier, Beyond Fear: Thinking Sensibly about Security in an Uncertain World,
Copernicus Books, pp. 26-27) . O conceito de safety, ao contrario, põe ao centro o indivíduo, e refere-se à condição de
estar protegido contra os aspectos físicos, sociais, espirituais, financeiros, políticos, emocionais, profissionais,
psicológicos, educacionais, ou das consequências do dano, falha, erro, acidentes ou qualquer outro evento que possa ser
considerado não-desejável. Safety pode também ser definido como um conceito referido ao controlo dos perigos
reconhecidos para atingir um nível aceitável de risco. Isto pode assumir a forma de protecção do indivíduo a partir do
evento ou da exposição a algo que cause a perda de saúde ou da sua condição económica (Oakes 2005). 75
Relatório final PDCM pag. 13 76
Citação retomada dà entrevista a Cristina Silva. 7 Dezembro 2011
72
participativo, (aqui expresso pelo adjectivo “colectivo”), a reafirmar a dimensão
multidimesional e compartilhada nos processos de apropriação e organização. Neste caso,
é através de estratégias de gestão e salvaguarda do espaço público que se prevêem,
(segundo a ideia da Câmara Municipal), formas de decadência urbana ao mesmo tempo
que se promove o bem-estar da comunidade. Através de conceitos como “práticas
cívicas”, ou “uso colectivo do espaço”, reforça-se a ideia de que o espaço, além de uma
entidade física, é uma realidade produzida por, e produtora de dinâmicas sociais. Na
visão dos planos, o fenómeno espacial assume um significado decisivo dentro da mesma
construção do conceito de comunidade. Um espaço mais seguro, (segundo o enfoque
teórico sugerido), novos modelos de comportamentos cívicos e renovadas práticas de
sociabilidade no contexto urbano, qualificam-se como os catalizadores sociais e os
referentes identitários do auspiciado desenvolvimento comunitário. No entanto, é licito
levantar umas questões sobre: que forma tomará este processo de “colectivização” do
espaço? De que modo o espaço reformado será reapropriado pelos diferentes grupos e
indivíduos? Continuarão a manter-se as práticas de apropriação do espaço que hoje em
dia caracterizam as relaçoes sócio-simbolicas dos grupos do bairro, ou estas serão
constrangidas a mudar? Como e através de que formas será garantido e disponibilizado o
acesso aos recursos tendo presente a variedade de componentes sociais, internas e
externas ao bairro, que negociarão o seu uso? Por fim, de que modo será implementada a
acessibilidade ao território?
5.1.3 A composição sócio-económica
Um bairro caracterizado para ser lugar de segregação, território turvo e arriscado,
rede labiríntica de entradas seguras mas de saídas incertas, não pode utilizar outra forma,
para voltar a apresentar-se à cidade e a si mesmo, se não a de se se apropriar outra vez
das esquinas, dos becos e dos largos até agora esquecidos. Lança-se então un facho de luz
que esclarece os pontos até agora inacessíveis, para dissipar não só o estigma mas
também qualquer sombra de ilegalidade e atribuir ao contexto sócio-espacial um sentido
de protecção e segurança. Como num set cinematográfico quando se prepara a cena,
também neste bairro se pretende colocar reflectores a iluminar o contexto e os detalhes. A
acção é determinada, endereçada, ou, (para ficar dentro da metáfora), dirigida, através de
uma série de acções, comportamentos e práticas codificadas, (produtoras e produzidas)
por aquele set. Bem tendo o set (o bairro) e o roteiro (as práticas no espaço), na produção
deste filme ainda falta contratar os actores. E esta é outra tarefa à qual os planos de
73
renovação do território não se subtraíram. Tanto no QREN Mouraria como no PDCM é
tratada a questão social desde o ponto de vista dos actores: ou seja das forças e das
componentes sociais que actuam no bairro.
Aparece então, nos discursos dos protagonistas da renovação, o conceito de
“balanceamento social”77
. O “balanceamento social” è aquela estratégia socioeconómica
(e política) que pretende “balançar o potenciamento dos recursos endógenos, com novos
recursos exógenos”78
. Interpretado com outras palavras, este conceito entende
complementar o velho substrato social residente, com novas classes sociais extra-locais.
Este envolvimento de novas categorias sociais, no tecido urbano do bairro pode verificar-
se através do estabelecimento “interno” de novos estratos de população no território
como também limitar-se a uma simples participação económica de entidades “extenas” a
investir no bairro. Nos objectivos da Câmara Municipal, a reabilitação socio-espacial do
território deveria implicar o advento físico de novos estratos de população dentro dos
prédios desabitados de algumas zonas do “bairro”, em particular daquelas mais estimadas
ou frescas de reforma. Mas a introdução dos recursos exógenos pode verificar-se também
através de uma contribuição mais “passiva”, ou seja através de investimentos económicos
de privados que invistam em empresas e actividades comerciais; ou favorecendo o
aproveitamento das ofertas socioculturais disponibilizada pelo território, para específicas
tipologias e grupos socioeconómicos, como por exemplo os estudantes Erasmus. O
“balanceamento social”, apresenta-se então como um mecanismo para atrair novos
segmentos de população mais jovens e ricos ao bairro e simultaneamente preservar a dos
residentes originários.
Mas “balançar”, “complementar”, “envolver”, são palavras que alguns
representantes das associações que actuam no território não gostam. Por exemplo, a
solidariedade que Eduarda Dionísio expressa com os vizinhos da zona de São Cristóvão
compele-a a dizer que não será o “balanceamento social” a mudar para melhor as
condições sócio-ecónomicas no bairro: “Com todos os milhões de gastos para este plano,
poder-se-ia melhorar substancialmente a vida dos residentes: por exemplo, restaurando as
77
A ambiguidade e a grande genericidade deste termo constringe-nos a definir melhor a sua entidade e as suas
significações. Infelizmente não há fontes tão oficiais que possam legitimar tal tarefa. O substantivo “balanceamento”
deriva de uma palavra de origem luso-brasileira, enquanto a locução “balanceamento social” não aparece em algum
dicionário ou revista especializada do sector. Tal expressão, é então referida assim como adquirida pelos discursos dos
operadores e dos indivíduos que tomaram parte no processo de planeamento e implementação da obra de reforma. Em
particular este termo foi adquirido pela primeira vez de um discurso do coordenador do GABIP João Menezes, que “se
atribuiu a tarefa” de defini-lo nas suas especificidades e significações. 78
Extraído do discurso do coordenador do GABIP João Menezes, Workshop: A interculturalidade nas
estratégias de intervenção local. O caso da Mouraria, 12 de Outubro 2011.
74
casas.”, afirma a gestora da Casa da Achada79
.
Esta estratégia económica e social de facto, não deixa de despertar dúvidas e
estimular questões sobre os reais riscos que esse tipo de operação, tal como é feita,
comporta para o tecido social do bairro. Tomarei como exemplo a zona de São Cristóvão,
onde o “balanceamento social” se manifesta através da restruturação do Antigo Mercado
do Chão do Loureiro. Este será reconvertido num silo automóvel de dois andares, com
um supermercado e um restaurante de “alto nível” com vista panorâmica. A operação
deveria “requalificar” a zona em vista do interesse dos investimentos privados. Após
algumas objecções, a Câmara Municipal afirmou que teria vigiado que não se
verificassem casos de especulação imobiliária ou fenómenos de gentrification. No
entanto, este tipo de garantia não exclui a questão que surge quando num particular
contexto socioeconómico local se introduz a presença de novas forças económicas
dominantes
Baseandome nas características do contexto local em questão, o aumento dos preços
das casas é apenas um dos aspectos do fenómeno de especulação económica que pode
acontecer. Isto porque, a condicionar o equilíbrio socioeconómico de uma pessoa no lugar
de residência, não é só o custo da casa80
, mas uma série de factores contextuais que têm a
ver com o acesso aos recursos (especialmente primários) que o lugar lhe fornece. Por
isso, embora os preços dos alojamentos possam não mudar, o custo de vida muda em
geral. Assim, no exemplo aqui citado, a abertura ao turismo e às classes sociais de
consumo e costumes diferentes, suplanta as velhas tascas e os velhos restaurantes
económicos em troca de lojas e bares com outro público alvo; o supermercado torna mais
difícil a actividade dos minimercados, talhos e padarias que providenciam ao
abastecimento local; e, finalmente, o novo parque de estacionamento pratica preços
demasiados elevados para os residentes da zona81
. Demonstrar-se-á assim a previsão da
Eduarda quando afirma que de todo o dinheiro investido nas intervenções no bairro, nada
corresponde aos benefícios dos quais poderia aproveitar a actual população residente. A
questão então fica pendente entre as linhas dos projectos para se desenvolver. Nem sequer
Nuno Franco, presidente da Associação Renovar a Mouraria se demonstra capaz de
fornecer ideias para evitar o risco da propagação epidémica deste processo no território.
79
Extraído do discurso de Eduarda Dionísio, Workshop: A interculturalidade nas estratégias de intervenção
local. O caso da Mouraria, 12 de Outubro 2011. 80
Em Lisboa muitos residentes são também proprietários dos alojamentos onde moram, ou pagam rendas fixas
da época do Estado Novo. 81
Esta situação verificou-se mesmo depois da abertura do parque em questão, e foi interesse dos últimos
tempos do trabalho de campo.
75
Este nem consegue imaginar o que significaria tal cenário no bairro onde vive há trinta
anos, entre toxicodependentes, traficantes e a deterioração urbana. Ele só quer é que as
obras vão para frente.
Assim, além do “envolvimento de recursos exógenos” no território, os discursos de
muitas associações envolvidas no PDCM interessam também o desenvolvimento dos
“recursos endógenos”. Numa perspectiva sócio-económica, conforme as ideias da
Câmara Municipal, esta concepção explicita-se na criação de novas formas de emprego e
na formação e capacitação do substrado populacional originário. Estas iniciativas
explicitam-se através da criação de cursos de formação, abertura de fundos de
empréstimos ad hoc, criação de cooperativas de trabalho, estabelecimento de novas
formas de contratos sociais e económicos entre os residentes e as instituições. Ao mesmo
tempo, quer-se actuar no potenciamento das formas de inclusão social: criação de novos
grupos associativos, intensificação da obra de assistência e suporte às pessoas
necessitadas, realização de laboratórios e oficinas de trabalho intergeracional e o
aumento da oferta de bens e serviços abertos a toda a população. A melhoria da condição
socioeconómica do bairro então, não é entendida só como produto dos salários medios
dos seus habitantes, mas também como resultado da qualidade de vida, do accesso aos
recursos e das oportunidades de empreendimento que estes podem aceder. Este tipo de
tarefa implementa-se através da colaboração com as entidades associativas que operam
no território.
No entanto fica pendente, para uma análise que poderá ser desenvolvida num futuro mais
próximo, a questão de como este balanceamento social será afinal implementado no
bairro. Como a introdução de novas classes sociais pode conviver com um processo de
emancipação dos estratos mais indigentes da população residente. Isto porque espaços e
serviços disponibilizados para satisfazer as necessidades dos diferentes grupos
socioeconómicos, são muito diferentes e isto determina a possibilidade que se criem
pequenos guetos residenciais dentro do mesmo bairro, destabilizando assim o já instável
equilíbrio social que o caracteriza.
5.1.4 Patrimonialização e identidade
Outro aspecto no qual a intervenção conjunta dos planos insiste é a questão da
patrimonialização e da promoção de uma identidade compartilhada, baseada na
reprodução de elementos históricos, sociais e culturais. Este aspecto reconduz à
construção sociocultural que se fez da Mouraria nas épocas anteriores. Retomam-se então
76
os mitos e os significados ligados a este nome. Mouraria, como já foi referido, representa
uma entidade à qual correspondem visões, imagens, construções mentais e preconceitos,
instituidos e reafirmados ao longo das épocas. Representa então um nome denso de
significado que pode, no entanto, ser sempre modificado e manipulado. Mouraria nesta
ideia apresenta-se como o pass-partout conceitual através do qual se desenvolve o plano
de reforma.
A produção e a construção social do espaço, apoia-se então sobre a idealização de
determinadas tradições que procuram basear-se num passado pensado como histórico.
Assim, a intervenção no espaço público das obras, aponta para requalificar e instituir
espaços considerados como próprios a uma estrutura identitária82
da zona, que possam
assumir e remeter ao seu património cultural e “tradicional”. A requalificação de lugares
designados à produção cultural (Casa do Fado, Quarteirão dos Lagares), e à criação de
percursos temáticos (corredor Intercultural, percurso Turístico-Cultural), entendem
realizar esta intenção. Como já vimos a produção do património, no fundamental, é uma
questão de atribuição de valores e construção de sentidos. Na Mouraria estes apanham os
contornos da antiga tradição popular e da mais recente convivência intercultural.
Volta-se então aos discursos referidos à cultura bairrista, à tradição popular, àquela
ideia de “genuinidade” e “autenticidade folclórica” própria de uma determinada história e
sociedade do bairro. A esta junta-se a construção de uma Mouraria assumida como
símbolo do convívio “multiétnico” e/ou “multicultural” criada nas ultimas décadas mas
que se liga “coerentemente” ao seu mito de fundação e à origem mourisca. Ao mesmo
tempo continua constante o trabalho de quebra da estigmatização que longamente definiu
(exogenamente) este território como o primo pobre83
dos outros bairros da cidade. Chega
então a reflectir-se aquele particular jogo de espelhos que reproduz imagens que
transitam entre as ideias de típico, tradicional, popular, multicultural, multiétnico
(Menezes 2004).
Mas a criação de uma identidade sociocultural vai mais além de uma política de
patrimonialização. A ideia de identidade expressa pelos planos, parece acompanhar-se da
ideia de construção de uma comunidade sociocultural. Isto revela-se em particular nas
iniciativas sociais que os planos desenvolvem. Através das associações parceiras do
82
PA QREN Mouraria, www.aimouraria.cm-lisboa.pt 83
Num trabalho escrito por Marluci Menezes sobre a questão da patrimoniaização da Mouraria ela reporta que,
em diversas e variadas conversas com distintos indivíduos foi possível notar que, muitas vezes, o bairro da Mouraria
era referido como sendo o “primo pobre” dos outros bairros típicos e populares da cidade, enquanto Alfama era
referida como a “menina dos olhos” (MENEZES M., 2005, Património Urbano: por onde passa a sua salvaguarda e
reabilitação?).
77
PDCM desenvolvem-se numerosas iniciativas destinadas à produção de sociabilidade:
através da realização de trabalhos de grupo, criação de colectividades, laboratórios de
solidariedades intergeracional e intercâmbio cultural, mas também através produções
artísticas baseadas sobre a realidade local. Através da participação produzem-se reflexões
sobre o uso colectivo dos recursos, da pluralidade, do local e em parte sobre uma ideia de
comunidade. Aliás, foi o próprio PDCM a querer definir-se comunitário numa acepção
que integra todas as diferentes realidades sócioculturais do território em práticas, valores
e direitos partilhados.
A obra dos planos envolve-se, assim, de uma forte significação representativa. O
passado tradicional, tipificado em práticas, símbolos e significados sócio-espaciais é
acompanhado pela construção de novos sentidos “histórico-culturais”, tentando criar um
padrão coerente na produção de imagens e conceitos de uma narrativa identitária. Ao
mesmo tempo, a construção simbólica (e espacial) da identidade, é suportada pela
construção social de uma realidade comunitária, que vive de precisos atributos sociais,
(económicos) e culturais. No intanto surgem algumas reflexões sobre como a construção
deste processo identitário será recebido pelos diferentes grupos socioculturais que
convivem no bairro? Concordará com as representações e as construções identitárias
definidas pela população? Através de que políticas se tentará construir uma estrutura
comunitaria? Serão as políticas de marco multiculturalista aptas para a criação de uma
comunidade igualitária e solidária?
5.2 A “Abertura”
O que estimulou o meu real interesse na Mouraria, não foi o facto de se verificar,
ou não, um plano de reforma sociourbanística que modificasse através de vários aspectos
o território; antes pelo contrario, foi uma atracção pessoal devido à tentativa de codificar
e explicar a grande e variada quantidade de projectos e realidades que estavam a
estabelecer-se na zona e que a tornam um cenário dinâmico e articulado.
O conceito de abertura nasce de uma análise etnográfica e a assunção de tal deriva
das entrevistas e dos diálogos com os interlocutores, enquanto que o conceito surgiu da
análise dos planos. Porém, o trabalho de campo demonstrou como este conceito -
partilhado a nível teórico e conceitual - é construído, utilizado e elaborado de maneiras
diferentes, às vezes até antitéticas, entre todas as entidades envolvidas no processo de
mudança do bairro.
78
A abertura não é só um conceito identificador da nova imagem que se quer dar ao
bairro. Ao mesmo tempo este não teve nenhum tipo de matriz epistemológica no
desenvolvimento da pesquisa. No entanto, caracterizou-se por ser um “termoindicador”
através do qual foram considerados, quando possível, os processos de mudança que
envolvem o bairro e os seus residentes. Nesta pesquisa o conceito de abertura constituiu
então um olhar caracterizador ao mesmo tempo que caracterizado considerado como o
motor conceitual da obra de reforma sociourbanística do bairro na sua complexidade e
contraditoriedade.
De acordo com o que afirmam os anúncios publicitários e as palavras dos políticos
nas conferências de imprensa, o projecto do QREN tem por objectivo apresentar a
Mouraria à cidade e ao mundo inteiro. Exemplo disto é o discurso de António Costa84
no
qual a Mouraria é tratada com o apelativo de bairro histórico da cidade ao qual se
seguem os adjectivos fechado e desconhecido. “A antiga Mouraria, com os seus segredos
e a sua história, deve tornar-se orgulhosa e brilhante aos olhos da comunidade moderna”
(Antonio Costa 2011).
Partindo das informações adquiridas no trabalho de campo, que se tornaram um
proveitoso factor explicativo, revelou-se um conceito recorrente que numa palavra
conseguia resumir as formas e os conteúdos desta obra de intervenção. A análise dos
planos, as entrevistas feitas aos seus responsáveis, os encontros informais e as conversas
com os representantes das associações, identificaram e definiram o conceito de abertura.
O conceito de “abertura” representa um ponto extremamente importante no
enquadramento do sistema de intervenção que estamos a analisar visto que permite
perceber as estratégias desenvolvidas e ler os possíveis significados a elas atribuídos.
Através do conceito de abertura as reflexões expostas neste capítulo parecem encontrar
uma ordem conceitual.
5.2.1 As linhas da “abertura”
A definição territorial operada pelo QREN Mouraria desenhou os limites da
intervenção definindo um território conceitualmente abstracto ao mesmo tempo que
espacialmente circunscrito. Porém, isto não parece corresponder ao território que
identificava a Mouraria nas atribuições espaciais que até há pouco tempo lhe conferiam
as instituições, as administrações locais, os estudos, a literatura e até os próprios
84
Extraído do discurso do presidente da Câmara Municipal de Lisboa António Costa, Reunião com a população
na Casa de Lafões, 23 de Setembro 2011.
79
moradores que nele situam ainda hoje representações e práticas rituais. Pelo contrário, ela
define um território muito mais vasto que abrange e interliga zonas e lugares diferentes.
Neste procedimento de redefinição - ampliação territorial - é possível identificar o
primeiro nível do conceito de abertura.
Como já foi referido, esta operação compoem-se de dois factores principais: a
ampliação de um território espacialmente estigmatizado, através do “englobamento” das
zonas mais próximas dele e a construção de percursos temático-culturais que abrangem e
interligam significativamente as diferentes partes envolvidas no território. Isto é, por um
lado quer definir-se uma área vasta, densa e integrada no centro da cidade, acessível e em
contínua ligação com os outros pontos da cidade, um lugar de conjunções entre vários
eixos económicos e culturais, ou seja um lugar inserido numa rede de lugares; e por
outro, quer planificar-se rotas e percursos turísticos que representem uma nova unidade
territorial, compacta e coerente, através da reutilização de velhos discursos identitários e
da construção de novos significados simbólicos.
Esta abertura de tipo territorial corresponde a uma intenção de envolver o bairro
num fluxo contínuo de movimentos de pessoas, actividades e mercadorias. Na visão do
QREN Mouraria, a abertura é percebida como a melhoria dos percursos e dos eixos de
entrada, saída e atravessamento do bairro por um trânsito regulamentado e ruas em
ordem. Concretamente, este plano aponta para a intervenção no espaço público de molde
a constituir uma maior acessibilidade e mobilidade dentro e em redor do bairro. Ao
mesmo tempo, a reabilitação física do território, com a criação de novos prédios e
equipamentos contribui para o estimulo de novas formas de uso e aproveitamento do
espaço, seja pela população residente seja por um público que o visita ou o transita.
A redefinição do território e a requalificação do espaço público constituem o
objectivo em reabilitar a imagem urbana do bairro que deveria constituir um motivo de
atracção para um novo tipo de capital social. A abertura consiste também em criar os
pressuupostos para o estabelecimento no bairro de novas classes sociais, com uma melhor
condição socioeconómica e diferentes interesses culturais. O processo que foi definido
como “balançamento social” refere-se ao envolvimento de novos grupos sociais no
contexto socioespacial do território na esperança de que eles tragam novos e diferentes
investimentos, recursos, iniciativas económicas e que dêem um maior impulso ao
desenvolvimento socioeconómico e cultural do bairro. A abertura de novos espaços -
sociais, culturais e económicos - coincide com a abertura para novas pessoas - sociais,
culturais e económicas.
80
O conceito de abertura é expressado de formas diferentes pelos seus interlocutores
embora lhe seja atribuído o mesmo significado. De maneira física ou conceitual, a
abertura é vista como a possibilidade de aceder ao bairro, poder entrar e sair dele,
atravessá-lo de uma ponta a outra, torná-lo num território de passagem, de
transitoriedade, de confluência – quer de pessoas quer de mercadorias - na prática,
segundo uma certa ideia, “re-territorializá-lo”.
A obra de abertura pode ser entendida, numa primeira instância, como a
descaracterização do bairro pois ao redefinir os seus contornes e diversificar o seu tecido
social a abertura pretende quebrar a estigmatização socioespacial pela qual é conhecido.
No entanto, ela não pressupõe minar as construções e as representações que o
caracterizam na relação identitária que tem com a cidade. Permanecem assim tanto os
significados ligados à tradição popular como os que remetem a uma “imagem positiva”
do bairro, mas, ao mesmo tempo, tenta-se construir novas representações caracterizadas
através da diversificação da oferta cultural e económica que ela propõe.
5.2.2 O enfoque da participação
Como já foi visto, estão a ser implementados no bairro dois planos de impostação
complementar. O conceito de abertura foi-se revelando inicialmente na recolha de dados
do QREN Mouraria, pois aparecia como palavra-chave nos discursos do seu
planificadores. Por outro lado, na medida em que o PDCM começava a definir a sua obra
eram também delineadas as ideias e estruturas conceituais de um plano que entendia o
conceito de reforma de uma maneira diferente.
Uma das questões fundamentais que caracterizaram o PDCM na sua evolução foi
um tema que surgiu muitas vezes ao longo das reuniões e que caracterizou um argumento
de profundo debate durante as fases organizativas: a participação da população. Desde o
primeiro momento foi claro, do ponto de vista das associações parceiras, o tipo de
orientação que devia seguir o desenvolvimento do plano. Já na “análise geral de crenças”
foram estabelecidos pontos bem explícitos sobre este ponto. A participação entende-se
como um processo que se desenvolve “de baixo-para cima”, e que “assenta na
diversidade e no respeito das escolhas e das posições de todas as partes envolvidas”85
.
Uma maneira de agir atenta então à especificidade de cada contexto e à consideração e
respeito de todas as forças em campo. O PDCM, não é construído, à diferença do QREN
85
Analise geral das crenças, Relatorio Final PDCM pag.13
81
Mouraria, como uma entidade externa ao território mas nasce precisamente das forças e
da sua capacidade para criar novas energias e recursos.
O PDCM baseia o seu trabalho na ideia que “a participação dos cidadãos não é
simplesmente a oferta voluntária de tempo ou recursos, mas resulta da sua participação
nos processos de decisão a favor da comunidade. A participação comunitária não se
resume a um suporte ou ajuda entre membros de um determinado grupo, envolve o
contributo efectivo nas decisões, com impacto na mudança social, o que pode acontecer
segundo diversas formas como, a qualidade de vida nos bairros, questões ambientais,
segurança e prevenção da violência interpessoal”86 (Dalton 2002). Um envolvimento que
interessa a população em múltiplos aspectos e que, em consequência, a torna responsável
em questões de gestão, salvaguarda e produção dos recursos internos, nomeadamente nas
práticas no espaço público, resultado de um uso colectivo e participativo, e o tema da
segurança.
A participação é orientada através da obra das associações empenhadas no dia-a-dia
no território. O programa e as estratégias assim como as actividades e as iniciativas são
individualizadas através do trabalho conjunto e da colaboração dos parceiros do PDCM,
que fazem propostas e disponibilizam recursos e conhecimentos. Delineiam-se assim uma
série de estratégias que apontam para o envolvimento de uma numerosa quantidade de
habitantes e ao aproveitamento de espaços e recursos do território. O envolvimento da
população manifesta-se concretamente nas dinâmicas de produção artística, económica e
cultural, o que, segundo a linha do projecto, proporcionará um “forte impulso ao resgate e
à emancipação de uma numerosa faixa social da população de Mouraria”87
(Cristina
Silva).
86
DALTONet al. 2001 cit. por ORNELAS, “Participação, empowerment e liderança comunitária”, 2002, pag. 6 87
Extrato dà entrevista a Cristina Silva. 7 Dezembro 2011
82
Estratégias para o envolvimento e a participação da população
Tabela 11
A tabela mostra os projectos constituídos no âmbito do tema do envolvimento e da
participação. Nela é possível ver como os objectivos intermédios põem algumas questões
fundamentais na acção do PDCM.
Em primeiro lugar, aparece o factor social e socioeconómico desenvolvido através
da implementação de numerosas formas de inclusão social: a criação de novos grupos
associativos que apontam para a intensificação da obra de assistência e suporte às pessoas
carenciadas, à realização de laboratórios e de oficinas de trabalho intergeracional e o
aumento do fornecimento de bens e serviços abertos a toda a comunidade. Em segundo
lugar, o factor económico desenvolvido através da criação de uma caixa de crédito local
que dará a possibilidade às pessoas de usufruirem de prestações e fundos “evitando” os
vínculos monetários e criando, ao mesmo tempo, novas formas de contratos sociais (e
económicos).
Outro aspecto fundamental é aquele que está ligado à apropriação do espaço
público. O espaço é adquirido através da promoção de actividades lúdicas e de desporto,
que envolvem as pessoas na participação activa e no convívio pessoal e de grupo. As
ruas, as praças e os largos do território voltarão a ser o cenário das actividades da e para a
comunidade e, através também das obras de requalificação urbana, deverão tornar-se
lugares acolhedores para o lazer e a recriação dos grupos sociais. A produção artística
será encorajada através de uma vasta gama de acções e actividades na interelação entre
pessoas e espaços.
Evidencia-se nesta planificação um outro tema importante na definição do carácter
ontológico e conceitual do plano pois ela pega nos contornos da promoção de um
83
identidade ligada ao lugar (endógena ou exógena). Dentro deste tipo de orientação, a
participação é entendida como veículo através do qual se desenvolvem discursos
identitários. Ou seja, nas intenções do PDCM é suposto acompanhar a promoção de um
substrato social coeso e solidário com um sentimento identitário plural e coerente com
uma reformada ideia de comunidade local. Para este fim parecem ser úteis as iniciativas
inter-religiosas e intergeracionais e a realização do documentário sobre os aspectos
tradicionais da Mouraria. A participação desenvolve-se nas estruturas de produção
cultural criadas para a população onde se renovam modelos e práticas sociais de
integração comunitária. Por sua vez, ela vem inserida em eventos e iniciativas ligadas à
representação da tradição para uma renovada caracterização cultural do bairro.
5.2.3 Participação, arte e “abertura”
A tentativa de envolver os indivíduos e os grupos do bairro na produção das
actividades economicas e sociais representa um ponto de ruptura fundamental a respeito
da ideia que caracterizava o território como lugar de segregação onde as necessidades
estavam submetidas às possibilidades. A requalificação do território, com a obra do
PDCM, passa também por formas de emancipação económica e pela melhoria do acesso
aos recursos sustentáveis seja individual ou colectiva. Além disso, a participação e o
envolvimento da população como objecto de uma reforma social do bairro, desenvolve-se
através de linhas e temáticas “poliédricas” que muitas das vezes desembocam num
variado conjunto de projectos artísticos e culturais. A participação coincide com a
assunção das problemáticas e das questões remetidas pelos indivíduos a partir da própria
vida diária o que significa então fazer voltar os planos de um contexto exógeno e
histórico para um endógeno e quotidiano, já que muitos destes projectos tentam revelar e
reactualizar a dimensão subjectiva como factor socialmente fundamental na definição de
um bairro.
“Companhia limitada” é o nome de um projecto desenvolvido pela associação SOU
– Movimento e Arte, parceira do PDCM. O projecto centra-se na vida e nos problemas
dos idosos que não podem sair de casa, confinados às paredes simbólicas e reais de uma
sociedade indiferente e descuidada. Como foi decrito no projecto, “um grupo de
estudantes/artistas visitaram sete dessas pessoas, que vivem entre a Mouraria e a Baixa
antiga de Lisboa: Belmiro, Olga, Natalina, Silvina, Florinda, Barros e Sofia.
Conheceram-se e conversaram. Encontraram ideias no meio de palavras e suspiros.
Trabalharam essas ideias e materializaram-nas em movimento e música. Sete
84
espectáculos curtos surgiram entre as suas mãos. Vão ser apresentados em quartos,
cozinhas, escritórios ou pequenos espaços em frente da casa, para quem já não possa sair
para ás compras”88
. A Directora do projecto, Madalena Vitorino – ex-programadora do
Festival Todos89
- trabalha em múltiplas iniciativas para dar voz às subjectividades e às
diferenças das quais o bairro é inexaurível divulgador.
Dar espaço à expressão de uma subjectividade vinculada ao lugar serve para
reafirmar e assistir a uma dimensão íntima e privada muitas vezes esquecida nos grandes
projectos urbanísticos ao mesmo tempo que se pode utilizar para tentar desenvolver uma
análise experiencial da mudança.
Hélène Veiga Gomes é doutoranda em antropologia e investiga as representações
da paisagem urbana a partir de contextos em transição como é o caso da Mouraria. No
seu projecto “Intendente(s)” convidou para participar um pequeno grupo de pessoas
residentes ou frequentadores da zona do Intendente e pediu-lhes que retratassem, através
da fotografia, o seu espaço diário exterior de forma a dar vida a uma reflexão sobre as
imagens subjectivas da cidade em transformação. O trabalho, que culminará numa
instalação artística no largo recém-renovado, brinca com as imagens, as visões e as
representações de um território visto com os olhos de quem o vive para depois compará-
lo e justapó-lo às imagens oficiais e publicitárias que o definem como uma representação
exógena. Como afirma a Hélène, “o projecto desenvolve-se sobre dois níveis: mostrar as
imagens do Intendente através dos olhares de quem vive lá; cruzar estas com as imagens
institucionais que são propostas, para operar uma decostrução da imagética do lugar boa
para re-discutir o tema da representação”90
.
As visões e as representações do lugar remetem para a descoberta de novas
subjectividades ao mesmo tempo que podem ser usadas para desenvolver novos discursos
sobre a identificação e a ideia de identidade, seja endógena ou exógenamente definida.
Neste sentido, a jovem coreógrafa catalã Ainhoa Vidal dirigiu uma peça de teatro
protagonizada pelos habitantes do bairro da Mouraria. Os actores eram as crianças, os
velhos, as mulheres, os homens, portugueses, indianos, africanos e todos os elementos
que compõem o variado estrato social da zona. A peça chama-se “Macondo”, nome com
88
PROJECTO COMPAMHIA LIMITADA, Associação SOU – Movimento e Arte
soumovimentoearte.wordpress.com Maio 2012 89
Todos – caminhada de culturas. II edição, Mouraria 8, 9, 10 e 11 de Setembro 2011 90
Declaração extrapolada de uma conversa informal com a amiga Hélène Veiga Gomes
85
o qual Gabriel García Márquez baptizou a aldeia do seu Cien años de soledad, e foi
representada no Beco do Jasmim, um dos largos mais “autênticos” da “velha Mouraria do
berço do Fado”, que a seguir foi palco das obras de requalificação. Tal como a Macondo,
Mouraria representa uma comunidade. Como afirma a autora, “Macondo é uma aldeia
que aparece e desaparece. Um lugar levantado por um homem e uma mulher ao fugirem
do terror de uma superstição . Macondo é um estado de paixão, de guerra, de traição, de
descobrimento, de milagre, de beleza, de crença, de solidão e de morte. É uma roda que
gira geração após geração, numa pequena humanidade, tão como deve ser a Mouraria”91
.
Subjectividade e comunidade, representações e identidade são os temas através dos
quais se desenvolvem as práticas participativas concebidas nos planos, nomeadamente no
PDCM. A análise das estratégias e das formas de participação promovidas pelos planos
remetem-nos às considerações feitas sobre o tema da abertura. O apoio fornecido às
pessoas carenciadas ou com necessidades mais urgentes, o envolvimento de indivíduos
nas redes sociais e nas colectividades, o suporte económico e os incentivos ao
empreendedorismo e uma gestão colectiva do espaço público92
são medidas que apontam
para romper aquele isolamento social que distinguiu o bairro ao longo das épocas.
Perdeu-se a ideia de que a Mouraria, ou o territorio que por ela vem codificado, sofreu
um continuado tempo de segregação socioespacial, pois se a segregação espacial foi
definida pela sua caracterização geográficomorfológica, a segregação social referiu-se
sempre à condição humana dos seus habitantes privados das mais diversas oportunidades
de desenvolvimento. Envolver então a população nos processos de desenvolvimento, no
acesso e na gestão dos recursos locais revela-se uma ruptura da segregação que da passo
a uma forma de abertura.
Conjuntamente com isto, as formas de envolvimento e de participação manifestam-
se de forma concreta através da produção de eventos artísticos e culturais, pois é através
da sua implementação que as diferentes estratégias de participação nas quais os
indivíduos podem expressar as suas próprias subjectividades ao tornarem-se
protagonistas da realidade social que os circunda torna-se possível. Assim, o
envolvimento da população é por si próprio um fenómeno de abertura. Então, como se
91
Discurso de presentação da obra Macondo. Ainhoa Vidal, 10 de Setembro 2011 92
Veja-se o parágrafo A pratica do espaço publico (5.1.2)
86
poderia chamar ao facto de a senhora Florinda, depois de muitos anos, aparecer à janela
para assistir ao seu espectáculo93
?
5.2.4 O paradigma da “abertura”: para uma hemenêutica do processo de reforma
Consideramos antes a abertura como uma estratégia de requalificação
sóciourbanística que se manifesta através de uma redefinição tanto territorial como social
e representacional do lugar. Caracterizada, como exposto no plano QREN Mouraria, pela
explicitação de uma dinâmica de tipo exógeno, quer dizer, por uma dinâmica onde a
implementação da mudança social, a atribuição de novos valores e os esforços
económicos disponibilizados procedem fora do contexto urbano em questão. Por outro
lado, o papel do PDCM revela a intenção de criar uma maior estruturação do tecido
comunitário a partir da obra das entidades endógenas do território que é suposto
desenvolverem um trabalho recíproco na relação com a população ao envolvé-las nas
propostas, nas actividades e nos projectos a implementar no bairro.
No decorrer da minha tese, e à medida em que obtinha os dados e tentava compor
um quadro de análise sobre os planos, apercebi-me de que a acção complementar dos
dois planos se articulava de maneira clara e distinta nas formas em que eles agiam e nos
conceitos que representavam. Durante muito tempo considerei o QREN Mouraria e o
PDCM como duas entidades diferentes, alternativas, até antagónicas pelas ideias e as
concepções que desenvolviam. Foi claro desde o primeiro momento, graças às discussões
e as entrevistas com os seus protagonistas, que ambos desenvolviam um trabalho de tipo
complementar. Embora me pareceia que esta complementariedade não constituia uma
certa compenetração entre os planos, mas sim agia como uma forma de “balançamento de
estratégias”, onde às propostas reformadoras de um se contrapunham as propostas
reformadoras do outro. Surgia assim, portanto, na minha opinião, uma sorte de dicotomia
sobre a qual se fundamentava a obra de reforma sociourbanística da Mouraria. Nesta
dupla imagem havia, por um lado, o plano do QREN com a sua intervenção externa
caracterizada por movimentos e vectores que seguem eixos “de fora para dentro”
(turismo, investimentos, obras e interesses extra locais); e por outro, o PDCM, onde a
93
O dia 15 de Junho 2012, a pé das Escadinhas da Saúde, o grupo de trabalho “Companhia Limitada” encenou o
“espectáculo pessoal” dedicado a senhora Florinda. Ela é uma mulher de oitenta e seis anos que por causa de problemas
de motricidade não sai de casa há mais de cinco anos. Nesse dia ela, através da sua janela observou um pequeno grupo
de pessoas, entre artistas e simples curiosos, chegados até alì para lhe dedicar uma peça de teatro, e coisa mais
importante: um pouco de atenção.
87
estruturação era puramente interna e a obra era dirigida para a formação, capacitação e
promoção social do território. Os conceitos através dos quais os dois planos se
implementavam, segundo a minha ideia original, eram: para o QREN Mouraria o
conceito de abertura; para o PDCM o de participação.
88
Figura 394
94
Esquema gráfico que tentava descrever a obra de reforma sócio urbanística implementada na Mouraria através da
análise dos termos de abertura e participação. Extraído do caderno de campo: produzido no Abril do 2012.
89
Como mostra o esquema produzido durante o meu trabalho de campo, tentei
analisar os dois planos através dos conceitos que os representavam aos olhos do seus
promotores e participantes. O conceito de abertura e o de partecipação, destacam-se
como palavras-chave aos lados da tabela e desdobram-se uma série de temas e estratégias
de intervenção que definem uma estrutura dicotómica. Como foi descrito acima, a minha
primeira intuição foi a de entender as acções dos dois planos através de uma espécie de
“balançamento”. As estratégias e as políticas de reformas de um correspondiam às
estratégias e às políticas do outro marcando uma certa reciprocidade entre proposta e
contra-proposta, projecto e contra-projecto, visão e contra-visão. No entanto, esta
dualidade, que distinguiu as formas e as práticas de accão dos dois planos converge na
hora de definir os focos de acção da obra de renovação.
Como descrito no capitulo 5.1 a análise da obra de reforma sociourbanística da
Mouraria, revelou quatro eixos principais: uma redefinição territorial apriorística e
instrumental; uma profunda intervenção sobre o espaço público, quer seja do ponto de
vista arquitectónico quer seja da constituição de novas formas de aproveitamento; uma
consistente alteração do tecido socioeconómico do território ao promoverem a introdução
de novas classes sociais, mas favorendo também a capacitação e o desenvolvimento de
uma economia interna; uma constante obra de sensibilização, impregnada de símbolos e
discursos que remetem para a construção de conceitos como “identidade” e
“comunidade”.
Na visão que acompanhou o meu trabalho de campo, estes quatro objectivos eram
atingidos através das obras dos planos, que eram por sua vez codificadas pelos dois
conceitos analisados. Com o passar do tempo, e com os planos que começavam a
materializar-se nas ruas o do QREN, nos projectos abertos à população o do PDCM -
comecei a focar o meu trabalho sobre alguns aspectos menos aparentes que
caracterizavam esta obra de reforma com a intenção de também pôr em evidência as
questões um pouco equívocas e não tão visíveis que minavam a minha construção
dicotómica. O trabalho de campo, mais uma vez, confirmou que não se pode inscrever
num diagrama um processo de mudança social ainda em construção, nomeadamente a
obra de reforma sociourbanística da Mouraria, e que não era possível esclarecer este
através de um gráfico dicotómico, apesar da abertura e participação serem dois
conceitos que surgiram precisamente do trabalho de campo. Então, como sintetizá-los
para criar um sistema explicativo?
90
A conclusão à qual cheguei foi que abertura e participação são dois conceitos
existentes na obra de renovação da Mouraria, porém 1) cada conceito não corresponde
necessariamente a um só dos dois planos e por isso não pode definir completamente
qualquer acção de um destes; 2) os dois conceitos agem a níveis diferentes, dentro da
obra de implementação.
Em primeiro lugar, a construção dicotómica vem rejeitar a constatação de os
conceitos de abertura e participacção não agirem em correspondência com um plano
específico, mas vem demonstrar que elas se encontram presentes em formas e momentos
diferenciados na obra de renovação. A abertura não é um conceito do QREN Mouraria
da mesma forma que a participação não é um conceito exclusivo do PDCM. Por exemplo
no PDCM, os projectos dedicados ao envolvimento da população promovem a construção
de uma identidade do bairro, quer seja endógena quer seja exógena95
. A participação
neste contexto é utilizada para promover uma caracterização do bairro em função da sua
relação com o exterior, com a cidade (abertura). Delineia-se assim uma
complementariedade e uma inter-penetração que entrelaça tais conceitos em ambos os
planos. Complementariedade e inter-penetração que se expressa também na mesma
constituição dos planos. O LARGO Resindências é um projecto do QREN, que
remodelou um prédio no Largo do Intendente e o disponibilizou para artistas e
associações que trabalham no bairro. Nele trabalha a Associação SOU e outras entidades
que fazem parte do PDCM. A requalificação do Quartierão dos Lagares é uma obra
financiada com os fundos do QREN e que se transformará no Centro de Inovação da
Moraria onde estabelecer-se-ão associações e actividades relacionadas com o PDCM.
Assumido que os dois conceitos estão interligados dentro da obra de reforma,
voltamos a considerar que as formas de participação através das quais se desenvolvem
alguns projectos, constituem por si próprias uma forma (social) de abertura. Isto significa
que embora os dois conceitos existam complementarmente não se estruturam num
mesmo nível. A abertura define conceitualmente a obra de reforma, expressa as ideias e
as concepções através das quais se desenvolvem as estratégias e as práticas de reforma.
Com o seu carácter de “intenção” constitui antes o fim da acção dos planos. No entanto, a
participação resulta de uma forma de gestão e organização da obra de reforma.
Representa em si própria uma estratégia de implementação, que é desenvolvida
conforme alguns temas e momentos da intervenção. Com o seu carácter de “prática”
define melhor um meio de acção dos planos. Os dois conceitos agem então em níveis
95
Tabela n. 11
91
diferentes: um como método de desenvolvimento da acção, outro como resultado final da
intervenção.
O fim da obra de reforma sociourbanística é a abertura do bairro. Ela é orientada
através de eixos de influência determinados. Na implementação destes eixos são
desenvolvidas práticas e estratégias diferentes das quais a participação é o motor
conceitual das intenções do PDCM. A participação revela-se não só como um modelo de
reforma mas como uma prática utilizada na operacionalização de projectos específicos. A
obra de reforma da Mouraria, atinge a abertura do território: que poderá acontecer com
ou sem o envolvimento de processos de participação.
92
6. Viver na reforma: expectativas, mudanças e vida quotidiana no bairro
Ao longo deste ano de campo, acompanhou-se a obra de reforma do bairro seguindo
as diferentes fases que a caracterizaram, tentando definir os pontos de vista das
instituições que a implementaram, das associações que nesta se envolveram e da
população que, na sua quotidianidade de vida no lugar, a “sofreu”. Em particular
procurou-se estar em estreito contacto com os habitantes do território envolvido nas obras
para perceber quais eram os significados que estes davam ao próprio bairro, mas também
quais fossem as aspirações e os desejos que estes expressavam sobre à mudança que
haveriam podiam caracterizá-lo. Ao mesmo tempo, com o progredir das obras, tentou-se
verificar durante o trabalho de campo, eventuais formas de mudanças nas vidas das
pessoas e nas representações que estas faziam do seu bairro. Tentou-se então “viver no
campo” o processo de mudança, questionando-o, a par das entidades promotoras, também
com as pessoas que moram, trabalham ou ligam as suas existências quotidianas ao
território implicado.
Como já foi dito, o território envolvido por este processo de reforma engloba
diferentes realidades sócio - territoriais, assim como acolhe a presença de diferentes
grupos sócio - culturais, cada um dos quais vivendo de maneiras diferentes e às vezes
contrastantes o bairro. Por isso partiu-se da ideia de que a criação de uma nova imagem
do bairro, representava um factor de mudança sócio - espacial, económica e simbólica
que envolvia de maneira variada as diferentes pessoas que (em termos de idade, sexo,
profissão, área residencial, pertença social ou cultural), povoam a Mouraria. O trabalho
desenvolvido com os habitantes do território ajudou então a fazer uma análise desta
reforma assim como sair de um ponto de vista endógeno. Através desta análise tentou-se
perceber se a obra de requalificação espacial e revitalização económica do bairro,
implicava as mudanças esperadas e era bem acolhida por parte da população, e de que
maneira a redefinição de novos significados simbólicos e culturais ligados ao território,
tinham uma certa coerência com as construções e as definições expressadas pelos seus
habitantes.
93
6.1 A mudança do espaço público
Durante o ano em que se desenvolveu o trabalho de campo, o cenário da Mouraria
aparecia completamente perturbado: as ruas estavam cheias de terra, os largos já não
existiam e enormes buracos descobriam canais subterrâneos onde corria a água, a
electricidade e também os esgotos da cidade. A vida no dia-a-dia das obras revelou-se
muito dura para os seus habitantes que de formas diferentes sofriam os condicionamentos
das obras. Muitos queixavam-se pela desaparição de lugares de estacionamento, outros
pela impossibilidade de passar por alguns lugares ou a dificuldade em sair de casa. O
António, gerente da renomada tasquinha Os Amigos da Severa, situada na Rua do
Capelão naquela altura afirmava: “Está-se a viver um bocado mal. Por exemplo aqui
nesta rua que é Rua do Capelão, se quiser passar por cá, eu que por exemplo aqui vou a
trabalhar tenho que passar por cima desta porta que cobre um buraco de dois metros, e
isto cria muitos problemas às pessoas!”96
A Maria do Livramento, cabo-verdiana que há
trinta e dois anos gere o Restaurante São Cristóvão também confirmava: “Todo isto é
muito mal, tudo está destruído, parece uma guerra, aqui já não se vê ninguém!”97
.
As obras mudaram rapidamente o aspecto exterior do bairro e em menos de cinco
meses já se podia notar a mudança que estas trouxeram ao espaço público. As praças
foram renovadas com nova iluminação e pavimentação. Ao mesmo tempo que
desapareciam os lugares de estacionamento e os buracos no chão, apareciam bancos,
árvores e fontes. Assim como mudavam as opiniões das pessoas. A mesma Maria do
Livramento só um mês meio depois da primeira entrevista voltava a afirmar: “Agora este
lugar é mais lindo, parece quase mais fresco, limpo até mais aberto, pois esta [Rua de São
Cristóvão] já parece uma avenida!”98
.
Tentou-se perceber no curso dos inquéritos e das conversas com os informadores se
as obras mudaram espaços onde eles costumavam passar o tempo e desenvolviam as
próprias relações sociais. Para todos eles estes espaços caracterizavam o cenário da
própria vida quotidiana, mas todos ficaram felizes por vê-los mudados assim como
apareciam. Moin é um jovem bengali que trabalha como mediador intercultural e mora na
Rua Marques Ponte de Lima. Ele referiu:
96
Extrato dà entrevista a Antonio Gomes. 15 de Março 2012 97
Extrato dà entrevista a Maria do Livramento. 23 de Março 2012 98
Extrato dà entrevista a Maria do Livramento. 7 de Maio 2012
94
É muito bom como está a mudar [a Mouraria], sinto-me mais confortável e acho que
haverá mais possibilidade para poder aproveitar destes espaços. É cedo para dizer se
isto mudará alguma coisa nos costumes das pessoas ma já vejo muitos amigos [refere-se
aos amigos bengali que moram no bairro], ir a passar o tempo na praça Martim Moniz99
e no Largo do Intendente.100
O António confirma: “Quando eu puder, espero poder aproveitar mais destes espaços,
pois antes não. Já as vezes vou sentar nos bancos aqui do Largo da Severa, mas também
gosto de ir em outros sítios que eu já não ia há muito tempo”.101
As perguntas sobre a mudança do espaço público levaram a questionar como
estavam a mudar práticas comportamentais que antes eram desenvolvidas nestes espaços,
e como, ao mesmo tempo, começavam a aparecer novas formas de uso e gestão do
espaço público. Em particular começou-se a investigar a partir do tema da segurança e
das boas práticas do espaço público, como eram consideradas pelos moradores. A Rosa,
por exemplo, é uma galega que mora na Rua de Bemformoso há 47 anos, onde possui
uma actividade de lavandaria:
Eu nunca me senti insegura aqui no Intendente, tive sempre fortes relações com as
pessoas que costumavam viver no bairro, de qualquer maneira é evidente que ao mudar
o bairro, mudam também as pessoas, porque as pessoas querem estar num sitio onde lhe
seja permitido fazer o que costumam fazer. Neste sentido, as ruas mais iluminadas
fizeram com que as pessoas que queriam estar num lugar ‘mais escuro’ tivessem que se
afastar daqui. As obras no espaço fizeram com que todo o ambiente se modificou e isto
também tem qualquer aspecto com a segurança.102
A opinião da senhora Rosa é retomada pela maioria dos sujeitos consultados: para quase
a totalidade destes a Mouraria não é um lugar inseguro, ou pelo menos já foi bem pior.
De qualquer maneira o tema da mudança do “ambiente” (social) ao mudar do espaço
público retorna periodicamente nos discursos dos moradores. Moin por exemplo afirma:
“O ambiente é mais lindo, estão a desaparecer os jogadores de cartas e a droga em muitos
99
Uma das anotações tomadas nos dados de campo foi referida à observação de uma sempre maior presença de jovens
de origem bengali na requelificada praça de Martim Moniz. Estes costumam passar longas horas da tarde jogando a
cricket ou brincando com as instalações de água recentemente construídas. 100
Extrato dà entrevista a Moin. 27 de Maio 2012 101
Extrato dà entrevista a Antonio Gomes. 28 de Maio 2012 102
Extrato dà entrevista a Rosa. 2 de Junio 2012
95
lugares. Sinto-me mais seguro porque eu chego tarde a noite do trabalho e algumas vezes
encontrava bêbedos que te pediam qualquer coisa e agora não os estou a ver”.103
Quanto a novas práticas de gestão e organização do espaço, no final das obras
consultaram-se alguns residentes sobre a eventual aparição de regulamentações de ordem
cívica ou comportamental. A Isabel, moradora da Freguesia de Socorro afirma: “Agora
tem regras para o lixo; tem que se por o lixo fora só depois da sete horas da tarde e cada
dia tem que se por o lixo certo, depois eles vão fazer a diferenciação. Antes cada um
punha o lixo a qualquer hora e era um bocado uma confusão”. A uma seguinte pergunta
ela responde: “Por enquanto ninguém controla isto, mas as pessoas estão-se a portar
melhor, pois eu acho que se um lugar é limpo e arrumadinho as pessoas até gostam de
mantê-lo assim; de outra forma antes, que estava tudo sujo e desarrumado, as pessoas não
cuidavam dele”.104
No que se refere a esta última afirmação, algumas situações
observadas na pesquisa de campo confirmaram esta concepção, tendo observado mais de
uma vez moradores ou negociantes a limpar o espaço em frente da própria loja ou
habitação, de qualquer tipo de sujidade presente na rua recentemente renovada.
6.2 A mudança do contexto social
Nas entrevistas com os moradores e a população do bairro pretendeu-se também
investigar eventuais fenómenos de mudanças relativos ao tecido socioeconómico do
território envolvido na reforma.
Começou-se a investigar se dentro do bairro apareceram novos moradores,
frequentadores habituais ou se algum privado tinha comprado novos ou velhos
alojamentos. A resposta de todos os entrevistados foi similar neste sentido. Nas diferentes
zonas do território envolvidas nas obras, apareceram novos compradores que invistiram
em prédios recentemente reestruturados. O António não tinha dúvidas: “Compraram sim
senhor! Até aqui em frente já se vendeu um: esteve vinte anos para se vender e há uma
semana vendeu-se!”.105
Outros confirmaram a chegada de novos vizinhos. Ana Rita,
moradora do Largo do Trigueiros confirma: “Já se vieram novos vizinhos, é gente de
fora: franceses etc… Alguns deles também compraram espaços para fazer aqui
comércio…”.106
Quanto à pergunta sobre se algum deles sabia se tinha aumentado a
103
Extrato dà entrevista a Moin. 27 de Maio 2012 104
Extrato dà entrevista a Isabel Silva. 15 de Maio 2012 105
Extrato dà entrevista a Antonio Gomes. 28 de Maio 2012
106
Extrato dà entrevista a Ana Rita Botelho. 3 de Maio 2012
96
renda dos imóveis na zona, o mesmo António voltou a referir: “Sim , as rendas é possível
que tenham subido não é! Porque aproveitam a influencia do bairro para tentar
aumentar”.107
De qualquer maneira nenhum morador entrevistado viu aumentar a renda
da sua casa, nem referiu saber se alguém dos actuais vizinhos da zona se foi embora nos
últimos tempos. No entanto a Rosa refere como na zona do Intendente se verificou um
exponencial aumento de frequentadores e residentes: “Já sei que muitas pessoas vieram a
morar para aqui. Vê o caso do Intendente, no passado no largo estavam a morar uma
vintena de pessoas, não mais, agora só com aquele novo prédio chegaram a viver mais do
sessenta - cem pessoas108
: e tu podes imaginar os impactos que têm mais cem pessoas no
bairro!”.109
Tentou-se num segundo momento averiguar se as obras de reabilitação trouxeram
mais turistas dentro do território envolvido. As respostas de todos os entrevistados, (em
particular, por este assunto, comerciantes), foi que sim, começaram aparecer mais
turistas! Shiblee, negociante de tecidos na Rua de Bemformoso comentou: “Agora há
mais pessoas a passar por aqui, eu gosto porque é diferente, há mais variedade”.110
Como
ele responderam assim todos os inqueridos entrevistados nas diferentes zonas do bairro
desde São Cristóvão até o Intendente. O Zé Maria, proprietário de um restaurante na zona
da Severa afirma: “Agora sente-se melhor as coisas, porque outras pessoas já começam a
visitar este bairro. Pessoas de vários pontos, até mesmo da cidade e também mais turistas
que tem curiosidade para conhecer este bairro.”111
Outro aspecto investigado foi tentar perceber a existência de algumas conexões
entre o aparecimento dos turistas e a de eventuais serviços públicos implementados no
território. A este respeito questionou-se a população sobre a aparição de uma obra publica
de limpeza, e foi confirmada a presença e a regularidade dos homens do lixo que
ajudavam a gerir, mais do que uma vez, a ordem e as condições higiénicas do bairro.
Com o mesmo propósito investigou-se nos últimos tempos se os indivíduos tinham
observado uma maior presença policial na zona em que viviam. As respostas a este
107
Extrato dà entrevista a Antonio Gomes. 28 de Maio 2012
108
A entrevistada refere-se ao novo prédio posto em função pela Câmara Municipal e denominado LARGO. Tal prédio
vem posto a disposição para artistas e estudantes que trabalham sobre a Mouraria/Intendente, aos quais vem dada a
possibilidade de alugar quartos e residir no edifício que se situa em frente da praça recentemente renovada. Além deste
prédio a Câmara Municipal criou no Largo do Intendente uma residência para estudantes Erasmus e estrangeiros que
estudam em Lisboa. 109
Extrato dà entrevista a Rosa. 2 de Junio 2012 110
Extrato dà entrevista a Sheblee. 3 de Junio 2012 111
Extrato dà entrevista a Zé Maria. 13 de Maio 2012
97
inquérito foram discordantes, enquanto na maioria dos casos as respostas foram
negativas; deve-se excluir destas os residentes de Rua de Bemformoso que notaram uma
maior presença policial, a causa também das frequentes operações acontecidas nos
últimos tempos, que trouxeram à detenção de algumas pessoas declarada como imigrada
irregularmente.
No entanto este tipo de processos poder-se-íam revelar evidentes só ao tomar em
consideração uma unidade de tempo maior respeito àquela considerada nesta pesquisa.
6.3 A Mouraria entre Fado e “multiculturalidade”: algumas definições endógenas
Na obra de reforma sócio - urbanística do bairro da Mouraria, assumiu um aspecto
importante a valorização de uma imagem caracterízada do lugar. Detrás desta está uma
identificação de valores e símbolos, que remetem às questões sobre o património e
servem para a construção de uma imagem do bairro límpida e coerente para o
acolhimento de um publico exógeno. Esta atribuição de valores sócio – culturais, não se
conforma às objectivas matrizes históricas ou as efectivas condições sociais ligadas ao
território, mas é utilizada de maneira deterministica para delimitar novas fronteiras e
construir uma nova entidade espacial e representacional da cidade. A este propósito
tentou-se desenvolver com indivíduos de diferentes extractos sócio – culturais, nas
diferentes partes do território implicado nesta reforma, uma discussão sobre qual seria,
partindo de um próprio ponto de vista pessoal, (ligado a factores experienciais e
emotivos), a própria definição de Mouraria. Em particular foram feitas a seguintes
perguntas: “O que lhe faz pensar o nome Mouraria? Você mora na Mouraria? Para
identificar o bairro onde mora como o descreveria? O que é que caracteriza o barro onde
mora?”.
A maioria dos entrevistados aos quais se puseram estas perguntas deram respostas
que, cada uma na sua particularidade, remetiam para uma mesma visão de fundo. Os
entrevistados saíram da análise do nome Mouraria para explicar o contexto histórico e
social que originou e definiu esta parte da cidade. Muitos revelaram conhecer a história e
as especificidades que caracterizaram a vida deste bairro. Muito embora, à pergunta,
“Você mora na Mouraria?”, os indivíduos especificaram diferentes classificações sócio –
espaciais do território onde viviam. Os moradores de São Cristóvão reivindicaram a
pertença à própria freguesia, os de Rua de Benformoso à mesma rua, enquanto só aqueles
que moravam nos arredores do berço antigo do bairro se qualificavam como residentes na
98
Mouraria. No entanto a descrição que estes faziam do próprio bairro e as caracterizações
que lhe conferiam, assumiam contornos extremamente subjectivos que iam além de
qualquer visão espacialmnte definida.
Respostas diferentes foram obtidas nas perguntas que tentavam codificar as ideias
dos moradores relativas a morar num território que se identificava por ser lugar de Fado e
“multicultural”. Aqui todas as pessoas entrevistadas demonstraram identificar-se
fortemente detrás destas duas realidades. Em particular, no caso do Fado, todos os
indivíduos, sem excepção de zonas habitacionais ou grupos étnicos, qualificaram o lugar
onde moravam como lugar de tradição fadista. A Maria, moradora cabo-verdiana da
Freguesia de São Cristóvão afirmou: “Este lugar é ligado ao Fado! Pois na Mouraria é
que nasceram os maiores fadistas como a Severa ou Fernando Maurício...!”.112
O Sr.
Carvalho, guardião do edifício da associação Os amigos do Minho, situado na Rua de
Bemformoso ao número 144, também declarou: “...Claro que este lugar é ligado ao Fado,
porque é ligado à Mouraria! Antigamente muitas pessoas que frequentavam o Fado na
Mouraria, navegantes e qualquer tipo de pessoas…, depois vinham para aqui a passar o
tempo, a fazer os seus negócios”.113
Aparece evidente como a questão do Fado remete
para algumas reclassificações de pertença e identidade ligadas ao território. Quando se
fala de Mouraria, os entrevistados identificam um pequeno conjunto urbano situado num
delimitado espaço marcado por antigas especificidades de origem histórica. Mas quando
se fala de Fado, a Mouraria torna-se, nas concepções expressas pelos vizinhos, como uma
entidade mais ampla e evolvente, dificilmente determinável sócio - espacialmente, e
completamente irredutível aos factos e às caracterizações históricas.
Um outro tema que viu os diferentes inquiridos responder sem hesitações de uma
mesma forma, foi aquele relativo à pergunta: “Achas que vives num bairro
multicultural?”. Todos os entrevistados, sem excepções relativas a zonas habitacionais ou
grupos sociais, acharam o bairro onde viviam um bairro “multicultural”, ou seja um
bairro onde existiam diferentes culturas, cada uma das quais levava para afrente as
próprias especificações, não sem, às vezes, problemas de convivência. Aqui também a
ideia de “território multicultural” parece ser entendida e assumida pelos moradores e as
pessoas que vivem quotidianamente o bairro, tanto no seu significado conceitual, como
na sua definição espacial.
112
Extrato dà entrevista a Maria do Livramento. 23 de Março 2012 113
Extrato dà entrevista ao Sr. Carvalho. 24 de Março de 2012
99
6.4 A abertura nos discursos dos moradores
Enquanto se estavam a delinear os objectivos da reforma, e as ideias e as
concepções que guiavam as instituições e as associações que os promoviam, as conversas
com os informadores tentavam decifrar como, e se, estes estavam a atingir, condicionar
ou modificar a quotidianidade das pessoas do bairro. Em particular, tendo analisado o
conceito de abertura, tentou-se perceber se isto se podia repropor em forma endógena
nos discursos e nos aspectos da vida quotidiana dos moradores. Algumas declarações,
neste sentido foram bastante esclarecedoras.
Por exemplo, a Rosa, da lavandaria de Rua de Bemformoso, um dia declarou:
Outro dia encontrei uma pessoa que fazia muitos anos que não via. É uma senhora que
agora já é maior e que conheci há muito tempo, quando acabei de chegar…. Fazia como
vinte anos que não a via, já pensei que tinha mudado de bairro, e outro dia a encontro
pouco mais ao fundo nesta mesma rua….. Já se começam ver algumas pessoas que por
muito tempo não saíram à rua porque talvez não se sentiam confortável e que não
estavam bem na zona onde moravam.114
A Rosa revelou-se um dos informadores mais “interessantes” e foi decisivo muitas vezes
poder colher o seu ponto de vista, e considerar as suas experiências. Um dia perguntei-lhe
se havia lugares recentemente renovados que não costumava frequentar mas onde agora
teria gostado de passar o seu tempo. Ela respondeu: “A zona da Mouraria [arrabalde
mouro] é um sítio onde eu não ia. Fui acho prà ai dez vezes em quarenta anos. Agora
apetece-me lá ir, por causa também que conheci uns amigos que moram lá, e gostarei
passear por aí!”115
No discurso da Rosa podem-se revelar alguns aspectos que
caracterizam a ideia de uma abertura. O facto de voltar a ver uma pessoa que durante
anos não saiu do seu apartamento, e que se pensou ter mudado de bairro mas que agora
reaparece na rua e recomeça a viver o espaço público; a nova vontade de se deslocar
dentro das áreas requalificadas, saindo dos percursos que delimitavam os espaços da
própria quotidianidade, para diversificar e ampliar espaços e acções da própria vida
social; e também o facto de ter feito novas amizades, são todas questões que remetem
para a ideia de uma abertura simultaneamente social e espacial na vida de uma pessoa.
114
Extrato dà entrevista a Rosa. 2 de Junio 2012 115
Ibidem
100
Outra discussão que fez pensar no conceito de abertura como concebido pelos
planos, foi quando a Maria afirmou: “Agora este bairro aparece mais aberto, mais
luminoso, e isto faz com que passem mais pessoas. E nos, não nos sentimos tão isolados,
tão angustiados para não ver pessoas. É bom ver pessoas passar num espaço aberto!”116
O
mesmo conceito foi retomado pelo Zé Maria: “Estamo-nos a sentir mais aproximados a
tantas pessoas, a mais gente, vindo mais gente de toda parte do mundo a visitar o nosso
bairro…. E eu gosto de vê-los tanto no bairro como aqui [a praça em frente da sua casa]
que é a minha casa.”117
Este tipo de concepções surgiram de uma análise feita com alguns
moradores sobre a presença de mais turistas e estrangeiros no bairro. Evidentemente a
abertura ao turismo foi um dos resultados mais imediatos da obra de reforma, e os
indivíduos interpelados sobre este tema foram na sua maioria negociantes, que facilmente
viam de maneira positiva esta nova situação. De qualquer maneira isto representa um
outro aspecto através do qual o conceito abertura, entendida como fim da obra de
reforma, se repropõe no contexto local e na vida da população que mora no bairro.
Para concluir este capítulo limitar-me-ei a afirmar a importância que tiveram para
este trabalho os discursos desenvolvidos pelos moradores, através dos quais se tentou
perceber como os objectivos do plano de reforma sócio - urbanística vinham a se
manifestar na intimidade da vida quotidiana das pessoas; de que maneira os conceitos
expressos pelos planos correspondiam às reais concepções que os moradores faziam
sobre o próprio bairro; e de que maneira tais objectivos coincidiam com as expectativas e
os desejos que os moradores esperavam para a melhoria das suas vidas quotidianas.
116
Extrato dà entrevista a Maria do Livramento. 7 de Maio 2012 117
Extrato dà entrevista a Zé Maria. 13 de Maio 2012
101
Conclusões
O presente trabalho analisou o complexo projecto de reforma sócio - urbanística
que está a envolver o bairro da Mouraria desde o outono 2011 até o verão 2012. Este
tenta criar uma nova imagem do bairro a partir de uma série de intervenções que tendem
a modificar o aspecto espacial, social e económico do território em questão. Isto
desenvolveu-se num processo que, de maneiras e em tempos diferentes, envolveu
instituições, associações e moradores. O trabalho foi desenvolvido em dois níveis
temporalmente sequenciais: um estudo sobre as fases de projecto dos dois planos que
constituem a obra de reforma; e uma pesquisa de terreno para avaliar as consequências de
tal reforma no contexto social local.
No primeiro nível identificaram-se os dois planos a ser implementados, um
promovido pelas instituições outro pelas associações que operam no território. Com este
objectivo procedeu-se ao estudo das estratégias e ao acompanhamento no campo das
fases de projecto a se desenvolver. Depois da análise e da discussão dos resultados
obtidos, à pergunta de partida: “Como as políticas urbanas agem sobre a mudança social
e as representações de um bairro?”, chegou-se à conclusão que no contexto da Mouraria
esta construção está a acontecer através de quatro estratégias fundamentais:
1. Uma primeira é uma redefinição territorial que amplia as fronteiras espaciais e
representacionais da Mouraria através da criação de percursos histórico e culturais que
unem geograficamente zonas e lugares diferentes na construção de novos sentidos na
perspectiva de um renovado desenvolvimento turístico do território.
2. Uma segunda ao nível de segurança, que intervém-se sobre o espaço público,
onde se pretende induzir novas práticas de gestão e apropriação, a partir de renovadas
estratégias de securitarias e de luta à exclusão social. A requalificação do espaço é
desenvolvida para uma maior acessibilidade, mobilidade e recursos no território, que
comportaria uma amplia e variada “afluência” de indivíduos sociais e diferentes tipos de
aproveitamento dos espaços e dos equipamentos disponíveis.
3. Uma terceira que age para uma “revitalização económica” do bairro. A
disponibilidade dada pelos novos recursos, a construção de novas representações e
imagens da cidade, favoreceria a aparição de novos estratos da população mais
economicamente disponíveis, e de actividades comerciais (incluso aquela imobiliária),
102
com um renovado interesse económico. Este processo mira a ser complementado com
uma política de apoio, crédito e formação para as actividades económicas já existentes na
zona e para os indivíduos residentes que queiram lá implementar o próprio comércio.
4. Por ultima, a tentativa de criar uma ideia de identidade endógena e exogenamente
definida. Retomam-se então os discursos identitários sobre o Fado, que representa um
forte carácter identitário por parte da população do território, e o discurso sobre a
multiculturalidade e a “convivência cultural” que inspira visões e imagens para um
público que vem de fora. A isso se juntam uma ampla variedade de projectos artísticos e
culturais que apontam, através do envolvimento da população, para a elaboração de temas
da tradição do lugar e da convivência social, na tentativa de criar uma renovada ideia de
identidade.
Apesar das expectativas, os planos de reforma não têm em conta as variáveis sociais
existentes no território nem as construções valorativas e simbólicas que definem um
bairro pelos indivíduos e os grupos sociais que lá moram. Esta “Nova Mouraria” é um
território recriado, que forja a sua imagem em discursos reinventados, sobre uma
profunda renovação do contexto social anterior.
Num segundo tempo tentou-se aprender qual era o nível de concordância entre as
acções dos planos e as reais necessidades expressas pelos habitantes do bairro. Esta
operação foi desenvolvida durante o período de implementação e finalização das obras,
que permitia aos moradores ter uma visão mais concreta das mudanças que estavam a
acontecer e referir eventuais alterações já ocorridas no contexto sócio - espacial.
Sobre os aspectos dos espaços publico os moradores evidenciaram um forte grau de
concordância com as obras implementadas. Todos elogiaram o tipo de requalificação e
admitiram uma sensação de conforto no viver e utilizar o espaço. Alguns hábitos pessoais
foram mudando, com algumas pessoas que começavam a utilizar ou aproveitar espaços
onde não costumavam estar. Com isso alguns moradores referiram a mudança de algumas
práticas de gestão do espaço público com uma maior atenção para higiene e a limpeza das
ruas, tanto nos serviços oferecidos como por parte da população. Ao mesmo tempo a
maioria dos sujeitos entrevistados referiu ter tido contacto com novos indivíduos sociais,
fossem residentes ou visitantes. No que se refere a este segundo grupo, a maioria dos
entrevistados vê com bons olhos esta nova condição, auspiciando uma melhoria da
própria condição económica, ou em geral uma melhoria para a imagem do bairro.
Muito interessante também se revelou o aspecto ligado à atribuição de valores que
os moradores conferiram ao território onde vivem. A imagem de um bairro ligado à
103
tradição fadista foi amplamente confirmada pelas diferentes pessoas com as quais se
desenvolveram entrevistas e que acompanharam o trabalho de campo. Todas estas
reconheciam um carácter peculiar do território ligado a um particular passado histórico e
a determinadas tradições culturais. Ao mesmo tempo, nas suas multiplicidades, os
moradores assumiam introspectivamente a ideia que o seu bairro fosse caracterizado na
contemporaneidade como um território onde tomavam lugar práticas e dinâmicas
“multiculturais”.
O estudo de campo permitiu revelar esta reforma desde o seu ponto de vista
conceptual, onde as acções, as estratégias e as práticas (espaciais, sociais e simbólicas),
vinham resumidas e inspiradas, pelo conceito de abertura. A abertura representa o motor
inspirador, o conceito guia, através do qual se desenvolve toda a obra de reforma; assim
como representa o fim último dos seus objectivos. Através deste conceito, chega-se a
compreender como cada tipo de intervenção feita no âmbito da cidade ou do bairro inclui
valores, imagens, construções conceptuais que inspiram a sua acção e codificam o seu
objectivo.
O conceito de abertura remete para concepção política e social de dar vida a um
processo de incorporação do bairro na cidade. Isto, embora assumido pelas diferentes
componentes sociais que tomaram parte nas fases do projecto, é considerado de maneira
diferente entre as entidades que desenvolvem a obra. As instituições consideram a
abertura como um processo de incorporação do bairro na cidade, através da entrada da
Mouraria nas rotas turísticas urbanas e o envolvimento de novos estrados da população
externos à realidade do bairro, desenvolvendo assim uma dinâmica “de-fora para-dentro”.
Ao contrário, a visão expressa pelas associações que tomam parte no projecto de reforma,
identifica um conceito de abertura como um processo de emancipação da população e de
fornecimento de novos equipamentos para a resolução das problemáticas dinâmicas
sociais que estigmatizam o bairro no contexto urbano, tentando desenvolver assim uma
dinâmica “de-dentro para-fora”.
Em tudo isto cabe a construção de uma renovada ideia do bairro, que parte das
antigas construções sócio espaciais e representativas da Mouraria como bairro segregado,
pobre e perigoso. Interessante foi constatar, ao longo do trabalho como esta concepção se
reificava também nos discursos e nas visões dos seus moradores.
Muito embora esta obra de reforma, que depois de um ano deixa só os fundamentos
para algumas futuras mudanças sóciourbanísticas do território, não deixa de afastar
104
dúvidas sobre os reais tipo de processos de mudanças que esta pode comportar num
difícil e articulado contexto social daquilo que é a Mouraria. Em particular referindo-nos
aos três eixos de actuação que inspiraram a reforma, cabe aqui perguntar-nos: poderá a
modifica do espaço público, limitar, contrastar, modificar práticas precedentemente
definidas como ilegais ou de exclusão social, que anteriormente se desenvolviam nas ruas
e nas praças do bairro? Que tipo de dinâmicas produzirá a entrada massiva no contexto
social do bairro, de novos indivíduos e grupos sociais, atraídos por novas possibilidades
de “exploração” e portadores de diferentes práticas de apropriação do espaço? Neste
sentido, como será gerida a implementação de novos equipamentos? Será garantida a
acessibilidade para os diferentes grupos sociais presentes no território? Estamos perante
de uma explícita tentativa de gentrificação? E, finalmente: será possível criar uma
identidade comunitária referida a esta nova entidade territorial? Tenter-se-á alcançar este
processo através de genéricas políticas multiculturalistas e à construção de artificiais
tradições e discursos identitários, ou tem-se um verdadeiro interesse em valorizar e
expressar as diferenças presentes nos diversos grupos socioculturais que povoam este
bairro?
Todas estas questões remetem para um futuro mais próximo no qual o bairro da
Mouraria inscreverá uma outra etapa da sua longa e particular história. Quanto aos
aspectos antropológicos, esta obra de reforma introduziu novos temas e questões de
análise sobre um bairro que sempre se revelou de particular interesse nas pesquisas
antropológicas. No âmbito da antropologia aplicada em particular, este estudo tentou
revelar como determinados tipos de políticas urbanas tentem implementar processos de
mudança socioeconómica de um território, como estas mudanças sejam aceites pela
população e que grado de impacto social, económico ou cultural estas comportem no
contexto considerado
Em conclusão; com esta obra de reforma, a Mouraria reafirma mais uma vez, a
importância que ela tem no cenário político e social do contexto urbano e renova, como
sempre fez no passado, a profunda ligação que une a sua história àquela da cidade de
Lisboa.
105
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http://www.soumovimentoearte.wordpress.com, Maio 2012
http://www.sou.pt, Maio 2012 http://todoscaminhadadeculturas.blogspot.pt, Setembro 2011
Notícias em jornais, boletins informativos, revistas
A voz
«Recomeçou a demolição dos predios no Largo Martim Moniz» 03.04.1948
«Para fazer da velha Mouraria um dos mais belos centros de Lisboa» 21.04.49
«No sítio da velha Mouraria das lendas e mouras encantadas vai surgir um grandioso
bairro integrado no estilo arquitectonico da futura cidade de Lisboa» 06.11.49
Correio da Manhã
«Chineses ‘roubam’ clientes aos feirantes ciganos» 20. 06.1999
«Miúdos aprendem a ser bairristas» 21.06.1999
«Centro Comercial arde na Mouraria» 25.05.2001
112
Publico
« Largo do Intendente tão diferente quanto arido faz festa para chamar os fregueses»
05.07.2012
« Martim Moniz vai ter rum restaurante e um mercado intercultural» 10-05.2012
«A dança vai fazer “companhia limitada” aos velhos que estão presos em casa»
10.04.2012
«Câmara de Lisboa quer limitar animação nocturna nos bairro historicos de Lisboa»
29.03.2012
«Associação Oninho contra prostíbulo camarario na Mouraria» 01.03.2012
«A cantar é como se espera a decisão do UNESCO no Museu do Fado» 26.11.2011
«Lisboetas decidiram dar um milhão para ajudar a Mouraria» 08.10.211
«Antonio Costa levou ministra ao Intendente para monstrar que a reabilitação já
começou» 01.10.2011
«A orquestra que é um mundo tem o som da nova Lisboa» 11.09.2011
«Obras no Largo do Intendente arrancam até o fim de Setembro» 07-09.2011
Rosa Maria, Jornal Trimestral da Mouraria
«O Fado nasceu na Mouraria» Junho-Agosto 2010
«A casa da Severa» Junho-Agosto 2010
«O lado aristocratico da Mouraria» Junho-Agosto 2010
«Mouraria uma filha da tolerância» Junho-Agosto 2010
«O Ramadão na Mouraria» Setembro-Novembro 2010
«A politica das grades» Setembro-Novembro 2010
«Do “Boy Formoso” à carne halal» Setembro-Novembro 2010
«Mouraria e Republica» Setembro-Novembro 2010
«Mouraria moderniza o seu labirinto» Junho-Agosto 2011
«Um manifesto em forma de edificio» Junho-Agosto 2011
«Fado renovado» Junho-Agosto 2011
«A casa accada por acaso» Junho-Agosto 2011
«O pequeno punjab» Junho-Agosto 2011
«A tradição serà feita no futuro» Dezembro-Março 2011-12
«O Pai Natal no Intendente» Dezembro-Março 2011-12
Referências cinematográficas
La comunidad (2000), dir. Alex de la Iglesia
La Zona (2007), dir. Rodrigo Plà
113
Anexo I
1. O mapa das intervenções delimita uma 2. Cada intervenção vem sinalizada com
zona mais vasta comparada com a que definiu os marcos das instituições e dos projectos que
Mouraria socio-espacialmente até hoje em dia. a promovem.
3. Um momento das intervenções 4. Um momento das intervenções
no Largo dos Trigueiros. na Rua do Capelão.
114
5. Obras de reabilitação no Largo do Intendente 6. Obras na Rua de Bemformoso, cenário do
futuro “Corredor Intercultural”.
7. Edificando a “Casa da Severa”, Largo da Severa. 8. O Largo da Rosa foi completamente re-
qualificado, com o fornecimento de novos
equipamentos e uma nova viabilidade.
9. Obras acabadas na Rua de São Cristovão,
para a altura dos Santos Populares.
115
10. Durante uma reunião do PDCM, com a 11. A sede da “Casa da Achada”, centro cultural
participação das associações e dos moradores. que participou como entidade parceira nas fases
de planeamento do QREN Mouraria e do PDCM.
12. Novas lojas aparecem ao longo do renovado 13. Novas ordens de desalojamento aparecem
percurso turístico, Rua São Cristovão. Nas portas de alguns prédios do bairro,Socorro.
14. Graffiti dedicado à tradição fadista da 15. O Fado ao centro do discurso identitario
Mouraria, São Cristovão. sobre o bairro.
116
16. Um grupo de mulheres chinesas prepara um 17. Uma multitude variada de pessoas assiste
espectaculo nos dias antes o Fim de Ano Chines. a um jogo de futbol na Praça Martim Moniz.
18. Descansando em Martim Moniz. 19. Uma familia indiana espera em frente
do Centro Comercial da Mouraria.
117
20. A senhora Maria do Livramento, 21. O senhor Antonio, gerente da tasca
proprietaria do Restaurante São “Os Amigos da Severa” na Rua do
Cristovão na Rua São Cristovão. Capelão.
22. Nuno Franco, representante da
“Associação Renovar a Mouraria”.
118
Anexo II
A) Mapa da Freguesia do Socorro: em amarelo são marcadas as fronteiras da freguesia;
a encarnado é indicado o territorio socio- espacialmente atribuido à Mouraria.
119
B) Mapa da Freguesia de Graça: em preto são indicadas as fronteiras da freguesia;
a encarnado é indicado o territorio considerado parte da Mouraria.
120
C) Mapa da Freguesia de Santa Justa: em amarelo são indicadas as fronteiras da freguesia;
a encarnado é indicado o territorio historicamente pertencente à Mouraria (Praça Martim Moniz,
Centro Comercial da Mouraria, Rua da Palma).
121
D) Mapa da Freguesia dos Anjos: a encarnado o territorio socio-espacialmente atribuido ao bairro
da Mouraria; em amarelo, a extensão maxima das intervenções de reabilitação.