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Relógio D’Água EditoresRua Sylvio Rebelo, n.º 15

1000 ‑282 Lisboatel.: 218 474 450fax: 218 470 775

[email protected]

Dept. Of Speculation, © 2014 by Jenny Offill

Título: Departamento de EspeculaçõesTítulo original: Dept. of Speculation (2014)

Autora: Jenny OffillTradução: José Miguel Silva

Revisão de texto: Ana FonsecaCapa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)

© Relógio D’Água Editores, julho de 2015

Esta tradução segue o novo Acordo Ortográfico.

Encomende os seus livros em:www.relogiodagua.pt

ISBN 978 ‑989 ‑641‑538‑9

Composição e paginação: Relógio D’Água EditoresImpressão: Europress, Lda.

Depósito Legal n.º 395386/15

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Jenny Offill

Departamento deEspeculações

Tradução deJosé Miguel Silva

Ficções

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Para o Dave

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«Os que especulam sobre o universo […] não passam de loucos.»

SócrateS

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Os antílopes têm uma visão dez vezes melhor do que a nossa, disseste­‑me.­Foi­no­início­ou­quase.­O­que­significa­que­numa­noite clara eles conseguem ver os anéis de Saturno.

Ainda passariam alguns meses até contarmos um ao outro todas as nossas histórias. E mesmo então, algumas pareciam demasiado­ insignificantes­ para­ que­ valesse­ a­ pena­ contá­‑las.­Então, porque me vêm agora à mente? Agora, quando estou tão farta disso tudo.

As­memórias­são­microscópicas.­ Ínfimas­partículas­que­es‑voaçam juntas e separadas. Edison chamava ‑lhes pessoazinhas. Entidades. Ele tinha uma teoria sobre o sítio de onde tinham vindo, e esse sítio era o espaço sideral.

Da primeira vez que viajei sozinha, entrei num restaurante e pedi um bife. Mas quando chegou, vi que era apenas um naco de carne crua cortada em pedaços. Tentei comê ‑lo, mas tinha demasiado sangue. A minha garganta recusou ‑se a engolir. Por fim,­cuspi­‑o­para­um­guardanapo.­Havia­ainda­muita­carne­no­prato. Tive medo que o empregado notasse que eu não estava a comer e se risse ou berrasse comigo. Fiquei muito tempo ali

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parada, a olhar para aquilo. Então peguei num pão, retirei ‑lhe o miolo e escondi a carne no interior. A minha carteira era muito pequena,­mas­penso­que­consegui­enfiar­o­pão­lá­dentro­sem­ser­vista. Paguei a conta e saí, receosa de que me mandassem parar, mas ninguém o fez.

Eu passava as tardes num jardim público, a fazer de conta que­lia­Horácio.­Ao­crepúsculo,­as­pessoas­jorravam­do­metro­para a rua. Em Paris, até as estações de metro têm de ser boni‑tas. Quem atravessa o mar, apenas muda o céu por cima da sua cabeça, não a sua alma.

Havia­um­rapaz­canadiano­que­só­comia­papas­de­aveia.­Um­rapaz­francês­que­pediu­para­me­examinar­os­dentes.­Um­rapaz­inglês­que­descendia­duma­linhagem­de­druidas.­Um­rapaz­ho‑landês que vendia aparelhos auditivos.

Conheci um australiano que me disse adorar viajar sozinho. Fa lou do seu emprego enquanto bebíamos em frente ao mar. Quando um aluno compreende de repente o que lhe estamos a explicar, e o seu rosto se ilumina, foda ‑se, é maravilhoso, dis se‑‑me­ele.­Eu­fiz­que­sim,­comovida,­embora­nunca­tenha­ensinado­absolutamente nada a ninguém. Dás aulas de quê?, perguntei ‑lhe. De patinagem, explicou ele.

Esse foi o verão em que choveu o tempo todo. Lembro ‑me do cheiro a cão molhado da minha camisola, e de sentir os sapatos completamente encharcados. E em todas as cidades a mesma cena.­Um­rapaz­a­sair­para­o­passeio­e­a­abrir­o­guarda­‑chuva­para abrigar uma rapariga no portal.

Outra noite. O meu velho apartamento em Brooklyn. Era tar‑de, mas eu, claro, não conseguia adormecer. Por cima de mim, janados das anfetaminas desmontavam alegremente qualquer

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Departamento de Especulações 13

coisa. Folhas contra a janela. Senti um súbito arrepio e puxei o cobertor para cima da cabeça. É o que se faz quando se quer retirar um cavalo dum edifício em chamas, lembrei ‑me. Se não puderem ver, não entram em pânico. Tentei perceber se estava mais calma com um cobertor sobre a cabeça. Não, não estava, concluí.

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Arranjei um trabalho como revisora de factos para uma revis‑ta­científica.­Factos­curiosos,­como­eles­lhes­chamavam.­Se as fibras nervosas do cérebro fossem estendidas, dariam quarenta vezes a volta à Terra. Que horror, escrevi na margem, mas eles incluíram ‑no à mesma.

Eu­gostava­do­meu­apartamento­porque­todas­as­janelas­fica‑vam ao nível do passeio. No verão, podia ver os sapatos das pessoas,­e­no­inverno,­neve.­Uma­vez,­estava­eu­deitada­na­ca‑ma quando um sol rubro e brilhante apareceu na janela. Balan‑çou dum lado para o outro, depois transformou ‑se numa bola.

A vida é igual a estrutura mais atividade.

Estudos sugerem que a leitura exige imenso do sistema neu‑rológico. Segundo uma revista de psiquiatria, as tribos africanas precisaram de mais horas de sono depois de aprenderem a ler. Os franceses acreditavam muito nesse tipo de teorias. Duran‑te a Segunda Guerra Mundial, as rações maiores eram para os soldados empregues em duros trabalhos físicos e para aqueles cujas tarefas implicavam ler e escrever.

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Durante anos, tive um post ‑it por cima da minha secretária. ABAIXO­O­AMOR,­VIVA­O­TRABALHO, dizia. Parecia uma for‑ma de felicidade mais robusta.

À porta duma livraria, num caixote, encontrei um livro intitu‑lado Prosperar em Vez de Sobreviver. Fiquei ali de pé, a folheá‑‑lo, pouco disposta a arriscar.

Você acredita que a angústia em que se encontra é perma‑nente, mas para a vasta maioria das pessoas essa angústia é um estado meramente temporário.

(Mas,­e­se­eu­for­especial?­E­se­eu­fizer­parte­da­minoria?)

Eu tinha ideias a respeito de mim mesma. A maioria delas por testar. Quando era criança, gostava de escrever o meu nome em letras gigantes, feitas com paus.

O que disse Coleridge: Se não me estou a iludir fortemente, penso que além de ter elucidado completamente as noções de es‑paço e tempo […], estou em vias de conseguir algo mais, nomea‑damente, desenvolver todos os cinco sentidos […] e através des‑te desenvolvimento resolver o processo da vida e da consciência.

O meu plano era nunca me casar. Em vez disso, ia ser um colosso da arte. As mulheres quase nunca se tornam colossos da arte porque os colossos da arte só se preocupam com a arte, nunca com coisas mundanas. Nabokov nem sequer fechava o seu próprio guarda ‑chuva. Era Vera quem lhe lambia os selos de correio.

Um­plano­audacioso,­foi­o­que­disse­o­meu­amigo­filósofo.­Mas no meu vigésimo nono aniversário entreguei o meu livro. Se não me estou a iludir fortemente…

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16 Jenny Offill

Fui a uma festa e bebi até vomitar.

Os animais sentem a solidão?Os animais, isto é, os outros animais.

Algum tempo depois, um ex ‑namorado apareceu ‑me à porta. Parecia ter vindo de São Francisco unicamente para tomar café. A caminho do restaurante, ele pediu desculpa por nunca me ter amado verdadeiramente. Tinha esperança de se redimir. «Espe‑ra lá», disse eu. «Estás nos Alcoólicos Anónimos?»

Nessa noite, na televisão, vi uma tatuagem e desejei que a minha­vida­justificasse­uma­frase­assim.­Se nunca conheceste o sofrimento, ama ‑me.­Um­assassino­russo­tinha­‑me­vencido.­

E eu, claro, pensei no rapaz alcoólico de Nova Orleães, aquele que mais amei. Todas as noites, no velho bar de marinheiros, eu descolava os rótulos das garrafas dele e tentava convencê ‑lo a vir para casa. Mas ele recusava. Só quando houvesse luz na janela.

Esse­era­tão­bonito­que­eu­costumava­ficar­a­vê­‑lo­dormir.­Se­eu tivesse de resumir o efeito que ele teve em mim, diria: fez com que eu cantarolasse todas as más canções que passavam na rádio. Quer quando me amava, quer quando não.

Nessas últimas semanas, íamos no carro sem trocar palavra, tentando deixar para trás o calor, cada um sozinho no sonho em que a cidade se tornara. Eu tinha receio de falar, ou mesmo de lhe tocar no braço. Lembra ‑te deste sinal de trânsito, desta ár‑vore, desta estrada velha. Lembra ‑te de que é possível sentir is‑to. No calendário só restavam vinte dias, depois quinze, depois dez, depois chegou o dia em que carreguei tudo no meu carro e parti. Atravessei dois estados, em lágrimas, o calor era como uma mão no meu peito. Mas não. Não me lembrei.