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Rodrigo Ferreira Rodrigues Dt 17,14-20: Os Deveres e Direitos do Rei Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao programa de Pós- graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia. Orientador: Prof. Leonardo Agostinho Fernandes Rio de Janeiro Agosto de 2013

 · Rodrigo Ferreira Rodrigues Dt 17,14-20: Os deveres e direitos do rei . Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Gra

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Rodrigo Ferreira Rodrigues

Dt 17,14-20: Os Deveres e Direitos do Rei

Dissertao de Mestrado

Dissertao apresentada ao programa de Ps-graduao em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Teologia.

Orientador: Prof. Leonardo Agostinho Fernandes

Rio de Janeiro Agosto de 2013

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Rodrigo Ferreira Rodrigues

Dt 17,14-20: Os deveres e direitos do rei

Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Teologia do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio. Aprovada pala Comisso Examinadora abaixo assinada.

Prof. Leonardo Agostini Fernandes Orientador

Departamento de Teologia-PUC-Rio

Prof. Ludovico Garmus Departamento de Teologia-PUC-Rio

Prof. Matthias Grenzer PUC/SP

Prof. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial de ps-Graduao e Pesquisa do

Centro de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio

Rio de Janeiro, 19 de Agosto de 2013

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Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do tralho sem a autorizao da Universidade, do autor e do orientador.

Rodrigo Ferreira Rodrigues

Graduou-se em Teologia no Centro Universitrio Adventista (UNASP) em 2009.

Ficha Catalogrfica

CDD: 200

Rodrigues, Rodrigo Ferreira

Dt 17,14-20: os deveres e direitos do rei / Rodrigo Ferreira Rodrigues ; orientador: Leonardo Agostini Fernandes. 2013. 154 f. ; 30 cm

Dissertao (mestrado)Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2013.

Inclui bibliografia

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Para minha me, Geralda, Para minha irm, Regina, pelo constante apoio. Para o Prof. Amin Rodor, cuja profundidade teolgica e excelncia acadmica so uma eterna fonte de inspirao. Para Mrcio Guilherme Mendes, um amigo na bonana, um irmo na adversidade.

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Agradecimentos

Ao meu orientador Professor Leonardo Agostini Fernandes pela inspirao, dedicao e pacincia.

PUC-Rio pela oportunidade concedida.

minha me e minha irm por sonharem os meus os sonhos.

Ao Frei Werlen e ao Padre Fbio Siqueira por toda a hospitalidade dispensada, sem a qual teria sido muito difcil a realizao deste trabalho.

Ao Professor Bernt Wolter pelos auxlios e incentivos.

Professora Maria de Lourdes cujos ensinamentos se refletiram em todo este trabalho.

Ao meu amigo Ezequiel por sempre dizer sim quando precisei.

Acima de todos agradeo a Deus, pois a fonte de todo o saber e a razo ltima de toda pesquisa.

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Resumo

Rodrigues, Rodrigo Ferreira; Fernandes, Leonardo Agostini. Dt 17,14-20: Os deveres e direitos do rei. Rio de Janeiro, 2013. 154p. Dissertao de Mestrado - Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

A presente dissertao analisa Dt 17,14-20, a lei do rei, considerando, de

forma especial, elementos diacrnicos examinados luz dos mtodos histrico-

crticos. Essa anlise prov a base para os tpicos abordados no comentrio. O

estudo constata que a lei do rei exibe certos contrastes e semelhanas em

relao Histria Deuteronomista, particularmente, os relatos sobre Salomo. A

lei do rei , contudo, peculiar em sua forma de avaliar e criticar a tradio.

Conclui-se tambm que os deveres e direitos tratados na lei do rei so

essencialmente utpicos, apesar de refletir um conhecimento da realidade

histrica da qual emergiram. Alm disso, constata-se que Dt 17,14-20 demonstra

muita similaridade em seus termos e temas com o restante do livro do

Deuteronmio e com a tradio bblica mais ampla, mas tambm, revela

descontinuidade temtica. Como base na inter-relao entre a lei do rei e outras

partes do Antigo Testamento, possvel notar que o livro do Deuteronmio nega

ao rei os elementos essenciais ao exerccio monrquico no Antigo Oriente

Prximo.

Palavras-chave

Tor; lei do rei; Pentateuco; Antigo Oriente Prximo; Histria

Deuteronomista.

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Abstract

Rodrigues, Rodrigo Ferreira; Fernandes, Leonardo Agostini (Advisor); Dt 17,14-20: The duties and rights of the king. Rio de Janeiro, 2013. 154p. MSc. Dissertation - Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

This dissertation examines Deuteronomy 17,14-20, the law of the king,

considering especially diachronic elements examined in the light of historical-

critical methods. This analysis provides the basis for the topics covered in the

commentary. The study notes that the law of the king shows some contrasts and

similarities between the Deuteronomistic History , particularly the accounts of

Solomon. The law of king however is peculiar in its way to evaluate and

criticize the tradition. It is concluded that the duties and rights dealt by the law of

king are essentially utopian, though it reflects an knowledge of the historical

reality of which it emerged. Furthermore, it is noted that Dt 17,14-20 shows much

similarity in their terms and themes with the rest of the book of Deuteronomy and

the broader biblical tradition, but also reveals thematic discontinuity. Based on the

interrelation between the law of king and other parts of the Old Testament, it is

possible to note that the book of Deuteronomy denies to the king the essential

elements to the monarchial exercise in the Ancient Near East.

Keywords

Torah; law of king; Pentateuch; Ancient Near East; Deuteronomistic

History.

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Sumrio

1. Introduo.....................................................................................................16

1.1. Roteiro e Mtodo...............................................................................

16

2. Questes Introdutrias.................................................................................19

2.1. Tema.................................................................................................19

2.1.1. Estado da questo.................................................................19

a) Autoria, data e composio.................................................19

b) Contexto histrico e contexto vital.......................................21

c) Textos relacionados. ...........................................................22

2.2. O livro do Deuteronmio...................................................................24

2.2.1. Autoria do livro do Deuteronmio...........................................24

a) Os crculos profticos.........................................................25

b) Os crculos levtico-sacerdotais...........................................27

c) Os crculos de sbios e escribas.........................................28

d) Os ancios...........................................................................30

e) O povo da terra.................................................................32

f) Concluses sobre autoria.....................................................34

2.2.2. A data do livro do Deuteronmio...........................................34

a) Origem pr-exlica e provenincia do Norte........................36

b) Origem pr-exlica e provenincia do Sul............................37

c) Origem exlica do livro do Deuteronmio............................39

d) Etapas redacionais do livro do Deuteronmio e a

sua concluso........................................................................

43

2.2.3. Unidade e estrutura do livro do Deuteronmio......................45

3. Dt 17,14-20: Texto e Crtica..........................................................................48

3.1. Traduo e crtica textual..................................................................48

a) Traduo de Dt 17,14-20..............................................................48

b) Elementos de crtica textual de Dt 17,14-20.................................49

3.2. Delimitao do texto e unidade.........................................................53

a) Delimitao..................................................................................53

b) Unidade do texto..........................................................................57

3.3. Elementos formais e estrutura de Dt 17,14-20..................................60

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a) Elementos formais........................................................................60

b) Estrutura.......................................................................................61

3.4. Aspectos redacionais.. .....................................................................63

a) A datao pr-exlica...................................................................65

b) Datao pr-exlica especificamente para Dt 17,18-19...............67

c) A datao exlica..........................................................................67

d) Conciliao entre a datao pr-exlica e exlica.........................68

e) A datao ps-exlica do v. 18b...................................................69

3.5. Contexto vital e gnero literrio de Dt 17,14-20................................70

a) Gnero literrio de Dt 17,14-20...................................................70

b) Contexto vital...............................................................................72

3.6. Temas e tradies em Dt 17,14-20...................................................74

4. Comentrio de Dt 17,14-20...........................................................................77

4.1. Os critrios para o estabelecimento do rei........................................77

4.1.2. O primeiro critrio: desejado pelo povo e escolhido

por YHWH....................................................................................

78

a) Desejado pelo povo.............................................................78

b) Escolhido por YHWH...........................................................79

c) A sucesso dinstica...........................................................80

4.1.3. O segundo critrio: no ser estrangeiro.................................81

a) Os candidatos bblicos a rei estrangeiro..............................81

b) A forma enftica da proibio.............................................83

c) Elucidao da proibio a partir de seu

momento histrico...............................................................

..84

4.2. Os deveres negativos do rei.............................................................86

4.2.1. Primeiro dever negativo: no multiplicar cavalos..................86

a) O ambiente histrico do dever de no multiplicar ..

cavalos.....................................................................................

86

b) Ampliao da proibio: no voltar ao Egito........................88

c) O contraste com o relato de Salomo na

Histria Deuteronomista......................................................

88

4.2.2. Segundo dever negativo: no Multiplicar mulheres

90

a) O ambiente histrico do dever de no multiplicar

mulheres..................................................................................

91

b) O contraste com o relato de Salomo na Histria

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Deuteronomista........................................................................92

4.2.3. Terceiro dever negativo: no multiplicar prata e ouro............94

a) As implicaes da proibio de no multiplicar prata e

ouro.........................................................................................

94

b) O contraste com o relato de Salomo na Histria

Histria Deuteronomista

95

c) As implicaes dos trs deveres negativos e seu

contraste com a Histria Deuteronomista...................

. 97

4.3. Os beneficirios dos deveres negativos do rei.................................. 97

a) O povo e os irmos como uma classe distinta do tu ...

deuteronmico.................

98

b) A classe indicada pelo tu como a real beneficiria dos

deveres negativos.............................................................................

100

c) Os trs deveres negativos na perspectiva da estratgia de

poder corporativo.............................................................................

102

4.4. O dever positivo do rei......................................................................103

a) A entronizao do rei...................................................................104 b) O sentido de Tor em Dt 17,18b.................................................105

c) O rei como copista da lei.............................................................107

d) A razo do estudo da Tor pelo rei.............................................108

4.5. O benefcio do rei..............................................................................109

a) A amplitude da obedincia ao mandamento................................109

b) A sucesso dinstica como nica recompensa do rei..................110

5. Dt 17,14-20: sua inter-relao terminolgica e temtica ad intra e ad

extra e o contraste com o AOP.........................................................................

113

5.1. Dt 17,14-20: a inter-relao terminolgica e temtica ad intra e

ad extra....................................................................................................

113

5.2. Os elementos essenciais ao exerccio monrquico no AOP e

no AT omitidos na lei do rei e no livro do Deuteronmio..............

132

a) Os elementos essenciais ao exerccio monrquico no AOP e

no AT.................................................

132

b) Os elementos essenciais ao exerccio monrquico omitidos

na lei do rei e no livro do Deuteronmio...........

................................

134

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6. Concluso.....................................................................................................137

6.1. Sntese da pesquisa..........................................................................137

6.1.1. Sntese e principais concluses do segundo captulo...........137

6.1.2. Sntese e principais concluses do terceiro captulo.............138

6.1.3. Sntese e principais concluses do quarto captulo...............140

6.1.4. Sntese e principais concluses do quinto captulo...............143

6.2. Perspectivas e questes em aberto..........................................

7. Referncias Bibliogrficas.............................................................................

147

149

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SIGLAS

1Cr 1Crnicas

1Rs 1Reis

1Sm 1Samuel

2Cr 2Crnicas

2Rs 2Reis

2Sm 2Samuel

AOP Antigo Oriente Prximo

AOTC Apolo Old Testamment Comentary

AT Antigo Testamento

AYBD Anchor Yale Bible Dictionary

BHQ Bblia Hebraica Quinta Editione

BS Bibliotheca Sacra

c./cc. captulo/captulos

CBQ The Catholic Biblical Quarterly

CLR Cardozo Law Review

DITAT Dicionrio Internacional de Teologia do Antigo Testamento

Dt Deuteronmio

Ex xodo

Ez Ezequiel

FJ Fundamentalist Journal

Gn Gnesis

HOTC Holman Old Testament Commentary

HPS Hebraic Political Studies

ICC International Critical Commentary

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IEJ Israel Exploration Journal

Is Isaias

ITC International Theological Commentary

JBL Journal of Biblical Literature

JBQ Jewish Bible Quarterly

JETS Journal for Evangelical Study of the Old Testament

JPS Jewish Publication Society

Jr Jeremias

Js Josu

JSOT Journal for the Study of the Old Testament

JSOTSup Journal for the Study of the Old Testament Supplement

Series

Jz Juizes

Lv Levtico

Ml Malaquias

Mq Miquias

NAC The New American Commentary

NCBC New Century Bible Comentary

Ne Neemias

Nm Nmeros

Os Oseias

OTL The Old Testament Library

p./pp. pgina/pginas

Pr Provrbios

SBT Studies in Biblical Theology

Sl Salmos

TDOT Theological Dictionary of the Old Testament

TM Texto Massortico

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v./vv. versculo/versculos

VT Vetus Testamentum

WBC Word Biblical Commentary

ZAW Zeitschrift fr die Alttestamentliche Wissenchaft

Zc Zacarias

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O esforo para aprender as grandes verdades da

revelao, comunica frescura e vigor a todas as

faculdades. Expande a mente, agua a percepo,

amadurece o juzo. O estudo da Bblia enobrece a

todo o pensamento, sentimento e aspirao, como

nenhum outro estudo pode fazer. D estabilidade de

propsitos, pacincia, coragem e fortaleza;

aperfeioa o carter e santifica a alma. O

esquadrinhar fervoroso e reverente das Escrituras,

pondo o esprito do estudante em contado direto com

a mente infinita, daria ao mundo homens de intelecto

mais ativo, bem como de princpios mais nobres, do

que os que j existiram como resultado do mais hbil

ensino que proporciona a filosofia humana. A

exposio das Tuas palavras d luz, diz o salmista;

d entendimento aos smplices (Sl 119,130).

Ellen G. White, O Grande Conflito

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1. Introduo

Dt 17,14-20 ser denominado nesta dissertao de lei do rei. Esta lei,

prescrevendo deveres e prometendo recompensa para o monarca, nica em todo o

AT com essa temtica. Isto, por si, j constitui uma motivao e justificativa para que

esse texto seja estudado em seus pormenores.

A lei do rei tem sido estudada levando-se em conta questes

diacrnicas; seu ambiente geogrfico, de modo particular, o AOP; bem como sua

relao com a Histria Deuteronomista e outros textos da tradio bblica. Em

estudos exegticos comum se destacar alguma dessas perspectivas ou se sobrepor

todas elas para se compreender os deveres e a recompensa do rei. O presente trabalho

buscar expor algumas das questes mais importantes dentre essas trs perspectivas.

Entretanto, no se pretende ser exaustivo em nenhum dos tpicos trazidos para a

presente discusso.

Buscar-se- evidenciar os elementos que fazem com que a lei do rei

seja singular em seu provvel ambiente histrico, bem como os ideais que a fazem

distinta e at idiossincrtica em comparao com a tradio bblica mais ampla. Alm

disso, pretende-se demonstrar que, alm de idealismo e questes teolgico-religiosas,

os deveres do rei revelam atrs de si interesses puramente humanos, mas tambm,

harmonizam-se com a proposta global do livro do Deuteronmio.

Somente a considerao de todos esses elementos que permite

perceber aquilo que se quis dizer quando se comps o texto de Dt 17,14-20.

precisamente a multiplicidade de elementos, reunidos para formarem um nico texto,

que faz com que esse mesmo texto, na medida em que for compreendido, tambm se

imponha ao leitor como autntica Palavra de Deus.

1.1. Mtodo e Roteiro

O estudo sobre Dt 17,14-20 inicia com o estado da questo, procurando

expor as questes que atualmente ainda so debatidas entre os exegetas.

apresentada tambm uma introduo ao livro do Deuteronmio, pois, isto se faz

necessrio para prover bases para os captulos seguintes. Entretanto, sero

consideradas apenas algumas das principais posies sobre autoria e data. Alm

disso, sero expostos alguns elementos que caracterizam a estrutura e unidade do

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livro. Ser feita, porm, uma abordagem sinttica desses tpicos, posto que uma

apresentao mais ampla, ou exaustiva, fugiria do objetivo e alcance desta pesquisa.

O terceiro captulo abordar a lei do rei da perspectiva dos passos dos

mtodos histrico-crticos. Aps tratar das questes crtico-textuais, sero

consideradas a delimitao e unidade do texto, elementos formais e a estrutura da lei

do rei, bem como os seus aspectos redacionais, o gnero literrio e o contexto vital.

Essa abordagem permitir melhor caracterizar a lei do rei e reconhecer

diversos aspectos que formam sua identidade. Essa etapa possibilitar tambm

lanar as bases que nortearo os tpicos a serem comentados, e fundamentar as

principais concluses e posicionamentos a serem tomados no decorrer da pesquisa.

O quarto captulo propor um comentrio aos principais tpicos da lei do

rei, levando em considerao as concluses diacrnicas, mas tambm explorando a

relao da lei do rei com outros textos da tradio bblica, particularmente, da

Histria Deuteronomista. Neste ponto, ser valorizado tambm o ambiente social do

qual emergem alguns itens da lei do rei, pois, isso ajuda a perceber melhor o

interesse meramente humano atrs da linguagem religiosa da lei do rei.

Utilizar-se-, ainda, a contribuio de estudos cientfico-sociais na

medida em que contribuem para aumentar a compreenso do mundo do qual

emergiu a lei do rei, bem como dos propsitos que motivaram sua composio.

O quinto captulo examinar alguns dos termos e temas que ocorrem na

lei do rei e que se relacionam de forma relevante com o restante do livro do

Deuteronmio, ou evidenciam algum link temtico-terminolgico tambm com a

tradio bblica mais ampla. O objetivo a ser compreender o propsito da lei do

rei luz de todo o livro do Deuteronmio. Buscar-se- tambm indicar possveis

contrastes e descontinuidades temticas, pois isto amplia a possibilidade de

compreender os propsitos da lei do rei e sua funo dentro da perspectiva

cannica.

Alm disso, sero ressaltados os elementos essenciais ao exerccio

monrquico no AOP e como a viso deuteronmica do monarca contrasta com esses

elementos. Buscar-se identificar at que ponto a lei do rei se conforma ou se

ope, aprovando ou discordando daquilo que era o padro no mundo antigo.

Ser relevante evidenciar se a forma como a lei do rei se posiciona em

relao aos elementos essenciais ao exerccio monrquico no AOP reflete a tradio

bblica mais ampla do AT, ou se esse posicionamento difere e contrasta com o

restante dessa tradio.

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O sexto captulo oferecer a sntese das principais ideias expostas no

decorrer do trabalho, bem como as principais concluses. Finalmente, sero

apresentadas as referncias bibliogrficas utilizadas para a presente dissertao.

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19

2.

Questes introdutrias

2.1.

Tema

2.1.1.

Estado da questo

A lei do rei (i.e. Dt 17,14-20) objeto de acalorados debates entre

exegetas sobre diversos pontos, como por exemplo, a respeito de sua origem,

camadas redacionais, intenso, qual seu background, etc. Estima-se que, depois da lei

da pscoa, no haja texto mais polmico que a lei do rei em todo o livro do

Deuteronmio1. No ser oferecida aqui uma abordagem exaustiva de todos os pontos

discutveis que fazem parte da histria da interpretao de Dt 17,14-20, mas sero

selecionados alguns dos principais pontos que ainda tm relevncia no estado atual da

questo2.

a) Autoria, data e composio

A autoria de Dt 17,14-20 depende diretamente de como tambm se define

a autoria para todo o livro do Deuteronmio. Ou seja, no se prope um autor para a

lei do rei e outro para o restante do livro. A questo da autoria do livro do

1 F. GARCIA LPEZ (Le Roi dIsral: Dt 17,14-20. In: N. Lohfink [ed.], Das Deuteronomium:

Entstehung, Gestalt und Botschaf. Leuven: Leuven University Press, 1985, pp. 277-297), oferece uma

histria da pesquisa, particularmente nas pp. 277-282. 2 O presente trabalho somente focar questes recentes, mas para anlise de leituras diversificadas e

antigas de Dt 17,14-20, em textos judaicos desde cerca de 200 a.C., at os primeiros sculos da era

crist, ver: S. D. FRAADE, The Torah of King (Deu 17,14-20) in the Temple Scroll and Early

Rabbinic Law. In: J. R. Davila [ed.], The Dead Sea Scrolls as Background to Postbiblical Judaism

and Early Christianity: Papers from an International Conference at St. Andrews in 2001 (STDJ) 46.

Leiden: Brill, 2003, pp. 25-60; D. C. FLATTO, Between Royal Absolutism and Independent Judiciary:

the evolution of separation of powers in biblical, Second Temple and rabbinic texts. Cambridge:

Harvard University, 2010, pp. 1-47.

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Deuteronmio ser tratada com maiores detalhes na introduo ao livro3, mas pode-se

adiantar que a lei do rei alvo de pelo menos cinco propostas para sua autoria: (1)

os crculos profticos; (2) os crculos levtico-sacerdotais; (3) os escribas e sbios; (4)

os ancios e (5) o povo da terra (am h re)4.

Quanto datao da lei do rei, mesmo atualmente, ainda existem

leituras acrticas que a datam numa era mosaica no segundo milnio a.C.5 Contudo,

para exegetas que se valem dos Mtodos Histrico-Crticos, a lei do rei diversas

vezes tomada como uma das bases para definir a datao do prprio livro do

Deuteronmio. Eles divergem entre uma datao totalmente pr-exlica6, ou a datao

somente exlica7. Mas o fato de o texto apresentar sinais de adies redacionais faz

com que a maior tendncia seja concluir pelo menos duas datas para Dt 17,14-20:

uma pr-exlica e outra exlica8. Tambm se opina que a concluso do texto s tenha

ocorrido no ps-exlio9.

H certo consenso de que o texto no homogneo. Entretanto, diverge-

se sobre quais as partes exatamente seriam o texto base e quais seriam as

subsequentes redaes. A postura mais moderada admite que pelo menos os vv. 18-

19 so uma adio posterior10

. Mas, h tambm a tendncia de tomar como texto base

apenas os vv. 16a., 17a. e 17c.11

. Entretanto, alguns propem uma leitura mais

unitria e renunciam toda diferenciao de camadas, optando por reconhecer o texto

como uma obra homognea12

.

3 Cf. pp. 22-32 a baixo.

4 Cf. T. RMER, The book of Deuteronomy. In: S. L. MCKENCZIE, M. P. GRAM [eds.], The

history of Israels tradition: the heritage of Martin Noth. (JSOTSup 182). Shefield: Shefield Academic

Press, 1994, p. 194. 5 Uma das obras mais recentes a tentar uma enrgica, mas frgil defesa dessa posio de S. H.

SANCHEZ (Royal Limitation as the Distinctive of Israel Monarchy. Dallas: Dallas Theological

Seminary, 2010, particularmente, pp. 91-127). 6 O maior defensor dessa ideia parece ser F. CRSEMANN (A Tor: Teologia e histria social da lei

do Antigo Testamento, Petrpolis: Vozes, 2001, pp. 328-332). Ele toma a lei do rei como uma das

bases para datar todo o livro do Deuteronmio no pr-exlio (cf. particularmente, pp. 292-298). 7 Cf. T. RMER, A Chamada Histria Deuteronomista, Petrpolis: Vozes, 2008, pp. 139-143; J.

PAKKALA The Date of the Oldest Edition. In: ZAW 121, (2009), pp. 392-393. O artigo de J.

Pakkala toma Dt 17,14-20 como o primeiro entre outros nove argumentos para datar a primeira edio

do livro do Deuteronmio apenas no exlio (cf. particularmente, pp 392-401). 8 Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, pp. 282-287; P. DUTCHER-WALSS, The Circumscriptions of

King: Deuteronomy 17,16-17 in its Ancient Social Context. In: JBL 121 (2002), pp. 601-616,

particularmente, pp. 601-603. 9 Cf. T. RMER, A Chamada, p.140, n. 70.

10 Cf. A. D. H. MAYES, Deuteronomy (NCBC). London: Marshal, Morgan & Scott Ltd, 1979, p. 273.

11 Cf. F. GARCIA LPEZ (Le Roi, pp. 282-287), seguido por P. DUTCHER-WALSS, (The

Circumscriptions, pp. 601-603). Ambos os artigos oferecem ampla bibliografia sobre a questo. 12

Cf. F. CRSEMANN, A Tor, p. 329, n. 153.

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21

b) Contexto histrico e contexto vital.

Existem tambm questes discutveis ao se tentar identificar o contexto

vital do qual emerge a lei do rei. Em primeiro lugar, deve-se definir se Dt 17,14-20

constitui uma lei ideal puramente terica, ou se se trata de uma legislao prtica. O

texto est fundamentado na experincia e em uma situao histrico-poltica

especfica, ou a-histrico e estritamente moral e religioso? Outro questionamento

sobre qual modelo de monarquia est pressuposto na lei do rei: uma monarquia

dinstica ou carismtica13

?

Quanto primeira questo, a resposta est diretamente ligada datao

do texto. Para aqueles que datam ao menos alguma parte da lei do rei no perodo de

formao do Deuteronmio Primitivo, ou de alguma forma relacionada com Ezequias

ou Josias, consequentemente Dt 17,14-20* reflete uma situao histrica concreta14

.

No entanto, principalmente quando a lei do rei situada no exlio, h quem prefira

v-la como uma produo idealista, ou um misto de projeto futuro com uma tardia

reflexo crtica sobre o passado15

. Nesse caso, Dt 17,14-20 no teria tido qualquer

aplicao prtica em algum momento histrico, quer seja no reino do Norte ou no

reino do Sul.

A segunda questo, se a lei do rei pressupe uma monarquia

dinstica ou carismtica, tem a ver com a origem geogrfica da percope. Para alguns,

por trs da lei do rei h uma ideologia carismtica proveniente do reino do Norte16

.

Por outro lado, a favor de uma pressuposio dinstica, defende-se que a lei do rei

mais facilmente entendida como parte do programa do reinado de Josias, projetado

em Jud17

. O carter dinstico mais especificamente visto no v. 20, onde se expe a

estabilidade do rei e a continuidade do reinado por meio de seu filho18

.

13

Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 279. 14

Dentre os partidrios dessa perspectiva esto F. CRSEMANN (A Tor, pp. 328-332); P.

DUTCHER-WALSS, The Circumscriptions of King, pp. 601-616; F. GARCIA LPEZ, Le Roi,

pp. 282-295; I. CAIRNS, Deuteronomy: word and presence (ITC). Grand Rapids: Eerdmans

Puplishing, 1992, pp. 17-18; P. D. MILLER, Deuteronomy. Louisville: John konx Press, 2012, pp.

147-149. Com exceo de F. Crsemann, os demais tendem a admitir que os vv. 18-19 so exlicos e

refletem mais um idealismo do que uma realidade histrica. 15

Cf. p. ex. J. PAKKALA, The date Oldest Edition, pp. 388-401, particularmente, pp. 392-394; G.

KNOPPERS, The Deuteronomist and the Deuteronomic Law of the king: a reexamination. In: ZAW

108 (1996), pp. 329-346; T. RMER, A chamada, pp. 83-84. 16

Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 279, n. 18. 17

Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 279, n.19. 18

Cf. R. D. NELSON, Deuteronomy (OTL). Louisville, London: John Knox Press, 2002, p. 225; P. D.

MILLER, Deuteronomy, p. 147.

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22

Entretanto, h tambm o que, talvez, possa ser chamada de posio

conciliadora. Nesse caso, a lei do rei no estaria ecoando um princpio carismtico

em oposio a um dinstico, ou vice versa, mas tratar-se-ia de um simples contraste

entre os reis que foram divinamente escolhidos e os reis que no o foram19

.

c) Textos relacionados

lugar comum o fato de exegetas apontarem uma ntima relao entre Dt

17,14-20 e a Histria Deuteronomista, mas de modo particular, a relao com 1Sm 8-

1220

.

No entanto, a questo sobre qual texto influenciou e qual foi influenciado

ainda no foi completamente resolvida. Quando se atribui lei do rei um carter

essencialmente negativo, entende-se que o texto de 1Sm 8-12 indica a opresso que o

rei poderia infligir sobre o povo. Nesse caso, a lei do rei estaria criticando tal

opresso praticada21

.

J foi notado, porm, que dependendo da forma como se define a relao

de ambas as passagens, pode-se incorrer em problemas metodolgicos. Comete-se, s

vezes, o equvoco de considerar 1Sm 8-12, e at outras pores da Histria

Deuteronomista que falam sobre Salomo, como tendo sido fontes para a composio

da lei do rei. Nesse caso, os autores/editores da lei do rei teriam escrito/editado

essa percope tendo em mente 1Sm 8-12 e outros textos da Histria Deuteronomista22

.

Ao mesmo tempo, porm, a lei do rei apontada como tendo sido escrita com o

objetivo de criticar os reis expostos na Histria Deuteronomista.

Diante disso, nota-se um problema cronolgico e de identificao das

fontes que subjazem a cada texto. Se a lei do rei criticou os relatos deuteronomistas

sobre Salomo e outros reis, ela no pode, simultaneamente, ser tomada como fonte

desses mesmos relatos. A falha em definir claramente essa relao leva alguns

exegetas a incorrerem em um raciocnio circular23

.

19

Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 280. 20

Uma comparao detalhada entre os dois textos feita por S. JUNG, The Judicial System in Ancient

Israel: A syncronic and diacronic reading of Exodus 18:1-27, Deuteronomy 16:18-17:20, and 2

Chronicles 19:1-11. Claremont: Faculty of Claremont Graduate University, 2001, pp. 183-201. 21

Cf. G. N. KNOPPERS, The Deuteronomist and the Deuteronomic Law, p. 332. 22

D. L. Christensen (Deuteronomy [WBC]). Nashville: Tomas Nelson, 2001, p. 384), por exemplo,

reconhece essa possibilidade, mas prefere optar pelo inverso, ou seja, os relatos sobre Salomo na

Histria Deuteronomista que foram escritos tendo em mente a lei do rei. 23

Cf. G. N. KNOPPERS, The Deuteronomist and the Deuteronomic Law, p. 334. A lgica simples

exige concluir que, se a lei do rei realmente critica os relatos deuteronomistas sobre Salomo,

necessariamente ela posterior a esses relatos. Em contra partida, se a lei do rei foi usada como

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23

Em se tratando especificamente de 1Sm 8-12, h quem prefira dizer que

existe sim uma relao, mas no uma dependncia ou uma ligao recproca com

Dt17,14-2024

. Com relao Histria Deuteronomista de forma mais ampla, por

exemplo, 1Rs 1-11, tratando sobre Salomo, argumenta-se que a lei do rei no

critica, ao invs disso, tem uma proposta essencialmente positiva, como se nota em

Dt 17,2025

. Nesse caso, ao se falar em mera similaridade, sem admitir qualquer

dependncia literria, torna-se mais fcil resolver o problema cronolgico e evitar o

raciocnio circular.

Outros textos que, presumivelmente, esto relacionados com a lei do rei

so Os 7,3-7; 8,4; 10,7; Is 2,7-9 e Mq 5,9-14. Ao passo que h quem destaque as

similaridades26

, a tendncia dos especialistas a de evitar fazer com que as

semelhanas signifiquem dependncia literria entre tais passagens27

.

Esses pontos, brevemente expostos aqui, so questes sobre as quais os

exegetas ainda no chegaram a pleno consenso. Entretanto, ser necessrio, quando

possvel, fazer um posicionamento diante das diversas propostas e dar a devida

justificativa para cada escolha feita. Mas antes de tratar diretamente da lei do rei,

faz-se necessria uma breve introduo ao livro do Deuteronmio e, com base nisso,

apontar diretrizes para a abordagem metodolgica de Dt 17,14-20.

fonte para os relatos de Salomo, ela , necessariamente, anterior a esses relatos. Sendo anterior, a lei

do rei pode at ser considerada fonte para os relatos salomnicos, mas no pode estar ao mesmo

tempo criticando esses relatos que vieram existncia depois de ela ter sido escrita! Em contra partida,

se a lei do rei est realmente criticando os relatos salomnicos da Histria Deuteronomista, ela

precisa ser considerada, obrigatoriamente, posterior a esses relatos e, neste caso, impossvel que ela

tenha servido de fonte para os mesmos relatos que criticou. Conclui-se, portanto, que considerar a lei

do rei simultaneamente como fonte e crtica dos relatos salomnicos da Histria Deuteronomista

um raciocnio circular e ilgico. 24

Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 280, n. 25. 25

Cf. G. N. KNOPPERS The Deuteronomist and the Deuteronomic Law, pp. 334-337. A relao da

lei do rei com a Histria Deuteronomista ainda mais complexa, porm, fundamental para a

compreenso de qual e qual no o propsito de Dt 17,14-20. Por isso, esse tpico ser

retomado no captulo seguinte, especificamente no comentrio sobre os deveres negativos da lei do

rei (i.e., Dt 17,16-17). 26

Cf. A. D. H. MAYES, Deuteronomy, pp. 270-273. 27

Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 281. O mesmo cuidado no tomado por L. D. Christensen

(Deuteronomy, 384-385) ao relacionar os deveres negativos de Dt 17,16-17 com 1Rs 1-11.

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24

2.2.

O Livro do Deuteronmio

O livro do Deuteronmio o oitavo livro mais longo da Bblia. No TM,

ele conta com 34 captulos, 959 versculos e cerca de 28.461 palavras. Estima-se que

seja citado ou aludido pelo menos 208 vezes em 21 livros do Novo Testamento28

.

O nome Deuteronmio resultado da forma como a LXX e a Vulgata

traduziram Dt 17,1829

. O livro do Deuteronmio apresentado como sendo um

discurso de adeus de Moiss, do outro lado do Jordo, no limiar da terra prometida

(cf. Dt 1,1; 9,1)30

. Trata-se do ltimo dia da vida de Moiss (cf. Dt 32,50; 34,5.7) e

o primeiro dia do dcimo primeiro ms do quadragsimo ano aps a sada do Egito

(cf. Dt 1,3; 32,48).

Ainda que o livro do Deuteronmio seja alvo de grandes estudos

acadmicos, com consequncia para todo o Pentateuco, a pesquisa atual sobre o

Deuteronmio revela que no h consenso, entre os seus peritos, sequer quanto aos

pontos bsicos, como sua origem, formao e composio31

.

2.2.1.

Autoria do livro do Deuteronmio

Para a tradio judaica, bem como para a tradio crist, Moiss era de fato o

autor do livro do Deuteronmio e do Pentateuco como um todo. Essa concepo

predominou at o sculo XVIII d.C., perodo que pode ser chamado de pr-

crtico32

. Tal suposio foi superada pela linha principal da exegese, mas atualmente

h pelo menos cinco propostas para a autoria do livro do Deuteronmio: (1) os

crculos profticos; (2) os crculos levtico-sacerdotais; (3) os escribas e sbios; (4) os

ancios e (5) o povo da terra.

28

Cf. H. L. WILLMINGTON, Deuteronomy: A Book of Instruction. In: FJ, (1984), p. 58. 29

Cf. G. BRAULIK, O Livro do Deuteronmio. In: E. ZENGER et. alli [eds.], Introduo ao Antigo

Testamento. So Paulo: Loyola, 2003, p. 97. 30

Cf. F. GARCIA LPEZ, O Deuteronmio: uma lei pregada. So Paulo: Paulinas, 1992, p. 10. 31

P. KRAMER, Origem e Legislao do Deuteronmio: programa de uma sociedade sem

empobrecidos. So Paulo: Paulinas, 2006, p. 11. 32

Cf. A. PURY [org.], O Pentateuco em Questo: as origens e a composio dos cinco primeiros

livros da Bblia luz das pesquisas recentes. Petrpolis: Vozes, 1996, pp. 18-20.

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25

a) Os crculos profticos

A associao do livro do Deuteronmio com os crculos profticos

comea depois de a data de Deuteronmio ter sido vinculada reforma de Josias em

622/621 a.C. A anlise do vocabulrio, estilo literrio e contedo teolgico levou a

concluso de que tais elementos, na forma como se apresentam no livro do

Deuteronmio, eram desconhecidos antes da reforma josinica do sculo VII a.C.33

A aceitao desse perodo para a datao serviu como ponto de partida

para estabelecer quem teria sido responsvel pela formao do livro do

Deuteronmio. A metodologia usada para definir a autoria em geral baseia-se na

anlise de formas literrias e de contedo teolgico presentes em Deuteronmio34

.

Com base nessa metodologia, concluiu-se que era possvel reconhecer

quais os escritores foram ou no influenciados pelo livro do Deuteronmio, bem

como aqueles que tinham ntima relao com ele e, com isso, acenaram para uma

autoria comum. Concluiu-se que os profetas Oseias, Ams e o Proto-Isaias no

revelam ter recebido influncia do livro do Deuteronmio. Em contra partida, grande

parte de Jeremias, Ezequiel e o Dutero-Isaias teriam sido influenciados por ele35

.

Essa relao, alm de servir para se tentar determinar a data, foi utilizada para

aproximar o livro do Deuteronmio de certos crculos profticos quanto sua

autoria36

.

O livro do Deuteronmio teria sido uma tentativa, feita pelos membros

dos crculos profticos, em Jud, de contra atacar as tendncias sincretistas existentes

no sculo VII a.C. O suposto autor proftico teria buscado despertar a conscincia

nacional atravs de princpios profeticamente formulados. Esse autor tambm teria se

33

Cf. L. J. HOPE, The Origins of Deuteronomy. Evanston: Northwestern University, 1978, p. 8. 34

Cf. L. J. HOPE, The Origins, 3. 35

Cf. S. R. DRIVER, A Critical and Exegetical Commentary on Deuteronomy (ICC). Edinburgh: T. &

T. Clark, 1902, xlvi-xlvii. Na prtica, essa relao muito complexa, e no se pode concluir autoria

comum pela mera similaridade. Apenas como exemplo, aceita-se que h ntidas similaridades entre o

livro do Deuteronmio e partes do livro de Jeremias. W. L. Holiday (Elusive Deuteronomists,

Jeremiah, and Proto-Deuteronomy. In: CBQ, 66 (2004), pp. 55-77), porm, argumenta

convincentemente que tanto no livro de Jeremias se fez uso do livro do Deuteronmio, como tambm,

no livro do Deuteronmio se fez uso de Jeremias. Nesse caso, necessrio levar em considerao

camadas redacionais, cronologia e, ainda assim, a relao reciproca se limita a certas pores de cada

livro, no fornecendo dados suficientes para se definir a autoria de nenhum dos respectivos livros

como um todo. 36

Cf. S. R. Driver (Deuteronomy, xlvii): The prophetic teaching of Dt., the dominant theological

ideas, the point of view under which conduct is estimated, presuppose a relatively advanced stage of

theological reflection, as they also approximate to what is found in Jeremiah and Ezekiel. De acordo

com L. J. Hope (The Origins, 9), o comentrio de S. R. Driver deu o tom para as pesquisas posteriores

sobre a autoria do livro do Deuteronmio.

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26

valido de ideias profticas de Isaias e de Oseias37

. A presena e a atuao proftica

seriam claramente identificadas em textos como Dt 18,20-22. Esse texto estaria

pressupondo um momento em que os profetas (autnticos) viveram um conflito com

numerosas influncias de falsos profetas e, por isso, teria sido necessrio suprir Israel

com critrios para distingui-los38

.

Contudo, mesmo entre aqueles que defenderam a autoria do livro do

Deuteronmio em crculos profticos, surgiu divergncia a respeito de muitos

detalhes, como por exemplo, a definio de quais profetas influenciaram e quais

receberam alguma influncia do livro do Deuteronmio. Alm disso, defendeu-se o

surgimento do livro do Deuteronmio nos crculos profticos do reino do Norte, no

contexto da luta entre o Javismo e o Baalismo e, apenas posteriormente, o livro teria

sido trazido para o reino do Sul e sofrido adaptaes39

.

Entre as razes para essa concluso so apontadas semelhanas entre o

livro do Deuteronmio e o ensino de Oseias40

. Uma dessas semelhanas a atitude

negativa em relao ao rei (cf. p. ex. Os 7,37; 10,3-4), igualmente refletida na lei do

rei (cf. Dt 17,14-20). Alm disso, supe-se que o livro do Deuteronmio e o livro de

Oseias ecoam a mesma teologia da eleio41

.

Em suma, h duas maneiras principais de considerar o livro do

Deuteronmio como uma obra de autoria de crculos profticos. A primeira situar a

composio do livro do Deuteronmio por crculos profticos no reino do Sul ligados

reforma de Josias. Outra maneira situar o nascimento do livro do Deuteronmio

em crculos profticos no reino do Norte, e apenas posteriormente o livro teria sido

trazido para o reino do Sul e adaptado s preocupaes pertinentes poca de Josias.

Dentro de cada uma dessas duas perspectivas existem maiores ou menores

divergncias.

37

Cf. S. R. DRIVER, Deuteronomy, lii-liii. 38

S. R. Driver (Deuteronomy, xlviii) data esse conflito a partir do sculo VIII a.C. 39

Uma discusso sobre as diversas propostas e contrapropostas entre os autores que buscam definir

qual grupo proftico (sulista ou nortista) que est por de trs do livro do Deuteronmio oferecida por

L. J. Hope (The Origins, particularmente, pp. 1-42), que faz resenha de cada uma das principais obras

dos diversos autores at 1978. 40

Nas palavras de P. D. Miller (Deuteronomy, 7): Affinities between Deuteronomy and Hosea have

led some to suggest that the author of Deuteronomy was the spiritual heir of this great northern

prophet. 41

L. J. Hope (The Origins, 23-24) relembra que esta ideia remonta a A. ALT (Die Heimat des

Deuteronomiums, Kleine Ashriften, II. Mchen: C. H. Beck, 1959. pp. 250-275). Segundo L. J. Hope,

o autor que por fim tornou-se mais representativo e influente em defender a autoria proftica para o

livro do Deuteronmio foi E. W. NICHOLSON (Deuteronomy and Tradition. Philadelphia: Fortress,

1967). Uma lista de diversos outros pontos de contatos entre o livro do Deuteronmio e os crculos

profticos mencionada em P. D. MILLER (Deuteronomy, 7).

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27

b) Os crculos levtico-sacerdotais42

A associao do livro do Deuteronmio com os crculos levtico-

sacerdotais parte, primeiramente, da identificao do Sitz im leben do livro do

Deuteronmio com a celebrao cltica de renovao da aliana. Para isso, ressalta-se

que o livro do Deuteronmio possui semelhanas com o modelo de tratado de

vassalagem Hitita. A identificao no total entre ambos porque quando o modelo

de tratado, presumivelmente, foi transferido da esfera poltica para a religiosa, teria

ento sofrido adaptaes43

. Argumenta-se que ainda possvel encontrar claros

vestgios de que o padro de aliana foi seguido na composio do livro do

Deuteronmio (p. ex. Dt 26,16-19). Contudo, a forma final do livro aparece como

uma instruo para a laicidade44

.

Uma vez aceito esse ponto, basta identificar quem seria a pessoa ou

grupo mais provvel a estar por trs desse arranjo. Ou seja, Quem desenvolveu esta

prtica de pregar a qual, desde a primeira ltima sentena, deu a Deuteronmio essa

estampa distintiva?45

Neste ponto, duas razes so apresentadas a favor dos

sacerdotes-levitas.

A primeira razo extrada de Ne 8, onde os levitas instruram o povo,

dando a devida explicao para a lei que fora lida. assumido que o fato de os levitas

terem sido incumbidos dessa tarefa (i.e. explicar a lei) no sculo V a.C., torna

possvel que isso j fosse uma prtica levtica em sculos anteriores, quando o livro

do Deuteronmio tambm assumiu a forma de instruo homiltica46

. Presume-se que

algumas partes do livro do Deuteronmio podem ser consideradas como uma coleo

de materiais para a proclamao pblica da lei47

.

Contudo, h ainda outra indicao de que ns devemos buscar pelos

pregadores deuteronmicos nos crculos levticos e sacerdotais. De acordo com a lei

42

L. J. Hope (The Origins, pp. 43-46) cita brevemente nove autores como sendo partidrios da

concluso de que Deuteronmio fruto de atividade levtico-sacerdotal, mas constata que o principal

expositor dessa ideia foi G. Von Rad. 43

Cf. G. VON RAD, Deuteronomy (OTL). Philadelphia: Westminster Press, 1966, p. 21. 44

Nas palavras de G. Von Rad (Deuteronomy, 23): If we now ask what Sitz im leben is demanded by

the pattern in accordance with Deuteronomy is arranged, it can have been taken only from a cultic

celebration, perhaps from a feast of renewal of the covenant. This conjecture is supported by the

insertion of a formal covenant-making (Deut. 26.16-19). Thus the classical pattern of a formal

covenant formulary appears in Deuteronomy in any case only in a mutilated form. Its setting in the

cultic, in which the form of Deuteronomy was originally rooted, has, in fact, been already abandoned

in the form of a homiletic instruction for the laity. 45

G. VON RAD, Deuteronomy, p. 23. 46

Cf. G.VON RAD, Deuteronomy, p. 24. 47

Cf. G.VON RAD, Studies in Deuteronomy (SBT). Lodon: SCM Press LTD, 1953, p. 15.

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28

da guerra (cf. Dt 20) um sacerdote deve fazer um discurso antes da batalha

comear48

. Todavia, o perfil (outline) do discurso posto na boca do sacerdote (cf. Dt

20,3-4) corresponde precisamente aos sermes de guerra que ocorrem em outros

lugares no livro do Deuteronmio (particularmente, Dt 7,16-26; 9,1-6; 31,3-8). Alm

disso, todo o livro do Deuteronmio marcado por um declarado esprito belicoso

que, permeia tanto a parte exortativa (cf. Dt 6-11), quanto a legal (cf. Dt 12-26)49

.

Com base nisso, a autoria levtico-sacerdotal estendida para todo o livro do

Deuteronmio.

Em adio a essas razes, entende-se que a atividade de ensino, a qual o

livro do Deuteronmio pressupe, tambm est presente em diversas passagens

associadas com sacerdotes e santurios50

. A autoria do livro do Deuteronmio ainda

associada aos levitas anteriormente no ligados ao culto, mas, no contexto do livro do

Deuteronmio, presumivelmente, eles esto ligados ao templo de Jerusalm. Isto

explicaria o suposto forte interesse do livro do Deuteronmio em levitas no

sacerdotes e levitas que pretendiam o status sacerdotal no santurio central51

.

Entretanto, a defesa de uma autoria atribuda aos crculos levtico-

sacerdotais recebeu pouca ateno e foi pouco seguida pela linha principal dos

exegetas que estudam o livro do Deuteronmio52

.

c) Os crculos de sbios e escribas

Outra maneira de tratar da autoria do livro do Deuteronmio atribui-lo

aos escribas e aos sbios ativos em Jud, antes e depois da reforma josinica. Devido

habilidade e a posio que ocupavam, esses personagens teriam se familiarizado

com ideias sapienciais e com caractersticas de tratados internacionais, que se

encontram no livro do Deuteronmio53

.

48

G.VON RAD, Deuteronomy, p. 24 49

Cf. G.VON RAD, Deuteronomy, p. 24. 50

Cf. p. ex. Dt 33,8; 31,9; 2Rs 17,27; Jr 18,8; Ez 7,26; 22,26; Os 4; Mq 3,11; Zc 3,4; Ml 2,7;

A. D. H. MAYES, Deuteronomy, 107. 51

Cf. A. D. H. MAYES, Deuteronomy, pp. 107-108, 274-275. G.Von Rad j apresentara esses

argumentos supra mencionados em sua obra Studies in Deuteronomy (cf. particularmente, pp. 11-24,

66-70); L. J. Hope (The origens, p. 46) lembra que em todas as principais obras sobre o estudo do livro

Deuteronmio, G. Von Rad sempre dedicou um espao para afirmar a autoria levtico-sacerdotal. 52

T. Rmer (The book of Deuteronomy, p. 194) identifica A. D. H. Mayes como um dos poucos que

seguem G. Von Rad no que diz respeito autoria do livro do Deuteronmio. 53

M. Weinfeld reconhecido como quem mais se dedicou em demonstrar que a autoria do livro do

Deuteronmio se deve aos escribas e sbios de Jud (cf. L. J. HOPE, The Origins, p. 90).

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29

A primeira razo para associar a origem do livro do Deuteronmio aos

crculos sapienciais-escribais est na semelhana entre textos sapienciais, como o

livro de Provrbios (cf. Pr 1-9), e certas passagens do livro do Deuteronmio (cf. Dt

6,4-9; 11,18-21)54

. Supe-se tambm que o humanismo presente no livro do

Deuteronmio deve ter recebido influncia da sabedoria do AOP55

. Alm disso, os

autores do livro do Deuteronmio conheciam os modelos e a terminologia de tratados

internacionais. Presume-se que esse conhecimento era reservado a homens de Estado

como os escribas reais56

.

Outras caractersticas do livro do Deuteronmio que se supem seriam

comuns com a literatura sapiencial so: (a) o forte tom didtico. O livro do

Deuteronmio teria sido escrito com um interesse pedaggico em mente. Isto se

evidenciaria no constante uso de vocabulrio como escutar, ouvir57

,

disciplina58

ensino59

; (b) o livro do Deuteronmio demonstra ser fundamental o

papel educacional do pai (cf. Dt 6,7; 11,19)60

; (c) a doutrina da recompensa tambm

faz um elo de ligao entre o livro do Deuteronmio e a sabedoria. A recompensa se

d atravs da boa vida, da vida longa e da vida prspera (cf. Dt 8,1.7-10; 28,1-

15). Uma diferena, porm, que enquanto na literatura sapiencial comum enfocar

o indivduo, no livro do Deuteronmio acontece um processo de nacionalizao da

recompensa61

.

54

Segundo L. J. Hope (The Origens, p. 78) o primeiro a tentar demonstrar as afinidades entre o livro

do Deuteronmio e a literatura de sabedoria israelita foi F. DELITZCH na obra The Proverbs of

Salomon (Edinburgh: Clark, 1874). 55

Cf. M. WEINFELD, Deuteronomy and the Deuteronomic School. Winona: Eisenbrauns, 1992, pp.

293-294. 56

M. Weinfeld conclui um de seus artigos (Traces of Treaty Formulae in Deuteronomic. In: Bblica

46 (1965), pp. 417-427) afirmando que the covenant in the book of Deuteronomy (as opposed to

the Priestly covenant) was drafted by scribes who were predominantly influenced by Assyrian treaty

formulae (p. 427). Mas, L. J. Hope (The Origins, p. 116) critica o fato de M. Weinfeld limitar a

familiaridade e o uso de frmulas e de terminologia de tratados aos sbios e aos escribas reais. Em suas

palavras: How then can their occurrence in the prophets and psalms be explained? 57

O termo em geral traduzido por ouvir ele ocorre dezenas de vezes por todo o livro do ,

Deuteronmio: Dt 1,16.17.34.43.45; 2,25; 3,26; 4,1.6.10.12.28.30.32.33.36; 5,1.23.24.25.26.27.28;

6,3.4; 7,12; 8,20; 9,1.2.19.23; 10,10; 11,13.27[2x].28[2x];12,28; 13,4.5.12.13.19; 15,5; 17,4.12.13;

18,14.15.16.19; 19,20; 20,3; 21,18.20.21; 23,6; 26,7.14.17; 27,9.10; 28,1.2.13.15.45.49.62; 29,3.18;

30,2.8. 10.12.13. 17.20; 31,12.13; 32,1; 33,7; 34,9. 58

Dentre as formas do livro do Deuteronmio expressar a ideia de disciplina est o termo cf. Dt)

11,2) e o piel de .In: NCB, p . ,[cf. Dt 8,5[2x]; 21,18; 22,18); cf. A. EVEN-SHOSHAN [ed)

475; P. R. GILCHRIST, .In: DITAT, pp. 632-633 . ,59

Dentre as principais formas do livro do Deuteronmio expressar a ideia de ensinar est o hifil de

(cf. Dt 17,10.1; 24,8; 33,10), e o piel de .cf. Dt 4,1.5.10.14; 5,31; 6,1; 11,19; 20,18; 31,19.22); cf)

J. E. HARTLEY, .In: DITAT, pp. 790-791 . ,In: DITAT, pp. 660-664; W. C. KAISER .60

Cf. M. WEINFIELD, Deuteronomy, 298-306. 61

Cf. M. WEINFELD, Deuteronomy, 307-319.

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30

Quando a recompensa por si s no alcana o objetivo, entende-se que o

livro do Deuteronmio responde a isso de maneira semelhante sabedoria. Primeiro,

aponta para o valor educacional do sofrimento (cf. Dt 28,15-68; 30,1-3). Segundo,

descreve a punio como um teste de virtude (cf. Dt 8,2-3). Por fim, tambm enfatiza

o princpio da retribuio individual (cf. Dt 29,19-20)62

.

H ainda alguns elementos que, conforme se acredita, distinguem o livro

do Deuteronmio das composies sacerdotais. Esses elementos revelariam uma

demitologizao e secularizao no livro do Deuteronmio. Dentre eles so

apontados: a permisso para o abate profano dos animais (cf. Dt 12,15-16); o fato de

que o primognito e o dzimo no so entregues ao santurio ou ao sacerdote, mas

pertencem ao proprietrio (cf. Dt 12,17-18); o ano sabtico e o repouso sabtico so

motivados por razes sociais (cf. Dt 5,12-15; 15,1-4); h um conceito mais abstrato

de Deus: a revelao se d atravs do ouvir e no do ver; tambm o templo o lugar

para a habitao do nome de Deus, porm, Deus mesmo habita no cu (cf. Dt 26,25).

Essas so algumas marcas dentre outras que so vistas como sendo marcas de

secularizao no livro do Deuteronmio63

.

Entre os candidatos composio do livro do Deuteronmio com todas as

caractersticas sapienciais, conceitos teolgicos secularizados, e ainda, com

conhecimento de tratados internacionais, os escribas e os sbios so apontados como

os nicos provveis, pois se entende que somente eles desfrutavam de habilidades

privilegiadas e posio adequada para essa tarefa, antes e tambm depois de Josias64

.

d) Os ancios

A quarta proposta para a autoria do livro do Deuteronmio defende que o

livro foi criao dos ancios de Israel durante o exlio. Os ancios teriam escrito o

livro do Deuteronmio para assegurar que Israel sobreviveria ao desterro. Tais

ancios teriam concludo que nem sacerdote, rei ou profeta, poderiam oferecer

qualquer esperana para o futuro65

.

62

Cf. M. WEINFELD, Deuteronomy, 316-319. 63

Cf. M. WEINFELD, On Demythologization and Secularization in Deuteronomy. In: IEJ 23

(1973), pp. 230-233. 64

Para resenhas e resumos detalhados de vrias obras de M. Weinfeld, bem como crticas das hipteses

apenas sintetizadas aqui, novamente cf. L. J. HOPE (The Origins, pp. 78-117 [resenhas]; pp. 212-255

[crticas]). 65

Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 5-6.

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31

So descartadas as concluses baseadas principalmente nas formas

literrias e em conceitos religiosos, como o fazem as hipteses a favor dos sbios e

escribas, dos profetas ou dos levitas-sacerdotes. Esses elementos so considerados

insuficientes. Argumenta-se que muito pouco sabido sobre o papel dos escribas,

profetas e levitas no ltimo perodo da monarquia66

. Em contrapartida, assume-se

que somente o prprio livro do Deuteronmio capaz de dizer quem foi responsvel

por sua composio67

.

Para negar as hipteses anteriores e afirmar a autoria dos ancios, o

principal pressuposto e ponto de partida que se profetas, levitas e sacerdotes ou

sbios e escribas tivessem produzido o livro do Deuteronmio, seria razovel esperar

que a imagem desses supostos autores fosse retratada de forma positiva no livro que

eles mesmos produziram. Conclui-se, porm, que a forma como esses grupos so

retratados no livro do Deuteronmio no favorece a autoria de nenhum deles. Por

exemplo, se a autoria do livro do Deuteronmio se devesse a algum grupo proftico,

por que os profetas tambm estariam sujeitos pena capital (cf. Dt 13,5)68

?

Acredita-se que a real identificao dos autores do livro do Deuteronmio

deve comear por reconhecer que ele retrata a si mesmo como a Tor autoritativa

escrita para Israel. Com base nisso, deve-se perguntar: quem, no livro do

Deuteronmio, retratado como envolvido com as tradies legais de Israel? Quem

descrito como guardio da tradio e do prprio documento escrito e entregue por

Moiss? A resposta que os ancios so assim descritos69

.

Presumivelmente, o Cdigo Deuteronmico mostra claramente que os

ancios, associados com os juzes e os oficiais, possuem poder legal, mas sua funo

ainda parece focar apenas na esfera local70

. Todavia, na moldura externa do Cdigo

Deuteronmico, os ancios assumem uma posio mais proeminente. Ou eles so

representantes do povo e, portanto, recipientes responsveis pela lei (Dt 5,23; 31,9.),

ou eles esto associados com Moiss e, como tais, participam at da prpria

proclamao da lei (Dt 27,1)71

!

Alm da anlise do papel dos ancios no livro do Deuteronmio,

considera-se tambm a figura do ancio na Histria Deuteronomista72

e em outros

66

Cf. L. J. HOPE, The Origins, p. 3. 67

Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 363-364. 68

Cf. L. J. HOPE, The Origins, p. 4. 69

Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 4-5, 257-315. 70

Cf. p. ex. Dt 19,12; 21,3.19; 22,15; 25,19. 71

Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 267-315. 72

Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 328-352.

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32

textos exlicos73

. A soma dos resultados dessas anlises considerada como

suficiente para definir a autoria do livro do Deuteronmio como obra dos ancios.

e) O povo da terra

A tese de que a autoria do livro do Deuteronmio se deve ao povo da

terra tem seu ponto de partida em breves informaes marginais encontradas nos

dois livros dos Reis. Acredita-se que tais informaes possuem suas fontes nos anais

oficiais da corte de Jerusalm e, portanto, so fontes histricas confiveis74

.

Com base nos dados dos livros dos Reis, sabe-se que depois da morte de

Manasss, Amon tornou-se rei. Em 2Rs 21,23 dito que os servos de Amon fizeram

uma conspirao e o mataram. J em 2Rs 23,24 relatado que o povo da terra

matou os conspiradores e proclamou Josias como rei. Nesse relato, e em outros

lugares (cf. 2Rs 11,14.18), o povo da terra judaico um grupo de homens livres,

talvez proprietrios de terras em Jud. Eles procuravam assegurar a continuidade da

famlia de Davi75

.

Este Josias que chega ao poder desta forma, contudo, uma criana de oito anos

de idade (2Rs 22,1). Isto quer dizer que, durante anos, todo o poder foi exercido

por este am h re judata, por meio dos seus representantes. Mais de trinta

anos depois, por ocasio da morte repentina de Josias, na batalha de Meguido, o

mesmo am h re judata detm o poderainda ou novamente. De acordo

com 2Rs 23,30, ele quem decide a sucesso, escolhendo Joacaz como rei. Este,

porm, no o filho mais velho de Josias e tampouco o herdeiro natural do

trono. Joaquim dois anos mais velho (cf. 2Rs 23,31 e 36) e preterido por

razes polticas...76

.

De acordo com tais informaes, conclui-se que o povo da terra era

formado de judatas, que tiveram em suas mos todo o controle poltico. Presume-se

que, quando uma criana (Josias) foi colocada no trono, o povo da terra governou

diretamente durante muito tempo. Os grupos tradicionais da corte perderam o poder

e, consequentemente, sua influncia poltica, e foram afastados (cf. 2Rs 21,24). O

[povo da terra] no tinha nenhuma fora poltica acima de si, e o estado estava

totalmente em suas mos. Mas numa situao como essa, era necessrio elaborar

73

Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 353-354. 74

Cf. F. CRSEMANN, A Tor, p. 300. 75

Cf. F. CRSEMANN, A Tor, p. 301. 76

F. CRSEMANN, A Tor, p. 299.

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33

um programa que estabelecesse o que estava em vigor e servia de padro de

conduta77

.

O livro do Deuteronmio teria ento nascido precisamente nesse

contexto, pelas mos do povo da terra, com o propsito e servir como padro de

conduta. A partir dessa presumida situao, pretende-se no apenas definir a autoria

do livro do Deuteronmio, como at prover explicao para algumas caractersticas

fundamentais do Cdigo Deuteronmico... com exatido, indo at as formulaes

individuais78

.

f) Concluses sobre autoria

reconhecida a dificuldade de definir com certeza a autoria do livro do

Deuteronmio. Aparentemente, o livro do Deuteronmio reflete o interesse de vrios

grupos. Ele tem inegvel semelhana com os demais livros da Histria

Deuteronomista, bem como ecos comuns com os livros de Ezequiel, Segundo Isaas,

Jeremias, Ageu, Zacarias, Malaquias e Daniel79

. Mas tambm, possvel reconhecer

nele traos de sabedoria ou indicaes que podem acenar para crculos levtico-

sacerdotais. Por fim, no se pode negar que os ancios realmente tm um papel

proeminente no livro do Deuteronmio, e no podem ser simplesmente rejeitados, ao

menos hipoteticamente, como candidatos autoria do livro. Mas ningum ousaria

dizer que todos esses grupos so coautores do livro do Deuteronmio.

Fica evidente, entretanto, que no to simples fechar a questo e se

posicionar a favor de um autor ou nico grupo de autores. O fato, porm, de se

identificar, por exemplo, contatos entre o livro do Deuteronmio e certos livros

profticos, pode significar simplesmente influncia proftica sobre os autores, mas

isso no prova que a autoria do livro do Deuteronmio se deva, irrefutavelmente, aos

crculos profticos. O mesmo poderia ser dito, por exemplo, dos traos sapienciais.

possvel que algum se expressasse usando conceitos sapienciais sem que

necessariamente fosse parte de crculos de sabedoria.

Contudo, sem fechar ou tentar definir a questo, admite-se aqui que os

ancios devem sim ter tido algum papel na composio do livro do Deuteronmio.

Isto parece razovel pelo fato de o livro do Deuteronmio retrat-los como co-

77

F.CRSEMANN, A Tor, p. 300. Grifos do autor. 78

F. CRSEMANN, A Tor, p. 300. 79

Cf. J. H. TIGAY, Deuteronomy (JSP Torah Commentary). Philadelphia: Jewish Publication Society,

1996, p. xxvi.

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proclamadores da lei juntamente com Moiss (cf. Dt 27,1)! Tambm o tribunal

central tinha autoridade para proclamar leis com a mesma consequncia e autoridade

mosaico-divina (cf. Dt 17,11)80

. Quer esse tribunal tenha existido historicamente,

quer seja mera idealizao literria, a meno de sacerdotes levitas e juzes

atuando nesse tribunal no poderia indicar que esses grupos de pessoas se sentiam

autorizados a formular leis e introduzi-las no livro do Deuteronmio, valendo-se da

suposta autoridade legada por Moiss81

? Para a presente pesquisa, porm, a questo

da autoria do livro do Deuteronmio como um todo deixada em aberto.

2.2.2.

A data do livro do Deuteronmio

Mesmo atualmente encontram-se comentrios82

, teses83

e artigos84

que

no abriram mo da leitura acrtica do livro do Deuteronmio (e nem do Pentateuco),

e optam por dat-lo na era mosaica (segundo milnio a.C.). Entretanto, desde o incio

do sculo XIX, na exegese histrico-crtica, prevaleceu a associao do livro do

Deuteronmio com a reforma josinica ocorrida em 622 a.C., relatada em 2Rs 22-

2385

. Tal concluso baseou-se na anlise do vocabulrio, estilo literrio e em

conceitos teolgicos do livro do Deuteronmio, principalmente a ideia da

centralizao86

.

80

Segundo J. H. Tigay, (Deuteronomy, p. xxvii), em tempos rabnicos a leitura de Dt 17,11

possibilitou que, no judasmo, os rabis no apenas interpretassem a Tor, mas criassem novas leis

quando necessrio. 81

F. Crsemann (A Tor, p. 145) considera esse tribunal central uma realidade histrica, mas atuante

apenas no pr-exlio. 82

E. H. Merril (Deuteronomy (NAC). Nashville: Broadman & Holman,1994, pp. 22-23) toma como

base para sua argumentao o texto de 1Rs 6,1, onde se afirma que Salomo comeou a edificar o

templo no ano 480 depois da sada do povo de Israel do Egito, coincidindo com o quarto ano do

reinado de Salomo. Segundo ele, that year being, according to the best chronological reconstruction,

967/966 B.C.. O xodo teria iniciado cerca de 1447/1446 e terminado em 1407/1406 a.C. Esta seria

ento a data da formao do livro do Deuteronmio; cf. ainda D. MCINTOSH, Deuteronomy (HOTC).

Nashville: Holman Reference, 2002, pp. 3-4; um pouco mais moderado, J. G. MCCONVILLE,

Deuteronomy (AOTC). Downers Grove: InterVasity, 2002, pp. 21-41. 83

Cf. p. ex. a tese doutoral de S. H. SANCHEZ (Royal Limitation, 2010). 84

Cf. D. I. BLOCK, Recovering the voice of Moses: the Genesis of Deuteronomy. In: JETS 2001,

pp. 385-408; E. H. MERRIL, Deuteronomy and History: Anticipation or Reflection?. In: FM 18

(2000), pp. 57-76. 85

A associao do livro do Deuteronmio com Josias atribuda obra de W. M. L. de WETTE,

(Dissertatio critico-exegetica qua Deuteronomiums a prioribus Pentateuchi libris diversun, alius

cuiusdam recentioris auctoris opus esse monstratur. Jena,1805). Mas alguns padres da Igreja, como

Atansio, Crisstomo, Jernimo e Teodoreto, j identificaram o livro da lei, relatado em 2Rs 22, como

sendo o livro do Deuteronmio (Cf. J. R. LUNDBOM, The Lawbook of the josianic reform. In:

CBQ, 38 (1976), p. 293, n.1). 86

Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 8-9.

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35

A Datao absoluta do livro do Deuteronmio tornou-se base para a

datao relativa dos livros histricos (ou Profetas Anteriores) na Bblia hebraica.

Notou-se que a legislao do livro do Deuteronmio ordena a centralizao do culto

e, os primeiros reis a fazerem isso foram Ezequias e Josias. O resultado dessa

percepo foi considerar os cdigos e textos que no pressupem a centralizao do

culto, como sendo anteriores a Ezequias. Por outro lado, os textos dos livros dos Reis

que avaliam os reis de Jud por sua observncia centralizao do culto, e passagens

nos livros de Josu e Juzes que esto estilizadas de acordo com a fraseologia

deuteronmica, como consequncia, no poderiam ser anteriores a Ezequias87

. Com o

desenvolvimento da pesquisa, o livro do Deuteronmio passou a ser considerado

tambm a introduo para a assim chamada Histria Deuteronomista (i.e., Dt-

2Rs)88

.

O maior consenso entre os eruditos que o livro do Deuteronmio passou por

expanses redacionais antes de chegar a sua forma final. Todas as demais questes,

porm, so objeto de discusso. Discute-se, por exemplo, quais textos faziam parte do

Deuteronmio primitivo/Proto-Deuteronmio (Urdeuteronomium). Basicamente

discutido se apenas o cerne do material legal (i.e., Dt 12-16) ou se tambm as

parneses em Dt 5-11 devem ser includas no Urdeuteronomium89

.

Alm disso, o fato de se admitir camadas redacionais distintas implica

igualmente em atribuir ao livro do Deuteronmio dataes distintas para cada

camada. Ao passo que a datao dos primeiros estratos (quer seja antes ou durante o

reinado de Josias) tradicionalmente localizada no sculo VII a.C., existe a tentativa

extrema de situar todas as redaes no livro do Deuteronmio antes do exlio

babilnico90

. No outro polo, entretanto, h exegetas que desacreditam todo o valor

histrico de 2Rs 22-23 e, consequentemente, desconectam totalmente o

Urdeuteronomium da reforma josinica e do sculo VII a.C., admitindo o incio do

livro apenas aps 586 a.C.91

.

A forma como o exegeta se posiciona sobre qualquer uma dessas opes

para a origem do livro do Deuteronmio, tambm afetar a maneira como

87

Cf. K. STOTT, Finding the Book of Law: Re-reading the Story of the Book of the Law

(Deuteronomy-2Rs) in Light of Classical Literature. In: JSOT 30 (2005), pp. 155-156. 88

Sobre o nascimento da hiptese e discusso do estado da questo at recentemente cf. T. RMER, A

Chamada, particularmente, pp. 9-50; S. L. MCKENZIE, Deuteronomistic History, pp. 160-167. 89

Cf. J. R. LUNDBOM, The Lawbook, pp. 293-294; T. RMER, The book of Deuteronomy pp.

178-212. 90

Assim, F. CRSEMMAN, A Tor, pp. 292-298. 91

Cf. J. PAKKALA, The Date of the Oldest Edition, pp. 153-159. Os argumentos de J. Pakkala

sero expostos ao ser abordada a hiptese da origem exlica para o livro do Deuteronmio.

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36

compreender o livro do Deuteronmio como um todo. Diante disso, antes de assumir

alguma posio definitiva, pretende-se aqui expor, de forma sinttica, alguns dos

principais argumentos sobre essa temtica. A abordagem a seguir pode ser dividida

nos seguintes tpicos: (1) origem pr-exlica do livro do Deuteronmio e sua

provenincia do Norte; (2) origem pr-exlica do livro do Deuteronmio e sua

provenincia do Sul; (3) origem exlica do livro do Deuteronmio; e (4) as etapas

redacionais do livro do Deuteronmio e sua concluso. Neste ltimo tpico, ser

assumida a hiptese de que o livro do Deuteronmio deve ter sofrido redaes pr-

exlicas, exlicas e ps-exlicas.

a) Origem pr-exlica e provenincia do Norte

Dificilmente algum exegeta dataria a concluso do livro do Deuteronmio

antes do exlio92

, mas comum situar sua origem nesse perodo.

A datao mais remota para a origem do livro do Deuteronmio situa seu

surgimento no reino do Norte entre a parte final do sculo VIII a.C., e incio do VII

a.C. Com a queda do reino do Norte sob o imprio Assrio, o texto primitivo teria

sido trazido para o reino de Jud93

. Essa perspectiva nortista prioriza o contedo do

livro do Deuteronmio como base argumentativa.

Em primeiro lugar, assume-se que o Cdigo Deuteronmico (Dt 12-26*)

uma expanso (e at substituio94

) do Cdigo da Aliana95

que est embasado na

fonte Eloista, presumivelmente situada no Norte em fins do sculo IX a.C., ou

incio do VIII a.C.96

. Nesse caso, admitindo um intervalo de cinquenta ou cem anos,

ainda seria possvel datar o Cdigo Deuteronmico por volta de 750-700 a.C.

Contudo, esta hiptese isolada adequada somente para fornecer uma

datao relativa, indicando que o Cdigo Deuteronmico posterior ao Cdigo da

Aliana. Na busca por uma datao absoluta recorre-se aos mesmos argumentos

usados para a autoria proftico-nortista. Assim, apoia-se no fato de que o livro do

92

Mas F. Crsemann (A Tor, 292-302, particularmente, p. 302) tenta localizar todas as etapas

redacionais do livro do Deuteronmio nos eventos pr-exlicos. Ele no exclui totalmente a hiptese de

ter havido algum pequeno ajuste no perodo exlico, mas no aponta nenhum exemplo disso. 93

Assim I. CAIRNS, Deuteronomy, pp.18-25; J. H. TIGAY, Deuteronomy, pp. xix-xxiv; P. D.

MILLER, Deuteronomy, pp. 2-5. 94

Cf. T. RMER, A Chamada, p. 64. 95

Uma tabela com todas as correspondncias entre o Cdigo da Aliana e o Cdigo Deuteronmico

oferecida por G. VON RAD (Deuteronomy, p. 13). 96

Cf. I. CAIRNS, Deuteronomy, 18-19; Mas F. Crsemann (A Tor, p. 260) prefere datar o Cdigo da

Aliana nas ltimas dcadas do sculo VIII a.C., ou incio do VII a.C.

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Deuteronmio e Osias parecem partilhar um background comum. Isso estaria

evidente nas afinidades de linguagem e ensino entre o livro do Deuteronmio e o

livro de Osias97

.

Exemplo disso o fato de que Osias criticou a proliferao de altares e

o uso de pilares de culto e, coincidentemente, tais coisas so tambm proibidas do

livro do Deuteronmio (cf. Dt 12,14; 16,22). Grande destaque tambm dado

atitude crtica de Osias em relao monarquia (cf. Os 8,34; 13,10-11), que tambm

mostra ter similaridades com a lei do rei (Dt 17,14-20)98

. Diante de tais afinidades

conclui-se que, uma vez que Osias um profeta do Norte que atua no sculo VIII

a.C., o Proto-Deuteronmio tambm deve ser considerado assim99

.

Um terceiro argumento baseia-se num aspecto geogrfico. A moldura

externa do Cdigo Deuteronmico faz prescries que devero ser postas em prtica

assim que o povo entrar na terra, precisamente sobre o monte Garizim e Ebal,

prximos a Siqum. So cerimnias que reafirmam o relacionamento de aliana com

Deus (cf. Dt 11,26-32; 27). Diante disso, argumenta-se que, caso o livro do

Deuteronmio tivesse sido escrito em Jerusalm, dificilmente se teria conferido a um

lugar do Israel do Norte uma funo tal, e um papel to prestigioso, que

potencialmente poderia conspirar contra a pretenso de que Jerusalm era o nico

lugar escolhido por Deus para adorao100

.

b) Origem pr-exlica e provenincia do Sul

A argumentao a favor de uma origem no reino do Sul para o livro do

Deuteronmio comea por valorizar questes histricas. O contedo enfatizando o

conceito de centralizao (cf. Dt 12), to caracterstico do livro do Deuteronmio,

pode ter sido redigido como uma legitimao posterior poltica de centralizao que

fora empreendida por Ezequias de Jud (725-697 a.C.)101

. Alm disso, a reforma

josinica (cf. 2Rs 22-23) em 622 a.C., refletindo os conceitos teolgicos da

centralizao deuteronmica, tomada como acontecimento histrico real102

. Para

97

Cf. J. H. TIGAY, Deuteronomy, p. xxiii. 98

Cf. I. CAIRNS, Deuteronomy, p.19; J. H. TIGAY, Deuteronomy, p. xxiii. 99

Cf. I. CAIRNS, Deuteronomy, pp. 18-19. 100

Cf. J. H. TIGAY, Deuteronomy, p. xxiii. 101

Cf. G. BRAULIK, O Deuteronmio, pp. 104-105. 102

Cf. F. CRSEMANN, A Tor, p. 297.

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quem parte desse ponto de vista, no se deve perguntar se, mas somente at que

ponto o Deuteronmio que conhecemos existia por ocasio daquele evento103

.

Admite-se, porm, que o relato do livro achado (cf. 2Rs 22)

provavelmente foi estilizado (ou romanceado). Mesmo assim, entende-se que h

plausibilidade histrica para se aceitar que existiu um movimento poltico

centralizador no sculo VII a.C. Essa plausibilidade encontrada no fato de que

houve um vcuo temporrio nos ltimos decnios do sculo VII a.C., criado na Sria-

Palestina, pelo enfraquecimento das estruturas de poder assrias, que conferiu

condies suficientes para que Josias ou seus conselheiros empreendessem alguma

reorganizao poltica e cultual104

. Portanto, mesmo se a reforma josinica no tenha

se baseado na descoberta de um livro, a primeira edio do livro do Deuteronmio

pode ainda ter sido escrita sob Josias105

.

Outro elemento que fala a favor de uma origem no sculo VII a.C., em Jud,

a semelhana entre o livro do Deuteronmio e a linguagem e as ideias presentes

particularmente no tratado de vassalagem Assrio de Esarhaddon (672 a.C.). H

paralelos evidentes entre esse tratado, tanto com as sanes de Dt 13, como com as

bnos e maldies de Dt 28106

. Presume-se que isso fortalece a hiptese de que a

origem do Deuteronmio (i.e., do Urdeuteronomium) se deu no sculo VII a.C., em

Jud.

Outro argumento para a origem pr-exlica, so as chamadas introdues

historizantes aos mandamentos. Quando diversas leis iniciam com a expresso:

quando entrares na terra que YHWH est dando para ti, parece estar pressuposto

que os destinatrios de tais leis habitam na terra, do contrrio, fora da terra, a lei no

teria valor prtico107

.

Tanto a argumentao a favor de uma origem no Norte, ainda no sculo

VIII a.C., ou a favor de uma origem em Jud, no sculo VII a.C., ambas as posies

localizam a origem do Deuteronmio no perodo pr-exlico. Entretanto, existe a

tendncia mais recente de rejeitar essa concluso e situar a origem do livro do

Deuteronmio apenas no perodo exlico.

103

F. CRSEMANN, A Tor, p. 297. Grifos do autor. 104

Cf. T. RMER, A Chamada, p. 60. 105

Cf. T. RMER, A Chamada, p. 60; P. D. MILLER, Deuteronomy, p. 7. 106

Cf. P. D. MILLER Deuteronomy, p. 6. Sobre a relao entre tratados de vassalagem com o livro do

Deuteronmio cf. M. WEINFELD, Traces of Treaty Formulae, pp. 417-427. 107

F. Crsemann (A Tor, pp. 294-297) vai ao extremo de defender que no exlio e ps-exlio no

houve qualquer importante acrscimo no livro do Deuteronmio.

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c) Origem exlica do livro do Deuteronmio

A datao exlica para a origem do Deuteronmio uma tendncia

mais recente do que a tradicional datao pr-exlica e, no por coincidncia, a

proposta de uma data posterior comea por desacreditar e desconstruir toda

argumentao que tem fundamentado a associao do Urdeuteronomium seja com

Josias ou com qualquer outra realidade pr-exlica.

A dissociao com Josias se inicia por negar a autoridade histrica de 2Rs

22-23 que, tradicionalmente, tem-se crido ser um evento chave, no qual se implantou

a centralizao do culto. Argumenta-se que esse texto de 2Rs 22-23 um dos mais

editados da Bblia hebraica, e que todos os seus detalhes so debatidos com pouco

consenso entre os exegetas, por isso, alega-se que tal texto no deveria ser usado

como base de uma teoria mais ampla108

.

Alm disso, so feitos estudos comparativos entre o relato de 2Rs 22-23

sobre o suposto livro achado durante o reinado de Josias e alguns exemplares da

literatura clssica da Grcia e Roma, tais como Histrias de Herdoto; Histria

Fencia, escrita por Filo de Byblos; A Guerra de Troia, recontada por Dicktys de

Creta; As Maravilhas Alm de Thule, escrita por Antonius Diogenes109

. Esse estudo

comparativo revela semelhanas e diversos motifs comuns entre essa literatura

clssica e o relato de 2Rs 22-23.

Os motifs comuns entre a literatura clssica e 2Rs 22-23 so: (a) um

documento achado em tmulos ou templos; (b) o documento havia passado um

longo tempo fora do conhecimento humano antes de ser reencontrado; (c) o livro de

autoria de algum indivduo de reputao no passado; (d) o livro achado requer

traduo/explicao para que possa ser entendido; (e) toda histria envolve a

participao de um lder que oficialmente endossa o livro110

.

Pelo fato de essas histrias da literatura clssica serem fictcias, a

concluso bvia a que se chega que, tambm o livro da lei, relatado em 2Rs 22-23,

fictcio e, consequentemente, nunca teria existido fora do texto bblico. O livro

encontrado, como narrado em 2Rs 22-23, seria, ento, mera estratgia ficcional para

dar credibilidade histria contada. Se isso for admitido como correto,

automaticamente 2Rs 22-23 no serve de forma alguma para determinar a data do

108

Cf. J. PAKKALA, The Date of the Oldest Edition, p. 390. 109

Cf. K. STOTT, Finding the Book of Law, pp. 161-165. K. Stott traz tambm informaes sobre data de composio e os modos como essas obras foram preservadas. 110

Cf. K. STOTT, Finding the Book of Law, pp. 161-165.

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livro do Deuteronmio, inclusive no haveria mais porque associ-lo a Josias e

suposta reforma de 622 a.C. (Inclusive, nota-se que na verso de 2Cr 34, a reforma

acontece antes do achado do livro, portanto, no dependeu dele)111

.

Para quem defende essa hiptese (a natureza fictcia de 2Rs 22-23), o

foco da anlise em textos como 2Rs 22-23 no deveria ser sobre o que eles dizem do

passado, mas apenas como eles apresentam o passado 112

.

Junto com essa dissociao do livro do Deuteronmio do relato e da

poca de Josias, acrescentam-se ainda outras razes para se considerar a edio mais

remota do livro do Deuteronmio apenas no perodo exlico. Dez razes so aqui

sintetizadas:

(1) O monarca no exerce nenhum papel no Urdeuteronomium, o que

seria excepcional, considerando a importncia do monarca na religio e sociedade do

AOP. Seria difcil entender tal documento fundamental regulando a atividade cltica

da sociedade com considervel impacto sobre outras atividades no Estado, sem o rei

comission-las ou nem mesmo ser levado em conta. Apenas Dt 17,14-20 menciona o

rei e, ainda assim, esse texto tambm restringe as atividades, o poder e as riquezas do

rei. Essa postura de Deuteronmio em relao ao rei est em ntido contraste com

outros cdigos de lei do AOP, como o cdigo de Hamurabi, prlogo de leis como

Lipit-Ishtar, UrNammu e Eshnunna. Ao contrrio de favorecer alguma relao com

Josias, esse contraste indicaria sim que, quando o Urdeuteronomium foi escrito, no

havia rei em Jud113

.

(2) O Proto-Deuteronmio no implica em uma organizao e

infraestrutura de Estado. Se o livro do Deuteronmio tivesse sido escrito durante o

tempo quando Jud era um estado independente com uma longa histria, o Estado