Upload
buituyen
View
215
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Rodrigo Ferreira Rodrigues
Dt 17,14-20: Os Deveres e Direitos do Rei
Dissertao de Mestrado
Dissertao apresentada ao programa de Ps-graduao em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Teologia.
Orientador: Prof. Leonardo Agostinho Fernandes
Rio de Janeiro Agosto de 2013
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
Rodrigo Ferreira Rodrigues
Dt 17,14-20: Os deveres e direitos do rei
Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Teologia do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio. Aprovada pala Comisso Examinadora abaixo assinada.
Prof. Leonardo Agostini Fernandes Orientador
Departamento de Teologia-PUC-Rio
Prof. Ludovico Garmus Departamento de Teologia-PUC-Rio
Prof. Matthias Grenzer PUC/SP
Prof. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial de ps-Graduao e Pesquisa do
Centro de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio
Rio de Janeiro, 19 de Agosto de 2013
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do tralho sem a autorizao da Universidade, do autor e do orientador.
Rodrigo Ferreira Rodrigues
Graduou-se em Teologia no Centro Universitrio Adventista (UNASP) em 2009.
Ficha Catalogrfica
CDD: 200
Rodrigues, Rodrigo Ferreira
Dt 17,14-20: os deveres e direitos do rei / Rodrigo Ferreira Rodrigues ; orientador: Leonardo Agostini Fernandes. 2013. 154 f. ; 30 cm
Dissertao (mestrado)Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2013.
Inclui bibliografia
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
Para minha me, Geralda, Para minha irm, Regina, pelo constante apoio. Para o Prof. Amin Rodor, cuja profundidade teolgica e excelncia acadmica so uma eterna fonte de inspirao. Para Mrcio Guilherme Mendes, um amigo na bonana, um irmo na adversidade.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
Agradecimentos
Ao meu orientador Professor Leonardo Agostini Fernandes pela inspirao, dedicao e pacincia.
PUC-Rio pela oportunidade concedida.
minha me e minha irm por sonharem os meus os sonhos.
Ao Frei Werlen e ao Padre Fbio Siqueira por toda a hospitalidade dispensada, sem a qual teria sido muito difcil a realizao deste trabalho.
Ao Professor Bernt Wolter pelos auxlios e incentivos.
Professora Maria de Lourdes cujos ensinamentos se refletiram em todo este trabalho.
Ao meu amigo Ezequiel por sempre dizer sim quando precisei.
Acima de todos agradeo a Deus, pois a fonte de todo o saber e a razo ltima de toda pesquisa.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
Resumo
Rodrigues, Rodrigo Ferreira; Fernandes, Leonardo Agostini. Dt 17,14-20: Os deveres e direitos do rei. Rio de Janeiro, 2013. 154p. Dissertao de Mestrado - Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
A presente dissertao analisa Dt 17,14-20, a lei do rei, considerando, de
forma especial, elementos diacrnicos examinados luz dos mtodos histrico-
crticos. Essa anlise prov a base para os tpicos abordados no comentrio. O
estudo constata que a lei do rei exibe certos contrastes e semelhanas em
relao Histria Deuteronomista, particularmente, os relatos sobre Salomo. A
lei do rei , contudo, peculiar em sua forma de avaliar e criticar a tradio.
Conclui-se tambm que os deveres e direitos tratados na lei do rei so
essencialmente utpicos, apesar de refletir um conhecimento da realidade
histrica da qual emergiram. Alm disso, constata-se que Dt 17,14-20 demonstra
muita similaridade em seus termos e temas com o restante do livro do
Deuteronmio e com a tradio bblica mais ampla, mas tambm, revela
descontinuidade temtica. Como base na inter-relao entre a lei do rei e outras
partes do Antigo Testamento, possvel notar que o livro do Deuteronmio nega
ao rei os elementos essenciais ao exerccio monrquico no Antigo Oriente
Prximo.
Palavras-chave
Tor; lei do rei; Pentateuco; Antigo Oriente Prximo; Histria
Deuteronomista.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
Abstract
Rodrigues, Rodrigo Ferreira; Fernandes, Leonardo Agostini (Advisor); Dt 17,14-20: The duties and rights of the king. Rio de Janeiro, 2013. 154p. MSc. Dissertation - Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
This dissertation examines Deuteronomy 17,14-20, the law of the king,
considering especially diachronic elements examined in the light of historical-
critical methods. This analysis provides the basis for the topics covered in the
commentary. The study notes that the law of the king shows some contrasts and
similarities between the Deuteronomistic History , particularly the accounts of
Solomon. The law of king however is peculiar in its way to evaluate and
criticize the tradition. It is concluded that the duties and rights dealt by the law of
king are essentially utopian, though it reflects an knowledge of the historical
reality of which it emerged. Furthermore, it is noted that Dt 17,14-20 shows much
similarity in their terms and themes with the rest of the book of Deuteronomy and
the broader biblical tradition, but also reveals thematic discontinuity. Based on the
interrelation between the law of king and other parts of the Old Testament, it is
possible to note that the book of Deuteronomy denies to the king the essential
elements to the monarchial exercise in the Ancient Near East.
Keywords
Torah; law of king; Pentateuch; Ancient Near East; Deuteronomistic
History.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
Sumrio
1. Introduo.....................................................................................................16
1.1. Roteiro e Mtodo...............................................................................
16
2. Questes Introdutrias.................................................................................19
2.1. Tema.................................................................................................19
2.1.1. Estado da questo.................................................................19
a) Autoria, data e composio.................................................19
b) Contexto histrico e contexto vital.......................................21
c) Textos relacionados. ...........................................................22
2.2. O livro do Deuteronmio...................................................................24
2.2.1. Autoria do livro do Deuteronmio...........................................24
a) Os crculos profticos.........................................................25
b) Os crculos levtico-sacerdotais...........................................27
c) Os crculos de sbios e escribas.........................................28
d) Os ancios...........................................................................30
e) O povo da terra.................................................................32
f) Concluses sobre autoria.....................................................34
2.2.2. A data do livro do Deuteronmio...........................................34
a) Origem pr-exlica e provenincia do Norte........................36
b) Origem pr-exlica e provenincia do Sul............................37
c) Origem exlica do livro do Deuteronmio............................39
d) Etapas redacionais do livro do Deuteronmio e a
sua concluso........................................................................
43
2.2.3. Unidade e estrutura do livro do Deuteronmio......................45
3. Dt 17,14-20: Texto e Crtica..........................................................................48
3.1. Traduo e crtica textual..................................................................48
a) Traduo de Dt 17,14-20..............................................................48
b) Elementos de crtica textual de Dt 17,14-20.................................49
3.2. Delimitao do texto e unidade.........................................................53
a) Delimitao..................................................................................53
b) Unidade do texto..........................................................................57
3.3. Elementos formais e estrutura de Dt 17,14-20..................................60
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
a) Elementos formais........................................................................60
b) Estrutura.......................................................................................61
3.4. Aspectos redacionais.. .....................................................................63
a) A datao pr-exlica...................................................................65
b) Datao pr-exlica especificamente para Dt 17,18-19...............67
c) A datao exlica..........................................................................67
d) Conciliao entre a datao pr-exlica e exlica.........................68
e) A datao ps-exlica do v. 18b...................................................69
3.5. Contexto vital e gnero literrio de Dt 17,14-20................................70
a) Gnero literrio de Dt 17,14-20...................................................70
b) Contexto vital...............................................................................72
3.6. Temas e tradies em Dt 17,14-20...................................................74
4. Comentrio de Dt 17,14-20...........................................................................77
4.1. Os critrios para o estabelecimento do rei........................................77
4.1.2. O primeiro critrio: desejado pelo povo e escolhido
por YHWH....................................................................................
78
a) Desejado pelo povo.............................................................78
b) Escolhido por YHWH...........................................................79
c) A sucesso dinstica...........................................................80
4.1.3. O segundo critrio: no ser estrangeiro.................................81
a) Os candidatos bblicos a rei estrangeiro..............................81
b) A forma enftica da proibio.............................................83
c) Elucidao da proibio a partir de seu
momento histrico...............................................................
..84
4.2. Os deveres negativos do rei.............................................................86
4.2.1. Primeiro dever negativo: no multiplicar cavalos..................86
a) O ambiente histrico do dever de no multiplicar ..
cavalos.....................................................................................
86
b) Ampliao da proibio: no voltar ao Egito........................88
c) O contraste com o relato de Salomo na
Histria Deuteronomista......................................................
88
4.2.2. Segundo dever negativo: no Multiplicar mulheres
90
a) O ambiente histrico do dever de no multiplicar
mulheres..................................................................................
91
b) O contraste com o relato de Salomo na Histria
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
Deuteronomista........................................................................92
4.2.3. Terceiro dever negativo: no multiplicar prata e ouro............94
a) As implicaes da proibio de no multiplicar prata e
ouro.........................................................................................
94
b) O contraste com o relato de Salomo na Histria
Histria Deuteronomista
95
c) As implicaes dos trs deveres negativos e seu
contraste com a Histria Deuteronomista...................
. 97
4.3. Os beneficirios dos deveres negativos do rei.................................. 97
a) O povo e os irmos como uma classe distinta do tu ...
deuteronmico.................
98
b) A classe indicada pelo tu como a real beneficiria dos
deveres negativos.............................................................................
100
c) Os trs deveres negativos na perspectiva da estratgia de
poder corporativo.............................................................................
102
4.4. O dever positivo do rei......................................................................103
a) A entronizao do rei...................................................................104 b) O sentido de Tor em Dt 17,18b.................................................105
c) O rei como copista da lei.............................................................107
d) A razo do estudo da Tor pelo rei.............................................108
4.5. O benefcio do rei..............................................................................109
a) A amplitude da obedincia ao mandamento................................109
b) A sucesso dinstica como nica recompensa do rei..................110
5. Dt 17,14-20: sua inter-relao terminolgica e temtica ad intra e ad
extra e o contraste com o AOP.........................................................................
113
5.1. Dt 17,14-20: a inter-relao terminolgica e temtica ad intra e
ad extra....................................................................................................
113
5.2. Os elementos essenciais ao exerccio monrquico no AOP e
no AT omitidos na lei do rei e no livro do Deuteronmio..............
132
a) Os elementos essenciais ao exerccio monrquico no AOP e
no AT.................................................
132
b) Os elementos essenciais ao exerccio monrquico omitidos
na lei do rei e no livro do Deuteronmio...........
................................
134
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
6. Concluso.....................................................................................................137
6.1. Sntese da pesquisa..........................................................................137
6.1.1. Sntese e principais concluses do segundo captulo...........137
6.1.2. Sntese e principais concluses do terceiro captulo.............138
6.1.3. Sntese e principais concluses do quarto captulo...............140
6.1.4. Sntese e principais concluses do quinto captulo...............143
6.2. Perspectivas e questes em aberto..........................................
7. Referncias Bibliogrficas.............................................................................
147
149
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
SIGLAS
1Cr 1Crnicas
1Rs 1Reis
1Sm 1Samuel
2Cr 2Crnicas
2Rs 2Reis
2Sm 2Samuel
AOP Antigo Oriente Prximo
AOTC Apolo Old Testamment Comentary
AT Antigo Testamento
AYBD Anchor Yale Bible Dictionary
BHQ Bblia Hebraica Quinta Editione
BS Bibliotheca Sacra
c./cc. captulo/captulos
CBQ The Catholic Biblical Quarterly
CLR Cardozo Law Review
DITAT Dicionrio Internacional de Teologia do Antigo Testamento
Dt Deuteronmio
Ex xodo
Ez Ezequiel
FJ Fundamentalist Journal
Gn Gnesis
HOTC Holman Old Testament Commentary
HPS Hebraic Political Studies
ICC International Critical Commentary
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
IEJ Israel Exploration Journal
Is Isaias
ITC International Theological Commentary
JBL Journal of Biblical Literature
JBQ Jewish Bible Quarterly
JETS Journal for Evangelical Study of the Old Testament
JPS Jewish Publication Society
Jr Jeremias
Js Josu
JSOT Journal for the Study of the Old Testament
JSOTSup Journal for the Study of the Old Testament Supplement
Series
Jz Juizes
Lv Levtico
Ml Malaquias
Mq Miquias
NAC The New American Commentary
NCBC New Century Bible Comentary
Ne Neemias
Nm Nmeros
Os Oseias
OTL The Old Testament Library
p./pp. pgina/pginas
Pr Provrbios
SBT Studies in Biblical Theology
Sl Salmos
TDOT Theological Dictionary of the Old Testament
TM Texto Massortico
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
v./vv. versculo/versculos
VT Vetus Testamentum
WBC Word Biblical Commentary
ZAW Zeitschrift fr die Alttestamentliche Wissenchaft
Zc Zacarias
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
O esforo para aprender as grandes verdades da
revelao, comunica frescura e vigor a todas as
faculdades. Expande a mente, agua a percepo,
amadurece o juzo. O estudo da Bblia enobrece a
todo o pensamento, sentimento e aspirao, como
nenhum outro estudo pode fazer. D estabilidade de
propsitos, pacincia, coragem e fortaleza;
aperfeioa o carter e santifica a alma. O
esquadrinhar fervoroso e reverente das Escrituras,
pondo o esprito do estudante em contado direto com
a mente infinita, daria ao mundo homens de intelecto
mais ativo, bem como de princpios mais nobres, do
que os que j existiram como resultado do mais hbil
ensino que proporciona a filosofia humana. A
exposio das Tuas palavras d luz, diz o salmista;
d entendimento aos smplices (Sl 119,130).
Ellen G. White, O Grande Conflito
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
16
1. Introduo
Dt 17,14-20 ser denominado nesta dissertao de lei do rei. Esta lei,
prescrevendo deveres e prometendo recompensa para o monarca, nica em todo o
AT com essa temtica. Isto, por si, j constitui uma motivao e justificativa para que
esse texto seja estudado em seus pormenores.
A lei do rei tem sido estudada levando-se em conta questes
diacrnicas; seu ambiente geogrfico, de modo particular, o AOP; bem como sua
relao com a Histria Deuteronomista e outros textos da tradio bblica. Em
estudos exegticos comum se destacar alguma dessas perspectivas ou se sobrepor
todas elas para se compreender os deveres e a recompensa do rei. O presente trabalho
buscar expor algumas das questes mais importantes dentre essas trs perspectivas.
Entretanto, no se pretende ser exaustivo em nenhum dos tpicos trazidos para a
presente discusso.
Buscar-se- evidenciar os elementos que fazem com que a lei do rei
seja singular em seu provvel ambiente histrico, bem como os ideais que a fazem
distinta e at idiossincrtica em comparao com a tradio bblica mais ampla. Alm
disso, pretende-se demonstrar que, alm de idealismo e questes teolgico-religiosas,
os deveres do rei revelam atrs de si interesses puramente humanos, mas tambm,
harmonizam-se com a proposta global do livro do Deuteronmio.
Somente a considerao de todos esses elementos que permite
perceber aquilo que se quis dizer quando se comps o texto de Dt 17,14-20.
precisamente a multiplicidade de elementos, reunidos para formarem um nico texto,
que faz com que esse mesmo texto, na medida em que for compreendido, tambm se
imponha ao leitor como autntica Palavra de Deus.
1.1. Mtodo e Roteiro
O estudo sobre Dt 17,14-20 inicia com o estado da questo, procurando
expor as questes que atualmente ainda so debatidas entre os exegetas.
apresentada tambm uma introduo ao livro do Deuteronmio, pois, isto se faz
necessrio para prover bases para os captulos seguintes. Entretanto, sero
consideradas apenas algumas das principais posies sobre autoria e data. Alm
disso, sero expostos alguns elementos que caracterizam a estrutura e unidade do
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
17
livro. Ser feita, porm, uma abordagem sinttica desses tpicos, posto que uma
apresentao mais ampla, ou exaustiva, fugiria do objetivo e alcance desta pesquisa.
O terceiro captulo abordar a lei do rei da perspectiva dos passos dos
mtodos histrico-crticos. Aps tratar das questes crtico-textuais, sero
consideradas a delimitao e unidade do texto, elementos formais e a estrutura da lei
do rei, bem como os seus aspectos redacionais, o gnero literrio e o contexto vital.
Essa abordagem permitir melhor caracterizar a lei do rei e reconhecer
diversos aspectos que formam sua identidade. Essa etapa possibilitar tambm
lanar as bases que nortearo os tpicos a serem comentados, e fundamentar as
principais concluses e posicionamentos a serem tomados no decorrer da pesquisa.
O quarto captulo propor um comentrio aos principais tpicos da lei do
rei, levando em considerao as concluses diacrnicas, mas tambm explorando a
relao da lei do rei com outros textos da tradio bblica, particularmente, da
Histria Deuteronomista. Neste ponto, ser valorizado tambm o ambiente social do
qual emergem alguns itens da lei do rei, pois, isso ajuda a perceber melhor o
interesse meramente humano atrs da linguagem religiosa da lei do rei.
Utilizar-se-, ainda, a contribuio de estudos cientfico-sociais na
medida em que contribuem para aumentar a compreenso do mundo do qual
emergiu a lei do rei, bem como dos propsitos que motivaram sua composio.
O quinto captulo examinar alguns dos termos e temas que ocorrem na
lei do rei e que se relacionam de forma relevante com o restante do livro do
Deuteronmio, ou evidenciam algum link temtico-terminolgico tambm com a
tradio bblica mais ampla. O objetivo a ser compreender o propsito da lei do
rei luz de todo o livro do Deuteronmio. Buscar-se- tambm indicar possveis
contrastes e descontinuidades temticas, pois isto amplia a possibilidade de
compreender os propsitos da lei do rei e sua funo dentro da perspectiva
cannica.
Alm disso, sero ressaltados os elementos essenciais ao exerccio
monrquico no AOP e como a viso deuteronmica do monarca contrasta com esses
elementos. Buscar-se identificar at que ponto a lei do rei se conforma ou se
ope, aprovando ou discordando daquilo que era o padro no mundo antigo.
Ser relevante evidenciar se a forma como a lei do rei se posiciona em
relao aos elementos essenciais ao exerccio monrquico no AOP reflete a tradio
bblica mais ampla do AT, ou se esse posicionamento difere e contrasta com o
restante dessa tradio.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
18
O sexto captulo oferecer a sntese das principais ideias expostas no
decorrer do trabalho, bem como as principais concluses. Finalmente, sero
apresentadas as referncias bibliogrficas utilizadas para a presente dissertao.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
19
2.
Questes introdutrias
2.1.
Tema
2.1.1.
Estado da questo
A lei do rei (i.e. Dt 17,14-20) objeto de acalorados debates entre
exegetas sobre diversos pontos, como por exemplo, a respeito de sua origem,
camadas redacionais, intenso, qual seu background, etc. Estima-se que, depois da lei
da pscoa, no haja texto mais polmico que a lei do rei em todo o livro do
Deuteronmio1. No ser oferecida aqui uma abordagem exaustiva de todos os pontos
discutveis que fazem parte da histria da interpretao de Dt 17,14-20, mas sero
selecionados alguns dos principais pontos que ainda tm relevncia no estado atual da
questo2.
a) Autoria, data e composio
A autoria de Dt 17,14-20 depende diretamente de como tambm se define
a autoria para todo o livro do Deuteronmio. Ou seja, no se prope um autor para a
lei do rei e outro para o restante do livro. A questo da autoria do livro do
1 F. GARCIA LPEZ (Le Roi dIsral: Dt 17,14-20. In: N. Lohfink [ed.], Das Deuteronomium:
Entstehung, Gestalt und Botschaf. Leuven: Leuven University Press, 1985, pp. 277-297), oferece uma
histria da pesquisa, particularmente nas pp. 277-282. 2 O presente trabalho somente focar questes recentes, mas para anlise de leituras diversificadas e
antigas de Dt 17,14-20, em textos judaicos desde cerca de 200 a.C., at os primeiros sculos da era
crist, ver: S. D. FRAADE, The Torah of King (Deu 17,14-20) in the Temple Scroll and Early
Rabbinic Law. In: J. R. Davila [ed.], The Dead Sea Scrolls as Background to Postbiblical Judaism
and Early Christianity: Papers from an International Conference at St. Andrews in 2001 (STDJ) 46.
Leiden: Brill, 2003, pp. 25-60; D. C. FLATTO, Between Royal Absolutism and Independent Judiciary:
the evolution of separation of powers in biblical, Second Temple and rabbinic texts. Cambridge:
Harvard University, 2010, pp. 1-47.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
20
Deuteronmio ser tratada com maiores detalhes na introduo ao livro3, mas pode-se
adiantar que a lei do rei alvo de pelo menos cinco propostas para sua autoria: (1)
os crculos profticos; (2) os crculos levtico-sacerdotais; (3) os escribas e sbios; (4)
os ancios e (5) o povo da terra (am h re)4.
Quanto datao da lei do rei, mesmo atualmente, ainda existem
leituras acrticas que a datam numa era mosaica no segundo milnio a.C.5 Contudo,
para exegetas que se valem dos Mtodos Histrico-Crticos, a lei do rei diversas
vezes tomada como uma das bases para definir a datao do prprio livro do
Deuteronmio. Eles divergem entre uma datao totalmente pr-exlica6, ou a datao
somente exlica7. Mas o fato de o texto apresentar sinais de adies redacionais faz
com que a maior tendncia seja concluir pelo menos duas datas para Dt 17,14-20:
uma pr-exlica e outra exlica8. Tambm se opina que a concluso do texto s tenha
ocorrido no ps-exlio9.
H certo consenso de que o texto no homogneo. Entretanto, diverge-
se sobre quais as partes exatamente seriam o texto base e quais seriam as
subsequentes redaes. A postura mais moderada admite que pelo menos os vv. 18-
19 so uma adio posterior10
. Mas, h tambm a tendncia de tomar como texto base
apenas os vv. 16a., 17a. e 17c.11
. Entretanto, alguns propem uma leitura mais
unitria e renunciam toda diferenciao de camadas, optando por reconhecer o texto
como uma obra homognea12
.
3 Cf. pp. 22-32 a baixo.
4 Cf. T. RMER, The book of Deuteronomy. In: S. L. MCKENCZIE, M. P. GRAM [eds.], The
history of Israels tradition: the heritage of Martin Noth. (JSOTSup 182). Shefield: Shefield Academic
Press, 1994, p. 194. 5 Uma das obras mais recentes a tentar uma enrgica, mas frgil defesa dessa posio de S. H.
SANCHEZ (Royal Limitation as the Distinctive of Israel Monarchy. Dallas: Dallas Theological
Seminary, 2010, particularmente, pp. 91-127). 6 O maior defensor dessa ideia parece ser F. CRSEMANN (A Tor: Teologia e histria social da lei
do Antigo Testamento, Petrpolis: Vozes, 2001, pp. 328-332). Ele toma a lei do rei como uma das
bases para datar todo o livro do Deuteronmio no pr-exlio (cf. particularmente, pp. 292-298). 7 Cf. T. RMER, A Chamada Histria Deuteronomista, Petrpolis: Vozes, 2008, pp. 139-143; J.
PAKKALA The Date of the Oldest Edition. In: ZAW 121, (2009), pp. 392-393. O artigo de J.
Pakkala toma Dt 17,14-20 como o primeiro entre outros nove argumentos para datar a primeira edio
do livro do Deuteronmio apenas no exlio (cf. particularmente, pp 392-401). 8 Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, pp. 282-287; P. DUTCHER-WALSS, The Circumscriptions of
King: Deuteronomy 17,16-17 in its Ancient Social Context. In: JBL 121 (2002), pp. 601-616,
particularmente, pp. 601-603. 9 Cf. T. RMER, A Chamada, p.140, n. 70.
10 Cf. A. D. H. MAYES, Deuteronomy (NCBC). London: Marshal, Morgan & Scott Ltd, 1979, p. 273.
11 Cf. F. GARCIA LPEZ (Le Roi, pp. 282-287), seguido por P. DUTCHER-WALSS, (The
Circumscriptions, pp. 601-603). Ambos os artigos oferecem ampla bibliografia sobre a questo. 12
Cf. F. CRSEMANN, A Tor, p. 329, n. 153.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
21
b) Contexto histrico e contexto vital.
Existem tambm questes discutveis ao se tentar identificar o contexto
vital do qual emerge a lei do rei. Em primeiro lugar, deve-se definir se Dt 17,14-20
constitui uma lei ideal puramente terica, ou se se trata de uma legislao prtica. O
texto est fundamentado na experincia e em uma situao histrico-poltica
especfica, ou a-histrico e estritamente moral e religioso? Outro questionamento
sobre qual modelo de monarquia est pressuposto na lei do rei: uma monarquia
dinstica ou carismtica13
?
Quanto primeira questo, a resposta est diretamente ligada datao
do texto. Para aqueles que datam ao menos alguma parte da lei do rei no perodo de
formao do Deuteronmio Primitivo, ou de alguma forma relacionada com Ezequias
ou Josias, consequentemente Dt 17,14-20* reflete uma situao histrica concreta14
.
No entanto, principalmente quando a lei do rei situada no exlio, h quem prefira
v-la como uma produo idealista, ou um misto de projeto futuro com uma tardia
reflexo crtica sobre o passado15
. Nesse caso, Dt 17,14-20 no teria tido qualquer
aplicao prtica em algum momento histrico, quer seja no reino do Norte ou no
reino do Sul.
A segunda questo, se a lei do rei pressupe uma monarquia
dinstica ou carismtica, tem a ver com a origem geogrfica da percope. Para alguns,
por trs da lei do rei h uma ideologia carismtica proveniente do reino do Norte16
.
Por outro lado, a favor de uma pressuposio dinstica, defende-se que a lei do rei
mais facilmente entendida como parte do programa do reinado de Josias, projetado
em Jud17
. O carter dinstico mais especificamente visto no v. 20, onde se expe a
estabilidade do rei e a continuidade do reinado por meio de seu filho18
.
13
Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 279. 14
Dentre os partidrios dessa perspectiva esto F. CRSEMANN (A Tor, pp. 328-332); P.
DUTCHER-WALSS, The Circumscriptions of King, pp. 601-616; F. GARCIA LPEZ, Le Roi,
pp. 282-295; I. CAIRNS, Deuteronomy: word and presence (ITC). Grand Rapids: Eerdmans
Puplishing, 1992, pp. 17-18; P. D. MILLER, Deuteronomy. Louisville: John konx Press, 2012, pp.
147-149. Com exceo de F. Crsemann, os demais tendem a admitir que os vv. 18-19 so exlicos e
refletem mais um idealismo do que uma realidade histrica. 15
Cf. p. ex. J. PAKKALA, The date Oldest Edition, pp. 388-401, particularmente, pp. 392-394; G.
KNOPPERS, The Deuteronomist and the Deuteronomic Law of the king: a reexamination. In: ZAW
108 (1996), pp. 329-346; T. RMER, A chamada, pp. 83-84. 16
Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 279, n. 18. 17
Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 279, n.19. 18
Cf. R. D. NELSON, Deuteronomy (OTL). Louisville, London: John Knox Press, 2002, p. 225; P. D.
MILLER, Deuteronomy, p. 147.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
22
Entretanto, h tambm o que, talvez, possa ser chamada de posio
conciliadora. Nesse caso, a lei do rei no estaria ecoando um princpio carismtico
em oposio a um dinstico, ou vice versa, mas tratar-se-ia de um simples contraste
entre os reis que foram divinamente escolhidos e os reis que no o foram19
.
c) Textos relacionados
lugar comum o fato de exegetas apontarem uma ntima relao entre Dt
17,14-20 e a Histria Deuteronomista, mas de modo particular, a relao com 1Sm 8-
1220
.
No entanto, a questo sobre qual texto influenciou e qual foi influenciado
ainda no foi completamente resolvida. Quando se atribui lei do rei um carter
essencialmente negativo, entende-se que o texto de 1Sm 8-12 indica a opresso que o
rei poderia infligir sobre o povo. Nesse caso, a lei do rei estaria criticando tal
opresso praticada21
.
J foi notado, porm, que dependendo da forma como se define a relao
de ambas as passagens, pode-se incorrer em problemas metodolgicos. Comete-se, s
vezes, o equvoco de considerar 1Sm 8-12, e at outras pores da Histria
Deuteronomista que falam sobre Salomo, como tendo sido fontes para a composio
da lei do rei. Nesse caso, os autores/editores da lei do rei teriam escrito/editado
essa percope tendo em mente 1Sm 8-12 e outros textos da Histria Deuteronomista22
.
Ao mesmo tempo, porm, a lei do rei apontada como tendo sido escrita com o
objetivo de criticar os reis expostos na Histria Deuteronomista.
Diante disso, nota-se um problema cronolgico e de identificao das
fontes que subjazem a cada texto. Se a lei do rei criticou os relatos deuteronomistas
sobre Salomo e outros reis, ela no pode, simultaneamente, ser tomada como fonte
desses mesmos relatos. A falha em definir claramente essa relao leva alguns
exegetas a incorrerem em um raciocnio circular23
.
19
Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 280. 20
Uma comparao detalhada entre os dois textos feita por S. JUNG, The Judicial System in Ancient
Israel: A syncronic and diacronic reading of Exodus 18:1-27, Deuteronomy 16:18-17:20, and 2
Chronicles 19:1-11. Claremont: Faculty of Claremont Graduate University, 2001, pp. 183-201. 21
Cf. G. N. KNOPPERS, The Deuteronomist and the Deuteronomic Law, p. 332. 22
D. L. Christensen (Deuteronomy [WBC]). Nashville: Tomas Nelson, 2001, p. 384), por exemplo,
reconhece essa possibilidade, mas prefere optar pelo inverso, ou seja, os relatos sobre Salomo na
Histria Deuteronomista que foram escritos tendo em mente a lei do rei. 23
Cf. G. N. KNOPPERS, The Deuteronomist and the Deuteronomic Law, p. 334. A lgica simples
exige concluir que, se a lei do rei realmente critica os relatos deuteronomistas sobre Salomo,
necessariamente ela posterior a esses relatos. Em contra partida, se a lei do rei foi usada como
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
23
Em se tratando especificamente de 1Sm 8-12, h quem prefira dizer que
existe sim uma relao, mas no uma dependncia ou uma ligao recproca com
Dt17,14-2024
. Com relao Histria Deuteronomista de forma mais ampla, por
exemplo, 1Rs 1-11, tratando sobre Salomo, argumenta-se que a lei do rei no
critica, ao invs disso, tem uma proposta essencialmente positiva, como se nota em
Dt 17,2025
. Nesse caso, ao se falar em mera similaridade, sem admitir qualquer
dependncia literria, torna-se mais fcil resolver o problema cronolgico e evitar o
raciocnio circular.
Outros textos que, presumivelmente, esto relacionados com a lei do rei
so Os 7,3-7; 8,4; 10,7; Is 2,7-9 e Mq 5,9-14. Ao passo que h quem destaque as
similaridades26
, a tendncia dos especialistas a de evitar fazer com que as
semelhanas signifiquem dependncia literria entre tais passagens27
.
Esses pontos, brevemente expostos aqui, so questes sobre as quais os
exegetas ainda no chegaram a pleno consenso. Entretanto, ser necessrio, quando
possvel, fazer um posicionamento diante das diversas propostas e dar a devida
justificativa para cada escolha feita. Mas antes de tratar diretamente da lei do rei,
faz-se necessria uma breve introduo ao livro do Deuteronmio e, com base nisso,
apontar diretrizes para a abordagem metodolgica de Dt 17,14-20.
fonte para os relatos de Salomo, ela , necessariamente, anterior a esses relatos. Sendo anterior, a lei
do rei pode at ser considerada fonte para os relatos salomnicos, mas no pode estar ao mesmo
tempo criticando esses relatos que vieram existncia depois de ela ter sido escrita! Em contra partida,
se a lei do rei est realmente criticando os relatos salomnicos da Histria Deuteronomista, ela
precisa ser considerada, obrigatoriamente, posterior a esses relatos e, neste caso, impossvel que ela
tenha servido de fonte para os mesmos relatos que criticou. Conclui-se, portanto, que considerar a lei
do rei simultaneamente como fonte e crtica dos relatos salomnicos da Histria Deuteronomista
um raciocnio circular e ilgico. 24
Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 280, n. 25. 25
Cf. G. N. KNOPPERS The Deuteronomist and the Deuteronomic Law, pp. 334-337. A relao da
lei do rei com a Histria Deuteronomista ainda mais complexa, porm, fundamental para a
compreenso de qual e qual no o propsito de Dt 17,14-20. Por isso, esse tpico ser
retomado no captulo seguinte, especificamente no comentrio sobre os deveres negativos da lei do
rei (i.e., Dt 17,16-17). 26
Cf. A. D. H. MAYES, Deuteronomy, pp. 270-273. 27
Cf. F. GARCIA LPEZ, Le Roi, p. 281. O mesmo cuidado no tomado por L. D. Christensen
(Deuteronomy, 384-385) ao relacionar os deveres negativos de Dt 17,16-17 com 1Rs 1-11.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
24
2.2.
O Livro do Deuteronmio
O livro do Deuteronmio o oitavo livro mais longo da Bblia. No TM,
ele conta com 34 captulos, 959 versculos e cerca de 28.461 palavras. Estima-se que
seja citado ou aludido pelo menos 208 vezes em 21 livros do Novo Testamento28
.
O nome Deuteronmio resultado da forma como a LXX e a Vulgata
traduziram Dt 17,1829
. O livro do Deuteronmio apresentado como sendo um
discurso de adeus de Moiss, do outro lado do Jordo, no limiar da terra prometida
(cf. Dt 1,1; 9,1)30
. Trata-se do ltimo dia da vida de Moiss (cf. Dt 32,50; 34,5.7) e
o primeiro dia do dcimo primeiro ms do quadragsimo ano aps a sada do Egito
(cf. Dt 1,3; 32,48).
Ainda que o livro do Deuteronmio seja alvo de grandes estudos
acadmicos, com consequncia para todo o Pentateuco, a pesquisa atual sobre o
Deuteronmio revela que no h consenso, entre os seus peritos, sequer quanto aos
pontos bsicos, como sua origem, formao e composio31
.
2.2.1.
Autoria do livro do Deuteronmio
Para a tradio judaica, bem como para a tradio crist, Moiss era de fato o
autor do livro do Deuteronmio e do Pentateuco como um todo. Essa concepo
predominou at o sculo XVIII d.C., perodo que pode ser chamado de pr-
crtico32
. Tal suposio foi superada pela linha principal da exegese, mas atualmente
h pelo menos cinco propostas para a autoria do livro do Deuteronmio: (1) os
crculos profticos; (2) os crculos levtico-sacerdotais; (3) os escribas e sbios; (4) os
ancios e (5) o povo da terra.
28
Cf. H. L. WILLMINGTON, Deuteronomy: A Book of Instruction. In: FJ, (1984), p. 58. 29
Cf. G. BRAULIK, O Livro do Deuteronmio. In: E. ZENGER et. alli [eds.], Introduo ao Antigo
Testamento. So Paulo: Loyola, 2003, p. 97. 30
Cf. F. GARCIA LPEZ, O Deuteronmio: uma lei pregada. So Paulo: Paulinas, 1992, p. 10. 31
P. KRAMER, Origem e Legislao do Deuteronmio: programa de uma sociedade sem
empobrecidos. So Paulo: Paulinas, 2006, p. 11. 32
Cf. A. PURY [org.], O Pentateuco em Questo: as origens e a composio dos cinco primeiros
livros da Bblia luz das pesquisas recentes. Petrpolis: Vozes, 1996, pp. 18-20.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
25
a) Os crculos profticos
A associao do livro do Deuteronmio com os crculos profticos
comea depois de a data de Deuteronmio ter sido vinculada reforma de Josias em
622/621 a.C. A anlise do vocabulrio, estilo literrio e contedo teolgico levou a
concluso de que tais elementos, na forma como se apresentam no livro do
Deuteronmio, eram desconhecidos antes da reforma josinica do sculo VII a.C.33
A aceitao desse perodo para a datao serviu como ponto de partida
para estabelecer quem teria sido responsvel pela formao do livro do
Deuteronmio. A metodologia usada para definir a autoria em geral baseia-se na
anlise de formas literrias e de contedo teolgico presentes em Deuteronmio34
.
Com base nessa metodologia, concluiu-se que era possvel reconhecer
quais os escritores foram ou no influenciados pelo livro do Deuteronmio, bem
como aqueles que tinham ntima relao com ele e, com isso, acenaram para uma
autoria comum. Concluiu-se que os profetas Oseias, Ams e o Proto-Isaias no
revelam ter recebido influncia do livro do Deuteronmio. Em contra partida, grande
parte de Jeremias, Ezequiel e o Dutero-Isaias teriam sido influenciados por ele35
.
Essa relao, alm de servir para se tentar determinar a data, foi utilizada para
aproximar o livro do Deuteronmio de certos crculos profticos quanto sua
autoria36
.
O livro do Deuteronmio teria sido uma tentativa, feita pelos membros
dos crculos profticos, em Jud, de contra atacar as tendncias sincretistas existentes
no sculo VII a.C. O suposto autor proftico teria buscado despertar a conscincia
nacional atravs de princpios profeticamente formulados. Esse autor tambm teria se
33
Cf. L. J. HOPE, The Origins of Deuteronomy. Evanston: Northwestern University, 1978, p. 8. 34
Cf. L. J. HOPE, The Origins, 3. 35
Cf. S. R. DRIVER, A Critical and Exegetical Commentary on Deuteronomy (ICC). Edinburgh: T. &
T. Clark, 1902, xlvi-xlvii. Na prtica, essa relao muito complexa, e no se pode concluir autoria
comum pela mera similaridade. Apenas como exemplo, aceita-se que h ntidas similaridades entre o
livro do Deuteronmio e partes do livro de Jeremias. W. L. Holiday (Elusive Deuteronomists,
Jeremiah, and Proto-Deuteronomy. In: CBQ, 66 (2004), pp. 55-77), porm, argumenta
convincentemente que tanto no livro de Jeremias se fez uso do livro do Deuteronmio, como tambm,
no livro do Deuteronmio se fez uso de Jeremias. Nesse caso, necessrio levar em considerao
camadas redacionais, cronologia e, ainda assim, a relao reciproca se limita a certas pores de cada
livro, no fornecendo dados suficientes para se definir a autoria de nenhum dos respectivos livros
como um todo. 36
Cf. S. R. Driver (Deuteronomy, xlvii): The prophetic teaching of Dt., the dominant theological
ideas, the point of view under which conduct is estimated, presuppose a relatively advanced stage of
theological reflection, as they also approximate to what is found in Jeremiah and Ezekiel. De acordo
com L. J. Hope (The Origins, 9), o comentrio de S. R. Driver deu o tom para as pesquisas posteriores
sobre a autoria do livro do Deuteronmio.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
26
valido de ideias profticas de Isaias e de Oseias37
. A presena e a atuao proftica
seriam claramente identificadas em textos como Dt 18,20-22. Esse texto estaria
pressupondo um momento em que os profetas (autnticos) viveram um conflito com
numerosas influncias de falsos profetas e, por isso, teria sido necessrio suprir Israel
com critrios para distingui-los38
.
Contudo, mesmo entre aqueles que defenderam a autoria do livro do
Deuteronmio em crculos profticos, surgiu divergncia a respeito de muitos
detalhes, como por exemplo, a definio de quais profetas influenciaram e quais
receberam alguma influncia do livro do Deuteronmio. Alm disso, defendeu-se o
surgimento do livro do Deuteronmio nos crculos profticos do reino do Norte, no
contexto da luta entre o Javismo e o Baalismo e, apenas posteriormente, o livro teria
sido trazido para o reino do Sul e sofrido adaptaes39
.
Entre as razes para essa concluso so apontadas semelhanas entre o
livro do Deuteronmio e o ensino de Oseias40
. Uma dessas semelhanas a atitude
negativa em relao ao rei (cf. p. ex. Os 7,37; 10,3-4), igualmente refletida na lei do
rei (cf. Dt 17,14-20). Alm disso, supe-se que o livro do Deuteronmio e o livro de
Oseias ecoam a mesma teologia da eleio41
.
Em suma, h duas maneiras principais de considerar o livro do
Deuteronmio como uma obra de autoria de crculos profticos. A primeira situar a
composio do livro do Deuteronmio por crculos profticos no reino do Sul ligados
reforma de Josias. Outra maneira situar o nascimento do livro do Deuteronmio
em crculos profticos no reino do Norte, e apenas posteriormente o livro teria sido
trazido para o reino do Sul e adaptado s preocupaes pertinentes poca de Josias.
Dentro de cada uma dessas duas perspectivas existem maiores ou menores
divergncias.
37
Cf. S. R. DRIVER, Deuteronomy, lii-liii. 38
S. R. Driver (Deuteronomy, xlviii) data esse conflito a partir do sculo VIII a.C. 39
Uma discusso sobre as diversas propostas e contrapropostas entre os autores que buscam definir
qual grupo proftico (sulista ou nortista) que est por de trs do livro do Deuteronmio oferecida por
L. J. Hope (The Origins, particularmente, pp. 1-42), que faz resenha de cada uma das principais obras
dos diversos autores at 1978. 40
Nas palavras de P. D. Miller (Deuteronomy, 7): Affinities between Deuteronomy and Hosea have
led some to suggest that the author of Deuteronomy was the spiritual heir of this great northern
prophet. 41
L. J. Hope (The Origins, 23-24) relembra que esta ideia remonta a A. ALT (Die Heimat des
Deuteronomiums, Kleine Ashriften, II. Mchen: C. H. Beck, 1959. pp. 250-275). Segundo L. J. Hope,
o autor que por fim tornou-se mais representativo e influente em defender a autoria proftica para o
livro do Deuteronmio foi E. W. NICHOLSON (Deuteronomy and Tradition. Philadelphia: Fortress,
1967). Uma lista de diversos outros pontos de contatos entre o livro do Deuteronmio e os crculos
profticos mencionada em P. D. MILLER (Deuteronomy, 7).
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
27
b) Os crculos levtico-sacerdotais42
A associao do livro do Deuteronmio com os crculos levtico-
sacerdotais parte, primeiramente, da identificao do Sitz im leben do livro do
Deuteronmio com a celebrao cltica de renovao da aliana. Para isso, ressalta-se
que o livro do Deuteronmio possui semelhanas com o modelo de tratado de
vassalagem Hitita. A identificao no total entre ambos porque quando o modelo
de tratado, presumivelmente, foi transferido da esfera poltica para a religiosa, teria
ento sofrido adaptaes43
. Argumenta-se que ainda possvel encontrar claros
vestgios de que o padro de aliana foi seguido na composio do livro do
Deuteronmio (p. ex. Dt 26,16-19). Contudo, a forma final do livro aparece como
uma instruo para a laicidade44
.
Uma vez aceito esse ponto, basta identificar quem seria a pessoa ou
grupo mais provvel a estar por trs desse arranjo. Ou seja, Quem desenvolveu esta
prtica de pregar a qual, desde a primeira ltima sentena, deu a Deuteronmio essa
estampa distintiva?45
Neste ponto, duas razes so apresentadas a favor dos
sacerdotes-levitas.
A primeira razo extrada de Ne 8, onde os levitas instruram o povo,
dando a devida explicao para a lei que fora lida. assumido que o fato de os levitas
terem sido incumbidos dessa tarefa (i.e. explicar a lei) no sculo V a.C., torna
possvel que isso j fosse uma prtica levtica em sculos anteriores, quando o livro
do Deuteronmio tambm assumiu a forma de instruo homiltica46
. Presume-se que
algumas partes do livro do Deuteronmio podem ser consideradas como uma coleo
de materiais para a proclamao pblica da lei47
.
Contudo, h ainda outra indicao de que ns devemos buscar pelos
pregadores deuteronmicos nos crculos levticos e sacerdotais. De acordo com a lei
42
L. J. Hope (The Origins, pp. 43-46) cita brevemente nove autores como sendo partidrios da
concluso de que Deuteronmio fruto de atividade levtico-sacerdotal, mas constata que o principal
expositor dessa ideia foi G. Von Rad. 43
Cf. G. VON RAD, Deuteronomy (OTL). Philadelphia: Westminster Press, 1966, p. 21. 44
Nas palavras de G. Von Rad (Deuteronomy, 23): If we now ask what Sitz im leben is demanded by
the pattern in accordance with Deuteronomy is arranged, it can have been taken only from a cultic
celebration, perhaps from a feast of renewal of the covenant. This conjecture is supported by the
insertion of a formal covenant-making (Deut. 26.16-19). Thus the classical pattern of a formal
covenant formulary appears in Deuteronomy in any case only in a mutilated form. Its setting in the
cultic, in which the form of Deuteronomy was originally rooted, has, in fact, been already abandoned
in the form of a homiletic instruction for the laity. 45
G. VON RAD, Deuteronomy, p. 23. 46
Cf. G.VON RAD, Deuteronomy, p. 24. 47
Cf. G.VON RAD, Studies in Deuteronomy (SBT). Lodon: SCM Press LTD, 1953, p. 15.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
28
da guerra (cf. Dt 20) um sacerdote deve fazer um discurso antes da batalha
comear48
. Todavia, o perfil (outline) do discurso posto na boca do sacerdote (cf. Dt
20,3-4) corresponde precisamente aos sermes de guerra que ocorrem em outros
lugares no livro do Deuteronmio (particularmente, Dt 7,16-26; 9,1-6; 31,3-8). Alm
disso, todo o livro do Deuteronmio marcado por um declarado esprito belicoso
que, permeia tanto a parte exortativa (cf. Dt 6-11), quanto a legal (cf. Dt 12-26)49
.
Com base nisso, a autoria levtico-sacerdotal estendida para todo o livro do
Deuteronmio.
Em adio a essas razes, entende-se que a atividade de ensino, a qual o
livro do Deuteronmio pressupe, tambm est presente em diversas passagens
associadas com sacerdotes e santurios50
. A autoria do livro do Deuteronmio ainda
associada aos levitas anteriormente no ligados ao culto, mas, no contexto do livro do
Deuteronmio, presumivelmente, eles esto ligados ao templo de Jerusalm. Isto
explicaria o suposto forte interesse do livro do Deuteronmio em levitas no
sacerdotes e levitas que pretendiam o status sacerdotal no santurio central51
.
Entretanto, a defesa de uma autoria atribuda aos crculos levtico-
sacerdotais recebeu pouca ateno e foi pouco seguida pela linha principal dos
exegetas que estudam o livro do Deuteronmio52
.
c) Os crculos de sbios e escribas
Outra maneira de tratar da autoria do livro do Deuteronmio atribui-lo
aos escribas e aos sbios ativos em Jud, antes e depois da reforma josinica. Devido
habilidade e a posio que ocupavam, esses personagens teriam se familiarizado
com ideias sapienciais e com caractersticas de tratados internacionais, que se
encontram no livro do Deuteronmio53
.
48
G.VON RAD, Deuteronomy, p. 24 49
Cf. G.VON RAD, Deuteronomy, p. 24. 50
Cf. p. ex. Dt 33,8; 31,9; 2Rs 17,27; Jr 18,8; Ez 7,26; 22,26; Os 4; Mq 3,11; Zc 3,4; Ml 2,7;
A. D. H. MAYES, Deuteronomy, 107. 51
Cf. A. D. H. MAYES, Deuteronomy, pp. 107-108, 274-275. G.Von Rad j apresentara esses
argumentos supra mencionados em sua obra Studies in Deuteronomy (cf. particularmente, pp. 11-24,
66-70); L. J. Hope (The origens, p. 46) lembra que em todas as principais obras sobre o estudo do livro
Deuteronmio, G. Von Rad sempre dedicou um espao para afirmar a autoria levtico-sacerdotal. 52
T. Rmer (The book of Deuteronomy, p. 194) identifica A. D. H. Mayes como um dos poucos que
seguem G. Von Rad no que diz respeito autoria do livro do Deuteronmio. 53
M. Weinfeld reconhecido como quem mais se dedicou em demonstrar que a autoria do livro do
Deuteronmio se deve aos escribas e sbios de Jud (cf. L. J. HOPE, The Origins, p. 90).
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
29
A primeira razo para associar a origem do livro do Deuteronmio aos
crculos sapienciais-escribais est na semelhana entre textos sapienciais, como o
livro de Provrbios (cf. Pr 1-9), e certas passagens do livro do Deuteronmio (cf. Dt
6,4-9; 11,18-21)54
. Supe-se tambm que o humanismo presente no livro do
Deuteronmio deve ter recebido influncia da sabedoria do AOP55
. Alm disso, os
autores do livro do Deuteronmio conheciam os modelos e a terminologia de tratados
internacionais. Presume-se que esse conhecimento era reservado a homens de Estado
como os escribas reais56
.
Outras caractersticas do livro do Deuteronmio que se supem seriam
comuns com a literatura sapiencial so: (a) o forte tom didtico. O livro do
Deuteronmio teria sido escrito com um interesse pedaggico em mente. Isto se
evidenciaria no constante uso de vocabulrio como escutar, ouvir57
,
disciplina58
ensino59
; (b) o livro do Deuteronmio demonstra ser fundamental o
papel educacional do pai (cf. Dt 6,7; 11,19)60
; (c) a doutrina da recompensa tambm
faz um elo de ligao entre o livro do Deuteronmio e a sabedoria. A recompensa se
d atravs da boa vida, da vida longa e da vida prspera (cf. Dt 8,1.7-10; 28,1-
15). Uma diferena, porm, que enquanto na literatura sapiencial comum enfocar
o indivduo, no livro do Deuteronmio acontece um processo de nacionalizao da
recompensa61
.
54
Segundo L. J. Hope (The Origens, p. 78) o primeiro a tentar demonstrar as afinidades entre o livro
do Deuteronmio e a literatura de sabedoria israelita foi F. DELITZCH na obra The Proverbs of
Salomon (Edinburgh: Clark, 1874). 55
Cf. M. WEINFELD, Deuteronomy and the Deuteronomic School. Winona: Eisenbrauns, 1992, pp.
293-294. 56
M. Weinfeld conclui um de seus artigos (Traces of Treaty Formulae in Deuteronomic. In: Bblica
46 (1965), pp. 417-427) afirmando que the covenant in the book of Deuteronomy (as opposed to
the Priestly covenant) was drafted by scribes who were predominantly influenced by Assyrian treaty
formulae (p. 427). Mas, L. J. Hope (The Origins, p. 116) critica o fato de M. Weinfeld limitar a
familiaridade e o uso de frmulas e de terminologia de tratados aos sbios e aos escribas reais. Em suas
palavras: How then can their occurrence in the prophets and psalms be explained? 57
O termo em geral traduzido por ouvir ele ocorre dezenas de vezes por todo o livro do ,
Deuteronmio: Dt 1,16.17.34.43.45; 2,25; 3,26; 4,1.6.10.12.28.30.32.33.36; 5,1.23.24.25.26.27.28;
6,3.4; 7,12; 8,20; 9,1.2.19.23; 10,10; 11,13.27[2x].28[2x];12,28; 13,4.5.12.13.19; 15,5; 17,4.12.13;
18,14.15.16.19; 19,20; 20,3; 21,18.20.21; 23,6; 26,7.14.17; 27,9.10; 28,1.2.13.15.45.49.62; 29,3.18;
30,2.8. 10.12.13. 17.20; 31,12.13; 32,1; 33,7; 34,9. 58
Dentre as formas do livro do Deuteronmio expressar a ideia de disciplina est o termo cf. Dt)
11,2) e o piel de .In: NCB, p . ,[cf. Dt 8,5[2x]; 21,18; 22,18); cf. A. EVEN-SHOSHAN [ed)
475; P. R. GILCHRIST, .In: DITAT, pp. 632-633 . ,59
Dentre as principais formas do livro do Deuteronmio expressar a ideia de ensinar est o hifil de
(cf. Dt 17,10.1; 24,8; 33,10), e o piel de .cf. Dt 4,1.5.10.14; 5,31; 6,1; 11,19; 20,18; 31,19.22); cf)
J. E. HARTLEY, .In: DITAT, pp. 790-791 . ,In: DITAT, pp. 660-664; W. C. KAISER .60
Cf. M. WEINFIELD, Deuteronomy, 298-306. 61
Cf. M. WEINFELD, Deuteronomy, 307-319.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
30
Quando a recompensa por si s no alcana o objetivo, entende-se que o
livro do Deuteronmio responde a isso de maneira semelhante sabedoria. Primeiro,
aponta para o valor educacional do sofrimento (cf. Dt 28,15-68; 30,1-3). Segundo,
descreve a punio como um teste de virtude (cf. Dt 8,2-3). Por fim, tambm enfatiza
o princpio da retribuio individual (cf. Dt 29,19-20)62
.
H ainda alguns elementos que, conforme se acredita, distinguem o livro
do Deuteronmio das composies sacerdotais. Esses elementos revelariam uma
demitologizao e secularizao no livro do Deuteronmio. Dentre eles so
apontados: a permisso para o abate profano dos animais (cf. Dt 12,15-16); o fato de
que o primognito e o dzimo no so entregues ao santurio ou ao sacerdote, mas
pertencem ao proprietrio (cf. Dt 12,17-18); o ano sabtico e o repouso sabtico so
motivados por razes sociais (cf. Dt 5,12-15; 15,1-4); h um conceito mais abstrato
de Deus: a revelao se d atravs do ouvir e no do ver; tambm o templo o lugar
para a habitao do nome de Deus, porm, Deus mesmo habita no cu (cf. Dt 26,25).
Essas so algumas marcas dentre outras que so vistas como sendo marcas de
secularizao no livro do Deuteronmio63
.
Entre os candidatos composio do livro do Deuteronmio com todas as
caractersticas sapienciais, conceitos teolgicos secularizados, e ainda, com
conhecimento de tratados internacionais, os escribas e os sbios so apontados como
os nicos provveis, pois se entende que somente eles desfrutavam de habilidades
privilegiadas e posio adequada para essa tarefa, antes e tambm depois de Josias64
.
d) Os ancios
A quarta proposta para a autoria do livro do Deuteronmio defende que o
livro foi criao dos ancios de Israel durante o exlio. Os ancios teriam escrito o
livro do Deuteronmio para assegurar que Israel sobreviveria ao desterro. Tais
ancios teriam concludo que nem sacerdote, rei ou profeta, poderiam oferecer
qualquer esperana para o futuro65
.
62
Cf. M. WEINFELD, Deuteronomy, 316-319. 63
Cf. M. WEINFELD, On Demythologization and Secularization in Deuteronomy. In: IEJ 23
(1973), pp. 230-233. 64
Para resenhas e resumos detalhados de vrias obras de M. Weinfeld, bem como crticas das hipteses
apenas sintetizadas aqui, novamente cf. L. J. HOPE (The Origins, pp. 78-117 [resenhas]; pp. 212-255
[crticas]). 65
Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 5-6.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
31
So descartadas as concluses baseadas principalmente nas formas
literrias e em conceitos religiosos, como o fazem as hipteses a favor dos sbios e
escribas, dos profetas ou dos levitas-sacerdotes. Esses elementos so considerados
insuficientes. Argumenta-se que muito pouco sabido sobre o papel dos escribas,
profetas e levitas no ltimo perodo da monarquia66
. Em contrapartida, assume-se
que somente o prprio livro do Deuteronmio capaz de dizer quem foi responsvel
por sua composio67
.
Para negar as hipteses anteriores e afirmar a autoria dos ancios, o
principal pressuposto e ponto de partida que se profetas, levitas e sacerdotes ou
sbios e escribas tivessem produzido o livro do Deuteronmio, seria razovel esperar
que a imagem desses supostos autores fosse retratada de forma positiva no livro que
eles mesmos produziram. Conclui-se, porm, que a forma como esses grupos so
retratados no livro do Deuteronmio no favorece a autoria de nenhum deles. Por
exemplo, se a autoria do livro do Deuteronmio se devesse a algum grupo proftico,
por que os profetas tambm estariam sujeitos pena capital (cf. Dt 13,5)68
?
Acredita-se que a real identificao dos autores do livro do Deuteronmio
deve comear por reconhecer que ele retrata a si mesmo como a Tor autoritativa
escrita para Israel. Com base nisso, deve-se perguntar: quem, no livro do
Deuteronmio, retratado como envolvido com as tradies legais de Israel? Quem
descrito como guardio da tradio e do prprio documento escrito e entregue por
Moiss? A resposta que os ancios so assim descritos69
.
Presumivelmente, o Cdigo Deuteronmico mostra claramente que os
ancios, associados com os juzes e os oficiais, possuem poder legal, mas sua funo
ainda parece focar apenas na esfera local70
. Todavia, na moldura externa do Cdigo
Deuteronmico, os ancios assumem uma posio mais proeminente. Ou eles so
representantes do povo e, portanto, recipientes responsveis pela lei (Dt 5,23; 31,9.),
ou eles esto associados com Moiss e, como tais, participam at da prpria
proclamao da lei (Dt 27,1)71
!
Alm da anlise do papel dos ancios no livro do Deuteronmio,
considera-se tambm a figura do ancio na Histria Deuteronomista72
e em outros
66
Cf. L. J. HOPE, The Origins, p. 3. 67
Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 363-364. 68
Cf. L. J. HOPE, The Origins, p. 4. 69
Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 4-5, 257-315. 70
Cf. p. ex. Dt 19,12; 21,3.19; 22,15; 25,19. 71
Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 267-315. 72
Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 328-352.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
32
textos exlicos73
. A soma dos resultados dessas anlises considerada como
suficiente para definir a autoria do livro do Deuteronmio como obra dos ancios.
e) O povo da terra
A tese de que a autoria do livro do Deuteronmio se deve ao povo da
terra tem seu ponto de partida em breves informaes marginais encontradas nos
dois livros dos Reis. Acredita-se que tais informaes possuem suas fontes nos anais
oficiais da corte de Jerusalm e, portanto, so fontes histricas confiveis74
.
Com base nos dados dos livros dos Reis, sabe-se que depois da morte de
Manasss, Amon tornou-se rei. Em 2Rs 21,23 dito que os servos de Amon fizeram
uma conspirao e o mataram. J em 2Rs 23,24 relatado que o povo da terra
matou os conspiradores e proclamou Josias como rei. Nesse relato, e em outros
lugares (cf. 2Rs 11,14.18), o povo da terra judaico um grupo de homens livres,
talvez proprietrios de terras em Jud. Eles procuravam assegurar a continuidade da
famlia de Davi75
.
Este Josias que chega ao poder desta forma, contudo, uma criana de oito anos
de idade (2Rs 22,1). Isto quer dizer que, durante anos, todo o poder foi exercido
por este am h re judata, por meio dos seus representantes. Mais de trinta
anos depois, por ocasio da morte repentina de Josias, na batalha de Meguido, o
mesmo am h re judata detm o poderainda ou novamente. De acordo
com 2Rs 23,30, ele quem decide a sucesso, escolhendo Joacaz como rei. Este,
porm, no o filho mais velho de Josias e tampouco o herdeiro natural do
trono. Joaquim dois anos mais velho (cf. 2Rs 23,31 e 36) e preterido por
razes polticas...76
.
De acordo com tais informaes, conclui-se que o povo da terra era
formado de judatas, que tiveram em suas mos todo o controle poltico. Presume-se
que, quando uma criana (Josias) foi colocada no trono, o povo da terra governou
diretamente durante muito tempo. Os grupos tradicionais da corte perderam o poder
e, consequentemente, sua influncia poltica, e foram afastados (cf. 2Rs 21,24). O
[povo da terra] no tinha nenhuma fora poltica acima de si, e o estado estava
totalmente em suas mos. Mas numa situao como essa, era necessrio elaborar
73
Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 353-354. 74
Cf. F. CRSEMANN, A Tor, p. 300. 75
Cf. F. CRSEMANN, A Tor, p. 301. 76
F. CRSEMANN, A Tor, p. 299.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
33
um programa que estabelecesse o que estava em vigor e servia de padro de
conduta77
.
O livro do Deuteronmio teria ento nascido precisamente nesse
contexto, pelas mos do povo da terra, com o propsito e servir como padro de
conduta. A partir dessa presumida situao, pretende-se no apenas definir a autoria
do livro do Deuteronmio, como at prover explicao para algumas caractersticas
fundamentais do Cdigo Deuteronmico... com exatido, indo at as formulaes
individuais78
.
f) Concluses sobre autoria
reconhecida a dificuldade de definir com certeza a autoria do livro do
Deuteronmio. Aparentemente, o livro do Deuteronmio reflete o interesse de vrios
grupos. Ele tem inegvel semelhana com os demais livros da Histria
Deuteronomista, bem como ecos comuns com os livros de Ezequiel, Segundo Isaas,
Jeremias, Ageu, Zacarias, Malaquias e Daniel79
. Mas tambm, possvel reconhecer
nele traos de sabedoria ou indicaes que podem acenar para crculos levtico-
sacerdotais. Por fim, no se pode negar que os ancios realmente tm um papel
proeminente no livro do Deuteronmio, e no podem ser simplesmente rejeitados, ao
menos hipoteticamente, como candidatos autoria do livro. Mas ningum ousaria
dizer que todos esses grupos so coautores do livro do Deuteronmio.
Fica evidente, entretanto, que no to simples fechar a questo e se
posicionar a favor de um autor ou nico grupo de autores. O fato, porm, de se
identificar, por exemplo, contatos entre o livro do Deuteronmio e certos livros
profticos, pode significar simplesmente influncia proftica sobre os autores, mas
isso no prova que a autoria do livro do Deuteronmio se deva, irrefutavelmente, aos
crculos profticos. O mesmo poderia ser dito, por exemplo, dos traos sapienciais.
possvel que algum se expressasse usando conceitos sapienciais sem que
necessariamente fosse parte de crculos de sabedoria.
Contudo, sem fechar ou tentar definir a questo, admite-se aqui que os
ancios devem sim ter tido algum papel na composio do livro do Deuteronmio.
Isto parece razovel pelo fato de o livro do Deuteronmio retrat-los como co-
77
F.CRSEMANN, A Tor, p. 300. Grifos do autor. 78
F. CRSEMANN, A Tor, p. 300. 79
Cf. J. H. TIGAY, Deuteronomy (JSP Torah Commentary). Philadelphia: Jewish Publication Society,
1996, p. xxvi.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
34
proclamadores da lei juntamente com Moiss (cf. Dt 27,1)! Tambm o tribunal
central tinha autoridade para proclamar leis com a mesma consequncia e autoridade
mosaico-divina (cf. Dt 17,11)80
. Quer esse tribunal tenha existido historicamente,
quer seja mera idealizao literria, a meno de sacerdotes levitas e juzes
atuando nesse tribunal no poderia indicar que esses grupos de pessoas se sentiam
autorizados a formular leis e introduzi-las no livro do Deuteronmio, valendo-se da
suposta autoridade legada por Moiss81
? Para a presente pesquisa, porm, a questo
da autoria do livro do Deuteronmio como um todo deixada em aberto.
2.2.2.
A data do livro do Deuteronmio
Mesmo atualmente encontram-se comentrios82
, teses83
e artigos84
que
no abriram mo da leitura acrtica do livro do Deuteronmio (e nem do Pentateuco),
e optam por dat-lo na era mosaica (segundo milnio a.C.). Entretanto, desde o incio
do sculo XIX, na exegese histrico-crtica, prevaleceu a associao do livro do
Deuteronmio com a reforma josinica ocorrida em 622 a.C., relatada em 2Rs 22-
2385
. Tal concluso baseou-se na anlise do vocabulrio, estilo literrio e em
conceitos teolgicos do livro do Deuteronmio, principalmente a ideia da
centralizao86
.
80
Segundo J. H. Tigay, (Deuteronomy, p. xxvii), em tempos rabnicos a leitura de Dt 17,11
possibilitou que, no judasmo, os rabis no apenas interpretassem a Tor, mas criassem novas leis
quando necessrio. 81
F. Crsemann (A Tor, p. 145) considera esse tribunal central uma realidade histrica, mas atuante
apenas no pr-exlio. 82
E. H. Merril (Deuteronomy (NAC). Nashville: Broadman & Holman,1994, pp. 22-23) toma como
base para sua argumentao o texto de 1Rs 6,1, onde se afirma que Salomo comeou a edificar o
templo no ano 480 depois da sada do povo de Israel do Egito, coincidindo com o quarto ano do
reinado de Salomo. Segundo ele, that year being, according to the best chronological reconstruction,
967/966 B.C.. O xodo teria iniciado cerca de 1447/1446 e terminado em 1407/1406 a.C. Esta seria
ento a data da formao do livro do Deuteronmio; cf. ainda D. MCINTOSH, Deuteronomy (HOTC).
Nashville: Holman Reference, 2002, pp. 3-4; um pouco mais moderado, J. G. MCCONVILLE,
Deuteronomy (AOTC). Downers Grove: InterVasity, 2002, pp. 21-41. 83
Cf. p. ex. a tese doutoral de S. H. SANCHEZ (Royal Limitation, 2010). 84
Cf. D. I. BLOCK, Recovering the voice of Moses: the Genesis of Deuteronomy. In: JETS 2001,
pp. 385-408; E. H. MERRIL, Deuteronomy and History: Anticipation or Reflection?. In: FM 18
(2000), pp. 57-76. 85
A associao do livro do Deuteronmio com Josias atribuda obra de W. M. L. de WETTE,
(Dissertatio critico-exegetica qua Deuteronomiums a prioribus Pentateuchi libris diversun, alius
cuiusdam recentioris auctoris opus esse monstratur. Jena,1805). Mas alguns padres da Igreja, como
Atansio, Crisstomo, Jernimo e Teodoreto, j identificaram o livro da lei, relatado em 2Rs 22, como
sendo o livro do Deuteronmio (Cf. J. R. LUNDBOM, The Lawbook of the josianic reform. In:
CBQ, 38 (1976), p. 293, n.1). 86
Cf. L. J. HOPE, The Origins, pp. 8-9.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
35
A Datao absoluta do livro do Deuteronmio tornou-se base para a
datao relativa dos livros histricos (ou Profetas Anteriores) na Bblia hebraica.
Notou-se que a legislao do livro do Deuteronmio ordena a centralizao do culto
e, os primeiros reis a fazerem isso foram Ezequias e Josias. O resultado dessa
percepo foi considerar os cdigos e textos que no pressupem a centralizao do
culto, como sendo anteriores a Ezequias. Por outro lado, os textos dos livros dos Reis
que avaliam os reis de Jud por sua observncia centralizao do culto, e passagens
nos livros de Josu e Juzes que esto estilizadas de acordo com a fraseologia
deuteronmica, como consequncia, no poderiam ser anteriores a Ezequias87
. Com o
desenvolvimento da pesquisa, o livro do Deuteronmio passou a ser considerado
tambm a introduo para a assim chamada Histria Deuteronomista (i.e., Dt-
2Rs)88
.
O maior consenso entre os eruditos que o livro do Deuteronmio passou por
expanses redacionais antes de chegar a sua forma final. Todas as demais questes,
porm, so objeto de discusso. Discute-se, por exemplo, quais textos faziam parte do
Deuteronmio primitivo/Proto-Deuteronmio (Urdeuteronomium). Basicamente
discutido se apenas o cerne do material legal (i.e., Dt 12-16) ou se tambm as
parneses em Dt 5-11 devem ser includas no Urdeuteronomium89
.
Alm disso, o fato de se admitir camadas redacionais distintas implica
igualmente em atribuir ao livro do Deuteronmio dataes distintas para cada
camada. Ao passo que a datao dos primeiros estratos (quer seja antes ou durante o
reinado de Josias) tradicionalmente localizada no sculo VII a.C., existe a tentativa
extrema de situar todas as redaes no livro do Deuteronmio antes do exlio
babilnico90
. No outro polo, entretanto, h exegetas que desacreditam todo o valor
histrico de 2Rs 22-23 e, consequentemente, desconectam totalmente o
Urdeuteronomium da reforma josinica e do sculo VII a.C., admitindo o incio do
livro apenas aps 586 a.C.91
.
A forma como o exegeta se posiciona sobre qualquer uma dessas opes
para a origem do livro do Deuteronmio, tambm afetar a maneira como
87
Cf. K. STOTT, Finding the Book of Law: Re-reading the Story of the Book of the Law
(Deuteronomy-2Rs) in Light of Classical Literature. In: JSOT 30 (2005), pp. 155-156. 88
Sobre o nascimento da hiptese e discusso do estado da questo at recentemente cf. T. RMER, A
Chamada, particularmente, pp. 9-50; S. L. MCKENZIE, Deuteronomistic History, pp. 160-167. 89
Cf. J. R. LUNDBOM, The Lawbook, pp. 293-294; T. RMER, The book of Deuteronomy pp.
178-212. 90
Assim, F. CRSEMMAN, A Tor, pp. 292-298. 91
Cf. J. PAKKALA, The Date of the Oldest Edition, pp. 153-159. Os argumentos de J. Pakkala
sero expostos ao ser abordada a hiptese da origem exlica para o livro do Deuteronmio.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
36
compreender o livro do Deuteronmio como um todo. Diante disso, antes de assumir
alguma posio definitiva, pretende-se aqui expor, de forma sinttica, alguns dos
principais argumentos sobre essa temtica. A abordagem a seguir pode ser dividida
nos seguintes tpicos: (1) origem pr-exlica do livro do Deuteronmio e sua
provenincia do Norte; (2) origem pr-exlica do livro do Deuteronmio e sua
provenincia do Sul; (3) origem exlica do livro do Deuteronmio; e (4) as etapas
redacionais do livro do Deuteronmio e sua concluso. Neste ltimo tpico, ser
assumida a hiptese de que o livro do Deuteronmio deve ter sofrido redaes pr-
exlicas, exlicas e ps-exlicas.
a) Origem pr-exlica e provenincia do Norte
Dificilmente algum exegeta dataria a concluso do livro do Deuteronmio
antes do exlio92
, mas comum situar sua origem nesse perodo.
A datao mais remota para a origem do livro do Deuteronmio situa seu
surgimento no reino do Norte entre a parte final do sculo VIII a.C., e incio do VII
a.C. Com a queda do reino do Norte sob o imprio Assrio, o texto primitivo teria
sido trazido para o reino de Jud93
. Essa perspectiva nortista prioriza o contedo do
livro do Deuteronmio como base argumentativa.
Em primeiro lugar, assume-se que o Cdigo Deuteronmico (Dt 12-26*)
uma expanso (e at substituio94
) do Cdigo da Aliana95
que est embasado na
fonte Eloista, presumivelmente situada no Norte em fins do sculo IX a.C., ou
incio do VIII a.C.96
. Nesse caso, admitindo um intervalo de cinquenta ou cem anos,
ainda seria possvel datar o Cdigo Deuteronmico por volta de 750-700 a.C.
Contudo, esta hiptese isolada adequada somente para fornecer uma
datao relativa, indicando que o Cdigo Deuteronmico posterior ao Cdigo da
Aliana. Na busca por uma datao absoluta recorre-se aos mesmos argumentos
usados para a autoria proftico-nortista. Assim, apoia-se no fato de que o livro do
92
Mas F. Crsemann (A Tor, 292-302, particularmente, p. 302) tenta localizar todas as etapas
redacionais do livro do Deuteronmio nos eventos pr-exlicos. Ele no exclui totalmente a hiptese de
ter havido algum pequeno ajuste no perodo exlico, mas no aponta nenhum exemplo disso. 93
Assim I. CAIRNS, Deuteronomy, pp.18-25; J. H. TIGAY, Deuteronomy, pp. xix-xxiv; P. D.
MILLER, Deuteronomy, pp. 2-5. 94
Cf. T. RMER, A Chamada, p. 64. 95
Uma tabela com todas as correspondncias entre o Cdigo da Aliana e o Cdigo Deuteronmico
oferecida por G. VON RAD (Deuteronomy, p. 13). 96
Cf. I. CAIRNS, Deuteronomy, 18-19; Mas F. Crsemann (A Tor, p. 260) prefere datar o Cdigo da
Aliana nas ltimas dcadas do sculo VIII a.C., ou incio do VII a.C.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
37
Deuteronmio e Osias parecem partilhar um background comum. Isso estaria
evidente nas afinidades de linguagem e ensino entre o livro do Deuteronmio e o
livro de Osias97
.
Exemplo disso o fato de que Osias criticou a proliferao de altares e
o uso de pilares de culto e, coincidentemente, tais coisas so tambm proibidas do
livro do Deuteronmio (cf. Dt 12,14; 16,22). Grande destaque tambm dado
atitude crtica de Osias em relao monarquia (cf. Os 8,34; 13,10-11), que tambm
mostra ter similaridades com a lei do rei (Dt 17,14-20)98
. Diante de tais afinidades
conclui-se que, uma vez que Osias um profeta do Norte que atua no sculo VIII
a.C., o Proto-Deuteronmio tambm deve ser considerado assim99
.
Um terceiro argumento baseia-se num aspecto geogrfico. A moldura
externa do Cdigo Deuteronmico faz prescries que devero ser postas em prtica
assim que o povo entrar na terra, precisamente sobre o monte Garizim e Ebal,
prximos a Siqum. So cerimnias que reafirmam o relacionamento de aliana com
Deus (cf. Dt 11,26-32; 27). Diante disso, argumenta-se que, caso o livro do
Deuteronmio tivesse sido escrito em Jerusalm, dificilmente se teria conferido a um
lugar do Israel do Norte uma funo tal, e um papel to prestigioso, que
potencialmente poderia conspirar contra a pretenso de que Jerusalm era o nico
lugar escolhido por Deus para adorao100
.
b) Origem pr-exlica e provenincia do Sul
A argumentao a favor de uma origem no reino do Sul para o livro do
Deuteronmio comea por valorizar questes histricas. O contedo enfatizando o
conceito de centralizao (cf. Dt 12), to caracterstico do livro do Deuteronmio,
pode ter sido redigido como uma legitimao posterior poltica de centralizao que
fora empreendida por Ezequias de Jud (725-697 a.C.)101
. Alm disso, a reforma
josinica (cf. 2Rs 22-23) em 622 a.C., refletindo os conceitos teolgicos da
centralizao deuteronmica, tomada como acontecimento histrico real102
. Para
97
Cf. J. H. TIGAY, Deuteronomy, p. xxiii. 98
Cf. I. CAIRNS, Deuteronomy, p.19; J. H. TIGAY, Deuteronomy, p. xxiii. 99
Cf. I. CAIRNS, Deuteronomy, pp. 18-19. 100
Cf. J. H. TIGAY, Deuteronomy, p. xxiii. 101
Cf. G. BRAULIK, O Deuteronmio, pp. 104-105. 102
Cf. F. CRSEMANN, A Tor, p. 297.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
38
quem parte desse ponto de vista, no se deve perguntar se, mas somente at que
ponto o Deuteronmio que conhecemos existia por ocasio daquele evento103
.
Admite-se, porm, que o relato do livro achado (cf. 2Rs 22)
provavelmente foi estilizado (ou romanceado). Mesmo assim, entende-se que h
plausibilidade histrica para se aceitar que existiu um movimento poltico
centralizador no sculo VII a.C. Essa plausibilidade encontrada no fato de que
houve um vcuo temporrio nos ltimos decnios do sculo VII a.C., criado na Sria-
Palestina, pelo enfraquecimento das estruturas de poder assrias, que conferiu
condies suficientes para que Josias ou seus conselheiros empreendessem alguma
reorganizao poltica e cultual104
. Portanto, mesmo se a reforma josinica no tenha
se baseado na descoberta de um livro, a primeira edio do livro do Deuteronmio
pode ainda ter sido escrita sob Josias105
.
Outro elemento que fala a favor de uma origem no sculo VII a.C., em Jud,
a semelhana entre o livro do Deuteronmio e a linguagem e as ideias presentes
particularmente no tratado de vassalagem Assrio de Esarhaddon (672 a.C.). H
paralelos evidentes entre esse tratado, tanto com as sanes de Dt 13, como com as
bnos e maldies de Dt 28106
. Presume-se que isso fortalece a hiptese de que a
origem do Deuteronmio (i.e., do Urdeuteronomium) se deu no sculo VII a.C., em
Jud.
Outro argumento para a origem pr-exlica, so as chamadas introdues
historizantes aos mandamentos. Quando diversas leis iniciam com a expresso:
quando entrares na terra que YHWH est dando para ti, parece estar pressuposto
que os destinatrios de tais leis habitam na terra, do contrrio, fora da terra, a lei no
teria valor prtico107
.
Tanto a argumentao a favor de uma origem no Norte, ainda no sculo
VIII a.C., ou a favor de uma origem em Jud, no sculo VII a.C., ambas as posies
localizam a origem do Deuteronmio no perodo pr-exlico. Entretanto, existe a
tendncia mais recente de rejeitar essa concluso e situar a origem do livro do
Deuteronmio apenas no perodo exlico.
103
F. CRSEMANN, A Tor, p. 297. Grifos do autor. 104
Cf. T. RMER, A Chamada, p. 60. 105
Cf. T. RMER, A Chamada, p. 60; P. D. MILLER, Deuteronomy, p. 7. 106
Cf. P. D. MILLER Deuteronomy, p. 6. Sobre a relao entre tratados de vassalagem com o livro do
Deuteronmio cf. M. WEINFELD, Traces of Treaty Formulae, pp. 417-427. 107
F. Crsemann (A Tor, pp. 294-297) vai ao extremo de defender que no exlio e ps-exlio no
houve qualquer importante acrscimo no livro do Deuteronmio.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
39
c) Origem exlica do livro do Deuteronmio
A datao exlica para a origem do Deuteronmio uma tendncia
mais recente do que a tradicional datao pr-exlica e, no por coincidncia, a
proposta de uma data posterior comea por desacreditar e desconstruir toda
argumentao que tem fundamentado a associao do Urdeuteronomium seja com
Josias ou com qualquer outra realidade pr-exlica.
A dissociao com Josias se inicia por negar a autoridade histrica de 2Rs
22-23 que, tradicionalmente, tem-se crido ser um evento chave, no qual se implantou
a centralizao do culto. Argumenta-se que esse texto de 2Rs 22-23 um dos mais
editados da Bblia hebraica, e que todos os seus detalhes so debatidos com pouco
consenso entre os exegetas, por isso, alega-se que tal texto no deveria ser usado
como base de uma teoria mais ampla108
.
Alm disso, so feitos estudos comparativos entre o relato de 2Rs 22-23
sobre o suposto livro achado durante o reinado de Josias e alguns exemplares da
literatura clssica da Grcia e Roma, tais como Histrias de Herdoto; Histria
Fencia, escrita por Filo de Byblos; A Guerra de Troia, recontada por Dicktys de
Creta; As Maravilhas Alm de Thule, escrita por Antonius Diogenes109
. Esse estudo
comparativo revela semelhanas e diversos motifs comuns entre essa literatura
clssica e o relato de 2Rs 22-23.
Os motifs comuns entre a literatura clssica e 2Rs 22-23 so: (a) um
documento achado em tmulos ou templos; (b) o documento havia passado um
longo tempo fora do conhecimento humano antes de ser reencontrado; (c) o livro de
autoria de algum indivduo de reputao no passado; (d) o livro achado requer
traduo/explicao para que possa ser entendido; (e) toda histria envolve a
participao de um lder que oficialmente endossa o livro110
.
Pelo fato de essas histrias da literatura clssica serem fictcias, a
concluso bvia a que se chega que, tambm o livro da lei, relatado em 2Rs 22-23,
fictcio e, consequentemente, nunca teria existido fora do texto bblico. O livro
encontrado, como narrado em 2Rs 22-23, seria, ento, mera estratgia ficcional para
dar credibilidade histria contada. Se isso for admitido como correto,
automaticamente 2Rs 22-23 no serve de forma alguma para determinar a data do
108
Cf. J. PAKKALA, The Date of the Oldest Edition, p. 390. 109
Cf. K. STOTT, Finding the Book of Law, pp. 161-165. K. Stott traz tambm informaes sobre data de composio e os modos como essas obras foram preservadas. 110
Cf. K. STOTT, Finding the Book of Law, pp. 161-165.
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1111993/CA
40
livro do Deuteronmio, inclusive no haveria mais porque associ-lo a Josias e
suposta reforma de 622 a.C. (Inclusive, nota-se que na verso de 2Cr 34, a reforma
acontece antes do achado do livro, portanto, no dependeu dele)111
.
Para quem defende essa hiptese (a natureza fictcia de 2Rs 22-23), o
foco da anlise em textos como 2Rs 22-23 no deveria ser sobre o que eles dizem do
passado, mas apenas como eles apresentam o passado 112
.
Junto com essa dissociao do livro do Deuteronmio do relato e da
poca de Josias, acrescentam-se ainda outras razes para se considerar a edio mais
remota do livro do Deuteronmio apenas no perodo exlico. Dez razes so aqui
sintetizadas:
(1) O monarca no exerce nenhum papel no Urdeuteronomium, o que
seria excepcional, considerando a importncia do monarca na religio e sociedade do
AOP. Seria difcil entender tal documento fundamental regulando a atividade cltica
da sociedade com considervel impacto sobre outras atividades no Estado, sem o rei
comission-las ou nem mesmo ser levado em conta. Apenas Dt 17,14-20 menciona o
rei e, ainda assim, esse texto tambm restringe as atividades, o poder e as riquezas do
rei. Essa postura de Deuteronmio em relao ao rei est em ntido contraste com
outros cdigos de lei do AOP, como o cdigo de Hamurabi, prlogo de leis como
Lipit-Ishtar, UrNammu e Eshnunna. Ao contrrio de favorecer alguma relao com
Josias, esse contraste indicaria sim que, quando o Urdeuteronomium foi escrito, no
havia rei em Jud113
.
(2) O Proto-Deuteronmio no implica em uma organizao e
infraestrutura de Estado. Se o livro do Deuteronmio tivesse sido escrito durante o
tempo quando Jud era um estado independente com uma longa histria, o Estado