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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Cleber Vinicius do Amaral Felipe
Itinerários da conquista: uma travessia por mares de papel
e tinta (Portugal, séculos XVI, XVII e XVIII)
Campinas
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta
pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 08
de setembro de 2015, considerou o candidato CLEBER VINICIUS DO AMARAL
FELIPE aprovado.
Prof. Dr. Paulo Celso Miceli
Profa. Dra. Adma Fadul Muhana
Prof. Dr. Guilherme Amaral Luz
Prof. Dr. Luiz Cesar Marques Filho
Prof. Dr. Leandro Karnal
A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo
de vida acadêmica do aluno.
AGRADECIMENTOS
Ao professor Paulo Miceli, pela orientação e pelas sugestões sem as quais o
trabalho não alcançaria o ponto em que chegou.
Aos professores Alcir Pécora e Luiz Marques, pela leitura atenta do texto de
qualificação.
Aos professores integrantes da banca de defesa, Adma Muhana, Guilherme Amaral
Luz, Leandro Karnal e Luiz Marques, que gentilmente se dispuseram a ler a versão
final da tese.
Ao CNPq, pela bolsa de estudos.
Aos professores da Unicamp, pelo aprendizado.
Aos professores da UFU, pela participação em minha formação.
Aos meus pais, pelo carinho e pelas orações.
Aos colegas, pela convivência.
À Cláudia, pelo amor e por singrar ao meu lado no decorrer de todo o trajeto
acadêmico.
Ao Heitor, filho querido, que logo vai chegar para tripular a família.
A Deus, por fazer deste itinerário uma conquista.
RESUMO
Este estudo tem por objeto as peripécias marítimas retratadas em exemplares
épicos e relações de naufrágio que circularam ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII
em Portugal. Estes acidentes marítimos devem ser compreendidos a partir de uma
concepção providencialista da expansão portuguesa. No limite, este
providencialismo ilumina esta experiência e supõe uma promessa redentora em
meio a um mundo de provações e desventuras. O incidente pode ser entendido,
portanto, como elemento de uma poética capaz de provocar uma compreensão
espiritual da expansão portuguesa nos quadros de uma história salvífica, da qual os
portugueses seriam coautores. A relação entre a virtude ético-política da prudência e
a virtude teologal da caridade parece ser uma chave de compreensão da inventio
dos súditos portugueses nas práticas letradas aqui estudadas, pois supõe,
simultaneamente, a “política do céu” e a “política das obras”, isto é, a presença de
Deus na história e a existência de homens capazes de obrar conforme Sua vontade.
Palavras-chave: epopeia; relatos de naufrágio; experiência ultramarina.
ABSTRACT
This is a study of the maritime adventures present in some narratives that have
circulated over the centuries XVI, XVII and XVIII in Portugal. These maritime
accidents must be understood as a providential design of portuguese expansion.
Ultimately, this providentialism illuminates this experience and assumes a redeeming
promise in the midst of a world of trials and misfortunes. The incident can be
understood, therefore, as part of a poetics capable of causing a spiritual
understanding of Portuguese expansion in the frames of a salvific history, which the
Portuguese would be co-authors. The relationship between virtue ethical-political of
prudence and the theological virtue of charity seems to be a key to understanding the
inventio of the Portuguese subjects in literacy practices studied here as it assumes
simultaneously the presence of God in history and the existence of men capable of
obrar according to His will.
Keywords: epic; shipwreck’s genre; overseas experience.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 10
CAPÍTULO 01 ................................................................................................................................... 21
GÊNERO ÉPICO ................................................................................................................................ 21
CAMÕES E OS LUSÍADAS .................................................................................................................. 24
NAUFRÁGIO DE SEPÚLVEDA.............................................................................................................. 46
CAPÍTULO 02 ................................................................................................................................... 55
A COLETÂNEA BRITIANA .................................................................................................................... 55
CAPÍTULO 03 ................................................................................................................................... 92
A EXPERIÊNCIA TRÁGICA .................................................................................................................. 92
LÁGRIMAS DE PORTUGAL ................................................................................................................. 99
RETRATOS DE TEMPESTADES ......................................................................................................... 107
O CABO DAS TORMENTAS E A TRAGÉDIA MARÍTIMA .......................................................................... 126
CAPÍTULO 04 ................................................................................................................................. 141
RAZÃO DE ESTADO E O CORPO MÍSTICO PORTUGUÊS ....................................................................... 141
PRODUÇÃO DE CONCÓRDIA ............................................................................................................ 148
O AMOR ........................................................................................................................................ 161
O AMOR PRÓPRIO E O AMOR NÃO CORRESPONDIDO ENTRE OS DEUSES ............................................. 171
A EXPERIÊNCIA DO SACRIFÍCIO........................................................................................................ 182
A BOA-MORTE ................................................................................................................................ 190
A MÁQUINA DO MUNDO E O MISTÉRIO PROVIDENCIAL ........................................................................ 199
CAPÍTULO 05 ................................................................................................................................. 208
CONSIDERAÇÕES SOBRE A HOSPITALIDADE ..................................................................................... 208
O VELHO DO RESTELO E A CRÍTICA À COBIÇA ................................................................................... 231
RETA RAZÃO APLICADA AO AGIR ...................................................................................................... 248
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................ 268
FONTES .......................................................................................................................................... 270
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................................... 273
PRÓLOGO
Para ler historicamente exemplares poéticos como Os Lusíadas (1572),
de Camões, e o Naufrágio de Sepúlveda (1594), de Jerônimo Corte-Real, e relatos
de naufrágio, como aqueles que compõem a História Trágico-Marítima (1735-1736),
de Bernardo Gomes de Brito, o leitor deve dominar vários repertórios de informação:
a instituição retórica (preceituada por Aristóteles, Cícero, Quintiliano...), preceitos do
gênero épico (desenvolvidos por Aristóteles, Horácio, Longino...), informações
históricas (fornecidas por João de Barros, Fernão Lopez de Castanheda, Pero de
Magalhães Gandavo, Diogo do Couto...), referências poéticas (retiradas de Homero,
Virgílio, Horácio, Boiardo, Ariosto...), mitológicas (aludidas por Hesíodo, Ovídio...),
filosóficas (apresentadas por Platão, Sêneca, Estrabão, Macróbio...), éticas
(catalogadas por Aristóteles, Tomás de Aquino...), cristãs (escritas por S. Basílio, S.
Gregório, S. Paulo, S. Dionísio Areopagita...). Além disso, é recomendável o
conhecimento de cartas náuticas, de conceitos próprios da marinhagem, de
expressões latinas, de categorias astrológicas e de tratados de geografia. Mesmo
supondo a possibilidade de fazer todas estas leituras e refazer as escolhas de
poetas e narradores dos séculos XVI-XVIII, não resta dúvida de que este
procedimento é sempre parcial e provisório, pois discorrer sobre um mundo extinto
significa admitir a impossibilidade de reconstitui-lo em sua completude. Logo, refazer
os passos dos homens de outrora não significa ressuscitar suas intenções ou
vontades, mas repor suas escolhas narrativas, levantar hipóteses sobre seus
encadeamentos e propor uma forma verossímil de concebê-las. Nestes termos,
admite-se a possibilidade de conhecer os códigos linguísticos e as circunstâncias de
sua produção sem, no entanto, desconsiderar a enorme distância espaço-temporal
que nos separa deste mundo que não mais existe a não ser pelas ruínas que
atravessaram os séculos para chegar até nós.
10
INTRODUÇÃO
As experiências “trágico-marítimas” das quais nos ocupamos devem ser
compreendidas a partir de uma concepção providencialista da expansão portuguesa.
No limite, é este providencialismo que ilumina a experiência “trágica”, não se
tratando, portanto, do incidente como fim ruinoso e funesto, mas de um
acontecimento penoso acompanhado de uma promessa redentora em meio a um
mundo de provações e desventuras. As lágrimas, por exemplo, entendidas sob uma
perspectiva católica contrarreformada, não são reflexo de um pessimismo, mas
muitas vezes a própria manifestação da sabedoria do homem prudente e ajuizado,
que percebe as misérias do mundo e, concomitantemente, a graça misericordiosa do
perdão divino. Nestes termos, as lágrimas poderiam ser apreendidas como tópicas
de purgação, purificação, penitência. O “trágico”, neste sentido, também pode ser
entendido como uma poética capaz de provocar uma compreensão espiritual da
expansão portuguesa nos quadros de uma história salvífica, da qual os portugueses
seriam coautores. É por esta razão que o termo segue entre aspas, afinal, o que de
fato pode ser concebido como trágico nestas circunstâncias históricas? Na definição
proposta por Rafael Bluteau na primeira metade do século XVIII, trágico designa o
gênero poético que Aristóteles, dentre outros, preceituou, mas também algo que
sucedeu de forma “nem sempre” triste e funesta.1 A ponderação deste clérigo deve
ser levada em consideração quando o termo for utilizado ao longo deste trabalho
para designar os incidentes marítimos.
Vários termos foram e continuam sendo utilizados para caracterizar e
diferenciar as mais diversas “literaturas” produzidas entre os séculos XVI e XVIII:
“oficial”, “marginal”, “eufórica”, “disfórica”, “positiva”, “negativa”, “épica”, “antiépica”,
“crítica”, “acrítica”, “heroica”, “anti-heroica”, “imperial”, “anti-imperial”, “fictícia”,
“realista”, “triunfalista”, “pessimista”, “glorificante”, “decadentista”, “conformista”,
“reacionária”, “renascentista”, “maneirista”, “barroca”. Alguns conceitos afirmam um
suposto posicionamento ideológico ou político; outros buscam precisar as intenções
e inclinações do “autor” e/ou o teor de suas palavras; uns poucos nomeiam a
estética à qual os textos supostamente estariam filiados. Todas estas categorias, da
forma como normalmente são utilizadas, carregam consigo anacronismos, pois
1 BLUTEAU, Rafael. Vocabulário Português e Latino (...). Colégio das Artes da Companhia de Jesus: Coimbra, 1712-1728, vol. 8, p. 236.
11
pressupõem noções ou práticas posteriores aos objetos que pretendem categorizar.
O próprio termo literatura é problemático, pois significa, neste caso, erudição,
ciência, “notícia das boas letras”.2 O literato, portanto, seria um homem “de grande
literatura”, douto, discreto, versado nas letras, e não o responsável por um registro
ficcional dotado de autonomia estética.
Em 1872, Joaquim Nabuco publica o livro Camões e os Lusíadas, obra na
qual recapitula os traços que considera mais marcantes na epopeia em questão. Ele
afirma tratar-se de um “poema nacional” pautado em “patriotismo puro”, que supera
as obras de Virgílio e de Dante, pois une o “sentimento suave da Eneida” e as
alegorias “imponentes” da Divina Comédia. Nabuco, ao ler Camões, afirma sentir o
“perfume de mocidade e de originalidade” por tratar-se do “esforço de uma única
inteligência”, ao contrário das poesias de Homero e Virgílio, por exemplo, que
denotavam o “gênio de muitas gerações”.3 Num livro mais recente, António José
Saraiva atribuiu às personagens d’Os Lusíadas falta de vida e ânimo, supondo a
inexistência do heroísmo entre elas. O autor desconfia que o foco da narrativa seja
as deidades mitológicas, e não Vasco da Gama e seus pares.4 Além disso, Saraiva
contrapõe uma forte “ideologia cavaleiresca” do poeta, pautada em costumes
medievais como a nobreza de armas, e uma inclinação ao “humanismo” que
justificaria a adoção de um plano mitológico.5
2 Idem, vol. 9, p. 562. 3 Ver: NABUCO, Joaquim. Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artistico. 1872, pp. 69-85. 4 Muitas vezes as personagens mitológicas, sob o efeito de prosopopeia, são consideradas aquelas que realmente agem no decorrer das narrativas épicas. António José Saraiva afirma que os deuses não são “simples retórica, mas as figuras com que se ata e desata a própria fábula do poema” e considera que “n’Os Lusíadas não há outras personagens vivas senão os deuses”, o que delega aos heróis um papel de meros coadjuvantes, que “limitam-se a presenciar, a esperar e a agradecer”. Se entendermos na mitologia uma função alegórica, que muitas vezes dá a entender a presença dos desígnios da providência, a afirmação de Saraiva se justifica. Contudo, o herói não apenas presencia, espera e agradece como também lê, nas entrelinhas, a matéria providencial, e age como instrumento de Deus, para a materialização de suas vontades. A esse respeito, ver: SARAIVA, António José. Luís de Camões: estudo e antologia. Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, pp. 158-166. 5 Enquanto Saraiva se refere à falta de vivacidade das personagens de Camões, João Adolfo Hansen chama a atenção para a encenação poética de um ânimo moderado e afinado à prudência e bom juízo aristotélicos, não se tratando, portanto, de passividade ou ausência de ímpeto heroico. Ao contrário dos deuses mitológicos, que agem com intensidade patética, Hansen acredita que Gama “sempre mantém o caráter prudente”, e pondera: “se a ação de Vasco da Gama é mais oratória e eloquente que épica e heroica, isso ocorre, contudo, não porque Camões erre poeticamente, mas porque o inventa como emblema das virtudes cristãs e fidalgas” salientando, em seguida, que “toda virtude cristã é heroica”. Hélio Alves, por sua vez, afirmou que a representação de Vasco da Gama “fornece a informação e a motivação necessárias para ser interpretada, no seu todo, como uma denúncia de falso heroísmo”, uma vez que boa parte de suas ações ao longo do poema acaba por reproduzir “comportamentos moralmente intoleráveis”, reduzindo as possibilidades da admiratio épica. Para mais informações, ver: HANSEN, João Adolfo. Introdução: Notas sobre o gênero épico. In:
12
No que se refere à constatação de Saraiva sobre a existência de um
Camões “repartido em pedaços”,6 o que se percebe é uma consciente mobilização
de figuras de elocução que imita e estiliza a matéria histórica, emula7 os grandes
cânones poéticos e retoma lugares comuns referentes às grandes batalhas/cruzadas
travadas no Oriente, à luz de uma história sacra. Por outras palavras, a matéria
celebrada no poema de Camões encontra-se em harmonia com os protocolos
político-teológicos regidos pela monarquia portuguesa, e as provas argumentativas
incorporadas no poema seguem de perto os manuais retóricos, por isso tendem a
instruir e deleitar o seu público, e não a confundi-los com obscurantismos e
contradições.
José Cândido de Oliveira Martins pondera sobre o contexto no qual a
História Trágico-Marítima foi publicada e, em seguida, discorre sobre o gênero ao
qual ela se articula, entendendo-o como um misto de “crônica” e “reportagem
jornalística”, de enorme circulação pela sua “vivacidade” e “dramatismo”. Integrante
da “literatura de viagens”, este gênero, marginal em relação ao “sistema literário
instituído” e eivado por “uma mundividência maneirista ou mesmo barroca”,
apresentar-se-ia como contrário à ideologia das descobertas. Citando Antonio
Tabucchi, Martins afirma que a História britiana seria, por excelência, a “antiepopeia
das descobertas”, o reverso da medalha das gestas heroicas dos portugueses nos
mares.8 A visão crítica e antiépica, portanto, aparece como reação à decadência que
assolava Portugal e como fundamento de uma “literatura anti-heroica e anti-
TEIXEIRA, Ivan. (org.). Épicos: Prosopopéia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A Confederação dos Tamoios: I-Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 75; HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 182; ALVES, Hélio J. S. Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001, p. 511. 6 SARAIVA, António José. Luís de Camões: estudo e antologia. Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, p. 166. 7 A emulação nos remete à apropriação e re-contextualização de argumentos e procedimentos retóricos inscritos na tradição do gênero – procedimento recorrente na poesia épica dos séculos XVI-XVII. Não se trata de servilismo ou imitação pueril do engenho poético de outrora, mas da tentativa de incorporação das partes mais belas e difíceis do costume, ainda que para valer-se delas em outro contexto. Em outras palavras, o poeta que emula procura alinhar o seu texto à autoridade da obra imitada, esperando que o leitor pudesse identificar a fonte imitada para poder julgar as conveniências da emulação e a nova adequação dos lugares-comuns. O engenho, portanto, é proporcional à capacidade do poeta de apropriar-se do que há de mais agudo nas instituições do mundo antigo, recorrendo a fontes referenciais para causar igual deleite, ainda que a matéria poética verse sobre outros padrões de excelência. Ver: HANSEN, João Adolfo. Introdução: Notas sobre o gênero épico. In: TEIXEIRA, Ivan. (org.). Épicos: Prosopopéia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A Confederação dos Tamoios: I-Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, pp. 17-25. 8 De acordo com Tabucchi, a História Trágico-Marítima “sarebbe restata nella letteratura portoguese come l’anti-epopea per eccelenza delle scoperte, il rovescio della medaglia delle gesta eroiche dei portoghesi sui mari”.
13
imperial”. Vislumbra-se, portanto, uma “retórica da decadência”, de tom mais realista,
escuro e trágico, contraparte de uma “retórica historiográfica ou ideológica”, vertente
“acrítica” de exaltação do empreendimento português.9
É possível distinguir, em geral, três posturas recorrentes no que se refere
aos estudos da História Trágico-Marítima: uma delas apreende esta narrativa como
gênero novo, noticioso, marginal, híbrido, escrito com maior “liberdade” em relação
aos protocolos retóricos se comparado aos gêneros “canônicos”;10 outra costuma
associa-los à estética maneirista ou barroca para justificar a presença de uma
suposta “retórica da decadência”;11 a última destaca seu teor “disfórico” e apreende
os relatos como sendo a contraparte “realista” da fantasiosa “euforia” épica.12 Por
outras palavras, os relatos de naufrágio são analisados (1) a partir de um suposto
“realismo” e de um compromisso em noticiar sem recorrer a artifícios retóricos, (2)
através de categorias românticas que supõem termos anacrônicos como “estética”,
“trauma”, “decadência”, e (3) como gênero “crítico” e, por extensão, antiépico, por
supostamente ferir ou reagir à “ideologia” portuguesa tão bem empregada na
epopeia lusíada e na historiografia de João de Barros, por exemplo. Parece-nos que
estes três procedimentos partem, respectivamente, de três equívocos: o primeiro de
um conceito tortuoso de retórica e de uma leitura anacrônica do gênero histórico; o
segundo busca filiar os exemplares deste gênero a movimentos literários do século
9 Ver: AGUIAR E SILVA, Vítor (coord.). Dicionário de Luís de Camões. São Paulo: Leya, 2011. 10 Para Lanciani, a HTM seria o “reverso da medalha das exaltantes crônicas oficiais”. Tratar-se-ia de uma literatura não imperialista de consumo, semelhante às reportagens jornalísticas. Angélica Madeira destaca o aspecto híbrido do gênero, escrito de forma “livre” se comparado aos cânones da retórica. Antecipando as personagens alegóricas do Barroco, esta literatura apresenta, segundo a autora, um cenário de crise que não abrange apenas Portugal, mas a Europa como um todo. Ver: LANCIANI, Giulia. Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII. Portugal: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979, pp. 28-29; MADEIRA, A. Livro dos naufrágios: ensaio sobre a história trágico-marítima. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2005. 11 Custódio afirma que se trata de uma “antiepopeia” ou contraparte às crônicas e histórias oficiais, que apresenta nova “mentalidade estética” e esboça um retrato “original” dos navegantes numa conjuntura de crise. Em vários aspectos, afirma o autor que o relato de naufrágio antecipa características do Barroco. Ver: CUSTÓDIO, Pedro Balaus. A História Trágico-Marítima: do herói ao anti-herói (Dissertação de mestrado). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1992. 12 Para Christine Zurbach, o relato de naufrágio seria uma espécie de “antiepopeia dos Descobrimentos” destinada ao “consumo de massas”, tratando-se de um objeto literário “híbrido” e disfórico, por relatar o “fracasso” da empresa lusitana. José António Costa Ideias afirma tratar-se de um gênero “novo”, de conotação “trágico-disfórica”, configurando uma “antiepopeia dos descobrimentos”. Ver: ZURBACH, Christine. História e ficção nos relatos de naufrágio. O caso da “Relação da muy notavel perda do Galeão Grande São João”. In: SEIXO, Maria Alzira; CARVALHO, Alberto (orgs.). A História Trágico-Marítima – Anpalises e perspectivas. Lisboa: Edições Cosmos, 1996; IDEIAS, José António Costa. A Relação de viagem e naufrágio da nau “São Paulo”, de Henrique Dias. Consagração martirológica e libelo acusatório. In: SEIXO, Maria Alzira; CARVALHO, Alberto (orgs.). A História Trágico-Marítima: análises e perspectivas. Lisboa: Edições Cosmos, 1996.
14
XIX, como se fosse possível “ajustar” suas particularidades às teorizações
românticas e psicologistas que supõem a naturalidade de categorias como
“literatura”, “estética”, “pessimismo”; o último, por fim, utiliza pares de conceito como
“euforia/disforia”, “épico/antiépico”, “crítico/acrítico” pressupondo uma dicotomia
(uma literatura “oficial” e outra “marginal”) que dificilmente acomodaria a diversidade
dos gêneros retóricos.
As práticas letradas dos séculos XVI-XVIII eram doutrinadas em
conformidade com os domínios da retórica, ou seja, dividiam-se em gêneros e
subgêneros com regras e preceitos bem definidos.13 Aristóteles definiu a retórica
como sendo a contraparte da dialética, tendo por objetivo “discernir os meios de
persuasão em cada caso”.14 A persuasão tornar-se-ia possível de duas formas: uma,
independe da arte, se pauta nos testemunhos e confissões mediante tortura. A
outra, baseada na arte, ajuda o orador a encontrar no costume (consuetudo)
argumentos eficazes, levando-se em consideração a ocasião, a matéria tratada e os
ouvintes. Por outras palavras, ele elenca lugares-comuns15 retóricos para convencer
13 Os gêneros “são protocolos que classificam e hierarquizam as matérias tratadas segundo usos particulares, oficiais e não-oficiais, tornando-as adequadas a destinatários específicos compostos como "leitores implícitos" na variação estilística da forma. A formalização das regras dos vários gêneros impede, quando se considera sua mediação, que se tome o discurso como transparência dando acesso direto a um "real" pretotalizado. O trabalho define o discurso como prática, propondo que a reconstituição das regras que o formalizam pode impedir, por exemplo, que um discurso deliberativo produzido em circunstância oficial seja lido univocamente, ou que uma desqualificação epidítica formulada em circunstância polêmica seja tomada como informação verdadeira”. HANSEN, João Adolfo. Barroco, Neobarroco e Outras Ruínas. In: Floema Especial (UESB), ano II, n. 2, 2006, p. 13. 14ARISTÓTELES. Retórica. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011, livro I, 1, 1355b10, pp. 43-44. 15 Lugar-comum (topos entre os gregos, locus entre os romanos), neste caso, não deve ser entendido como ideia de senso comum repetida como clichê. Trata-se de um esquema de argumentação no ato da produção de discursos. Retoricamente, Aristóteles cogita a possibilidade de colecionar topoi ou argumentos gerais, mobilizados para a discussão de coisas prováveis (endoxa) com a finalidade de gerar persuasão. Em Cícero, o locus era como um molde, definido como “sede do argumento”. Seus usos são partilhados coletivamente, a partir da imitação (mímesis aristotélica ou imitatio latina), o que sugere não uma repetição mecânica e servil, mas uma variação elocutiva efetuada por meio da imitação. Cícero diz que “o lugar é escrito na tabuinha de cera da mente como uma questão indeterminada (quaestio infinita) ou argumento genérico que o orador e o poeta acham em elencos que memorizam como um molde que preenchem com uma questão determinada ou particular da causa de que tratam (quaestio finita)”. Por isso, retoricamente, há dois discursos no discurso: “o dos lugares-comuns de cada gênero, que são memorizados, achados e aplicados como teses ou questões genéricas e indeterminadas, e o das referências particulares, que especificam e variam os lugares indeterminados como hipóteses ou questões determinadas”. Ver: HANSEN, João Adolfo. Lugar-comum. In: MUHANA, Adma, et. al. (orgs.). Retórica. São Paulo: Annablume; EIB, 2012, pp. 166-167. Ao definir o lugar comum como “sedes argumentorum”, Quintiliano afirma que ele não deve ser buscado indiscriminadamente, em qualquer lugar, pois a busca requer precisão. Para tanto, ele utiliza o símile dos peixes, que podem ser encontrados em regiões específicas, diferindo em termos de habitat, ou da profundidade na qual se encontram. O mesmo vale para os argumentos. Ver:
15
e persuadir, pautando-se na endoxa (argumentos prováveis, correspondentes à boa
opinião) e no decoro (adequação do discurso ao auditório, às circunstâncias e ao
assunto).16
Aristóteles distingue três espécies de retóricas ou três gêneros oratórios:
retórica deliberativa, feita como exortação a fazer ou não fazer coisas; tratando do que é vantajoso e desvantajoso, relaciona-se com o futuro; retórica judicial ou forense, feita como acusação ou defesa; tratando do justo ou do injusto, relaciona-se principalmente com o passado. Retórica epidítica: feita como elogio ou vituperação, trata do nobre e do vil e se relaciona com o presente. Quando fala de gênero deliberativo, sobre o futuro, o orador usa lugares-comuns como “o útil, o honesto, o fácil, o agradável, o necessário, o que se deve fazer, o que se deve evitar, o que se deve temer, o que se deve esperar” etc. No gênero epidítico, faz o elogio de coisas boas e belas e o vitupério de coisas más e feias, fala de lugares como “os bens (males) do corpo, a beleza e a feiura; e os bens (males) do ânimo ou da alma, as virtudes e os vícios”. No gênero judicial, em que se ocupa do passado, fala por exemplo “da culpa (da inocência) do réu, do lugar do crime, dos instrumentos do crime, das motivações, das leis, dos castigos” etc.17
No que diz respeito à efetuação do discurso, Aristóteles determina quatro
etapas fundamentais: a inventio (busca de coisas verdadeiras ou verossímeis que
tornam provável a matéria discursiva),18 dispositio (distribuição/arranjo das coisas
QUINTILIANO. Institutio oratoria. Edizione con testo a fronte a cura di Adriano Pennacini. Torino: Einaudi, 2001, v. 1, livro V, 10, 20, p. 565. 16 O decoro, para Horácio, é a união de duas noções: a de verossímil, que em Aristóteles é o resultado da imitação, e a de conveniência, pressuposto da persuasão. Trata-se, assim, da “unidade da obra poética adquirida pela concórdia de suas partes em relação tanto à matéria, aos fins, e ao auditório, como ao poeta, e contrária portanto a toda ‘monstruosidade’ e ‘bizarria’, desprovida de ordenação interna, em que os sujeitos e os predicados não se correspondem, em que os termos não se combinam, em que cada parte diverge do todo”. Adma Muhana trata, também, do decoro seiscentista, que “tem estabelecido qual combinação de particulares compõe o todo verossímil em cada um dos gêneros poéticos – e neste sentido ‘decoro’ passa a englobar ‘verossímil’. Sabido pelas artes retórica e poética que há três estilos de dizer (humilde, medíocre e grave), três gêneros de discurso (judiciário, deliberativo e demonstrativo) e três espécies imitativas (cômica, trágica e épica) e que cada um detém seu próprio verossímil, as poéticas investigam qual combinação de particulares eles comportam”. Ver: MUHANA, Adma. A epopéia em prosa seiscentista – uma definição de gênero. São Paulo: EDUNESP, 1997, pp. 53-55. O decoro, no caso, é determinado pelo costume (consuetudo), através do qual o poeta atinge excelência no gênero que exercita. O costume determina “o decoro interno do poema como adequação das suas partes ao todo e, deste, aos preceitos da auctoritas imitada. Simultaneamente, prescreve o decoro externo como adequação verossímil à recepção”. HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o gênero épico”. In: TEIXEIRA, Ivan. (Org.). Épicos: Prosopopéia / O Uraguai / Caramuru / Vila Rica / A Confederação dos Tamoios / I Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 20. 17 HANSEN, João Adolfo. Lugar-comum. In: MUHANA, Adma, et. al. (orgs.). Retórica. São Paulo: Annablume; EIB, 2012, pp. 165-166. 18 Na instituição retórica, invenção (do latim inventio, do grego heuresis) significa achar, encontrar. Nesse caso, achar/encontrar coisas verdadeiras ou semelhantes ao verdadeiro da opinião.
16
pensadas e imaginadas),19 elocutio (uso de palavras adequadas)20 e actio
(dramatização das coisas e palavras para uma audiência). A estas quatro partes, os
latinos acrescentam uma quinta: a memoria (que o anônimo da Retórica a Herênio
define como “tesouro das coisas inventadas” e “guardiã de todas as partes da
retórica”, o que é repetido por Cícero e por Quintiliano).21 Em suma, o orador busca
lugares-comuns em sua memória, elenca aqueles que convêm à matéria que quer
tratar, confere-lhes um arranjo apropriado, escolhe palavras convenientes e define a
forma adequada de exprimi-las.22 Em cada um dos gêneros oratórios, “aplicam-se
lugares de invenção, ordens de disposição e clarezas de elocução que efetuam
verossimilhanças e decoros específicos”.23
Quanto ao estilo, Aristóteles diz que o orador “não deve incorporar nem
baixeza nem exagero, mas ser apropriado ao seu tema”.24 Na prosa, por exemplo,
ele prescreve a utilização de procedimentos menos refinados, por tratar-se de um
assunto mais ordinário. Certas ações, como a de um escravo ou de um homem
muito jovem proferindo belas frases em torno de um tema trivial, ferem o decoro, por
isto são inadequadas. Mesmo na poesia, diz ele, a expressão conveniente pode ser
condensada e atenuada, ou às vezes amplificada. Neste caso, o autor de um texto
em prosa deve dissimular a sua arte e dar a impressão de discursar naturalmente, e
não com artifícios.25 Logo, não se deve “falar vulgarmente de assuntos importantes,
19 Quintiliano utiliza um símile para mostrar a ineficiência da invenção sem a disposição: para a construção de um edifício, não é suficiente recolher pedras, madeira e outros materiais indispensáveis, pois é necessário habilidade para que os construtores possam dispor-lhes e colocar-lhes oportunamente. O mesmo sucede com a arte oratória. Por esta razão, a disposição é a segunda das cinco partes da retórica, porque sem ela a invenção não apresenta nenhum significado. Além disso, Quintiliano diz que uma monstruosidade é criada se as partes do corpo humano ou as partes de uma estátua são dispostas sem harmonia, o que também ocorre no discurso. QUINTILIANO. Institutio oratoria. Edizione con testo a fronte a cura di Adriano Pennacini. Torino: Einaudi, 2001, v. 2, livro VII, proêmio, 2, p. 3. 20 No caso, valendo-se de outro símile, Quintiliano diz que o discurso sem elocução é semelhante à espada que continua embainhada. É preciso conhecimento de técnicas, daí a conveniência de exercícios e da imitação. Idem, livro VIII, proêmio, 15, p. 123. 21 [CÍCERO, M. T]. Retórica a Herênio (c. 82 a.C.). São Paulo: Hedra, 2005, livro III, 28, p. 181. 22 Como diz Quintiliano, a retórica é a ciência do falar bem, sendo útil, mas também uma arte e uma virtude. Sua matéria são todos os argumentos sobre os quais se quer falar. Divide-se em três gêneros, e cada um deles é constituído de ideias e palavras. No que se refere às ideias, deve-se resguardar a invenção, às palavras, a elocução, e ambas devem ser bem dispostas. A memória abraça a tudo, e a ação deve valorizar o argumento. O dever do orador é informar, comover e deleitar. Ver: QUINTILIANO. Institutio oratoria. Edizione con testo a fronte a cura di Adriano Pennacini. Torino: Einaudi, 2001, v. 2, livro VIII, proêmio, 6-7, p. 119. 23 Ver: HANSEN, João Adolfo. Lugar-comum. In: MUHANA, Adma, et. al. (orgs.). Retórica. São Paulo: Annablume; EIB, 2012, pp. 171. 24 ARISTÓTELES. Retórica. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011, livro III, 2, 1404b1, p. 214. 25 Idem, livro III, 2, 1404b15, pp. 214-215.
17
nem falar solenemente de assuntos triviais”,26 pois, neste caso, o discurso perde sua
conveniência.27 Os auditórios, no final, concluem “que o orador exprime a verdade
porque nessas circunstâncias os indivíduos estão animados de sentimentos que
parecem se identificar com os seus; e mesmo que não seja assim, o auditório supõe
que as coisas sejam como o orador lhes diz que são”.28
A epopeia e a história, em termos retóricos, afinam-se aos gêneros
demonstrativo (ou epidítico) e deliberativo, elogiando/aconselhando e/ou
censurando/desaconselhando de forma instrutiva e deleitosa. Quanto às etapas do
discurso, ambos os gêneros propõem tópicas de invenção, partes da disposição e
figuras de elocução em conformidade com a verossimilhança e decoro próprios,
propondo um estilo conveniente à matéria tratada. Um estudo que considera todos
estes aspectos mencionados deve levar a sério as ponderações que Alcir Pécora faz
na introdução do livro Máquina dos gêneros, ao chama a nossa atenção para a
necessidade de se estudar a tradição dos gêneros aos quais os textos dos séculos
XVI-XVIII se vinculam, ou seja, perscrutar as convenções ou artifícios retórico-
poéticos comuns ao gênero em questão. Esta preocupação é relativa à necessidade
de se entender as tópicas discursivas como instrumentos de adequação do texto à
audiência, gerando efeitos específicos, determinados historicamente. O objetivo,
portanto, seria o de questionar a aplicação de lugares comuns para evitar, por
exemplo, a associação entre o texto e o que se entende por “real”. Por outras
palavras, o texto não se reduz e não se explica exclusivamente através do contexto
histórico. No entanto, Pécora pondera:
O gênero não tem de ser puro ou inalterável em duas disposições, assim como o objeto não é idêntico à aplicação de um conjunto de prescrições encontradas em determinadas preceptivas do período: paráfrases de manuais de retórica não dão conta dos sentidos específicos dos objetos. Ao contrário, a tendência histórica básica dos mais diferentes gêneros é a de desenvolver formas “mistas”, com dinamicidade relativa nos distintos períodos, que impedem definitivamente a descrição de qualquer objeto como simples coleção de aplicações genéricas.29
26 Idem, livro III, 7, 1408a10, p. 227. 27 Santo Agostinho, repetindo Cícero, afirma que aos três objetivos do orador (instruir, agradar e converter) correspondem três tipos de estilo: estilo simples para instruir, estilo temperado para agradar e estilo sublime para converter. Ver: AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002, capítulo 8, 34, pp. 241-242. 28 ARISTÓTELES. Retórica. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011, livro III, 7, 1408a20, p. 228. 29 PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 12.
18
Por esta razão, seria arriscado afirmar que o sentido de um texto é
redutível ao seu pertencimento a um gênero específico, muito embora as categorias
do gênero possam orientar uma leitura adequada do exemplar em questão. Convém
ressaltar que a licença de invenção, no caso dos poetas que estudamos, “é restrita
pelos preceitos retóricos que funcionam como limites convencionais de seu arbítrio
poético”.30
Outra asseveração igualmente importante diz respeito às suspeitas que
os estudiosos devem alimentar a respeito do próprio “contexto”, entendendo que se
trata de outra chave argumentativa, instrumentalizada também como gênero
discursivo. A questão que se coloca é a de não confundir ou hierarquizar as
narrativas entendidas como “históricas” e as narrativas “literárias”, como se uma
correspondesse ao “real” e a outra à “ficção”. O que distingue um e outro são os
usos diferenciados que fazem das tópicas discursivas, da disposição textual e,
muitas vezes, das figuras de elocução incorporadas no corpo do texto, mas não uma
suposta fidedignidade em relação a um possível “real” sobreposto ao texto ou
incorporado às suas entrelinhas. Desta forma, o texto poético e o contexto histórico
estão “condenados à criação de efeitos que não são ‘o real’, mas que podem
significar ‘o real que se está disposto ou obrigado a admitir neste tempo’”. Pécora
conclui: “se o texto literário não é ‘reflexo’ de ‘o real’, tampouco o ‘não literário’ o é”.31
Por fim, no terceiro ponto de sua exposição, Pécora salienta que a leitura
dos efeitos retóricos incorporados pelos textos deve levar em consideração sua
datação, ou seja, que os “verossímeis textuais” são, no caso, “produtos temporais”.
Trata-se de evitar qualquer possibilidade de naturalizar os conceitos e lugares
comuns, pois, apesar das possíveis semelhanças, há uma grande variedade de
discursos e recursos utilizados, de efeitos produzidos, o que nos leva a insistir na
dimensão histórica do discurso. Para recapitular, Alcir Pécora reconheceu,
inicialmente, a importância da invenção textual e de seus procedimentos genéricos
para, em seguida, postular a irredutibilidade do contexto a algo exclusivamente
externo aos textos ou aos constructos históricos. Em seguida, como terceiro
procedimento a ser adotado, o autor afirma que, para ler bem os efeitos propiciados
30 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 161. 31 Idem, p. 14.
19
pelos textos, é preciso considerar as marcas temporais que os definem, ou seja,
apreender os verossímeis textuais como produtos históricos.
Isto nos permite introduzir a assertiva de Hansen, de que os códigos
poéticos dos textos produzidos na América portuguesa durante os séculos XVI-XVIII
são retóricos, imitativos e prescritivos. São retóricos porque se baseiam na imitação
dos auctores (ou autoridades) da poesia antiga, isto é, na imitação dos costumes do
gênero. No caso da poesia épica, por exemplo, os auctores de maior destaque são
Homero, Virgílio, Camões, Tasso, dentre outros. Assim, a auctoritas pode ser
definida como “norma retórica coletiva e objetiva”.32 Determina-se, assim, o decoro
interno, através do qual o autor se compromete com a adequação das partes do
discurso à unidade textual e, desta, com os preceitos da auctoritas imitada, e o
decoro externo, que diz respeito à adequação do texto à recepção. O caráter
imitativo, portanto, é relativo justamente a esta recorrência aos textos referenciais no
que concerne a cada gênero, e o caráter prescritivo, por sua vez, implica na
dimensão datada destas tópicas e categorias, sendo os discursos, no caso,
moralizantes e exemplares, pois reproduzem uma noção de história mestra da vida
doutrinada teologicamente pela Igreja Católica. A audiência, nestes termos, acaba
por julgar não somente os elementos moralizantes da obra, mas também os efeitos
técnicos e a eficácia da imitação.
A poesia épica e os relatos de naufrágio se inserem necessariamente em
debates históricos a partir de códigos linguísticos específicos, o que nos leva a
cogitar a possibilidade de diálogos entre textos mais ou menos contemporâneos a
eles. Há, nessa perspectiva, uma base discursiva e cultural da qual participam as
narrativas aqui analisadas. Não é dificultoso supor, portanto, que as bases sobre as
quais se ergue o canto poético e a narrativa histórica não se desvinculam dos
propósitos políticos e éticos que lhe subsidiam.
Disposição dos capítulos:
No primeiro capítulo discorremos sobre algumas características do gênero
épico para, em seguida, ponderar sobre particularidades d’Os Lusíadas e do
32 HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o gênero épico”. In: TEIXEIRA, Ivan. (Org.). Épicos: Prosopopéia / O Uraguai / Caramuru / Vila Rica / A Confederação dos Tamoios / I Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 29.
20
Naufrágio de Sepúlveda. No segundo, para tratar da História Trágico-Marítima,
estudamos o gênero histórico e analisamos algumas convenções presentes nos
relatos de naufrágio. O terceiro é uma reflexão sobre o que poderíamos chamar de
“poética do naufrágio”, pois problematiza peripécias marítimas, levando-se em
consideração a maneira como poetas e narradores recorreram à tradição para
incorporar diferentes lugares-comuns, trabalhando-os a partir de uma concepção
providencialista de história. O quarto capítulo problematiza a metáfora do corpo
místico e a tópica do amor enquanto doença (quando convertida em vaidade ou
transfigurada em ódio) e remédio (caso da virtude teologal da caridade). O quinto
capítulo discorre sobre as tópicas da hospitalidade, da cobiça e da prudência,
buscando nelas caminhos para a conformação do éthos do súdito português. Por
outras palavras, os dois capítulos iniciais discorrem sobre os gêneros épico e
histórico, precisando suas peculiaridades. O terceiro pondera sobre uma noção
muito particular de tragédia, que não pode ser confundida com pessimismo, trauma
ou decadentismo. O quarto e o quinto capítulo propõem o estudo de algumas
virtudes fundamentais na constituição de uma persona exemplar, pretendendo
demonstrar que, ao fim e ao cabo, os propósitos das epopeias e relatos de naufrágio
não são tão conflituosos como se costuma dizer.
21
CAPÍTULO 01
Gênero épico
Para pintar um retrato de Helena, Zêuxis teria solicitado aos habitantes de
Crotona a presença das cinco mais belas jovens, para assimilar o que há de mais
sublime em cada uma e, assim, retratar um corpo digno desta personagem
homérica. Este famoso pintor grego, por outras palavras, pretendia compor uma
persona detentora de grande beleza aproveitando-se dos atributos admiráveis de
figuras particulares, empíricas. Esta anedota, que se encontra na História natural de
Plínio, o Velho, ajuda-nos a compreender melhor os heróis épicos que Homero
empregou em seus poemas, sendo eles detentores de atributos grandiosos (também
baseados em características particulares) que determinam seu caráter (ou éthos).
Em seu Tratado da imitação, Dionísio de Halicarnasso cita uma passagem em que
Homero retrata o atrida Agamêmnon: “Nos olhos e na cabeça é ele semelhante a
Zeus que lança o raio,/ Na cintura a Ares, no peito a Posídon”.33 Seu retrato figura
um éthos espelhado nas deidades, tamanha a nobreza de seu porte. O tipo heroico
figurado nas epopeias (assim como a bela personagem retratada na pintura de
Zêuxis) difere do indivíduo que protagoniza uma narrativa histórica. Mas de que
maneira?
Aristóteles estabelece, em sua Poética, uma distinção entre poesia e
história, supondo a superioridade da primeira em relação à segunda: a poesia é
composta e sistematizada segundo os critérios da verossimilhança, ou seja, a
matéria poética não se ocupa somente do ocorrido, mas privilegiadamente de ações
possíveis, plausíveis e/ou prováveis. Aristóteles afirma que o mais conveniente seria
optar pelo “impossível verossímil”, e não pelo “possível incrível”, pois “os assuntos
poéticos não só não devem ser constituídos de elementos irracionais, mas neles não
deve entrar nada contrário à razão”.34 A história, por outro lado, é a narrativa sobre
os acontecimentos verdadeiros. Ela “estuda o particular”, diferentemente da poesia
que, sendo mais filosófica, atém-se ao “universal”.35 Em suma, a história precisa
33 DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Tratado da imitação. Tradução de Raul Miguel Rosado Fernandes. Lisboa: INIC, 1986, p. 67. 34 Ver: ARISTÓTELES. “Arte Poética”. In: BRANDÃO, R. O. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, livro XXV, p. 87. 35 Idem, livro IX, pp. 43-45.
22
assegurar uma suposta fidelidade à ordem natural dos acontecimentos, narrando
verdades sem o uso de ornamentos excessivos. A poesia, ao contrário, não se atém
à sucessão cronológica da narrativa e trata a matéria histórica de maneira elevada e
verossímil.36
A polêmica em torno da relação entre poesia e história foi duradoura.
Luciano de Samósata, por exemplo, tratou da diferença entre história e encômio,
afirmando que a missão do encomiasta é elogiar e agradar uma personagem,
dispondo de licença para mentir. Na história, ao contrário, não seria admissível nada
de mentiroso.37 Poetas, para Luciano, possuem uma “liberdade pura”, ao contrário
dos historiadores, que dispõem de uma “liberdade temperada”. O historiador deve ter
cautela para não se tornar adulador, pois assim a história acabaria se tornando “uma
espécie de poesia em prosa”.38
36 Hartog esclarece: “Para Aristóteles, com efeito, o poeta é aquele que faz (poiein) narrativas (muthoi) que, pela implementação da mimesis, representam ações. A história, em contrapartida, não está do lado do fazer, nem da representação: o historiador não faz os fatos, mas contenta-se em “dizer o que se passou” (legein ta genomena) e, em caso algum, compete-lhe poiein ta genomena”. HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, pp. 111-112. 37 LUCIANO DE SAMÓSATA. Como se deve escrever a história. Tradução, notas, apêndices e o ensaio Luciano e a história de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 185. 38 Idem, p. 187. A concepção da história como poesia em prosa remete a outra polêmica. Dionísio de Halicarnasso, por exemplo, opera com a proximidade entre história e poesia. Em um livro que tem por objeto principal os escritos de Tucídides, ele destaca a preocupação deste historiador com a verdade, quando se propõe a evitar elementos míticos e fictícios, que enganam e seduzem o público. Ele ressalta também as falhas estilísticas, a obscuridade e incorreção das expressões do historiador, alegando a inconveniência dos discursos. Dionísio desculpa os antecessores do ateniense que escreveram utilizando como matéria relatos míticos para registrar as histórias de povos e lugares. Boa parte desta memória seria fruto de uma tradição oral, que não deixam de ser verdadeiros por transmitirem, sem acrescentar ou tirar, as memórias e tradições. Assim, ele manifesta uma preferência pela história de tipo retórico e moral, pois deveria instruir e agradar os ouvintes. Algo parecido faz Quintiliano, quando apreende a história como um “poema em prosa”, apresentando muitas qualidades que deveriam ser evitadas pelo orador, pois ela estaria preocupada mais com o futuro do que com as questões imediatas: “a totalidade da obra é composta não para a realização de algo ou para um combate presente, mas para a memória da posteridade e a fama do talento”. No entanto, é possível retirar algo de útil da história, talvez para uma digressão, ou quem sabe para a obtenção de fatos e de exemplos, “em que o orador deve ter sido principalmente instruído”. Ver: DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Tratado da imitação. Tradução de Raul Miguel Rosado Fernandes. Lisboa: INIC, 1986, p. 58. Sobre a preferência de Dionísio por uma história afinada à retórica e à moral, ver: JÚNIOR, Pedro Ipiranga. Diálogo entre Luciano de Samósata e Dionísio de Halicarnasso: o estatuto do historiador dentro e fora do horizonte mítico. In: SCRIPTA CLASSICA ON-LINE. Literatura, Filosofia e História na Antiguidade. Número 1. Belo Horizonte: NEAM/UFMG, abril de 2003. Disponível em: http://www.scriptaclassica.hpg.com.br. Acesso em: fevereiro de 2013. No que se refere a Quintiliano, ver: QUINTILIANO. Instituições Oratórias, 10, 31, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 165.
23
No Dell’Arte Historica (1636), Agostino Mascardi diferencia história e
poesia, dizendo que a primeira fundamenta-se na verdade e a segunda na fábula.39
A história, para este autor, seria o “espelho da humanidade” e se veria representada
pelo pintor Dionísio, que “coloca todo o engenho em transportar um rosto para sua
tela”, pintando a natureza como foi fabricada, sem ferir a verdade. Polignoto, tal
como um poeta, “formava com arte os retratos mais belos que a natureza não havia
fabricado” e “colocava seu engenho para bordar um vulto nas suas telas”.40
Seguindo os passos de Aristóteles, Mascardi afirmou que Polignoto, no âmbito da
pintura, imitava pessoas (personae) superiores, a exemplo de Homero no campo da
poética. Diferentemente do Estagirita, ele discorreu sobre duas formas de
verossimilhança: uma falsa porque derivada da poética e outra verdadeira e
proveniente da história. Na sequência, ele retoma a tópica ciceroniana da historia
magistra vitae, afirmando que se escreve história “para formar no ânimo de quem lê
o simulacro da virtude, imitado dos exemplos de tantos ínclitos heróis”,41 e a tópica
de Dionísio de Halicarnasso segundo a qual a história seria “uma filosofia composta
de exemplos”.42
Como se pode ver, as analogias entre os ofícios do poeta e do pintor são
recorrentes, bem como a diferenciação aristotélica entre poesia e história. Mas como
poderíamos definir, em particular, o gênero épico?
No capítulo V da Arte Poética, Aristóteles define a epopeia retomando as
características que este gênero compartilha com a tragédia. A princípio, ambos os
gêneros se aproximam quanto à opção que fazem pelos objetos de imitação:
homens superiores e exemplares, merecedores de glória imorredoura.43 No entanto,
a tragédia é dramática e a matéria que ela privilegia dificilmente ultrapassa o
intervalo de um dia. A epopeia, além de dramática, é narrativa, o que lhe confere a
possibilidade de investir na variedade e “diversificação dos episódios”, de modo a
39 Ver: SINKEVISQUE, Eduardo. Com Furores de Marte e com Astúcias de Mercúrio: O Dell’Arte Historica (1636) de Agostino Mascardi. In: Topoi, v. 7, n. 13, 2006, p. 342. Disponível em: http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi13/Topoi%2013_artigo%203.pdf. Acesso em: janeiro de 2013. 40 Ver: idem, pp. 343-344. 41 Idem, p. 345. 42 Idem, ibidem. 43 Sobre o assunto, ver: HANSEN, João Adolfo. Introdução: Notas sobre o gênero épico. In: TEIXEIRA, Ivan (org.). Épicos: Prosopopeia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A Confederação dos Tamoios: I-Juca-Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, pp. 26-27.
24
impedir a monotonia e, consequentemente, o tédio de seu auditório.44 Para tanto, a
epopeia recorre exclusivamente ao verso heroico, por ser “o mais pausado e
amplo”.45 A tragédia, por outro lado, utiliza metros variados. Estes são alguns dos
aspectos que levam Aristóteles a afirmar a superioridade da tragédia em relação aos
outros gêneros poéticos.
Além de estilizar a narrativa histórica, o poeta épico dispõe os episódios
de forma a garantir a coesão interna da obra. Convém, portanto, que “as partes
estejam de tal modo entrosadas que baste a supressão ou o deslocamento de uma
só, para que o conjunto fique modificado e confundido”.46 Aristóteles complementa: é
recomendável que as fábulas “encerrem uma só ação, inteira e completa, com
princípio, meio e fim, para que, assemelhando-se a um organismo vivente, causem o
prazer que lhe é próprio”.47 A recusa pela narrativa cronológica, portanto, não
pressupõe a incoerência da obra que, tal como um organismo, deveria garantir que
cada parte da narrativa cumprisse sua função de forma a preservar a harmonia do
todo.
Se Aristóteles reconhecia a superioridade da tragédia em relação à
epopeia, Pires de Almeida (e muitos outros, antes e depois dele) considerou o
poema épico superior aos demais gêneros.48 Torquato Tasso, por exemplo, afirmou
a superioridade da epopeia, definida como “imitazione d'azione illustre, grande e
perfetta, fatta narrando con altissimo verso”, que pretendia “muovere gli animi con la
maraviglia e di giovare in questa guisa”.49 Esta definição, que se afina às de
Aristóteles e Horácio, foi mantida com poucas variações enquanto durou o gênero,
que alcançou sua ruína no crepúsculo do século XVIII.
Camões e Os Lusíadas
O mais antigo retrato de Camões de que se tem notícia foi mencionado
numa portada do manuscrito d’Os Lusíadas, publicado graças ao apoio do conde de
44 ARISTÓTELES. “Arte Poética”. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, livro XXIV, p. 46-48. 45 Idem, livro XXIV, p. 47. 46 Idem, livro XXIII, p. 45. 47 Idem, ibidem. 48 Ver: MUHANA, Adma. Discurso sobre o poema heroico – Comentário. In: REEL (Revista Eletrônica de Estudos Literários), Vitória, a. 2, v. 2, 2006, pp. 1-23. 49 TASSO, Torquato. Discorsi dell´Arte Poetica ed in Particolare Sopra il Poema Eroico. A cura de Giorgio Petrocchi. Milano: Mursia Editore, 1974, p. 822.
25
Vimioso. Pintado pelo espanhol Fernão Gomes na década de 1570, deste retrato
resta-nos apenas uma cópia feita por Luís José Pereira de Resende na primeira
metade do século XIX, a pedido do 3º duque de Lafões. Ele figura um Camões de
vestimenta pomposa e com o olho direito ferido. Existem várias representações
posteriores, e muitas delas mostram-no coroado com louros, munido com armadura
e, eventualmente, em posse de sua epopeia e/ou de uma pena. Todas estas
“pinturas” evidenciam não propriamente um homem, mas um tipo discreto, versado
nas letras e experimentado nas armas, que se feriu em batalha e cantou com
grandiloquência os feitos memoráveis dos portugueses. Assim como a poesia, o
retrato pode mobilizar tópicas retóricas para dar a ver/ler uma persona, e não
propriamente um indivíduo.
Manuel Severim de Faria também pintou um retrato, cerca de 40 anos
após a morte do poeta, discorrendo sobre características de seu corpo, espírito e
humor:
Foi Luís de Camões de meã estatura, grosso & cheio de rosto, & algum tanto carregado da fronte, tinha o nariz comprido levantado no meio, & grosso na ponta; afeava-o notavelmente a falta do olho direito (...); ainda que não era gracioso na aparência, era na conversação muito fácil, alegre & dizidor (...), posto que já sobre a idade deu algum tanto em melancólico.50
As informações sobre a vida do poeta Luís Vaz de Camões são
escassas.51 A data de seu nascimento é incerta (provavelmente entre 1524 e 1525),
bem como o local no qual nasceu (Alenquer, Lisboa, Coimbra ou Santarém). Em
1549 começou sua vida de viajante, embarcando para Ceuta na posição de soldado
raso, por lá permanecendo até 1551, um ano antes de supostamente perder o olho
direito na batalha contra os sarracenos. De acordo com Manuel Severim de Faria
(1583-1655), ele partiu para a Índia em 1553 e de lá regressou em 1569, tendo em
mãos a versão manuscrita d’Os Lusíadas. Faria afirma que Camões foi obrigado a
aguardar até 1572 para imprimir o poema, devido às dificuldades impostas pela
Grande Peste.52 O rei D. Sebastião, a quem o poema foi dedicado, recompensou o
50 FARIA, Manuel Severim de. Discursos Vários Políticos. Évora: impressor Manuel de Carvalho, 1624. 51 Ver: SARAIVA, António José. Luís de Camões: estudo e antologia. Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, pp. 11-25. 52 Retomamos estes dados tão somente para dar a ler uma das versões recorrentes sobre a trajetória de vida do autor d’Os Lusíadas. Sobre os escritos de Manuel Severim de Faria, ver: ANDRADE, Luiz
26
poeta com um soldo anual de quinze mil réis, quantia precária que ele usufruiu até o
final de sua vida.53
Foi na época em que esteve no Extremo Oriente que Camões entrou em
contato com A história do descobrimento e conquista da Índia, de Fernão Lopes de
Castanheda, e com as duas primeiras Décadas da Ásia, de João de Barros. Sabe-se
que ele teve acesso, também, às anotações de Pedro Nunes sobre o livro Tractatus
de sphaera, escrito no século XIII por Johannes Sacrobosco.54 João Adolfo Hansen
lembra que alguns aspectos de sua vida foram estilizados em sua poesia, sobretudo
através da lírica amorosa e elegíaca. No caso, Camões é retratado como tipo
aristocrata, católico, letrado e soldado. Ele pertencia a uma família galega da
pequena nobreza que se instalou em Portugal no século XIV, durante o reinado de
d. Fernando I. Trata-se de um “fidalgo pobre”, lembra-nos Hansen, tipo letrado
orgulhoso da nobreza e com dificuldades de conceber a riqueza como critério
definidor da hierarquia. Não apreciava o comércio ou o trabalho manual, mas
valorizava a carreira das armas. Assim como Diogo de Couto, ele vislumbra uma
mudança de valores, afirmando que “o ânimo guerreiro dos fidalgos do século XV foi
trocado pela vulgaridade dos mercadores”.55
O poema épico que garantiu a Camões fama duradoura pode ser dividido
da seguinte maneira: proposição (canto I, est. 1-3), momento no qual se declara o
assunto a ser tratado; invocação (canto I, est. 4-5), na qual Camões recorre às
imaginárias e inspiradoras ninfas do rio Tejo (localizado na Península Ibérica);
dedicatória (canto I, est. 6-18), momento no qual o poeta oferece a obra ao rei D.
Sebastião, seu contemporâneo; narrativa (canto I, est. 19, ao canto X, est. 144), que
se ocupa da exposição da fábula épica; e epílogo (canto X, est. 145-156), no qual
Camões exorta D. Sebastião a tomar com prudência as rédeas do Império lusitano,
em tons de humilde finalização.56 Não se pode esquecer, também, do alvará régio e
Cristiano. Os preceitos da memória: Manuel Severim de Faria, inventor de autoridades lusas. In: História e Perspectivas, Uberlândia, EDUFU, n. 34, 2006, pp. 121-122. 53 NABUCO, Joaquim. Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artistico. 1872, pp. 8-33. 54 Ver: MICELI, Paulo. O desenho do Brasil no teatro do mundo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002, pp. 13-17. 55 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 169. 56 Esta subdivisão é sugerida por Hennio Birchal. Ver: CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas / edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy Editora, 2005, pp. 31-36.
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do parecer inquisitorial, assinado por Frey Bertholameu Ferreira, que acompanham a
primeira edição da obra.
Nem todos aplaudiram o título que Camões escolheu para sua epopeia,
por não seguir de perto as escolhas de Homero e Virgílio, que utilizam o título para
aludir ora ao nome do herói/protagonista (é o caso da Odisseia e da Eneida) ora ao
cenário em que se deflagra o conflito bélico (como ocorre na Ilíada).57 De acordo
com o helenista Jean-Pierre Vernant, o herói cantado na épica greco-latina “é ao
mesmo tempo o representante das expectativas coletivas, o responsável pela
salvação comum e um indivíduo que coloca suas façanhas pessoais acima de
tudo”.58 Desta forma, nomear o protagonista no título da obra indica que suas
façanhas individuais favoreceram a sobrevida da coletividade de que faz parte.59
Quando Camões inventa seu título, ele salienta a importância da harmonia e da
concórdia estabelecida entre os habitantes do reino que, em uníssono, deveriam
assegurar a unidade do Império. A tomar, então, pelo caráter “corporativista” da
política portuguesa, é possível inferir que a referência a heróis, no plural, poderia
favorecer a recepção por parte dos leitores, que deveriam cogitar a possibilidade de
conquistar reconhecimento e fama, caso suas ações se ajustassem em alguma
medida às condutas heroicas retratadas no poema.60 Não é de se estranhar,
portanto, que o poeta tenha optado pelo título Os Lusíadas, dispensando o singular
Vasco da Gama. O louvor épico salienta a necessidade de harmonia do organismo
social, independentemente do local ou do(s) herói(s) que a conduzem. A poesia
cristã canta a coesão do corpo místico e, concomitantemente, o respeito às
hierarquias. Neste sentido, o que interessa não é se o aedo nomeia um ou mais
heróis, mas se o seu canto assegura a vitória da ordem sobre o caos, seja em uma 57 Nas palavras de Luís António Verney (1713-1792), Camões, apesar do “engenho poético” e da “imaginação fecunda”, investiu na criação de uma obra defeituosa, devido à falta de erudição, de juízo e de discernimento. Verney criticou a opção pelo título ao afirmar que “os mestres da arte tomam o título, ou da pessoa, como Odisseia, Eneida, ou do lugar de acção, como Ilíada”. O poeta português, “em vez de tomar o dito título de Vasco da Gama etc., toma-o de todos os portugueses, buscando para isto um termo latino que tanto calça aos portugueses navegantes, como aos que ficaram no reino”. Ver: VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar (Cartas sobre Retórica e Poética). Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 167. 58 VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo: Edusp, 2002, p. 384. 59 De acordo com Jacques Rancière, o poema épico “é o livro da vida de um povo, expressão de um mundo onde o caráter de cada individualidade exprime em sua unidade o ethos de uma coletividade”. RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 33. 60 Não estamos sugerindo que as obras de Homero e Virgílio não pudessem ter, também, uma expressão político/educativa. O que fica em destaque, neste caso, é simplesmente a maneira de lidar com o(s) herói(s) e, principalmente, com as formalidades do texto que, afinal, encenam em suas linhas circunstâncias distintas e separadas por um longo intervalo de tempo.
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capitania ou na capital do Império. Esta é uma das condições para a existência da
concórdia: que o indivíduo, antes de lutar pela ordem geral, ordene a sua própria
vontade, aceitando e incorporando o lugar hierárquico que lhe é atribuído.
Desta forma, ainda que pautado em uma proposta distinta, seu teor não
se distancia totalmente do epos61 homérico, no qual o herói “não é separado do que
realizou, efetuou, nem do que o prolonga”.62 No caso da obra camoniana, que é
destinada ao rei D. Sebastião, faz todo o sentido referir-se aos lusitanos, pois o
prolongamento do monarca situa-se justamente nos súditos que o servem. A
presença do herói supria a falta “física” do rei, ao mesmo tempo em que encarnava o
“corpo político” do mesmo, e é nesse ponto que ambos se completavam. Não é o
caso, aqui, de o rei e o herói pensarem de forma similar, mas de o rei pensar e agir
através do herói que, na poesia épica, não detém vontade própria que não esteja
atrelada à vontade régia. O efeito de fazer-se presente, desta forma, é fundamental
na propagação das designações régias, o que indica que o pacto colonial
transcende sua realidade dicotômica restrita aos ciclos econômicos.63
As partes d’Os Lusíadas
Camões utiliza uma série de argumentos nas três primeiras estrofes de
sua epopeia (que correspondem à proposição) para introduzir a matéria, o gênero e
o estilo de seu poema:
As armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas
61 Epos, neste caso, deve ser apreendido como discurso, narração e/ou palavra. É desta expressão que deriva o termo “épico”. 62 VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo: Edusp, 2002, p. 343. 63 Sobre a relação entre o herói e o rei, ver: LUZ, Guilherme Amaral. “Produção da concórdia: a poética do poder na América portuguesa (sécs. XVI-XVIII)”. In: Varia Historia, Belo Horizonte: UFMG, v. 23, n. 38, 2007, pp. 558-560.
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Se vão da lei da Morte Libertando: Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar engenho e arte.64 Cessem do Sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandre e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Netuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevante.65
Como convém à proposição, o aedo assinala o objeto de seu canto:
anuncia as “armas e os barões assinalados”, aludindo por sinédoque às façanhas
militares, matéria privilegiada da épica. João Adolfo Hansen afirma que este trecho
recupera um estilo alto e sublime, pois emula o primeiro verso da Eneida: “Eu canto
as armas e o barão primeiro”.66 Torquato Tasso, em sua Jerusalém Libertada,
recorre ao mesmo verso para principiar seu poema: “Canto l’arme pietose e ’l
capitano”.67 No entanto, Camões não reduz seu louvor a um herói apenas, mas a um
conjunto de barões que não identifica de imediato, o que justifica o uso da terceira
pessoa do plural. Outro poeta que pluraliza o objeto de seu canto é Ludovico Ariosto
em seu Orlando Furioso, ao cantar “Le donne, i cavallier, l’arme, gli amori”.68 Mais
adiante, Camões salienta o caráter inédito das façanhas que vai cantar, pois os
navegantes singraram mares nunca dantes navegados, ultrapassando a ilha de
Ceilão (também conhecida como Taprobana). O poeta adianta para o leitor que as
ações que vai narrar terminam com a edificação de um “Novo Reino”, à maneira de
Virgílio que, em seu exórdio, antecipa que a razão última da trajetória de Eneias é a
fundação de Roma.69
64Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofes 1-2, pp. 87-88. 65 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofe 3, p. 88. 66 Ver: HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o gênero épico”. In: TEIXEIRA, Ivan. (org.). Épicos: Prosopopéia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A Confederação dos Tamoios: I-Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 19. 67 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto I, estrofe 1, p. 113. 68 ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso: cantos episódios. Tradução, introdução e notas de Pedro Garcez Ghirardi. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, canto I, estrofe 1, p. 51. 69 Em uma coletânea de ensaios publicados em 2006, Francisco Murari Pires retoma a historiografia helênica para aproximá-la da composição épica, afirmando que autores como Heródoto e Tucídides são tributários de certas convenções próprias na narrativa homérica. Dois dos princípios aventados pelo autor se sobrepõem: a dimensão arqueológica, ligada ao início da narrativa e, portanto, ao fato a ser narrado, e a dimensão etiológica, referente à causalidade. Se o objeto do canto é “as armas e os barões assinalados”, a causa do elogio é a fundação de um Novo Reino. Sobre os princípios acima referidos, ver: PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 274-275.
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Na segunda estrofe, Camões precisa e demarca os fundamentos de sua
narrativa. O objetivo central que alicerça o seu canto, afirma, é a ampliação da fé
cristã e expansão do Império português. Em razão deste propósito, o poeta pluraliza
e especifica os seus protagonistas: são objetos de seu elogio os nobres “barões
assinalados”, os “Reis” e os homens de valor que conquistaram memória perene em
virtude de suas ações.70 Quando contempla este “corpo” de heróis, o aedo exalta a
importância de determinados integrantes do Império,71 que deveriam atender ao
modelo de conduta ensejado pela ortodoxia católica. É importante lembrar, neste
caso, que o poeta reforça a ética cristã e o respeito à hierarquia política, sob a
orientação de uma concepção de história providencialista e, portanto, centrada na
figura de Deus.
Se na primeira estrofe Camões faz menção às “armas” para indicar, por
sinédoque, a matéria alta que fundamenta seu canto, na segunda estrofe ele atribui
ao poeta (e, por extensão, a si mesmo) a responsabilidade de divulgar os feitos que
deveriam integrar a memória coletiva. Destaca-se a matéria histórica e, na
sequência, a arte que a torna atrativa aos pósteros. Seguindo a preceptiva
aristotélica que define a poesia como imitação da ação (práxis), Camões concede-
nos uma prévia daquilo que está por vir.
Para finalizar sua proposição, Camões justapõe duas memórias para
julgar qual delas é a mais digna de canto e louvor, mandando cessar as navegações
e os feitos de Ulisses e do troiano Enéias, bem como a fama de Alexandre o Grande,
e do imperador romano Trajano. Pela emulação da memória do modelo, se amplifica
a magnitude do canto que se quer edificar, que contempla os feitos de um corpo
português: corpo do qual faz parte o aedo e o(s) herói(s). Para reforçar a
superioridade portuguesa, o poeta retoma a relação hierárquica estabelecida entre
homens e deuses pagãos: se, como versa o poeta antigo, os homens (mortais)
deviam respeito às deidades (imortais), laço que constitui a axiologia épica em
Homero, para os portugueses esta hierarquia se esvazia, o que indica depreciação
70 De acordo com Maria Leal de Matos, o poema “não intenta a glorificação do homem em geral, mas – muito particularmente – a dos portugueses que se empenham nas descobertas, empreendimento que assume um significado religioso bem determinado e bem inserido no seu momento histórico”. MATOS, Maria Vitalina Leal de. Introdução á Poesia de Luís de Camões. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983, p. 25. 71 Camões inclui, dentre os participantes de seu canto, integrantes da nobreza em suas duas variantes mais gerais: da nobreza “natural”, hereditária, e da nobreza “política”, concedida pelo direito positivo. Ver: HESPANHA, António Manuel. “A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime”. In: Tempo, v. 11, n. 21, 2006, pp. 135-136.
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do modelo politeísta e amplificação do lugar que se confere à religião cristã. Quando
o poeta afirma que Netuno – deus romano dos mares – e Marte – deus romano da
guerra – obedeceram aos nautas portugueses, ele não apenas subverte as
hierarquias pagãs como também amplifica as habilidades dos lusitanos, atribuindo-
lhes perícia nas artes da navegação e nos artifícios bélicos.72 À musa antiga resta o
silêncio, pois a narrativa camoniana lhe ofusca o canto.73 Assim, o exórdio de
Camões tende a cumprir sua função: tornar o auditório dócil, atento e benevolente.74
Na invocação, o poeta/aedo conjura o auxílio competente de uma ou mais
divindades, com o objetivo de alcançar a inspiração poética. Pires menciona que o
canto “constitui dom divino, bem concedido pela divindade a agraciar aquele mortal
que é particularmente distinguido como aedo”,75 que cumpre o papel de mediador.76
Em termos de disposição, a invocação pode encontrar-se fundida à proposição,
como no caso dos poemas homéricos, ou pode sucedê-la, como ocorre na Eneida.
Os versos de abertura da Ilíada, por exemplo, além do apelo à divindade, demarcam
o tema do canto e denunciam a fragilidade humana.77 Homero requisita o apoio da
“Deusa” e introduz sumariamente a matéria poética a ser tratada: a cólera de
Aquiles, inicialmente mobilizada contra o rei dos aqueus, Agamêmnon. Neste caso, a
invocação não guarda qualquer individualidade em relação à proposição, como
72 Neste momento, é importante lembrar que o épos homérico, valendo-se da axiologia épica, estabelece uma hierarquia rígida que distingue homens e deuses: “opondo a excelência da existência divina contra as misérias da condição humana”. No presente caso, a mesma convenção é retomada, com o intuito de subverter a hierarquia, a ponto de afirmar que são os deuses que devem préstimos aos navegantes portugueses. Sobre a axiologia épica, ver: PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 147-166. 73 “Em resumo, a Proposição camoniana constitui uma sapientíssima estrutura retórico-imitativa, cuja principal característica, do ponto de vista poético, é conjugar, com grande perícia, os veios estruturais oriundos de Virgílio e de Ariosto, enquanto os procura elevar a um plano de harmonia. O último verso da Proposição tem assim um valor paradigmático: Camões propõe-se fazer confluir os modelos fundamentais do gênero épico, depurando-os, atualizando-os e, deste modo, superando a contingência de cada um”. Ver: ALVES, Hélio J. S. Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001, pp. 202-203. 74 RETÓRICA A HERÊNIO (c. 82 a.C.), [PSEUDO CÍCERO]. São Paulo: Hedra, 2005, p. 55. 75 PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, p. 208. 76 “Contraposta a sapiência divina à ignorância humana, as representações afirmadas pela invocação às Musas revestem o canto de uma aura de sacralidade, que confere autoridade à narrativa do aedo”. Idem, p. 245. 77 “A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,/ o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas/ trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades/ de valentes, de heróis, espólio para os cães,/ pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;/ desde que por primeiro a discórdia apartou/ o Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles”. CAMPOS, Haroldo de. Ilíada de Homero. São Paulo: Arx, 2003, vol. 1, canto I, v. 1-7, p. 31.
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ocorre, também, na Odisseia,78 em que o aedo invoca os auxílios da “Musa” e
destaca a virtude capital do herói que vai cantar: a astúcia. O auxílio divino, neste
caso, tende a oferecer fidedignidade aos feitos enredados, grandiosos a ponto de
merecer tratamento “sublime”.
Na Eneida, por fim, a proposição/invocação expõe sumariamente o teor
da matéria e requisita os auxílios da musa.79 Diferentemente de Homero, que invoca
a deidade no primeiro verso da obra, Virgílio anuncia o “seu” canto, adotando a
primeira pessoa do singular para divulgar a matéria poética. Só então, o poeta pede
o auxílio da “musa”, cuja sabedoria épica lhe permitiria entender o ressentimento de
Juno, que tantos infortúnios lança sobre “um barão na piedade assinalado”.80 Em
todos os casos, o aedo é apresentado “como o depositário humano de um saber que
é originalmente divino, o saber das Musas”.81 Na medida em que a responsabilidade
pela fidedignidade da narrativa recai sobre as deidades, a opção por ceder ou não a
“verdade” depende do arbítrio das mesmas. Em outras palavras, o aedo não possui
meios de investigar a fidedignidade da narrativa ditada pelas Musas, restando a ele
reproduzir os desígnios e acreditar na boa intenção delas.82
78 “Do homem fala-me, ó Musa, astuto, que por muito/ tempo perambulou, depois que destruiu a sagrada/ praça-forte de Tróia; que viu as cidades e conheceu/ o espírito de muitos homens, que padeceu sobre o mar/ muitas dores em sua alma, lutando pela própria vida/ e pelo regresso dos companheiros”. Cf. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas / edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy Editora, 2005, pp. 83-84. 79 “Eu canto as armas e o barão primeiro,/ Que, prófugo de Tróia por destino,/ À Itália e de Lavínio às praias veio./ Muito por mar e terra contrastado/ Foi do poder dos numes, pelas iras/ Esquecidas jamais da seva Juno:/ Muito sofreu na guerra, antes qu’em Lácio/ Cidade erguesse e introduzisse os deuses:/ D’onde a gente Latina origem teve,/ D’Alba os padres, e os muros d’alta Roma./ As causas tu me conta, ó musa; dize/ Por que lesa deidade, ou de qu’ultraje,/ A rainha dos deuses ressentida,/ Passar por tantos casos da fortuna,/ Tantos trabalhos arrostar faria/ Um barão na piedade assinalado./ Cabe em peitos celestes ira tanta?”. VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro primeiro, p. 5. 80 Esta é uma tradução recorrente da frase latina “insignem pietate virum”, que integra a invocação da Eneida. O termo pietate, no caso, designa um dos atributos de Enéias. Esta categoria não deve ser revestida do sentido cristão que comumente lhe atribuímos, pois, no caso de Virgílio, um homem “piedoso” é aquele que cumpre seu destino atento aos deveres e obrigações. Enéias, herói pius, não contraria os deuses ou abandona sua família. Ver: VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Apresentação. In: VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. XII. 81 PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, p. 243. 82 Ver: Idem, pp. 247-248. Como nos recorda, também, Jacy Seixas, “a memória mítica não constrói um vínculo necessário com a verdade; os saberes provenientes da memória podem ser verdadeiros ou falsos”. A autora cita, em seguida, um trecho da Teogonia, no qual Hesíodo atribui às Musas a seguinte fala: “Sabemos contar mentiras semelhantes às realidades; mas sabemos também proclamar verdades”. SEIXAS, Jacy Alves de. “Comemorar entre memória e esquecimento: reflexões sobre a memória histórica”. In: História: questões & debates. Curitiba: Editora da UFPR, n. 32, vol. 17, 2000, p. 79.
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Tal como Virgílio, Camões separa a proposição da invocação. Ao invocar
as Tágides, ninfas do rio Tejo, ele requisita o engenho ansiado:
E vós, Tágides minhas, pois criado Tendes em mim um novo engenho ardente, Se sempre em verso humilde celebrado Foi de mim vosso rio alegremente, Daí-me agora um som alto e sublimado, Um estilo grandíloquo e corrente, Porque de vossas águas Febo ordene Que não tenham inveja às de Hipocrene.
Dai-me uma fúria grande e sonorosa, E não de agreste avena ou flauta ruda, Mas de tuba canora e belicosa, Que o peito acende e a cor ao gesto muda; Dai-me igual canto aos feitos da famosa Gente vossa, que a Marte tanto ajuda; Que se espalhe e se cante no universo, Se tão sublime preço cabe em verso.83
Com modéstia afetada o aedo pede o auxílio das Tágides.84 Ele invoca,
em seguida, um “engenho ardente” e um “estilo grandíloquo e corrente”, além de
entonação e “fúria sonora”,85 para o bom desempenho nos domínios da eloquência
poética. O recurso da invocação, que assume a necessidade de intervenção
competente de personagens divinas, confere confiabilidade aos versos narrados,
frente à incapacidade do poeta de dissimular, e anuncia com autoridade e prudência
os predicados que caracterizam o aedo. Aproveitando-se deste recurso, o poeta
mede seu engenho – inspirado pelas Tágides – remetendo à agudeza poética dos
antigos, que recorriam às águas inspiradoras da fonte Hipocrene, criada por Pégaso
no monte Hélicon.86 Se, por um lado, Camões modestamente compromete-se com a
verdade, por outro, ele mais uma vez engrandece seu engenho.
83 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofes 4-5, p. 88. 84 Sob a máscara do vulgo, o aedo assume duas posições: uma inferior (indicando suposta deficiência de engenho perante o leitor discreto) e outra superior (e, portanto, apreciativa, demonstrando possuir a humildade que falta aos poetas vaidosos que, no ato do louvor heróico, buscam as glórias somente para si). Este “lugar humilde”, além de configurar um éthos favorável ao orador/aedo, concomitantemente amplifica a grandiosidade dos feitos a serem narrados. Ver: PÉCORA, Alcir. “A história como colheita rústica de excelências”. In: PÉCORA, Alcir. As excelências do governador: o panegírico fúnebre a d. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 52. Ver também: LUZ, Guilherme Amaral. O canto de Proteu ou a corte na colônia em Prosopopéia (1601) de Bento Teixeira. In: Tempo, Revista do Departamento de História da UFF. Niterói-RJ: v. 25, 2008. 85 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofe 05, p. 88. 86 HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de José Antonio Alves Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 105.
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A dedicatória é um lugar adequado para a explicitação de uma espécie de
“pacto” firmado entre poeta e homenageado. Nela, o aedo esclarece sumariamente
o teor do poema, projeta medidas políticas, discorre sobre a nobreza do dedicatário
e clama por sua benevolência. Não se trata somente do elogio a um passado ilustre,
mas também de exortação do homenageado perante a possibilidade de um futuro
que, como sugere o poeta, pode ser ainda mais grandioso. Alcir Pécora nos
esclarece que a épica de Camões “constrói efeitos tão desolados e contrários em
tudo ao que se esperaria de um canto de louvor à pátria. Uma pátria, de resto, que,
no presente da enunciação, produz-se sem quase traço da antiga grandeza que
dera causa ao canto”.87 É nesta linha de descontentamento que a exortação faz-se
necessária, sob a ótica de um projeto político que pretende vencer as limitações
impostas no presente da enunciação.
A dedicatória de Camões, portanto, é um discurso epidítico/suasório, que
apresenta sentenças lapidares, memórias fundacionais e esperanças de um novo
reino. Suas primeiras estrofes louvam o homenageado e introduzem a qualidade de
seus feitos. Nelas, é possível localizar a conjugação de duas das tópicas que
fundamentam o canto: a dilatação do Império e o “aumento da pequena
Cristandade”, introduzindo D. Sebastião, portanto, dentre os heróis que anuncia na
proposição. O aedo remete-se, ainda, à linhagem de seus antepassados e à
necessidade de conter a “moura lança”.88 Para além da exposição sumária dos
caminhos da narrativa, o poeta exalta os seus próprios versos na medida em que
enaltece a figura do rei, o que sugere que seus versos tornam-se caros na medida
em que são aceitos por aquele que encabeça a hierarquia política e, portanto, é o
detentor de maior poder dentre os membros do Império.
Em momento subsequente, Camões equaciona outras duas tópicas em
sua dedicatória: o lugar da amizade,89 quando garante que o seu interesse é tão
somente cantar as ilustres proezas do rei, e o lugar da fidelidade, quando se dispõe
a seguir o homenageado cegamente, devido ao seu histórico de ações, inclinações e
87 PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 141. 88 Os Lusíadas, 2008, canto I, estrofes 6-7, p. 19. 89 Este lugar é artifício retórico recorrente: além de despertar a boa vontade de quem é agraciada pelo cotejo, a amizade declarada concede fidedignidade aos relatos, uma vez que um amigo não mentiria para outro. Este lugar pode ser percebido, por exemplo, em Cícero, quando este diz escrever para atender ao rogo do amigo Quinto. Ver: CÍCERO, Marco Túlio. Diálogos del Orador. In: Obras Escogidas, Buenos Aires: El Ateneo, s/d. Libro Primero (excerto), p. 18.
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em razão do próprio lugar hierárquico que ocupa. É frente a estes méritos que o
poeta espera tantas outras medidas e resoluções por parte do monarca:
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império O Sol, logo em nascendo, vê primeiro; Vê-o também no meio do Hemisfério, E quando desce o deixa derradeiro; Vós, que esperamos jugo e vitupério Do torpe Ismaelita cavaleiro, To Turco Oriental e do Gentio Que inda bebe o licro do santo Rio, Inclinai por um pouco a majestade, Que neste tenro gesto vos contemplo, Que já se mostra qual na inteira idade, Quando subindo ireis ao eterno templo; Os olhos da real benignidade Ponde no chão: vereis um novo exemplo De amor dos pátrios feitos valerosos, Em versos divulgado numerosos.90
Ao mesmo tempo em que louva o histórico de feitos do rei, o poeta busca
persuadi-lo a realizar outros, e usa como argumento a provável obtenção de fama
em idade madura, proporcional à grandeza de suas ações. Em consequência, o rei
D. Sebastião subiria ao “eterno templo”, metáfora que postula, de um lado, a
conquista da “imortalidade” através da memória cantada que sobrevive ao tempo, e,
de outro, a própria salvação eterna, em resposta às nobres ações de alguém que,
para fazer uso de outra metáfora, cumpriu bem suas funções como “braço” da
Providência. Valendo-se da discrição, o aedo demonstra um sutil descontentamento
em relação ao tempo presente e uma aguda ânsia por mudanças. Dissimulado, o
poeta confere tamanhos atributos ao rei que as ações sugeridas – enfrentamento ao
gentio, navegações ultramarinas, dilatação do Império – aparecem como fruto das
intenções do próprio rei, e não do poeta, já que sua modéstia afetada não lhe provê
competência ou ousadia para tal intromissão.91 É preciso que se tome o lugar da
amizade como lugar da justiça que propaga, dentre outras coisas, o respeito às
hierarquias: a tópica da modéstia afetada tende justamente a retomar as distâncias
políticas sob as quais se encontram as partes envolvidas no louvor. 90 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofes 8-9, p. 91. 91 Baltasar Gracián toma esta medida como prudente e conveniente. De acordo com o jesuíta, “os príncipes gostam de ser ajudados, mas não sobrepujados. Ao aconselhá-los, faça-o como se os lembrasse de algo esquecido, não como se acendesse a luz que ele é incapaz de ver”. Trata-se de um lugar de humildade, portanto, na qual as considerações do poeta soam como lembretes. Ver: GRACIÁN, Baltasar. A Arte da Prudência. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 1998, aforismo 07, p. 27.
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Ouvi: que não vereis com vãs façanhas, Fantásticas, fingidas, mentirosas, Louvar os vossos, como nas estranhas Musas, de engrandecer-se desejosas: As verdadeiras vossas são tamanhas, Que excedem as sonhadas, fabulosas, Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro E Orlando, ainda que fora verdadeiro.92
O poeta refuta o apoio das musas, responsáveis pelo teor “fantástico”,
“fingido” e “mentiroso” da épica antiga. A verdade, neste sentido, negligenciada
pelos poetas Ariosto e Boiardo, remonta à fidelidade da narrativa e ao verossímil
histórico. Após estas considerações, Camões continua com suas exortações:
E, enquanto eu estes canto, e a vós não posso, Sublime Rei, que não me atrevo a tanto, Tomai as rédeas vós do Reino vosso: Dareis matéria a nunca ouvido canto. Comecem a sentir o peso grosso (Que pelo mundo todo faça espanto) De exércitos e feitos singulares De África as terras e do Oriente os mares. Em vós os olhos tem o Mouro frio, Em quem vê seu exício afigurado; Só com vos ver o bárbaro Gentio Mostra o pescoço ao jugo já inclinado; Tétis todo cerúleo senhorio Tem para vós por dote aparelhado, Que, afeiçoada ao gesto belo e tenro, Deseja de comprar-vos para genro.93
Mais uma vez movido pela prudência, o poeta exorta o rei à ação,
promovendo uma aliança entre várias temporalidades: menciona o histórico
exemplar do rei, insufla seu ânimo no tempo presente através dos versos que entoa
e, ao mesmo tempo, busca convencê-lo a mobilizar seus exércitos para, num futuro
próximo, invadir e (re)conquistar territórios africanos. Na estrofe seguinte, de
maneira complementar, o aedo se justifica ao fazer menção à facilidade com a qual
o rei consegue dominar os “gentios”, que se entregam ao jugo perante uma figura
tão admirável:
Em vós se vêem, da Olímpica morada, Dos dois avós as almas cá famosas;
92 Os Lusíadas, 2008, canto I, estrofe 11, p. 20. 93 Os Lusíadas, 2008, canto I, estrofes 15-16, p. 22.
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Uma na paz angélica dourada, Outra, pelas batalhas sanguinosas. Em vós esperam ver-se renovada Sua memória e obras valorosas; E lá vos tem lugar, no fim da idade, No templo da suprema Eternidade. Mas, enquanto este tempo passa lento De regerdes os povos que o desejam, Daí vós favor ao novo atrevimento, Para que estes meus versos vossos sejam; E vereis ir cortando o salso argento Os vossos Argonautas, por que vejam Que são vistos de vós no mar irado, E costumai-vos já a ser invocado.94
Faz-se, aqui, menção aos antepassados de D. Sebastião, que
conquistaram, à sua maneira, glória imorredoura.95 O alerta do aedo parte do
pressuposto de que o rei não poderia se esconder na sombra de seus
consanguíneos. Ele deveria, ao contrário, amplificar (pela emulação) sua fama e,
assim, conquistar seu lugar no templo da Eternidade. Por fim, no encerramento de
sua dedicatória, Camões afirma que o rei deveria agir desta maneira para merecer
seus versos, ou seja, é justamente por propor ações futuras que os versos serão
merecidos somente quando o projeto recomendado for cumprido. Nisto, evidencia-se
a cumplicidade entre presenteador e presenteado: se o rei não atendesse aos rogos,
o mérito da obra seria imerecido; contudo, se conseguisse atendê-los, a fama
ecoaria merecidamente pela eternidade.
Este pacto estabelecido através da dedicatória fica nítido também no
alvará régio que acompanha a edição de 1572. Há um trecho no qual o rei afirma:
E este meu Aluara se imprimirá outrosi no principio da dita obra, o qual ey por bem que valha & tenha força & vigor, como se fosse carta feita em meu nome, por mim assinada (...).96
94 Idem, canto I, estrofes 17-18, pp. 22-23. 95 Interessante notar que a recorrência aos feitos dos antepassados atenta o leitor para uma ideia de repetição, como condição para se firmar o estatuto da nobreza. Em outras palavras, fala-se de uma noção de hábito aristotélico que supõe certa permanência dos costumes, medida contrária à conduta artificial, desordenada e provisória do príncipe de Maquiavel. Neste sentido, não é o caso de não haver dinâmica ou particularidades de uma geração à outra, mas de (dever) haver certa continuidade no que se refere à própria primasia do nome, dos feitos e, assim, da “natureza” da nobreza. Ver: HESPANHA, António Manuel. “A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime”. In: Tempo, v. 11, n. 21, 2006, pp. 134-135. 96 CIDADE, Hernâni. Os Lusíadas (com ilustrações de Lima de Freitas). São Paulo: Círculo do Livro, 1979, p. 21.
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Há que se considerar tal alvará como parte da obra, uma vez que se trata
de um registro protocolar que autoriza o poema. Além de concordar com a
impressão da obra, o rei diz que o alvará deve ser recebido como uma carta
assinada por ele: com validade, força e vigor. Quando aceita a obra, o rei não
apenas admite e aprova os dizeres de Camões, como tende a ampliar o interesse do
leitor pela obra. Ou seja, com ganhos recíprocos, o autor vale-se de uma estratégia
tal que inviabiliza a recusa do rei e, consequentemente, a impressão da obra, e o rei
aceita as virtudes a ele atribuídas e, como prova maior da fidedignidade da obra,
afirma que a mesma deve ser impressa junto ao seu alvará, que a autoriza. Poeta
ganha proteção régia, o rei ganha um retrato primoroso: ambos, portanto, ganham
prestígio relativo e proporcional à posição que ocupam na hierarquia política.
No epílogo de Camões, os lugares da modéstia afetada e do acúmulo de
experiência articulam-se à tópica das letras e armas:
“Tomai conselho só de experimentados, Que viram largos anos, largos meses, Que, posto que em cientes muito cabe, Mais em particular o experto sabe”. Mas eu que falo, humilde, baixo e rudo, De vós não conhecido nem sonhado? Da boca dos pequenos sei, contudo, Que o louvor sai às vezes acabado. Nem me falta na vida honesto estudo, Com longa experiência misturado, Nem engenho, que aqui vereis presente, Cousas que juntas se acham raramente. Para servir-vos, braço às armas feito; Para cantar-vos, mente às Musas dada; Só me falece ser a vós aceito, De quem virtude deve ser prezada. Se me isto o Céu concede, e o vosso peito Dina empresa tomar de ser cantada, Como a pressaga mente vaticina, Olhando a vossa inclinação divina”.97
O aedo, dotado de “honesto estudo” e “longa experiência”, serve o rei
através do canto e das armas, da pena e da espada. A interação entre ambos os
atributos lega ao poeta a possibilidade de ver, aprender e ensinar. Assim, sua fala
prudente requisita o apreço de homem experimentado que, apesar da dissimulada
rudeza, enseja o aceite e a aprovação real. Esta tópica, comum à educação cortesã,
97 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofes 152-154, p. 324.
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prima pela possibilidade de atender ao chamado do rei e, em seguida, a partir da
experiência adquirida, educar os homens discretos, ensinando-lhes a maneira
adequada de servir ao reino. Como nos adverte Alcir Pécora, “as armas apenas,
sem a companhia das letras, significam mais que a falta ou a perda da arte:
significam a impossibilidade de continuidade dos feitos grandiosos”. Logo, a “falta de
estima da arte não implica apenas a rudeza dos heróis, mas a própria limitação de
sua virtude heroica, incapaz de atingir o verdadeiramente sublime”.98
Além do lugar da amizade, inscrito na afeição do mestre pelo pupilo, há
ainda a referência à idade avançada daquele, que contrasta com a “tenra idade”
deste. Ou seja: o mestre, experimentado nas proezas da vida, nas relações de corte
e nos hábitos educados e adequados às mais diversas circunstâncias, orienta
aquele que, ainda jovem, não viveu o suficiente para fazer bom juízo das coisas.
Não obstante seja o aedo mais versado e experiente, não deixa de ocupar um lugar
prudente, pois reconhece a honra e notoriedade da família de seu pupilo. Trata-se
de uma conjunção de lugares aparentemente adequada, pois, ajustada às
hierarquias, a fala do velho não precisa remontar aos padrões excelentes de corte.
Ainda assim, sendo ele detentor de larga experiência, poderia então narrar proezas
e exemplos pouco conhecidos e distantes do convívio cortesão. Por fim, usufruindo
da confiança e da afeição decorrentes da amizade, o mestre poderia sugerir
condutas e modos de agir sem, contudo, faltar com o respeito devido aos superiores
hierárquicos.
Sabendo desta larga repercussão dos lugares comuns, que são
apropriados em diferentes gêneros discursivos, é preciso lembrar, com Pécora, de
outro aspecto ligado primordialmente à exortação política: a arte em Camões deve
ser apreendida como publicidade de um passado ilustre e como figuração de um
futuro ainda mais grandioso, que está por vir. Os escritos, neste sentido, são
modelados segundo os costumes da educação cortesã. Pécora nos lembra que
o feito histórico não atinge verdadeiramente a sua plenitude heroica ou sublime antes que se produza o canto que desempenha o seu valor, isto é, sem que se acrescente aos sucessos das armas o espírito das letras. Ao passado grandioso da pátria é necessário que se ajunte a inteligência dele, pela arte, a fim de que o acidental e particular dos feitos alcance o estatuto
98 PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001, pp. 151-152.
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necessário e universal de virtude e excelência, que comunica perfectibilidade aos seres.99
O poeta/cortesão, portanto, deve dominar as habilidades atribuídas a
Marte e o engenho conferido a Apolo e ao seu séquito de Musas. Ao invocar as
ninfas do Tejo, Camões insiste:
Olhai que há tanto tempo que, cantando O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, A Fortuna me traz peregrinando, Novos trabalhos vendo e novos danos: Agora o mar, agora exprimentando Os perigos Mavórcios inumanos, Qual Cânace, que à morte se condena, Nua mão sempre a espada e noutra a pena;100
O poeta emula a Heroides de Ovídio ao mencionar a personagem
mitológica Cânace, filha de Éolo e de Enarete, que teria sustentado uma relação
incestuosa com Macareu, seu irmão. Numa mão, encontra-se a espada com a qual
cometeria suicídio a mando de seu pai. Na outra, segura a pena que utilizou para
escrever uma carta a Macareu. A analogia não é despropositada, pois o lugar que o
poeta desempenha seria, afinal, o lugar do trágico.
Camões discorre, ainda, sobre o reconhecimento dos vassalos que,
movidos pelo trabalho e pelo respeito à hierarquia política, reproduzem os princípios
reinóis:
E não sei por que influxo de Destino Não tem um ledo orgulho e geral gosto, Que os ânimos levanta de contino A ter para trabalhos ledo o rosto. Por isso vós, ó Rei, que por divino Conselho estais no régio sólio posto, Olhai que sois (e vede as outras gentes) Senhor só de vassalos excelentes. Olhai que ledos vão, por várias vias, Quais rompentes leões e bravos touros, Dando os corpos a fomes e vigias, A ferro, a fogo, a setas e pelouros, A quentes regiões, a plagas frias, A golpes de Idolatras e de Mouros, A perigos incógnitos do mundo,
99 PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 162. 100 Os Lusíadas, 2008, canto VII, estrofe 79, p. 219.
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A naufrágios, a peixes, ao profundo! Por vos servir, a tudo aparelhados; De vós tão longe, sempre obedientes A quaisquer vossos ásperos mandados, Sem dar respostas, prontos e contentes. Só com saber que são de vós olhados, Demônios infernais, negros e ardentes, Cometerão convosco, e não duvido Que vencedor vos façam, não vencido.101
O rei deveria, portanto, interceder pelos vassalos valorosos, sobretudo os
detentores de experiência:
Favorecei-os logo, e alegrai-os Com a presença e leda humanidade; De rigorosas leis desalivai-os, Que assim se abre o caminho à santidade. Os mais experimentados levantai-os, Se, com a experiência, têm bondade Para vosso conselho, pois que sabem O como, o quando, e onde as cousas cabem.102
O poeta exorta o rei a orgulhar-se de seus súditos. Não apenas daqueles
que servem com armas, mas também com as letras, forma de reprodução e
distribuição do poder. Refere-se, também, ao sacrifício a que se submetem estes
mesmos súditos, em diferentes circunstâncias: alvos de naufrágios, setas, fogo,
fome. Utiliza-se, assim, da argumentação com base na subserviência, na
preeminência, para justificar a benevolência do monarca, que deveria favorecê-los e,
assim, instigá-los a continuar com a mesma conduta. Só assim, intercedendo pelo
bem comum, é que o rei consumaria a própria soberania de seu reinado. Note-se
que, perante estas exortações, o título da obra pode recobrar outro aspecto que não
a mera menção ao corpo do Estado: refere-se, talvez, à necessidade de
reconhecimento da boa estirpe portuguesa, não somente em relação aos guerreiros,
mas também aos letrados, que retratam com papel e tinta tipos exemplares dignos
de imitação.
A proposição e a dedicatória podem ser lidas em conjunto, pois a
segunda especifica aspectos do heroísmo coletivo aludido na primeira. O epílogo
pode, igualmente, ser lido em analogia com as oitavas finais do canto V, em que há
uma valorização da arte e uma censura àqueles que a desvalorizam. A princípio, o
101 Idem, canto X, estrofes 147-148, p. 322. 102 Idem, canto X, estrofe 149, p. 323.
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poeta recorda que seu poema fundamenta-se na verdade histórica e censura
aqueles que se prenderam, como Ariosto, a ficções e fantasias.103 Na sequência, ele
afirma que as ações portuguesas de fato ultrapassaram os feitos antigos, como
queria Vasco da Gama, mas deixa claro que é necessário valorizar as letras para
que as ações gloriosas perdurem. Reforça-se, no caso, a tópica das letras e armas,
amplificada através da figura de Júlio César:
Vai César sojugando toda França E as armas não lhe impedem a ciência; Mas, nüa mão a pena e noutra a lança, Igualava de Cícero a eloquência. O que de Cipião se sabe e alcança É nas comédias grande experiência. Lia Alexandro a Homero de maneira Que sempre se lhe sabe à cabeceira. Enfim, não houve forte Capitão Que não fosse também douto e ciente, Da Lácia, Grega ou Bárbara nação, Senão da Portuguesa tão somente. Sem vergonha o não digo: que a razão De algum não ser por versos excelente É não se ver prezado o verso e rima, Porque quem não sabe arte, não na estima. Por isso, e não por falta de natura, Não há também Virgílios nem Homeros; Nem haverá, se este costume dura, Pios Eneias nem Aquiles feros. Mas o pior de tudo é que a ventura Tão ásperos os fez e tão austeros, Tão rudos e de engenho tão remisso, Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso.104
Após dizer que os portugueses desvalorizavam a pena, o aedo menciona,
como consequência, a ausência de poetas do porte de Virgílio e Homero, estes sim
valorizados nas circunstâncias históricas em que existiram. Até mesmo o
protagonista da epopeia camoniana não é poupado desta mácula:
Às Musas agardeça o nosso Gama O muito amor da pátria, que as obriga A dar aos seus, na lira, nome e fama De toda a ilustre e bélica fadiga; Que ele, nem quem na estirpe seu se chama, Calíope não tem por tão amiga Nem as filhas do Tejo, que deixassem As telas d'ouro fino e que o cantassem.
103 Ver: Idem, canto V, estrofes 86-90, pp. 167-168. 104 Idem, canto V, estrofes 96-98, pp. 170-171.
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Porque o amor fraterno e puro gosto De dar a todo o Lusitano feito Seu louvor, é somente o pros[s]uposto Das Tágides gentis, e seu respeito. Porém não deixe, enfim, de ter disposto Ninguém a grandes obras sempre o peito: Que, por esta ou por outra qualquer via, Não perderá seu preço e sua valia.105
Os antigos, portanto, tiveram seus feitos superados, mas, quanto à
valorização das letras, acabaram por superar os portugueses. Camões, assumindo a
posição de conselheiro, não deixa de orientar o leitor quanto à melhor maneira de se
alcançar a glória:
Por meio destes hórridos perigos, Destes trabalhos graves e temores, Alcançam os que são de fama amigos As honras imortais e graus maiores; Não encostados sempre nos antigos Troncos nobres de seus antecessores; Não nos leitos dourados, entre os finos Animais de Moscóvia zibelinos; Não cos manjares novos e esquisitos, Não cos passeios moles e ouciosos, Não cos vários deleites e infinitos, Que afeminam os peitos generosos; Não cos nunca vencidos apetitos, Que a Fortuna tem sempre tão mimosos, Que não sofre a nenhum que o passo mude Pera algüa obra heróica de virtude; Mas com buscar, co seu forçoso braço, As honras que ele chame próprias suas; Vigiando e vestindo o forjado aço, Sofrendo tempestades e ondas cruas, Vencendo os torpes frios no regaço Do Sul, e regiões de abrigo nuas, Engolindo o corrupto mantimento Temperado com um árduo sofrimento; E com forçar o rosto, que se enfia, A parecer seguro, ledo, inteiro, Pera o pelouro ardente que assovia E leva a perna ou braço ao companheiro. Destarte o peito um calo honroso cria, Desprezador das honras e dinheiro, Das honras e dinheiro que a ventura Forjou, e não virtude justa e dura. Destarte se esclarece o entendimento, Que experiências fazem repousado,
105 Idem, canto V, estrofes 99-100, pp. 171-172.
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E fica vendo, como de alto assento, O baxo trato humano embaraçado. Este, onde tiver força o regimento Direito e não de afeitos ocupado, Subirá (como deve) a ilustre mando, Contra vontade sua, e não rogando.106
Com a desvalorização das letras, corrente em seu tempo, o poeta acaba
inscrevendo para si um lugar trágico. Seria, portanto, de se esperar que Camões não
cantasse os feitos de homens que desmereciam glórias imorredouras, devido à
ingratidão para com aqueles que lustravam suas memórias:
Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse A quem ao bem comum e do seu Rei Antepuser seu próprio interesse, Imigo da divina e humana Lei. Nenhum ambicioso que quisesse Subir a grandes cargos, cantarei, Só por poder com torpes exercícios Usar mais largamente de seus vícios; Nenhum que use de seu poder bastante Pera servir a seu desejo feio, E que, por comprazer ao vulgo errante, Se muda em mais figuras que Proteio. Nem, Camenas, também cuideis que cante Quem, com hábito honesto e grave, veio, Por contentar o Rei, no ofício novo, A despir e roubar o pobre povo! Nem quem acha que é justo e que é direito Guardar-se a lei do Rei severamente, E não acha que é justo e bom respeito Que se pague o suor da servil gente; Nem quem sempre, com pouco experto peito, Razões aprende, e cuida que é prudente, Pera taxar, com mão rapace e escassa, Os trabalhos alheios que não passa. Aqueles sós direi que aventuraram Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida, Onde, perdendo-a, em fama a dilataram, Tão bem de suas obras merecida. Apolo e as Musas, que me acompanharam, Me dobrarão a fúria concedida, Enquanto eu tomo alento, descansado, Por tornar ao trabalho, mais folgado.107
Há uma coerência entre as oitavas finais dos cantos V, VI e VII no que se
refere aos juízos proferidos pelo poeta. No canto V, quando Gama está concluindo
106 Idem, canto VI, estrofes 95-99, pp. 197-198. 107 Idem, canto VII, estrofes 84-87, p. 221.
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sua narrativa ao rei de Melinde, há um momento de amplificação dos feitos
portugueses, que são sobrepostos às memórias antigas. Na estrofe 92, a imitação
dos antigos é utilizada para se fazer uma apologia à valorização dos poetas. De
acordo com Camões, os feitos portugueses realmente superam os antigos, mas não
há incentivo para a divulgação destes feitos através da arte. Na ocasião, ao mesmo
tempo em que lança uma censura aos capitães que não dominam as letras, o poeta
coloca em evidência a tópica da pena e da espada, que tão bem caracteriza o seu
epílogo. Como disse Pécora, o poeta retira do acontecimento ilustre o que ele tem
de sublime para, assim, fundamentar seu canto.
No final do canto VI, Camões oferece um caminho para a obtenção de
glórias, reforçando o lugar comum da experiência “trágica” enquanto terreno propício
para a obtenção de fama. Para tanto, o poeta afirma que o heroi deve apoiar-se no
tronco ilustre dos antepassados para emular seus feitos e reafirma as tópicas da
experiência e da recusa às honrarias decorrentes dos bens materiais. No canto VII,
por fim, Camões invoca as ninfas do Tejo e do Mondego, edifica para si um lugar
melancólico, trata das injustiças promovidas pelos heróis, recorre à tópica da
curiosidade e da necessidade de valorização da arte, defende a harmonia do corpo
místico e censura a mentira e o roubo. Quando assinala virtudes merecedoras de
reconhecimento, Camões se define como portador delas e, ao mesmo tempo,
convence o leitor de que abraça-las significa tornar-se um súdito digno de canto
épico e fama perene.
Vitor Aguiar e Silva tem razão ao advertir sobre os perigos de uma leitura
antológica, isto é, que privilegia alguns episódios em detrimento de outros.108 As
partes da epopeia camoniana se entrelaçam, e parece ser deste entrelaçamento que
nasce a harmonia que lhe é própria.
Camões emulou os poemas greco-romanos, mas admitiu que as
circunstâncias históricas em que viveu não permitiram que ele alcançasse o estatuto
daqueles poetas. Ou seja, apesar de reconhecer a matéria de sua epopeia como
superior, sem o incentivo à arte, não haveria a valorização do poeta, tampouco a
perpetuação de feitos ilustres. Era a pena do poeta que atribuía forma à história e
retirava dela atributos para orientar a conduta dos leitores. Sem esta orientação, não
haveria a reprodução de grandes feitos, e sem estes feitos, não haveria mais razão
108 Ver: AGUIAR E SILVA, Vítor. A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos. Lisboa: Livros Cotovia, 2008, pp. 93-107.
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para custear o labor poético. Não se tratava propriamente de pessimismo, mas de
um argumento que amplifica o valor de sua epopeia ao retratar o empenho solitário
de um poeta que perseverava na luta pelo bem comum.
Para reforçar a grandiosidade do conflito bélico que narrou, Tucídides
mencionou seu potencial trágico, que teria superado a guerra de Tróia (Homero) e
as Guerras Médicas (Heródoto). Quando reconheceu a impossibilidade de novos
Homeros e Virgílios, Camões desenhou os reveses de seu presente para amplificar
sua determinação, uma vez que agiu privado do incentivo de seu tempo. Se a arte
seria o veículo para a promoção do heroísmo, na falta dela, heroico torna-se o
sacrifício daquele que a ela se dedica.
Naufrágio de Sepúlveda
Jerônimo Corte-Real, filho de Manuel Corte-Real, donatário de capitanias
açorianas, e de D. Brites de Mendonça, nasceu em local e data desconhecidos. Não
há informes sobre sua vida antes de 1561, ano em que entrou na Ordem de Cristo e
se casou com D. Luísa da Silva. Ao que tudo indica, foi militar ativo e levou vida
“livre e perigosa” antes de casar-se. Muito do que se imagina sobre sua vida é
baseado em sonetos contidos nos próprios manuscritos do autor, atribuídas a poetas
e autores contemporâneos seus. Gomes Freire de Andrade referiu-se a ele como
“Homero Lusitano”. Num epigrama, Antonio Ferreira afirmou que o céu concedeu a
Jerônimo Corte-Real vários dons: com o pincel, ele seria capaz de vencer natureza e
arte; com a espada, representava Marte; poucos compunham versos e manuseavam
a lira como ele. Diogo Bernaldez chamou a atenção para o seu “espírito raro” e
afirmou que Marte concedeu-lhe a lança, Apolo a lira, Orfeu a voz, Amor cedeu-lhe a
branda pena, e a natureza presenteou-lhe o pincel. Alvarez Pereira afirmou que ele
supera o pintor Apeles e que chega a vencer o próprio Orfeu: “Tudo que diz com a
língua obrou com a espada”, disse ele. Dom Jorge de Meneses mencionou seu
“divino canto” e afirmou que ele honrou sua pátria, celebrando e defendendo-a com
a espada. Num epigrama do mesmo autor, outras características do poeta foram
pontuadas: nobreza, esforço, engenho. Pero Andrade de Caminha, referindo-se ao
seu engenho, afirmou que Corte-Real, com cores vivas, “mostra aos olhos quanto
canta”, surpreendendo e espantando néscios e doutos. Vislumbra-se, através destes
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caracteres, um tipo excelente, conhecedor de letras e armas, que lutou por Portugal
e celebrou suas vitórias com poemas engenhosos e agudos.109
Pouco se sabe sobre a recepção de suas letras: o poeta foi mencionado,
por exemplo, na poesia de Juan Rufo Gutiérrez, num poema de 1584. Lope de Veja
Carpio coloca-o lado a lado com Camões, assim como Juan de Solórzano. Francisco
de Quevedo y Villegas o tem por “doutíssimo”. António de Sousa de Macedo o
considera insigne e ilustre. Manuel de Faria e Sousa, por sua vez, afirma que as três
estâncias d’Os Lusíadas sobre o naufrágio de Sepúlveda apresentam valor superior
ao poema de Corte-Real sobre o mesmo assunto. No século XIX, as opiniões
variaram: Garret e Denis destacaram seus “maus versos” e “mau gosto”, mas
reconheceram algumas virtudes. Costa e Silva é generoso ao reconhecer
fragmentos altos, mas repete que as três oitavas de Camões superam seu poema.
Camilo Castelo Branco e Teófilo Braga repudiam Corte-Real.110
Ao longo do prólogo ao leitor do Sucesso do Segundo Cerco de Diu
(1574), o poeta amplifica a importância dos feitos portugueses e elogia os poetas
antigos, dizendo que se Virgílio pudesse cantar os feitos portugueses, escreveria
coisa espantosa, jamais vista antes. Com modéstia afetada, ele assume o encargo
de escrever sobre o segundo cerco de Diu, admitindo que outros poetas poderiam
escrever com maior diligência e engenho. No entanto, afirma que fez o possível,
tentando não fugir à verdade, e pede a benevolência do leitor, para perdoar os erros
e levar em consideração o seu intento, que é o de cantar grandes feitos
portugueses, de forma que possam ser lembrados na posteridade. No prólogo ao rei
D. Sebastião, ele afirma que escreve com versos heroicos, tratando de combates,
socorros e outras ações, para que “a invenção da pintura satisfaça à rudeza do
verso”.111
Em 1594, foi impresso na oficina de Simão Lopez o Naufrágio e lastimoso
sucesso da perdição de Manoel de Sousa Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua
mulher e filhos, vindos da Índia para este Reino na nau chamada o galeão grande S.
João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. Na primeira
página, logo abaixo do título, há um complemento em itálico: E a peregrinação que
109 Ver: CORTE-REAL, Jerônimo. Sucesso do Segundo Cerco de Diu: estando Dom João Mascarenhas por capitão da fortaleza. Ano de 1546. Lisboa: Oficina de Antonio Gonçalvez, 1574, s/p. 110 Ver: CORTE-REAL, Jerônimo. Poesia. Introdução, seleção, fixação de texto e notas de Hélio J. S. Alves. Coimbra: Angelus Novus, 1998, pp. XI-LIII. 111 Idem, ibidem.
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tiveram rodeando terras de Cafres mais de 300 léguas até sua morte. Na mesma
folha, outras informações foram dispostas na seguinte ordem: o gênero do poema
(composição em verso heroico, com uso da oitava rima), o nome do poeta (Jerônimo
Corte Real) e o nome do dedicatário, acompanhado de seus títulos (D. Teodósio,
Duque de Bragança e Barcelos, Marquês de Vila Viçosa, Conde de Ourem, Senhor
das vilas de Arraiolos e Portel). Por fim, acusa-se a presença das licenças (do Santo
Ofício, do Ordinário e de sua Majestade), a oficina de impressão (de Simão Lopez),
o privilégio real (com duração de 10 anos, como de costume) e o ano da impressão
(1594).112 Com um total de 206 páginas, o Naufrágio de Sepúlveda não enumera
estrofes. Os seus 17 cantos utilizam versos decassílabos brancos, empregando a
oitava rima em algumas ocasiões, como nos discursos das personagens.
No prólogo presente na versão setecentista do Naufrágio de Sepúlveda, o
editor menciona a excelência e a singularidade do poema, tratando-se de
composição digna de “lição pública”. O poeta teria demonstrado verdadeira
sublimidade de estilo. Além disso, afirma que o poema encontra-se revestido de
belos episódios, de linguagem elegante e pura, com uso de figuras que avivam as
pinturas, respeitando o decoro da epopeia. Como foi publicada postumamente, a
dedicatória da primeira edição foi escrita pelo seu genro, Antonio de Sousa, que
menciona a fidalguia e a nobreza de ânimo de seu sogro e o caráter fidedigno do
poema (chama-o de história, por ser detentor de um “verdadeiro discurso”).113 Não
se sabe quem foi o autor do prólogo presente na edição princeps.
Cada um dos cantos do Naufrágio de Sepúlveda é antecedido por um
breve resumo, que pode auxiliar no entendimento da disposição do poema. De
acordo com Hélio Alves, há duas histórias paralelas no poema:114
Por um lado, desenha-se a intriga de quatro protagonistas, Leonor de Sá – com quem a narração começa –, o pai Garcia de Sá, o pretendente e depois
112 CORTE-REAL, Jerônimo. Naufrágio e lastimoso sucesso da perdição de Manoel de Sousa Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindos da Índia para este Reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. E a peregrinação que tiveram rodeando terras de Cafres mais de 300 léguas até sua morte. Lisboa: Oficina de Simão Lopez, 1594. Deste momento em diante, em razão da extensão do título, utilizaremos somente Naufrágio de Sepúlveda, tanto no corpo do texto quanto nas notas de rodapé. Neste último caso, será indicado somente o título, o ano e o número da página. 113 CORTE-REAL, Jerônimo. Sucesso do Segundo Cerco de Diu: estando Dom João Mascarenhas por capitão da fortaleza. Ano de 1546. Lisboa: Oficina de Antonio Gonçalvez, 1574, pp. 1-3. 114 Um sumário da narrativa do poema de Corte-Real pode ser encontrado em: ALVES, Hélio J. S. Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001, pp. 233-240.
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amante Manuel de Sousa Sepúlveda, e finalmente o único dos quatro que, ironicamente, não tem a palavra no poema a não ser depois de morto: Luís Falcão. Leonor e Manuel apaixonam-se, Garcia combina o matrimônio da filha com Falcão, Manuel faz saber secretamente a Garcia que Leonor era casada clandestinamente com ele, esta acaba por confessar ao pai a relação, Garcia enclausura-a, os amantes trocam correspondência secreta em que confirmam a fidelidade amorosa, Manuel concebe na mente o assassinato de Falcão e leva-o a efeito, Falcão é enterrado, Garcia (contrariado) dá a mão de Leonor a Manuel, celebram-se as bodas em Goa, nascem dois filhos do casal, partem para Portugal, naufragam na costa do Natal, sobrevivem ao naufrágio para sofrer a fome, a sede e as adversidades duma caminhada desorientada em terra, morre um filho duma relação anterior de Manuel, o espírito de Falcão brada a Deus por justiça, morre Leonor, e Manuel desaparece no arvoredo. Nos seus pontos mais evidentes, esta é a imperfeita intriga humana principal de Sepúlveda. Por outro lado, em relação de parataxe com a anterior, Corte-Real inventa uma intriga divina principal. Amor, que tudo havia feito para que se acendesse a paixão entre Leonor e Manuel, fica ofendido com os obstáculos colocados por Garcia de Sá. Por isso, vai falar com sua mãe Vénus em Pafos para se queixar e procurar uma solução. Vénus conta-lhe acerca dum outro filho seu, Ânteros, nascido, por recomendação do oráculo de Témis, para que Amor deixasse de ter o aspecto duma criança e crescesse. Ânteros, que «a seu cargo tem vingar agravos/ e as injúrias de Amor satisfazê-las», voará com seu irmão à ilha de Némesis, também chamada Raunúsia, onde ambos encontrarão o ódio, a ira e a determinação necessários para trazer com eles a Pafos a deusa da vingança. Entretanto, Vénus conseguirá de Vulcano um raio com o qual Cupido, fisicamente transformado pela experiência da viagem (no regresso, a sua mãe mal o reconhece), matará Luís Falcão em Diu, satisfazendo os seus maus sentimentos. A descrição da viagem de Amor e Ânteros entre as ilhas gregas e os paços de Némesis, com o aspecto e o recheio destes, enchem o quadro. Finalmente, Vénus e Amor presidem às bodas de Leonor e Manuel Sepúlveda, e procuram beneficiar-lhes o leito matrimonial, mas a meio da noite de núpcias, ao entenderem que estava guardado um fim terrível aos noivos, partem dali e regressam tristes a Pafos para nunca mais aparecerem em cena.115
A estas duas histórias paralelas agregam-se duas ações secundárias:
No plano humano, a viagem de Pantaleão de Sá, um dos capitães de Sepúlveda, inicia-se já depois do naufrágio, com o destacamento de uma pequena força por ele comandada, enviada a auxiliar militarmente um régulo hospitaleiro. Depois do combate, Pantaleão conhece um velho africano que o convida a deixar os seus homens por algum tempo, para que possa contar-lhe episódios da História passada e futura de Portugal, ilustrados nas paredes duma caverna. O capitão português fica a saber também através do astrólogo ancião que em Pantaleão, e noutros como ele, se depositam as esperanças dum futuro de liberdade política. Mais tarde, quando Leonor e Manuel estarão prestes a chegar ao grau último de degradação, Pantaleão escapa e salva-se da morte. No plano divino, por seu turno, surgem, durante a viagem de Sepúlveda, Proteu no mar e nas praias, Pã na floresta interior e Febo nos céus, deuses invariavelmente acometidos de paixão por Leonor. A acção destas divindades, juntamente com as vozes de ninfas do rio e da floresta, corre
115 ALVES, Hélio J. S. Corte-Real, a Evolução da sua Arte. In: Península. Revista de Estudos Ibéricos, n. 2, 2005, p. 185. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2963.pdf. Acesso em: janeiro de 2013.
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paralela à dos náufragos até para além do desaparecimento destes. Esta é a parte narrativa do Sepúlveda que mais se afasta da noção de enredo: os três deuses actuam sempre em separado, conforme a zona onde deambulam os náufragos, estabelecendo relações apenas com as divindades do respectivo meio ou «reino». Cada um tem uma história individual de desejo amoroso a revelar, que nunca se entrelaça com as outras. Resta saber em que medida estes amores se associam ao Amor da acção divina principal, uma associação inexistente no plano narrativo mas sugerida pelo simbolismo panteísta do poema.116
Feito este sumário do poema, convém investigar algumas partes suas, a
começar pela proposição, na qual Corte-Real antecipa a matéria de seu canto:
Hum sucesso infelice: hum triste caso Hum funesto discurso: a morte horrenda Do Sepúlveda, canto: & juntamente
O miserável fim daquela ilustre Belíssima Lianor, a quem fortuna Mostrou da cruel roda, o mais adverso: Mais abatido & mais mísero estado.117
Nada de barões assinalados neste caso (ainda que o poema assinale
muitos heróis portugueses). Vários adjetivos foram empregados para amplificar a
natureza trágica da matéria poética. Não há alusão à máquina mitológica, muito
embora ela se mostre fundamental. O aedo deixa claro que discorre sobre apenas
“um” sucesso infeliz, “um” triste caso. Apesar de mencionar a “morte horrenda do
Sepúlveda” e o “miserável fim” de Leonor de Sá, ambos os episódios encontram-se
associados a uma única experiência, que se inicia com um naufrágio e termina com
uma peregrinação por terras inóspitas. Quando menciona seu “funesto discurso”, no
segundo verso da proposição, o poeta pode estar se referindo ao poema que
escreveu, ou talvez esteja indicando a relação de naufrágio que utilizou como
principal fonte para escrever seu poema.
A vós ó Redentor, que nas entranhas Puríssimas da Virgem sacra, & pia: Vos encerrastes Deos & homem perfeito, Intervindo em tal obra o Espírito Santo, A vós Christo lesu que no Calvário, Encravado na cruz por nós morrendo, Lavastes nossas culpas na sangrenta
116 Idem, pp. 185-186. 117 CORTE-REAL, Jerónimo. Naufrágio de lastimoso sucesso de perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindo da Índia para este reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. Lisboa: oficina de Simão Lopes, 1594, s/p. Disponível em: http://archive.org/details/naufragioelastim00cort. Acesso em: janeiro de 2013.
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Fonte; aberta com a lança de Longinho. A vós peço senhor alto socorro, Que o de Helicon não quero, neq Apollo Levemente me inspire o doce alento: Dando-me saber novo, & claro engenho, Nam lhe peço da Lyra o som suave, Nem que o meu canto faça sonoroso, Vosso favor invoco: este só peço Para cantar o caso acerbo, & duro O Naufrágio espantoso, o cruel caso, Daqueles que mil vezes submergidos Nas procelosas ondas, la na terra Desconhecida, foram todos mortos.118
É também com modéstia afetada que o poeta requisita a intervenção
divina, recusando, assim como Camões, o auxílio das musas e a inspiração de
Apolo. Na sequência, ele delimita seu pedido: não quer o som suave da lira,
tampouco um canto sonoroso, mas somente o favor divino. Por um lado, o poeta
pode estar reforçando sua modéstia, requisitando o amparo de Deus para assegurar
a veracidade de seus versos. Por outro, pode estar se referindo a um estilo médio,
situado entre o canto suave da lira e o canto sonoroso da tuba. No entanto, não
seria este, por excelência, o lugar do gênero histórico, e não do épico? Sabemos
que o poema de Corte-Real é baseado num relato de história, que recorre à
disposição in ordo naturalis e que não se ocupa de matéria bélica, mas de um caso
acerbo e duro, que se inicia com um naufrágio “espantoso” e termina com a morte de
todos em uma terra desconhecida. Talvez seja para cantar uma matéria tão trágica
que o poeta requisite o amparo divino. Neste caso, o poeta pode não estar
reivindicando um estilo médio, mas uma matéria média, situada entre os diálogos
pastoris e as guerras da epopeia.
Há outras quatro invocações ao longo do poema de Corte-Real, estando a
primeira delas localizada no canto sexto:
Canta tu Musa minha a desestrada, Triste navegação, e o trabalhoso Miseravel discurso, do mortífero Infelice, funesto, e mao sucesso. De Neptuno também canta a braveza: O ímpeto, e furor do fero Éolo, E o proceloso mar todo revolto, Com fortes, e terribeis tempestades. Dame favor ò Musa, porque diga, E notifique ao mundo aquela infausta Antecipada morte, que com tanta
118 Idem.
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Razão, merece ser sempre chorada.119
No canto sétimo, deparamo-nos com outra, direcionada a Deus:
O Deos omnipotente, ò senhor nosso Daime agora favor, que he necessário, Pera que contar possa aqui o perigo Quase chegado ao fim deste receio.120
A próxima situa-se no oitavo canto:
Agora Musa minha, agora he tempo Que tu comigo cantes o discurso Da peregrinação mortal, e o triste Infortunado fim de tanta gente. Os trabalhos, as guerras, os perigos Sobresoltos, traições, estrago, e mortes Da vera informação de tantos males Pois certo sou que tu deles te lembras.121
A quarta, colocada no último canto, foi direcionada a Calíope:
Calyope divina agora he tempo Onde me he o teu favor mais necessário Torname ao coração aquela força Quem em termo tao estreito tem perdida Concedeme vigor ao fraco espírito, Que co a presente dor já desfallece. A mão, e a língua guia, que recusam Prosseguir e tratar passo tao forte Dentro no peito geme est’alma minha, Lastimada, e doida do ímpio caso. Do sucesso cruel, e fim tao triste Que aqui guardado estava a tal beleza.122
Se, de início, o poeta dá a impressão de dispensar o panteão greco-
romano, logo ele desengana o leitor, pois vários deuses mitológicos participam da
experiência de Manuel de Sousa Sepúlveda e Leonor de Sá. A invocação, no caso,
amplifica o aspecto dramático do episódio a ser narrado, pois o aedo pede ajuda por
se julgar incapacitado de narrar, sozinho, tão trágico desfecho.
As quatro invocações referidas aparecem em momentos muito específicos
do poema: a primeira antecede a partida de Sepúlveda de Cochim, rumo ao
119 Idem, p. 58. 120 Idem, p. 76. 121 Idem, p. 85. 122 Idem, p. 200.
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desfecho ruinoso de sua viagem. Desta vez, o poeta nomeia entidades mitológicas
(Netuno, Éolo) e, mais uma vez, elenca uma série de adjetivos para amplificar o
caráter trágico da matéria que vai tratar. A segunda invocação, dirigida a Deus,
ocorre no momento em que o aedo precisa descrever a tempestade que abate o
galeão São João. A terceira, novamente direcionada à Musa, antecede a
peregrinação dos nautas, após o naufrágio de que foram vítimas. Na ocasião, ele
especifica a matéria (trabalhos, guerras, perigos, sobressaltos, traições, estragos,
mortes) e pede à Musa informações verdadeiras. A quarta e última invocação
antecede a morte de Leonor de Sá e o desaparecimento de Sepúlveda nas matas da
Terra do Natal, sendo desta vez direcionada à musa da poesia épica, Calíope. O
aedo, neste caso, pede força e vigor, pois seu espírito já se encontrava enfraquecido
devido à dor e crueldade vivenciadas ao longo da narrativa.
Como assinalamos no início deste tópico, vários poetas atribuíram à
persona de Corte-Real grande habilidade no manuseio da pena, da espada e do
pincel. Outros encontraram nele um Homero lusitano. O prólogo e a dedicatória,
também reafirmaram seus atributos. Trata-se de uma espécie de homenagem
fúnebre e reconhecimento de seus méritos, o que realça a excelência de seu retrato.
Este súdito dedicou-se à escrita de um poema que cantou o “lastimoso” fim de
Manuel de Sousa Sepúlveda e d. Leonor de Sá. Para tanto, ele mobilizou
maravilhoso para pintar uma intriga e retirar dela uma forma reta de agir. Assim
como no caso d’Os Lusíadas, as falhas do protagonista podem ser contrastadas com
a discrição do poeta. O poema, que ilustra situações de vingança, de assassinato,
de ciúmes e vaidades, parece reforçar a importância da virtude da caridade. O Amor,
no caso, desempenha um papel central, talvez por manifestar a falta de juízo do
protagonista e motivar o crime que torna imperativo o castigo posterior. Não se trata
propriamente de pessimismo, mas de uma cadeia de acontecimentos que justifica a
centralidade da virtude teologal da caridade e indica as consequências de sua
ausência, como é possível notar no prólogo anônimo da editio princeps do poema,
que reconhece no Naufrágio um
discurso em que se pode claramente ver as variedades e pouca firmeza dos estados que na vida se tem por felizes. E se bem olhardes vereis quão certo está o castigo ainda que tarde aquele que por seus delitos cometidos contra a caridade e amor com que devíamos amar nossos próximos, o merecem, e
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que não deve a tardança dele fazer-nos esquecer da certeza com que o devemos temer.123
123 Idem, s/p.
55
CAPÍTULO 02
A coletânea britiana
A História Trágico-Marítima, de Bernardo Gomes de Brito, contou com o
amparo da Academia Real da História Portuguesa, fundada a 08 de dezembro de
1720 por iniciativa do clérigo D. Manoel Caetano de Sousa (1658-1734) e do 4º
Conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de Meneses (1673-1743). Não se pode dizer
ao certo se Bernardo Gomes de Brito chegou a fazer parte desta instituição. As
poucas informações biográficas sobre ele foram fornecidas por Diogo Barbosa
Machado, membro da Academia desde a sua fundação e contemporâneo do coletor.
Sabe-se, por exemplo, o nome de seus pais (Domingos Gomes e Mariana de Brito),
o local e a data de seu nascimento (Lisboa, 1688).124 Além disso, Machado faz
alusão à sua “feliz memória”, “boa compreensão” e “estudiosa aplicação”.125 Nas
licenças que acompanham a HTM, existem alguns epítetos que qualificam sua
pessoa: no caso, Brito é reconhecido como compilador e cultivador da História que,
com cuidado, diligência e curiosidade, coligiu relações de naufrágio úteis e
agradáveis.
A História de Brito divide-se em dois tomos, publicados respectivamente
em 1735 e 1736. Na editio princeps, o título é apresentado em caixa-alta, com letras
capitais: nomeia-se, no caso, o gênero (histórico) e a matéria da coletânea
(experiências trágico-marítimas). O título é seguido de outras especificações: em
que se escrevem cronologicamente os naufrágios que tiveram as naus de Portugal,
depois que se pôs em exercício a navegação da Índia. Este texto, que nesta edição
se encontra em itálico e com fonte consideravelmente menor, determina a
disposição da coletânea (organizada em ordem cronológica) e especifica a matéria
(naufrágio de naus portuguesas na Carreira da Índia). Após estes informes,
deparamo-nos com o número do tomo, o nome do dedicatário (“Augusta Majestade
do Muito Alto e Muito Poderoso Rei D. João V”), o nome do coletor, o selo real, o
local em que a obra foi dada à estampa (Lisboa Ocidental), a oficina que a imprimiu
124 Ver: MONIZ, António Manuel de Andrade. A História Trágico-Marítima: Identidade e Condição Humana. Lisboa: Edições Colibri, 2001, p. 11. 125 MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana, Historica, Critica, e Cronologica... Tomo I. Lisboa: Oficina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1741, p. 532.
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(da Congregação do Oratório), a data (em algarismos romanos) e a afirmação de
que o exemplar segue com as licenças necessárias para impressão.
No tomo I, com um total de 479 páginas, encontramos a dedicatória ao rei
D. João V, as licenças (papal, episcopal e real), um index e seis relações de
naufrágio. No tomo II, que soma 538 páginas, constam as licenças, o index e outras
seis relações. São, portanto, 12 relações de naufrágio escritas ao longo de 50 anos
(1552-1602).126
Na dedicatória, Brito utiliza alguns argumentos que conferem um lugar à
coletânea, a si próprio e ao rei:
Como V. Majestade, por sua real grandeza, se fez augusto protetor da História, erigindo a sua preclara Academia, parece que permitiu aos afortunados historiadores deste século a glória de recorrer ao seu real asilo, indulto de que agora me valho para pôr aos reais pés de V. Majestade, nestes tomos, estes fragmentos históricos, que já perdem o horror de lastimosos, na fortuna de dedicados, conseguindo eu para aqueles vassalos desta coroa (que agora o são de V. Majestade com melhor estrela) nos seus naufrágios o mais feliz porto, senão para as suas vidas, para as suas memórias. O Céu dilate a vida de V. Majestade para felicidade desta Monarquia.127
Na posição de historiador, Brito dedica os “fragmentos históricos” que
coligiu ao rei D. João V, “protetor da História” e criador da Academia Real de História
Portuguesa. Mas qual seria a função do historiador no momento em que a História
Trágico-Marítima foi impressa? Evocando uma passagem de Cícero, o clérigo
Raphael Bluteau, que também foi membro da referida Academia, afirma que
“historiador” é o “escritor de alguma história”.128 A história, para ele, é “narração de
coisas memoráveis, que tem acontecido em algum lugar, em certo tempo, e com
certas pessoas, ou nações”.129 Estes elementos estão implicados na dedicatória de
Brito, quando afirma que seu propósito é conseguir para os vassalos da Coroa o
mais “feliz porto, senão para as suas vidas, para as suas memórias”. Bluteau, ao
final, retoma a definição ciceroniana da história: “testemunha do tempo, a luz da
verdade, a vida da memória, a mestra da vida, e a mensageira da Antiguidade”.130
126 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998. Nas próximas referências, utilizaremos somente as iniciais deste livro (HTM) e o número da página. 127 HTM, p. 01. 128 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728, volume 04, p. 41. 129 Idem, p. 39. 130 Idem, p. 40.
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É possível encontrar alguns sentidos para a “história” na primeira
proposição da Academia Real da História Portuguesa, acompanhada de um estatuto
que define os fundamentos da história que se queria produzir. A intenção, no caso,
era constituir duas histórias: uma eclesiástica e outra secular. O proponente, Manoel
Caetano de Sousa, comparou a história a um edifício, mencionando os muitos
artífices responsáveis por sua construção e a necessidade de uma “planta” na qual
se estabelecessem as “regras da arte” convenientes à empreitada. O fruto do
trabalho conjunto, no caso, seria um “corpo proporcionado em todas as suas partes”.
O estilo, no caso, deve ser puro, claro, escrito em língua portuguesa, não como
anais, a não ser no que se refere à divisão por matérias, com narração sem
interrupção e disposta cronologicamente. A Cronologia e a Geografia foram
consideradas os dois “olhos” da história.131 Dentre os assuntos que ela trata, não
poderiam faltar, claro, as guerras e descobrimentos, temas contemplados pelos
“fragmentos históricos” de Brito.
Os esforços dos acadêmicos foram mobilizados não apenas para a escrita
da(s) história(s), mas também para a reunião de documentos nos quais os
acadêmicos pudessem recolher informes históricos. Esta busca, de acordo com
Manoel Telles da Silva, era dificultosa, talvez pela escassez de homens capazes de
efetuá-la. A(s) história(s) incluía(m) vários subgêneros, tais como as hagiografias, as
genealogias, as crônicas, as notícias, as relações, dentre outros. A “verdade” da
história mantinha laços estreitos com a virtude do homem português, ou seja, a
produção historiográfica estava atrelada a um tipo característico de serviço prestado
à Coroa. Uma das censuras da obra de Telles da Silva, realizada pelo Marquês de
Abrantes, propõe um enunciado que chamou nossa atenção: “Se qualquer História é
testemunha do tempo, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, e
mensageira da antiguidade, que será da História de Portugal? Será testemunha do
merecimento, luz da erudição, vida do entendimento, mestra da heroicidade,
mensageira da glória imortal?”132 Após fazer esta pergunta, o censor afirma que esta
mera transposição de epítetos não seria o suficiente para explicar seu parecer. O
autor retoma a tópica ciceroniana da historia magistra vitae e a propõe com novo
formato, desta vez matizando as prioridades da própria Academia. No entanto, este
131 Ver: Coleção dos documentos, estatutos e memórias da Academia Real da História Portuguesa... In: História da Historiografia, Ouro Preto, n. 03, 2009, pp. 216-235. 132 SILVA, Manoel Telles da. História da Academia Real da História Portugueza. Lisboa: Officina de Joseph Antonio Sylva, 1727, s/p.
58
novo formato não refuta ou contraria o antigo: alude-se ao mérito dos portugueses, à
erudição e entendimento daqueles que escrevem história, à heroicidade das ações e
à fama decorrente delas. Faz-se, portanto, um exercício de particularização da
tópica em conformidade com os protocolos da Academia, que continua com o
objetivo de propor a exemplaridade da história portuguesa em suas dimensões
eclesiástica e secular. O texto em questão trata do que o censor chama de sucessos
e ações da “República das Letras”, o que justifica muitos dos epítetos empregados.
Aliás, o censor faz um deslocamento muito interessante, para afirmar que a história
então narrada não perde em nada perante as histórias antigas, muitas vezes
conseguindo superá-la no que se refere não apenas aos exemplos elencados, mas
também à escrita empregada.
As informações sobre os autores das relações de naufrágio, no geral, são
escassas, mas alguns deles gozam de fama, muitas vezes em razão de outros
escritos que lhe foram atribuídos: é o caso de Diogo de Couto, por exemplo, que
continuou a escrita das Décadas da Ásia após a morte de João de Barros. João
Batista Lavanha, por sua vez, foi cosmógrafo-mor de Portugal e, além de tratados
sobre a arte da navegação, escreveu genealogias de reis. Manuel de Mesquita
Perestrelo, que chegou a ser capitão da fortaleza de Maluco por três anos, deixou-
nos, em 1576, um roteiro de viagem que orienta no trecho situado entre o Cabo da
Boa Esperança e o Cabo das Correntes.133 Sobre outros narradores (caso de
Henrique Dias, Manuel Rangel, Gaspar Afonso, Melchior Estácio do Amaral e
Manuel Godinho Cardoso) pouco se sabe.
Dos doze relatos, quatro (III, VI, VIII e XI) focalizam a viagem de ida e
sete (I, II, IV, V, IX, X, XII) apresentam-nos a torna-viagem. O relato de número VII
ocupa-se somente de uma parcela do retorno (Brasil-Portugal). A extensão das
narrativas varia: o quarto relato, sendo o menor, soma 33 páginas. O sexto conta
com um total de 128 páginas. Dois dos relatos (I, VII) apresentam um prólogo, e
apenas um (XII) exibe uma dedicatória. Três deles (VI, X, XI), embora destituídos de
prólogo, delimitam bem o exórdio, com informações introdutórias.
Em termos de invenção, disposição e elocução, os relatos apresentam
algumas características em comum: a adoção da narrativa in ordo naturalis, a
moderação dos encômios, a opção por uma narrativa clara e verossímil, a
133 Ver: MONIZ, António Manuel de Andrade. A História Trágico-Marítima: Identidade e Condição Humana. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp. 16-21.
59
valorização do sentido da visão em detrimento da audição, o uso de digressões,
exemplos, descrições e amplificações, a recorrência a um gênero humilde ou tênue,
a retratação de uma história de caráter providencialista, o domínio de termos
náuticos, latinos, astrológicos, a emulação de auctores consagrados pela tradição
retórico-poética.134 No que se refere à disposição, Giulia Lanciani sugere o seguinte
arranjo: (1) antecedentes-partida, (2) tempestade, (3) naufrágio-arribação, (4)
peregrinação e (5) retorno-salvamento.135 Esta sugestão é pertinente no sentido de
orientar a leitura dos relatos, mas nem todos eles reproduzem sistematicamente este
ordenamento.
Os relatos devem ser lidos a partir das regras discursivas de seu tempo:
quando são apreendidos como exteriores à sua própria história (reflexo da realidade,
pessimismo, oposição ideológica à empresa descobrimentista, prenúncio do
Barroco, originalidade estética e/ou ressentimento psicológico), normalmente deixa-
se de lado seu estilo. O estilo, no caso, deve ser entendido como linguagem
“fortemente regrada por prescrições de produção e de recepção”.136 Como disse
João Adolfo Hansen em seu estudo sobre as sátiras atribuídas a Gregório de Matos,
termos como “pessimismo”, “ressentimento”, “plágio”, “imoralidade”, “realismo”,
“oposição nativista crítica”, “libertinagem” e “revolução” podem até apresentar “algum
valor metafórico de descrição de um efeito particular de sentido produzido pela
recepção”, mas não dão conta historicamente do seu funcionamento como prática
discursiva de uma época.137 As tópicas retóricas não devem ser lidas como empiria,
pois esta leitura desconsidera as particularidades histórico-retóricas do discurso e
valoriza um vivido psicológico improvável.
No que se refere às suas características genéricas, a relação de naufrágio
pode ser lida como subgênero das formas historiográficas ou desdobramento do
gênero histórico, como é o caso das crônicas, notícias, tratados, panegíricos, anais,
vidas, histórias e diários. Todos esses gêneros (ou subgêneros) historiográficos
utilizam lugares-comuns epidíticos, tratando-se de uma “prosa imitativo-
134 Há referências a poetas (Homero, Virgílio, Ovídio), preceptistas (Aristóteles, Horácio, Cícero, Luciano de Samósata), autoridades do Cristianismo (Jó, Davi, S. Basílio, S. Gregório, S. Paulo, S. Dionísio Areopagita), filósofos (Platão, Aristóteles, Sêneca, Estrabão, Macróbio) e, principalmente, à Sagrada Escritura (sobretudo a fragmentos do Antigo Testamento). 135 Ver: LANCIANI, G. Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII. Portugal: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979. 136 HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, São Paulo: Ateliê Editorial, Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 32. 137 Idem, p. 33.
60
emuladora”138 e não de transposição de realidades empíricas. A narrativa de
naufrágio é trágica, ou seja, determina-se o sentido das narrativas como histórias
que começam bem e terminam (nem sempre) mal. A experiência trágica, no caso,
pressupõe e reafirma a existência de Deus, ou seja, Deus continua atuando
providencialmente no tempo mesmo quando os episódios são trágicos. Para melhor
compreender as condições de produção dos relatos de naufrágio, é necessário
estudar as particularidades do gênero histórico e as tópicas retóricas antigas que
continuam a fazer parte de sua narrativa nos séculos XVI-XVIII.
O gênero histórico e o subgênero relação
Tucídides tratou da guerra entre atenienses e peloponésios, assegurando
a grandiosidade deste evento. Em seu proêmio, ele declara a ausência do teor
mítico em detrimento de uma escrita clara e útil, que teria serventia duradoura:
ktema es aiei, aquisição para sempre. Sua narrativa, baseada em indícios e no
exame apurado, na autópsia, denota uma busca criteriosa pela verdade (alêtheia).139
Quando registra, por exemplo, os sintomas e distúrbios causados pela peste que
assolou Atenas, Tucídides zelava por “legar aos homens vindouros o conhecimento
informativo preciso que lhes capacitasse reconhecer, no futuro, um eventual surto
daquela epidemia que atrozmente surpreendera seus contemporâneos”.140 Os
remédios humanos mostraram-se inúteis contra esta ocorrência: nota-se um estado
de anormalidade no qual também o médico perece, por manter contato com os
pacientes contaminados. É um fenômeno proteico, como indica Murari Pires, pois se
manifesta de forma múltipla e contraditória, variando em rápidas sucessões e
metamorfoses que se esquivam do entendimento humano. Mudança sutil do kléos
épico ao ktema tucidideano, que permite a persistência da figura do herói: não mais
através da métis de Ulisses ou da ira de Aquiles, mas da prudência de Péricles141 e
da clarividência de Temístocles.142 Hartog discorre sobre a sutileza desta mudança:
138 O termo foi utilizado em: SINKEVISQUE, Eduardo. Usos da ecfrase no gênero histórico seiscentista. In: História da Historiografia, Ouro Preto, n. 12, 2013, pp. 45-62. 139 HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 63. 140 PIRES, Francisco Murari. “Tucídides e Maquiavel: diálogos sobre a (in)utilidade e a (des)valia da história”. In: SEIXAS, Jacy; CERASOLI, Josianne; NAXARA, Márcia (orgs.). Tramas do político: linguagens, formas, jogos. Uberlândia: EDUFU, 2012, p. 503. 141 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro VI, V, 1140b1, 8-11, p. 133; CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Tradução e notas
61
Por sua declamação, retomada incessantemente, o aedo de outrora oferecia um kleos imortal aos mortos heroicos. Heródoto tinha pretendido impedir que as marcas da atividade dos homens viessem a apagar-se, ao deixarem de ser relatadas. Tucídides, ao escolher “deixar por escrito”, desde seu começo, uma guerra que ele sabia que deveria ser “a maior” de todas, apresenta sua narrativa como um “ktema para sempre”. É sensível o deslocamento do kleos ao ktema. O tempo da epopeia havia chegado realmente a seu termo. Daí em diante, em vez de preservar do esquecimento as ações valorosas, trata-se de levar os homens do futuro a receber um instrumento de inteligibilidade do próprio presente: a Guerra do Peloponeso, construída por seu primeiro (mas também, em certo sentido, último) historiador como ideal-tipo. Em vez de um instrumento de previsão do futuro, ela pretendia ser ferramenta de decifração dos presentes por vir.143
Políbio, por sua vez, propõe uma história “pragmática”. Ele diz: “nós que
não buscamos tanto o prazer do futuro leitor, mas a utilidade dos que desejam
aprender, deixamos de lado todo o resto para consagrar-nos a esta parte”.144 Neste
sentido, ele segue os passos de Tucídides ao afirmar a centralidade da utilitas na
escrita da história. A história pragmática, no caso, é composta por três partes: do
estudo diligente de memórias e de outros documentos, da análise de eventos
políticos e do reconhecimento de cidades, rios, lugares, lagos, distâncias, enfim, da
geografia. Não por acaso, Políbio considera Ulisses o primeiro grande historiador,
pois, em seu retorno a Ítaca, ele viu, conheceu pessoalmente e passou por aflições.
Como afirma Hartog, a história, neste caso, deveria oferecer uma “educação política
mais eficaz”, “o melhor treino para a ação” e ensinar “a suportar dignamente os
reveses da fortuna”. Políbio emula Platão para dizer como os historiadores devem
proceder:
Parece-me, é também o princípio da história que tal homem [Ulisses] busca. Com efeito, Platão diz que os assuntos humanos só irão bem quando os filósofos reinarem ou os reis filosofarem. Eu, de minha parte, diria que os assuntos da história só irão bem quando os homens de ação se ocuparem em escrever histórias – não incidentalmente como hoje, mas por julgarem que se trata do que há de mais necessário e de mais belo para eles, consagrando-se a isso, sem distração, enquanto durar sua vida – ou então
de Amador Cisneiros. Livro primeiro, XVI. In: Os pensadores. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 295. 142 Sobre a heroicidade de Péricles e Temístocles, ver: MAGALHÃES, Luiz Otávio de. Tucídides: a inquirição da verdade e a latência do heróico. In: JOLY, Fábio Duarte. História e retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, pp. 13-43. 143 HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 63. 144 POLÍBIO. Histórias, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 121.
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quando os que se ocupam em escrever considerarem que a experiência tirada das próprias ações é necessária para a história.145
Somente a história contemporânea é factível, e nisto Políbio aproxima-se
de Tucídides. Outro nexo é a valorização da experiência política e militar. Convém
recordar que Tucídides ficou exilado durante duas décadas.146 Para Políbio, era
necessária a criação de uma história universal para, através de uma visão do
conjunto, entender-se melhor as vicissitudes da Fortuna.147 Se Tucídides afirmou a
grandiosidade da guerra do Peloponeso demonstrando sua superioridade em
relação aos conflitos passados, Políbio busca entender os trâmites da Fortuna, pois
esta, “ainda que inove e combate continuamente com a vida humana, simplesmente
jamais realizou obra nem combateu combate como em nossos dias”.148 Aqueles que
se ocuparam de histórias particulares padecem, segundo Políbio, de
algo próximo do que experimentam os que contemplam partes disjuntas de um corpo que foi animado e belo, considerando-se fieis testemunhas oculares da atividade e da beleza do animal. Se, com efeito, logo alguém reunisse as partes e compusesse de novo o animal por inteiro, com sua aparência e o garbo de sua alma, e, em seguida, de novo mostrasse a essas mesmas pessoas, de imediato, penso, todas elas concordariam que estavam muitíssimo longe da verdade e próximas de quem sonha.149
Os historiadores romanos também retomam as discussões sobre a
utilitas, implicada na tópica ciceroniana da história exemplar, que é bem conhecida
entre os historiadores: “a história é testemunha dos séculos, luz da verdade, vida da
memória, mestra da vida, mensageira do passado”.150 Por isso, cabia ao orador
prudente narrar os eventos históricos, pois ele conhecia, simultaneamente, a matéria
a ser tratada e a forma adequada de dizê-la.
145 Idem, pp. 123-125. 146 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, 5, 26, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 85. 147 Como lembra François Dosse, Políbio compara a história universal a um organismo “em que todas as partes são estreitamente solidárias, o que permite evidenciar não só certas continuidades históricas, mas fazer história comparada, captar a concordância dos fatos em universos aparentemente sem nenhum vínculo”. Por isso ele recorre, também, a dados geográficos e etnográficos: para construir sínteses coerentes. Ver: DOSSE, François. A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 47. 148 POLÍBIO. Histórias, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 117. 149 Idem, ibidem. 150 CÍCERO apud TEIXEIRA, F. C. Uma construção de fatos e palavras: Cícero e a concepção retórica de história. In: Varia Historia: Belo Horizonte, vol. 24, n° 40, 2008, p. 557.
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Assim, se em Tucídides existe a pressuposição tácita de que o phronimos é potencialmente o melhor historiador, por ser capaz de observar e compreender com clareza as variações da realidade sem se deixar levar por simpatias e partidarismos diversos, conformando a fidúcia necessária à validação do procedimento da autópsia, em Cícero a unidade retórica entre res e verba só pode ser alcançada pelo prudente, um orador eloquente que seja ao mesmo tempo profundo conhecedor da matéria tratada.151
Se em Tucídides era necessário ver para crer, em Cícero o ver
relacionava-se à elocução narrativa, ou seja, ele afirma que é através da palavra que
se coloca a matéria histórica “diante dos olhos” dos leitores. Salústio, de forma
parecida, busca produzir uma lição honesta a partir dos modelos de virtude que
apresenta. Em Guerra de Jugurta, além de reforçar a utilidade da memória dos fatos
passados, Salústio utiliza uma analogia que esclarece a forma como concebe esta
utilidade: os retratos dos ancestrais.
Sem dúvida, aquela cera e argila não têm em si tanta força, mas a memória dos fatos passados faz crescer essa flama no peito dos homens excepcionais, não se apaziguando antes de sua virtude ter igualado sua reputação e sua glória. Ao contrário, pelos costumes de hoje, quem dentre todos não rivaliza com seus ancestrais pela riqueza e gastos, não pela probidade e atividade?152
Já em Conjuração de Catilina, parece predominar um elogio à prudência,
entendida como a principal das virtudes por articular a concórdia civil e o equilíbrio
dos apetites, como afirma Felipe Charbel.153 Ao amplificar as virtudes de César e
Catão e vituperar os vícios de Catilina, Salústio inventa um éthos virtuoso e outro
vicioso. Tal como Cícero, Salústio detém conhecimentos políticos e militares. Além
disso, ele insiste na centralidade do narrar, como afirma Sebastiani:
Se Salústio não vivenciou o período, conhecia todavia muito bem o ambiente senatorial e o jogo político romano, do qual participou sob auspícios de César, até retirar-se para escrever história. Muito mais do que uma forma de crítica indireta à sua própria época, o enfoque no passado remoto se baseia na convicção de que a experiência presente somada a algum outro instrumento teórico permitiria que o historiador se libertasse dos laços que o prendem ao presente. Esse instrumento teórico se fundamentava numa ideia comum entre Cícero e Salústio: a de que a história é tarefa de indivíduos capacitados para escrevê-la, mas que não
151 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010, p. 167. 152 SALÚSTIO. Guerra de Jugurta, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 173. 153 Idem, p. 175.
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necessitam especificamente de experiência direta dos fatos narrados, e sim do conhecimento da maneira apropriada de narrá-los.154
No que se refere a Cícero, François Dosse fala de uma “poética da
história”, que “obedece ao horizonte de busca da verdade com o fito moral de
formação do homem”.155 Cícero prioriza, segundo Dosse, um discurso que “deve
permanecer num estilo fluente e amplo, conservar um ritmo regular, ampliando-se ao
evitar as asperezas”.156 Em seguida, o autor afirma que esta poética da história tem,
por princípios básicos, a prudência e a justiça.157
Em Plutarco, a noção da história como mestra da vida é reforçada pela
metáfora do espelho: ele se ocupa de escrever vidas para “organizar e conformar”
sua própria vida “às virtudes daqueles, como se olhando num espelho”.158 Por
analogia, o historiador é aquele que “hospeda”, através da história, a memória de
grandes homens, “tomando de suas ações o que é mais forte e mais belo para
conhecer-se”.159 Em A Glória dos Atenienses, ele afirma que “a imagem da glória
alheia reflete e brilha dos empreendedores para os escritores, aparecendo as ações,
através das palavras, como num espelho”.160 Como afirma Hartog, Plutarco
concentra a glória verdadeira nos homens de ação, sendo que a dos historiadores é
toda emprestada. No caso, o espelho seria o próprio historiador, que reflete para o
leitor a imagem da glória alheia.161
Para Luciano, assim como para Políbio, o historiador é um homem de
ação e a história deve ser pragmática. Aproximando-se de Tucídides, a história para
Luciano deve ser também “uma aquisição para sempre, mais que uma peça de
concurso, voltada para o presente”.162 Não se privilegia, portanto, o interesse do
historiador, mas tão somente a utilidade futura da história escrita no presente. O
propósito de Luciano, no entanto, não é negar o prazer decorrente da história, mas 154 SEBASTIANI, Breno Battistin. A política como objeto de estudo: Tito Lívio e o pensamento historiográfico romano do século I a. C. In: JOLY, Fábio Duarte. História e retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, pp. 80-81. 155 DOSSE, François. A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 95. 156 Idem, ibidem. 157 Idem, p. 96. 158 PLUTARCO. Vida de Timoleonte, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 175. 159 Idem, ibidem. 160 Idem, p. 179. 161 Ver: HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, pp. 184-185. 162 LUCIANO DE SAMÓSATA. Como se deve escrever a história. Tradução, notas, apêndices e o ensaio Luciano e a história de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 199.
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associá-lo à utilidade: a história pode ser ornada, mas de “figuras sem peso e que
não pareçam artificiais, já que estas tornam o estilo semelhante às sopas muito
temperadas”.163 É necessário, portanto, “algum sopro poético para inflar as velas
com bons ventos e elevar a nau sobre a crista das ondas”.164 O modelo de
historiador, para Luciano, é Xenofonte, responsável por uma história verdadeira, útil
e, portanto, justa. É preciso alcançar, ainda, a harmonia do texto, pois “tudo deve ser
homogêneo e da mesma cor, harmonizando-se o resto do corpo com a cabeça”.
Muitos historiadores, no entanto, “põem a cabeça do Colosso de Rodes num corpo
de anão. Outros, pelo contrário, apresentam corpos acéfalos, sem proêmios, e
entram direto no assunto”.165
Embora a tópica Historia Magistra Vitae tenha sido cunhada por Cícero,
vimos que a ideia de a história ser um saber privilegiado na orientação do agir é
virtualmente tão antiga quanto a invenção da historiografia grega. Marcelo Jasmin
recorda que “a suposição das potencialidades pragmáticas do conhecimento
histórico era lugar comum na consciência historiadora anterior” a Cícero. Ele
continua:
A empresa historiográfica original, verdadeira “operação contra o tempo”, cuja pretensão era “salvar do esquecimento” (Heródoto) as ações dignas por sua grandeza para transformá-las numa “aquisição para sempre” (Tucídides), sugeria entre suas finalidades primordiais conhecer no passado as bases adequadas para o agir presente. Conhecer a história, supunha-se, poderia levar os homens a repetirem os sucessos anteriores sem incorrerem novamente em antigos erros. Num contexto de pensamento em que a imitação da experiência alheia era prescrita como remédio para a ausência de experiência própria, e em que se considerava o sucesso anterior dos grandes homens como bom critério na avaliação do possível êxito das ações contemporâneas, a história ganhou o estatuto de saber indispensável à formação dos homens públicos.166
Marcelo Jasmin destaca, ainda, a vocação pedagógica, pragmática e
paradigmática da história mestra da vida: pedagógica porque orienta o agir no
presente a partir de lições extraídas do passado; ela é também pragmática, com
“seu conteúdo ético-político voltado para a ação individual à qual se creditava a força
impulsionadora da política e se reservava o lugar primordial na narrativa”; por fim,
ela é paradigmática porque “seu método de ensino se consubstanciava na difusão 163 Idem, p. 73. 164 Idem, ibidem. 165 Idem, p. 55. 166 JASMIN, Marcelo Gantus. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 17.
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daquelas situações consideradas exemplares e que serviam, por isso mesmo, como
verdadeiros modelos de conduta para todos os homens”.167 Considerada em sua
longa duração, este topos não é concebido de forma homogênea: Heródoto investiu
no relato dos costumes de gregos e “bárbaros” para entender as guerras médicas.
Para Tucídides, a história deveria estar necessariamente ligada aos assuntos
políticos para assegurar sua validade. Em Cícero, a história estava revestida de um
teor moral, da mesma forma que a historiografia cristã medieval, que pretendia
“apresentar a essência pecaminosa do homem e a alternativa paradigmática da
santificação”.168 A chamada historiografia renascentista, por sua vez, seguindo os
cânones historiográficos antigos, foi essencialmente política. Todas estes informes,
muito simplificados, não pretendem outra coisa senão dar a entender que a historia
magistra vitae é plural.
Pensemos, agora, nas especificidades da história cristã portuguesa dos
séculos XVI e XVII levando em conta as considerações de Hansen sobre o assunto:
A principal dessas especificidades é o modo qualitativo pelo qual concebem a temporalidade como emanação ou criação de Deus que inclui a natureza e a história, subordinando-as providencialmente no projeto de salvação. A representação propõe que a natureza e a história são simultaneamente efeitos criados por essa Causa e signos reflexos dessa Coisa, ou seja, que ela mesma, representação de efeitos e signos, é signo e efeito. A história, incluída no tempo como uma de suas figuras proféticas, é concebida providencialmente, pois recebe do tempo, que é criado, sua participação na substância divina, que a aconselha e orienta para um fim superior. A concepção relaciona a experiência do passado e a expectativa do futuro como previsibilidade, pois afirma-se que a Identidade de Deus, Causa Primeira, repete-se em todas as diferenças históricas do tempo, tornando análogos ou semelhantes todos os seus momentos, desde a Criação até o presente dos intérpretes.169
Raphael Bluteau, através da autoridade de Santo Agostinho, lembra que a
Sagrada Escritura é portadora de uma história irrefutável, ou seja, não há história
verdadeira que a contrarie.170 Logo, o conteúdo dos relatos de naufrágio inclui,
necessariamente, a presença de Deus, que se repete “em todas as diferenças
históricas”. Não há punição que não Lhe diga respeito, não há acontecimento no
qual Ele não esteja presente. Há, porém, limitação humana, pois o homem não
167 Idem, p. 19. 168 Idem, p. 20. 169 HANSEN, João Adolfo. Barroco, Neobarroco e Outras Ruínas. In: Floema Especial (UESB), ano II, n. 2, 2006, p. 58. 170 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728, volume 04, p. 39.
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entende com clareza os sentidos da justiça divina. Se todos os momentos históricos
são análogos, justamente por implicarem a identidade de Deus, deduz-se que a
história pode ensinar maneiras de agir conformadas à vontade da Providência. Neste
sentido, a história ensina a reta razão e demonstra como aplica-la ao agir, a partir
dos erros ou dos acertos alheios. Em outras palavras, ela ensina prudência.
O prólogo e a dedicatória da História da Província de Santa Cruz (1576),
de Pero de Magalhães Gandavo, mobilizam lugares comuns recorrentes em
exemplares do gênero histórico. Muitos destes topoi foram amplificados nos versos
que Camões dedica a este historiador. O argumento central do poeta, efetuado
através de uma fábula onírica, conta com a participação de três divindades do
panteão greco-romano: Marte, Apolo e Mercúrio. O deus da guerra, que brandia uma
“lança furiosa”, afirma, com voz “pesada e temerosa”, que uma obra se torna famosa
quando oferecida “a quem por armas resplandeça”. Apolo, ao contrário, assegura
que somente o dedicatário sapiente/prudente poderia defender apropriadamente
uma obra, alegando que a “dureza das armas” é contrária à eloquência. Mercúrio,
portando seu caduceu, dissipa a contenda ao propor a possibilidade de aliar pena e
espada, sinédoque que indicam, respectivamente, o uso das letras e das armas. O
deus mensageiro menciona os exemplos de Alexandre e César, que portavam “nu’a
mão livros, noutra ferro e aço”, e orienta Gandavo quanto à escolha do dedicatário,
indicando dom Lionis Pereira. Dois argumentos da deidade justificam a escolha: por
um lado, ele foi educado pelas Musas, com quem aprendeu as artes, a ciência, as
virtudes morais e a inclinação divina. Por outro, ele se tornou capitão “forte e
maduro” devido às experiências vivenciadas no Oriente, causando admiração por
parte dos amigos e temor por parte dos inimigos. Marte e Apolo adiam a porfia e
aprovam a escolha de Mercúrio. Gandavo acorda deste sonho com sua decisão
tomada. Na sequência, Camões menciona o “claro estilo” e o “engenho curioso” da
História. Por fim, dirigindo-se ao dedicatário, o poeta faz uso de uma analogia,
dizendo que o historiador deve ser defendido da mesma forma que o muro de
Malaca, local onde Lionis Pereira conquistou sua fama e consagrou sua memória.171
Após esta fábula, o leitor encontra um soneto no qual Camões discorre
sobre a vitória de dom Lionis em batalha contra o rei de Achém, em Malaca. Quando
o aedo se silencia, o narrador entra em cena. Inicialmente, com modéstia afetada,
171 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, pp. 70-73.
68
Gandavo reconhece que detém um “fraco entendimento” e menciona sua obrigação
de pagar, mesmo que com limitações, “alguma parte do muito que se deve” ao herói
a quem se dirige.172 É possível encontrar, aqui, um dos preceitos da Retórica a
Herênio. No caso das recomendações referentes ao gênero demonstrativo (ou
epidítico), que contempla tanto a prosa historiográfica quanto a poesia, o autor
anônimo menciona quatro arrazoados dos quais é possível extrair uma introdução:
da pessoa que elogia/vitupera, da pessoa elogiada/vituperada, dos ouvintes e/ou do
próprio assunto abordado. No primeiro caso, em se tratando de um elogio, o
encomiasta pode aludir ao seu dever de escrever aquela matéria, por exigência da
amizade e da admiração que devota à personagem elogiada, ou pode mencionar
seu zelo, o que justifica a divulgação de virtudes que merecem ser recordadas.173
Parece-nos que Gandavo faz uso deste procedimento em sua epístola dedicatória.
Sob a máscara da rusticidade, a persona do historiador assume, neste
caso, duas posições: uma inferior, indicando suposta deficiência ou incompletude em
relação ao leitor discreto, e outra superior e, portanto, apreciativa, indicando possuir
a humildade que falta aos historiadores vaidosos que, através da adulação, buscam
as glórias somente para si. O lugar de humildade não é, portanto, um substituto para
a falta de engenho, mas uma licença para o livre exercício da discrição. Por outras
palavras, deste lugar não é possível inferir a má formação do narrador, pois se trata
de um artifício retórico adequado às liminares discursivas, pois o tipo humilde é
convincente, apto a captar a benevolência do leitor/ouvinte.
Em outro fragmento da dedicatória, Gandavo menciona o nobilíssimo
sangue e a clara progênie da qual se origina dom Lionis, sem deixar de referir os
troféus decorrentes “das grandes victorias e casos bem afortunados que lhe hão
succedido nessas partes do Oriente em que Deus o quiz favorecer com tão larga
mão”.174 No terceiro livro da Retórica a Herênio, o autor alude à tríplice divisão dos
elogios e vitupérios, que podem ser dirigidos a coisas externas, ao corpo ou ao
ânimo. As coisas externas são aquelas que podem acontecer “por obra do acaso ou
da fortuna, favorável ou adversa: ascendência, educação, riqueza, poder, glória,
cidadania, amizades”. Quanto ao corpo, convém elogiar seus atributos vantajosos:
“rapidez, força, beleza, saúde”. Dizem respeito ao ânimo “as coisas que comportam
172 Idem, p. 75. 173 Ver: [CÍCERO, M. T.]. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, pp. 163-167. 174 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 75.
69
nossa deliberação e reflexão: prudência, justiça, coragem, modéstia”.175 Nota-se,
portanto, que Gandavo atende estas recomendações ao elogiar a ascendência de
dom Lionis. Se tomarmos os versos de Camões como parte integrante da
dedicatória, é possível distinguir, também, elogios à força deste “grande Capitão” e à
coragem e prudência com as quais enfrentou várias vicissitudes em Malaca.
Em vias de finalizar sua dedicatória, Gandavo utiliza algumas tópicas que
Camões já havia mobilizado anteriormente: a valorização da conciliação entre letras
e armas, a importância das lições advindas das escrituras, o uso da brevidade como
procedimento adequado à história e a benignidade com a qual o dedicatário deveria
acolher esta “breve história”. Além disso, o historiador afirma ter sido “testemunha de
vista”, informação que deveria atestar a veracidade da narrativa.176 Convém
recordar, mais uma vez utilizando a Retórica a Herênio, das três coisas que convém
à narração que se ocupa do tratamento da verdade: clareza, brevidade e
verossimilhança. A clareza, diz o anônimo, pode ser obtida, por exemplo, seguindo a
ordem cronológica dos acontecimentos. A brevidade também contribui com a clareza
do discurso, pois se atém ao âmbito do necessário. O verossímil, por fim, é
viabilizado quando se fala “como o costume, a opinião e a natureza ditam”.177
Outro conjunto de tópicas foi utilizado no prólogo que Gandavo dirige ao
leitor. Mais uma vez com dissimulação honesta, ele mobiliza o lugar da humildade,
atestando que escreve por necessidade, tendo em vista que outros, com maior
engenho, não se interessaram pela matéria ou desconheciam sua grandiosidade.
Ele tece, então, um elogio às terras do Brasil, aludindo à prática, consagrada entre
os antigos, de perpetuar a memória através da história. Gandavo retoma o topos
ciceroniano da historia magistra vitae e abre mão de epítetos preciosos e de
vocábulos eloquentes em prol de um estilo fácil e chão (humilde), que propicia o
deleite do leitor/ouvinte. Por fim, ele se desculpa com os leitores discretos (doutos,
prudentes), que deveriam perdoar suas faltas, atitude que não esperava dos idiotas
(vulgares, néscios), que costumam maldizer tudo sem nada perdoar.178
No livro IV da Retórica a Herênio, quando o anônimo trata
especificadamente da elocução, encontramos uma exposição sobre os três gêneros 175 Ver: [CÍCERO, M. T.]. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, p. 161. 176 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 75. 177 Ver: [CÍCERO, M. T.]. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, pp. 59-69. 178 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, pp. 76-77.
70
de figura: grave, médio e baixo. À história convém justamente o gênero médio, que
se localiza entre as palavras ornadas do gênero alto (que Gandavo negou em seu
prefácio) e as palavras atenuadas do gênero baixo.179 Cícero, em seu De Oratore,
afirma algo parecido ao alegar que, no caso da história, é preciso perseguir “um
gênero oratório difuso e arrastado, que flua regularmente com uma certa suavidade,
sem essa aspereza própria ao tribunal e sem os aguilhões que as fórmulas têm no
fórum”.180 Prima-se por uma escrita verdadeira e imparcial, mas também verossímil.
Além disso, quanto ao gênero de figura, requer-se algo difuso, arrastado, humilde. A
história, portanto, efetua o deleite e a instrução dos auditórios: por ser útil, ela
aproxima-se do gênero deliberativo sem, no entanto, com ele confundir-se.
Em 1552 foi publicada a Primeira Década da Ásia. No prólogo, João de
Barros (c. 1496-1570) retrata a diferença entre a “virtude generativa” da Natureza,
que é renovável, e os feitos humanos, que dependiam da memória escrita, “Divino
artifício” que lega aos pósteros registros das ações e bons exemplos. A “elocução
artificial das letras” reúne um conjunto de “caracteres mortos” que contém em si
“espírito de vida”, afirma o autor.181 No prólogo da Terceira Década da Ásia,
publicada em 1563, Barros emula, inicialmente, o Timeu de Platão, para ressaltar a
importância de se conhecer a antiguidade das coisas. Homens que não valorizam as
lições de história continuam sendo “moços”, com ânimo “sempre mancebo”. Mais
adiante, o historiador retoma a autoridade de Cícero para censurar aqueles que
menosprezam a História e voltam os olhos exclusivamente para o presente,
preocupados somente com seus afetos e desejos. Ele mobiliza também os dizeres
de Aristóteles, para quem os exemplos do passado não apenas satisfazem o
entendimento, mas causam deleite. João de Barros faz uso de uma analogia
agudíssima ao apreender a História como campo onde se encontra semeada toda a
doutrina Divina, Moral, Racional e Instrumental: quem “pastar o seu fruto” vai
convertê-lo em “forças de entendimento” e memória para a condução de uma vida
justa e perfeita, aprazível a Deus e aos homens. Barros não para por aí, pontuando
algumas das leis que deveriam ser seguidas pelos historiadores: jamais desviar-se
179 Ver: [CÍCERO, M. T.]. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, pp. 213-221. 180 CÍCERO. Do Orador, II, 62-64, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 151. 181 Ver: BARROS, João de. Da Asia: Dos feitos, que os Portuguezes fizeram na conquista, e descubrimento das terras, e mares do Oriente – Década primeira (parte primeira). Lisboa: Regia Officina Typografica, 1778, s/p.
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da verdade, não escrever movido pelo ódio, não utilizar argumentos inverossímeis,
não desvalorizar a imitação, a eloquência, o decoro.182
De acordo com o licenciado Manuel Severim de Faria, João de Barros,
além de ser um súdito exemplar e virtuoso, guardou com muita eficácia todas as leis
da história: as partes essenciais (verdade, clareza e juízo) e as partes integrantes.
Além disso, o licenciado encontra nos escritos deste historiador o bom uso dos três
gêneros retóricos (demonstrativo, deliberativo e judiciário), uma escrita clara, com
uso prudente da descrição, com justa disposição e exemplos dignos de registro.
Decerto Severim de Faria compôs uma Vida, gênero retórico afinado ao
demonstrativo pela vertente encomiástica. Nestes termos, o louvor é menos um
retrato subjetivo e autônomo e mais um retrato objetivo, que inventa tipos, personae
dignas de imitação justamente por atender às prerrogativas do poder constituído e
integrar a memória do auditório, que reconhece no elogio um modus operandi
adequado às circunstâncias de seu presente.183
No prólogo de sua História do descobrimento & conquista da Índia pelos
Portugueses (1554), Fernão Lopez de Castanheda menciona a utilidade da história,
que ensina o que devemos fazer e de que devemos fugir. No entanto, ele afirma que
as lições de história são muito mais úteis aos príncipes do que aos homens privados,
pois o erro de um governante atinge todos que ele governa, ao passo que o erro de
um privado atinge somente a ele. Por isso, o príncipe deve retirar da história a
melhor maneira de aperfeiçoar-se, pois ela instrui através da experiência e dos
exemplos. Castanheda utiliza, ainda, da amplificação, para retratar a superioridade
dos feitos portugueses em relação aos feitos passados.184 Amplifica também a
importância de se ver os lugares sobre os quais discorre, para evitar equívocos
muitas vezes repetidos pelos historiadores que o precederam. Este historiador
consultou cartas, sumários e colheu testemunhos de pessoas “dignas de fé”. No
prólogo do livro três, salienta também o fato de ele ser homem “experimentado”, que
viu tormentas, batalhas no mar, navios naufragando, tudo para amplificar a
autoridade do seu relato como fruto da visão ou da experiência. 182 Ver: BARROS, João de. Da Asia: Dos feitos, que os Portuguezes fizeram na conquista, e descubrimento das terras, e mares do Oriente – Década terceira (parte primeira). Lisboa: Regia Officina Typografica, 1777, s/p. 183 Para mais informações sobre a Vida de João de Barros escrita por Manuel Severim de Faria, ver: ANDRADE, Luiz Cristiano. Os preceitos da memória: Manuel Severim de Faria, inventor de autoridades lusas. In: História e Perspectivas, Uberlândia, EDUFU, n. 34, 2006. 184 Ver: CASTANHEDA, Fernão Lopez de. História do descobrimento & conquista da Índia pelos Portugueses. Coimbra, 1551-1561, 8 vol. Disponível em: http://purl.pt/15294. Acesso em: março/2013.
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Fala-se muito do caráter trágico dos relatos de naufrágio, e pouco do seu
caráter prudencial. Já disse, com muita pertinência, Luis Cabrera de Córdoba:
Hazen prudentes, mas los malos sucessos q los buenos. Ver la prudencia con que se governaron para salir dellos, o para venir a ellos, es lo util para enseñar las vidas y costumbres. Si ay siempre felicidad, no ay para que industria, arte, ni consejo, pues alli solo govierna la fortuna.185
Nos relatos de naufrágio existem duas grandes fórmulas em se tratando
da exemplaridade da história: em uma deles, busca-se ensinar prudência através do
relato das viagens e dos erros ou acertos dos homens de outrora. Na outra,
pretende-se preservar a memória da intervenção providencial, única realmente
capacitada a livrar os nautas dos grandes males ocorridos no decorrer da viagem.
Na carta dedicatória do relato de naufrágio da nau Conceição (1627), por
exemplo, João Carvalho Mascarenhas declara a serventia de sua narrativa, que é
fundada “sobre uma matéria de pouca estima e baixo sujeito, por serem sucessos
acontecidos entre escravos e cativos”, o que não deixa de ter algum espírito e
curiosidade, nem deixa de “ser exemplar em história”.186 Quanto aos trabalhos
mencionados no relato, diz ele, “não perde nada sabê-los quem não os
experimentou”.187 A utilidade da matéria tratada fica ainda mais evidente no trecho
seguinte: “Não se isentando ninguém por mais próspero que seja, de cuidar que lhe
pode acontecer o que tem acontecido a tantos, e o que tem notícia de coisas
semelhantes já sabe se há-de haver nelas”.188
Padre Júlio Francisco, responsável pela licença do Ordinário que se
encontra no primeiro tomo da coletânea, afirma que Bernardo Gomes de Brito trata
dos “lastimosos” e “infelices” sucessos das naus da Carreira, reunidas em um livro
cuja lição, suave e agradável, não desagrada em nada os bons costumes da Santa
Fé. Ele é utilíssimo “para que os que houverem de navegar, desenganados dos
muitos e gravíssimos perigos de vida a que se expõem, concebam um santo temor
da morte”, e para “os que ficarem em terra compadecendo-se dos navegantes os
ajudem com fervorosas orações a escapar de tamanhos perigos: e todos nas
185 CÓRDOBA, Luis Cabrera de. De historia, para entenderla y escrivirla, p. 27. Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=TiA_AAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=ptBR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false. Acesso em: março/2013. 186 PERES, Damião (org.). Viagens e naufrágios célebres dos séculos XVI, XVII e XVIII, vol. 1. Porto: Tipografia e Encadernação Alberto de Oliveira, 1937, p. 25. 187 Idem, ibidem. 188 Idem, ibidem.
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calamidades de sucessos tão lamentáveis aprendam a miséria e inconstância deste
mundo”.189 Esta licença data de julho de 1729. Na licença do Paço, de agosto de
1729, Frei Lucas de Santa Catharina é brevíssimo ao mencionar a dignidade do
trabalho do compilador, “útil aos cultivadores da Historia”.190 Frei Manoel de Sá, na
licença do Santo Ofício, afirma tratar-se de um “teatro da História”, no qual é
encenado um papel “verdadeiramente trágico” e exemplar.
Padre José Troyano, na licença do Santo Ofício do segundo tomo da
coletânea, insiste na necessidade de se relatar as ocorrências do naufrágio como
paga pela salvação providencial, citando a autoridade do Eclesiástico: “Qui navigant
mare, enarrent pericula”. Este é um fragmento da passagem bíblica que diz o
seguinte: “Os que navegam sobre o mar contam os seus perigos; ouvindo-os,
ficaremos arrebatados de admiração” (Ec 43: 26). Só experimentando a braveza do
mar e a força da tormenta para “representar vivamente” uma tempestade desfeita.
Desta vez, o padre cita Virgílio para estabelecer uma analogia entre a prática antiga
de pendurar no Zambujeiro (espécie de oliveira) os despojos do naufrágio e o livro
de Brito, que dá a conhecer os naufrágios portugueses:
Forte sacer Fauni foliis Oleaster amaris Hic steterat, nautis olim venerabile lignum, Servati ex undis ubi figere dona solebant Laurenti divo et votas suspendere vestes.191
Segue a tradução para o português de José Victorino Barreto Feio e de
José Maria da Costa e Silva:
Sagrado, acaso, a Fauno um zambujeiro De amargas folhas nesse campo havia, Lenho outrora dos nautas venerado, Que ao naufrágio escapando, vinham nele Dons pendurar ao Nume de Laurente E as devotadas vestes.192
189 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Em que fe efcrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portugal, depois que fe poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo primeiro. Lisboa Ocidental: Officina da Congregação do Oratório, 1735, s/p. 190 Idem. 191 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Em que fe efcrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portugal, depois que fe poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo segundo. Lisboa Ocidental: Officina da Congregação do Oratório, 1736, s/p. 192 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro décimo segundo, p. 404.
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Nota-se, portanto, que a serventia do livro é múltipla: é obra que comove
e incentiva o “agradecimento a Deus Senhor Nosso” pelas misericórdias recebidas e
também é útil “aos que navegam às partes da Índia, e continuamente cursam aquela
Carreira, para que no perigo alheio aprendam a evitar o próprio”.193 A censura do
Frei José da Assumpção, Qualificador do Santo Ofício, diz que o livro deve ser
apreendido como
espelho em que cada um dos que neste proceloso mar deste mundo vivem, todos os dias se contemplem: pois nada menos (proporcionadamente) em a terra se encontra, do que em mar acontece: certo para a terra, e mar he este livro útil, e proveitoso, porque dos infortúnios, que em hum e outro elemento se experimentam, e das misericórdias de Deus, que tanto em uma como em outra parte nos assistem, faz a expressam que basta para todos crerem estas já mais não hão de faltar a quem souber animosamente depreca-las: lograram-na os invictos Varões dos quais esta presente história nos faz especial menção.194
O censor menciona a grandiosidade da história narrada e dos nautas que
a protagonizaram, pois “as adversidades não puderam eximi-los do amor que à
virtude tinham”. Ele cita Lucano, que diz “Crevit in adversis virtus” (Sua coragem
cresceu com a adversidade) e um provérbio latino, “Felix, quem faciunt aliena
pericula cautum” (Feliz daquele que aprende com os erros alheios), para conferir
autoridade à seguinte assertiva: “são ditosos para o mundo aqueles a quem os
perigos alheios fazem acautelados para em semelhantes não caírem”. Outra
utilidade do livro é a possibilidade de “aprender nele o como se alcança de Deus a
sua piedade, temendo a Divina justiça, avisados de outros, antes que de si mesmos
se valham”. Frei José de Assumpção menciona o que disse Valerius Maximus:
“Lento gradu ad vindictam sui Divina procedit ira, tarditatemque suplicii gravitate
compensat” (A ira divina avança em passo lento para a vingança Sua, mas
compensa com a gravidade o tardio do suplício), e Provérbios, “Quem diligit
Dominus corripit”, fragmento do versículo “Porque o Senhor repreende aquele a
quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem” (Pro 3: 12).195 Frei Xavier
de Santa Tereza, responsável pela licença do Paço, emula o relato de naufrágio
narrado pelo cosmógrafo João Baptista Lavanha ao dizer que o livro de Brito é o
193 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Em que fe efcrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portugal, depois que fe poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo segundo. Lisboa Ocidental: Officina da Congregação do Oratório, 1736, s/p. 194 Idem. 195 Idem.
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“melhor Roteiro a todos os navegantes dos mares da Índia”, no qual não se pode
achar nada que se oponha ao espírito das “prudentes Reais Leis”.196
No exórdio no relato de naufrágio da nau Santo Alberto, o narrador
menciona como este texto pode orientar a partir da prudência, pois o naufrágio
ensina como se devem haver os navegantes em outro que lhes pode acontecer, de que remédios proveitosos usarão nele e quais são os aparentes e danosos de que devem fugir, que prevenções se farão para ser menor a perda no mar e mais segura a peregrinação por terra, como com menos perigo desembarcarão nela. E a causa da perdição desta nau (que é o quase de todas as que se perdem), a relação do caminho mostra qual devem seguir e deixar, que apercebimentos farão para a sua grandeza e dificuldade, como tratarão e comunicarão com os cafres, com que meios farão com eles o necessário comércio, e sua bárbara natureza e costumes.197
Na sequência, ele complementa:
E para que de cousas tão importantes e novas se tenha o necessário conhecimento, escrevo este breve tratado, resumindo nele um largo cartapácio que desta viagem fez o piloto da dita nau, o qual emendei e verifiquei com a informação que depois me deu Nuno Velho Pereira, capitão-mor que foi dos portugueses nesta jornada.198
O “cartapácio” é um livro de mão, em que se escrevem várias matérias.
Em outras palavras, o narrador entra em contato com as anotações do piloto, que
confere e emenda com a ajuda de Nuno Velho Pereira, capitão de Sofala
(Moçambique), que esteve nesta jornada. A posição do narrador, na situação de
“cosmógrafo-mor”, justifica a introdução e os apontamentos sobre a utilidade dos
relatos de naufrágio.
O mesmo pode ser dito sobre a conclusão do tratado das batalhas que
fecha a coletânea de Brito, que lega lição aos pósteros:
O verdadeiro partir de Lisboa há-de ser antes que o Sol passe a Equinocial; bem de experiência há disso; e porque isto se não previne a tempo, arribam tantas naus, como arribaram no ano de 1601, que de nove que partiram arribaram cinco; e também se arriscam a muito as naus que não partem da Índia dentro em dezembro, para passarem o cabo de Boa Esperança no verão daquele polo em que então está o Sol. E finalmente, a felicidade desta carreira, mediante Deus, está em as naus não serem feitas de madeira verde, senão muito seca e colhida na lua velha de janeiro, no último da minguante e na minguante de dia, porque é verdadeira sezão de
196 Idem. 197 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 375. 198 Idem, ibidem.
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ser cortada (como as uvas vindimadas em setembro); tem então a madeira madurez, tem menos humor, é leve, seca mais depressa, dura mais, e não revê nem empena; e não só as naus de tal madeira serão mais leves e mais duráveis, mas mais fortes e estanques, porque a pregadura nesta madeira colhida de vez, é fixa, e fixo o calafetado. Consiste em serem as naus varadas a monte, para que se enxuguem e não se conservem úmidas; e bom é o conserto não ser de empreitada, nem cortando, porque tudo se fará à provisão que nisto desarma, e não convém. E as naus a que não for necessário conserto é muito importante, em descarregando, serem mui bem lavadas por dentro e muito bem esgotadas, passado o lastro acima para isso, porque o lodo e as águas chocas que trazem lhes apodrecem as quilhas e picas. Consiste, finalmente, em partirem em março de Lisboa antes do equinócio e da Índia dentro em dezembro e com carga ordinária, e não sobrecarregada; e todas estas cousas são factíveis, e podendo-se fazer, podia ser que não houvesse tantas perdas, que magoam até as pedras.199
Há um sentido providencial que orienta a história, neste caso. Basta
retomar a licença do padre José de Assunção, qualificador do Santo Ofício, quando
diz que se aprende, com estas relações, “como se alcança de Deus a sua piedade,
temendo a Divina justiça, avisados de outros, antes que de si mesmos se valham”.
Ou seja, aprende-se a navegar, mas também a temer a justiça divina e os meios de
se alcançar sua piedade. Na sequência, ele diz que os castigos de Deus, “ensaios
da sua ira”, são também “prendas do seu amor”, e é nesse momento que a ideia de
“pessimismo” ou de “decadência” torna-se ineficaz. Não que a opinião de um censor
venha a dirigir a leitura de todos os relatos, mas esta é uma tópica presente em
Tomás de Aquino, que as retira da Bíblia para representar a justiça insondável de
Deus, que nem sempre é inteligível para os homens. Deus testa o homem, como fica
claro em algumas passagens do livro sagrado, e pune com a intenção de fazê-los
aliviar o peso dos pecados e, assim, alcançar a salvação. É por isso mesmo que o
leitor atual estranha e considera inverossímil a atitude de Jorge de Albuquerque, que
se mantêm firme na fé mesmo frente aos mais terríveis infortúnios. A leitura do livro
de Jó, por exemplo, ajuda-nos a compreender como as obras divinas, mesmo
quando inconsistentes frente ao que espera o homem, têm um sentido justo,
salvífico.
No prefácio do relato de naufrágio da nau Conceição (1627), João
Carvalho Mascarenhas evidencia seu intuito:
Meu intento foi contar verdades (que em tudo o que escrevo como testemunha de vista poderei jurar), pelo que me pareceu não ser necessário adorno de palavras, nem linguagem floreada, que esta muitas vezes serve
199 Idem, pp. 542-543.
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mais de escurecer e confundir a história, que de a declarar e dar gosto a quem a lê; e também foi dar a entender clara e brevemente, como prático na milícia da Índia e na de diversas partes, e como quem militou nelas, a valorosa peleja desta nau, e a força que nossos inimigos têm na cidade de Argel, e os trabalhos que em serviço desta coroa tenho passado.200
Na sequência, ele frisa mais uma vez o gosto decorrente da narrativa: “e
posto que o contentamento de contar trabalhos passados me pode ficar por prêmio,
o ser bem aceita o terei por tão grande, quanto é o gosto com que a ofereço”.201 O
narrador se aproxima da história pragmática de Tucídides, Políbio e Gandavo, na
medida em que dispensa o adorno e a linguagem floreada e utiliza as tópicas da
clareza e brevidade. Vimos, no início deste tópico, que este procedimento estava
previsto na Retórica a Herênio, sobretudo em se tratando de obras fundamentadas
na verdade. João Carvalho Mascarenhas aproxima-se dos historiadores gregos da
Antiguidade mais uma vez quando afirma ter sido “testemunha de vista” e quando
informa sua posição política e militar, já que serviu/militou na Índia em atenção aos
ditames da Coroa. A superioridade da visão é central como forma de assegurar a
verdade, como ocorre em Tucídides, por exemplo, que prioriza o sentido da visão
em detrimento da audição por julgar a memória muito frágil. De acordo com Felipe
Charbel
a proeminência da visão [em Tucídides] põe em segundo plano a discussão sobre a tensão entre logos e ergon, pois, desde que o historiador não queira ludibriar seus ouvintes / leitores, o relato proveniente de testemunho ocular assegurará a verdade (alétheia) da exposição, no sentido do desvelamento do que poderia ter-se ocultado rapidamente com a ação destrutiva do tempo.202
A mesma distinção é efetuada também por Políbio, quando diz: “nós
temos, por natureza, como que dois instrumentos com os quais tudo aprendemos e
investigamos, a audição e a vista, sendo muito mais verdadeira a vista, conforme
Heráclito, pois os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos”.203 Políbio
utiliza este argumento para censurar a abordagem de Timeu, personagem de Platão,
200 PERES, Damião (org.). Viagens e naufrágios célebres dos séculos XVI, XVII e XVIII, vol. 1. Porto: Tipografia e Encadernação Alberto de Oliveira, 1937, p. 25. 201 Idem, p. 28. 202 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010, p. 554. 203 POLÍBIO. Histórias, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 121.
78
que prioriza a forma mais fácil e menos fidedigna de narrativa, baseada no que se
ouviu dizer.
O exórdio do relato de naufrágio da nau São Francisco levanta elementos
que, igualmente, reforçam a imprescindibilidade da utilidade e do deleite:
O desejo e sede com que isto me pediu quem por muitas vias me podia mandar, como mandou outras muitas cousas os anos que debaixo de sua obediência me teve, e o gosto com que me ouvia e fazia referir algumas das muitas cousas que por nós passaram, ou nós por elas, estes anos que andamos errando tantos mares e terras, quantas nunca Ulisses imaginou que podia haver para se navegar e errar, me obrigou a lho pôr por escrito e dar conta, para sua consolação e dos mais que a lerem, ainda que em suma e mui cifrada, desta nossa tão larga e trabalhosa peregrinação, com dobrado interesse. O primeiro, meu, assim por ser cousa tão natural, como diz Sêneca, folgar cada um com o fim de seus males, como pelo que Macróbio diz que sentem aqueles que andaram por mares e terras quando são perguntados de quem os não sabe, pelos sítios dessas terras, portos e enseadas dos mares, respondendo com tanta vontade e pintando todos esses lugares, agora com palavras, agora com o dedo e algum ponteiro, tendo por grande glória pôr diante dos olhos alheios o que eles viram com os seus; e então lhes dá maior gosto quem lho pergunta, quando por esses mares e terras se viu em maiores afrontas e perigos e escapou deles. O segundo, e mais principal, seu, de quem para isso me está convidando, como outro Anfitrião a Teseu, que o não privasse do doce fruto de meus trabalhos, os quais quanto mais duros foram de sofrer tanto mais docemente lembram, e por isso lhe contasse os horrendos casos por que passara. E assim quero eu contar parte dos desta peregrinação tão nova e de si tão meritória, à qual foi Nosso Senhor servido dar fim depois de três anos e dezenove dias, começada para um oriente e prosseguida por tantos ocidentes, e acabada, enfim, no mesmo ponto donde o compasso deu princípio a este círculo tamanho, que por ser círculo, depois de fechado fica sem princípio nem fim.204
Ao fazer uso da tópica da amizade, indicando que o relato foi escrito a
pedido de outro a quem devia obediência, o padre Gaspar Afonso efetua a captatio
benevolentiae, ou seja, seu relato é produto mais da obrigação para com um
superior do que necessariamente fruto da vontade pessoal. Após mencionar o gosto
que a narrativa de infortúnios causava em seus pares, o narrador amplifica sua
“larga e trabalhosa peregrinação” ao afirmar que conheceu mais lugares do que
Ulisses em sua empresa épica. Se lembrarmos da opinião de Políbio segundo a qual
o herói homérico representa convenientemente a função do historiador ideal
justamente por ter conhecido muitos lugares e passado por muitos trabalhos, é
possível entender o teor valorativo desta analogia. Na sequência, o narrador adverte
sobre a brevidade do seu escrito, lugar comum que, como veremos, se faz presente
204 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 427.
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na grande maioria dos relatos de naufrágio. Para justificar seu empreendimento, ele
destaca que escreveu com “dobrado interesse”. Quando fala do seu interesse, ele
invoca dois auctores: Sêneca, que diz ser coisa natural folgar cada um com o fim de
seus males (Gandavo também utiliza o termo folgar em sua dedicatória), e Macróbio,
ao referir-se à transmissão, por parte de pessoas que experimentaram grandes
perigos e deles escaparam, de uma memória por meio da palavra transmitida como
pintura, de forma a “pôr diante dos olhos alheios” o ocorrido. Nota-se, aqui, que a
vivacidade do relato é tida como critério de verossimilhança, como meio de
transmissão de uma “pintura” por intermédio de palavras. Trata-se do ut pictura
poesis horaciano, que assegura a equivalência entre os ofícios de poetas e pintores.
Quando o padre Gaspar Afonso fala da outra parte interessada, isto é, do
leitor, ele requisita, desta vez implicitamente, a autoridade de Sêneca ao referir-se a
um episódio do seu Hércules furioso envolvendo Anfitrião e Teseu:
Anfitrião. Deus, que tem o poder, favoreça o meu desejo e assista minhas fraquezas. Ó magnânimo companheiro de meu grande filho, revela o elenco de suas virtudes: quão longo é o caminho que conduz aos tristes manes; como suportou duros grilhões o cão do Tártaro. Teseu. Tu me obrigas a recordar ações horrendas mesmo para uma mente tranquila. A custo, ainda, há certeza da aura vital; turva-se a luz de meus olhos e minha vista enfraquecida apenas suporta o desabituado dia. Anfitrião. Vence, Teseu, por completo, tudo o que de pavor resta no fundo de teu peito e não prives do melhor fruto de teus trabalhos: o que foi duro de suportar é doce de se lembrar. Conta as horrendas desventuras.205
O leitor do relato, no papel de Anfitrião, estaria pedindo ao narrador, que
ocupa posição análoga à de Teseu, “que o não privasse do doce fruto” de seus
trabalhos, “os quais quanto mais duros foram de sofrer tanto mais docemente
lembram”.206 O sofrimento, portanto, não impede a obtenção de deleite, muito pelo
contrário: ele o amplifica.
Também é esclarecedor o prefácio do relato de naufrágio da nau Santo
Antônio, capitaneada por Jorge de Albuquerque Coelho:
Costume foi mui bem recebido entre os antigos quando alguma pessoa escapava de notável perigo ou enfermidade apresentar no Templo uma tábua em que o perigo ou enfermidade estivesse escrito. Prova ser isto
205 MARCHIORI, Luciano Antonio B. S. Hércules furioso de Sêneca: estudo introdutório, tradução e notas (Dissertação de mestrado). São Paulo: Universidade de São Paulo (USP), 2008, pp. 75-76. 206 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 427.
80
assim Strabo, no oitavo livro de sua Geografia, dizendo que o primeiro que pôs a Medicina em arte foi Hipócrates, recolhendo todas estas tábuas e escritos em que se continham as doenças que sucederam a cada um e o remédio de que contra elas usara. Pois sendo assim (benigno Leitor) não creio que deixará este breve Sumário de um naufrágio tão estranho como este de ser bem recebido, pois ambas as razões tem por si. A primeira, a obrigação que temos todos os que chegamos vivos deste trabalho a porto de salvamento de notificarmos ao mundo a mercê que a Virgem Madre de Deus nos fez em nos livrar dos estranhos e não cuidados trabalhos que passamos; e a segunda, mostrar o remédio de que nós neste caso tão temeroso aproveitamos, que foi de muitas lágrimas, contrição e arrependimento de culpas passadas, pedindo de contínuo misericórdia a Nosso Senhor. E nenhuma cousa esperei menos que poder este naufrágio vir a ser sabido por escrito, porque ainda que nossa natureza é sujeita aos trabalhos, todavia não agasalha bem a lembrança deles, pela pena que nos dá o que vimos com os olhos. E quem diz que a lembrança dos trabalhos passados dá gosto, não se viu nunca nestes nem em outros semelhantes, porque o gosto que se recebe na memória deles nasce do descanso em que se vê quem os passou e não do lembrar-se de ver tão particularmente a morte ao olho, como dizem. E não haja ninguém por fraqueza o que digo, porque Virgílio, excelente Poeta, em um tão valeroso e esforçado cavaleiro como pintou em Enéas, pôs muito receio de contar os trabalhos passados, dizendo que lhe fugia o entendimento da lembrança deles. E por esta razão não esperei de escrever este discurso. Porém por me parecer que seria ingrato às grandes mercês que de Nosso Senhor recebemos os que deste naufrágio escapamos, dos quais eu fui um deles e o mais pecador, determinei fazer esta Relação por ver quantos anos há que isto aconteceu sem até hoje haver pessoa que de cousa tamanha fizesse memória. E persuadido de alguns meus amigos que a imprimisse, não o quis fazer sem que primeiro a mostrasse a Jorge de Albuquerque, que nesta nau vinha; e como ele fosse a principal pessoa da companhia e o que mais trabalhos passou por nos animar e esforçar, assim com palavras de consolação como com obras e orações, que de contino fazia a Nosso Senhor, não no achei remoto desta lembrança em cousa alguma, antes me trouxe à memória outras muitas cousas de que eu estava bem esquecido; e muitas mais deixei de escrever, as quais pediriam (a meu juízo) outro tanto papel. Mas por me parecer que estas de que faço menção bastam para dar motivo aos homens que louvem ao Senhor e tenham sempre muita confiança na sua misericórdia quando nos maiores trabalhos se virem, quis antes ser notado de breve que de preluxo. Porque meu intento principal é ser Nosso Senhor louvado e glorificado de todos, o qual, usando de sua benignidade com afligidos, os tira de perigos e chega o salvamento. Pelo que peço não olhem às palavras, que são as que são, mas o intento, que é ser o Senhor louvado para sempre.207
O autor recorre à tópica tucidideana do ktema es aiei (aquisição para
sempre) em seu “breve Sumário”. Alude-se, no caso, a Hipócrates, mas para
mencionar um procedimento que também é o de Tucídides, isto é, o de insistir que o
escrito deve ter serventia, utilidade.208 Convém mencionar, mais uma vez, o relato de
207 Idem, pp. 263-264. 208 As analogias entre os ofícios do historiador e do médico são recorrentes nos escritos antigos. Ver: POLÍBIO. História. Seleção, tradução, introdução e notas de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996, livro XII, pp. 415-417.
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Tucídides sobre a peste de Atenas, que apresenta uma função similar à das tábuas
de Hipócrates citadas por Estrabão.209
O narrador faz referência à brevidade do relato e simula modéstia ao dizer
que depende da benignidade do leitor. Em seguida, ele diz que seu escrito tem as
mesmas razões de ser que as tábuas de Hipócrates: primeiro, a função de notificar
e, portanto, de ser útil; a segunda, de legar aos pósteros remédio, possível com base
em “lágrimas, contrição e arrependimento”. O uso da tópica do remédio, muito
comum nas letras portuguesas dos séculos XVI, XVII e XVIII, se articula, neste caso,
à metáfora aristotélico-escolástica do corpo político. No caso, a saúde de Portugal
depende do bem comum, da concórdia entre seus membros. Logo, a história
propicia remédio para combater as doenças do reino, sejam elas físicas, morais,
políticas.
Na sequência, o narrador vale-se de uma informação correlata àquela do
relato de naufrágio da nau São Francisco, possivelmente inspirada em Sêneca:
“ainda que nossa natureza é sujeita aos trabalhos, todavia não agasalha bem a
lembrança deles”. A ideia é reforçada na sequência: “e quem diz que a lembrança
dos trabalhos passados dá gosto, não se viu nunca nestes nem em outros
semelhantes”, pois “o gosto que se recebe da memória deles nasce do descanso em
que se vê quem os passou e não do lembrar-se de ver tão particularmente a morte
no olho, como dizem”. Lisa Voigt nota que este prefácio apresenta algumas
diferenças em relação ao texto original. Na primeira edição, afirma-se: “assim como
a memoria dos dias alegres, & felices, conforme a openião de alguns Philosophos,
causa tristeza, & dór em outros estados diferentes, assim a memoria dos males, &
dos trabalhos, fora delles, causa deleytação, & contentamento”.210 É possível que,
dentre os filósofos que menciona, encontre-se Cícero, que diz que
nada, com efeito, é mais conveniente ao deleite do leitor que a variedade das circunstâncias e as vicissitudes da Fortuna. Ainda que, quando experimentadas, não tenham sido desejáveis, serão todavia agradáveis de se ler: a recordação livre da dor passada tem efetivamente seu prazer; com certeza, para os que não passaram por nenhum dissabor e contemplam os males alheios sem nenhuma dor, a própria piedade é agradável.211
209 STRABO. The geography of Strabo. 1928, book 14, chapter 2. Disponível em: http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Strabo/14B*.html. Acesso em: dezembro/2012. 210 Cf. VOIGT, Lisa. Naufrágio, cativeiro, e relações ibéricas: a História trágico-marítima num contexto comparativo. In: Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 24, nº 39, 2008, p. 208. 211 Idem, ibidem.
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Antes de Cícero, Aristóteles afirmou algo parecido, retomando a seguinte
passagem da Odisseia: “O homem, muito depois, experimenta o prazer mesmo ao
preço/ De recordar os sofrimentos, se houver muito suportado e mourejado”.212
Aristóteles diz que o “prazerosamente memorável não é apenas o que, quando
efetivamente presente, era prazeroso, mas também algumas coisas que não eram,
desde que seus resultados posteriormente revelaram-se nobres e bons”. É
prazeroso, diz ele, “o simples estar livre do mal”.213
Faz-se referência, por fim, a Virgílio, grande poeta que “pôs muito receio
de contar os trabalhos passados, dizendo que lhe fugia o entendimento da
lembrança deles”. Assim, o narrador alega que seu escrito veio à luz por duas
razões: porque, de outra forma, teria sido ingratidão não contar as grandes mercês
recebidas de Deus, e por não haver outra pessoa disposta a fazê-lo (argumento
similar é utilizado por Gandavo em sua História). Com modéstia afetada, o narrador
afirma que contou com o apoio de Jorge de Albuquerque, principal da nau, que
recordou coisas que o escritor havia se esquecido, o que não impediu a brevidade
da narrativa. Como é de praxe, a modéstia é requerida no desfecho do prefácio:
“Pelo que peço não olhem às palavras, que são as que são, mas o intento, que é ser
o Senhor louvado para sempre”.
Custódio afirma que o heroísmo de Jorge de Albuquerque é fruto desta
suposta intervenção da personagem na escrita do texto. Ele diz:
Este pequeno enxerto poderá explicar, em parte, muita da atenção dada, ao longo do relato, à figura de Jorge de Albuquerque. Não só porque este teve acesso ao conteúdo do relato, antes de ser impresso como, por outro lado, parece ser esta uma figura bem simpática ao narrador, para além de ser ainda o principal da companhia.214
No caso, não negamos a possibilidade de haver uma tentativa de adular o
protagonista, prática comum neste momento como forma de obtenção de prestígio.
No entanto, o autor toma como “reais” duas tópicas discursivas igualmente
recorrentes: o lugar da modéstia, perceptível no momento em que o autor discorre
212 Trata-se de uma fala de Eumeu, que acolheu Odisseu em sua tenda quando este retorna disfarçado para casa. HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, canto XV, vv. 380-401, p. 265. 213 ARISTÓTELES. Retórica. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011, livro I, 11, 1370b1-10, p. 94. 214 CUSTÓDIO, Pedro Balaus. A História Trágico-Marítima: do herói ao anti-heroi (Dissertação de mestrado). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1992, p. 127.
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sobre as limitações de sua memória, que foi emendada pela intervenção do herói
que os liderara, e o lugar da amizade, a partir do qual o dedicatário toma para si o
lugar de amigo do presenteado, o que supõe a fidedignidade do relato justamente
pela confiança que deveria existir entre eles.
No relato de naufrágio da nau São Paulo, Henrique Dias, com modéstia,
alude à função de seu escrito:
E porque querer escrever nossos infortúnios e acontecimentos de cada dia (pois não passou nenhum que os não tivéssemos) seria um grande processo e causaria mais fastio ao leitor que contentamento (já que as cousas compridas, como afirma o Poeta, costumam ser desprezadas e tidas em pouco, e agradar as breves), não tratarei mais que com a maior brevidade que em mim for possível as cousas notáveis que nos aconteceram, assim na viagem como na perdição, e os dias em que foram, usando de toda a verdade que me assiste, pois em o que meu engenho e palavras faltarem, ela só bastara para lhes dar ornamento e decoro; porque o caminho que a nau fazia todos os dias, e os rumos a que governava, e em que alturas, deixo ao que compete o tal ofício, que são homens do mar e que têm seus roteiros por suas partidas e graus, pois não sou desta profissão, e era tão noviço no mar, por ser esta a primeira vez que fora do Reino saí, que nem os rumos da agulha sabia. Pelo que não parece razão que me mete no alheio e vedado nem tome o seu a seu dono, por me não dizerem o que o excelente pintor Apeles disse ao sapateiro atrevido, querendo-lhe taxar, não sabendo mais que fazer sapatos, as perfeições do rosto de uma imagem que ele estranhamente, com sutil engenho e grande artifício havia pintado e composto, por haver de antes emendado a própria figura uma correia de sapato, que ele havia já notado: “Que o sapateiro com o sapato e o barqueiro com a barca”. Pelo que é certo é medir-se cada um com seu pé e medida. E assim no que eu nesta parte disser que for necessário para declaração e ornamento de minha história, se se achar falta ou erro, peço e rogo aos mais entendidos nesta corte mo emendem com bom ânimo e vontade, deitando tudo à melhor parte.215
O narrador afirma optar pela escrita concisa e verdadeira. A
grandiosidade da verdade, no caso, deveria compensar as faltas de Henrique Dias,
no que se refere ao seu “humilde” engenho. Além disso, ele afirma que o agrado
decorrente das narrativas breves é preferível ao fastio causado pela prolixidade.
Assim, Dias refere-se àquilo que não fará parte de sua narrativa por não ser matéria
de seu entendimento, como dados técnicos relativos ao caminho trilhado pela nau,
que é assunto dos “homens do mar”. Para ilustrar seu posicionamento, ele retoma,
provavelmente via Plínio, o Velho, e sua História Natural, a anedota de Apeles e o
sapateiro. Conforme esta anedota, um sapateiro sugeriu ao pintor Apeles uma
mudança na sandália que havia retratado, orientação que o pintor atendeu
prontamente. No entanto, o sapateiro, entusiasmado, resolveu fazer outra crítica, 215 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, pp. 195-196.
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desta vez referente ao rosto da gravura, ao que Apeles teria respondido: “Ne supra
crepidam sutor judicaret”, ou seja, um sapateiro não deve julgar algo para além de
seu ofício. Embora a frase presente no relato seja outra, “que o sapateiro com o
sapato e o barqueiro com a barca”, o sentido é o mesmo: cada um deve se ocupar
com aquilo que lhe diz respeito. No final, o narrador refere-se à sua “história” e pede
pela benevolência do leitor “mais entendido”, isto é, discreto, para que, na ocasião
de possíveis erros, estes devem ser emendados com “bom ânimo e vontade,
deitando tudo à melhor parte”.
As tópicas da brevidade e clareza do relato ajustam-se perfeitamente ao
propósito de se alcançar a verdade. Outras narrativas adotam este procedimento,
como no caso do primeiro relato da coletânea de Brito:
e Fernão d’Álvares Cabral varou em terra na boca do rio do Infante, junto do cabo de Boa Esperança, cuja viagem, naufrágio, desterro e fim, posto que com comum estilo, direi o que alcancei na experiência de meus trabalhos, sem acrescentar nem diminuir a verdade do que se me oferece a contar.216
Em outra narração, a brevidade justifica-se pelas limitações da memória
humana:
Posso afirmar com verdade a todos os que isto lerem, que não escrevo aqui a metade de tudo o que passamos, porque nem quando passei estes trabalhos tinha lembrança nem comodidade para os escrever, nem depois de passados me sofria a memória querer que se lhes representassem, mas somente é aquilo que me pode lembrar do muito que padeci nesta viagem.217
Esta alusão à fragilidade da memória, que podemos encontrar também
em Tucídides, seria a justificativa para a brevidade do relato. O importante, no caso,
não é recordar tudo, mas ser sincero quanto àquilo que seria possível lembrar. O
narrador reforça na sequência:
A tudo isto fui testemunha de vista, por isso o contei. Seja louvado Nosso Senhor, que me chegou a estado de poder escrever isto, cousa que muitas vezes cuidei que não poderia ser; mas somente Deus é o que sabe tudo; seja ele bendito e louvado para todo o sempre.218
216 Idem, p. 28. 217 Idem, p. 290. 218 Idem, p. 291.
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Por último, gostaríamos de retomar um prefácio que não se encontra
presente na coletânea de Brito, mas que, originalmente, encontrava-se agregado ao
relato de naufrágio da nau São Bento. Não se pode dizer, ao certo, o motivo da sua
exclusão. Segue o prefácio:
Acha-se posto em memória por alguns escritores antigos, que sabendo os moradores de Corinto Cidade situada na garganta do Peloponeso, agora chamado Morea, como El-Rei Filipe de Macedônia abalava com grande poder de gente para os senhorear; e determinado eles em morrer antes pelejando que perder sua antiga liberdade, para que melhor lhe pudessem resistir se começaram de aperceber das cousas necessárias à sua defesa. Pelo que uns recolhiam água e mantimentos, outros reparavam os muros e torres, outros alimpavam e faziam prestes as armas, de maneira que cada um por si e todos juntamente se ocupavam em fazer alguma coisa em proveito da república: e como nestes dias estivesse dentro da Cidade o Cínico Diógenes, a quem a atenção de sua ciência libertava dos trabalhos dos outros, vendo que a revolta do tempo o fazia estar desocupado, por não haver quem então acudisse aos estudos, tomou uma pipa [vaso grande de barro] em que fazia sua habitação, e começou tombá-la de uma parte para a outra: E sendo perguntado por que fazia aquilo respondeu. Bulo com esta pipa, para que entre tantos ocupados, eu só não seja visto estar ocioso. E assim eu a exemplo de Diógenes vendo como os mais dos que escaparam desta jornada se ocupam em escrever os trabalhos dela, posto que conheço de mim que não irei mais ao propósito no pouco que posso dizer a respeito do muito que há para contar, porque só não seja tachado de ocioso, quis ser companheiro nisto como o fui nas outras coisas. E juntamente para que se houver alguém que pesaroso de ver em tão poucos dias gastada do esquecimento uma dor tão geral, e acontecimento tão raro, queira levantá-lo deste abismo eterno e perpetua-lo a pesar do tempo na memória dos vindouros (empresa certo assaz devida a tão lastimoso caso) ache neste trabalho de minha pena a verdadeira informação dele.219
Antes de iniciar a análise, convém retomar o exórdio de Luciano de
Samósata presente em seu Como se deve escrever a história:
Vendo e ouvindo isso, ó amigo, ocorreu-me aquele caso do filósofo de Sínope: quando se dizia que Filipe já marchava contra a cidade, os coríntios todos ficaram perturbados e se puseram em ação, um preparando as armaduras, outro trazendo pedras, outro reparando as muralhas, outro reforçando o parapeito, outro ainda ocupado com alguma coisa útil. Então, Diógenes, vendo aquilo, já que não tinha nada para fazer – pois ninguém precisava dele para coisa alguma – cingiu o manto e, com muita seriedade, começou também ele a rolar o tonel [grande vaso de terracota] no qual morava, para cima e para baixo do Crânio [Ginásio de Corinto onde vivia Diógenes]. Algum de seus amigos perguntando-lhe: “Por que você está fazendo isso, Diógenes?” – “Rolo também eu meu tonel” – ele dizia – “a fim de que não pareça o único desocupado no meio de tantos que trabalham”.220
219 Cf. MONIZ, António Manuel de Andrade. A História Trágico-Marítima: Identidade e Condição Humana. Lisboa: Edições Colibri, 2001, p. 34. 220 LUCIANO DE SAMÓSATA. Como se deve escrever a história. Tradução, notas, apêndices e o ensaio Luciano e a história de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 35.
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Na sequência, Luciano justifica a retomada desta anedota:
Também eu, ó Filon, para não ser o único mudo numa ocasião em que tanta gente se mete a falar, nem, como um figurante cômico, de boca aberta e em silêncio, ficar sendo empurrado, julguei ser bom, quando me for possível, rolar meu tonel, não de modo a escrever a história ou discorrer sobre os acontecimentos (não sou atrevido a tal ponto nem você deve temer tal coisa de mim), pois sei quão grande é o perigo de rolar pedras abaixo um tonelzinho como o meu, sem muita resistência: bastará que se choque com uma pedrinha para que se tenha de recolher seus cacos.221
Jacyntho Lins Brandão afirma que a anedota, quando retomada por
Luciano, assume um papel importante:
Luciano identifica sua função com a do filósofo, o que tem duas consequências para a concepção de seu projeto: em primeiro lugar, o diagnóstico do movimento em massa da multidão de historiadores que se entregam então ao elogio da vitória romana sobre os partos não passa de um páthos, ou seja, uma doença que afeta seu julgamento, sua inteligência, bom senso, razão e conhecimento dos fatos; em seguida, consequência disso, a definição da diatribe como remédio, um gênero a serviço do ideal cínico de liberar os homens pela franqueza e a verdade.222
Angélica Madeira afirma que a anedota de Diógenes não apresenta
nenhuma relação com o naufrágio, funcionando como “índice da cultura do narrador,
recurso retórico, exemplo de erudição, já que não há comparação entre ela e os
motivos que o levaram a iniciar esta tarefa a que se obriga”.223 De fato é um recurso
retórico que, como se viu, encontra-se em Luciano. Difícil, no caso, é supor que não
há relação entre o prólogo de Como se deve escrever a história e o relato de
naufrágio. Neste, é possível discernir a modéstia afetada do narrador e argumentos
que buscam assegurar a veracidade da narrativa. A negação do ócio em detrimento
da ação é outro procedimento que o prefácio propõe, quando salienta a utilidade
decorrente da escrita e o propósito de registrar a memória de um “acontecimento tão
raro”. Todos estes argumentos, juntos, efetuam a captatio benevolentiae. Com a
historieta, no caso, o narrador do relato de naufrágio evidencia a emulação e
estabelece uma analogia entre a atitude de Diógenes e a sua, servindo inteiramente
ao propósito de seu relato, que é legar remédio aos pósteros, seja o remédio
221 Idem, ibidem. 222 BRANDÃO, Jacyntho Lins. A história justa. In: LUCIANO DE SAMÓSATA. Como se deve escrever a história. Tradução, notas, apêndices e o ensaio Luciano e a história de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, pp. 151-152. 223 MADEIRA, A. Livro dos naufrágios: ensaio sobre a história trágico-marítima. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2005, p. 53.
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humano originado do labor, seja o remédio divino, única razão de o narrador estar
vivo para registrar, por escrito, Sua misericórdia.
Na censura do Ordinário, de Júlio Francisco, encontra-se presente a
tópica horaciana que associa utilidade e deleite, no momento em que ele diz que a
“lição” que propõe a História Trágico-Marítima é “suave” e “agradável”, o que fez
com que a lesse num curto espaço de tempo. Além disso, o censor adverte que a
narrativa é útil em diferentes aspectos: para os que forem navegar, pois propõe o
desengano em relação aos perigos que existem no mar, para ensinar a importância
do “temos da morte”, para orientar aqueles que ficam em terra e que devem rezar
pelos seus, e para evidenciar a “miséria e inconstância deste mundo”. A tópica da
inconstância do mundo, como se pode ver, ao propor a contingência e suas
dinâmicas, faz ver que a “máquina do mundo” não é inteiramente previsível. A
questão a se fazer é: como seria possível que estas lições, que foram formuladas à
custa de tantas vidas, pudessem deleitar? Como a lição poderia ser “agradável”?
Alguns autores entendem que havia, nestas circunstâncias, um “gosto pelo trágico”,
sintomático de um momento caracterizado pela emergência do Barroco.
Gostaríamos, no entanto, de investigar como a tradição (retórica e poética) trata a
relação entre a experiência trágica e o deleite.
Josiah Blackmore afirma que a dedicatória que Bernardo Gomes de Brito
dirigiu ao rei D. João V e as licenças que acompanham os dois volumes da HTM
atenuaram ou mesmo eliminaram o terror que caracterizava as narrativas de
naufrágio, para somá-las à memória coletiva/oficial. A coletânea, no caso, estaria
reunindo e “domesticando” vozes dispersas e dissonantes, integrando os relatos
(trágicos) ao cânone historiográfico e confirmando o passado heroico de Portugal.
Antes de indagar sobre esta neutralização de um potencial negativo, é preciso
investigar se ele de fato existia nestas narrativas de naufrágio. Por outras palavras,
não há dúvidas de que estas relações se ocupam de episódios trágicos da história
portuguesa, mas não parece que Brito ou os censores precisassem atenuá-los, pois
sua matéria não nos parece “marginal” ou “disfórica” em relação ao projeto imperial.
Blackmore apresenta uma tese interessante: a de que não há uma contradição entre
o projeto imperial e a experiência do naufrágio. Ele chega a dizer que Camões
concebe esta experiência trágica no próprio tecido imperial, como algo que não pode
ser dissociado dele. A tese é profícua, mas parece-nos problemático conceber uma
ambiguidade nesta associação, ou seja, de fato não parece haver uma contradição,
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mas também não está claro se há um potencial negativo que precisasse ser
atenuado para que estas narrativas integrassem a história portuguesa.224
O fragmento abaixo corresponde ao prólogo da segunda edição da
relação de naufrágio da nau Santo Antônio, publicada em 1601:
Ainda que a obrigação de criado por si não era bastante, pera que durandome a vida, a empregasse sempre no serviço de suas cousas: Com tudo, a segunda obrigação, que são as mercês que de vossa mercê continuamente recebo, & o particular amor com que me faz, são outros novos estímulos, pera que empreenda sempre cousas árduas em seu serviço. E porque assim como a memoria dos dias alegres, & felices, conforme a opinião de algus Philosophos, causa tristeza, & dor em outros estados diferentes, assim a memoria dos males, & dos trabalhos, fora delles, causa deleytação, & contentamento. E porque as obras de vossa mercê, em todos os estados estão manifestando seu louvor, como na guerra que teve na quietação da Capitania de Paranambuco, aonde o conselho, o esforço, & as forças do animo juvenil, no governo da Raynha Dona Catherina de gloriosa memória, forão bastantes, pera que em espaço de cinco anos continuados, domasse, & sojeytasse a mais barbara, & indômita nação que temos descoberta, & deyxasse aquele estado a custa de muyto seu sangue, pacifico, & domado: Pois que num só assalto de hua fortaleza dos enemigos, com nove flechadas nos peytos, & rosto, assegurou a mayor parte de sua victoria. Vemos que não menos o amostrou na infelice jornada de Africa, aonde parece, que querendo a fortuna dar tamanha queda ao nome Portuguez, & donde todos ficarão queyxosos pera sempre, só nelle vossa mercê ficou com tanta vantagem, que parece que fica triunfando: Pois que no mais hórrido condicto da batalha, da o cavalo ao seu Rey, & cumpre com a obrigação leal do seu sangue, & do seu viguroso esprito: Ferido, & trespassado de tantos pelouros, & lanças, por lhe ajudar a defender sua vida. E não menos o vimos nas cousas de paz, & no governo delas, & nas cousas domesticas, & familiares, na prontidão do engenho, na urbanidade da conversação, & na grandeza da liberalidade: Que tudo são cousas que raramente forão concedidas, senão a varões magnates: E em vossa mercê as vemos todas, como em claro espelho reluzentes. E porque não faltasse as da fortuna do mar, tambem foy nelle tam perseguido, que a muytos causou o naufrágio de seus trabalhos, hum piedoso espanto. E porque de todo se não extinguisse tal memoria, & desejando de fazer a vossa mercê algum serviço, tomey este trabalho, de novamente renovar este seu Naufragio, porque a memoria dele, que a muytos pode servir de exemplo de constância de piedade, lhe causasse agora nesta tranquilidade de animo, deleytação, & alegria. Tambem vao juntas a elle alguas Rimas, de animo mais afeyçoado, que poético, Vossa mercê receba tudo com aquella benevolência natural com que sempre favoreceo minhas cousas: Que isso me bastara pera ficar satisfeyto do trabalho delas. Deos guarde, & prospere, vida, & estado e vossa mercê, por muytos, & muy largos annos, pera seu santo serviço.225
Este prólogo de Antonio Ribeiro refere um conjunto de tópicas que já
mencionamos em outras ocasiões: a da obrigação para com o dedicatário, o deleite
224 Ver: BLACKMORE, Josiah. Manifest perdiction: shipwreck narrative and the disruption of empire. Minnesota: University of Minnesota Press, 2002. 225 PILOTO, Afonso Luís. Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque Coelho. Lisboa: Oficina de António Álvarez, 1601, s/p.
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proveniente de matéria trágica após sua ocorrência, a exemplaridade das ações e,
claro, a modéstia afetada, que exige benevolência por parte do leitor discreto, em
razão da precariedade do escrito que lhe é dado a ler. Além disso, Antonio Ribeiro
traça um breve retrato do dedicatário Jorge de Albuquerque, detentor de engenho,
urbanidade e liberalidade. Estes atributos foram mencionados após a descrição de
situações das quais participou o herói, como a luta contra o índio em Pernambuco e
a guerra contra o gentio no norte de África, na qual Jorge de Albuquerque
supostamente cedeu seu cavalo ao rei para salvar-lhe a vida. Fica evidente,
portanto, a tópica das letras e armas e o tom encomiástico deste discurso
preambular. Vale lembrar que, após estes dizeres, há um soneto em que o herói é
comparado a antigos heróis, superando a todos:
Rico o gram Cresso foy, Mas avarento, Liberal Alexandro, Mas altivo, Anibal moderado, Mas lascivo, Honesto Scipião, Mas muyto isento. Brando Tullio, Mas vil de nascimento, Illustre Cesar foy, Mas vingativo, Nos antigos, dalgum vicio captivo. Vimos sempre o mays alto pensamento. Vejo riqueza em vos de Cresso, & mão, Para dar de Alexandro, & humanidade Doutro Anibal, de Scipião pureza. De Tullio, & Cesar, siso, e magestade: Sem cubiça, sem vicio, ou ambição, Sem ira, sem temor, & sem crueza.226
Amaral segue de muito perto os passos de Antonio Ribeiro, como se pode
ver na dedicatória a d. Teodósio:
Entre Trinta, & oito náos da India (Excellentissimo Principe.) Que este Reyno perdeo em obra de vinte annos, ouve em alguas sucessos tam famosos, & dignos de notar, que me moverão relatar parte delles neste breve tratado, que com devido acatamento ofereço a V. Excellencia: Por me parecer, que tãto sentirá ecclipsarse à nação Portuguesa (com taes perdas) a gloria com que floreceo nesta navegação, & conquista que emprendeo (Principalmente no tempo do fellicissimo, & invictissimo Rey Dom Emanuel vosso visano) quanto estimará todos seus bõs sucessos. E que não só aos que escaparão dos que refiro, resultará gosto de seus trabalhos, vendo que chegarão a noticia de V. Excellencia, mas eterna memoria dos que nelles acabarão gloriosamente. Receba V. Excellencia com sua costumada affabelidade esta pobre relação de minha mão rude, & indocta, para que fique ella amparada, & desculpado meu atrevimento. Deos guarde a V. Excellencia. De Lisboa a trinta de Novembro de 1604.227
226 Idem, ibidem. 227 AMARAL, Melchior Estácio do. Tratado de batalhas. Lisboa: Oficina de António Álvarez, 1604, s/p.
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E, em seguida, no capítulo introdutório:
Assi como nas obras naturaes, nunca entende a natureza fazer algua debalde, antes em todas leva sempre respeito, a algum fim proveitoso. Assi guiado eu de natural compaixão dos q no mar, passão trabalhos, & fortunas (pellas em que nelle muitas vezes me vi) desejando com o favor divino, que deste meu piqueno trabalho, & breve tratado (que escrevi pellas mais verdadeiras informações que achey de pessoas de credito, & authoridade) tirem algum fructo os que continuão, a perigosa, & trabalhosa carreira Oriental. Em que a experiencia dos varios sucessos della (alcãçada tãto á custa de nossa nação Portuguesa, & de tantos & tão assinalados varões que nella perecerão) tem ensinado mais que a natural Philosophia, & grande engenho dos famosos Mathematicos, & Cosmographos que della escreverão sem a verem. E posto que a lição dos terribeis espectaculos, & casos de los desestrados da furtuna, não dá alivio, antes cõpaixão, sempre he perda ficarem sepultados, no esquecimento do tempo, & charecerem os futuros da verdadeira noticia delles. Especialmente dos que são tam memorados, como o sucesso do galeão Sanctiago com os Olandeses, na Ilha de Sancta Elena, no anno de 1602. E o da não Chagas com os Ingleses nas ilhas dos Açores no anno de 1594. capitainas ambas desta navegação. Sobre que me dispus a escrever este tratado. Porque quanto a mim são mais horrendos, & dignos de eterna noticia, que quantos socederão nella des que teve principio té oje que à 194. annos. Como podem cotejar os que tiverem lido as historias Orientaes. E se os curiosos que as não lerão, & lerem este tratado, o quiserem ver. Para isso lhe recito aqui, todas as que são escriptas, & tem saido a luz te este presente anno de 1604. E por ellas verão tambem os tropheos das armas Portuguesas pugnando pella Exaltação da Sancta Fè Catholica contra toda a potencia dos Imperios, & Reynos Orientaes: E como tem avassalados à Monarchica coroa deste reyno, perto de quarenta Reys coroados do Oriente. Verão mais pellas ditas historias, a Floresta Celestial pela redondeza do mundo, do Sagrado Evangelho, & com quanta gloria de nosso Senhor IESU CHRISTO triumpha a Sancta & Catholica Igreja Esposa sua, até as mais remotas partes da terra, contra todo o poderio dos infernos. E por este pobre tratado, os que não entrarão no mar, coligirão pelos muitos naofragios, nelle referidos, & socedidos nesta carreira, & pellas causas, & desastres delles, quão charo custa tudo o que se traz da India: E como a cubiça, póde mais que todos os temores. Acharão nelle tambem consolação, aquelles a que acontecerem menores, ou semelhantes sucessos, (de que Deos os livre) para terem nelles paciencia, & se advertirem, & previnirem quanto for possivel, contra semelhantes casos, advertindose, nos que tanto à sua custa os experimentarão. Ca não he nenhum tam experimentado nas cousas do mar, & da guerra, que lhe não seja necessario advertirse de muitas mais, pella variedade, & incerteza delas.228
De todas as relações de naufrágio, esta talvez seja a que melhor define o
gênero: assinala o valor do testemunho, reforça a importância da experiência, indica
que sua matéria supera a dos filósofos, matemáticos e cosmógrafos, que muitas
vezes escreviam sobre o assunto sem tê-los vivenciado, reformula a tópica do
deleite decorrente das ações trágicas, dizendo que o afeto resultante delas é a
compaixão, amplifica a importância das relações que colige em detrimento de todas
228 Idem, ibidem.
91
as outras, vale-se da modéstia afetada, menciona o teor instrutivo decorrente do seu
tratado e chama a atenção do leitor para a inconstância (ou desconcerto) do mundo,
que exige prudência e, portanto, advertências provenientes da história.
Aqueles que dizem que o mar das tragédias marítimas figura
metonimicamente as penas do inferno se esquecem de que as histórias trágico-
marítimas não são meras transposições de fatos, como fica evidente em seus
discursos preambulares. Os autores que afirmam que o relato de naufrágio
representa o lado mais “realista” da empresa ultramarina se esquecem de que a
“verdade” histórica, neste caso, é escrita a partir de um elenco de lugares comuns
que buscam assegurar este efeito de verdade, que é modelado retoricamente e,
portanto, não conhece o realismo e subjetivismo românticos que surgem com a(s)
literatura(s) do século XIX. Aqueles que tomam o naufrágio como metonímia de uma
decadência portuguesa não se recordam de que incidentes marítimos abundam em
histórias e epopeias desde a Antiguidade, e que a fragilidade humana foi
representada já nas mitologias greco-romanas, não sendo atributo particular do que
reconhecem como sendo o “Barroco”. Por fim, aquele que lê o relato de naufrágio
como sendo o reverso da dimensão positiva da epopeia se esquece de que epopeia
não é apenas luz, e que história não é somente penumbra. Para letrados católicos
que creram em Deus e, portanto, na orientação providencialista da história, seria
impossível apreender um mundo no qual só existissem labores e penúrias. Por isso
mesmo, é difícil falar de “pessimismo” ou de “decadência”, pois há uma retórica
prudencial que une os mais diversos gêneros em um mesmo projeto salvífico.
92
CAPÍTULO 03
A experiência trágica
Por intermédio das Musas, Homero canta a gesta de grandes heróis,
inventando tipos como Aquiles e Ulisses, mas versa também sobre a fragilidade
humana. A preservação do feito ilustre só seria possível por intermédio do canto
inspirado, que anuncia a memória e celebra o kléos, a fama imorredoura. Na
proposição/invocação da Ilíada, depois de pedir o auxílio da Musa, o aedo introduz o
embate entre Aquiles, filho de Peleu, e Agamêmnon, “rei dos homens”, que “aos
Aqueus tantas penas / trouxe, e incontáveis almas arrojou ao Hades / de valentes,
de heróis, espólio para cães, / pasto de aves rapaces”.229 Algo parecido ocorre nas
liminares da Odisseia, quando Homero menciona as dores que Ulisses padeceu em
seu retorno, “empenhado em salvar a vida e garantir o regresso dos
companheiros”.230
Francisco Murari Pires nota uma “contraposição agonística” entre a Ilíada
e a Odisseia: a primeira epopeia discorre sobre um herói jovem que parte de casa
para a guerra, conquistando fama imorredoura em contrapartida à perda do regresso
(nóstos); a segunda canta um herói maduro que da guerra retorna ao lar. A Ilíada
aborda o antes, quando Tróia estava intacta e Aquiles com vida. Na Odisseia,
presenciamos o depois, a memória e a lembrança do luto e dos sofrimentos
passados. A Odisseia é, para Aristóteles, uma fábula complexa porque lida com a
memória e, em consequência, não poderia fugir às peripécias ocorridas no decorrer
dos 20 anos do itinerário de Ulisses. O contraste se pronuncia: “enquanto aquela
aponta o princípio da história do heroico, esta aponta o fim”.231 Firma-se, portanto, a
“axiologia épica”:
A grandeza humana, realizada em sua dimensão heroica, é consequentemente trágica. A consecução dos feitos grandiosos que distingue os heróis, demarcando o domínio de honras adstrito à esfera de seu poder, comporta, entretanto, paralelamente a multiplicidade de males e sofrimentos conexos a tais feitos. A axiologia épica, assim, logo assinala,
229 HOMERO. Ilíada, v. 1. Tradução de Haroldo de Campos. Introdução e organização de Trajano Vieira. 4ª ed. São Paulo: Arx, 2003, I, 2-5, p. 31. 230 HOMERO. Odisseia, v. 1: Telemaquia. Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010, I, 2-5, p. 13. 231 PIRES, F. M. Mithistória. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, p. 162.
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pelas lembranças inaugurais de seus Proêmios, seu enviezamento trágico, destacando o duplo aspecto portentoso que define a moira da grandeza heroica.232
Em uma passagem presente no capítulo final da Ilíada, Aquiles convida o
rei troiano a cessar o pranto e a serenar a dor do coração, já que um destino comum
assola todos os homens:
Assim os deuses urdem o fadário dos infaustos mortais: um viver agoniado, sendo os numes incólumes; pois há dois cântaros nos umbrais de Zeus, cheios de dons que ele nos dá, um de ruins, de bons o outro. Mescla-os Zeus fulmíneo e os versa: ora o mal, ora o bem, deparará quem os receba; quando maldosos opróbrios apenas colha, malsinado vagará pela terra divina, famélico, menosprezado por mortais e deuses.233
Do épos homérico à história herodoteana, a mudança é sutil: se a
axiologia épica canta feitos que transitam pelas obras divinas ou pelas sagas
heroicas, a axiologia em Heródoto se ocupa da memorização das realizações
humanas.234 Ele renuncia às certezas do aedo para aproximar-se de um
conhecimento verdadeiro,235 assumindo a tarefa de retardar o esquecimento dos
grandes feitos dos homens. Assim como o aedo, ele busca “domesticar a morte,
socializando-a”.236
Tucídides, ao tratar da guerra entre atenienses e peloponésios, pontua
um rol de sofrimentos e infortúnios que caracteriza este episódio insigne, e também
assegura a superioridade desta guerra em relação aos conflitos anteriores. A guerra
do Peloponeso, que “acarretou para a Grécia, no seu decorrer, sofrimentos como
não houve outros”, proporcionou a captura e despovoamento de cidades, exílios e
assassinatos. Um conjunto de outras ocorrências “coincidiu com esta guerra”, como
terremotos, eclipses solares, grandes secas e uma epidemia da peste.237 Sendo
assim, os proêmios da “história nascente com Heródoto e Tucídides, reiterando as
convenções originalmente (im)postas pelo ‘épos’ homérico, reafirmam o princípio
232 Idem, p. 166. 233 HOMERO. Ilíada, v. 2. Tradução de Haroldo de Campos. Introdução e organização de Trajano Vieira. 4ª ed. São Paulo: Arx, 2003, XXIV, 525-534, p. 471. 234 Ver: PIRES, F. M. Mithistória. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 166-167. 235 Ver: HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Organização de José Otávio Guimarães. Tradução de Sonia Lacerda, Marcos Veneu e José Otávio Guimarães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, pp. 30-33. 236 DOSSE, François. A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 8. 237 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, I, 23, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, pp. 81-83.
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axiológico que determina a eleição do episódio historiado dada a sua grandeza
trágica”.238
Entre os romanos cogitava-se que a narrativa de infortúnios poderia
causar deleite, caso tratasse de matéria alta, escrita com eloquência. É o caso de
Cícero que, através de uma carta, pede ao amigo e historiador Lucéio para escrever
e celebrar seu consulado: “nossas desventuras te fornecerão, na escrita, uma
grande variedade, cheia de um certo prazer que pode veementemente reter os
espíritos na leitura, graças ao escritor que tu és”.239 Ele continua:
Nada, com efeito, é mais conveniente ao deleite do leitor que a variedade das circunstâncias e as vicissitudes da Fortuna. Ainda que, quando experimentadas, não tenham sido desejáveis, serão todavia agradáveis de se ler: a recordação livre da dor passada tem efetivamente seu prazer; com certeza, para os que não passaram por nenhum dissabor e contemplam os males alheios sem nenhuma dor, a própria piedade é agradável.240
O procedimento aludido por Cícero difere dos demais ao insistir no prazer
decorrente das vicissitudes da Fortuna e tomar a escrita eloquente como necessária
à efetivação deste mesmo prazer. Logo, a história encerra conflitos e dissabores,
mas propicia também o deleite, sobretudo por tratar de males alheios.
Tito Lívio, no prefácio de Ab Urbe Condita, diz que não pretendia
confirmar ou negar a tradição legada pelos poetas. Ele registra uma paulatina queda
dos princípios morais, dos costumes, decadência esta que se mostra amplificada no
seu presente. “Não podemos mais suportar nem nossos vícios, nem seus remédios”,
ele diz, buscando luz em meio às sombras de seu tempo.241
O que principalmente há de são e fecundo no conhecimento dos fatos é que consideras todos os modelos exemplares, depositados num monumento, em plena luz: daí colhes para ti e para teu estado o que imitar; daí, evitas o que é infame em sua concepção e em sua realização.242
Na posição de historiador romano não pertencente à aristocracia
senatorial, Tito Lívio valorizava sobremaneira os domínios da retórica e,
diferentemente de Heródoto e Tucídides, que escreviam sobre ocorrências mais ou 238 PIRES, F. M. Mithistória. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, p. 179. 239 CÍCERO. As Familiares, 5, 12, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 157. 240 Idem, ibidem. 241 LÍVIO, Tito. Ab Urbe Condita, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 207. 242 Idem, ibidem.
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menos contemporâneas, ele discorreu sobre um passado romano mais recuado.
Sem experiência político-militar, ele distancia-se de Políbio, de Cícero e de outros
que julgavam necessária a conciliação entre a escrita da história e a atividade
política. Seu investimento nos exempla é recorrente, o que lhe permite diferenciar
um período áureo de outro consumido pela decadência (cogita-se que o corte
cronológico estipulado por Tito Lívio seja o ano de 188 a. C.). Os exempla
permitiriam não somente a instrução dos leitores, mas também a compreensão da
história romana e o destacamento de valores morais e virtudes de aceitação
universal. De acordo com Breno Sebastiani, Lívio torna-se o “primeiro historiador a
transformar em objeto de estudo algo que era fruto do conhecimento indireto,
seguindo a preceituação ciceroniana para a qual a história era tarefa de
oradores”.243
Tácito esclarece, no prefácio de suas Histórias, o teor de sua narrativa:
primeiramente, ele menciona, sem nomear, autores que se deixaram mover pela
ignorância da coisa pública, pela vontade de bajular ou, ao contrário, pelo ódio
contra os dominantes, o que acabou “fraturando” a verdade que registraram. Assim,
uns se tornaram hostis, outros submissos, deixando de lado a preocupação com a
posteridade. A verdade, no caso, deve ser proferida sem amor e sem ódio. Como
nota François Dosse, a “poética histórica” de Tácito afina-se aos ensinamentos de
Cícero, ou seja, acata o “respeito pela ordem cronológica, a difusão das informações
geográficas necessárias, a explicação das intenções dos autores, a narrativa dos
acontecimentos importantes e a busca de suas causas”.244
A obra de Tácito, que se ocupa do principado do “divino Nerva” e do
reinado de Trajano, é rica em desventuras, como ele próprio admite:
Realizo uma obra rica em desventuras, atroz por seus combates, dividida por sedições, selvagem mesmo na própria paz: quatro príncipes assassinados a ferro; três guerras civis, muitas guerras externas, muitas guerras mistas; prosperidade no Oriente, adversidades no Ocidente; perturbações na Ilíria, a Gália cambaleante, a Bretanha completamente subjugada e logo perdida; os povos dos sármatas e suevos levantados
243 SEBASTIANI, Breno Battistin. A política como objeto de estudo: Tito Lívio e o pensamento historiográfico romano do século I a. C. In: JOLY, Fábio Duarte. História e retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, p. 95. 244 DOSSE, François. A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 105.
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contra nós; os dacos famosos por nossos mútuos desastres; e até as armas dos partos postas em movimento pelo capricho de um falso Nero.245
Além disso, ele cita alguns desastres que subjugaram a Itália, como os
incêndios ocorridos em Roma, que devastaram santuários e o próprio Capitólio, a
prática de adultérios, os exílios, a selvageria das cidades e o levante dos servos
contra seus senhores. Após nomear todos estes infortúnios, ele pondera, dizendo
que o século “não foi tão estéril em virtudes que não produzisse também bons
exemplos”. Em seguida, ele diz: “jamais as mais atrozes desventuras do povo
romano e os indícios mais suficientes deram prova de que os deuses não se
encontram preocupados com nossa segurança, mas com o nosso castigo”.246 Em
outro momento, à maneira de um segundo prefácio, Tácito alerta para a utilidade de
sua narrativa, dizendo:
Nosso trabalho dispõe de espaço estreito e inglório: com efeito, havia uma paz imóvel ou moderadamente atacada, os negócios da cidade aflita e um príncipe indiferente ao progresso do império. Entretanto, não seria desprovido de proveito examinar essas coisas, à primeira vista sem importância, nas quais está a origem do movimento que leva a fatos muitas vezes essenciais.247
Demarca-se um viés ruinoso, caracterizado por labores, dissabores e
reveses da fortuna. Este quadro proporciona não somente o deleite, mas também a
instrução decorrente de lições morais. A memória, afinal, parece preferir tudo o que
foge ao corriqueiro, como lembra-nos o anônimo da Retórica a Herênio:
As coisas pequenas, comezinhas, corriqueiras, que vemos na vida, não costumamos guardar na memória, porque nada de novo ou admirável toca o ânimo. Mas, se vemos ou ouvimos algo particularmente torpe, desonesto, extraordinário, grandioso, inacreditável ou ridículo, costumamos lembrar por muito tempo. É assim que esquecemos a maioria das coisas que vemos ou escutamos a nossa volta, mas quase sempre nos lembramos muito bem de acontecimentos da infância. Isso não pode ter outra causa senão que as coisas usuais facilmente escapam à memória, as inusitadas e insignes permanecem por mais tempo.248
O conceito de “trágico” está afixado no título da coletânea de Bernardo
Gomes de Brito: História trágico-marítima. No entanto, os estudiosos que dela se
245 TÁCITO. Histórias, I, apud HARTOG, F. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, pp. 209-211. 246 Idem, p. 211. 247 Idem, p. 215. 248 [CÍCERO, M. T.]. Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra, 2005, III, 35, p. 191.
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ocupam costumam insistir no caráter pessimista de sua composição, que seria
sintomática de uma “crise” europeia. A alegação desta crise baseia-se,
normalmente, em muitas tópicas retóricas que mencionamos no decorrer deste
capítulo, que historiadores utilizavam porque a escrita da história assim o requeria. É
preciso ter cautela para não associar um lugar-comum à empiria. Entender as
narrativas como desdobramentos de uma “situação histórica depressiva” acarreta
vários problemas, sobretudo porque tal procedimento não leva em consideração o
caráter datado e, portanto, histórico dos códigos linguísticos empregados. Quando
se concebe uma crise geral, textos escritos naquele contexto acabam sendo
apreendidos com um tom pessimista, emergencial, às vezes reacionário e
contestatório.
Os grandes males narrados nos relatos de naufrágio são, na maioria das
vezes, males naturais, como a tempestade que devasta o navio e evidencia a
limitação dos remédios humanos. Por outro lado, estes mesmos eventos naturais
podem indicar castigo divino, para punir o orgulho e a cobiça dos mareantes. O
incidente pode ser uma oportunidade para uma provação, em que os sobreviventes
precisam demonstrar sua fé na Providência. A ideia de que estas narrativas são
pessimistas é redutora, pois leva em consideração o sofrimento e o fracasso
humanos e deixa de lado a figura de Deus, que é central na narrativa. Não podemos
nos esquecer de que estas narrativas afirmam o sentido transcendental da história,
mesmo quando a experiência que retrata é denominada “trágica”.
De acordo com Lisa Voigt, tanto os relatos de naufrágio quanto os de
cativeiro não fogem à ideologia imperial e católica, pois, “em vez de simplesmente
mostrarem os perigos da viagem, incentivam a religiosidade e o comportamento
exemplar tanto dos que ficam, como dos que se lançam à experiência ultramarina”.
A autora menciona, posteriormente, as iniciativas de Giulia Lanciani e Maria Alzira
Seixo, que admitiram a presença da ideologia imperial e, ao mesmo tempo, uma
dimensão antiépica das relações, identificando nelas elementos contraditórios e
ambíguos. Voigt chega à conclusão de que estas narrativas não podem ser
separadas do contexto imperial, pois não representam simplesmente uma “inversão”
da ideologia expansionista, “apesar da atração desta possibilidade para as nossas
sensibilidades pós-coloniais”.249 Em outras palavras, o epíteto “antiepopeia dos
249 Ver: VOIGT, Lisa. Naufrágio, cativeiro, e relações ibéricas: a História trágico-marítima num contexto comparativo. In: Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 24, nº 39, 2008, pp. 201-226.
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Descobrimentos” tende a sugerir um conjunto de equívocos quando associado aos
relatos de naufrágio, pois supõe uma reação contra a ideologia expansionista.
Numa das licenças do Santo Ofício que acompanham a História Trágico-
Marítima, Fr. Manoel de Sá menciona os “trágicos sucessos” dos navios e galeões
na Carreira da Índia e a “heroicidade” dos espíritos magnânimos que enfrentaram
uma grande leva de infortúnios, como peregrinações por terras incógnitas e
bárbaras, a ira dos mares, o descuido dos pilotos etc.250 Fr. Francisco Xavier de S.
Teresa, noutra licença, acentua a gravidade das travessias relatadas amplificando
sua importância: fala das “viagens, que em diversos tempos, e em diferentes mares
antigamente se fizeram, nenhuma semelhança tem com as que se leem neste livro,
não só com horror, mas com lástima”. Ele cita várias empresas antigas, como as de
Ulisses e Eneias, e afirma que “todas estas viagens tão longas, tão perigosas, e por
mares nunca dantes amansados, não tem, nem podem ter comparação com as que
se contam nestas funestas e melancólicas Relações”.251 Convém recordar a
contenda presente na historiografia grega antiga, quando Heródoto realçou a
grandiosidade das guerras médicas em relação à matéria homérica, e Tucídides
narrou a Guerra do Peloponeso para demonstrar como ela supera todas que a
antecederam. O censor, utilizando um argumento análogo, afirma que os
navegantes antigos descobriram terras e ilhas novas, mas também conquistaram
tesouros e riquezas, o que amenizou os trabalhos passados e fez com que
esquecessem os grandes perigos. No caso da História Trágico-Marítima, pelo
contrário, as narrativas remetem a nautas que
deixavam os tesouros que traziam para a Pátria, adquiridos, ou na guerra à custa da própria vida, ou na paz à custa de impertinentes negociações, umas vezes no coração vorás do Oceano, e outras nas desertas e incultas praias da África, expostos à rapina da Bárbara e ambiciosa Cafraria.252
Utiliza-se o critério “sofrimento” para amplificar não somente as
dificuldades, mas a grandiosidade das viagens portuguesas. Não se trata de indícios
empíricos que apontam para uma época decadente, mas de argumentos, tópicas,
250 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Em que fe efcrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portugal, depois que fe poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo primeiro. Lisboa Ocidental: Officina da Congregação do Oratório, 1735, s/p. 251 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Em que fe efcrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as Naos de Portugal, depois que fe poz em exercicio a Navegaçaõ da India. Tomo segundo. Lisboa Ocidental: Officina da Congregação do Oratório, 1736, s/p. 252 Idem, ibidem.
99
figuras e arrazoados que indicam ao leitor discreto as glórias que os nautas lusitanos
mereciam. Ao menos neste caso, o censor não retrata um Portugal decadente, mas
sim um Portugal que se esforça “por mares nunca dantes navegados”. Se os
trabalhos e dissabores da empresa ultramarina insinuam grandeza e glória,
realmente há algo de funesto nestas experiências?
Lágrimas de Portugal
Fernando Pessoa inicia um de seus poemas com a seguinte exclamação:
“Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!”.253 O poeta faz uso
de uma prosopopeia quando coloca Portugal a chorar, e de uma hipérbole, quando
dá a entender que uma boa parcela do mar corresponde às lágrimas que os
portugueses derramaram. Estas duas figuras ajudam a compreender melhor o título
do poema, “Mar português”, que indica uma relação de posse em dois sentidos: é
português porque foi desbravado por iniciativa deste Estado, e também porque é
fruto de seu pranto. Resta, então, identificar algumas das fontes que originaram
estas lágrimas, para traçar uma espécie de genealogia do “mar português”. No
entanto, convém antecipar que muitos povos antigos prantearam, e muitas destas
lágrimas correram pelo mar Egeu, desembocaram no mar Mediterrâneo,
atravessaram o estreito de Gibraltar e chegaram, finalmente, à imensidão do
Atlântico.
O Atreide Agamêmnon, contrariado com os primeiros resultados da
guerra, chorou e chegou a cogitar o retorno, sentindo-se como que traído por Zeus,
que lhe prometera a vitória.254 Pátroclo pranteia copiosamente ao lado de Aquiles
que, afastado da batalha, prejudicava sobremaneira os gregos. Aquiles, “pastor-de-
povos”, comove-se perante as lágrimas do amigo e, em sua fala, vale-se de um
símile que deixa ver o estado em que se encontrava Pátroclo: “Que nem menina que
corre atrás da mãe, querendo colo, e às roupas dela se apega, e impede que
caminhe, enquanto ergue os olhos, chorosa, a pedir que a carregue; choras que
nem menina, meu Pátroclo”.255 O curioso é que o próprio Aquiles, depois que
253 PESSOA, Fernando. Mar Português. In: Mensagem. Lisboa: Edições Ática, 1959, p. 58. 254 HOMERO. Ilíada de Homero: vol. I. Tradução de Haroldo de Campos, introdução e organização de Trajano Vieira. 4ª ed. São Paulo: Arx, 2003, canto IX, vv. 14-17, p. 329. 255 HOMERO. Ilíada de Homero: vol. II. Tradução de Haroldo de Campos, introdução e organização de Trajano Vieira. 4ª ed. São Paulo: Arx, 2003, canto XVI, vv. 7-11, p. 137.
100
Agamêmnon toma sua cativa Briseida, chora por acreditar-se desonrado até receber
conforto da mãe, a deusa Tétis, que “afagava o filho em prantos”.256 Vale recordar
que este foi um dos motivos decisivos que afastou o herói da guerra. No entanto,
Aquiles volta atrás quando fica sabendo da queda de Pátroclo, morto pela espada de
Heitor, príncipe troiano.257 O herói emociona-se e protagoniza uma cena patética, na
qual arranca seus cabelos e lança cinzas sobre o rosto, comovendo até mesmo Tétis
e as Nereides. Aquiles chora quando fica sabendo do ocorrido, no decorrer das
homenagens fúnebres e quando se recorda do pai e do filho ainda pequeno que
deixou para trás quando decidiu integrar os exércitos de Agamêmnon. Até em sonho
ele soluça quando Pátroclo lhe aparece e exige presteza no enterro.258 Nem mesmo
Hipnos, deus que proporciona e preside o sono, conseguiu refrear seu pranto.259 Por
fim, há o episódio no qual Aquiles é convidado a abandonar sua ménis, sua ira, ao
receber em sua tenda o rei Príamo, pai de Heitor, que pretendia tomar de volta o
corpo do filho para efetuar as honras fúnebres. Ambos, após conversa inicial, caem
em prantos: um pela morte do filho, o outro pelo amigo que morreu e pelo seu
próprio pai, deixado desamparado em sua pátria.
As lágrimas de Ulisses, Penélope e Telêmaco, por sua vez, abasteceram
o mar Jônico e suas adjacências. Penélope chora ao longo dos anos a espera do
marido, frente à possibilidade de ter que unir-se a um dos pretendentes que
ansiavam pelo trono de Ítaca. Telêmaco, filho do casal, chora pela ausência do pai,
e parte para recolher informações sobre o seu paradeiro. Ulisses derrama lágrimas
quando contempla a possibilidade de sair da ilha de Calipso, na qual foi feito
prisioneiro por sete anos, e chora ainda mais quando escuta o aedo Demódoco
cantando a guerra de Tróia. Vale lembrar que a Odisseia é a “epopeia do retorno”,
do retorno “doloroso”, sendo habitada pela “ausência e construída em torno da
memória”. Quando chora perante a “exatidão” do canto de Demódoco, Ulisses utiliza
como critério sua experiência e vivencia, segundo Hartog, um luto por si mesmo. No
caso, as lágrimas do herói estariam exprimindo a experiência do tempo, justamente
porque lida com a memória, diferentemente do que ocorre na Ilíada.260
256 Idem, vol. I. Canto I, vv. 360-361, p. 51. 257 Idem, vol. II. Canto XVIII, vv. 22-53, pp. 231-233. 258 Idem, vol. II. Canto XXIII, vv. 97-99, p. 393. 259 Idem, vol. II. Canto XXIV, v. 06, p. 441. 260 Ver: HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Organização de José Otávio Guimarães e tradução de Sonia Lacerda, Marcos Veneu e José Otávio Guimarães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, pp. 16-29.
101
Todo este “mar de lágrimas” alcança, finalmente, o Mediterrâneo,
atingindo a costa africana e unindo-se ao pranto derramado na antiga Cartago.
Assim como Ulisses, comovido com o canto do aedo, também Enéias chora diante
das pinturas de um templo cartaginês que rememorava a guerra de Troia. Alguns
pesquisadores costumam distinguir na épica de Virgílio uma faceta trágica, obscura,
que configuraria o reverso da epopeia. Quanto maior é a queda, diz-se, maior é a
grandeza do feito que dela decorre. Por outras palavras, há uma penumbra em meio
à luz do canto heroico, caracterizado pelo “duro aprendizado da condição
humana”.261
Os poetas e narradores portugueses emularam os gregos e romanos para
cantar/narrar os episódios que arrancaram dos portugueses as lágrimas que
formaram o seu mar.
Para prosseguir, segue outro fragmento poético de Pessoa: “Por te
cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas
noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar!”.262 Estes versos emulam a
passagem d’Os Lusíadas que discorre sobre a partida de Vasco da Gama, ocorrida
a oito de julho de 1497. Parentes, amigos, desconhecidos e “mil religiosos diligentes”
acompanharam a procissão que partiu da antiga Ermida de Nossa Senhora,
localizada à margem do rio Tejo. As mães, desamparadas, lamentavam a partida
dos filhos, que as abandonavam para se tornarem alimento de peixes. As esposas
temiam a partida dos maridos por “caminho duvidoso”, deixando de lado o amor,
levado “com as velas” pelo vento. Depois dos lamentos todos, o poeta utiliza uma
prosopopeia seguida de uma hipérbole para dar a ler o sofrimento dos que ficavam:
“Os montes de mais perto respondiam, / Quase movidos de alta piedade; / A branca
areia as lágrimas banhavam, / Que em multidão com elas se igualavam” (Canto IV,
vv. 89-92). Fernão Lopes de Castanheda263 e João de Barros264 insistiram,
261 Ver: GRIZOSTE, Weberson Fernandes. O Reflexo antiépico de Virgílio no indianismo de Gonçalves Dias. Dissertação de Mestrado. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009; CARVALHO, Teresa de. Epopeia e antiepopeia: de Virgílio a Alegre. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008. 262 PESSOA, Fernando. Mar Português. In: Mensagem. Lisboa: Edições Ática, 1959, p. 58. 263 “E ao embarcar saíram todos em procissão de nossa senhora de Belém um mosteiro da ordem de São Jerônimo, e iam descalços e sem pelote [roupas] e círios acesos nas mãos, e os frades rezando: e ia com eles a maior parte da gente de Lisboa, e a mais dela chorava com piedade dos que se iam embarcar crendo que haviam todos de morrer”. CASTANHEDA, Fernão Lopez de. História do descobrimento e conquista da Índia pelos Portugueses. Coimbra, 1551, livro I, p. 07. Disponível em: http://purl.pt/15294. Acesso em: março/2013.
102
igualmente, no choro vertido na praia de Belém, conhecida também como “praia das
Lágrimas”, como bem lembra o narrador do naufrágio da nau Conceição, Manuel
Rangel.265 A designação “praia das Lágrimas” foi mencionada por João de Barros na
sua primeira Década, expressão utilizada pelos que partiam, pois o caminho inverso,
ou seja, de retorno, fazia merecer outra expressão: “terra de prazer”.266
Castanheda, Barros e Camões discorreram sobre o medo e a dúvida em
relação ao porvir, sobre as lágrimas derramadas e sobre a piedade dos que
permaneceram em terra firme. O olhar enternecido que acompanhava da praia o
avançar das naus era correspondido pelo olhar lacrimoso dos nautas que
avançavam mar adentro, contemplando a segurança do lar. Outras tantas lágrimas a
somar-se à imensidão azul, e a tripulação sequer havia ultrapassado os limites do
Tejo.
No decorrer do itinerário dos navegantes, sobretudo quando a nau
encontrava-se à mercê dos ventos e das ondas, as lágrimas e soluços eram
abundantes. Luís Pereira, no sexto canto de sua Elegiada (1588), narra os
infortúnios de Manuel de Sousa Sepúlveda e sua família a bordo do Galeão São
264 “Ao seguinte dia, que era sábado oito de Julho, por ser dedicado a Nossa Senhora, e a Casa de muita romagem; assim por esta devoção, como por se irem despedir dos que iam na Armada, concorreu grande número de gente a ela. E quando foi ao embarcar de Vasco da Gama, os Freires da casa com alguns Sacerdotes, que da Cidade lá eram idos dizer Missa, ordenaram uma devota procissão, com que o levaram ante si nesta ordem: ele, e os seus com círios nas mãos, e toda a gente da Cidade ficava detrás respondendo a uma Ladainha, que os Sacerdotes diante iam cantando, até os porem junto dos bateis, em que se haviam de recolher. Onde feito silêncio, e todos de joelhos, o Vigário da Casa fez em voz alta uma confissão geral, e no fim dela os absolveu na forma das Bulas, que o infante D. Henrique tinha havido para aqueles, que neste descobrimento, e conquista falecessem, (como atrás dissemos). No qual ato foi tanta lágrima de todos, que neste dia tomou aquela praia posse das muitas, que nela se derramam na partida das Armadas, que cada ano vão a estas partes, que Vasco da Gama ia descobrir: donde com razão lhe podemos chamar praia de lágrimas para os que vão, e terra de prazer aos que vem. E quando veio ao desfraldar das velas, que os mareantes segundo seu uso deram aquele alegre princípio de caminho, dizendo boa viagem, todos os que estavam prontos na vista deles com uma piedosa humanidade dobraram estas lágrimas, e começaram a encomendá-los a Deus, e lançar juízos, segundo o que cada um sentia daquela partida. Os navegantes, dado que com o fervor da obra, e alvoroço daquela empresa embarcaram contentes, também passado o termo do desferir das velas, vendo ficar em terra seus parentes, e amigos, e lembrando-lhes que sua viagem estava posta em esperança, e não em tempo certo, nem lugar sabido, assim os acompanhavam em lágrimas, como em o pensamento das coisas, que em tão novos casos se representam na memória dos homens. Assim que uns olhando para a terra, e outros para o mar, e juntamente todos ocupados em lágrimas, e pensamento daquela incerta viagem, tanto estiveram prontos nisso, até que os navios se alongaram do porto”. BARROS, João de. Da Asia: Dos feitos, que os Portuguezes fizeram na conquista, e descubrimento das terras, e mares do Oriente – Década primeira (parte primeira). Lisboa: Regia Officina Typografica, 1778, pp. 277-279. Disponível em: http://www.archive.org. Acesso em: janeiro/2013. 265 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 97. 266 BARROS, João de. Da Asia: Dos feitos, que os Portuguezes fizeram na conquista, e descubrimento das terras, e mares do Oriente – Década primeira (parte primeira). Lisboa: Regia Officina Typografica, 1778, livro IV, cap. II, pp. 277-279.
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João. Durante uma tempestade, sua mulher, d. Leonor, encontrava-se debaixo da
escotilha, com os filhos apertados contra o peito e sem descansar “a bomba em
botar fora / As saudosas lágrimas que chora”. No entanto, como pode “pouco com a
tempestade” a “força do choro”, de nada adiantou bombear as lágrimas, já que a nau
corria às vistas do cabo, chamado “da Esperança, / Por ser ditoso quem dobrá-lo
alcança”.267 Ao final do canto, depois de ocorrido o naufrágio e com o triste fim da
peregrinação, outra passagem de alto teor patético chamou-nos a atenção:
Sepúlveda deixa a família por um instante para conseguir alimento e, quando
retorna, encontra sua mulher e filhos sem vida. Depois de enterrá-los em completo
silêncio e sem derramar uma lágrima sequer, o capitão do desventurado Galeão São
João avança rumo às florestas, “com rouca voz mil lástimas dizendo, / De mágoa
enternecendo as pedras duras”.268
Esta figura de prosopopeia aparece também em Camões, justamente em
uma das três oitavas dedicadas à experiência trágica de Sepúlveda, que fez “as
pedras abrandarem / Com lágrimas de dor, de mágoa pura”.269 Melchior Estácio do
Amaral, no último relato de naufrágio da História de Brito, termina a narrativa
dizendo que os inúmeros naufrágios que vitimaram naus portuguesas “magoam até
as pedras”.270 Alguns episódios dramáticos poderiam comover até mesmo os
animais, tópica que nos remete a Homero, que coloca os cavalos de Pátroclo a
chorar quando este tomba em batalha. Sem saber se recuavam ou avançavam, eles
ficaram “junto à biga pluribela, fronte para o solo inclinada, lágrimas ardentes
escorrendo das pálpebras”.271 Em Camões, no episódio que canta o destino trágico
de Inês de Castro, esta, defendendo-se contra os agressores que a queriam morta,
pede para ser colocada entre “liões e tigres”, para ver se neles acharia a piedade
que “entre peitos humanos” não encontrou. No canto II, Vênus, banhada em
lágrimas, pediu a Zeus que intervisse a favor dos portugueses, oferecendo mostras
de brandura “que moveram de um tigre o peito duro”.272 Manuel de Mesquita
Perestrelo, na relação de naufrágio da nau São Bento, diz que a míngua e
267 PEREIRA, Luís. Elegiada: dirigida ao sereníssimo Senhor Cardeal Alberto, Arquiduque de Áustria, e Governador dos Reinos de Portugal. Lisboa: impressa por Manuel de Lyra a requerimento de Francisco de Miranda, 1588, canto VI, p. 74. 268 Idem, p. 91. 269 Os Lusíadas, canto V, estrofe 48, p. 157. 270 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 543. 271 HOMERO. Ilíada de Homero: vol. II. Tradução de Haroldo de Campos, introdução e organização de Trajano Vieira. 4ª ed. São Paulo: Arx, 2003, canto XVII, vv. 437-439, p. 211. 272 Os Lusíadas, canto II, estrofe 42, p. 60.
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desamparo dos nautas “a tigres e ursos moveriam a piedade”.273 Em outro momento,
ele afirma que nos cafres se encontra menos piedade que em todos os “Tigres de
Hircânia”.274 Jerônimo Corte-Real, quando descreve os perigos por que passou
Sepúlveda, afirma que o mísero espetáculo foi infeliz o suficiente para “demover
Hircanos Tigres”.275 Para ilustrar a crueldade humana, Shakespeare também
menciona estes tigres. A Hircânia ficava no atual território do Irã, sendo muito
referida pela literatura latina justamente pela ferocidade dos tigres que lá se
encontravam.
As experiências trágicas, como se pode ver, são volumosas. Mas as
lágrimas, que foram derramadas com tamanha abundância, denotam
necessariamente algo como pessimismo ou decadência?
No último quartel do século XV, veio a lume o Malleus Maleficarum,
escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger. Na primeira parte do
livro, especificadamente na questão de número XII, os autores refletiram sobre a
existência da bruxaria. Retomando, inicialmente, auctores da Sagrada Escritura e
filósofos “pagãos”, Kramer e Sprenger discorreram sobre a responsabilidade do
homem, quando recebe o dom da vida, e sobre a existência do mal. Eles partem de
uma concepção providencialista para dizer que tudo o que existe deve passar,
antes, pela aprovação de Deus, e que sua justiça permite a prevalência do pecado,
da culpa, do castigo, da perda. Deus conhece as coisas na sua generalidade e na
sua particularidade e, por isso, não há qualquer coisa fora da providência. Em outro
momento, os autores afirmam que há, de um lado, o provedor particular, que deve
afastar de si todo o mal que puder, pois não é capaz de extrair bem do mal, e o
provedor universal, Deus, capaz de extrair bem dos males particulares. Ou seja,
seria possível extrair bem da perseguição dos tiranos, pois foi dela que teria surgido
a paciência dos mártires. Os inquisidores mencionam Santo Agostinho, que disse:
“Tão misericordioso é o Deus Todo-Poderoso que não permitiria que o mal atingisse
as suas obras se não fosse tão onipotente e tão bom ao ponto de até mesmo do mal
273 BRITO, B. G. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 71. 274 Idem, p. 55. 275 CORTE-REAL, Jerônimo. Naufrágio e lastimoso sucesso da perdição de Manoel de Sousa Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindos da Índia para este Reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. E a peregrinação que tiveram rodeando terras de Cafres mais de 300 léguas até sua morte. Lisboa: Typografia Rollandiana, 1783, canto VII, p. 77.
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extrair o bem”.276 Na sequência, Kramer e Sprenger dialogam sobre a prevalência do
mal, do pecado e do sofrimento, iniciando com duas proposições: toda criatura
comete pecados, e isto é permitido por Deus. Seria impossível, portanto, a
transmissão da impecabilidade às criaturas.
Na questão XV, tratam os autores do fato de inocentes sofrerem punições
pelos pecados das bruxas. Baseando-se em Tomás de Aquino, os inquisidores
dividem os castigos em três categorias: (1) o homem ao homem pertence e, por isso,
suas ações podem acarretar em castigo para o outro; (2) o pecado de uma pessoa
pode ser transmitido a outra por imitação, quando, por exemplo, a criança imita o
pecado do pai, ou quando um escravo usufrui dos bens ilícitos adquiridos por seus
donos, ou pode ser transmitido por consentimento, quando por exemplo uma
autoridade consente com o pecado, podendo afetar a outros; (3) o pecado é
comunicado pela permissão Divina para a condenação da unidade da sociedade
humana, para que o homem cuide do próximo e este se abstenha do pecado, e para
que o pecado pareça ainda mais detestável, pois o pecado de um redunda sobre
todos, como se todos fossem um só corpo.277 A punição tem o efeito esperado
quando o homem suporta pacientemente os males, pois castigo sem paciência
torna-se vingança. Assim, mesmo a bruxaria pode vir a causar um grande bem:
“quando a morte é aguardada com resignação e devoção, e oferecida na sua
amargura a Deus, pode adquirir de algum modo um caráter corretivo”.278 A morte
violenta, por exemplo, “de quem a merece ou não, é sempre corretiva, quando
suportada com paciência e na graça. Tanto mais para os castigos infligidos por
causa dos pecados dos outros”.279
Para Kramer e Sprenger, o castigo divino “é de dois tipos, espiritual e
temporal. No primeiro caso, nunca há punição sem culpa notória. No segundo, por
vezes a punição se faz sem que haja culpa, mas nunca sem que haja uma causa”.280
Neste segundo tipo, “ora é infligido pelo pecado de outrem, ora sem que tenha
havido qualquer pecado, pessoal ou de outra pessoa, mas pela existência de outra
276 KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. 17ª ed. Tradução de Paulo Fróes. Introdução de Rose Marie Muraro. Editora Rosa dos Ventos, 1997, p. 161. 277 Ver: idem, pp. 175-176. 278 Idem, p. 177. 279 Idem, ibidem. 280 Idem, p. 178.
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causa, ora ainda pela existência de culpa pessoal, sem a participação do pecado de
outra pessoa”.281
Logo, é por cinco causas que Deus castiga os homens em vida: (1) para
Sua glória, quando o castigo infligido é miraculosamente removido, como no caso do
cego de nascença ou da ressurreição de Lázaro; (2) para que se adquira o mérito
pelo exercício da paciência e também para que a virtude oculta se manifeste aos
outros; (3) para que a virtude possa ser preservada mediante a humilhação pelo
castigo. Essas três causas justificam o castigo sem culpa. No caso da existência de
culpa, os homens são castigados (4) para que a danação eterna já comece nessa
vida e (5) para que possam ser purificados, pela expulsão e neutralização da culpa
através do castigo.
Pensando desta forma, o pranto nem sempre é consequência do pecado
ou da culpa, já que é possível vivenciar males particulares que propiciam um bem
maior. Logo, a experiência trágica, quando lida em chave providencialista, não pode
ser entendida como pessimismo ou decadência, pois é condição da própria
existência. Poder-se-ia acrescentar, ainda, que chorar é uma atitude racional (e
mesmo prudencial), uma vez que o sofrimento é condição da existência humana.
O mundo seria mais digno de riso ou de lágrimas? Qual seria o homem
mais prudente: Demócrito, que sempre ria, ou Heráclito, que sempre chorava? Estas
questões foram propostas em uma academia romana no ano de 1674, ficando o
padre Antônio Vieira responsável por defender as lágrimas de Heráclito. Na ocasião,
Vieira afirma que o pranto implica o uso da razão, pois é fruto de um conhecimento
verdadeiro do mundo. Mundo que ele identifica como sendo um “mapa universal de
misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes”, um “teatro imenso”,
trágico, funesto, lamentável.282 Quem não chora perante tal cenário, diz Vieira,
“mostra que não é racional”.283 Na sequência, para provar que o riso de Demócrito
não passava, na verdade, de pranto, o jesuíta enumera três níveis de sofrimento:
com lágrimas (dor moderada), sem lágrimas (dor agravada) e com riso (dor suma e
excessiva). Note-se, portanto, que, para desconstruir a hipótese segundo a qual o
mundo é mais digno de alegria, Vieira afirma que o sorriso pode ser consequência
de uma dor aguda. Logo, Demócrito sofria mais do que Heráclito perante o teatro do
281 Idem, ibidem. 282 VIEIRA, Antônio. As lágrimas de Heráclito. Fixação de textos, introdução e notas de Sônia N. Salomão. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 543. 283 Idem, p. 544.
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mundo e, em razão disso, ria sem cessar. Além disso, da lágrima é possível extrair
um efeito edificante, pois “quem quer imprimir os seus afetos e a sua doutrina nos
corações, não deve endurecê-los, deve abrandá-los”.284 Tingir o rosto alheio de
lágrimas pode se converter, portanto, em um eficaz instrumento de persuasão.
Quem ri atenua os males; as lágrimas, ao contrário, os amplifica. Pranto é natureza,
diz Vieira citando Plínio, pois o homem nasce chorando e fica condenado ao eterno
pranto, fruto do pecado original, que o privou da felicidade na qual foi criado. Em seu
último argumento, o jesuíta contrapõe a situação inicial de felicidade plena, na qual a
potência do chorar estaria ociosa, e a atual situação miserável, em que seria
verossímil a ociosidade da potência do sorrir.
O pranto é uma forma de tocar a alma do fiel, de persuadi-lo quanto ao
caminho a ser percorrido. Sendo, portanto, efeito de dor e sofrimento, é comum que
episódios dramáticos apareçam aqui e acolá com finalidade edificante, isto é, como
meio de instrução moral que visa edificar um éthos. Mas haveria algum desajuste
entre o incidente marítimo e o canto épico, como algumas vezes se alega? As
lágrimas, ao que tudo indica, podem muito bem ser a manifestação da sabedoria do
homem prudente e ajuizado, que apreende as misérias (ou desconcertos) do mundo,
mas também a graça misericordiosa do perdão divino. Como falar de pessimismo,
ou mesmo de tragédia (no sentido corrente do termo) nestas circunstâncias?
Se, como diria Pessoa glosando Camões, o mar a Portugal pertence
devido ao pranto que os portugueses choraram, não é de se estranhar que muitos
deles tenham se afogado nas próprias lágrimas.
Retratos de tempestades
A Odisseia é generosa em episódios que abordam dramas marítimos.
Com a ausência de Poseidon, que visitava a terra dos Etíopes, Zeus envia Hermes à
ilha de Calipso para libertar Ulisses. O herói parte com vento propício, mas Poseidon
o avista nas proximidades da terra feácia e planeja uma nova série de infortúnios.
Com o seu tridente em mãos, ele congrega as nuvens e agita o mar, iniciando uma
tempestade. Os ventos Euro, Zéfiro, Bóreas e Noto impedem o avanço da nau de
Ulisses que, frente ao quadro que se desenhava à sua volta, exclama:
284 Idem, p. 547.
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Quão infeliz! Ai de mim! Que me falta passar de mais grave? Pois bem receio que a deusa tivesse a verdade anunciado, quando falou dos trabalhos que na água eu passar deveria antes de a pátria alcançar. Ora tudo, de acordo, se cumpre. Com quantas nuvens esconde ora o céu Zeus Olímpico! As ondas como levanta, também, suscitando furiosos remoinhos dos ventos todos! É força que a Morte matura me colha. Três, quatro vezes felizes os Dâneos que lá na planície da grande Tróia morreram, por simples amor aos Atridas! Bem preferira cumprir o Destino e morrer ali mesmo, naquele dia em que os Teucros, visando-me lanças aêneas, inumeráveis jogavam, em torno do morto Pelida. Honras fúnebres teria e aos Aqueus minha fama espalharam. Ora é razão que pereça por modo assim mísero e escuro.285
Uma onda robusta precipita-se sobre a embarcação, obrigando o herói a
abandonar o leme. O mastro parte-se em dois, forçado por um “turbilhão
tempestuoso de ventos num vórtice unidos”. A deusa Ino (também conhecida como
Leucotéia), protetora dos marinheiros, interfere, aconselhando Ulisses a abandonar
a nau e seguir a nado até a costa da Esquéria. Na sequência, Atena refreia os
ventos:
Somente Bóreas ligeiro deixou, porque as ondas abrisse, té que aos Feácios, amantes do remo, chegasse o guerreiro filho de Zeus, e da Morte e do negro Destino escapasse. Dessa maneira flutuou duas noites e dias nas ondas encapeladas, a ver muitas vezes a Morte ante os olhos.286
Duas tópicas se destacam nestes fragmentos: o lamento do herói, que
receava uma morte mísera e escura, porque destituída de honras fúnebres, e a
“visualização” da morte como forma de amplificar o teor trágico do episódio.
Emulando a epopeia homérica, Virgílio se constitui como auctoritas do
gênero com sua Eneida, poema cuja leitura tornou-se imperativa no ambiente letrado
do qual participou, por exemplo, Luís de Camões. A tempestade, no caso,
desenrola-se logo no primeiro canto. Planejando a queda de Eneias e de seus
homens, Juno desce à morada de Eolo, que impera sobre “ventos e ruidosas
tempestades, e com grilhões e cárcere os refreia”. A deusa pede-lhe que liberte os
ventos e afunde as naus troianas, oferecendo-lhe em troca a mais bela das ninfas,
Deiopéia. Eolo atende ao pedido e, com sua lança, instiga os ventos. Densas
285 HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, vv. 299-312, p. 106. 286 Idem, vv. 385-389, p. 108.
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nuvens “o céu e o dia de repente ocultam aos olhos dos Troianos”. Todo o ar “com
crebros raios resplandece: tudo a morte apresenta aos navegantes”. Virgílio, como
se pode ver, mobilizou a tópica que Homero utilizou para amplificar os perigos
relativos à tempestade.287 O lamento de Eneias em meio à procela é análogo ao de
Ulisses:
Oh mil vezes, exclama, venturosos Os que de Tróia junto aos altos muros À vista de seus pais morrer puderam! Oh de todos os Dâneos o mais forte, Tidides, que eu a sorte não tivesse De nos campos Ilíacos, pugnando, Sucumbir do teu braço aos duros golpes, E o espírito exalar! onde prostrado Jaz o valente Heitor do Aquíleo ferro, Onde o ingente Sarpédon, onde tantos Escudos, capacetes, e robustos Corpos d’heróis nas ondas volve Símois.288
Após proferir estas palavras, Aquilão rompe-lhe a vela, os remos se
despedaçam e a nau fica à mercê das ondas, que se erguem como “um monte”,
abrindo um “largo hiato” no mar. Noto arremessa três embarcações contra “cegos
penedos” e Euro encalha outras três em “baixas Sirtes”. A nau dos Lícios, após três
redemoinhos, é devorada pelo mar, e as de Ilioneu, Acates e Abas foram
destroçadas pelo temporal: “abertas as junturas dos lados, por mil rombos as
inimigas ondas vão bebendo”. João Manuel Nunes Torrão diz que, através das
exclamações de Eneias, é possível inferir que estivesse desejando a morte.289 Não
seria, todavia, o kléos (ou fama imorredoura) o objeto de desejo do herói? Parece-
nos, portanto, que Eneias valoriza a morte em campo de batalha contra oponente
ilustre, emulando a passagem homérica que mencionamos há pouco.
287 Há diferenças significativas entre os episódios de Homero e de Virgílio no que se refere à situação em que se encontravam os heróis: Odisseu não estava na companhia de seus homens e lutava sozinho na jangada, “num grandioso cenário deserto da presença humana”, o que torna sua fala solitária. O discurso de Eneias, ao contrário, é como “um solilóquio do homem perante a divindade”, ainda na companhia dos seus. Ver: PEREIRA, Maria Helena Rocha. A tempestade marítima de “Os Lusíadas” – Estudo comparativo. In: Actas da V Reunião Internacional de Camonistas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, p. 208. 288 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro primeiro, p. 9. 289 TORRÃO, João. Manuel Nunes. A tempestade no De GestisMendi de Saa. In: Actas do Congresso Internacional [Anchieta em Coimbra – Colégio das Artes da Universidade (1548-1998)]. Edição da Fundação Eng. António de Almeida. Porto, 2000, pp. 648.
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Em outro momento, já nas proximidades da Itália (ou Hespéria), outra
tormenta afasta Eneias de seus intentos:
No alto-mar se engolfara toda a armada, Já não se avistava terra alguma; Tudo era mar e céu, quando atra nuvem Por cima da cabeça me aparece, Trazendo escura noite e grã tormenta, E co’as trevas o mar se torna horrendo. Os ventos o revolvem de contino; Todo em serras se eleva o equóreo plaino: Dispersos pela fúria da procela, Na vastidão do pélago vagamos. A cerração o dia envolve, e a noite Chuvosa o céu nos rouba: uns após outros Raios, rasgando as nuvens, se sucedem.290
Ao discorrer sobre a tempestade que impediu a viagem de Ceix, que
desejava chegar à ilha de Delfos para consultar o Oráculo, Ovídio faz uso de tópicas
análogas às de Virgílio, como no momento em que usa metáforas topográficas para
amplificar o tamanho das ondas, comparando-as a montanhas, ou quando diz que a
água era lançada tão alto que atingia as estrelas. Em outra passagem, Ovídio diz: “o
mar, uma hora era alçado a uma altura que equivalia à de uma montanha e deixava
à vista, lá embaixo, os vales e os abismos do inferno”. Outra metáfora aguda é
evocada quando o poeta equipara o choque das ondas contra o casco do navio e a
investida do aríete contra as muralhas de uma fortaleza. O lamento de uma morte
sem sepultura também aparece em outra passagem, quando o poeta diz que um
homem “inveja a morte em terra firme, porque assim poderia ser enterrado”.291 A
imitação, como se pode ver, é cumulativa: não se trata de repetição servil, mas da
mobilização poética de argumentos agudos que, por sua vez, remetem à autoridade
imitada.
Em Agamêmnon, Sêneca investe Euríbades de narrar os infortúnios
marítimos que recaírem sobre as tropas gregas após a guerra de Tróia. A viagem
começa com “aura suave”, sendo as naus conduzidas pelo “mole Zéfiro”. Quando se
afastam da costa troiana,
(...) grave murmúrio, prenhe de ameaças, cai do cimo das colinas
290 VIRGÍLIO. Eneida. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. Edição organizada por Paulo Sérgio de Vasconcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro terceiro, p. 79. 291 OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Vera Lúcia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003.
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e longo tempo as praias e os rochedos gemem; a onda infla agitada aos ventos que vão vir, súbito a lua então se esconde, estrelas caem; nem há somente noite: um denso nevoeiro cobre as trevas e, extinta toda a luz, confunde mar e céu.292
Os ventos interferem, agitando as ondas. Os efeitos são drásticos:
Era de crer que o mundo inteiro era arrancado de suas bases e, aberto o céu, que os próprios deuses despencavam, cobrindo a tudo um negro caos. Resistem ao vento as ondas e o vento de volta as faz rolar; o mar em si mesmo não cabe: aos astros se ergue o pélago, perece o céu e a borrasca e os refluxos mesclam suas águas. Nem este alívio é dado, enfim, às desventuras: ver e saber ao menos de que mal perecem. As trevas lhes oprimem os olhos; do atro Estige faz-se a noite infernal. Chamas caem, porém, e, contraída a nuvem, fulge o raio atroz e aos aflitos, tal é o dulçor dessa má luz, que a pedem. Por si mesma a esquadra se avaria, proas e flancos abalroam-se uns aos outros. Aquele, o mar, ao entreabrir-se, arrasta abaixo, engole-o e num outro mar o regurgita; (...) Nada ousa o senso e a praxe: a arte cede aos males.293
Intervêm, logo, os lamentos dos moribundos, como de praxe:
(...) Pirro inveja o pai, Ulisses, a Ájax, o mais jovem Atrida, a Heitor, a Príamo, Agamêmnon; ao que jaz em Troia, feliz o chamam, quem morrer logrou em luta, quem a fama eterniza e o chão vencido cobre.294
José Eduardo Lohner afirma que a narrativa sobre a tempestade, em
Agamêmnon, é uma mescla de relato trágico e épico, “com o mensageiro assumindo
a posição de um narrador onisciente, cambiando o estilo indireto e o direto, à
maneira da narrativa heroica”.295 Além disso, o autor percebe várias associações
entre as tempestades em Sêneca, Virgílio e Ovídio,296 embora, no caso específico
de Sêneca, ela seja evocada com um sentido muito particular, alegórico,
292 SÊNECA. Agamêmnon. Tradução, introdução, posfácio e notas de José Eduardo dos Santos Lohner. São Paulo: Globo, 2009, ato III, vv. 466-474, p. 63. 293 Idem, vv. 485-507, pp. 61-63. 294 Idem, vv. 512-516, p. 63. 295 LOHNER, José Eduardo dos Santos. Nota introdutória. In: SÊNECA. Agamêmnon. Tradução, introdução, posfácio e notas de José Eduardo dos Santos Lohner. São Paulo: Globo, 2009, p. 12. 296 Idem, p. 187.
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representando a ira de Clitemnestra contra o esposo. Na esteira de Isabelle Jouteur,
Lohner nota uma tentativa contínua de amplificar, em termos de extensão, a
narrativa imitada, ou seja, os versos de Virgílio superam os de Homero, Ovídio
duplica o número de versos de Virgílio, e Sêneca, conhecedor que era da Eneida e
das Metamorfoses, estende ainda mais o episódio, apresentando-o com um total de
157 versos.297
A tempestade é recorrente também em algumas passagens bíblicas. O
navio no qual viajava Paulo vagava nas proximidades da ilha de Chipre quanto Júlio,
o centurião encarregado da viagem, encontrou uma nau de Alexandria, na qual
colocou Paulo e os outros prisioneiros. A viagem seguiu lentamente, e os ventos
impossibilitaram à nau aportar em Cnido. Assim, costearam a ilha de Creta até
chegar a Bons Portos, nas vizinhanças da cidade de Lasaia. A época não era
propícia para a navegação, e Paulo sabia bem disso, mas não lhe deram ouvidos: o
centurião preferiu escutar os conselhos do piloto e do mestre. O vento estava brando
e, por prudência, continuaram costeando a ilha de Creta, mas não muito tempo
depois uma ventania tomou-lhes de surpresa e, sem poder resistir a ela, o navio foi
arrebatado e arrastado. Temendo encalhar em Sirte, arriaram as velas e
entregaram-se à mercê dos ventos. Devido ao rigor da tempestade, os marinheiros
jogaram fora a carga. No terceiro dia, despojaram-se dos acessórios do navio. Com
a insistência do temporal, muitos perderam a esperança de salvação. Paulo, perante
as circunstâncias, convida-os a adquirir coragem, afirmando que o navio tombaria
sem baixas. Isto lhe foi informado por um anjo de Deus, que apareceu durante a
noite e disse que ele deveria comparecer diante de César. A coragem, portanto, é
invocada com base na fé em Deus. Somavam 14 dias de tormenta. Alguns, temendo
o choque com um baixio, buscaram fugir, mas foram contidos, pois a salvação
dependia da aquiescência e união de todos. Em seguida, Paulo pediu a todos que
se alimentassem e jogassem fora o trigo restante, para aliviar o navio. 276 pessoas
compunham a tripulação. O dia clareou e o navio aproximava-se de uma terra
desconhecida. Os mareantes levantaram âncoras e rumaram para a praia, quando
deram numa língua de terra, ficando a proa encalhada e a popa aberta pela força
com a qual lhe batia o mar. Alguns nadaram, outros rumaram à praia em cima do
tabuado do navio, mas nenhum dos tripulantes pereceu. Haviam chegado à ilha de
297 Idem, p. 188.
113
Malta. Por sorte, os indígenas que habitavam a ilha eram pacíficos, e o principal da
ilha, de nome Públio, era hospitaleiro, acolhendo-os por três dias. Três meses
depois, os náufragos tomaram um segundo navio, também de Alexandria, que
invernava na ilha. Este navio levava por insígnias os Dióscuros, ou seja, a imagem
de Cástor e Pólux, que ornavam a proa do navio. Deste ponto em diante, a viagem
correu sem grandes problemas.
Há também o salmo 107, em que o rei Davi conta sobre uma tormenta:
Os que se fizeram ao mar nos seus navios, para comerciarem nas grandes águas, esses viram as obras do Senhor, e as Suas maravilhas no alto mar. À sua voz surgem as tempestades, e as ondas se levantam; elevam-se até aos céus e descem até aos abismos, as suas almas desfalecem agoniadas. Oscilam e cambaleiam como ébrios e toda a perícia se desvanece.
Como se pode ver, a movimentação das ondas é descrita com figuras
mobilizadas também nas epopeias, com a diferença de que a amplificação volta-se
para as “obras do Senhor”, e não propriamente para a procela, que é resultado de
Sua vontade.
No século VI foi escrito, com versos hexâmetros, De Actibus Apostolorum
(História Apostólica), do poeta cristão Arátor, que discorre sobre a gesta
evangelizadora dos dois grandes “pilares da Igreja”, S. Pedro e S. Paulo.
Portugueses do século XVI travaram conhecimento com esta obra, como se pode
ver pelo estudo de Aires Barbosa que, em 1516, publicou um comentário detalhado
do poema, acompanhado do texto original.298 Na seção XVII do livro II, o poeta trata
do episódio da tempestade que acometeu Paulo quando ele seguia rumo à Itália:
(...) Logo a quietude do pélago foi quebrada pelos sopros do Euro, e a paz fingida do mar cerúleo embranqueceu em inchadas ondas. Por todo o lado o mar se enfurece e, levantando a sua massa do abismo irado, nega uma rota segura ao navio em apuros, que, elevado até aos astros e daí precipitado, se une ao mar, seguidor da terra e do céu. A mão hábil para a navegação carece da ajuda de uma arte amiga, perdem o ânimo por causa do gélido pavor e, cegos sob o negro nevoeiro, vêem o naufrágio iminente e, nas profundezas cerradas,
298 MANSO, José Henrique. Introdução. In: ARÁTOR. História Apostólica – A Gesta de S. Paulo. Tradução do latim, introdução e notas de José Henrique Manso. Universidade de Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010, p. 13.
114
aparece a imagem da morte.299
Trata-se de uma versificação dos Atos dos apóstolos e imitação da
epopeia de Virgílio, como nota José Manso, responsável pela tradução do poema.300
Em De Gestis Mendi de Saa (1563), poema atribuído a José de Anchieta,
as metáforas topográficas também foram evocadas, como no momento em que o
narrador afirma que o vento Sul “se atira torcendo em vórtices as ondas/ e sacode
em turbilhões horrendos o mar tenebroso,/ que se enfurece ao peso da borrasca,
ergue em montanha/ as águas turvadas e as lança raivoso às alturas”.301 Na
sequência, alude-se à presença repetida da morte espectral: “o terror invade a todos
e a todos agita. Entra o medo, já tremem de horror e o espectro da morte se agarra
teimoso aos olhos espavoridos da gente”.302 Os tripulantes, chorando “um rio de
lágrimas”, gemiam: “Pai bondoso dos céus e tu, Cristo benigno,/ que nos preparas?
dizei-nos: permitirás que morramos/ no meio das ondas, ó Pai? que sejamos vil
pasto/ dos peixes vorazes”. Em seguida, dizem todos em uníssono: “Vem auxiliar
teus remidos,/ Redentor nosso, não nos trague o negro abismo dos mares”.303 Mais
uma vez é lamentada a morte em alto-mar, em que os corpos sem sepultura se
reduziam a alimento de peixes.
Em Os Lusíadas, o mestre da nau foi o primeiro a notar uma nuvem negra
e a mudança repentina dos ventos. A procela iniciou-se subitamente. O responsável
por ela foi Baco, que pediu a Eolo a intervenção dos ventos. O mestre ordenou o
recolhimento das velas, mas os ventos não esperaram e “em pedaços a fazem cum
ruído que o mundo pareceu ser destruído”. O céu “fere com gritos nisto a gente, cum
súbito temor e desacordo”. O mestre, depois de lançar o alerta e mandar amainar,
pede aos marinheiros para alijarem tudo ao mar e trabalharem nas bombas, pois a
nau estava alagada. Os nautas atendem ao pedido com presteza, mas os “mares
temerosos” os derribaram. A metáfora mobilizada para amplificar a força dos ventos,
desta vez, é bíblica:
299 ARÁTOR. História Apostólica – A Gesta de S. Paulo. Tradução do latim, introdução e notas de José Henrique Manso. Universidade de Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010, Seção XVII, vv. 1071-1081, p. 102. 300 Este tradutor nota, por exemplo, nexos entre um fragmento do episódio da tempestade descrito por Arátor e uma passagem do terceiro livro da Eneida (vv. 564-566). 301 ANCHIETA, José de. De Gestis Mendi de Saa - Poema épico. Introdução, versão e notas do Pe. Armando Cardoso. São Paulo: Edições Loyola, 1986, vv. 2131-2134, p. 187. 302 Idem, vv. 2143-2145, p. 187. 303 Idem, vv. 2166-2181, p. 189.
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Os ventos eram tais, que não puderam Mostrar mais força de ímpeto cruel, Se pera derribar então vieram A fortíssima Torre de Babel. Nos altíssimos mares, que cresceram, A pequena grandura dum batel Mostra a possante nau, que move espanto, Vendo que se sustém nas ondas tanto.304
Em outra oitava, a amplificação repete o procedimento metafórico há
pouco aludido:
Agora sobre as nuvens os subiam As ondas de Netuno furibundo; Agora a ver parece que desciam As íntimas entranhas do profundo. Noto, Austro, Bóreas, Áquilo queriam Arruinar a máquina do mundo; A noite negra e feia se alumia Cos raios em que o Pólo todo ardia.305
O quadro trágico estava desenhado e Vasco da Gama, frente às
intempéries, recorre a remédio “santo e forte” e lamenta, como era costume, a morte
em alto-mar:
Vendo Vasco da Gama que tão perto Do fim de seu desejo se perdia, Vendo ora o mar até o Inferno aberto, Ora com nova fúria ao céu subia, Confuso de temor, da vida incerto, Onde nenhum remédio lhe valia, Chama aquele Remédio santo e forte, Que o impossível pode, desta sorte: “Divina Guarda, angélica, celeste, Que os Céus, o Mar e Terra senhoreias: Tu, que a todo Israel refúgio deste Por metade das águas Eritréias; Tu, que livraste Paulo e defendeste Das sirtes arenosas e ondas feias, E guardaste, cos filhos, o segundo Povoador do alagado e vácuo mundo: Se tenho novos medos perigosos Doutra Cila e Caríbdis já passados, Outras Sirtes e baxos arenosos, Outros Acroceráunios infamados,
304 CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Organização, apresentação e notas de Jane Tutikian. Porto Alegre: L&PM, 2008, canto VI, 74, p. 192. 305 Idem, canto VI, 76, p. 192.
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No fim de tantos casos trabalhosos, Por que somos de Ti desamparados, Se este nosso trabalho não Te ofende, Mas antes Teu serviço só pretende? Oh! Ditosos aqueles que puderam Entre as agudas lanças Africanas Morrer enquanto fortes sustiveram A santa Fé nas terras Mauritanas! De quem feitos ilustres se souberam, De quem ficam memórias soberanas, De quem se ganha a vida, com perde-la, Doce fazendo a morte as honras dela!”306
Como se pode ver nestas oitavas, além da passagem dos hebreus pelo
Mar Vermelho, Camões faz menção à tempestade bíblica que acometeu Paulo e ao
dilúvio. Com o propósito de amplificar o terror vivenciado pelos marinheiros, o poeta
imita a Eneida e uma ode de Horácio307 ao mencionar os monstros mitológicos e
descrever o movimento das ondas. Vênus foi a responsável pelo abrandamento da
fúria dos ventos, que atacavam a nau como “touros indômitos”.
Que Camões conhecesse a história de Ceix, muito provavelmente a partir
de Ovídio, também não há dúvidas, já que faz alusão a ela:
As Alciôneas aves tristes canto Junto da costa brava levantaram Lembrando-se de seu passado pranto, Que as furiosas águas lhe causaram.
No Naufrágio de Sepúlveda, Corte-Real menciona “tenebrosa, fria e muda
noite”, tomada por um “silêncio geral”, acalentada por “brando vento” e um “rumor
surdo”. A tempestade, também aqui, surge repentinamente. O piloto lê os astros,
manuseia o astrolábio, observa a agulha e faz os cálculos necessários para
descobrir sua localização. Amphitrite, no canto anterior, havia persuadido Eolo a
lançar contra a embarcação de Sepúlveda uma tormenta sem precedentes. O piloto
foi o primeiro a perceber as mudanças do vento e a pressentir o que estava por vir:
tomado por um “intrínseco medo”, ele perde a voz e se empalidece. Após
experimentar esta sensação de temor, ele visualiza um “vulto escuro” que profetiza
306 Idem, canto VI, vv. 80-83, pp. 193-194. 307 De acordo com Maria Helena Rocha Pereira, os versos “Doutra Cila e Caríbdis já passados,/ Outras Sirtes e baixos arenosos” emula os versos 302 e 303 da Eneida, e o verso “Outros Acroceráunios infamados” imita as Odes (I, 3) de Horácio. Ver: PEREIRA, Maria Helena Rocha. A tempestade marítima de “Os Lusíadas” – Estudo comparativo. In: Actas da V Reunião Internacional de Camonistas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987.
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males e “mil calamidades e misérias”. O piloto, horrorizado, observa novamente o
céu estrelado, e contempla, nas estrelas, os sinais do mau presságio:
Três dias havia já que o grão Filésio Com perfulgentesraios ilustrava O feroz animal que em grave angústia A Fenícia deixou com roubo estranho, Quando a soberba nau falta de velas (Mas ah muito mais falta de ventura!) Teve vista da costa donde o cabo De Esperança tem nome, inda que incerta. Ali os soberbos ventos desmandados, Correndo sem concerto a todas partes, Se arremessam no mar e de alto a baixo O revolvem com fúria num momento. Cobre-se o céu de grossas, negras nuvens, Os ventos mais e mais cad’hora crescem; Já se escurece o céu, já com soberba, Inchadas, grossas ondas se levantam. A nau começa já a passar trabalho, Já começa a gemer e em tal afronta O apito soa, brada o mestre, acodem Com presteza varões no mar expertos. Põe-se o fero Vulturno junto ao cabo, Levanta lá no céu furiosas ondas; Austro bramando corre ali com fúria, Dando um balanço à nau que quase a rende; Vem com grande furor Bóreas raivoso, Comete por d’avante, o passo impede, Encontra as grande velas e, por força, Ao mastro as pega e a nau atrás empuxa. Rompe-se por mil partes o céu e arde Em ligeiro, apressado, vivo fogo. Um rugido espantoso vai correndo Desde o Antárctico Pólo ao seu oposto. Arremessam-se lanças pelos ares De congelada pedra em água envolta Com espantoso ímpeto e, rasgadas, As densas, negras nuvens raios cospem. De um golpe, as velas vêm todas abaixo. Colhem-nas com trabalho e afronta imensa. O forte marinheiro, ainda que ousado, Do evidente perigo sua e treme. Já nas pontas de mil fragosas serras A nau se mostra alçada, e já sumida Em vales profundíssimos parece Cobrir-se de altos montes de água grossa. Áquilo, Noto e Euro com braveza Contra a mísera nau todos se esforçavam, Das espantosas ondas levemente Aqui e ali a deitam e afadigam.308
O uso da prosopopeia em relação à nau e aos ventos amplifica o trabalho
e as misérias por que passaram os nautas: 308 CORTE-REAL, Jerónimo. Poesia. Introdução, selecção, fixação de texto e notas de Hélio J. S. Alves. Braga/Coimbra: Angelus Novus, 1998, vv. 201-248, pp. 117-118.
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A nau afadigada, abalançando-se De ua para outra parte, arranca e quebra Três encurvados ferros dos que o leme Co’a popa ajuntam, cosem, prendem e ligam. Vem Subsolano, indómito e furioso, Com espantoso cenho e vista horrível. Com grande ímpeto chega, leva e rompe A vela com que a nau se sustentava. Grita o piloto: “Arriba, arriba, cerra!” E lança o leme à banda, mas isenta Não lhe obedece a nau, nem dá por ele, E já quase rendida se atravessa. Acodem (mas em vão) piloto e mestre, Acodem marinheiros e, tombando Uns por cima dos outros sem poder-se Suster nem dar remédio, se maltratam. Noto com grande fúria ali arremessa Três poderosas ondas, dão-lhe em cheio, Rompem, quebram, destroçam e ao mar deitam Os fortes, proveitosos aparelhos.309
Os ventos continuam com suas investidas:
Estando em tal afronta, chega o bravo Áfrico com rosto horrendo; encontra e fere, Com incrível força o grosso mastro Que para o resistir cuida estar firme. Dá-lhe um pesado golpe e nas enxárcias Um zunido espantoso se levanta. A seca árvore brada e já rendida Deixa-se vir abaixo feita em rachas. A gávea e mastaréu que toca as nuvens, Olhando com desprezo os cá de baixo, A sua presunção, antes altiva, Humilde está debaixo já das ondas. Traz Áquilo cruel, com força imensa, Valentíssimas ondas espantosas; Umas sobre outras caem, o fero as força Que com ímpeto e fúria se embraveçam.310
É comum, também, o uso de símiles para caracterizar a amplitude da
tormenta, que se torna ainda mais eficaz com o uso de metáforas topográficas:
Como quando se vê, por estendido Campo, grão multidão de grossas reses E outros rebanhos mil de simples gado, Fugindo, com clamor alto e tristonho, Da fúria com que o rio, inchado e solto, Por grandes invernadas vem cobrindo Com grande estrondo d’água turva o campo, Levando com rigor tudo o que alcança, Empuxando-se vão, pelo castigo
309 Idem, vv. 261-280, pp. 118-119. 310 Idem, vv. 285-300, p. 119.
119
Que o seu guardador rústico, afrontado Do perigo evidente, com voz alta E com duro aguilhão dá se atrás ficam; Assim as soberbas ondas, constrangidas Da força e do poder de Áquilo, bramam. Tornadas em medonhas, altas serras, Ameaçam esta nau triste e infelice. O grão Bóreas raivoso ao céu levanta Ua terrível onda, e com medonho, Espantoso e cruel semblante, afronta A nau rendida já ao vento imigo. Dá-lhe na popa em cheio, quebra e rompe, Desfaz e arromba o leme, e lá por cima Dos soberbos castelos, se arremessa Ao grão convés e nele deixa um lago, Onde a mesquinha, fraca, inútil gente Quase afogada ao céu grita, dizendo: “Ó poderoso Deus! Ó pai piedoso! Ah senhor, ah senhor, misericórdia!”311
Na sequência, o poeta mobiliza a tópica da “comoção de feras” para dar a
ler o caráter lastimoso do episódio:
O mísero espetáculo infelice, Bastante a demover hircanos tigres, Ver femininos gritos que apressados Com acento afligido os ares rompem. A nau sumida torna a oferecer-se Ao trabalho e perigo de outro encontro. Mostrando ali outra vez a submergida Proa, dentro no mar a popa esconde.312
Eolo, movido pela cólera, vai até o local da tormenta e cobra dos ventos
maior eficácia, fazendo, como é costumeiro em exemplares do gênero épico, um
discurso que apela para a vaidade dos ventos e para a ousadia dos nautas:
[...] “Sempre a força Das portuguesas naus ficará firme E com tanta soberba, desprezando De Neptuno o poder e o meu, se alarguem Por mares profundíssimos que desta Forte nação só foram navegados? Não posso já sofrer tantas injúrias, Quais esta belicosa, forte gente Me faz cada momento!” Tais palavras Soltando Eolo, aos ventos assim disse: “Apartai-vos, ó fracos, desta empresa, Pois que tanto vos dura ua nau fraca. I mover com brandura os verdes ramos Dos álemos frondosos e altas faias. Um murmúrio formai neles suave
311 Idem, vv. 301-328, p. 120. 312 Idem, vv. 329-336, pp. 120-121.
120
E recreai com brando, fresco assopro Os acesos ardores do molesto, Intolerável, duro, seco Estio. Dai a honra de tal feito a quem justos E devido lhe são casos maiores”.313
Após esta arenga, os ventos recobram seu vigor e, com fúria e força,
arrancaram da tripulação gritos e clamores que “até às estrelas chegam”.
Em A Conceição, poema de Tomás António Gonzaga do qual resta-nos
apenas fragmentos, uma nau portuguesa passa por apuros quando Vênus, que
neste caso coloca-se contra a empresa lusa, pede que Eolo intervenha com um
temporal. Ela oferece ao “rei potente” nove ninfas. No entanto, contrariando a oferta,
o rei diz que não são necessários presentes para que devote à deusa obediência.
Ainda assim, ele aceita uma das ninfas, da escolha da deusa, não como paga pelo
serviço, mas com o propósito de estreitar os laços de amizade entre eles. A deusa
oferece-lhe Danopéia e, quando tenta narrar a afronta dos portugueses, Eolo a
interrompe, dizendo que o ocorrido não lhe interessa porque não é juiz, cabendo-lhe
tão somente executar o que lhe é mandado. Vênus agradece e deixa clara a sua
sede de vingança, a ser executada com vagar. O rei move o cetro, rompe um
penedo e libera Noto, que sai bramindo furioso. Ordenado a cumprir as ordens de
Vênus, este vento segue em seu encalço rumo ao Brasil, até avistar a nau. Noto
(...) alarga, e enche as rugosas bochechas; curva o corpo, põe na cintura as mãos: respira, e sopra. As águas pouco a pouco se encapelam; e dentro em pouco tempo está formada a tormenta medonha. O bom piloto, aocatavento firme, agora manda que o leme se alivie: agora ordena que se meta de encontro. Os joanetes e mais as grandes gáveas já se arriam para assim se quebrar do impulso a força.314 Uma onda se levanta mais crescida e se deixa cair com toda a força na proa do navio. O grande beque depois de levantar-se sobre as nuvens desce ao profundo inferno: já vem outra mais forte que a primeira, nele bate, e o grande beque treme: já se enrolam a terceira, e a quarta, e não podendo
313 Idem, vv. 351-370, p. 121. 314 GONZAGA, Tomás Antônio. A Conceição: O Naufrágio do Marialva. Transcrição, introdução e notas de Ronald Polito de Oliveira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995, vv. 164-174, pp. 203-204.
121
o beque resistir a tanta força um grande estalo deu e fez um rombo apesar das cavilhas, que o sustentam.315
A personificação dos ventos e a descrição das ondas são novamente
evocadas, desta vez emulando a epopeia lusíada.
Os relatos de naufrágio mobilizam muitos dos lugares comuns que
referimos. A experiência de “ver a morte diante dos olhos” a cada perigo que
ameaça a integridade da nau foi evocada no prefácio do relato de naufrágio da nau
Conceição, publicado na primeira metade do século XVII:
Não há coisa mais pesada de levar, e horrível para temer, do que a morte, como bem disse o Filósofo Aristóteles, e ainda melhor nos ensina a experiência; porém com boa licença do Filósofo, e da mesma experiência, o medo da morte ainda parece que é pior que a mesma morte, como da guerra diz o provérbio, que é pior o medo da guerra imaginada que experimentada: a razão disto é, porque a morte levada em realidade, nunca é mais que uma só; e morrer uma só vez é dita, como disse Sêneca, mas a morte imaginada na imaginativa por repetição de medos, é morte muitas vezes repetida. Este entre outros males trás consigo o naufrágio, porque quantas ondas conspiram contra a embarcação, tantas mortes bebe o naufragante: e por isto é pior castigo a morte muitas vezes temida, que uma só vez sofrida, como bem disse S. Jerônimo, e em consequência desta verdade, diz o mesmo Santo, que merecendo Caim muitas mortes pela que deu a seu irmão Abel, lhe pôs Deus um final para o não matarem, e diz que isto mais foi lanço de justiça, que efeito de misericórdia, porque ainda que o não quis matar, deixou-lhe medo contínuo, para que cuidasse que todos o queriam matar; e lançadas bem as contas, maior castigo era o medo da morte repetida muitas vezes na imaginação, que padecia uma só vez por efeito. Não há em toda a natureza espetáculo mais horrível, que um miserável naufrágio, quando indo os passageiros mais descuidados, entregues à liberdade das ondas, se vem de improviso assalteados de uma horrenda tempestade, ou de algum repentino tufão, no qual os ares, e os mares, os raios, e os coriscos, e o Mundo todo parece que se conjura, e conspira em perdição dos tristes navegantes, obrigando-os com a fúria do temporal a dar com a nau em través, e a desfazê-la em rachas, entre infames cachopos. A vista de tão lamentável sucesso, e de tantas representações de morte desastrada, se podem chamar três, e quatro vezes bem-aventurados os que morrerão à força do ferro violento em terra, e não entre as ondas furiosas no mar irado; porque aqueles morrem uma só vez, e acabam depressa, como dizia Epaminondas; porém os que acabam em algum naufrágio quantas ondas os não matam, tantas lhe dilatam a vida, para os matar com a mesma vida, que para eles é morte prolongada. Pelo que contarei um lastimoso Naufrágio do número daqueles, com que os nossos Portugueses fizeram célebre o mar Oceano: e porque Diogo de Couto na sua Sétima Década, e Francisco de Andrade na Vida del Rei D. João o III tocam brevemente, e ele tem muito que contar pelo que nos pertence por razão dos nossos três Padres da Companhia de Jesus, que nele acabaram, o quero aqui referir mais por extenso.316
315 Idem, vv. 188-198, p. 204. 316Esta versão não corresponde à que Brito coletou. Ver: RANGEL, Manoel. Relação do lastimoso naufrágio da nau Conceição chamada Algaravia a nova de que era capitão Francisco Nobre a qual se
122
Embora seja imprecisa a data de publicação deste relato, sabe-se, ao
menos, que é posterior a 1616, devido às obras que nele são mencionadas (a Vida
do rei D. João III, de Francisco de Andrade, foi escrita em 1613, e a Década Sétima
de Diogo de Couto foi publicada em 1616). Para o narrador, a ameaça da morte e o
medo de sua consecução causam mais lástima do que a morte em si, que não
ocorre mais de uma vez. Ao valorar a morte “à força do ferro violento” em detrimento
daquela ocorrida “entre as ondas furiosas no mar irado”, ele utiliza a tópica da morte
no mar. O narrador do relato de naufrágio da nau Santa Maria da Barca mobiliza o
mesmo argumento, quando reproduz o discurso de um dos marinheiros: “bem viam
que melhor era morrer às lançadas que morrer afogado”.317
O uso de metáforas topográficas também é recorrente, como se pode ver
no relato de naufrágio da nau São Paulo:
aos oito de junho tivemos tanta trovoada com tanta água com que os mares foram em tanto crescimento, tão alterados e de levadia, vindos todos do sul, que a nau trabalhava muito, e metia de popa a proa de maneira que cada vez que caía parecia de uma alta torre e que se queria sepultar nos abismos.318
Em outro momento, o narrador amplifica a iminência da morte ao dizer
que estavam metidos num “pau podre, tão perto da morte (segundo a resposta do
Filósofo sobre os que navegam) como a grossura da tábua da nau sobre que
vão”.319 Na sequência, ele diz:
Os mares eram tão grandes, tão altos, como altíssimas torres, tão furiosos e soberbos, que parece graça querer pintar e escrever o que se não pôde crer senão de quem o viu e passou; pois é como do vivo ao pintado, porque como pode nenhum engenho, por mais sutil, delgado e agudo que seja, segurar ou pintar uma tempestade destas, em que acontecem mil desastres e mil invenções de trabalho?320
perdeu nos baixos de Pero dos Banhos em 22 de Agosto de 1555. Lisboa: Oficina de Antônio Alvarez, s/d. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasraras/or639510/or639510.pdf. Acesso em março/2013. 317 Idem, p. 175. 318 BRITO, Bernardo Gomes de. História trágico-marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores/Contraponto Editora, 1998, p. 197. 319 Idem, p. 206. 320 Idem, p. 210.
123
Henrique Dias amplifica os tormentos causados pela tempestade ao
mencionar que mesmo um pintor/narrador engenhoso seria incapaz de retratá-
los/descrevê-los com verossimilhança. Após assumir esta postura de modéstia
afetada, o narrador continua a descrever a tormenta:
Assim que os mares, pela antiga contenda que entre eles e os ventos há, de que por derradeiro são vencidos e domados, andando já levantados da noite passada, se incharam e ensoberbeceram de maneira que pareciam mui altíssimas torres, fazendo uns vales entre onda e onda, de tanta baixeza e profundidade que a cada cair da nau parecia cair nos abismos e quererem-na engolir e sorver enfim de todo.321
Há outra passagem em que fica nítida a emulação de uma das
tempestades da Odisseia:
tão seguro ia buscar a terra, como que ele fora tão justo que lhe fora mandado e concedido de Deus ter os ventos tanto de sua mão e de sua parte, e metidos no odre, como as fábulas fingem, para poder usar deles e tirar da manga cada vez que quisesse os ventos da terra, nortes e nordestes, e não alguns ponentes e travessões, que nos destruíssem e dessem conosco à costa; e assim, ajuntando-se nossas culpas e pecados com sua muita soberba, caímos do Céu como Lúcifer.322
Em seguida, Henrique Dias imita Cícero: “em todas as fortunas e males
muito mais miserável cousa é o vê-los e passa-los que ouvi-los ou conta-los”.323 Em
outro momento, à maneira de Jerônimo Corte-Real, Dias desloca a tópica da
comoção das bestas, afirmando que a cena trágica comoveria homens criados entre
tigres da Hircânia e/ou alimentados pelo leite de víboras. Há, por fim, a citação do
salmo 106, do profeta Davi, ao final do relato:
Os que descem ao mar nas naus, fazendo operações nas águas muitas, esses viram as obras do Senhor e as suas maravilhas no profundo. Determinou, e veio logo o espírito da tempestade e levantaram-se suas ondas, e sobem até os Céus e descem até os abismos, e as suas almas em tais trabalhos pasmaram, turbaram-se e moveram-se, e como alienados do siso, pereceu todo o seu saber. E nisto chamaram ao Senhor quando estavam atribulados, e de todas as suas necessidades os livrou, e tornou a tempestade em um vento fresco e suave e abrandaram as ondas do mar; alegram-se porque cessou sua fúria; e enfim os pôs no porto de seu contentamento.324
321 Idem, pp. 219-220. 322 Idem, pp. 225-226. 323 Idem, pp. 229-230. 324 Idem, pp. 258-259.
124
A comoção das bestas é mencionada em outro relato, desta vez para
aludir aos tormentos decorrentes de uma peregrinação por terras “bárbaras”:
Um dia tão ricos e contentes, indo fazendo sua viagem com uma nau tão potente, tão rica e cheia de louçainhas, e ao outro sumir-se-lhes debaixo dos pés e ir-se entesourar tudo nas entranhas do mar. Que mais lastimoso apartamento de amigos que o que viram estes, deixando-os por aquelas praias acabando seu termo, em outra consolação e companhia que a solidão daquelas bárbaras areias? Que mais incerta peregrinação que esta que por aqui vão fazendo, vendo-se cada hora em tantos riscos e perigos, e tudo, enfim, por esta maneira tão lastimoso que por se aquelas areias houvera tigres e leões, certo que se puderam compadecer mais deles do que o fizeram daquele escravo Androdo, a quem um leão em África sustentou tantos tempos em uma cova, por estar manco com um estrepe metido por um pé, o qual lhe o leão tirou, e lambendo a chaga com sua língua, o sarou.325
Há, ainda, menções a tormentas bíblicas, como no relato de naufrágio das
naus Águia e Garça: “fez uma tão grande tempestade de vento e chuva que parecia
acabar-se o mundo e soverter-se a terra com outro segundo Dilúvio”,326 e a
representação da “morte diante dos olhos”, como nos relatos de naufrágio da nau
São Tomé (“tudo quanto viam lhes representava a morte”327) e da nau Santiago (“A
grita e a confusão da gente era grandíssima, como de homens que se viam sem
nenhuma esperança de remédio, no meio do mar que bramia, com a morte diante
dos olhos, na mais triste e horrenda figura que imaginar se pode em nenhum dos
naufrágios passados”328).
Outros textos mais ou menos contemporâneos aos relatos de naufrágio
utilizam estes lugares comuns, como é o caso da carta que o padre Fernão da
Cunha envia aos padres e irmãos do colégio de Évora em 1562, ressaltando a
grande dimensão das ondas (“As ondas eram tão grandes que pareciam tocar no
céu, outras que desciam aos infernos”), a grandiosidade da tormenta (“dizia o piloto
que dezenove vezes passara esta carreira, mas que não se lembrava de ter visto
coisa semelhante, posto que havia visto outras mui grandes”) e a associação entre a
tempestade e a ação demoníaca (“O vento era tão grande que não havia quem se
pudesse ter direito e que os mesmos demônios vinham com ele e chuveiros tão
escuros que pareciam o mesmo inferno, e assim as mais cousas”). A amplificação
das ondas é novamente evocada em uma relação de viagem anônima (“E o mar 325 Idem, p. 366. 326 Idem, p. 137. 327 Idem, p. 345. 328 Idem, p. 302.
125
inchou de tal modo que parecia que subíamos ao céu”) e em uma carta do padre
Didacus do Soveral, datada de 1554 (“ondas tão grandes que pareciam serras mui
altas, tão brancas como neve e muitas vezes pareciam mais altas que o mastro”).
Há, ainda, a carta do padre Manuel Álvares aos confrades de Coimbra, de 1562, que
atribui vida à embarcação (“a nau arfava muito, e tomava muita água”) e assinala a
distância entre a narrativa e o ocorrido (“É mui diferente contar isto e vê-lo como
passou”).329
Os lugares comuns percorrem os séculos e atravessam mares para
chegar até nós, por intermédio de diferentes gêneros discursivos. A licença destes
narradores é convencional e limitada, porque atende aos preceitos retóricos e
poéticos edificados, por exemplo, para o tratamento de tempestades. A história é
tempo e destruição. Sua matéria é, por excelência, a contingência, a mudança. Esta
é uma das razões por que a melancolia de Camões e dos narradores de naufrágio
continuam a comover, já que somos mortais e reconhecemos a inevitabilidade da
angústia, da tragédia, do sofrimento ou, como diria Camões, dos desconcertos do
mundo. Vasco da Gama sofreu, os náufragos sofreram e também nós sofremos. Ao
final, o que resta-nos? Letras e ruínas: palavras proferidas e registradas para
descrever o que outros já presenciaram ou poderiam presenciar. Afinal, não era este
o sentido da escrita: orientar os pósteros através de um (nunca finalizado) castelo de
memórias? Enquanto o tempo passar, memórias novas vão surgir. Mas a história
não é mais o que foi até o século XVIII, tampouco a poesia. Aproximamo-nos dos
homens dos séculos XVI e XVII porque continuamos a encarar a finitude, mas nos
distanciamos por ter conferido outro sentido à escrita (histórica e/ou poética),
atribuindo-lhe outras finalidades. Àquela época, textos remetiam a outros textos, que
por sua vez remetiam a outros, num processo cumulativo a partir do qual se conferia
sentido às coisas do mundo, inclusive à tragédia. Muito do que se concebe como
melancolia em Camões foi, antes, melancolia homérica. Muitos que ouvem a grita da
marinhagem portuguesa estão ouvindo, também, ecos do desespero troiano. Muitas
das aparições da morte que acometeram os nautas são colhidas de passagens
bíblicas. O leitor não peca ao supor que, nos séculos XVI e XVII, devido aos
naufrágios e demais infortúnios, havia angústia e melancolia. Ele peca ao entender
que estas tópicas afloram ou ganham sentido somente ali, enquanto desdobramento
329 Cf. LOPES, Paulo. O Medo do Mar nos Descobrimentos – Representações do fantástico e dos medos marinhos no final da Idade Média. Lisboa: Edições de Livros e Revistas, 2009, pp. 193-202.
126
de uma “crise” que disseminava pessimismo. As tempestades, mesmo as históricas,
são tipificadas e, portanto, devem ser tratadas como tal. Só é possível medi-la a
partir das medidas inventadas pelos narradores e poetas e, levando-se em
consideração os procedimentos artísticos da época, a medida é feita com os olhos
voltados para a tradição.
O Cabo das Tormentas e as tragédias marítimas
Américo da Costa Ramalho, em estudo de 1975, afirma que Camões foi
muitas vezes acusado de não dominar com propriedade o grego, por ter atribuído ao
gigante o nome “Adamastor”, e não “Damastor”, termo este que aparece na
Gigantomaquia, do poeta romano Claudiano. No entanto, Sidónio Apolinar,
contemporâneo de Claudiano, utiliza o termo “Adamastor”, bem como dicionários
latinos do século XVI.330 Para Ramalho, este gigante anuncia (ou prenuncia) os
naufrágios da História Trágico-Marítima, “série de catástrofes devidas a causas
diversas, que foram para os Portugueses como que o preço da glória que iam
conquistar por mares nunca dantes navegados”.331
Tratar-se-ia, como queria Fernando Alves Pereira, de um “desvio do
gênero épico”, que “contradiz a natureza épica ao condenar as ações dos
navegadores e ao vaticinar os nefastos destinos dos heróis, cuja ousadia é
sublimada mas ao mesmo tempo condenada”?332 De acordo com este autor, os
sinais de pessimismo e mau augúrio que presidem a fala do velho do Restelo são
acentuados pelo gigante, espécie de “hipérbole”, portanto, do excerto que encerra o
canto IV. Adamastor, no caso, precisa as catástrofes apenas implicadas no discurso
do velho do Restelo, como já haviam constatado Hernâni Cidade e Jorge de
Sena.333
De acordo com Massaud Moisés, o episódio em questão contém a
“mitificação das dificuldades que a Natureza opunha à penetração lusa ‘por mares
nunca dantes navegados’ e do seu malogro ante a impavidez dos nautas
330 Ver: RAMALHO, Américo da Costa. Estudos Camonianos. Coimbra: Instituto de Alta Cultura – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1975, pp. 33-40. 331 Idem, p. 43. 332 PEREIRA, Fernando Alves. Uma leitura dos excursos n’Os Lusíadas. Dissertação de mestrado. Natal: Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2005, p. 127. 333 Idem, p. 124.
127
quatrocentistas”.334 Adamastor anuncia profeticamente os infortúnios que recairiam
sobre os portugueses que ousassem trafegar uma nova rota marítima de acesso à
Índia. Para Bianca Morganti, trata-se de uma fábula repleta de ekphrasis que
recobrem o episódio de uma atmosfera tensa e patética.
Ao tratar de personagens presentes em peças alegóricas, David Quint
discorre sobre a figura do Gigante Adamastor.335 Após uma breve introdução, o autor
recorda que um dos pressupostos adotados pelo poeta “moderno” foi o de promover
a invenção poética sem se desvencilhar da matéria histórica. Em seguida,
discorrendo sobre o artifício da emulação, o autor menciona uma possível
aproximação entre Adamastor e o ciclope Polifemo, indicando várias similitudes
descritivas adotadas por Homero e Camões. Quando à descrição da figura do
gigante camoniano e de seu “passado”, Quint afirma que existem lugares comuns
presentes nas Metamorfoses de Ovídio e em algumas éclogas de Virgílio. Conclui,
assim, que Camões combinou toda uma sorte de representações antigas de
Polifemo para esboçar a figura de Adamastor. O autor chega a considerar, inclusive,
uma possível conotação entre a atitude de Dido, personagem da épica de Virgílio, e
Adamastor, sobretudo no que se refere às imprecações vaticinais de ambos.
A associação entre figuras mitológicas não era desconhecida pelos
críticos camonianos dos séculos XVII-XIX. O censor José Agostinho de Macedo
afirma que Camões teria “furtado” a ideia matriz do gigante Adamastor de Lucano.
Ele descreve uma sucessão de analogias que supostamente comprovariam o roubo,
e todas elas são avidamente recusadas por Saraiva, que acusa Macedo de estar
inventando analogias para detratar o poeta. Para tentar diminuir o engenho
camoniano, Macedo afirma que o poeta emulou Ariosto, quando este descreveu a
figura de Brunel no seu Orlando Furioso.336 Segue o fragmento:
Sabe que nem seis palmos de estatura Tem ele, a fronte crespa e cabeluda, Morena a pele, a cabeleira escura, Pálida a cara, por demais barbuda, Olhos inchados, turva a catadura, Chato o nariz, a celha mui peluda, E o trajo, porque a imagem saibas toda,
334 MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 92. 335 QUINT, David. Epic and Empire: politics and generic form from Virgil to Milton. Princeton: Princeton University Press, 1992, p. 99. 336 MORGANTI, Bianca. A Mitologia n’Os Lusíadas – Balanço Histórico-Crítico. Dissertação (Mestrado). São Paulo: IEL/Unicamp, 2004, pp. 111-115.
128
Estreito e curto, de correio à moda.337
Saraiva discorda, assegurando que Brunel não era um gigante, tampouco
tinha o semblante parecido com o de Adamastor. No entanto, a emulação não seria
de todo impossível, a começar pelas similitudes: a “fronte crespa e cabeluda” de
Brunel e os cabelos crespos de Adamastor; os “olhos inchados” do primeiro e os
“olhos encovados” do segundo; a cara “por demais barbuda” da personagem de
Ariosto, e a “barba esquálida” da figura camoniana; a cara “pálida” de Brunel e a cor
“pálida” de Adamastor. Por outro lado, há que se considerar, também, que Camões e
Ariosto adotam a etopeia como procedimento do retrato epidítico, o que faz com que
o leitor “visualize” melhor o ethos das personagens mencionadas.
É muito apropriado o paralelo entre Adamastor e Polifemo, não apenas
devido aos aspectos destacados por David Quint, mas também em razão de outras
analogias possíveis de serem observadas, quando nos atentamos para a emulação
camoniana da Eneida. No terceiro livro desta epopeia, Enéias desembarca na terra
dos Ciclopes e encontra um dos antigos companheiros de Ulisses, de nome
Aquemênides, filho de Adamasto.338 Também neste livro, o grego acima referido
narra os infortúnios de Ulisses e de seus homens perante a figura assombrosa de
Polifemo, “monstro horrendo, disforme, desmedido”.339 Se voltarmos à descrição de
Adamastor como figura “robusta”, “disforme” e de “grandíssima estatura”, notaremos
a aproximação entre os termos utilizados. Não é curioso que a personagem
camoniana, cuja descrição remonta, em vários aspectos, à estatura do ciclope
homérico/virgiliano, apresente o nome de um grego referenciado justamente no
momento em que Enéias é alertado/prevenido sobre a história do ciclope Polifemo?
Em Ovídio, as descrições de Polifemo de fato assemelham-se ao perfil de
Adamastor. De acordo com a ninfa Galatéia, o ciclope apresentava um “rosto feio” e
hábitos horrendos, como os de se barbear com uma foice e se pentear com um
ancinho. Quando devotou seu amor à ninfa, ele abandonou o seu instinto assassino.
Na canção de Polifemo descrita por Ovídio, a personagem tece um elogio à amada,
pintando também sua conduta áspera que impedia o romance de ambos. Por fim, o
gigante enumera tudo aquilo que poderia oferecer à Galatéia, chegando a louvar até 337 ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso: cantos episódios. Tradução, introdução e notas de Pedro Garcez Ghirardi. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, canto III, estrofe 72, p. 110. 338 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro terceiro, p. 97. 339 Idem, livro terceiro, p. 98.
129
mesmo o seu aspecto: “veja como sou grande”, exclama com orgulho. Como fez
também na Odisseia, Polifemo se vangloria alegando a suposta inferioridade de
Júpiter, que provavelmente não o excederia em tamanho e força. O ciclope diz, por
fim, que a ninfa ganharia também um sogro portentoso: Poseidon, responsável pela
tempestade arremessada contra a embarcação de Ulisses na Odisseia. Como se já
não bastasse, Ovídio retrata, ainda, a voz “forte e terrível” do grotesco Polifemo,
quando ele “ruge de raiva” e ataca o pretendente de Galatéia, Acis.340 Ovídio e
Camões utilizam a écfrase para gerar efeitos visuais e sonoros.
Não seria estranho, por fim, que a transformação de Adamastor em um
rochedo como punição pelas suas transgressões se equiparasse à transformação de
Atlas em um rochedo, devido à investida de Perseu que, em posse da cabeça da
Medusa, pune o titã pela falta de hospitalidade e pelo desprezo perante suas glórias
e a glória de seu pai, Júpiter.341 O episódio era conhecido por Camões, que se refere
a ele na última estância de sua epopeia.342
O tipo gigante:
Ao ultrapassar as dez valas que integram o oitavo círculo do Inferno,
Dante avista o que parecia ser um conjunto de torres altas e grandiosas:
e tal como na cerca arredondando Montereggion de torres se coroa, assi, do poço a margem circundando, torrejava metade da pessoa dos horríveis gigantes que ameace Jove do céu ainda quando troa.343
Montereggion é uma das 36 comunas italianas da Província de Siena,
situada na região da Toscana. Dante evoca a imagem das torres que “coroam” esta
comuna para remeter-se aos titãs fulminados por Zeus, que estavam agrilhoados em
poços congelados e obstruíam a passagem do oitavo para o nono círculo do Inferno.
Quando avista Nemrod, um dos gigantes acorrentados, Dante compara sua face ao
340 Ver: OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003, livro treze, pp. 277-280. 341 Idem, pp. 89-90. 342 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofe 156, p. 325. 343 Inferno, XXXI, 40-45, 279.
130
“pino de S. Pedro em Roma”.344 A construção mencionada não corresponde à
estrutura da atual Basílica de São Pedro, que começou a ser edificada na primeira
metade do século XVI. É impossível restituir por completo a bagagem cultural que
compõe o mundo do poeta, mas Dante consegue amplificar o porte físico da
personagem com uma analogia arquitetônica, ainda que o leitor não consiga
formular um retrato preciso do edifício em questão.
Em outro momento, quando o gigante Anteu ajuda Dante e Virgílio a
chegar à entrada do nono círculo, o poeta utiliza outra analogia, desta vez para
descrever o movimento da enorme criatura:
Tal como se afigura a Garisenda, quando passa uma nuvem, inclinada, de modo tal que ao seu encontro penda, me parecia Anteu, na atenção dada a vê-lo a inclinar-se e foi nessa hora quem bem quisera eu ir por outra estrada.345
A torre Garisenda, com aproximadamente 47 metros de altura, encontra-
se ao lado da Torre degli Asinelli, com seus quase 98 metros. As Duas Torres, forma
corrente de designá-las, foram construídas na Bolonha, Itália, no século XII.
Garisenda conta com mais de 3 metros de inclinação, o que justifica a analogia entre
ela e a figura curvada de Anteu. Talvez para amenizar uma metáfora muito
rebuscada, o poeta tenha adotado a similitude “tal como” para trabalhar com um
efeito hiperbólico. Longino, valendo-se da autoridade de Aristóteles, afirma que a
adoção do “como se” ameniza um possível atrevimento por parte do poeta e suaviza
a metáfora, evitando, por exemplo, o empolamento do discurso.346 Ao discorrer
sobre a ekphrasis enquanto exercício de eloquência, Hansen afirma que o “como se”
empregado pelo autor (que exerce um efeito análogo ao “tal como”) é fundamental
na ficcionalização da enargeia, da “vividez”, pois o “autor finge transferir para a
enunciação do narrador uma imagem pictórica com que compõe o enunciado como
se efetivamente fizesse as passagens entre pintura e discurso”.347
344 Inferno, XXXI, 59, 279. 345 Inferno, XXXI, 136-141, 283. 346 LONGINO. Op. cit., p. 100. 347 HANSEN, J. A. As categorias epidíticas da ekphrasis. In: Revista USP, 2006, n° 71, p. 87.
131
A hipérbole é uma figura de linguagem que expressa uma ideia de forma
exagerada. Podemos encontrar outro exemplo desta figura no canto V d’Os
Lusíadas, quando o poeta descreve as feições do gigante Adamastor:
Tão grande era de membros, que bem posso Certificar-te que este era o segundo De Rodes estranhíssimo Colosso, Que um dos sete milagres foi do mundo, Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso, Que pareceu sair do mar profundo. Arrepiam-se as carnes e o cabelo A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!348
A comparação entre o Adamastor e o Colosso de Rodes, uma das sete
maravilhas do mundo que chega a medir trinta metros de altura, amplifica a estatura
do gigante camoniano. Hansen afirma que o uso de períodos compostos e extensos,
com muitas orações longas, é “condição para a abundância da magnificência”.349 Na
estrofe acima, além de descrever a grandiosidade do Cabo das Tormentas através
da figura da prosopopeia, Camões demonstra a reação aterrorizada dos nautas
frente à sublimidade do retrato poético. Através dos monumentos evocados, Dante e
Camões evidenciam350 ao leitor o porte físico dos gigantes e a intensidade da
surpresa dos protagonistas ao se depararem com estas criaturas.
O titã de nome Efialtes causa em Dante um assombro quase indescritível:
Não foi tremoto tão duro e funesto, sacudindo uma torre assim tão forte, como Efialto a sacudir-se presto. Então temi mais do que nunca a morte, e bastava o terror, se à fera bruta eu não vira cadeias de tal sorte.351
O protagonista teme pela sua vida e descreve, com muita agudeza, o
terror que o envolve.
348 Os Lusíadas, V, 40, 155. 349 HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o gênero épico”. In: TEIXEIRA, Ivan. (Org.). Épicos: Prosopopéia / O Uraguai / Caramuru / Vila Rica / A Confederação dos Tamoios / I Juca Pirama. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 81. 350 Para Cícero, evidentia corresponde ao ato de colocar a coisa descrita “como que diante dos olhos”. Longino, ao discorrer sobre a noção de sublime, adota o termo enargeia num sentido similar, tratando-se do objetivo dos oradores, que deveriam comover e convencer os seus leitores. Ver: GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 20. 351 Inferno, XXXI, 106-111, p. 281.
132
Depois de chegar ao nono círculo infernal, no qual estão confinados os
traidores, Dante percorre as quatro zonas do Cocito: Caina, na qual se encontram os
traidores de parentes; Antenora, na qual se localizam os traidores do partido e da
pátria; Tolomea, que enclausura os traidores de hóspedes; e, por fim, a Judeca, que
encerra os traidores de benfeitores e o próprio Lúcifer. Quando percorre a quarta
zona e depara-se com aquele que, antigamente, foi o mais belo dentre os anjos,
Dante descreve seu estado de assombro:
Como eu fiquei então gelado e rouco, não perguntes, leitor, que o não derivo de escrever, que falar seria pouco. Eu não morri e não me fiquei vivo: pensa agora por ti, à flor de engenho, no que fiquei, disto e daquilo esquivo.352
João Adolfo Hansen afirma que o verso 25, “Io non mori’ e non rimasi vivo”,
sintetiza a “impossibilidade de dizer o horror do mal”.353
Segue, por fim, a figura de Lúcifer descrita por Dante:
Imperador do reino em dor tamanho saía a meio peito ao gelo baço; e mais com um gigante eu me convenho do que os gigantes co ele em cada braço: já vês como era o todo no reduto de parte assim formada a tal compasso.354
A figura de Lúcifer é una e trina, funcionando como uma antítese de Deus.
Ele é apresentado como um monstro tricéfalo: as suas três faces metaforizam a
inversão perversa dos atributos da Santíssima Trindade. Hansen explica-nos: a cabeça
do meio, de cor vermelha, simboliza o ódio (e, portanto, a falta de amor, atributo central
do Espírito Santo); a da direita, amarelo-esbranquiçada, representa a impotência (ou
seja, a falta de potência, simbolizada pelo Pai); a da esquerda, por fim, negra, retrata a
ignorância (um contraponto à sabedoria própria de Cristo). Dante continua sua
descrição:
Se belo foi como é agora bruto e contra quem o fez o olhar lhe brilha,
352 Inferno, XXXIV, 22-27, 303. 353 HANSEN, João Adolfo. Notas de leitura. In: ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Tradução e notas de João Trentino Ziller. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2010, p. 19. 354 Inferno, XXXIV, 28-33, 303.
133
bem deve proceder só dele o luto. Oh, quanto me pareceu grã maravilha quando três faces vi em sua testa! A da frente vermelha se encorrilha; e cada uma das outras, junta a esta, em meio a cada ombro se encavala, e as três se vão juntar na crista infesta: e amarelece a destra em branco rala; a sinistra de ver era tal, quais os que o Nilo percorrem vala a vala. De cada uma sai par de asas tais, quanto o pássaro há-de carecê-lo: velas do mar assim não vi jamais. Não tinham penas, mas a modo o pêlo seria de morcego; e as agitava, do que três ventos dava um atropelo: e já Cocito todo enregelava. Com seis olhos chorava e aos mentos rente baba sangrenta e ranho gotejava. De cada boca esfacelava a dente um pecador, ripando-lhe a medula, e a cada um de três punha dolente.355
Apreende-se, assim, uma écfrase engenhosa e aguda que ajuda a
amplificar o aspecto horrendo de um anjo caído.
A écfrase é figura destinada à produção de afetos através da “descrição
verbal viva e detalhada de uma pessoa, lugar, acontecimento ou objeto que,
produzindo um forte efeito visual e sonoro, causasse um consequente impacto
emocional nos ouvintes daquele discurso”.356 Seus artifícios tendem a exercer sobre
o auditório um “efeito de realidade”, através do qual se pretende mover afeições e
estimular juízos retos. Trata-se de uma relação intrínseca entre descrição
(descriptio) e a vivacidade e clareza do que é descrito (euidentia), o que confere a
impressão de que “o fato está acontecendo diante dos olhos do leitor” que, no caso,
age como “testemunha ocular”.357 Vejamos, então, como os nautas portugueses
foram subitamente surpreendidos pelo gigante:
Porém já cinco sóis eram passados Que dali nos partíramos, cortando Os mares nunca de outrem navegados, Prosperamente os ventos assoprando, Quando ua noite, estando descuidados Na cortadora proa vigiando, Ua nuvem, que os ares escurece,
355 Inferno, XXXI, 34-57, 304-305. 356 MORGANTI, Bianca. “A morte de Laocoonte e o Gigante Adamastor: a écfrase em Virgílio e Camões”. In: Nuntius Antiquus, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, nº 1, 2008, p. 1. 357 Idem, p. 2.
134
Sobre nossas cabeças aparece. Tão temerosa vinha e carregada Que pôs nos corações um grande medo; Bramindo o negro mar de longe brada Como se desse em vão nalgum rochedo. “Ó potestade, disse, sublimada, Que ameaço divino ou que segredo Este clima e este mar nos apresenta, Que mor causa parece que tormenta?358
A fortuna, até então próspera, ameaça voltar-se contra os protagonistas.
A narrativa inicialmente dá a entender o advento de uma tempestade. O aedo faz
uso de imagens que denotam perigo, descrevendo as nuvens “escuras” e o mar
“negro”, características que atribuem ao enredo um cenário propício para a
deflagração de catástrofes. Vasco da Gama, em função da ocasião inesperada,
recobra-se de incertezas e de ansiedade: logo em seguida, clama pelo
esclarecimento divino. O leitor poderia questionar: esta demonstração de temor não
acaba prejudicando os propósitos da obra, na medida em que o herói evidencia sua
humanidade, suas fraquezas? Esta interrogação, na verdade, é uma armadilha e,
para desconstruí-la, convém retomar alguns escritos de Sêneca. Para demonstrar
que o sábio estoico não é uma persona inverossímil, o autor explica a Lucílio:
O sábio também pode estremecer, sofrer, perder a cor, pois tudo isto são sensações fisicamente naturais. Onde é que está então a desgraça, quando é que estes sintomas se tornam um mal verdadeiro? É apenas quando causam o abatimento da alma, quando levam o homem a confessar a sua servidão, quando o forçam a arrepender-se de si mesmo. O sábio será capaz de dominar a fortuna com a virtude, ao passo que muitos adeptos da filosofia se deixarão assustar por ameaças de somenos importância. Neste ponto será nosso o erro de exigirmos de um principiante aquilo que exigimos de um sábio.359
Vasco da Gama, neste caso, não deve ser julgado pela sua reação
imediata frente à aparição de um grande obstáculo em sua travessia marítima, mas
sim pelo seu discernimento quando, passado o susto, encara o infortúnio. Desta
forma, o primeiro impulso ou reação, como insiste Sêneca, é involuntário, mas o
controle e o comedimento, num segundo momento, são voluntários e decisivos.360
358 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofes 37-38, pp. 157-158. 359 SÊNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Tradução, prefácio e notas de J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 281. 360 Sêneca afirma: “La pasión consiste no em ser comovido por la aparencia de los objetos exteriores, sino em abandonarse a ella y continuar la sensación accidental. Engáñase quien crea que la palidez, las lágrimas, la excitación de deoses impuros, un suspiro profundo, el repentino brilho de los ojos u
135
Não podemos nos esquecer de que, ao ser surpreendido, Gama pede o
auxílio divino, ou seja, ainda que sua postura inicial seja perdoada pelo estoicismo
de Sêneca, há que se perceber também uma postura humilde, humana, de um
súdito devoto que busca esclarecimento divino. Os nautas logo percebem que não
se tratava de uma tempestade:
Não acabava, quando ua figura Se nos mostra no ar, robusta e válida, De disforme e grandíssima estatura; O rosto carregado, a barba esquálida, Os olhos encovados, e a postura Medonha e má, e a cor terrena e pálida; Cheios de terra e crespos os cabelos, A boca negra, os dentes amarelos.361
Camões não poupa fôlego para detalhar a fisionomia do gigante e
precisar o seu aspecto pavoroso, o que permite a apreciação visual da cena por
parte do leitor. Neste caso, o efeito de prosopopeia é conveniente, pois as formas
descomunais e disformes do Adamastor adiantam a dimensão e deformidade dos
infortúnios que se queria anunciar. Devemos recordar a passagem na qual também
Ulisses e seus companheiros se abismaram com a figura grandiosa de Polifemo: “O
berreiro do gigante nos quebrou o ânimo. A voz cavernosa daquele corpo
descomunal nos arrasou”.362 Ulisses, assim como Gama, foi o primeiro a dialogar
com o gigante.
Como se não bastasse uma descrição tão detalhada, o gigante, em tom
“horrendo e grosso” de fala, dirige-se rudemente aos portugueses:
[...] “Ó gente ousada, mais que quantas No mundo cometeram grandes cousas, Tu, que por guerras cruas, tais e tantas, E por trabalhos vãos nunca repousas, Pois os vedados términos quebrantas
otra cualquiera emoción parecida, son indicios de pasión o manifestación del ánimo, no comprendiendo que no pasan de impulsos corporales. Así es que muchas veces el hombre más valeroso palidece al empuñas las armas”. Tradução: “A paixão consiste não em ser comovido pela aparência dos objetos exteriores, mas em se prender a ela e continuar a sensação acidental. Enganam-se quem crê que a palidez, as lágrimas, a excitação de deuses impuros, um suspiro profundo, o repentino brilho dos olhos ou qualquer outra emoção parecida são indícios de paixão ou manifestação do ânimo, não compreendendo que não passam de impulsos corporais. Assim é que muitas vezes o homem mais valoroso empalidece ao empunhar as armas”. SÊNECA, Lúcio Aneu. De la ira. Disponível em: http://www.mediafire.com/?yzhjzdux5nz. Acesso em: abril/2011. 361 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofe 39, p. 158. 362 HOMERO. Odisséia, v. 2: Regresso. Tradução, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010, canto 9, v. 256-257, p. 129.
136
E navegar meus longos mares ousas, Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho, Nunca arados de estranhos ou próprio lenho; Pois vens ver os segredos escondidos Da natureza e do úmido elemento, A nenhum grande humano concedidos, De nobre ou de imortal merecimento; Ouve os danos de mi que apercebidos Estão a teu sobejo atrevimento, Por todo o largo mar e pola terra Que inda hás de sojugar com dura guerra.363
Joaquim Nabuco afirma que Camões não silenciou as primeiras
expedições marítimas, muito pelo contrário:
não era por certo Vasco da Gama quem desejaria que se riscasse da história a narração das viagens de Bethencourt, Vaz e Zarco, Noli, Velho, Diogo Cano, e sobretudo Bartholomeu Dias, como se desfez no mar o rasto de seus navios. Os perigos vencidos por outros venceu-os também elle, mas elle passou onde os outros pararam.364
De acordo com Nabuco, a pretensão do poeta com este episódio foi a de
dar forma e voz ao passado vencido pelo gênio português. Desta forma, as
catástrofes vaticinadas não seriam outra coisa senão o “preço fatal da verdadeira
grandeza”.365 Estes recursos – visuais e sonoros – seriam, portanto, uma maneira de
melhor retratar as glórias portuguesas?
Inicialmente, o aedo recorreu aos efeitos visuais: agora, atribuiu voz
profética ao gigante, que ressaltou a ousadia dos portugueses, que desbravaram
novas rotas marítimas. Frente a tamanho atrevimento, Adamastor acusa os
portugueses de terem ultrapassado os limites impostos aos mortais, sejam eles
nobres ou não. Tal insolência, afirma, é passível de danos, de punição. Isto nos
remete a uma possível releitura da noção de hybris grega, da imoderação, do
excesso mundano. A transposição da fronteira que distanciava e diferenciava
homens e deuses, na tradição grega, teria despertado a ira dos deuses.366 A ousadia
lusitana despertou, na mesma medida, a ira do gigante:
363 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofes 41-42, pp. 158-159. 364 NABUCO, Joaquim. Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artistico. 1872, pp. 89-90. 365 Idem, p. 180. 366 Sobre a hybris grega, ver: SEIXAS, Jacy Alves de. A imaginação de outro e as subjetividades narcísicas: um olhar sobre a in-visibilidade contemporânea [o mal-estar de Flaubert no Orkut]. In: NAXARA, M. R. C. at. al. (orgs.) Figurações do outro na história. Uberlândia: EDUFU, 2009, p. 69.
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Sabe que quantas naus esta viagem, Que tu fazes, fizeram de atrevidas, Inimigas terão esta paragem, Com ventos e tormentas desmedidas! E da primeira armada que passagem Fizer por estas ondas insofridas, Eu farei de improviso tal castigo, Que seja mor o dano que o perigo! Aqui espero tomar, se não me engano, De quem me descobriu suma vingança. E não se acabará só nisto o dano De vossa pertinence confiança: Antes, em vossas naus vereis, cada ano, Se é verdade o que o meu juízo alcança, Naufrágios, perdições de toda sorte, Que o menor mal de todos seja a morte!367
Os dotes proféticos de Adamastor, que prescrevem um fim trágico às
ousadias náuticas, não incluem Gama e sua frota. A censura do gigante nada tem
de realmente profética, pois sua narrativa versa sobre acontecimentos passados.
Trata-se do desaparecimento de Bartolomeu Dias, aquele que supostamente
descobriu o Cabo das Tormentas e que se perdeu durante uma tempestade. Em
contrapartida, o caráter de agouro que se atribui à fala da personagem confere
autoridade ao relato: a personificação do Cabo das Tormentas anuncia os perigos
iminentes com os quais se deparam aqueles que ousam fazer parte da empresa
ultramarina movidos pela ambição e pela vaidade. Se por um lado, aceitamos que
Adamastor representa os perigos impostos pelo mar, por outro, ele exerce o papel
de um juiz prudente que, através da longuíssima experiência adquirida, somada aos
dotes proféticos, adverte Gama e seus tripulantes sobre os castigos reservados
àqueles que imprudentemente abraçam a condição de pecador.
O tempo da epopeia:
Gama reage frente aos perigos vaticinados pelo gigante inquirindo:
“Quem és tu? Que esse estupendo / Corpo, certo, me tem maravilhado”.368 Neste
momento, ocorre uma reviravolta na narrativa e Adamastor não mais assusta os
nautas como antes. A partir do momento em que ele se identifica como o “Cabo das
367 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofes 43-44, pp. 159-160. 368 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofe 49, p. 161.
138
Tormentas”, passa então a ser conhecido, e deixa de ser exótico, de ser novidade,
como afirma Yara Vieira:
Enquanto figura que se desenrola na história, objeto de conhecimento, portanto, o Adamastor perde a sua categoria de perigo absoluto e entra na normalidade constituída. O Adamastor que conta a sua história é, assim, muito diferente do monstro profético que ameaça com a infinita possibilidade das desgraças futuras.369
Adamastor conta sobre seus infortúnios do passado, quando lutou contra
“o que vibra os raios de Vulcano”, Zeus. Afirma que se apaixonou por Tétis, “esposa
de Peleu”, e que se voltou contra todos os deuses olímpicos, recobrando para si o
império dos mares. Como não desconhecia a “grandeza feia” de seu gesto,
Adamastor determinou tomar a ninfa à força, mas esta, astuta, lhe promete devoção
ao término da guerra. Quando ela termina, contudo, o gigante é enganado, pois
visualiza Tétis e, quando corre em seu encalço e lhe abraça, percebe que está
enamorado de um rochedo. Assim narra o desafortunado:
Converte-se-me a carne em terra dura; Em penedos os ossos se fizeram; Estes membros, que vês, e esta figura Por estas longas águas se estenderam. Enfim, minha grandíssima estatura Neste remoto Cabo converteram Os Deuses e, por mais dobradas mágoas, Me anda Tétis cercando destas águas.370
Finda a narrativa, Adamastor se desfaz em lágrimas e logo desaparece.
Vieira nota que o gigante “é simultaneamente a projeção do temor do futuro
enquanto desconhecido, e do passado, enquanto resíduo de experiências
traumáticas”.371 Em um primeiro momento, ele vaticina infortúnios; em seguida,
conta sobre seus infortúnios particulares. Adamastor versa sobre os perigos do
excesso e demonstra sua própria trajetória como exemplo: por um lado, ele é
guardião das terras orientais e profeta das supostas calamidades futuras; por outro,
ele se apresenta, rompendo com o caráter de novidade, e conta sobre sua própria
hybris, que lhe legou uma punição exemplar.
369 VIEIRA, Yara Frateschi. “Adamastor: o pesadelo de um ocidental”. In: Actas da V Reunião Internacional de Camonistas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, p. 235. 370 Os Lusíadas, 2005, canto V, estrofe 59, pp. 165-166. 371 VIEIRA, Yara Frateschi. “Adamastor: o pesadelo de um ocidental”. In: Actas da V Reunião Internacional de Camonistas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, p. 240.
139
As advertências e admoestações lançadas pelo gigante, longe de ter o
mero objetivo de aterrorizar os navegantes, parece instruir os leitores sobre a
necessidade de propósitos virtuosos: ou seja, a procedência vaidosa na busca por
fama é condenável e, portanto, suscetível de castigos. As censuras do gigante são
direcionadas àqueles que agem em desconformidade com as pretensões do Império
português e/ou da Igreja Católica. Por outro lado, aqueles que atendem, assim como
Gama, aos anseios de seu “tempo”, podem ser considerados prudentes e, em
consequência, conquistar a boa vontade da fortuna: sendo assim, o caráter
supostamente profético da voz de Adamastor não passa de um artifício que não lesa
os princípios da ortodoxia cristã, mas os serve, pois não retrata nada além de
eventos circunscritos no passado, dignos de memória e integrantes da história
providencial portuguesa.
Se o leitor/ouvinte “vir” o gigante e “ouvir” suas ponderações, ele pode se
deixar instruir e mover. Morganti afirma que “a produção da clareza e vivacidade por
meio de recursos técnicos fornecidos pela linguagem, que gera no leitor a sensação
de visão e audição da cena descrita, permite, através de um procedimento
exclusivamente verbal, a manifestação ficcional de um afeto”.372 É necessário
ponderar, assim, que a produção artificial de um afeto ou de uma virtude se
fundamenta na verossimilhança. O auxílio visual e auditivo contribui para a
edificação de uma conduta prudente: neste caso, o apelo aos afetos – pela via do
infortúnio épico – tende a localizar as trágicas consequências de atitudes ousadas e
vaidosas, que não priorizam o bem comum. Ao leitor, então, resta aprender a traçar
o caminho oposto e se deixar levar pelo exemplo legado por Vasco da Gama.
É no dilema de uma história exemplar de caráter providencialista que se
coloca o Adamastor. Sua figura é oportuna porque embaralha as temporalidades:
suas previsões não passam de memórias que os leitores d’Os Lusíadas
provavelmente dominavam. Trata-se de um mito (com raízes certamente homéricas)
que encerra um obstáculo natural. Com seus vaticínios e rememorações fabulosas,
o gigante instrui Gama no seu presente, sendo o herói aquele a principiar a empresa
colonizadora e inaugurar rotas desconhecidas. O futuro que Adamastor adianta aos
nautas para o leitor já era passado, mas o incerto futuro do leitor poderia ser
372 MORGANTI, Bianca. “A morte de Laocoonte e o Gigante Adamastor: a écfrase em Virgílio e Camões”. In: Nuntius Antiquus, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, nº 1, 2008, p. 11.
140
devidamente trilhado caso ele se apegasse à virtude. O destino infausto do gigante
orienta Gama, e o destino vitorioso do navegante lusitano ilumina uma dimensão
exemplar a ser trilhada no futuro.
Ampliar o Império e difundir a ética cristã: estas eram as intenções
imediatas do herói. Júpiter profetiza logo no primeiro canto da epopeia lusitana o
sucesso da empresa portuguesa, tranquilizando Vênus. Ao final da obra, a ninfa
Calíope e a deusa Tétis cantam outros tantos sucessos portugueses, a serem
viabilizados num futuro que, para o leitor, já era passado. Esta estrutura se conforma
à dimensão circular da epopeia, que começa e termina reafirmando a glória
portuguesa. Adamastor não é um oráculo feito Tirésias, que orienta Ulisses
apresentando-lhe o seu futuro. Suas profecias são, ao mesmo tempo, eficazes e
ineficazes: realmente predizem o futuro, levando-se em consideração que a fábula
poética ambienta-se no momento da empresa liderada por Gama, da qual o leitor
encontra-se distanciado cerca de oitenta anos (portanto, um vaticínio em
retrospecto), e é ineficaz porque não impede a consecução da jornada do herói, pois
suas predições, em momento algum, colocam em xeque os propósitos que
motivavam Vasco da Gama. O gigante, transformado em rochedo feito Atlante,
cumpre sua pena eterna como Prometeu e chora suas angústias tal como Édipo. Ele
que, outrora, desejou avidamente o domínio dos mares a ponto de desafiar e
enfrentar os deuses olímpicos. Ambicioso, descomedido e, ainda assim, escalado
para censurar a cobiça e ensinar comedimento.
141
CAPÍTULO 04
Razão de Estado e o corpo místico português
De acordo com João Adolfo Hansen a “razão de Estado” pressupõe uma
“ligação necessária e sacralizada do Estado ao soberano”. Trata-se de um
“imperativo em nome do qual, alegando o interesse público, o poder absoluto
transgride o direito”. Há três argumentos que buscam fundamentar esta
transgressão: “as medidas excepcionais são necessárias; um fim superior justifica os
meios empregados; o segredo deve ser mantido”. Nesta direção, a “razão de
Estado” seria uma “técnica de conquista, conservação e ampliação do poder”,373
com vistas à “manutenção da unidade interna do reino, entendido como corpo de
ordens e estamentos fortemente hierarquizados, garantindo sua soberania contra
inimigos externos”.374 Não se trata de um conceito homogêneo, muito pelo contrário:
os debates em torno dele se deram de forma acalorada. Isto é perceptível, por
exemplo, na postura assumida por juristas católicos perante as convicções de Lutero
e Maquiavel:
Segundo os juristas católicos, Lutero e Maquiavel podem ser identificados porque ambos rejeitam a lei natural da Graça inata como base moral apropriada para a vida em sociedade. Ainda segundo eles – e o mesmo argumento se acha em Botero – é falsa a ideia de Maquiavel de que a finalidade primeira do poder é a conservação do Estado e de que, para tanto, é lícito usar de todos os meios, justos ou injustos, bons ou maus, como “razão de Estado” definida pela necessidade, assim como é falsa a ideia de Lutero de que o homem é incapaz de distinguir o bem do mal e de que, por isso, o Príncipe governa por “direito divino” para impor a lei e a ordem enquanto “razão de Estado” definida como segredo inviolável.375
Para Antônio Vieira, a Providência divina e a prudência humana
harmonizam-se na “razão de Estado”, definida como “possibilidade concreta de
conciliação dos valores cristãos com a eficácia a obter-se nas operações temporais
em que se joga a soberania do rei e Reino”.376 De acordo com Alcir Pécora, a
efetivação da “razão de Estado” em Vieira requer prudência, uma vez que a razão
373 Ver: BOTERO G. (1589), La ragion di Stato. Roma: Donzelli, 1997, p. 07. 374 HANSEN, João Adolfo. “Razão de Estado”. In: NOVAES, Adauto. A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 135-136. 375 Idem, p. 150. 376 PÉCORA, Antonio Alcir Bernárdez. “Política do céu (anti-Maquiavel)”. In: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 191.
142
deve atender a um determinado fim valendo-se da “ocasião” adequada, que pode
ser percebida através de um exame apurado das circunstâncias. A “ocasião”
propícia seria o momento no qual a vontade histórica e a Vontade divina se ajustam.
Por outras palavras, é neste intervalo que a “política de obras” e a “política do céu”
entram em sintonia. A “razão de Estado” deve designar uma operação “que, ao
admitir o justo fim, considera imediatamente quais os meios capazes de atender a
ele tendo em vista o seu impacto sobre o ânimo corrompido das gentes”.377 Uma
finalidade jamais seria atendida em sua totalidade se os meios empregados não
fossem orientados pela razão e iluminados pela Providência.
Para se pensar os pressupostos implicados nas versões católicas de
“razão de Estado”, é necessário retomar a metáfora do “corpo místico”. Esta tópica
foi utilizada muitas vezes por escritores e juristas da contrarreforma, que retomavam
os escritos de São Tomás de Aquino para pensar, por exemplo, os fundamentos e
as características da monarquia portuguesa nos primeiros séculos da colonização.
De acordo com Hansen, duas referências principais se unem na fórmula do corpo
místico português: uma delas é teológica, e diz respeito à república cristã. Dentre as
práticas que representa bem o aspecto corporativo da Igreja, destaca-se o
sacramento da Eucaristia, através do qual a hóstia banhada em vinho consagra a
comunhão do corpo e do sangue de Cristo. No momento da comunhão, todos os
fiéis compartilham de um mesmo corpo e de um mesmo Pai, o que concretiza um
vínculo orgânico e filial.378
A outra faceta do corpo místico é jurídica e sugere a harmonia
estabelecida entre a “razão política” e a “ética cristã”. Esta harmonia é referida nos
estudos de Ernest Kantorowicz, que retomam o sistema teológico-político medieval,
doutrina que foi apropriada para legitimar as bases monárquicas de Portugal,
regulamentar sua hierarquia e justificar os atributos sacros do rei. A metáfora do
corpo místico subtende a necessidade e relevância de uma hierarquia articulada
com rigidez, entendida como reflexo da lei natural. O Império português seria regido
pelo rei, cabeça da hierarquia política e, portanto, o responsável pela condução
sadia de seu reino. Aos súditos, integrantes do corpo político e subservientes à
vontade da cabeça, restaria o respeito incondicional, fator que proporcionaria o bem
377 Idem, p. 195. 378 Ver: HANSEN, João Adolfo. “Letras coloniais e historiografia literária”. In: Matraga: Revista do Programa de Pós Graduação em Letras da UERJ. Rio de Janeiro: Ed. Caetés, nº 18, 2006.
143
comum. Ora, se Cristo guia os fiéis tendo como fito a salvação dos mesmos, o rei,
por analogia, orientaria os componentes do seu reino devido à autoridade sacra que
detém, tornando-se o mediador entre o céu e a terra.379 Desta forma, a subordinação
implicava o bom uso do livre-arbítrio,380 e o respeito aos superiores se tornaria
legítimo porque análogo à situação cristã, marcada pela submissão do corpo de fiéis
aos dogmas da Igreja Católica, encabeçada por Cristo.
O rei, portanto, apresentava uma natureza dupla, ao mesmo tempo
humana e sagrada. Este revestimento místico de sua imagem política permitiria a
edificação de uma ideia de “reino” que ele personificava e administrava, ainda que
não pudesse frequentar toda a extensão geográfica do mesmo. Por necessidade, o
sentido orgânico da sociedade de corte permitia e promovia uma distribuição das
responsabilidades entre os súditos, como condição para seu bom regulamento.
Como se dava, portanto, esta distribuição de tarefas e o devido ordenamento dos
integrantes do reino? Como assegurar a organicidade do corpo político português?
Como suprir a inevitável ausência física do rei? Questões como estas impulsionaram
uma renovação historiográfica considerável nas últimas décadas que, dentre os seus
vários propósitos, pretendia vencer as limitações impostas pelas análises
reducionistas que, em linhas gerais, atribuíam à metrópole portuguesa a função de
“centro administrativo” e às suas colônias um caráter “periférico”, assinalado pela
submissão irrestrita às necessidades metropolitanas. O “pacto colonial”, sob a lente
desta inovação, fundamenta-se em práticas que ultrapassam o “exclusivo
metropolitano”, que subtendia a sujeição das colônias, tomadas como polos
economicamente complementares, à monarquia portuguesa, compreendida como
centro de onde emanava toda e qualquer manifestação do poder.
Ao estudar os escritos jurídicos portugueses do Antigo Regime, António
Manuel Hespanha insiste na inconsistência das teorias que se pautam na suposta
uniformidade jurídica do Império, alegando a inexistência de um modelo político
genérico que englobasse a expansão lusitana em sua totalidade. Conforme o autor,
várias explicações buscaram delinear as motivações imperiais na empresa 379 Ver: KANTOROWICZ, Ernst Hartwig. Os dois corpos do Rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 132-137. 380 É preciso recordar, com Castiglione, que a verdadeira liberdade não “é viver como se quer, mas viver segundo as boas leis, e é tão natural, útil e necessário obedecer quanto comandar”. Ele termina dizendo que “o corpo tem aptidão natural para obedecer à alma como o instinto a razão”. A tópica do livre-arbítrio, portanto, não se desatrela da obediência natural que lhe fundamenta. Ver: CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão. Tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 287.
144
colonizadora, como o engrandecimento do rei, a expansão da fé cristã, finalidades
comerciais, dentre outras. Chamando a atenção para a insuficiência destas
hipóteses, Hespanha nos alerta para a “pluralidade de tipos de laços políticos”, que
impediam definitivamente o estabelecimento de uma regra uniforme de governo,
fator este que poderia delimitar e enquadrar o alcance e as fronteiras do poderio
português. Em razão disto, o autor afirma ter existido, em Portugal e em suas
colônias, uma “estrutura administrativa centrífuga”, isto é, um modelo de monarquia
corporativa que admitia a existência de diversas modalidades de laços políticos e de
instituições de poder, que detinham certa autonomia em relação à Coroa.381
Esta relativa autonomia conferida às instituições portuguesas de outrora
se traduzia em uma necessidade própria do Antigo Regime, que não pretendia e
nem poderia trabalhar com a simbologia da dureza e da opressão. A historiadora e
antropóloga Maria Fernanda Bicalho, na esteira de Hespanha, afirma que o pacto
político firmado entre o rei e seus subordinados não respeitava criteriosamente à
relação mando-obediência. Muitas vezes, os reis praticavam a “liberalidade régia”,
política ligada à suposta bondade do monarca para com os seus súditos que, em
troca, deveriam ser obedientes. Este procedimento reforçava os laços de
solidariedade, cativando o ânimo dos súditos na medida em que se semeava honra
e glória entre eles.382 A condução do bem comum, desta forma, não pressuporia
necessariamente um rigor coercitivo.383
No artigo “Uma leitura do Brasil colonial – bases da materialidade e da
governabilidade do Império”, João Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa e Fernanda
Bicalho desenvolveram duas categorias que são chaves de interpretação do que
poderíamos chamar de “mecanismos de poder” do sistema colonial. A primeira é a
381 HESPANHA, António Manuel. “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes”. In: FRAGOSO, João. et. al. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, pp. 169-175. 382 Sugerimos a leitura do texto: BICALHO, Maria Fernanda. “Pacto colonial, autoridades negociadas e o Império Ultramarino Português”. In: SOIHET, Rachel. et. al. (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. 383 Entendemos o conceito de reciprocidade com as limitações que lhe imputou Aristóteles, no momento em que buscou definir um patamar de ações localizadas entre a justiça e a injustiça. Para o autor, a reciprocidade não se identifica com a justiça distributiva, tampouco com a justiça corretiva. Ao contrário, ela se baseia na retribuição proporcional, o que leva em consideração as trocas e suas possíveis implicações. Ora, relendo esta assertiva, consideramos igualmente que a reciprocidade, em uma sociedade de corte, leva em consideração o desnivelamento das posições hierárquicas ocupadas, de forma que as trocas e favores são proporcionais aos lugares políticos que as partes envolvidas ocupam. Ver: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro V, V, pp. 112-115.
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“economia do bem comum”, forma de “reinvenção” do Império português com base
em um sistema hierárquico excludente. Este pressuposto se baseia numa rede de
reciprocidade, num “fornecimento de serventias” regulado conforme diferentes
estratégias adotadas pela sociedade colonial e suas elites. A segunda categoria é a
“economia política de privilégios” que, complementando a “economia do bem
comum”, baseia-se na lealdade e na vassalagem enquanto forma de “produção” de
súditos ultramarinos. Trata-se da garantia dos laços de sujeição e do sentimento de
pertença dos vassalos às estruturas sócio-políticas do Império. Promove-se, assim,
uma aliança entre o discurso da conquista e uma lógica de caráter clientelar inscrita
na economia de favores.384
A legitimação da “razão de Estado”, por intermédio da metáfora do “corpo
místico”, pressupõe a “pluralidade dos membros e a diversidade das funções, numa
integração das partes que é ordem”.385 Nesta direção, há pelo menos três aspectos
a serem considerados: o bem comum é o fim último da “razão de Estado”; a
desigualdade é natural; a obediência é pressuposto de soberania e, por isso, uma
das primeiras virtudes que sustenta a “razão de Estado”, sendo requisito para a
harmonia do todo social. Nesta direção, os conceitos de razão e de ordem se
justapõem: para garantir a harmonia do reino, os integrantes deveriam ordenar suas
paixões e condutas para obedecer aos seus superiores, ocupando com prudência o
seu devido lugar.
Contrariar as disposições hierárquicas, portanto, ocasionava discórdias,
como é possível perceber no relato de naufrágio da nau S. Bento. Vários homens a
bordo deixaram de respeitar Fernão D’Álvares Cabral, o capitão-mor, e resolveram
criar um “corpo, cuja cabeça (posto que não nestes maus ensinos) era o
contramestre”.386 A desobediência decorrente desta empreitada levou o capitão a
formar um conselho, para definir a melhor forma de agir perante o levante: optaram
por tentar dissuadir o contramestre, “que era bom homem e sempre se mostrara seu
amigo”,387 o que funcionou, pois ele desenganou os rebelados e demonstrou grande
obediência ao capitão. Mas a fortuna, que “não se contenta com pouco”, tomou a
384 FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Uma leitura do Brasil colonial – bases da materialidade e da governabilidade do Império”. In: Penélope, Revista de História e Ciências Sociais, Lisboa, n. 23, 2000, pp. 67-88. 385 HANSEN, João Adolfo. “Razão de Estado”. In: NOVAES, Adauto. A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 139. 386 HTM, p. 54. 387 Idem, pp. 55-56.
146
vida do capitão, que usufruiu de uma bela-morte graças à sua prudência e conduta
em geral. No entanto, era necessário rearticular o “corpo”, temporariamente apartado
de sua “cabeça”:
E depois que assim estivemos juntos, vendo como para nossa salvação era necessário que fôssemos sempre unidos em um corpo, regidos por uma só pessoa, e esta jurada aos Santos Evangelhos, para que não houvesse os rebuliços que dantes havia, pusemos logo isto em obra; e como de noventa e dous homens que àquele tempo éramos por todos, setenta fossem dos do mar, todos estes juraram que Francisco Pires, o contramestre, era muito para aquilo, e que se o fizessem capitão a ele obedeceriam.388
A desordem anunciada é decorrente da desarticulação do corpo. A
reordenação do mesmo dependeria de sua rearticulação, agora encabeçada por um
novo integrante, que ascende na hierarquia para organizar o conjunto de suas
partes. Algo parecido ocorreu com os tripulantes da nau Conceição, quando o
capitão Francisco Nobre fugiu com alguns de seus homens e deixou o navio à
própria sorte. Como ainda restava esperança, o narrador relata:
Ordenamos pôr regra sobre nossas vidas em o mantimento, e ordem a tudo, para que dela pudéssemos merecer o que Deus quisesse determinar. Pelo que demos ordem em fazer logo capitão a quem déssemos obediência, e foi eleito D. Álvaro de Ataíde, sobrinho do conde da Castanheira, homem mancebo, de idade de vinte anos, de boa condição e amigo de todos, mas não era para o cargo que lhe demos, por não ser temido e ser juntamente mancebo.389
Manuel Rangel anuncia e reprova a escolha do novo capitão, mas o que
interessa no episódio é a importância conferida à ordem, através da qual se poderia
remediar a situação. D. Álvaro de Ataíde era “homem mancebo” e não inspirava
temor, ou seja, faltava-lhe experiência e autoridade. Ele mesmo o percebeu,
assumindo desde então uma postura cautelosa e defensiva, mas logo deixou o
comando, alegando má disposição e enjoo. No entanto, as escolhas para capitão
nem sempre eram imprudentes, como no caso da opção feita pelos tripulantes da
nau São Paulo. O padre da Companhia de Jesus que viajava nesta nau, de nome
Manuel Álvares, convocou a todos e, “com palavras dignas de tal varão e a tal tempo
necessárias”, disse:
388 Idem, pp. 57-58. 389 Idem, p. 103.
147
Caríssimos Irmãos em Cristo, trago-vos à memória aquele santo dito do Evangelho, que Omne regnum in se divisum desolabitur, e com a concórdia é tão certo que as cousas pequenas e mui mínimas se fazem muito grandes e duráveis, e com a discórdia as cousas muito grandes se desfazem e diminuem, e tornam em nada; devia-vos, Irmãos, de lembrar que todas as outras naus que se perderam no cabo de Boa Esperança, como foi o Galeão, e S. Bento, e outras muitas, uma das cousas que destruiu e totalmente matou a gente delas foi a discórdia que entre si houve, fazendo-se e dividindo-se em magotes, e entregando suas armas, e confiando-as dos inimigos de nossa santa Fé, bárbaros e cruéis e tão cobiçosos do nosso sangue. Não diminuamos nossas forças, pois virtus unita fortior est se ipsa dispersa. E pois somos próximos e todos irmãos, e de tanto tempo companheiros, em tão breve lugar, onde tantas fortunas havemos passado e corrido, penetrando a grandeza toda do oceano, com todos os perigos e tormentas quantas outros jamais sofreram. E assim espero e fio na muita misericórdia de Cristo e sua Santíssima Morte e Paixão sermos todos juntos no Céu, seus mártires e seus cavaleiros, o que aqui acabarmos, pois assim nos escolhe o Senhor para a Glória e para ele ser melhor servido e seu Santo Nome glorificado e nos pôr a salvamento em terra de cristãos, livrando-nos de nossos inimigos em seu braço forte. Pois tendo a ele por nós, Quis contra nos? É-nos, caríssimos, muito necessário e cousa importantíssima termos uma cabeça todos, de que os membros se rejam, governem e a que obedeçamos, por não sermos corpos sem almas; e para isto haver feito, eu por minha ordem e hábito, com conselho de todos os principais, olhando o que mais pertence e é proveitoso ao nosso bem comum, digo que elejamos e criemos por nosso capitão o que foi até o presente soberano para tudo, ao próprio Rui de Melo da Câmara, pois para o ser basta só ser feito da mão da Rainha, Nossa Senhora, e haver-lhe entregue ela esta sua nau e gente que ela e El-Rei seu neto, Nosso Senhor, tanto estimam e prezam, sob cuja capitania e bandeira até aqui havemos militado, e é que ele tem dado mostras de singular e humaníssimo capitão; pelo que não há ai a quem melhor se entregue, e com razão, o cargo; o que tudo, crede, nos não digo nem aconselho, senão por bem de todos e segundo minha consciência e alma e como religioso, e da Companhia de Jesus, que estimo tanto, e quero a salvação da vida e da alma do menor escravo cristão que entre nós há, como a minha própria; e já de mim deveis ter conhecido, pois de todos sou padre espiritual, se vos falarei verdade ou não, e desejarei vossa salvação; e para de todo vos tirar de má suspeita em minhas palavras, pois são puras e limpas e ditas como de pai a filho, eu vos juro, quanto a mim, e vos prometo por minhas ordens, desta ilha me não partir nunca sem todos juntos.
Por se tratar da fala de um padre, é comum a presença de fragmentos do
Evangelho em latim, forma de autorizar seu posicionamento com base na Sagrada
Escritura. Além disso, ele assinala a importância da concórdia evocando exemplos
de outros naufrágios, como os ocorridos com o Galeão São João e com o Galeão
São Bento. Para a sobrevivência da tripulação, seria preciso restaurar a ordem e
eleger uma “cabeça” que pudesse reger a todos. Manuel Álvares menciona os
atributos do “singular e humaníssimo” Rui de Melo da Câmera, tomando-o como
melhor candidato para intervir pelo “bem de todos”. Os exemplos acima reafirmam
os pressupostos da razão de Estado, uma vez que as condutas das personagens
148
propõem a centralidade da obediência e de uma hierarquia bem definida como forma
de garantir o bem comum.
Produção de concórdia390
Reunidos em concílio, os deuses olímpicos deliberavam sobre o destino
de Vasco da Gama e de seus homens. Com entonação profética, Júpiter revela a
vitória dos portugueses em sua empresa no ultramar:
Prometido lhe está do Fado eterno, Cuja alta lei não pode ser quebrada, Que tenham longos tempos o governo Do mar que vê do Sol a roxa entrada. Nas águas têm passado o duro Inverno; A gente vem perdida e trabalhada. Já parece bem feito que lhe seja Mostrada a nova terra que deseja.391
O “Fado eterno” promete que os portugueses terão o governo do mar. A
conduta que lhes confere tal prestígio é contemplada e legitimada pela “alta lei”, à
qual todos os eventos humanos se submetem. Esta graça, que assume diferentes
conotações, será legada aos portugueses por diferentes razões: bravura,
persistência, sujeição a trabalhos contínuos, dentre outras. A figura de Júpiter, com
seus vaticínios e alegações, pode ser entendida a partir de algumas chaves de
leitura: por ser aquele que preside o Olimpo, a autoridade de sua fala e as suas
resoluções são enunciadas com dignidade, como se ele ocupasse o papel de causa
segunda. Em outras palavras, as ponderações de Júpiter apresentam
alegoricamente a vontade providencial. Em versos esclarecedores, Camões admite
esta analogia: “E também, porque a santa providência / Que em Júpiter aqui se
representa”.392 Por outro lado, levando-se em consideração os seus intentos, a voz
do deus autoriza a fortuna favorável, pois recompensa os portugueses com bons
agouros. Sua fala, portanto, mostra-se ajuizada e seus desígnios ecoam com
entonação divina.
390 Título inspirado no trabalho: LUZ, Guilherme Amaral. Flores do Desengano: Poética do Poder na América Portuguesa (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2013, pp. 33-56. 391 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofe 28, pp. 96-97. 392 Idem, canto X, estrofe 83, p. 240.
149
O deus Baco toma para si outra postura: sua oposição frente aos
“vaticínios” que favorecem os portugueses leva-o a mobilizar um grande arsenal de
infortúnios contra os nautas. Além de ser um deus pagão, Baco exerce o papel de
mentor dos mouros, o que lhe rende duplo estigma – o de pagão e o de infiel – e
torna suas atitudes ainda mais reprováveis. Na épica camoniana, é próprio desta
deidade agir em dissonância com os preceitos da ortodoxia cristã, utilizando-se da
vaidade, do engano, da ambição. Ao contrário de Júpiter, Baco age como o
antagonista da providência: aquele que trama obstinadamente as desventuras,
instrui astutamente sua prole de mouros e corrobora a efetivação das peripécias.
Enquanto ornatos poéticos, Júpiter e Baco aprimoram o estilo da épica e,
em consequência, deleitam os leitores; metaforicamente, ambos mobilizam,
figurativamente, a boa e a má fortuna, respectivamente. Como alegorias, Júpiter
remonta à vontade providencial e encabeça as hierarquias celestes. Baco, por outro
lado, opõe-se às disposições hierárquicas e aos desígnios divinos, representando o
antípoda de Júpiter.393 Esta leitura pode embasar-se, por exemplo, em uma das
versões mitológicas na qual Baco fora expulso do Olimpo pela enciumada Juno, uma
vez que o deus é fruto do amor proibido entre Júpiter e a mortal Sêmele. Quer se
adote esta ou outra interpretação, os deuses, na ordem da épica cristã, dinamizam a
narrativa e personificam o fado, a Providência, a perdição, o pecado, o bárbaro, o
cristão etc.
A relutância de Baco, no que se refere às conquistas ultramarinas
lusitanas, decorre de sua vaidade,394 pois ele temia ser esquecido. Temor este que
se justifica pela sua fama no oriente, local no qual é considerado o responsável pela
difusão da civilização e pelo fabrico do vinho.395 Ou seja: a glória dos portugueses,
393 Sobre as possíveis leituras que se possa fazer da mitologia n’Os Lusíadas, ver: MORGANTI, Bianca. A Mitologia n’Os Lusíadas – Balanço Histórico-Crítico. Dissertação (Mestrado). São Paulo: IEL/Unicamp, 2004, pp. 156-171. 394 A vaidade pode ser entendida como a exposição imprudente dos pensamentos. De acordo com o filósofo italiano seiscentista Torquato Accetto, “o erro que se pode cometer com o compasso que gira em torno da opinião que temos de nós mesmos costuma ser a causa de que transborde aquilo que se deve reter nos limites do peito; pois quem se estima mais do que é efetivamente, apenas fala como mestre, e, parecendo-lhe que todos os outros sejam menos que ele, faz pompa do saber e diz muitas coisas que sua boa sorte poderia ter calado”. Accetto está refletindo sobre a “dissimulação honesta”, mas podemos entender suas inferências mais amplamente, pois esta soberba e o descompasso entre o “ser” e a “imagem que o ser faz de si próprio” é amplamente prejudicial a qualquer sociedade que viva com base em disposições hierárquicas rígidas, como é o caso da monarquia portuguesa. Ver: ACCETTO, Torquato. Da dissimulação honesta. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 63. 395 Ver comentários à estância 30 em: CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas / edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy Editora, 2005, p. 97.
150
caso viessem a descobrir as rotas marítimas de acesso às Índias, ofuscaria a sua, e
a memória de uma divindade olímpica sucumbiria nas águas do Letes mitológico
(apresentado como “negro vaso de água do esquecimento”396 ou “rio do negro
esquecimento e eterno sono”397) devido à ousadia dos mortais.398 O aedo
desacredita as crendices pagãs – ao querer lançar as memórias de Baco nos confins
do esquecimento – e, ao mesmo tempo, valoriza e amplifica a memória das
conquistas lusitanas. Sepulta-se, de uma só vez, um deus pagão (que representa as
crenças heterodoxas) e os feitos inverossímeis (em contraposição à vivacidade e
verossimilhança dos feitos portugueses).
Vênus e Marte apoiam Júpiter e defendem a vitória dos portugueses.
Frente aos argumentos de ambos, o deus patrono mantém-se favorável ao sucesso
lusitano e encerra o concílio, mesmo sem o consentimento do ressentido Baco.
Encerrada a comitiva das deidades, o aedo se ocupa de Vasco da Gama e sua frota
que, a esta altura, velejavam em algum ponto entre Madagascar e Moçambique.
Gama, súdito do rei a quem a “fortuna sempre favorece”, ancora em uma ilha e se
depara com os mouros pela primeira vez. O encontro, que parecia fluir bem, leva o
descontente Baco a maquinar uma maneira de impedir o avanço dos heróis.
Resoluto, o deus maquina pensamentos soberbos que reafirmam o seu lugar entre
as deidades olímpicas:
Está do Fado já determinado Que tamanhas vitórias, tão famosas, Hajam os portugueses alcançado Das Indianas gentes belicosas. E eu só, filho do Padre sublimado, Com tantas qualidades generosas, Hei de sofrer que o Fado favoreça Outrem, por quem meu nome se escureça?399
396 Os Lusíadas, 2008, canto I, estrofe 32, p. 27. 397 Idem, canto X, estrofe 09, p. 281. 398 Entre os gregos da Antiguidade, Letes “é uma divindade feminina que forma um par contrastante com Mnemosyne, deusa da memória e mãe das musas. Segundo a genealogia e teogonia, Lete vem da linhagem da Noite (em grego Nyx, Nox em latim), mas não posso deixar de mencionar o nome de sua mãe. É a Discórdia (em grego, Eris, em latim, Discordia) – o ponto escuro nesse parentesco”. Como nos lembra Jacy Seixas, o rio do esquecimento “não constitui necessariamente uma divindade negativa ou necessariamente funesta”. Desta forma, a relação entre Mnemosyne e Letes “não configura um mito unificado da memória e do esquecimento (inexistente tanto em Hesíodo quanto em Píndaro); mas a realidade do esquecimento imbrica-se à da memória”. Ver: WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 24. Ver também: SEIXAS, Jacy Alves de. “Comemorar entre memória e esquecimento: reflexões sobre a memória histórica”. In: História: questões & debates. Curitiba: Editora da UFPR, n. 32, vol. 17, 2000, p. 79. 399 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofe 74, p. 103.
151
A vaidade é retratada como conduta vil que impede o respeito às
hierarquias e, logo, a manutenção da paz pública. Na narrativa camoniana, Baco
desrespeita seu pai, crime grave e passível de punição. O deus do vinho arquiteta
seus pretensos enganos à revelia do poder instituído, atitude indigna e fruto da
cobiça, da supervalorização das vontades particulares. Em Tomás de Aquino, a
vaidade conforma-se a uma atitude imprudente, pois se baseia na “falta de governo
de si próprio” e na cega priorização do particular em detrimento do bem comum, o
que incita o desrespeito às escalas superiores da hierarquia.400 Os pensamentos
soberbos de Baco remontam às ações de Juno que, no contexto da Eneida, cogita
“no íntimo do peito” os seus privilégios, uma vez que precede os imortais e é “de
Jove esposa e irmã”.401 Baco se envaidece por ser “filho do Padre sublimado” e se
deixa dominar pela ira e insanidade, à maneira de Juno. A postura de ambos os
deuses dista em grandes proporções da de Vasco da Gama e de seus pares,
apresentados como súditos fiéis ao rei:
Corrupto já e danado o mantimento, Danoso e mau ao fraco corpo humano; E, além disso, nenhum contentamento, Que sequer da esperança fosse engano. Crês tu que, se este nosso ajuntamento De soldados não fora Lusitano, Que durara ele tanto obediente, Porventura, a seu Rei e a seu regente?402
Se, de um lado, há um deus vaidoso que facilmente desrespeita as
ordens do pai/rei/deus, de outro agem os lusitanos, homens que, mesmo submetidos
aos mais graves infortúnios, continuam a acatar as ordens e a respeitar a hierarquia.
No primeiro caso, situa-se a corrupção do bom juízo promovida pela vaidade; no
segundo, o juízo dos heróis traduzido em fidelidade. A estrofe acima afirma que a
obediência é devida não somente ao rei, mas também a Vasco da Gama, aquele
que representa e manifesta a vontade do rei em ocasião de sua ausência. Em outros
termos, nas adjacências de sua nau, Gama é aquele que mais detém voz de
400 TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 31-32. 401 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro primeiro, pp. 6-7. 402 Os Lusíadas, 2008, canto V, estrofe 71, p. 163.
152
comando, devido ao lugar privilegiado que ocupa na hierarquia política e por agir
como instrumento do rei, que se faz presente por seu intermédio.
Se o deus Baco, através de uma fala vaidosa, utiliza a origem nobre como
critério para justificar sua fama e contrariar a vontade providencial, Jorge
d’Albuquerque Coelho assume uma postura modesta ao afirmar que os incidentes
ocorridos com a nau Santo Antônio seriam devidos aos seus pecados e faltas.403 Em
um de seus discursos, após ter passado por inúmeras provações, o protagonista
admitiu a gravidade dos vários trabalhos e danos sofridos, mas utiliza este mesmo
argumento para demonstrar que cada superação deveu-se à intervenção divina. Em
seguida, ele afirma que os trabalhos e provações são mimos do Senhor, e que Ele
os deixaria viver para testemunhar seus milagres. Na conclusão, além de invocar
uma passagem do Evangelho, o narrador utiliza uma metonímia e uma hipérbole
para arrematar a ideia nuclear de seu argumento: “Portanto, irmãos meus, postos
neste estado de fé e confiança neste Senhor, esperemos que neste pedaço de pau
nos livrará do profundo abismo do mar”.404 A postura de Jorge d’Albuquerque Coelho
não dista muito da de Vasco da Gama e contraria os argumentos de Baco. Enquanto
o deus menciona sua estirpe nobre, seu poderio e seus direitos enquanto divindade
do panteão grego, o heroi católico alude à sua condição de pecador, continua a
cumprir com seus deveres de súdito e admite que qualquer poder provém de Deus e
da sua providência.405
Na Prosopopeia, também protagoniza por Jorge de Albuquerque Coelho,
o aedo lhe atribui grandes virtudes e refere a sua origem nobre:
E vós, sublime Jorge, em quem se esmalta A estirpe d’Albuquerques excelente, E cujo eco da fama corre e salta Do cauro glacial à zona ardente, Suspendei por agora a mente alta Dos casos vários da olindesa gente, E vereis vosso irmão e vós supremo No valor abater Quirino e Remo.406
403 Idem, p. 270. 404 Idem, p. 283. 405 Sobre os discursos pronunciados por Jorge d’Albuquerque Coelho ao longo do relato de naufrágio da nau Santo Antônio, ver: VITORINO, Clara. A “palavra” de Jorge de Albuquerque. Ensaio sobre “Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque vindo do Brasil no ano de 1565”. In: SEIXO, Maria Alzira; CARVALHO, Alberto. A História Trágico-Marítima: análises e perspectivas. Lisboa: Edições Cosmos, 1996, pp. 200-207. 406 Prosopopeia, 2008, canto III, p. 124.
153
O elogio que o aedo lhe dirige não contradiz a modéstia do heroi, muito
pelo contrário: reafirma suas virtudes. Quando Baco menciona suas próprias
conquistas e méritos, seu discurso soa como vaidoso, sobretudo pela conduta que
ele assumiu ao longo da narrativa. No caso de Jorge d’Albuquerque, suas virtudes
são mencionadas pelo narrador, e não por ele próprio, o que confere aos dizeres
certo grau de confiabilidade e aceitação. Por outras palavras, o decoro do discurso
em homenagem a um terceiro corresponde à falta de decoro de um discurso que
tem por objeto as virtudes do próprio orador que o profere. A tópica retórica
mobilizada em ambos os casos é a da origem (genus), segundo a qual os filhos
geralmente se assemelham aos pais e aos ancestrais. A maneira como ela foi
utilizada nos exemplos referidos, contudo, causam juízos opostos: de um lado, a
fama da família Albuquerque, de Pernambuco, e de outro, a infame ancestralidade
das divindades pagãs.
O herói católico bem ajuizado, portanto, é aquele que prioriza o bem
comum e se manifesta tal como o rei se manifestaria caso estivesse presente,
utilizando de seu discernimento e ponderando bem o seu agir. Esta impossibilidade
de o rei se fazer presente fisicamente e, em contrapartida, a presentificação do
mesmo através da fidelidade de seus súditos é essencial para a construção da ideia
política de um reino, como nos adverte Ana Paula Megiani:407 a ordenação do reino
dependeria do compromisso dos homens e de sua disposição enquanto súditos
atentos e benevolentes. O jesuíta Baltasar Gracián, em suas máximas sobre a
prudência, discorre sobre este bom juízo:
Nem todo mundo é rei, mas seus atos devem ter a mesma dignidade, dentro dos limites de sua esfera. Uma maneira régia de fazer as coisas: grandiosidade de ação, uma mente sublime. É preciso assemelhar-se a um rei em mérito, mesmo não sendo, pois a verdadeira soberania está na integridade dos costumes. Não teremos de invejar a grandeza se se pudermos servir-lhe de padrão. Aqueles que se encontram próximos ao trono, em especial, devem tentar assimilar um pouco da verdadeira superioridade. Procurem partilhar os dons morais da majestade, em vez da pompa, e aspirar a coisas elevadas e substanciais, em vez da vaidade tola.408
Dentre os lugares comuns presentes nesta passagem, situam-se a
dignidade do agir, a importância do mérito e da integridade dos costumes e a
407 MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004, p. 16. 408 GRACIÁN, Baltasar. A Arte da Prudência. São Paulo: Martin Claret, 1998, aforismo 103, p. 63.
154
superioridade moral (que orientam o agir) frente à pompa (aspiração de prêmios e
mercês). Por outras palavras, o homem deve se espelhar em um bom rei,
independente se integra ou não a realeza ou se ocupa uma posição de destaque no
corpo político do Império. Como estímulo, ele deveria “aspirar a coisas elevadas e
substanciais”, atento aos desígnios que partem da Providência.
Os homens que ocupam lugares privilegiados no corpo social deveriam
interceder pelos seus subordinados. A importância da posição que se ocupa é
proporcional à gravidade das responsabilidades adquiridas, o que faz do rei,
representante de Cristo na terra, o grande responsável pela administração do
Império. Neste sentido, a vaidade é intolerável em um organismo que pretende
manter sua coesão com base na prescrição de lugares hierárquicos. Ela indispõe um
indivíduo contra o outro, ao mesmo tempo em que o leva a conferir primazia aos
seus interesses privados. Esta atitude intensifica o seu descaso pelos seus pares e
altera os seus interesses mais urgentes: a prioridade passa a ser fruto da cobiça.
Torna-se latente o desejo por fama e glória, e não mais a submissão ao bem
coletivo. A vaidade leva o pastor terreno a querer se igualar e substituir o verdadeiro
“Pastor”, tutor das ovelhas: Cristo.
A fidelidade, que segue em direção contrária à vaidade, ajuíza os homens
quanto aos caminhos retos que devem ser percorridos. Os súditos deveriam
incorporar os desígnios que partiam da Coroa portuguesa, e abraçá-los
independentemente da ocasião. Quando desembarca nas proximidades da cidade
de Melinde, por exemplo, Vasco da Gama é bem recepcionado, mas, precavido, o
herói opta por não desembarcar de imediato e envia um emissário até o rei para
justificar a sua conduta:
E não cuides, ó Rei, que não saísse O nosso Capitão esclarecido A ver-te ou a servir-te, porque visse Ou suspeitasse em ti peito fingido; Mas saberás que o fez, por que comprisse O regimento, em tudo obedecido, De seu Rei, que lhe manda que não saia, Deixando a frota, em nenhum porto ou praia. E, porque é de vassalos o exercício, Que os membros têm, regidos da cabeça, Não quererás, pois tens de Rei o ofício, Que ninguém a seu Rei desobedeça [...];409
409 Os Lusíadas, 2008, canto II, estrofes 83-84, pp. 70-71.
155
Camões recorre à metáfora do corpo místico para discorrer sobre a
função da “cabeça” do reino e de seus “membros”. É obrigação do súdito, portanto,
cumprir o regimento que lhe compete e manter-se fiel a ele. No caso, o emissário
afirma ao rei que Gama não nutria suspeitas em relação à sua boa intenção quando
se recusou a desembarcar, mas o fez por respeito à cabeça do reino.
Após a deliberação do emissário, o rei de Melinde se mostra
impressionado com a fidelidade de Vasco da Gama:
[...] E o Rei ilustre, o peito obediente Dos Portugueses na alma imaginando, Tinha por valor grande e mui subido O do Rei que é tão longe obedecido.410
Apesar de desejar o desembarque imediato dos navegantes lusitanos, o
rei aceita a resolução do herói, pois reconhece na postura de Vasco da Gama algo
ilustre a ser preservado:
De não sair em terra toda a gente, Por observar a usada preeminência, Ainda que me pese estranhamente, Em muito tenho a muita obediência. Mas, se lho o regimento não consente, Nem eu consentirei que a excelência De peitos tão leais em si desfaça, Só por que o meu desejo satisfaça.411
O rei de Melinde tem em alta estima a preeminência, ou seja, o respeito
às ordens superiores. Na sua posição de rei, esta disposição de ânimo é essencial
para a articulação e administração de um Império. Ele, então, age de maneira
contrária à de Baco: longe de criar qualquer ressentimento contra os portugueses,
ele coloca em segundo plano suas vontades e prioriza a determinação dos visitantes
estrangeiros. Mais uma vez, a ausência de vaidade demonstra a boa disposição do
rei, ao contrário dos mouros que, até então, haviam travado conhecimento com
Gama e sua tripulação. É sobre a égide deste juízo prudente que, posteriormente, o
rei mouro e o herói lusitano travariam amizade. Por outro lado, se o rei de Melinde
mostra-se surpreendido, é por desígnio providencial, que ilumina seu entendimento.
410 Idem, canto II, estrofe 85, p. 71. 411 Idem, canto II, estrofe 87, p. 71.
156
Nesta leitura, Vasco da Gama age como instrumento que apresenta ao infiel a
verdade por intermédio da Revelação. Não por acaso, o poeta deixa transparecer a
centralidade do papel desempenhado pelo rei de Melinde, referindo-se a ele como
“Rei mais amigo”,412 “Sublime Rei”,413 “Rei benigno”,414 “Rei ilustre”,415 “Rei
Pagão”,416 e “Pagão benigno”.417
O bem comum é apresentado como uma meta associada aos interesses
do Estado português. Ele nasceria, conforme Hansen, “do controle que os membros
desse corpo deviam impor-se a si mesmos, reprimindo os apetites particulares, para
obterem e manterem a concórdia do todo, como unidade pública da paz”.418 Frente a
esta assertiva, deduz-se o seguinte: o todo depende de suas partes para concretizar
a “unidade pública de paz”; a parte necessita conter os “apetites particulares” em
prol da coletividade. Por outras palavras, a pessoa, para ser aceita e fazer parte do
“corpo” em que vive, deve agir e ser o que este corpo dela espera; em contrapartida,
o corpo precisa de “partes” comprometidas para proporcionar a concórdia. Ser
prudente, nesta chave escolástica, significa se tornar a peça que a monarquia cristã
portuguesa almeja para o quebra-cabeça do bem comum.
A conduta dos heróis afina-se à noção de prudência política adotada por
Tomás de Aquino. Trata-se de uma forma de “retidão de governo”, a partir da qual os
súditos, fazendo bom uso do livre arbítrio, deveriam “dirigir-se a si mesmos na
obediência aos governantes”, evitando a priorização de si em favor do bem
coletivo.419 Nesta medida, a pessoa deve governar a si mesma e, em consequência,
se deixar governar pelo rei ou superior hierárquico a quem deve serviço. Como
exemplo, há um trecho de Jerusalém Libertada na qual os grandes heróis cristãos se
dobram perante a integridade de Godefredo:
Os mais o aprovam. Cabe-lhe o comando E o conselho também; leis á vontade Impor aos que se forem sujeitando; E escolher guerra e paz em liberdade.
412 Idem, canto II, estrofe 61, p. 65. 413 Idem, canto II, estrofe 79, p. 69. 414 Idem, canto II, estrofe 82, p. 70 e canto II, estrofe 104, p. 76. 415 Idem, canto II, estrofe 85, p. 71. 416 Idem, canto VI, estrofe 01, p. 173. 417 Idem, canto VI, estrofe 03, p. 173. 418 HANSEN, João Adolfo. “Introdução”. In: PÉCORA, Alcir. Poesia seiscentista – Fênix renascida & Postilhão de Apolo. São Paulo: Hedra, 2002, pp. 27-28. 419 TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 52-53.
157
Os dantes seus parceiros do seu mando Se submetem agora à autoridade. Isto feito, voando corre a fama, E pela voz dos homens se derrama.
Godefredo aos soldados aparece, Que o julgam digno do supremo posto; E as saudações que a multidão lhe tece E o aplauso aceita plácido, composto. Depois de tantas mostras agradece De obediência e amor, sereno o rosto, Decide, mal o dia vindo seja, Que a hoste pronta em largo campo esteja.420
Antes desta aprovação, contudo, os guerreiros cristãos ouviram uma
máxima que lhes ergueu o ânimo, proferida por um ancião de nome Pedro, o Ermita:
Formai um corpo só, o qual sustenham Todos os membros seus, como é preciso; Um chefe nomeai-lhe; e que este o império Exercite no sumo ministério.421
É razoável supor que a conotação orgânica a que incorre tal advertência
ajusta-se à metáfora do corpo místico, pois cada integrante do exército cristão
deveria agir conforme autoridade do chefe que seria escolhido. É a partir deste
conselho que todos optam por se submeter à Godefredo, escolhido por Deus para
guiar as tropas cristãs rumo a Jerusalém. Com placidez, isto é, sem afetação ou
cerimônia demasiada, o herói de bom grado acata a “obediência” e o “amor” de seus
subordinados. Bela conjunção esta, que equipara a obediência à liberdade da ação
reta, e o amor ao laço filial que transcende a pura serventia. O amor, certamente
com conotações platônicas, investe o súdito de um ânimo que ultrapassa qualquer
interesse ou vaidade. Só com amor e obediência seria possível formar o tal “corpo”,
encabeçado pelo chefe, nomeado pelos súditos e escolhido por Deus.
Decerto, os súditos nada fariam caso não houvesse uma política de
benefícios da qual pudessem usufruir. A fidelidade, na épica camoniana, é
recompensada pela obrigação da reciprocidade, isto é, o ato de servir pressupõe
certos benefícios àquele que serve como, por exemplo, em ocasiões nas quais o rei
confia ao súdito uma grande responsabilidade. O aedo d’Os Lusíadas contempla
420 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto I, estrofes 33-34, p. 121. 421 Idem, canto I, estrofe 31, p. 120.
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este lugar comum, recorrendo à tópica da amizade que se estabelece entre o rei
português e o nauta Vasco da Gama, no momento em que este último é designado
para liderar a empresa ultramarina:
E com rogo e palavras amorosas, Que é um mando nos Reis que a mais obriga, Me disse: “As cousas árduas e lustrosas Se alcançam com trabalho e com fadiga; Faz as pessoas altas e famosas A vida que se perde e que periga, Que, quando ao medo infame não se rende, Então, se menos dura, mais se estende. Eu vos tenho entre todos escolhido Para uma empresa, qual a vós se deve, Trabalho ilustre, duro e esclarecido, O que eu sei que por mi vos será leve.” Não sofri mais, mas logo: “Ó Rei subido, Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve, É tão pouco por vós, que mais me pena Ser esta vida cousa tão pequena.”422
Neste episódio, o rei D. Manuel menciona a bravura e a experiência de
Vasco da Gama e, por isso, lhe concede uma missão ilustre. Antes disso, o rei
disserta sobre a necessidade e o valor do “trabalho”, quando visa o bem estar geral:
é esta motivação que, de fato, confere glória e fama aos homens munidos de
princípios, garante o rei. Este é um lugar comum presente, por exemplo, nos escritos
de Hesíodo, quando este afirma: “A riqueza é sempre acompanhada de mérito e
glória. E seja qual for a tua sorte, trabalhar é o melhor para ti”.423 Recorrendo ao
lugar da amizade, o rei concede ao protagonista trabalho “ilustre, duro e
esclarecido”. Estas instruções e o reconhecimento movem o herói que, animoso,
acata as designações prontamente. Ao final, o aedo recorre à tópica da brevidade da
vida, presente, por exemplo, nos textos de Homero, como no caso em que é
retratado o ressentimento de Aquiles perante a sua condição de mortal. Outro
episódio, do qual extraímos o fragmento abaixo, é resultado de uma conversa entre
o troiano Glauco e o grego Diomedes:
[...] Símile à das folhas, a geração dos homens: o vento faz cair as folhas sobre a terra. Verdecendo, a selva
422 Os Lusíadas, 2005, canto IV, estrofes 78-79, p. 141. 423 HESÍODO. Teogonia; Trabalhos e dias. Tradução de Sueli Maria de Regino. São Paulo: Martin Claret, 2010, pp. 76-77.
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enfolha outras mais, vinda a primavera. Assim, a linhagem dos homens: nascem e perecem.424
Havia uma fronteira intransponível que distinguia a condição humana da
condição das divindades: o homem, na épica de Homero, apresenta vida curta,
enquanto os deuses viviam eternamente. Em Camões, este lugar recobra outra
dimensão: a imortalidade da alma, possibilidade cristã de salvação e vida eterna.
Esta finalidade seria alcançada se o vassalo cristão se dispusesse a cumprir seu
legado, definido, legitimado e sugerido pelo rei, representante de Cristo na terra e
detentor de um lugar sacro e hierarquicamente sem equivalência.
O comprometimento dos súditos assegurava a possibilidade de
premiações justas e dignas. A reciprocidade, neste caso, é proporcional aos serviços
prestados em favor da Coroa portuguesa, como ensina Bento Teixeira em sua
Prosopopeia:425
Mas quem por seus serviços bons não herda, Desgosta de fazer coisa lustrosa, Que a condição do rei que não é franco O vassalo faz ser nas obras manco.426
A falta de franqueza por parte do rei que não valoriza a fidelidade de seus
súditos é entendida como indecorosa, pois não cumpre com os protocolos da
reciprocidade. A não premiação, neste caso, seria um repelente contra qualquer boa
vontade que pudesse partir do leitor. São prudentes aqueles que, ansiosos por
ascensão social, servem ao rei; por outro lado, é prudente o rei que estimula e
incentiva a boa disposição de seus subordinados. Tomás de Aquino fala de uma
modalidade de prudência muito particular, que nomeia “prudência de reinar”,427
compatível com o modelo de rei justo ao qual nos referimos. Para cogitar a
possibilidade de uma relação concorde, anseia-se pela manutenção de um “pacto”
político, a partir do qual uma das partes se dispõe a servir perscrutando benesses e
recompensas, e a outra concede honrarias diversas para, assim, obter respeito.
424 HOMERO. Ilíada (em versos). Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, canto VI, pp. 146-150. 425 Ver: LUZ, Guilherme Amaral. Flores do Desengano: Poética do Poder na América Portuguesa (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2013, pp. 121-122. 426 Prosopopeia, 2008, canto XX, p. 129. 427 TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 51-52.
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O pacto político, entretanto, prescreve modos de agir convenientes ao
poder vigente, de tal maneira que as prioridades do monarca se confundem com as
prioridades do herói anunciado. O herói personifica, assim, a vontade do rei, agindo
como braço do mesmo e, inversamente, na ausência do rei, ele encabeça a
hierarquia, sempre atento às prescrições reinóis, pois anseia por reconhecimento e
premiações. O poeta, à sombra deste poder, dispõe lugares hierárquicos e instrui
sobre a maneira prudente de agir, pois se trata de um agir subserviente à Coroa.
Vislumbrar possibilidades de reciprocidade, neste modelo de ação, é antever o que
pode vir a ocorrer e perscrutar com perspicácia as boas oportunidades que,
porventura, surgirem.428
Caberia ao rei, enquanto administrador do Império, cativar e qualificar os
seus súditos e movê-los na direção que lhe convinha: já o súdito deveria ser fiel e
grato ao rei:
Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse A quem ao bem comum e do seu Rei Antepuser seu próprio interesse, Immigo da divina e humana Lei. Nenhum ambicioso, que quisesse Subir a grandes cargos, cantarei, Só por poder com torpes exercícios Usar mais largamente de seus vícios;429
A estrofe acima trata do súdito que quebra o “pacto”, pois retrata alguém
que privilegia suas ambições e abandona o bem comum e a lealdade ao rei. Em
decorrência desta atitude, este súdito se torna inimigo da lei divina e da lei civil. A
fidelidade, portanto, é avaliada como escolha prudente e legítima. A vaidade, por
outro lado, é tratada como ilegítima e própria daqueles que se encontram ou se
colocam à margem do poder legitimado. Como observa Camões, a vaidade leva o
indivíduo a ser inimigo da “divina” e da “humana” lei. Isto nos remete a uma
passagem trágica da Antígona, de Sófocles:
Destaca-se a prudência sobremodo Como a primeira condição Para a felicidade. Não se deve Os deuses ofender em nada. A desmedida empáfia nas palavras
428 Ver: LUZ, Guilherme Amaral. Flores do Desengano: Poética do Poder na América Portuguesa (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2013, pp. 33-56. 429 Os Lusíadas, 2008, canto VII, estrofe 84, p. 221.
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Reverte em desmedidos golpes Contra os vaidosos que, já na velhice, Aprendem, afinal, prudência.430
Sófocles contrapõe as leis humanas, defendidas pela heroína Antígona, e
as leis da pólis, protegidas pelo então governante Creonte. O embate é resultado de
uma iniciativa da protagonista, que decide enterrar seu irmão Polinices contra a
vontade do líder político. Este, que representa o Estado e lhe devota cega
obediência, tende a suprimir as vontades particulares da Antígona em prol das leis
positivas. Ambas as personagens, no caso, delinquiram: uma por desafiar as leis do
homem, e outra por desconsiderar as leis divinas. Ambas foram igualmente punidas:
Antígona foi enterrada ainda com vida e Creonte foi responsabilizado pelo suicídio
do filho Hémon, noivo da Antígona, e de sua mulher Eurídice, que culpou o
governante pelo trágico destino do filho.431 Sendo assim, aquele que antepõe seus
interesses privados acima da lei do Estado e/ou da lei divina acaba por se exceder,
ainda que a Antígona, ao contrário de Creonte, não tenha incorrido em hybris: se
Sófocles prescreveu os castigos da pena de morte e da perda de entes queridos,
Camões reiterou o esquecimento como consequência de atitudes igualmente
imprudentes, que desmerecem louvor, fama, glória e, sobretudo, salvação.
O amor:
Um dos episódios mais conhecidos d’Os Lusíadas trata das desventuras
pelas quais passou a personagem Inês de Castro, amante do príncipe Pedro. Após a
430 SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 68. 431 Pierre Aubenque nos lembra: “o crime de Creonte, o que constitui sua ‘desmesura’, certamente não é ter preferido sua cidade à suas afecções (pois isso nunca foi crime para os gregos), mas, ao recusar sepultura a seu inimigo morto, o de ter ultrapassado os poderes do homem que se detém diante das portas da morte. A culpa de Creonte foi ter querido substituir os deuses para solucionar um problema humanamente insolúvel. Ao fim da tragédia, é um Creonte mal arrependido que vai lançar ao coro uma última réplica e dar lugar ao mais belo hino jamais escrito em louvor à prudência”. Em relação à passagem da Antígona, que retomamos na página anterior, Aubenque levanta algumas diretrizes que atravessam a lição ensejada: “fazer o melhor a cada passo, se preocupar com as conseqüências previsíveis, mas deixar o imprevisível aos deuses; suspeitar das ‘grandes palavras’, que não são somente vazias, mas perigosas, quando se pretende aplicá-las sem mediações à realidade humana que talvez não esteja predestinada a ceder-lhes; não rivalizar com os deuses na possessão de uma sabedoria sobre-humana, que rapidamente se revela inumana quando pretende impor conclusões ao homem. É tudo isso, que não se aprende senão com a idade e a experiência, que a tragédia já chamaria phronein”. AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, pp. 260-261.
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morte de seu pai, D. Afonso IV, Pedro tornou-se imperador de Portugal (1357).
Quando trata desta matéria, o aedo enumera as características do amor:
Tu, só, tu, puro amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga, É porque queres, áspero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano.432
O poeta prepara o leitor para uma narrativa de cunho trágico e, por isso,
relaciona o amor à tragédia, atribuindo a ele adjetivos como “áspero” e “tirano” e
chamando a atenção para a sua dimensão irracional. Torquato Tasso, em Jerusalém
Libertada, retrata esta mesma dimensão ao dizer:
Debalde! Amor aconselhar que importa? Para a prudência nunca ouvidos teve.433
O amor pode atrelar-se, ainda, ao esquecimento: na Odisseia, o amor
muitas vezes impediu a consecução do retorno de Ulisses a Ítaca. Harald Weinrich
retoma dois episódios significativos a esse respeito: o primeiro, localizado no décimo
canto, narra as aventuras de Ulisses e de seus homens nas terras desconhecidas da
deusa Circe. Antes de transformar os emissários do herói em porcos, Circe deu a
eles uma bebida enfeitiçada, que causava o esquecimento. Quando os emissários
bebem da “droga do esquecimento”, deixam de priorizar o retorno e os laços de fides
com seu comandante. Ulisses resiste ao encantamento graças a um antídoto cedido
por Hermes, mensageiro dos deuses. Desta forma, ele pôde convencer a deusa a
conferir forma humana novamente aos seus companheiros. Não obstante tenha se
livrado do encantamento das drogas, Ulisses logo seria vítima de outro, mais eficaz
e contra o qual não há antídoto: o amor. O herói fica na companhia da deusa
durante um ano, período no qual deixa de priorizar o retorno. O estímulo dos amigos
é que confere ao amante novo fôlego para consecução do nóstos.
No segundo episódio, Ulisses enamora-se de Calipso, ninfa repleta de
artimanhas. Também neste caso, o amor separou o herói do retorno durante sete
432 Os Lusíadas, 2008, canto III, est. 119, p. 110. 433 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto V, estrofe 78, p. 226.
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longos anos. A ninfa chega a oferecer a ele o néctar e a ambrosia, elementos
associados à imortalidade. Tornando-se imortal, Ulisses esqueceria todos os laços
terrenos. Mais uma vez Hermes, a mando de Zeus, comunica a Calipso os intentos
do deus patrono de deixar o herói partir. Poseidon, desaprovando a intromissão de
Zeus, lança uma tempestade que destrói a balsa do herói. É assim que Ulisses
acaba chegando à terra dos feácios, local onde narra estas duas peripécias
aludidas.434
Ora, o que é a vaidade senão a expressão corrente de um amor próprio
em demasia? O que é a paixão cega senão um mal irracional e, portanto, destituído
de comedimento? Entretanto, o que seria da fidelidade não fosse o amor nutrido
pelo outro? Haveria sacrifícios, não estivesse o amor presente no peito dos heróis?
No Banquete, Platão assegura que “às ações vis e desonestas se liga a
desonra e às boas ações está ligado o amor”.435 Em seguida, ele assevera:
Se fosse possível formar, por algum modo, um Estado ou um exército exclusivamente composto de amantes e amados, assim se obteria uma constituição política insuperável, pois ninguém faria o que fosse desonesto, e todos, naturalmente, se estimulariam para a prática de belas coisas.436
No primeiro caso, o amor institui a bondade. No segundo, ele fundamenta
uma constituição política adequada. Além disso, há que se considerar o ato do
sacrifício, pois, segundo Platão, “só o fazem os que verdadeiramente amam”.437
Na Ética a Nicômaco, Aristóteles discorre sobre a amizade associando-a
ao amor. Para tanto, ele escreve sobre três espécies de amizades: duas delas são
acidentais, pois uma volta-se para a utilidade e a outra para o prazer. A terceira
modalidade, entendida como a mais perfeita, fundamenta-se em uma relação
recíproca estabelecida entre homens igualmente dotados de virtude. Esta é a mais
perfeita relação porque se baseia no amor incondicional e durável. Desta forma, “os
inferiores serão amigos em vista do prazer ou da utilidade”, ao passo em que os
homens de bem “são semelhantes entre si por serem bons”.438 Esta última
434 Ver: WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 34-37. 435 PLATÃO. Apologia de Sócrates; Banquete. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 1999, p. 103. 436 Idem, p. 104. 437 Idem, ibidem. 438 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro VIII, IV, p. 180.
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modalidade deve reger e fundamentar um modelo político baseado na monarquia.
Aristóteles afirma que o monarca “faz bem aos seus súbditos, na medida em que,
sendo bom, olha por que eles vivam bem, tal como o faz o pastor com os seus
rebanhos de cabras. Daí também que Homero chame a Agamémnon ‘pastor de
povos’”.439
A disposição do governante para com os seus governados reflete uma
relação baseada no amor. Ele se volta para o bem comum ao contrário dos
vaidosos, como preconiza o próprio Aristóteles:
Nós criticamos as pessoas que se amam a si próprias dizendo delas depreciativamente que estão “apaixonadas por si próprias”. Também parece que o vil faz tudo por paixão por si, e quanto mais depravado for, tanto mais está apaixonado por si – há queixas contra ele por não ser capaz de fazer nada que se desvie do seu interesse. Mas o que é excelente age em vista da nobreza da ação e quanto melhor for a pessoa, tanto mais age com esse objetivo em vista. Age em vista do si de outrem amigo, deixando o seu próprio si de lado.440
Não é por acaso que Camões associa a vaidade à tirania, valendo-se da
tópica do “desconcerto do mundo”:
E vê do mundo todo os principais Que nenhum no bem público imagina; Vê neles que não têm amor a mais Que a si somente, e a quem Filáucia ensina; Vê que esses que frequentam os reais Paços, por verdadeira e sã doutrina Vendem adulação, que mal consente Mondar-se o novo trigo florescente. Vê que aqueles que devem à pobreza Amor divino, e ao povo, caridade, Amam somente mandos e riqueza, Simulando justiça e integridade. Da feia tirania e de aspereza Fazem direito e vã severidade. Leis em favor do Rei se estabelecem; As em favor do povo só perecem. Vê, enfim, que ninguém ama o que deve, Senão o que somente mal deseja. Não quer que tanto tempo se revele O castigo que duro e justo seja.441
439 Idem, livro VIII, XI, p. 190. 440 Idem, livro IX, p. 210. 441 Os Lusíadas, 2008, canto IX, estrofes 27-29, pp. 258-259.
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Na primeira estrofe, o aedo afirma ao leitor que a vaidade (Filáucia)
encontra-se presente na maioria dos homens, que acabam desprezando o bem
público em prol de suas vontades particulares. É conveniente lembrar que a
adulação, atributo comumente associado a tais homens, opõe-se à amizade
verdadeira que não se baseia em interesses acidentais. O amor próprio mostra-se
“um terreno de acesso inteiramente propício à investigação sobre nós”;442 o adulador
encontra na vaidade alheia um convite para atuar. Na segunda estrofe, Camões
refere-se à tirania como modelo de governo que não se preocupa com as coisas
públicas e, por isso, encontra-se apartada do Amor divino, que incentiva a caridade
e a pobreza, e não o apego demasiado às riquezas e ao mando.
Há uma passagem digna de nota em Orlando Furioso (1516), de Ludovico
Ariosto. O protagonista, Orlando, passa boa parte da narrativa perseguindo sua
amada Angélica que, no entanto, não lhe correspondia o afeto. A fúria de Orlando,
referida a princípio no título da obra, é a fúria de um amante que se deixa afetar pela
paixão e, por isso, afasta-se da guerra e das obrigações conferidas aos súditos. No
canto XXIII, a loucura do protagonista fica mais explícita devido à revelação de que
sua amada havia correspondido a outro.443 Só ao final da epopeia é que o amigo de
Orlando, Astolfo, vai à lua para reaver o juízo do companheiro. Quando devolve ao
protagonista sua sanidade, este se esquece da amada e, assim, retorna à guerra
contra os “infiéis”. O amor que leva Orlando a desviar-se da razão é similar à atitude
de Eustáquio que, em Jerusalém Libertada, desacata as ordens de seu superior
para participar da escolta de sua amada.444 É necessário lembrar que o alvo de seu
amor era, na verdade, uma mulher repleta de más intenções, que queria desviar os
soldados cristãos do caminho da razão. O amor, neste caso mal direcionado,
desorienta o herói perante a hierarquia política e o cega, pois a prioridade que o
move é tão somente o bem estar da amada.
Aludindo ao poder do amor, Camões salienta:
Mas quem pode livrar-se, porventura, Dos laços que Amor arma brandamente
442 PLUTARCO. Como tirar proveito de seus inimigos, seguido de Da maneira de distinguir o bajulador do amigo. Tradução de Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 27. 443 Ver: ARIOSTO, Ludovico. Orlando Furioso: cantos episódios. Tradução, introdução e notas de Pedro Garcez Ghirardi. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, pp. 255-256. 444 Ver: TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto V, estrofes 80-81, pp. 226-227.
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Entre as rosas e a neve humana pura, O ouro e o alabastro transparente? Quem, de uma peregrina formosura, De um vulto de Medusa propriamente, Que o coração converte que tem preso, Em pedra não, mas em desejo aceso?445
Para pintar os efeitos irresistíveis do amor, Camões refere-se à perícia
destrutiva da Medusa. Na mitologia, o herói Perseu é incumbido de trazer a
Polidectes, rei de Sérifo, a cabeça desta Górgona. Para fazê-lo, ele se vale de
acessórios e instrumentos que acentuam sua métis: um escudo “polido como
espelho” cedido por Atena, para revidar o olhar mortal da personagem, uma “foice
adamantina” fornecida por Hermes, para cortar-lhe o pescoço, sandálias aladas e o
elmo da invisibilidade de Hades, para facilitar-lhe a fuga posterior ao embate, e um
alforje especial para depositar a cabeça da oponente. Como se sabe, antes de ser
transformada em monstro horrendo, a Medusa fora uma linda donzela que ousou
competir com Minerva (equivalente à deusa Atena), incorrendo em hybris.
Interessante o paralelo de Camões que, para pintar o amor, recorre a uma
personagem cujo destino trágico decorre de sua vaidade e do atrevimento em tentar
se igualar a uma deusa (ou mesmo de superá-la).446
Vernant afirma que encarar a face da Medusa é lidar com o “outro”, com
“nosso duplo”, completamente estranho. Trata-se do exercício de uma “alteridade
radical”, efetivada ao “cruzar o olhar com o olho que por não deixar de nos fixar
torna-se a própria negação do olhar”.447 Ver e ser visto pela Medusa inaugura uma
relação de reciprocidade, na qual direcionamos um olhar que retorna, ao
depararmos com “nós mesmos no além”.448 Insiste Vernant:
Ver a Górgona é olhá-la nos olhos e, com o cruzamento dos olhares, deixar de ser o que se é, de ser vivo para se tornar, como ela, Poder de morte.
445 Os Lusíadas, 2008, canto III, estrofe 142, p. 116. 446 Sobre o mito da medusa, ver: HESÍODO. Teogonia; Trabalhos e dias. Tradução de Sueli Maria de Regino. São Paulo: Martin Claret, 2010, pp. 35-36; OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003, livro quatro, pp. 89-101; BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. São Paulo: Martin Claret, 2006, pp. 158-160; PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 18-21; FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, pp. 243-249. 447 VERNANT, Jean-Pierre. A morte dos olhos: figurações do outro na Grécia antiga. Tradução de Clovis Marques. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 105. 448 Idem, p. 106.
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Encarar Gorgó é perder a visão em seu olho, transformar-se em pedra, cega e opaca.449
Nesta circunstância da efetivação da alteridade extrema, entramos em
contato com “a maior das distâncias” e com “o estranhamento mais completo”.450 O
amor descrito por Camões é igualmente fruto da reciprocidade, da alteridade vertical,
isto é, se o olhar fulminante da Górgona nos arremessa para baixo, em direção à
morada de Hades, o amor nos impele às alturas. Se o olhar da Medusa nos
apresenta a morte inevitável, o amor concede-nos vida, daí a contraposição entre a
“pedra”, fim daquele que encara a monstruosidade mitológica, e o “desejo aceso”,
chama viva e densa que interpele o viver conjugal. Neste caso, ser um “vulto de
Medusa” significa apreender seus dotes inquebrantáveis, mas em um novo sentido,
fundamentado nos laços formosos e brandos do Amor. Não seria o amor, neste
caso, fruto igualmente de uma “alteridade radical”?
Voltando ao caso de Inês de Castro, sua morte foi fruto de um amor que,
para a maioria de seus contemporâneos, era proibido e prejudicial:
Tirar Inês ao mundo determina, Por lhe tirar o filho que tem preso, Crendo com sangue só da morte indigna Matar do firme amor o fogo aceso.451
Para impedir que o príncipe Pedro se casasse com uma mulher
castelhana, o que poderia colocar em risco a autonomia de Portugal, o rei, seu pai,
sugere a morte da personagem, insinuação prontamente aceita pela nobreza. No
entanto, a pedido da moribunda, o rei apieda-se e concede-lhe clemência, mas os
nobres não se refreiam e assassinam Inês. É neste contexto que a estrofe acima
retomada faz sentido: o que se tenta fazer é tirar a vida de Inês para, assim, apagar
o fogo do amor que queimava no peito daquele que assumiria o trono português. Na
sequência, o príncipe Pedro torna-se rei e se vinga dos malfeitores que causaram a
morte de sua amada.
Quando é alertado sobre a morte de Pátroclo, Aquiles retorna à guerra em
busca de vingança. O mais forte dos aqueus enfrenta e aniquila o príncipe troiano,
ultrajando seu corpo ao redor do pátio de Tróia. Do amor devotado ao companheiro
449 Idem, p. 103. 450 Idem, p. 104. 451 Os Lusíadas, 2008, canto III, estrofe 123, p. 111.
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morto em batalha desdobra-se a indignação acompanhada de uma necessidade de
saciar o vazio com a atitude vingativa. Príamo, rei de Tróia, adentra com temeridade
o acampamento grego, encontra-se às escondidas com Aquiles e insiste na
devolução do corpo ultrajado de Heitor, para que as honras fúnebres pudessem ser
devidamente prestadas. Se não pôde poupar a vida do príncipe troiano, Aquiles ao
menos refreou sua ira para apiedar-se do rei lacrimoso e conceder-lhe a
possibilidade de enterrar seu filho e principiar o luto de maneira adequada. Neste
caso, a vingança associa-se à explosão apaixonada de Aquiles, que devotava
fidelidade ao amigo através de um pacto de convívio e de gratidão. Na epopeia
camoniana, trata-se de uma ação decorrente da injustiça cometida contra Inês,
pretendente de Pedro.
O amor reforça a constância do agir, reaviva a fidelidade, nutre os
caprichos dos vaidosos, atiça a paixão e, por isso, relaciona-se com a prudência de
formas variadas. Orlando apenas retomou o caminho da constância quando se
“esqueceu” definitivamente da amada. Recobrou o juízo e, então, a fidelidade ao rei.
A arte da prudência, nestes termos, pressupõe o controle das paixões, o que inclui o
amor. Este deve ser regido pela mediania, pois tudo o que envolve excessos
desdobra-se em uma atitude viciosa. É o amor prudente que reafirma a boa intenção
dos poetas quando, com modéstia, salientam a reta intenção que os move a
presentear o dedicatário. O amor garante, portanto, a reciprocidade, assim como
deveria garantir a amizade. É a amizade perfeita que garantiria os laços políticos
necessários para o reforço do bem comum e, portanto, o estabelecimento da
harmonia entre os integrantes do reino. A tópica da obediência, associada ao
sentimento do amor, justifica a boa conduta do súdito, que deveria mobilizar seu
livre-arbítrio em prol do bem comum.
É preciso repensar a afinidade entre razão e ordem, no que tange à
relação estabelecida entre amor e prudência. Não há ordem sem a intervenção de
homens prudentes. Por outro lado, uma amizade forte não sobrevive sem amor, pois
é através deste sentimento que os homens obedecem sem hesitar. O amor sustenta,
portanto, a manutenção da ordem e a produção do bem comum. Se for
desdobramento da imprudência, no entanto, o amor afasta-se da mediania e, por
isso, reproduz a discórdia. A amizade é uma chave de entendimento, pois o amor
ligado a ela deve ser necessariamente recíproco, e é a reciprocidade que sustenta a
169
concórdia estabelecida entre o rei e os seus súditos. O amor, nesta direção, é ora
agente harmonizador, ora o responsável pela discórdia.
Recordemos a referência ao Cupido que Camões faz no canto IX de sua
epopeia. Esta personagem, conquanto utilize de suas setas para atiçar e seduzir os
homens, nem sempre mira com a prudência devida:
Destes tiros assim desordenados, Que estes moços mal destros vão tirando, Nascem amores mil desconcertados Entre o povo ferido miserando; E também nos heróis de altos estados Exemplos mil se vêm de amor nefando, Qual o das moças Bíbli e Ciniréia, Um mancebo de Assíria, um de Judéia.452
As alusões presentes neste trecho referem-se a personagens
emblemáticas: como é indicado nas notas da edição, Bíbli apaixonou-se pelo irmão,
Ciniréia pelo pai, Antíoco, o “mancebo de Assíria”, pela madrasta, e Amnon, “de
Judéia”, filho de David, se apaixonou pela irmã. Admite-se, então, uma faceta
nefasta do amor, que propulsiona relações “contra a natureza” e, portanto,
heterodoxas.
Mais tarde, Camões vai tratar do episódio da Ilha dos Amores, no qual
Vênus, auxiliada pelo filho, atiça o amor das Ninfas e Nereidas, para que estas
seduzissem os nautas portugueses. Repleto de alegorias, o episódio evidencia o
significado de tal sedução, afirmando que estas entidades mitológicas
personificavam a fama e a honra dos nautas lusitanos que, após a efetivação de
ações heroicas, acabam sendo imortalizados na memória. Cupido atende aos apelos
de Vênus: os lusitanos unem-se às deidades e, assim, a memória de seus feitos
torna-se matéria poética legada à posteridade. No entanto, para além desta faceta
do amor evidentemente marcante na epopeia, a deusa Tétis apresenta à Vasco da
Gama a “máquina do mundo”, tópica associada à cosmografia de Ptolomeu. Gama
tem uma visão privilegiada dificilmente concedida aos mortais, testemunhando os
fundamentos da revelação divina. Camões, no entanto, assevera:
Vês aqui a grande máquina do Mundo, Etérea e Elemental, que fabricada Assim foi do Saber, alto e profundo,
452 Os Lusíadas, 2008, canto IX, estrofe 34, p. 260.
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Que é sem princípio e meta limitada. Quem cerca em derredor este rotundo Globo e sua superfície tão limada, É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende, Que a tanto o engenho humano não se estende.453
O discurso platônico estabelece uma hierarquia de dimensões relativas ao
amor: amor às formas físicas belas, à beleza da mente, à ética, às instituições
(relativas ao governo e ao modo de governar), à ciência (responsável pela harmonia
e ordenamento do universo) e, por fim, à beleza em sua essência (ligada às
realidades superiores do universo, à visão do sol tematizada na alegoria da caverna
presente no livro VII da República). É nesta dimensão que o amor oscila entre a
mortalidade e a imortalidade, daí o Eros platônico não poder ser nem homem, nem
imortal. Todas estas dimensões do amor devem ser consideradas, pois o que Vasco
da Gama encontra não é outra coisa senão o “sol” da alegoria platônica transmutada
nas verdades da revelação cristã. O amor com as ninfas, no caso, seria o primeiro
estágio de um sentimento que ascende significativamente.
A ética cristã demarca a conduta dos portugueses durante toda a
narrativa. O amor pelas coisas perecíveis é substituído pela caridade e, portanto,
pelo desapego aos bens mundanos e apego às coisas elevadas. É o bem comum
que, dentre outras coisas, guiam os portugueses rumo ao estabelecimento da
concórdia e da harmonia mística do corpo político. A trajetória heroica leva,
inevitavelmente, à ascensão do herói que, assim, completa o percurso da vida e
obtém a imortalidade que lhe é devida, na forma não apenas de memória perene,
mas salvação, marcada pelo rompimento dos grilhões da caverna platônica e acesso
irrestrito às verdades providenciais.
Assim, seguindo mais ou menos a linha argumentativa evidenciada no
livro III e, sobretudo, no livro IV d’O Cortesão, o amor pode ser entendido como um
“móvel superior”, uma medida de acesso à virtude. Neste caso, a importância não
recai necessariamente sobre o sentimento do amor, mas sim nas motivações que o
amor imputa às suas partes, que tendem à superação e ao aperfeiçoamento das
virtudes, sendo, por isso, um “meio” adequado. O amor, ato da conquista e
manutenção do interesse recíproco, tende a mover a espécie humana rumo à
perfeição, sendo este sentimento devidamente orientado por preceitos prudentes e,
portanto, racionais, a integrar a virtude cortesã. Manuel de Sousa Sepúlveda, de 453 Idem, canto X, estrofe 80, p. 302.
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acordo com um narrador anônimo, é um homem generoso e liberal, pois se incumbe
de alimentar e auxiliar seus homens. Seu destino trágico e os vários trabalhos que
experimenta, portanto, contrastam com seu perfil de fidalgo nobre e cavaleiro.454 O
mesmo ocorre com Fernão d’Álvares Cabral, “fidalgo de muita estimação” no reino,
que enfrenta a desobediência de seus homens e convida-os a voltar à razão. Jorge
de Albuquerque Coelho também é retratado como detentor de liberalidade e
generosidade, que protagoniza uma relação de naufrágio e o poema de Bento
Teixeira.455 Estas duas virtudes partem da “cabeça” do organismo político, como se
pode ver no caso dos três capitães mencionados. Em meio às desventuras
vivenciadas ao longo da travessia, encontra-se, portanto, indícios de uma postura
cortesã motivados pelo amor às partes integrantes do corpo místico português.
O amor próprio e o amor não correspondido entre os deuses
No Naufrágio de Sepúlveda, o Amor ocupa, em algumas ocasiões, papel
análogo ao de Baco na epopeia lusíada, afinal, é ele o responsável pelo crime que
justifica todos os incidentes e infortúnios ocorridos com Sepúlveda e sua família. De
fato, ele seria a transposição semântica do estado de espírito do protagonista, como
adverte Hélio Alves.456 Quando não consegue unir o protagonista e Leonor de Sá em
matrimônio, devido à intervenção do pai da pretendente, Amor recorre à sua mãe,
Vênus, para enfrentar o “torpe, vil, baixo interesse”457 que acabou por contrariá-lo.
Quando descreve d. Leonor, o aedo toma sua beleza como sendo artifício divino:
A branca cor do rosto acompanhada De uma cor natural honesta, e pura E a cabeça de crespo ouro coberta Lembrança do mais alto céu faziam. Praxitheles, nem Phidias não lavraram De branquíssimo mármore igual corpo; Nem aquele, que Zêuxis entre tantas Formosuras, deixou por mais perfeito. Não se igualava a este, antes ficava,
454 HTM, p. 5. 455 Ver: MONIZ, António Manuel de Andrade. A História Trágico-Marítima: identidade e condição humana. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp. 222-229. 456 ALVES, Hélio J. S. Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001, p. 668. 457 CORTE-REAL, Jerónimo. Naufrágio de lastimoso sucesso de perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindo da Índia para este reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. Lisboa: oficina de Simão Lopes, 1594, p. 21.
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Abatido, e julgado e pouco preço. Que mal pode igualar-se humano engenho Com aquilo em que Deus tal saber nos mostra. Da boca o suave riso alegra os ares Mostrando entre Rubis, orientais Perlas, E sobre tudo quanto a natureza Lhe deu perfeito, a graça se avantaja. No peito ebúrneo, as pomas que em brancura Levam da neve o justo preço e a palma Apartando-se, deixam de açucena Alvíssima um florido, e fresco vale. Quem pode (sem perder-se) louvar coisa Onde não chega humano entendimento? Oh fortuna cruel, que fim tão triste Guardaste para uma obra tão perfeita.458
Para Hélio Alves, o poder do Amor paira ostensivamente sobre homens e
deidades do poema de Corte-Real, não se tratando, porém, do amor “universal e
benevolente do cristianismo, mas o amor negativo, cruel e aniquilador da linguagem
do desejo sexualizado”.459 O aedo utiliza vários termos vis para defini-lo: menino
“cruel”, “bravo”, “soberbo”,460 “cego”, “tirano”, “injusto”, “malicioso”, “desleal”, “falso
amigo”, “vingativo”.461 Para perder sua aparência infantil, Amor une-se a seu irmão,
Anteros, e juntos partem rumo à ilha vingativa. O intuito de ambos era proporcionar o
assassinato de Luis Falcão, que deveria desposar Leonor de Sá. Para descrever a
ilha em questão, o poeta esboça um locus horrendus:
Em torno era cercada de fragosa Intratável, ferrenha penedia, Ouvem-se em cada parte aves noturnas Com funesto gemido, e voz carpida. Lá na primeira entrada junto à praia Se faz um aposento entre penedos: Entre cavernas negras onde um fogo Escuro, e negro lume, as carcomia. E na côncava sombra um varão fero Pesado, melancólico, e tristonho: De semblante cruel, de aspecto duro: De olhos sanguinolentos, residia. Grão contrário de Amor, de Amor se aparta Toda coisa amorosa lhe aborrece, Um pestífero ardor lhe abrasa o peito O rosto envolto mostra em cor sulfúrea.462
458 Idem, pp. 5-6. 459 Idem, p. 670. 460 Idem, p. 9. 461 Idem, p. 6. 462 Idem, p. 33.
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Sendo guiados pelo “pesado, melancólico, e tristonho” Ódio, Amor e seu
irmão cruzam com a Ira:
(...) uma brava, fera e alta giganta De semblante feroz e vista horrível Mostra ânimo indignado, que mil casos Pesados e cruéis empreenderia, De bravo aspecto e olhos inflamados Regando-os em veneno, arde em fúria. Alterada, e frenética se move Pela concavidade, e sítio estério, E com uivos e gritos a caverna Retumba com assento, e voz terrível.463
Acompanhados da Ira, seguem rumo ao paço da Determinação, que
apresentava dois rostos, um de aspecto benévolo, gracioso, humilde a afável, e
outro duro, áspero, obstinado e pronto para ocasionar males, trabalhos e perigos.
Optando pela segunda face, a comitiva completa-se e seguem rumo aos aposentos
de Raunusia. Antes da chegada, porém, um ancião de aspecto grave e venerável
intervém, e busca dissuadir o Amor:
(...) torna-te atrás ó cego moço, Não leves mais avante tal intento, Não vás aprisionado, que se fazes As cousas com furor terás fim triste. Não te entregues à cólera que induz Arrebatados ânimos a males, Olha que de tais obras, muitas vezes Sucede vários casos infelizes. O que contigo trazes deixa um pouco: Ficar-te-á libertado, claro o juízo, Que andar acompanhado de ódio e ira Ou uma, ou outra vez corre perigo. A determinação branda não deixes Por essa que te leva a um ímpio caso Olha que o movimento arrebatado Em grandes males é sempre homicida Com desapaixonados olhos anda, Tira deles o véu que a luz impede, Vais por caminho escuro pedregoso: Quem te leva, a um barranco te encaminha. Que esperas de Ódio, e Ira? Que pretendes Da determinação com que vais firme? Pois vais furioso, e cego, já te obrigas Passar pelo rigor de qualquer culpa.464
463 Idem, pp. 33-34. 464 Idem, p. 35.
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O “sábio antigo”, no entanto, não consegue impingir-lhe o bom juízo, pois
o Ódio, a Ira e a Determinação apressavam o Amor, afirmando que os dizeres de um
varão caduco de nada valiam. Deixando para trás os bons conselhos, logo chegam
aos aposentos da fúria:
Os paços de Raunusia fabricados Na boca estão de um longo escuro vale Pelo qual vem correndo com bramido Arrepiado, e medonho, um rio de sangue. Traz a funesta veia cem mil corpos E cem mil rostos pálidos tombando Em represados lagos se sumia Aquele objeto triste miserável. Os altos aposentos rodeados De armas, e vários modos de vingança, Carregado, e mortífero era o sítio: Com sombras e sinais de mau agouro.465
Não há, na caverna, pintura de vivas cores, mas nódoas tristes e “mil
sinais horrendos” espalhados pelas paredes, com memórias de vinganças já
passadas. Ódio, ira, determinação e fúria foram os ingredientes necessários para
efetivação da vingança pela qual tanto ansiava o Amor. A morte do pretendente de
d. Leonor provocou murmúrios e causou indignação, mas “o tempo avaro amigo de
mudanças fez tratável, e brando o duro caso”.466 O poeta utiliza uma tópica de
Cícero para afirmar que nada resiste ao tempo, nem mesmo os grandes males:
Aquilo que antes era espanto à gente, E o que nos assombrou ontem, já hoje Leve o faz parecer brando, e tratável. Não há tristeza grande, que não cure: Não há dor que com ele [o tempo] seja grave Todo o mal, e rigor, toda aspereza Este velho cruel nos torna fácil.467
Tampouco os deuses conseguiam se livrar dos desatinos do Amor. A
cegueira da paixão acomete, por exemplo, o deus Proteu, o primeiro a se deixar
enfeitiçar pela bela Leonor.
Não basta longa idade autorizada Por muita experiência e curso antigo: Nem basta ser prudente para os laços,
465 Idem, p. 36. 466 Idem, p. 40. 467 Idem, p. 41.
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Que o cauteloso Amor, cada hora inventa. Já mil sucessos tristes, já mil mortes: Já mil desventuras, e mil males Profetizei a muitos, mas não soube, Nem pude deste (ah mísero) guardar-me.468
Prole de Tétis e do titã Oceano, esta divindade do panteão grego
integrava o Conselho dos Anciões, em virtude de sua sabedoria e de suas
habilidades proféticas. Como não era de seu agrado revelar os vaticínios aos
mortais, metamorfoseava-se, adquirindo o aspecto de figuras que pudessem
afugentá-los.
Em Prosopopeia, o deus pagão Lêmnio,469 epíteto que designa Vulcano
ou Hefesto, deus olímpico que assenhoreava o fogo metalúrgico, ocupa papel
análogo ao de Baco. Hesíodo, em sua Teogonia, afirmou que Hefesto é “nas artes
brilho à parte de toda a raça do Céu”.470 Homero considera-o um “deus astucioso”.471
Ainda que habilidoso e “notável artista”,472 este deus é retratado como sendo
“coxo”.473 Vernant e Détienne nos lembram: “pernas tortas, andar oblíquo, direção
dupla e divergente”, todos estes traços “evocam de forma insistente o mais famoso
dos ferreiros”. Trata-se de um deus cuja métis “se define em relação ao fogo”, e não
à agilidade.474 Eis como Bento Teixeira o apresenta:
Porque Lêmnio cruel, de quem descende A bárbara progênie e insolência, Vendo que o Albuquerque tanto ofende Gente que dele tem a descendência, Com mil meios ilícitos pretende Fazer irreparável resistência Ao claro Jorge, varonil e forte, Em quem não dominava a vária sorte.475
Personificação da vileza, o deus da forja resiste ardilosamente às
conquistas do protagonista e sua tripulação. Enquanto pai e tutor da barbárie, 468 Idem, p. 62. 469 Este epíteto é utilizado, por exemplo, na Eneida. Ver: VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro oitavo, p. 260. 470 HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de José Antonio Alves Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 157. 471 HOMERO. Odisséia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s/d], canto VIII, p. 140. 472 Idem, p. 141. 473 Idem, ibidem. 474 DETIENNE, Marcel. VERNANT, Jean-Pierre. Métis – As astúcias da inteligência. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Odysseus Editora, 2008, p. 249. 475 Prosopopeia, 2008, canto XLV, p. 138.
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Lêmnio move uma empreitada contra a disseminação da fé cristã. Este deus pode
ser pensado de três maneiras distintas:476 como figura de ornato, ele reforça o estilo
épico; como metáfora, ele personifica e simboliza o infortúnio, a astúcia vil; o sentido
alegórico nos possibilita algumas especulações: em uma das versões mitológicas, o
deus ferreiro foi arremessado do Olimpo pela mãe, Juno, devido à sua aparência
disforme, queda que lhe tornou coxo. Essa deformidade, no texto de Bento Teixeira,
pode indicar uma natureza “coxa” dos pagãos, que manquejavam por
desconhecerem a fé cristã. Por outro lado, consta na tradição cristã que Lúcifer e os
anjos aliados sofreram queda semelhante, por se rebelarem contra Deus: foram
precipitados para o Inferno. Reza uma das vertentes mitológicas, adotada por
Homero, que foi Zeus quem expulsou Hefesto do Olimpo, por tê-lo desafiado:477 esta
versão refina outra analogia possível, frente à inveja e ao desafio que Lúcifer lança
contra Deus. Estas leituras não seriam absurdas em uma sociedade fortemente
cristianizada, como é o caso do Império português nos séculos da expansão
ultramarina. Nos versos que se seguem, há indícios que se afinam a tal leitura:
Na parte mais secreta da memória, Terá mui escrita, impressa e estampada Aquela triste e maranhada história, Com Marte, sobre Vênus celebrada. Verá que seu primor e clara glória Há de ficar em Lete sepultada, Se o braço português vitória alcança Da nação que tem nele confiança.478
Na Odisseia, quando Ulisses se encontrava em meio aos feácios, o aedo
Demódoco cantou os amores pérfidos entre Ares e Afrodite, esposa de Hefesto. Este
último, alertado sobre o incidente pelo Sol, produziu uma “rede artificiosa”, cadeia
inquebrantável para aprisionar os amantes imortais. Após simular uma partida para a
ilha de Lemnos, Ares e Afrodite se aventuraram a caminho do leito do deus ferreiro e
foram capturados pela armadilha. Os adúlteros, movidos pela paixão, foram
476 Ver: MORGANTI, Bianca. A Mitologia n’Os Lusíadas – Balanço Histórico-Crítico. Dissertação (Mestrado). São Paulo: IEL/Unicamp, 2004, pp. 156-171. 477 “Por tentar socorrer a mãe Hera, que brigava com Zeus, foi por este lançado do Olimpo no espaço vazio. O deus caiu na ilha de Lemnos e ficou aleijado. Foi Tétis quem o recolheu e levou para sua gruta submarina”. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. 1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 138. 478 Prosopopeia, 2008, canto XLVI, p. 138.
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expostos diante de todo o Olimpo.479 Esta passagem foi mencionada por Proteu na
estrofe acima.
Em seguida, o poeta trata dos riscos que Lêmnio corria, caso os
portugueses conquistassem a glória: certamente, o deus seria esquecido. Este
esquecimento recobre-se de significados: por um lado, a prole do deus pagão,
conhecendo e se submetendo aos portugueses, abraçaria o cristianismo; por outro,
entendendo que Lêmnio possa representar o demônio, a investida lusitana, em sua
conotação missionária, dominaria e amansaria aqueles que “tem nele confiança”,
isto é, Jorge d’Albuquerque ofereceria a palavra de Deus àqueles que só conheciam
a fama e os ardis do diabo. O aedo recorre, ainda, ao recurso da écfrase para
descrever a aparência de Lêmnio, possivelmente emulando o procedimento adotado
por Camões na descrição do gigante Adamastor:
E com rosto cruel e furibundo, Dos encovados olhos cintilando, Férvido, impaciente, pelo mundo;480
O deus é retratado como um ser repugnante e desfigurado, justamente
por personificar o antípoda do herói. As compleições de Lêmnio podem simbolizar a
essência vil e mortificante do paganismo, do “outro”, daquele que não abraça os
preceitos da fé cristã. Por outro lado, como ocorre na descrição do Adamastor, estes
detalhes certamente estimulavam os afetos dos leitores, frente não somente ao deus
mitológico como também a tudo aquilo que ele representa: o pecado, o paganismo,
a barbárie, a heterodoxia. A écfrase permite que o auditório memorize a devassidão
dos vícios associados a esta personagem, medida esta que presentifica o mal e
delineia fisicamente os seus contornos de imoralidade.
Ao tomar nota da empreitada de Jorge d’Albuquerque contra sua prole de
pagãos, Lêmnio se volta contra ele. Convicto de poder conter o avanço dos
portugueses, que dizimavam e convertiam os seus “filhos”, o deus ferreiro, à maneira
de Baco, persuade o deus Netuno, senhor dos mares, requisitando uma tempestade
que pudesse conter a embarcação do protagonista. Para alcançar seu intento,
Lêmnio pede o auxílio dos deuses marinhos, recorrendo a argumentos soberbos e
vaidosos que reafirmam sua posição entre as deidades pagãs: 479 Ver: HOMERO. Odisséia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s/d], canto VIII, v. 266-366, pp. 139-142. 480 Idem, canto XLVII, p. 138.
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E pôde Juno andar tantos enganos, Sem razão, contra Tróia maquinando, E fazer que o Rei Justo dos troianos Andasse tanto tempo o mar sulcando? E que vindo no cabo de dez anos De Cila e de Caríbdes escapando, Chegasse à desejada e nova terra, E co latino rei tivesse guerra? E pôde Palas subverter no Ponto O filho de Oileu per causa leve? Tentar outros casos que não conto Por me não dar lugar o tempo breve?481
O primeiro canto remonta à Eneida, indicando os infortúnios que Juno
moveu contra as embarcações de Enéias. No segundo canto, ainda emulando o
poeta latino, Bento Teixeira recorre a um dos argumentos que compõem as
conjecturas de Juno, quando se utiliza de seu ardil contra o herói troiano:
[...] Mas não pôde Palas queimar a frota dos Argivos, Submergi-los nas ondas, pela culpa E frenesins d’um só, do Ayax de Oileu? Ela mesma de Jove dardejando Lá das nuves o rápido corisco, As naus destrói, co’o vento empola os mares: E ao mísero que flamas vomitava Do roto peito, n’um tufão o toma, E na ponta o cravou de agudo escolho. E eu, que rainha os imortais precedo, De Jove esposa e irmã, há tantos anos Co’um só povo guerreiro? Quem de Juno Há de mais adorar a divindade, Ou súplice ao altar vítima impor-lhe?482
O deus Lêmnio utiliza-se de uma argumentação similar, quando reafirma
sua “majestade” e seus atributos:
Eu por ventura sou deus indigete, Nascido da progênie dos humanos, Ou não entro no número dos sete, Celestes, imortais e soberanos? A quarta esfera a mim nãos e comete? Não tenho em meu poder os centimanos? Jove não tem o céu, o Mar, tridente? Plutão, o reino da danada gente?
481 Idem, cantos XLVIII-XLIX, p. 139. 482 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro primeiro, pp. 6-7.
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Em preço, ser, valor, ou em nobreza, Qual dos supremos é mais qu’eu altivo? Se Netuno do mar tem a braveza, Eu tenho a região do fogo ativo. Se Dite aflige as almas com crueza, E vós, ciclopes três, com fogo vivo, Se os raios vibra Jove, irado e fero, Eu na forja do monte lhos tempero? E com ser de tão alta majestade, Não me sabem guardar nenhum respeito? E um povo tão pequeno em quantidade Tantas batalhas vence a meu despeito?483
À maneira de Juno, os apelos de Lêmnio recorrem à vaidade, pois ambos
requerem o direito que outro deus usufruiu no passado.
O discurso deste deus, que apela tanto para a tópica da amizade quanto
para o recurso da dissimulação, consegue convencer Netuno e o seu séquito
marinho, que logo administram uma tempestade contra a embarcação portuguesa. O
deus da água atende aos rogos do deus do fogo. É no mar, mais uma vez, que os
infortúnios se desdobram: local das incertezas, do medo, do esquecimento. Sob o
efeito de prosopopeia, a voz do deus ferreiro, que invoca um fim trágico para a nau
de Jorge d’Albuquerque, personifica e manifesta as pretensões do esquecimento.
Nessa perspectiva, sua intenção muito se assemelha ao intuito das sereias, que
oferecem, segundo Hartog, “o esquecimento de uma morte ignominiosa, sem
sepultura, sem marca de lembrança. Ouvindo-as (como se escutasse um aedo
cantar depois de sua morte), o herói perde tudo: o Kléos e o nóstos, a glória e o
retorno. Já está morto”.484 Trata-se, portanto, de uma morte sem glória, avessa à
morte recoberta de glórias cantada pelas Musas arregimentadas por Apolo.485
Há uma estratégia comum, portanto, que equipara os discursos de Baco,
de Lêmnio e de Juno. No entanto, este artifício não remonta somente às alegorias
mitológicas, podendo estar presente em fábulas cristãs, como no caso da obra de 483 Idem, cantos L-LII, pp. 139-140. 484 HARTOG, François. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 47. 485 As Sereias podem ser entendidas como “Musas de baixo” ou “Musas do esquecimento”, pois sua função é minar ou arruinar a economia do kléos. Ceder à atração destas personagens sedutoras seria “ausentar-se para sempre de si mesmo”. “Imortais e isoladas em sua ilha, as Sereias têm apenas como ouvintes suas vítimas: não cantam jamais para os ‘homens do futuro’, diferentemente do aedo inspirado. Pelo canto, não ‘enterram’ os mortos, mas fazem dos vivos desaparecidos. Quem se deixa celebrar por elas na terceira pessoa paga, por esse prazer momentâneo, o mais alto preço”. Ver: HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Organização de José Otávio Guimarães. Tradução de Sonia Lacerda, Marcos Veneu e José Otávio Guimarães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, pp. 28-29.
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Torquato Tasso. No canto IV de sua obra Jerusalém Libertada, Plutão reúne os
demônios para, então, traçar um plano contra os cruzados cristãos. Segue uma
parte de sua palestra perante a comitiva:
E, inertes, nós os dias passaremos, Sem que brioso fogo nos acenda? Que mais se fortaleça sofreremos Na Ásia o seu povo, e que a Judéia renda? Crescer a sua honra deixaremos, E que o seu nome se dilate e estenda? Que soe em novos bronzes esculpido, E em mais línguas e cantos repetido? Que tombem nossos ídolos quebrados? Que a ele quem nos segue se converta? Que lhe sejam os votos consagrados, E o incenso, e o ouro e a mirra haja em oferta? Que dos templos sejamos expulsados, Onde sempre tivemos porta aberta? Que nos falte das almas o tributo, E habite vosso rei um ermo bruto? Porém não; que inda em nós não se extinguiu Esse espírito forte e brio antigo, Que de ferro e de fogo nos cingiu Para atacar o céu, nosso inimigo. Se então tamanho esforço sucumbiu, Foi o valor do grande empenho amigo; Tocou nos mais felizes a vitória; Do invencível arrojo a nós a glória.486
O apelo à vaidade e ao passado lastimoso se faz presente no discurso do
príncipe que impera entre os anjos caídos. Temendo o alargamento do nome de
Deus, ele impele seus subordinados contra os soldados de Cristo. Seus
questionamentos podem ser comparados à argumentação de Baco e de Lêmnio,
pois todos eles representam alegoricamente o “outro”: Baco representa o “mouro”,
Lêmnio o “indígena” e Plutão o “infiel”. Embora as alegorias encenem cenários
distintos e personagens variadas, há um sentido em comum, pois todas elas buscam
resistir à trajetória dos nobres heróis cristãos.
No Naufrágio de Sepúlveda, Amphitrite também age desta maneira
quando, enciumada, requisita a Eolo uma tempestade contra a nau que transportava
Leonor. Primeiro, o aedo ressalta sua simulação:
486 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto I, estrofes 13-15, p. 186.
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No coração lhe ferve uma raivosa Penosíssima dor, quase insofrível. No tristonho semblante mostra claro Avorrecer Lianor sem causa justa: Todo seu pensamento era buscar-lhe Morte, de que ficasse satisfeita. O ódio tem secreto, outro mal finge E com falso acidente a raiva encobre: Fraco semblante mostra, mas no peito Hum gusano cruel a consumia.487
Em seguida, Amphitrite relata seu desgosto:
Saberás rei que a minha honra está posta (ò Deus que ido consentes) em tal termo Com tal abatimento que me fora Muito melhor morrer, que assim ter vida. Das partes orientais no proceloso Reino do meu Neptuno, entrou soberba Uma vã mulherinha assim arrogante Que cuida que em fermosa excede a todas. Com desprezo tratou as minhas Ninfas, E as princesas do mar tão veneradas A mim nem cortesia, nem respeito, Antes sinais mostrou de ter em pouco. Cuidara por ventura ir se gabando Ufana, e de levar de nós vitória Como a leva do triste velho Protheo Que caduca, e não sabe já o que escolhe. Pois enganada está, que se se julga Por mais fermosa, e mais que todas rara, A somenos fermosa das marinhas Ninfas, o He muito mais, muito mais que Certifico-te rei que se não vingas nela. Esta minha desonra que a mim mesma Com minhas próprias mãos me tire a vida Por sempre não viver com tanta mágoa.488
Ao que Éolo responde:
(...) valerosa Princesa, por tão pouco não se aflijas. Nem ponhas em balança a tua beleza Co essa que vale tão pouco, e se presume Igualar-se contigo, terá o pago Conforme ao temerário pensamento.489
487 CORTE-REAL, Jerónimo. Naufrágio de lastimoso sucesso de perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindo da Índia para este reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. Lisboa: oficina de Simão Lopes, 1594, p. 72. 488 Idem, p. 74. 489 Idem, p. 75.
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O fato de Proteu ser renegado por d. Leonor causou indignação em
Amphitrite e, após testemunhar a beleza da pretendente, ela maquina toda uma
sorte de artifícios para tirar-lhe a vida. A deidade fica “torvada, muda, triste, e
pensativa”,490 e passa a alimentar uma dor secreta. Em seguida, fica inventando e
traçando remédio para tal afronta, sem repouso, nutrindo uma fúria injusta. Mais
adiante, o poeta afirma que ela “nunca hum’ora teve mais de repouso”,491 nutrida de
raivosa dor, “quase insofrível”. Ela guarda um ódio secreto, e planeja sua morte. No
semblante ela mostra o “coração triste” e “fraco semblante”, mas mantém a “alma
invejosa” e a vontade de vingar-se.492 Resolve, então, recorrer a Netuno, “Rey
soberbo” ao qual “foi dado dos ventos o poder, mando, e governo”. Para tanto, faz
uma falsa acusação: diz que Leonor de Sá agiu com soberba, presunção, tratando
as Ninfas sem as honras devidas. Após evocar a comitiva de ventos, Amphitrite
recorre a Éolo, que nota seu abatimento, ao que ela diz:
Não te espantes Rei verme diferente, Espantate de verme ainda com vida. Se meu mal não te move a que vigança Me des, eu ma darei de mim, que a honra Perdida me restaure, pois mofina, Mais que todas nasci, mais sem ventura.493
Estes deuses manifestaram e reafirmaram seus atributos no momento em
que foram contrariados pela humanidade. Todos eles requisitaram temporais,
maquinando o fim da ameaça de que foram vítimas. O amor próprio, portanto, foi
suficiente para estimular a prática da vingança, talvez um dos desdobramentos mais
vis do amor mal direcionado ou não correspondido. Este retrato vicioso de um deus
enciumado e violento foi constantemente contrastado com o perfil humilde e leal do
súdito que lhe causou aborrecimentos. Exposto o vício, fica o aedo incumbido de
evidenciar sua contraparte.
A experiência do sacrifício
490 Idem, p. 67. 491 Idem, p. 71. 492 Idem, p. 72. 493 Idem, p. 73.
183
Dentre as histórias que um velho sábio narrou a Pantaleão de Sá no
Naufrágio de Sepúlveda, consta a de um heroi que ele descreve com os seguintes
caracteres:
Um varão forte e leal, de qualidade, De ilustre sangue e antiga geração. No semblante mostrava gravidade, No peito, honrada e alta opinião. Dom Martinho de Freitas se chamava Que a parte do rei Sancho sustentava.494
O aedo ressalta a origem ilustre e menciona algumas virtudes de Martim
de Freitas para, em seguida, discorrer sobre um episódio no qual ele defendia um
castelo do rei Sancho contra a investida do “Bolonhês valente”, D. Afonso III. Devido
à longa duração do cerco, os partidários do heroi começaram a passar fome e a
perder o ânimo. Martim de Freitas, então, convence-os a recobrar a força, mas logo
fica sabendo da morte de Sancho. Em razão disso, ele abre os portões da fortaleza
à investida inimiga, e D. Afonso III, vitorioso, requisita a presença do varão “tão forte,
tão leal, tão valoroso” que assim procedeu. Na sequência, o poeta expõe alguns
juízos:
Quanto devem de ser aborrecidos De todos, os que são mal inclinados! Dos tais em nenhum tempo recebidos Sejam os ímpios votos depravados, Que de um humor diabólico movidos Se mostram ao pior afeiçoados! Se a víbora veneno dá mortal, Os maus que podem dar se não for mal? Os reis que feios casos cometeram Em tempo antigo e lá noutras idades, A causa principal foi porque creram Corações de perversas qualidades. Arrebatados ânimos moveram A mil aborrecidos crueldades, A sem-razões tirânicas, forçosas, A injustiças cruéis e rigorosas. Devem trazer os reis os mais prudentes, Zelosos da justiça e caridade, Longe deles aqueles que presentes Com artifício fingem santidade. Não devem de admitir os diligentes Na triste execução de crueldades,
494 CORTE-REAL, Jerônimo. Poesia. Introdução, seleção, fixação de texto e notas de Hélio J. S. Alves. Coimbra: Angelus Novus, 1998, p. 27.
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Que estes fazem os reis aborrecidos Dos seus, e com mortal ódio temidos. Que os que grandes empresas acabaram, Com sucessos heroicos gloriosos, Não foi por desamor, antes ganharam As vontades dos seus sendo amorosos. Destes, altas empresas cá ficaram Para exemplo dos bons e virtuosos. Lede as antigas mais graves histórias E dos passados reis vede as memórias.495
Estes pareceres foram ditos após D. Afonso III ser aconselhado a matar
Martim de Freitas. Ele, claro, procede de forma contrária, detentor que era de “ânimo
real, justo e perfeito”. O aedo não apenas ressalta a importância da história e dos
exemplos que ela dá a conhecer, como afirma que os reis devem manter perto de si
homens prudentes, justos e caridosos, para agir com retidão e amor. Estes versos
sobre o desconcerto do mundo fazem recordar três oitavas de Camões, dentre as
quais duas já foram mencionadas anteriormente:
E vê do mundo todo os principais Que nenhum do bem público imagina; Vê neles que não têm amor a mais Que a si somente, e a quem Filáucia ensina; Vê que esses que frequentam os reais Paços, por verdadeira e sã doutrina Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florescente.
Vê que aqueles que devem à pobreza Amor divino, e ao povo, caridade, Amam somente mandos e riqueza, Simulando justiça e integridade. Da feia tirania e de aspereza Fazem direito e vã severidade. Leis em favor do Rei se estabelecem; As em favor do povo só perecem. Vê, enfim, que ninguém ama o que deve, Senão o que somente mal deseja. Não quer que tanto tempo se revele O castigo que duro e justo seja. Seus ministros ajunta, por que leve Exércitos conformes à peleja Que espera ter co o mal regida gente Que lhe não for agora obediente.496
495 Idem, pp. 30-31. 496 Os Lusíadas, canto IX, 27-29, pp. 258-259.
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O velho sábio conta a Pantaleão de Sá, também, sobre a investida de D.
Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir. Como anteriormente, ele inicia pintando o
caráter do responsável pela ação:
A Portugal virá um valoroso Rei de ânimo constante e peito ardente, Indómito guerreiro, belicoso, Mui liberal, magnânimo e clemente.497
D. Sebastião, segundo o aedo, apesar das virtudes acima apontadas, não
contava com experiência suficiente para julgar a malícia de seus conselheiros.
Aquele juvenil Rei valoroso, De adulação notória aconselhado, O caso empreenderá tão duvidoso Com forte peito pouco experimentado. De uma alta, heroica fama cobiçoso De esforçados varões acompanhado, Pelas ondas, a remo a vela inchada, Verá em breve a costa desejada. Como perseguirei a fera história Sem lágrimas, sem dor e sem tristeza? Ao mundo ficará viva a memória Da perdição de tanta e tal nobreza. Ver-se-á de Portugal a ilustre glória Com desastrada volta em grão baixeza, Não por falta de peitos belicosos, Mas por culpa de alguns ambiciosos Que mal aconselhando se enriquecem, Que mal quer ser o Rei aconselhado, Os maus intentos destes prevalecem E o que fala verdade é reprovado. Fazem crer que o geral bem apetecem E o seu particular é respeitado. Costume antigo em Reis que sempre aceitam Quem lhes sabe mentir, verdade enjeitam.498
Mais uma vez, alude-se àqueles que, ambiciosos, aconselham mal para
benefício próprio. No caso, foram justapostas duas tópicas: a juventude cobiçosa e a
ambição daqueles que almejam poder, como se pode notar na passagem abaixo:
Olhai que faz a pouca experiência, Olhai que faz um ânimo furioso, Vede o que faz a indouta adolescência,
497 CORTE-REAL, Jerônimo. Poesia. Introdução, seleção, fixação de texto e notas de Hélio J. S. Alves. Coimbra: Angelus Novus, 1998, p. 35. 498 Idem, pp. 36-37.
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Sem prudente conselho proveitoso. Poder-se-á bem julgar naquele dia Com justa razão ser temeridade, Não forte coração, não valentia, Mas uma cega e solta mocidade.499
A derrota não justifica a ausência de memória gloriosa, e o aedo recorre
ao critério do “merecimento” para lamentar a queda dos nobres guerreiros que
tombaram em Alcácer-Quibir:
Não mereciam ser assim tratados Varões tão nobres, fortes e guerreiros, Pois os tempos antigos já passados Nunca deram de si tais Cavaleiros. Podem ser com razão sempre louvados No mundo, podem ser sempre os primeiros Que alcançarão famosa, honrada glória E vivos ficam sempre por memória.500
Por fim, o poeta afirma que o ocorrido afina-se à vontade divina, sendo o
castigo aplicado por Deus “justo” e “merecido”:
Aqui vistes, senhor, em este dia O que se cumprirá como vos digo. Perder-se-á tal e tanta fidalguia E todos perdereis um Rei amigo. E pois que nada enfim cá se desvia Do justo, merecido, alto castigo, Não se mostre nenhum ambicioso Muito mais temerário que animoso.501
Como já se viu anteriormente, as vítimas de um castigo providencial nem
sempre são punidas por seus pecados ou falhas. Além disso, mesmo em situações
“trágicas” como esta, é possível vislumbrar ações nobres das quais ficam memórias
duradouras. É o caso, por exemplo, da ação de Jorge d’Albuquerque Coelho
relatada na Prosopopeia de Bento Teixeira. Este nobre heroi e seu irmão, que
acompanharam o rei D. Sebastião na peleja em Marrocos, deixaram em completo
desconforto o deus e narrador Proteu, que foi afetado pela grandeza destes heróis:
Anteparou aqui Proteu, mudando As cores e figura monstruosa,
499 Idem, p. 38. 500 Idem, p. 41. 501 Idem, p. 42.
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No gesto e movimento seu mostrando Ser o que há de dizer coisa espantosa. E com nova eficácia começando A soltar a voz alta e vigorosa, Estas palavras tais tira do peito, Que é cofre de profético conceito:502
A metamorfose de Proteu ocorria em momentos de aflição, quando o deus
era surpreendido por mortais que buscavam suas revelações proféticas. Na
Prosopopeia, sua angústia não deriva de sua captura, mas sim da matéria que
deveria narrar, virtuoso e trágico ao mesmo tempo. Jorge e Duarte Coelho se
dispuseram a acompanhar o rei D. Sebastião em seu trajeto até o norte de África,
obedientes à hierarquia de valores e eficientes no que se refere ao propósito de
“dilatar” o Império português. Em meio às peripécias da guerra, Jorge d’Albuquerque
testemunhou e protagonizou um episódio singular: a montaria de seu rei tombou,
entregue ao cansaço. O rei, igualmente fatigado, mas inflado em meio à batalha,
encontrou-se desalentado, mas não indefeso, manejando sua espada com fúria e
precisão. O herói, solidário à condição de D. Sebastião, logo cedeu o seu cavalo, e o
rei, em contrapartida, prometeu-lhe recompensas ao término do embate. Não houve
retorno, ao menos para o rei. Jorge, que sobreviveu não sem herdar sérias sequelas,
nada ganhou senão experiência e honra, pois, dentre todos, fora o único a atender
ao chamado do rei quando ele mais precisou. O herói não evita que seu superior
tombe, mas cede sua vida para servi-lo. Esta peripécia, além de instigar a
compaixão do protagonista, tende a despertá-la também no leitor. Jorge
d’Albuquerque dirigiu ao rei português palavras de afeto no momento em que lhe
entrega a montaria:
Vejo-vos co cavalo já cansado, A vós, nunca cansado, mas ferido, Salvai em este meu a vossa vida, Que a minha pouco vai em ser perdida. Em vós do luso reino a confiança Estriba, como em base só, fortíssimo; Com vós ficardes vivo, segurança Lhe resta de ser sempre florentíssimo. Entre duros farpões e moura lança, Deixai este vassalo fidelíssimo, Que ele fará por vós mais que Zopiro Por Dario, até dar final suspiro.503
502 Prosopopeia, 2008, canto LXXIII, p. 147. 503 Prosopopeia, 2008, cantos LXXVI-LXXVII, p. 148.
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Logo de início, duas tópicas saltam aos olhos: a fidelidade e a aceitação
da morte em favor das hierarquias. É notável a brandura do herói, que dispensa um
tratamento repleto de afeição pelo rei, quando ressalta os seus dons bélicos e o seu
preparo físico. Esta característica é sintomática de um momento no qual as batalhas
pela reconquista de territórios situados no norte da África detiveram ampla
repercussão em território português.504 É necessário salientar que o poeta escreve
num momento em que o destino trágico de D. Sebastião já era sabido. Isto torna a
atitude de Jorge d’Albuquerque ainda mais nobre, pois sua tentativa de evitar a
queda do rei também procurou impedir, indiretamente, a perda de autonomia do
Império. Conscientemente, portanto, o aedo estabelece um lugar de prestígio para o
seu herói, que concedeu ao rei uma oportunidade de conservar a coroa lusitana.
O protagonista se coloca em perigo em prol do corpo místico português,
através de sua devoção à cabeça do reino, D. Sebastião. Sua atitude, contudo, não
livrou o rei de um futuro desafortunado, mas este não parece ser o propósito do
aedo: antes, o realmente significativo é a presteza do “vassalo fidelíssimo”, que
lutaria pelo rei até o seu último “suspiro”. Jorge hierarquiza a importância da vida em
paralelo com a dignidade da posição política, quando julga sua vida de pouco valia
se comparada à do rei. Este trunfo atende aos requisitos retóricos de instruir –
através da conduta exemplar e incondicional – mover – valendo-se da compaixão
frente a um ato de sacrifício voluntário – e deleitar – por intermédio do ímpeto
guerreiro do herói. Ao final, em resposta ao feito ilustre do Albuquerque, o rei
“promete, se de tal empresa / Sai vivo, o fará senhor grandíssimo”, ou seja, a
reciprocidade deve ser entendida como resposta direta à lealdade dos súditos que,
neste caso, não foi atendida em razão do “desaparecimento” do monarca.
Sérgio Buarque de Holanda observa que a façanha de Jorge
d’Albuquerque remonta a um lugar comum proveniente das “lendárias gestas da luta
dos povos ibéricos contra o inimigo de sua fé”.505 O episódio protagonizado pelo
herói de Prosopopeia provavelmente não é verdadeiro, como observa Holanda, mas
justifica a atitude do rei, que promete torná-lo “grande” na ocasião de seu retorno.
Sendo verídico ou não, esta passagem amplifica os feitos da personagem e se
504 Ver: HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 29-31. 505 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos da literatura colonial. São Paulo: Brasiliense, 5ª Ed., 1991, p. 34.
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mostra verossímil, na medida em que retrata o engrandecimento decorrente de
ações nobres e prudentes.
Como afirma Aristóteles, o mais belo dos reconhecimentos é “o que
sobrevêm no decurso de uma peripécia”. A união entre peripécia e reconhecimento
“excitará compaixão ou terror” através de uma ação “que produz destruição ou
sofrimento”.506 No caso do episódio mencionado há pouco, provoca-se a compaixão
perante o desamparo do rei e terror frente à possibilidade da morte do herói, que
opta pela manutenção do bem comum, e não pelos temores relativos à vida
passageira. Desta forma, D. Sebastião não pôde efetivar seu retorno, ao contrário de
Jorge d’Albuquerque que, por tentar concedê-lo ao rei, conquista, ele próprio, o
kléos e o nóstos.
A amizade e o amor são, portanto, dois dos pilares que mantêm o corpo
político harmônico e concorde. O relato de naufrágio da nau Santiago menciona uma
passagem interessante: desesperados em busca de salvação, notaram os
mareantes que o batel no qual iam embarcados não suportaria o peso de tantas
pessoas, ao que decidiram lançar ao mar algumas pessoas para, assim, possibilitar
o salvamento da maioria. O capitão Duarte de Melo, embora nutrido de “muito
sentimento cristão”, não enxergava outra maneira de proceder senão esta.
Determinaram lançar fora 17 pessoas, e um dos sentenciados afirmou ser injusto
salvar dois irmãos, Gaspar Ximenes e Fernão Ximenes, homens honrados naturais
de Lisboa. Embora tivessem amigos presentes na nau, a deliberação acabou
privilegiando o argumento do nauta, ao que decidiram lançar Gaspar Ximenes, o
mais velho dentre os dois irmãos. Fernão Ximenes, no entanto, saltou diante do
irmão e, “com o amor fraternal com que o amava”, o tirou das mãos de todos, e não
conseguindo dissuadir os companheiros do veredito, tomou o lugar do irmão. “Foi
esta fineza bem digna de se perpetuar e nunca esquecer na memória dos homens,
onde no amor ficou mais levantada que na amorosa contenda de Pílades e
Orestes”.507
O episódio acima mencionado parte de uma possível referência a três
tragédias antigas: Coéforas, de Ésquilo, Electra, de Sófocles, e Electra, de
Eurípedes. Nas três peças, é possível perceber a grande amizade entre Orestes,
506 ARISTÓTELES. “Arte Poética”. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, livro XI, p. 31. 507 HTM, p. 313.
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filho de Agamêmnon e Clitemnestra, e Pílades, filho de Estófilo e Anaxíbia, irmã de
Agamêmnon. A amizade só foi possível devido a uma tragédia, na qual Clitemnestra
e Egisto, seu amante, tramam e promovem o assassinato de Agamêmnon, quando
este retorna da guerra de Tróia. No caso, Electra, irmã de Orestes, o entrega a um
amigo, temendo maus tratos por parte da mãe e do amante. Quando Orestes se
torna um adulto, ele retorna a Argos com seu amigo para vingar a morte do pai.
Cada uma das tragédias trabalham estes detalhes de maneiras distintas, o que torna
impossível saber a qual delas o relato de naufrágio faz referência. Na versão de
Ésquilo, Pílades é o primo mudo de Orestes, tendo sido ambos criados como irmãos
na corte de Estrófio. Na obra de Eurípedes, Apolo ordena a vingança, e Pílades
manifesta, através de palavras, o valor de sua amizade.508
O irmão arremessado ao mar resolveu nadar atrás do batel, o que fez
durante cerca de três horas, e os mesmos que decidiram arremessá-lo, apiedados
de tanto esforço, resolveram resgatá-lo. Esta atitude de um irmão para com o outro
faz recordar os dizeres de Sêneca sobre a amizade:
Mas nada agrada tanto à alma como uma amizade fiel e doce. Que felicidade a de encontrar corações aos quais se possa sem temor confiar quaisquer segredos; consciências, que nos temem menos do que a nossa; companheiros, cuja palavra acalma nossas inquietações, cujos conselhos guiam nossas decisões, cuja alegria dissipa nossa tristeza e cuja vista seja para nós um prazer!509
Este alerta procura assegurar a tranquilidade da alma e a concórdia da
pátria, que deve ser estendida a todo o universo, “a fim de oferecer à virtude o mais
amplo campo de ação”.510 Cícero entende a concórdia de maneira análoga:
Assim como os sons despertados nas liras e nas flautas, combinados com o canto e a voz, produzem um conjunto harmônico que agrada ao ouvido inteligente, ao passo que as dissonâncias o incomodam, assim também um Estado, prudentemente composto da mescla e equilíbrio de todas as ordens, concorda com a reunião dos elementos distintos; e o que no canto é chamado pelos músicos de harmonia é, no Estado, a concórdia, a paz, a união, vínculo sem o qual a República não permanece incólume, do mesmo modo que nenhum pacto pode existir sem a justiça.511
508 Ver: MARTINS, Rafael Chaves. Pílades e Horácio: o valor da amizade em Hamlet e em Orestes. Disponível em: http://www.pucrs.br/edipucrs/online/IXsemanadeletras/lei/Rafael_Chaves_Martins.pdf. Acesso em: fevereiro/2013. 509 SÊNECA, Lúcio Aneu. Da tranquilidade da alma. Tradução e notas de Guilio Davide Leoni. In: Os pensadores. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 403. 510 Idem, p. 399. 511 CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Tradução e notas de Amador Cisneiros. Livro primeiro, XVI. In: Os pensadores. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 337.
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No caso da sociedade portuguesa dos séculos XVI-XVII, a concórdia
poderia ser pensada como “coincidência da vontade de todos quanto ao fim do
corpo político”512 e também como tranquilidade da alma e regramento das vontades
para que seja possível a efetivação plena do amor.513
A bela morte
Na Ilíada, Aquiles alcançou uma morte heroica e bela. Indignado com a
sua condição de mortal, ele desejava uma maneira de vencer a finitude e, antes de
partir para o cerco de Tróia junto aos aqueus, recebeu uma importante advertência
de sua mãe, Tétis: caso fosse para a guerra, conquistaria a glória que tanto
desejava, mas pagaria com a vida; se não partisse com os gregos, viveria uma longa
vida e seria vítima do esquecimento. O herói optou pela guerra, diante da tentação
de vencer a condição de mortal. Do ponto de vista humano, Aquiles era reconhecido
por portar uma força descomunal, que o fazia se destacar nos conflitos bélicos; do
ponto de vista das deidades, no entanto, era um ser vulnerável, de vida breve. A
condição de mortal foi o principal artifício e estímulo para que Aquiles entrasse na
guerra.514
Heitor foi retratado como herói “defensivo”, que protegia seus domínios e
sua família. Ao contrário de Aquiles, varão solitário que lutava para perpetuar sua
fama, Heitor lutava pelo pai, esposa, irmão, filho. Sua trágica derrota, conforme
Vernant, se deu a partir do momento em que ele se isolou, lutando frente a frente
com Aquiles.515 Sua heroicidade dependia da união, da coletividade. Ao se colocar
nas mesmas condições que Aquiles, herói sem escrúpulos movido pela sede de
vingança, ele cavou sua própria sepultura. Heitor, defendendo sua timé (honra),
aceita o desafio, ao ser ludibriado pela deusa Atena que, assumindo a forma de um
dos filhos de Príamo, estimula-o a lutar, prometendo-lhe ajuda no campo de batalha.
Envergonhado pela morte de Pátroclo, Heitor sela seu destino. Aquiles vence e,
após a vitória, ata o corpo de Heitor ao seu carro de guerra e arrasta seu corpo para
humilhar os troianos que assistiam ao duelo. Heitor só obteve uma bela morte
512 HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, São Paulo: Ateliê Editorial, Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 267. 513 Ver: LUZ, Guilherme Amaral. Flores do Desengano: Poética do Poder na América Portuguesa (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2013, pp. 39-40. 514 VERNANT, J. P. Entre Mito e Política. São Paulo: Edusp, 2002, pp. 10-12. 515 Idem, p. 385.
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quando seu corpo foi recuperado pelo rei. A morte de Aquiles, ao contrário, não se
mostra trágica, pois ele optou pela morte prematura por escolha própria.516
Aristóteles adverte-nos: “será chamado corajoso o homem que se mostra
destemido em face de uma morte honrosa”.517 Esta morte honrosa, quando acomete
heróis portugueses, recobra uma nova configuração:
Estava no castelo de Faria Um português leal digno de glória, Nuno Gonçalves é que residia Nele, como ficou por clara história. E vendo que o Sarmiento já vencia: Inda que era sangrenta a sua vitória, O castelo deixando a bom recado, Entre os seus cavaleiros vem armado.518
Nuno Gonçalves foi feito prisioneiro pelos castelhanos. Imaginando que o
filho entregaria o castelo sob sua guarda caso ameaçassem a vida do pai, este
herói, com dissimulação, pediu a Sarmiento que o enviasse à fortaleza para levar um
recado ao filho, requisitando sua rendição. Quando chegaram à muralha do castelo,
o discurso que proferiu surpreendeu a todos:
Já sabeis filho meu como jurei A el Rei nosso senhor com grão firmeza E a homenagem, e fé sincera lhe dei, De guardar esta sua fortaleza. O acontecimento mal não suspeitei, Em que agora me vejo em tal baixeza, Nas mãos de meus inimigos vencedores, Por terem mor poder, forças maiores. Por benção paternal filho vos mando, Que o castelo del Rei o defendais, Nenhum pacto sobre isso aqui aceitando: Mas antes o inimigo resistais. Ainda que do feroz contrário bando Aqui fazer pedaços me vejais, Estai firme, constante, estai seguro Que menos é morrer que ser perjuro. A el Rei de Portugal nosso senhor O entregareis, e a quem ele mandar, Não vos mova de mim piedade, ou amor. Nem tormentos que aqui me vejais dar. Passarei levemente a morte e a dor: Pois imortal a fama há de ficar, Guardai minha homenagem prometida Que eu quero, e estimo mais, que a própria vida.519
516 Ver: idem, pp. 381-388. 517 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 69. 518 P. 145.
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Firmeza, sinceridade e fidelidade são virtudes que caracterizam Nuno
Gonçalves, que pediu ao filho constância não apenas para resistir à ofensiva
inimiga, mas para assegurar a fama imortal do pai, em razão de seu sacrifício.
Contrariamente a este exemplo de nobreza, muitas vezes os soldados
portugueses se deixavam dominar pelo medo, pela covardia e pela inconsideração,
como ocorre em um dos episódios de Os feitos de Mem de Sá, de Anchieta:520
Fossem mais crentes os colegas, mais viris os seus braços, fervesse-lhes no peito um sangue mais quente, acompanhassem sempre, lado a lado, o seu chefe, e esse dia marcaria a ruína desses feros selvagens, atirando-os para as sombras eternas do inferno. Mas, ai! que imensa é a humana inconstância! Estes, mais aqueles começam de vacilar, vai-os prendendo pavor covarde, cada vez maior, ao verem que a onda dos índios cresce, já recuam e se furtam à luta, esgueirando-se insensivelmente, esses covardes sem nome. Tornam às naus, desligando da margem as barcas. Abandonam o chefe, que ignora esse ato de infâmia, entre poucos companheiros, o furor da pele renhida.521
O aedo, como que consternado, instrui-lhes com severidade:
Para onde fugis, desgraçados? que medo vil vos assalta o coração sem brio? que inimigo estais perseguindo tão à pressa? Já não vos movem os louros das duas vitórias e as fortalezas que tomastes com a morte de seus defensores? Apavorados de terror indigno, não vos envergonha abandonar assim vosso chefe à fúria dos bárbaros entre tantos perigos, ao peso de tantos trabalhos. Para onde fugis? Sustai o passo! A maior parte dos vossos sucumbe: voltai ligeiros e, ao lado do chefe, valentes destruí o arraial. Para que tanto amor pela vida?522
Temerosos frente à possibilidade da morte em batalha, alguns
portugueses abandonaram o herói, movidos pelo apego à vida e aos prazeres
mundanos. Além do desrespeito à hierarquia, os homens sob o comando de Fernão
de Sá priorizam o “eu” em detrimento do “nós”: perde-se, então, a harmonia orgânica
519 Idem, p. 146. 520 A desconsideração implica um “defeito do reto juízo”, quando alguém “falha no reto julgar por desprezar ou negligenciar os aspectos que se requereriam para dar um juízo reto”. Ver: TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 82. 521 De Gestis Mendi de Saa, 1970, livro I, v. 554-566, p. 113. 522 Idem, livro I, v. 567-576, p. 113.
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do corpo de súditos do rei que deveriam priorizar as realizações do todo, e não as
vontades individuais de suas partes. O desequilíbrio afetivo leva à obliteração do
bem comum e, conseguintemente, coloca a empresa em risco. Este exemplo tende a
demonstrar que a instabilidade pode partir de indivíduos que já integravam o corpo
místico do Império. Além disso, ele auxilia na produção de afetos, na medida em que
sugere que o leitor também pode se deixar levar pela inconstância.
Quando se dá conta da grande superioridade numérica dos indígenas,
Fernão de Sá recua com seus homens a caminho das naus, mas percebem que os
fugitivos tomaram-nas e partiram. Recorrendo a outro símile, o aedo demonstra
como a conduta do herói distava daquela outra, própria dos covardes:
Os inimigos se apinham ao redor e o carregam com gritos de terror e com flechas: não lhes dá a horda descanso, como caçadores à volta do leão que freme asseteado: ele a raivar ruge horrendamente e feroz ameaça com o olhar torvo, ora este, ora aquele, impertérrito rasga com a boca em sangue os corpos que alcança: Eles o apertam, ficam-lhe lanças nas costas, nos flancos à porfia, até que todo roto de feridas sucumbe e a terra treme ao baque dos membros robustos.523
Depois de muita peleja, o filho de Mem de Sá tomba acossado como um
leão. O jovem herói conquista, então, a bela morte, maior graça concedida aos
cristãos:
Ó venturoso moço, prostrado na arena sangrenta depois de devastar valente as hordas selvagens, bela morte juncou teu sepulcro de mil setas e corpos. Não te assediou o peito a fome do ouro nem da vaidade; mas a paixão imensa da glória divina e a honra imaculada de Cristo te imola nesse altar, para que sejam tuas feridas a vida de muitos. Vencido pelo amor da pátria e liberdade dos teus, vergaste a cabeça ante a morte, sob a espada inimiga tombando na juventude em flor, primavera da vida. Sem tremer, desprezaste a terra pelo bem dos amigos, deixaste escapar, pelas chagas abertas, a vida. Grande jovem, eis tua glória! os séculos todos saberão que preferiste morte cruel à desonra de Deus, da pátria e do pai, e que, desconhecendo o temor cobarde, expuseste a vida aos maiores perigos e apagaste, com teu sangue o incêndio da guerra que surgia ameaçador. Lembrar-se-ão os teus Lusos e confessarão agradecidos dever-te tal benefício: graças a tua morte, eles vivem e desfrutam da paz.
523 Idem, livro I, v. 633-641, p. 117.
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Venturoso Jovem, entre os felizes, nas alturas celestes brilha a tua glória irmanada à glória divina. Privado embora do sepulcro teu corpo, escondido embora no seio da terra ou no ventre dos índios, nada se te dá. Fica-lhes esta glória mesquinha, depois que as hordas ferozes com sua imensa ruína juncaram as fortalezas, e com o sangue selvagem encheram o leito do rio, e dobraram as cervizes altivas à força de golpes, e se lhes abrandaram as iras.524
Ao final do livro I, Mem de Sá se deixou consolar pelo fato de que a morte
do filho salvou a vida de vários súditos do rei. O herói, à maneira de Deus, que
enviou Cristo para redimir os pecados da humanidade, sacrificou seu filho por uma
causa nobre.525
À maneira de Fernão de Sá, Duarte Coelho intercedeu pelo bem comum.
Ao avistar soldados lusitanos em fuga durante a batalha de Alcácer-Quibir, o herói
não poupa censuras:
(...) Donde vos is, homens insanos? Que digo: homens, estátuas sem sentido,
Pois não sentis o bem que haveis perdido? Olhai aquele esforço antigo e puro Dos ínclitos e fortes lusitanos, Da pátria e liberdade um firme muro, Verdugo de arrogantes mauritanos; Exemplo singular para o futuro Ditado e resplendor de nossos anos, Sujeito mui capaz, matéria digna Da mantuana e homérica buzina. Ponde isto por espelho, por traslado, Nesta tão temerária e nova empresa; Nele vereis que tendes já manchado De vossa descendência a fortaleza. Á batalha tornai com peito ousado, Militai sem receio, nem fraqueza, Olhai que o torpe medo é crocodilo Que costuma, a quem foge, persegui-lo.526
Duarte faz alusão aos “exemplos” lusitanos do passado, cuja memória
tornou-se perene. Sendo um dos heróis de Prosopopeia, Duarte Coelho anuncia a
existência de outros modelos de conduta, que ele também procurava imitar. Em
seguida, o herói censura os fugitivos, afirmando que eles deveriam refletir a braveza
524 Idem, livro I, v. 660-688, pp. 117-119. 525 Ver: LUZ, Guilherme Amaral. O éthos do aedo e a constituição jesuítica do herói: Anchieta e Mem de Sá. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n° 174, 2008, pp. 35-40. 526 Prosopopeia, 2008, cantos LXXXIII-LXXXV, pp. 150-151.
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e a coragem das personagens que protagonizam a história de Portugal, cuja
dignidade rendeu-lhes reconhecimento póstumo. A fuga dos portugueses, portanto,
era recepcionada como um desrespeito às hierarquias: sendo assim, o protagonista
não apenas se manteve fiel às ordens impostas, como também instruiu seus pares
sobre o melhor caminho a ser seguido. Estas advertências, de caráter didático, são
direcionadas também aos leitores, ou seja, a passagem elucida o quão indignos são
a covardia e o desrespeito, advertindo o leitor sobre as implicações de tais condutas
e sugerindo um caminho inverso, digno de imitação. O herói de Prosopopeia
continua suas asseverações:
E se o dito a tornar-vos não compele, Vede donde deixais o rei sublime? Que conta haveis de dar ao reino dele? Que desculpa terá tão grave crime? Quem haverá que por traição não sele Um mal que tanto mal no mundo imprime? Tornai, tornai, invictos portugueses, Cerceai malhas e fendei arneses.527
As orientações de Duarte Coelho indicam que o desacato às hierarquias
era crime grave e passível de castigos severos. Conhecendo o desfecho trágico da
batalha, o aedo se empenha em retratar bons e maus súditos. As advertências sobre
“um mal que tanto mal no mundo imprime” sugere que a união das coroas ibéricas,
evento decorrente do desfecho da batalha acima, se efetivou graças à traição e ao
descompromisso por parte de súditos que se acovardaram e desampararam o rei
desafortunado. Em Prosopopeia, estas sugestões não foram acatadas (é preciso
lembrar que o destino já estava selado para os participantes desta empresa). O que
se espera, através de um movimento axiológico, é que a audiência pese na balança
uma e outra causa, se instruindo sobre as falhas impostas por uma e as benesses
colhidas por intermédio da outra. Tendo em vista o insucesso de suas asseverações,
Duarte conclui:
(...) Corações efeminados, Lá contareis aos vivos o que vistes, Porque eu direi aos mortos que fugistes.528
527 Prosopopeia, 2008, canto LXXXVI, p. 151. 528 Idem, canto LXXXVII, p. 152.
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Duarte Coelho, à maneira de Fernão de Sá, mostra-se destemido perante
a morte. A aceitação e, neste caso, a premeditação da morte é tópica bastante
recorrente, por exemplo, na épica homérica, na qual a boa morte se dá no ápice da
juventude, em razão de um duelo ou combate: Heitor, para defender a sua honra
(timé), aceita o desafio de Aquiles para um duelo; Aquiles, por outro lado, mesmo
frente às admoestações da mãe, que lhe vaticina um final trágico em Troia, luta por
amizade à Pátroclo, vítima de Heitor. O renome, neste momento, era um recurso
para se combater a finitude humana.529 Jean-Pierre Vernant afirma que “o indivíduo
não é separado do que realizou, efetuou, nem do que o prolonga: suas obras, as
façanhas que executou, seus filhos, sua família, seus parentes, seus amigos. O
homem está no que faz e no que o liga aos outros”.530 Nos exemplos homéricos,
bem como no de Duarte Coelho, herói e morte se familiarizam.531 Frente ao trágico
fim de Duarte, Proteu lança os seguintes comentários:
Ó alma tão ditosa como pura, Parte a gozar dos dotes dessa glória, Donde terás a vida tão segura, Quanto tem de mudança a transitória Goza lá dessa luz que sempre dura; No mundo gozarás de larga história, Ficando no lustroso e rico templo Da ninfa Galatéia por exemplo.532
O prudentíssimo Duarte, modelo exemplar de alma “ditosa” e “pura”, tem
acesso irrestrito à bem-aventurança. Esta premiação é o artifício último concedido
àqueles que, em vida, foram condutores justos e fiéis do corpo místico. As glórias,
neste caso, não garantem apenas uma “larga história”, na qual o herói se converte
em “espelho de virtudes”, mas também acesso à “luz que sempre dura”, à glória
celeste. Duarte lutou até cessar suas forças e ser feito cativo, garantindo a presença
de testemunhas (os soldados que se acovardaram) e morrendo, trajeto trilhado
também por Aquiles, que usufruiu de “larga história”533 graças à sua participação na
529 Ver: VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo: Edusp, 2002, pp. 381-388. 530 Idem, p. 343. 531 Sobre a familiaridade da morte, ver: ARIÈS, Philippe. O Homem diante da morte. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981, vol. 1, pp. 3-31. 532 Prosopopeia, 2008, canto XC, p. 153. 533 Neste caso, a “larga história” é correspondente ao conceito de glória imperecível, tratada por Hartog. Segundo este autor, “há muitas formas de morrer. O herói aceita morrer no combate, ultrapassar as portas do Hades e do esquecimento, contanto que obtenha, em troca, o Kléos, que viva pelo canto do aedo e na memória social. Aquiles, escolhendo morrer diante de Tróia, renuncia ao retorno (nóstos) para os seus, mas ganha, ele sabe, uma “glória imperecível”. Ver: HARTOG,
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guerra de Troia. Produz-se, artificialmente, uma “boa morte” enquanto finalidade
última a ser almejada por homens prudentes: neste caso, ornar a morte de uma
personagem histórica e cogitar a consequente salvação indica um efeito pedagógico,
pois ensina que o destemor e o respeito às hierarquias evita qualquer possibilidade
de morte, enquanto fim, o que sugere um novo início, medida providencial estipulada
àqueles que são merecedores. A aceitação da morte, por parte do herói, não
equivale, contudo, à aceitação dos seus pares:
Mas enquanto te dão a sepultura, Contemplo a tua Olinda celebrada, Coberta de fúnebre vestidura, Inculta, sem feição, descabelada. Quero-a deixar chorar morte tão dura ‘Té que seja de Jorge consolada, Que por ti na Ulisséia fica em pranto, Enquanto me disponho a novo canto.534
Sob o efeito de prosopopeia, Olinda, “coberta de fúnebre vestidura”, chora
a morte do herói. Sua aparência sugere sofrimento, e a ausência de luz projeta
escuridão sobre um infortúnio digno de “pranto”. Esta personificação de um local
amplifica e universaliza o sofrimento do luto perante o afortunado Duarte Coelho. O
choro generalizado é proporcional à universalidade do reconhecimento do herói
sepultado. Algum consolo será prestado apenas quando Jorge d’Albuquerque
ocupar o posto de donatário. O reconhecimento póstumo do herói, portanto, é
garantia de uma vida exemplar e prova a consumação de sua bela morte.
Jorge d’Albuquerque usufruiu do kléos e do nóstos. Duarte Coelho, seu
irmão, não compartilha da mesma sorte, obtendo a fama perene, mas não o retorno.
As axiologias épicas que contrastam a Ilíada e a Odisseia se coadunam na narrativa
de Bento Teixeira, sem deixar de encenar os destinos ruinosos reservados aos
heróis. Vasco da Gama, quando também atinge o kléos na ilha dos amores, não é
privado do retorno, mas Fernão de Sá, assim como Duarte, não regressa ao lar. O
aedo católico não deixa de ressaltar, portanto, o destino trágico e os sofrimentos
decorrentes da finitude humana. Retornamos, portanto, à condição ambígua da
François. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 45. 534 Prosopopeia, 2008, canto XCI, p. 153.
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heroicidade,535 que eleva o homem a uma situação de destaque, mas, no final, nem
mesmo o herói escapa dos desígnios ruinosos reservados à humanidade: a
diferença é que, no caso do herói cristão, há lugares distintos pelos quais se pode
seguir viagem.
A máquina do mundo e o mistério providencial
Eis o que disse Tétis a Vasco da Gama antes de apresentar-lhe a grande
máquina do mundo:
Faz-te mercê, barão, a Sapiência Suprema de, cos olhos corporais, Veres que não pode a vã ciência Dos errados e míseros mortais. Segue-me firme e forte, com prudência, Por este monte espesso, tu cos mais.” Assim lhe diz, e o guia por um mato Árduo, difícil, duro a humano trato.536
Convém assinalar, com Hansen, que Vasco da Gama contempla a “forma
invisibilíssima ou substância metafísica do universo”, que não pode ser apreendida
pela ciência humana.537 O herói é convidado a seguir, com prudência, os passos de
Tétis. Neste caso, a reta razão de Gama é iluminada pela Graça divina. A prudência,
portanto, é possível na medida em que a ação do protagonista adequa-se aos
desígnios da Providência. O mato “Árduo, difícil, duro a humano trato”, de acordo
com Hansen, é uma “figuração que encontramos em textos platônicos dos séculos
XV e XVI”.538 No caso, o mato alegoriza a vida sensível, que é temporariamente
535 Trata-se do princípio teleológico, tratado por Murari Pires. O herói homérico, no caso, se destaca frente aos demais, pela superioridade de sua condição implicada no conceito de areté, categoria definidora da heroicidade. Se, por um lado, o herói se singulariza perante o meramente humano, por outro ele compartilha do mesmo destino conferido aos mortais, determinado pela finitude inevitável. Sabe-se, de antemão, que a condição da imortalidade é apanágio dos deuses e de outras criaturas superiores. Aos heróis, resta o destacamento perante os conflitos bélicos enquanto trunfo a assegurar larga difusão de seus feitos e de seu nome por intermédio da memória. Através do kléos, portanto, o herói “inscreve seu nome na memória que o épos atualiza”. É através desta teleologia que “o heroico viabiliza o modo humano de ser divino”. Há uma reserva a ser feita, no entanto: a honra a ser colhida pelo homem advém de trabalhos e esforços, não constituindo, por outro lado, uma dificuldade ao ser apreendida pelos deuses, que dela faz uso corriqueiro, substanciado no deleite. Por esta razão, a celebração do kléos do herói nos remete à labuta e aos penares a que este se submete. Ver: PIRES, Francisco Murari. Mithistória. 2. Ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 182-194. 536 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofe 76, p. 301. 537 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 184. 538 Idem, ibidem.
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deixada para trás. É possível notar uma aproximação entre este episódio d’Os
Lusíadas e o terceto inicial da Divina Comédia: “No meio do caminho em nossa
vida,/ eu me encontrei por uma selva escura/ porque a direita via era perdida”.539 De
acordo com Vasco Graça Moura, a selva representa os erros e desvios da condição
humana. Há, portanto, um nexo que comunica os dois fragmentos, pois os
protagonistas Dante e Vasco da Gama deixam para trás aquilo que é próprio da
mísera condição humana para participar de outro plano, inacessível aos “errados e
míseros mortais”. Ambas as personagens, com “olhos corporais”, testemunham,
graças à intervenção da Providência, eventos que escapam à “vã ciência”.
A máquina do mundo é um artifício. O termo máquina, do grego mékhané,
designa “qualquer invenção produzida com arte pela inteligência artificiosa, a
métis”.540 De acordo com Hansen, a “forma do universo revelada na máquina do
mundo é artifício do engenho divino, que a gera com razão, doutrina e ordem. A
máquina do mundo é o universo fabricado artificiosamente pelo engenho de Deus, o
autor máximo”.541 Hansen afirma que ela é
finita, como efeito e signo fabricados por artifício divino, mas ilimitada [...] Sua racionalidade atesta que é divina a arte inventada pelo Arquétipo, a pura esfera inteligível, nua, pura e invisível de Deus. Absolutamente indeterminado e inacessível à razão humana, Deus a cerca com seus nove coros de anjos, movendo-a com Amor.542
A máquina reproduzida por Camões é etérea e Elemental: a parte etérea
é celestial, feita da “quintessência imutável e lúcida”; a parte Elemental, por sua vez,
“corresponde aos orbes compostos dos quatro elementos pitagóricos, ar, terra, água
e fogo”.543 Na sua epopeia, Camões retrata os orbes planetários, indica a
complexidade de seu curso, afirma a imobilidade da Terra e discorre sobre os quatro
elementos dos quais ela é feita.
Debaixo deste grande Firmamento, Vês o céu de Saturno, Deus antigo; Júpiter logo faz o movimento, E Marte abaixo, bélico inimigo;
539 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Editora Landmark, 2005, “Inferno”, canto I, vv. 1-3, p. 31. 540 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 185. 541 Idem, ibidem. 542 Idem, p. 186. 543 Idem, ibidem.
201
O claro Olho do céu, no quarto assento, E Vênus, que os amores traz consigo; Mercúrio, de eloquência soberana; Com três rostos, debaixo vai Diana. Em todos estes orbes, diferente Curso verás, nuns grave e noutros leve, Ora fogem do Centro longamente, Ora da Terra estão caminho breve, Bem como quis o Padre onipotente, Que o fogo fez e o ar, o vento e neve, Os quais verás que jazem mais adentro E têm co Mar e Terra por seu centro.544
Estes versos provavelmente foram emulados em Prosopopeia, pois
também aqui são descritos os quatro elementos que configuram o Universo e a
configuração das Estrelas Fixas, tal como foi preconizada por Ptolomeu:
O marchetado Carro do seu Febo Celebre o Sulmonês, com falsa pompa, E a ruína cantando do mancebo, Com importuna voz, os ares rompa. Que, posto que do seu licor não bebo, À fama espero dar tão viva trompa, Que a grandeza de vossos feitos cante, Com som que ar, fogo, mar e terra espante.545
As luzentes estrelas cintilavam, E no estanhado mar resplandeciam, Que, dado que no céu fixas estavam, Estar no licor salso pareciam. Este passo os sentidos preparavam Àqueles que d’amor puro viviam, Que, estando de seu centro e fim ausentes, Com alma e com vontade estão presentes.546
Apropriando-se da cosmologia de Ptolomeu, Camões e Bento Teixeira
aderem-se ao geocentrismo, ou seja, a Terra, esférica e imóvel, é situada no centro
do universo. Em torno dela giram os nove orbes materiais: Lua, Mercúrio, Vênus,
Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Para Ptolomeu, os planetas não reproduzem círculos
perfeitos, mas trajetórias muito complexas que podem ser matematicamente
calculadas. Na sequência, encontra-se o Céu das Estrelas Fixas, mencionado por
Tétis na estrofe 88, e o Primeiro Móvel, que gira e faz mover os outros orbes. Acima
dele, por fim, localiza-se o Empíreo, que é feito de éter imaterial e guarda as puras
544 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofes 89-90, p. 305. 545 Prosopopeia, 2008, canto VI, p. 125. 546 Idem, canto IX, p. 126.
202
almas. A luz que exala “cega o olhar sensível e a razão humana, incapazes de vê-lo
e entendê-lo”.547
Camões afirma a impossibilidade de definir Deus: “[...] o que é Deus,
ninguém o entende,/ Que a tanto o engenho humano não se estende”.548 Dante
Alighieri insistiu nesta propriedade indescritível do Artífice, quando adentrou o último
círculo do Paraíso. O Empíreo, no caso, “é pura Luz intelectual – pois vem de Deus,
Intelecto infinito – plena de Amor infinito, verdadeira Alegria do Bem que transcende
toda doçura”.549 A figura circular que chega aos olhos de Dante e de Camões repõe
a antiga definição de Deus como “círculo infinito e perfeito que tem o centro em toda
parte e a circunferência em nenhuma”.550 Dante, no caso, entende o enigma sem
poder descrevê-lo com palavras. Em Camões, Deus, que também é comparado ao
círculo infinito e perfeito, “desce pelos vários orbes circulares e finitos como Amor da
sua Forma invisibilíssima, que neles participa analogicamente”.551
Torquato Tasso também menciona e descreve o Empíreo, reafirmando a
cosmologia ptolomaica e, provavelmente, emulando a Comédia de Dante:
No empíreo se assentava; além do augusto Orbe que são juízo não governa, Donde tudo compõe e ordena, justo E bondadoso com razão superna, Da eternidade sobre o sólio augusto Com três luzes fulgindo numa eterna. Estão-lhe aos pés, com grande acatamento, Natura, fado, tempo, movimento, E o espaço, e aquela que aniquila e torna Em fumo o ouro, as glórias, a conquista, Como na altura apraz; nem a transtorna A cólera dos homens; não na avista. De resplendor tão vivo Ele se adorna, Que da maior pureza ofusca a vista. Imortais infinitos o rodeiam, Que iguais desigualmente se recreiam.552
547 Idem, p. 187. 548 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofe 80, p. 302. 549 HANSEN, João Adolfo. Notas de leitura. In: ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Tradução e notas de João Trentino Ziller. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2010, p. 36. 550 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 186. 551 Idem, ibidem. 552 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto IX, estrofes 56-57, pp. 328-329.
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Tasso menciona o orbe que o juízo humano não apreende, pois é regido
pela “razão superna”. As “três luzes” aludem à trindade mencionada por Dante da
seguinte maneira: “Ne la profonda e chiara sussistenza/ de l’alto lume parvermi tre
giri/ di tre colori e d’una contenenza”.553 O resplendor que orna o Criador “ofusca a
vista”, afirma o poeta. Nota-se que, tal como Dante e Camões, Tasso utiliza a
metáfora da luz para justificar a impossibilidade de descrever aquilo que a razão
humana não governa. Isto confirma o quão privilegiado foi Vasco da Gama, ao
contemplar as feições da “máquina do mundo”, artifício supremo:
Aqui um globo vêem no ar, que o lume Claríssimo por ele penetrava, De modo que o seu centro está evidente, Com a sua superfície, claramente. Qual a matéria seja não se enxerga, Mas enxerga-se bem que está composto De vários orbes, que a Divina verga Compôs, e um centro a todos só tem posto. Volvendo, ora se abaixe, ora se erga, Nunca se ergue ou se abaixa, e num mesmo rosto Por toda a parte tem; e em toda a parte Começa e acaba, enfim, por divina arte.554
O único meio adequado de figurar a Essência de Deus, “que é
absolutamente sublime, invisível, indizível e impensável, é propor a indefinição da
figura”,555 como faz Dante, Camões e Tasso. Na estrofe 78 do canto X, Camões
adota a definição euclidiana da esfera como “superfície de revolução produzida pelo
movimento da circunferência em torno do diâmetro, movimento que faz que os
círculos cresçam até o meridiano e depois diminuam”.556 Quando Deus se mostra a
Dante e permite que Vasco da Gama testemunhe a máquina do mundo, as luzes e o
esclarecimento são apenas “prefácios de sombra”, ou seja, é impossível aos olhos
mortais entender uma Essência que a razão humana desconhece. A Luz absoluta,
que se manifesta surpreendentemente no canto XXXIII do Paraíso e se apresenta a
Dante como enigma, “ofusca a vista”, nas palavras de Torquato Tasso, e em
553 “E na profunda e clara substância/ do alto lume três círculos vi vir/ de três cores e de uma continência”. ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Editora Landmark, 2005, “Paraíso”, canto XXXIII, vv. 115-117, pp. 884-885. 554 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofes 77-78, p. 301. 555 HANSEN, João Adolfo. Notas de leitura. In: ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Tradução e notas de João Trentino Ziller. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2010, p. 40. 556 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 186.
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Camões “a vista cega”.557 O olhar humano contempla somente aquilo que a razão
consegue assimilar, ou seja, é impossível que um homem consiga desmembrar o
artifício que fundamenta a máquina do mundo, pois “Quem cerca em derredor este
rotundo/ Globo e sua superfície tão limada,/ É Deus”.558
A organicidade da obra de Camões parece, em alguns momentos, se
explicar em retrospecto, ou seja, há passagens iniciais que só entendemos com
propriedade ao final da narrativa. Após falar do Empíreo, Camões discorre sobre
Deus, “que por segundas/ Causas obra no Mundo, tudo manda”.559 Esta causa
segunda muitas vezes é incorporada pelos deuses pagãos. Tétis afirma que a
encenação das deidades mitológicas pretende somente deleitar a audiência. Para
tanto, a deusa nega a si própria quando admite: “eu, Saturno e Jano,/ Júpiter, Juno,
fomos fabulosos,/ Fingidos de mortal e cego engano”.560 A poesia está para terminar,
e a alegoria já não é mais necessária.
A máquina do mundo é finita, sendo um artifício da Providência, mas é
ilimitado por conter informações e revelações que o “olho físico” não contempla a
não ser em ocasiões muito especiais. Virgílio, alegoria da Razão, e Beatriz, alegoria
do amor, orientam Dante rumo à contemplação daquilo que a o ser vivo não pode
apreender e, por isso, os enigmas são parcialmente compreendidos. Da mesma
forma, a Causa Segunda representada pela deusa Tétis convida Vasco da Gama a
contemplar uma imagem artificiosa e, no entanto, invisível à razão humana, que é
passageira. A máquina do mundo, que pode ser entendida como o maior de todos
os artifícios da epopeia de Camões, dissimula o verdadeiro aspecto da Causa
Primeira e, ao mesmo tempo, desengana aquele que a contempla. O Amor orienta
os itinerários do protagonista, a razão ajuda o leitor a “ver” a partir do olhar prudente
do narrador e a ordenação/disposição dos quadros forja uma memória e retrata os
vários estágios da condição humana.
Camões, na esteira de Dante, adotam a concepção ptolomaica, que
tinha sido desmentida pelas navegações do século XV [...] quando Camões termina Os Lusíadas, em 1567, as inovações e a velha fidalguia já tinham sido substituídas pela Inquisição, pela censura intelectual, pela perseguição religiosa e pela mentalidade mercantil. O canto presente faz a apologia do projeto imperial da conquista do mundo pela fé e pelas armas, e,
557 Os Lusíadas, 2008, canto X, estrofe 81, p. 302. 558 Idem, canto X, estrofe 80, p. 302. 559 Idem, canto X, estrofe 85, p. 304. 560 Idem, canto X, estrofe 82, p. 303.
205
simultaneamente, o poeta afirma que vem cantar “a gente surda e endurecida”, na estrofe 145 do Canto X.561
A poesia camoniana precisou passar pela censura inquisitorial e adaptar-
se à ortodoxia então vigente. Os elementos teológicos e políticos que conferiam
sentido à máquina do mundo deveriam ser manuseados com prudência. Hansen
adverte:
A alegoria da máquina é, nesse sentido, um meio poético-metafísico com que Camões figura a alma portuguesa em estado de receptividade extática da unidade invisível do divino. A união sexual dos navegantes com as ninfas aquáticas e a de Vasco da Gama com Tétis alegorizam o casamento de Portugal com o mar. A visão da máquina do mundo alegoriza seu contato extático com o princípio metafísico, o Bem para além do movimento aparente das esferas, que fundamenta e orienta providencialmente a união e a viagem por meio de Vênus, seu instrumento ou causa segunda. Em outras partes, o episódio da máquina do mundo fundamenta o domínio físico do mar e das novas terras da África, da Ásia e da América como domínio físico teológico-político da monarquia católica sobre regiões e religiões gentias e infiéis, divinizando a história de Portugal.562
Quando contemplam o artifício divino através da máquina do mundo,
Dante e Vasco da Gama assimilam a verdade sem poder dizê-la. Quando apreciam
aquilo que a razão humana não pode inventariar, o leitor apreende a pintura poética
sem poder defini-la. Assim como Dante, Vasco da Gama inicialmente presenciou
trevas, infortúnios, labores e perigos. Ao final da trajetória, ambos se afastam da
“selva” que representa a condição humana para participar de um plano Providencial
repleto de luz e esclarecimento. A finalidade que Dante atribui à Comédia, em uma
carta dirigida ao seu protetor Cangrande della Scala, parece orientar também os
itinerários d’Os Lusíadas: “remover os que vivem nesta vida do estado de miséria e
levá-los para o estado de felicidade”.563
As revelações sobre a máquina do mundo só ocorreram ao final da
jornada do herói, depois de ter passado por grandes desventuras. De acordo com
Corte-Real, a Providência comumente age de forma misteriosa:
Quem poderá fugir futuros males, Sucessos desastrados, fins ocultos?
561 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 191. 562 Idem, ibidem. 563 HANSEN, João Adolfo. Notas de leitura. In: ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Tradução e notas de João Trentino Ziller. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2010, p. 11.
206
Ou quem pode alcançar altos mistérios Que a suma providência assim atribui? Com vãos prometimentos nos engana O mundo lisonjeiro, falso e breve: Com fantásticos bens que num momento Trazidos entre as mãos se nos consumem. Enlevados andamos, prometendo Sempre a nosso desejo ledo efeito, E no meio de um mar profundo e largo De pensamentos vãos nos engolfamos. Com próspera esperança, um bem ditoso Afirmamos, nas coisas mais incertas, Sem nos lembrar já mais a ordem tão triste Da nossa humana, fraca natureza. Andemos sobre aviso, e vigiemos: Que o sacro Redentor assim ensina, Pois o dia cruel, e hora tão forte Da furibunda morte não se alcança.564
Priorizar os bens mundanos em prol dos bens duradouros implica ignorar
que, no fim, todos vão ser julgados a partir dos mesmos critérios:
Vede os confusos montes dos defuntos No mundo vede que tudo é possível, Os vulgares, e os nobres vereis juntos Com estrago espantoso, e mal terrível. Neste dia cruel vereis transuntos Desta vida mortal o caso horrível, Que o pobre, o rico, e fraco, e o que é mais forte São todos em geral iguais na morte.565
Após desenganar-se perante as aparências, o mais seguro seria contar
com a intervenção de Deus:
Incerto é o fim das coisas, e o sucesso Do mal, ou bem futuro a nós oculto, Pois temos, por passar tão vários casos: Chamar sempre por Deus é o mais seguro.566
Os mistérios podem ser apreendidos de formas variadas, como deixa ver
o poeta ao discorrer sobre a maneira como o vulgo os concebe:
Assim no céu está determinado Por um juízo altíssimo escondido,
564 CORTE-REAL, Jerónimo. Naufrágio de lastimoso sucesso de perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindo da Índia para este reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. Lisboa: oficina de Simão Lopes, 1594, p. 86. 565 Idem, p. 165. 566 Idem, p. 127.
207
Chamam-lhe os rudes estrela, ou fado, Sorte, ou destino mísero influído. Mas Deus é o que nos põe no ledo estado, Nos abate também no avorrecido, Como quer a sua alta providência, Que nele está o saber, nele a potência.567
Seria próprio do néscio, portanto, levar em consideração as aparências e
perder de vista o verdadeiro bem:
Ó fraca natureza, ó saber fraco De todos os mortais, ó erro cego Que por seguir um vício, perca o homem O bem que só para ele está guardado. Triste miséria humana, que não sente Numa doce aparência, a morte amarga, E em verdes frescas ervas, a serpente Venenosa, e cruel, não vê escondida.568
De um lado, há o altíssimo juízo de Deus, oculto aos olhos, mas manifesto
na história; de outro, a cegueira do vulgo, que enxerga o que lhe apetece e despreza
o bem duradouro. O sacrifício, a boa morte, a vaidade, a cobiça, a caridade... É
possível elencar uma lista infindável de ações, virtudes e vícios orientados pelo amor
(próprio, pelo próximo, por Deus). A poesia parece retirar dos exemplos históricos
e/ou fabulosos os fundamentos ou predicados deste sentimento. Com encômios e
vitupérios, proporciona-se o desengano do leitor. Onde muitos contemplam uma
contradição (epopeia/antiepopeia), poder-se-ia observar a proposta de uma
harmonia cósmica centrada no reto direcionamento do amor e sintetizada
artificialmente no globo da etérea e elementar máquina do mundo.
567 Idem, p. 165. 568 Idem, p. 64.
208
CAPÍTULO 05
Considerações sobre a hospitalidade
A mitologia nórdica indica algumas passagens que valorizam os dons da
hospitalidade. Há, por exemplo, um episódio no qual Odin desafia um inimigo seu, o
gigante Hrungnir, para uma corrida de cavalos. O deus montava Sleipnir, um cavalo
de oito patas muito ligeiro. Gullfaxi, a montaria do gigante, também era incrivelmente
veloz. Durante a corrida, que foi muito acirrada, Odin valeu-se de uma artimanha:
desviou-se do caminho demarcado de modo a atalhar por Asgard, a morada dos
deuses. Por um momento, o gigante se conteve, o que proporcionou ao deus a
vantagem necessária para assegurar a vitória. No entanto, o vencedor admitiu sua
deslealdade e, para compensar o oponente, convidou-o para um banquete em seus
domínios. Hrungnir aceitou o convite e mostrou-se inclinado a exagerar no hidromel,
abandonando qualquer vestígio de prudência. Ébrio, o gigante começou a falar
sobre a futura destruição de Asgard e prometeu poupar Sif, esposa de Thor, e Freya,
a mais bela dentre as deusas, pois elas seriam convertidas nos mais belos espólios
de guerra. Neste momento, Thor chega de viagem e contempla a imagem do gigante
dirigindo suas palavras impetuosas a Sif. O gigante, no auge de sua imoderação,
brada diante do recém-chegado: “Venha, venha logo desfrutar desta jovem dos
encantadores cabelos dourados, pois logo ela mudará de dono!”. Thor, que já erguia
seu martelo Mjollnir, foi contido pela voz severa do pai: “Pare! Não pode matar um
visitante à nossa mesa. Isto seria infringir, gravemente, a lei da hospitalidade a que
todos estamos obrigados!”. Na sequência, o marido ultrajado propôs um duelo, e
Hrungnir não pôde recusar por ter violado todas as leis de cortesia para com seu
anfitrião. Ao final, Thor foi gravemente ferido, mas saiu vitorioso.569
Estudiosos afirmam que a hospitalidade era pensada de uma maneira
muito peculiar entre os povos celtas. De acordo com Korstanje, existam dois
significados mais gerais para o termo: primeiramente, tratava-se de um
procedimento religioso, em que se recebia um peregrino como sendo um enviado
dos deuses. Por outro lado, é possível encontrar uma conotação jurídica, pois a
hospitalidade era uma forma de assegurar o equilíbrio político por meio de pactos e
569 FRANCHINI, A. S. As melhores histórias da mitologia nórdica. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 2004, pp. 169-172.
209
contratos entre diferentes tribos ou clãs. No caso, este dom é pensado menos como
uma “virtude” (no sentido cristão do termo) e mais como uma conduta
institucionalizada, com regras muito bem delimitadas. Existiam até mesmo exceções
que prescreviam a recusa à hospitalidade sem macular a honra, como nos casos de
abusos por parte dos hóspedes. Sendo assim, a própria normatização da
hospitalidade admite algumas exceções.570 Korstanje acredita que existe uma linha
comum entre as línguas indo-europeias no que diz respeito ao termo latino hostis.
Baseando-se nos estudos de Paloma Chamorro, o autor lembra que os termos
inimigo, estrangeiro e hóspede, que para nós remete a significados muito distintos,
se correlacionavam nas línguas indo-europeias, de forma que hostis designava mais
uma situação de “equilíbrio” do que necessariamente de “hostilidade”. Hospes, por
outro lado, designava geralmente a garantia de livre circulação e a obrigação de
prestar serviços em caso de necessidade.
Em seu estudo etnográfico sobre a presença da dádiva entre sociedades
primitivas, Marcel Mauss nota o predomínio de uma tendência à troca e ao
estabelecimento de alianças políticas (no caso de chefes tribais, por exemplo),
religiosas (por meio de hecatombes e ritos cerimoniais), econômicas e diplomáticas
(incluindo-se aqui a prática da hospitalidade). Mauss focaliza tribos, clãs e frátrias da
Polinésia, Melanésia e do Noroeste Americano, problematizando a ambivalência das
trocas, que eram ao mesmo tempo interessadas (em razão de rivalidades, de
disputas políticas, do anseio por prestígio) e desinteressadas (movidas, assim, pela
generosidade, pela honra e pela boa vontade). Por tratar-se de uma obrigação para
com o outro, os atos de dar, receber e retribuir eram termos decisórios no contrato
de acolhimento, seja para iniciar ou preservar os pactos firmados. Em outras
palavras, Mauss percebe que, em decorrência do ato generoso que fundamenta as
alianças, contraia-se também uma dívida, pois a reciprocidade era uma condição
para a manutenção das relações então estabelecidas. Podemos pensar, assim, no
caminho inverso: a recusa da hospitalidade, do presente oferecido, da retribuição,
culminava numa ofensa à honra, que poderia ocasionar uma guerra. A hospitalidade
e a hostilidade, neste caso, não ocupam polos opostos, mas ancoram a própria
edificação do pacto que, em tese, deveria perpetuar-se enquanto houvesse
reciprocidade entre as partes envolvidas.
570 Ver: KORSTANJE, M. E. Las formas elementales de la hospitalidad. In: Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, v. 4, n. 2, 2010, pp. 86-111.
210
Podemos pensar, por exemplo, no caso dos grupos polinésios, dentre os
quais se situam os clãs de Samoa. Existia entre eles um termo de vital importância,
mana, condição do vínculo estabelecido e da autoridade adquirida, por exemplo, por
um chefe político. Neste caso, por basear-se num sistema monárquico, a divisão
hierárquica era muito rígida e, por esta razão, as práticas que permeavam as trocas
não eram tão rígidas quanto às práticas do potlatch, comum no Noroeste Americano.
As tribos de Maori, por outro lado, se aproximavam mais do potlatch, pois os clãs
eram mais isolados e a rivalidade era explícita. Entre os Maori existia um rígido
tratado de hospitalidade, dividido em etapas muito bem estabelecidas: de início, faz-
se o convite. No caso, o hóspede, além de aceitar, não deveria reparar nas
condições econômicas do anfitrião, mas sim na boa vontade e na generosidade de
sua ação. Em seguida, haveria uma refeição portentosa, na qual o anfitrião se
converteria num humilde observador, que se faria presente para garantir a satisfação
do hóspede. Por fim, no ato da partida, o hóspede deveria receber o viático (ou
provisão) para seu retorno.
No caso da Melanésia, as políticas de troca se aproximavam muito do
potlatch, pois as divisões hierárquicas não eram muito nítidas. Nas ilhas de
Trobriand, bem como nas ilhas Massim, situadas a Noroeste da Nova Guiné, era
recorrente o uso do termo kula, traduzido como “círculo”. Kula ancorava a instituição
de trocas, mas não se equiparava ao gimwali, referente às trocas econômicas de
mercadorias úteis. Tratava-se, na verdade, de um contrato que possibilitava a
formação de um vínculo forte, através do qual se demonstrava generosidade e
reforçava a honra das partes envolvidas. O que Mauss busca passar ao leitor não é
a impressão de que existia uma conexão entre estes vários povos, mas de que estas
trocas respondiam a particularidades próprias de cada tribo, clã ou frátria. De fato, a
mana, o kula e o potlatch eram requisitos para a constituição de uma persona, que
deveria apresentar um histórico louvável, sob pena de perder sua honra e, em
decorrência disso, seu posto hierárquico.571
Do latim hospitium, hospitalidade designa o ato de hospedar, o
acolhimento afetuoso. Nas epopeias de Homero e Virgílio, a palavra hóspede 571 PLENTZ, Renata Soares. Hospitalidade: trocas humanas versus trocas mercadológicas. In: Revista Hospitalidade. São Paulo, ano 2, n. 2, pp. 47-68, 2005. LANNA, Marcos. Nota sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva. In: Revista de Sociologia e Política. Curitiba, nº 14, v. 14, pp. 173-194, 2000. LIMA, Maria do Socorro Lacerda. A Dádiva da agressão. In: Espaço Ameríndio, v. 3, n. 2, 2009. MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, com uma introdução à obra de Marcel Mauss, de Claude Lévi-Strauss. Tradução de Lamberto Puccinelli. São Paulo: EPU, 1974.
211
detinha um sentido duplo, pois designava aquele que hospeda e aquele que é
hospedado. Neste caso, é possível distinguir uma espécie de pacto baseado na
philia, termo grego que nos remete tanto à noção de amizade quanto à de amor.
Philoi eram, por exemplo, os membros de um genos, unidos não apenas pelo
sangue, mas também por um pacto de ajuda mútua que deveria ser sustentado
entre familiares. Também eram philoi os aliados políticos, os cidadãos de uma
mesma pólis, os companheiros de armas e, o que nos interessa aqui, os
hóspedes.572 Em um episódio da Ilíada, Diomedes interrompe sua luta contra Glauco
ao descobrir que seus pais estavam ligados pela xenia, caracterizada pela troca de
dádivas e de respeito entre os “contratantes”.573
A partir do momento em que Ulisses, sob as ordens de Agamêmnon,
parte rumo a Troia em respeito ao pacto existente entre eles, a desventura começa a
fazer parte de sua jornada. Dez anos após sua partida, durante seu regresso, uma
sucessão de infortúnios lhe acomete: a oposição do deus Poseidon, em razão do
assassinato de Polifemo; o canto inebriante das sereias; a ação dos Lotófagos, que
oferecem a flor de lotos simulando os dons da hospitalidade; a sedução de Calipso,
que tenta imputar-lhe a hybris (o excesso) ao oferecer-lhe o dom da imortalidade,
atributo divino. A imortalidade e o esquecimento, no caso, poderiam desestruturar o
cosmos: a perda da condição de homem (que o deixaria deslocado, sem lugar, uma
vez que não seria mais humano, mas também não seria um deus) e o esquecimento
da frátria, do genos e de suas origens, poderiam impedir o seu regresso. Após
enfrentar todos estes contratempos, Ulisses ainda encontra resistência em sua
própria casa, onde se encontravam alojados os pretendentes de Penélope, sua
esposa.
Como afirmamos há pouco, Poseidon dificultou o retorno do herói devido
ao assassinato de Polifemo, ciclope que aprisionou Ulisses e doze de seus
companheiros, alimentando-se de meia dúzia deles. A falta de hospitalidade, neste
caso, contrasta com as recepções afetuosas por parte de Nestor574 e Menelau,575
572 Ver: VÁRZEAS, Marta. Amor e Amizade em Sófocles. In: PEREIRA, Belmiro Fernandes; DESERTO, Jorge (orgs.). Amor e Amizade em... Homero, Sófocles, Eurípedes, Platão, Ovídio, Petrônio, Jean Jouffroy. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8322.pdf. Acesso em: 05/2012. 573 Ver: SILVA, Luciene Silva. Héracles e Odisseu: dois pesos e duas medidas da hospitalidade grega. In: Revista Todas as Letras. São Paulo, n. 6, pp. 19-24, 2004. 574 Ao perceber que Telêmaco e Mentor (Atena) pretendiam dormir nas naus, Nestor logo se interpõe: “Zeus me guarde e os outros imortais também de consentir que deixeis minha casa para dormir no navio como se eu fosse um pobretão, carente de cobertores e tapetes. Reservo-os para meu próprio
212
quando Telêmaco, filho de Ulisses, visita-os para saber do paradeiro de seu pai. De
um lado, portanto, há os “homens comedores de pão”, que se dedicam ao labor e se
alimentam da carne de animais sacrificados em homenagem aos deuses. Este é, por
definição, o espaço da sociabilidade, circunscrito ao ambiente da pólis. Por outro
lado, existem seres “marginais”, cujos hábitos são estranhos e heterodoxos. Quando
Ulisses se depara com os Lotófagos, por exemplo, define-se aí um espaço no qual a
agricultura inexiste, assim como limites geográficos precisos. Os habitantes ali são
indiferentes à sociabilidade. Nada de trigo, nada de pão, nada de hecatombes em
homenagem às deidades.576 Este seria o caso de Polifemo que, além de praticar a
antropofagia, chega a zombar do “Zeus hospitaleiro”, quando acolhe os visitantes
gregos com grilhões.
Em outra passagem, Ulisses, que havia chegado a Ítaca disfarçado,
recebeu os dons da hospitalidade a mando de Penélope. A governanta Euricléia, ao
lavar os pés do herói, percebe uma cicatriz na sua coxa e reconhece seu antigo
senhor. Ela é tomada por um alegre sobressalto, mas Ulisses a contém, pois ainda
não era o momento adequado para a revelação. Auerbach afirma que o ato de lavar
os pés é “usual nas velhas estórias como primeiro dever de hospitalidade”.577
Escalado para cumprir os desígnios divinos, Eneias, no livro IV da
epopeia virgiliana, abandona Dido, sua anfitriã e amante, e rompe com os laços de
hospitalidade. Assim, o herói segue o seu itinerário. Desiludida, Dido comete
suicídio, não sem antes conjurar uma reação por parte dos deuses, que haveriam de
vingá-la, haja vista a decepção por que passou. Sabe-se que seus rogos não foram
em vão, pois vários infortúnios dificultaram o itinerário de Eneias e sua tripulação.
Antes de cogitar as motivações de Eneias ao partir, convém recordar que a primeira
a romper com a fides foi Dido, que teme consequências nefastas ao não cumprir o
conforto e para o descanso de meus hóspedes. Asseguro que leitos confortáveis nunca faltam em meu palácio. Enquanto eu viver, o filho de um herói como Odisseu não passará a noite num convés. Meus filhos são herdeiros da hospitalidade a todos que procuram este solar”. Ver: HOMERO. Odisséia, v. 1: Telemaquia. Tradução, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010, canto 3, v. 345-355, p. 81. 575 Eteoneu, um dos servidores de Menelau, pergunta a ele sobre a possibilidade de recepcionar ou não dois estranhos que batiam à porta. O rei Menelau responde-lhe: “Filho de Boeto, caro Eteoneu, não me parecias tolo, mas agora tua conversa me soa infantil. Recorri, ao regressar, à hospitalidade de muitos, homens que nem me conheciam. Zeus nos guarde de contratempos futuros. Desatrela já os cavalos. Que os estrangeiros venham à minha mesa”. Ver: Idem, canto 4, v. 20-36, pp. 91-93. 576 Ver: HARTOG, François. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 33-35. 577 AUERBACH, Erich. Mimesis – A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002, p. 01.
213
seu dever para com Siqueu, a quem estava ligada por um pacto forte. A personagem
se deixa levar pela paixão provocada por Eneias. No entanto, persuadido por
Mercúrio, porta-voz de Zeus, o herói prepara sua partida em segredo. Dido, ao
devotar ao troiano amor e fides, acaba abandonando seu povo, o que alguns críticos
apreendem como sendo um fracasso de sua missão. Se Eneias parte quando vê sua
Tróia sendo consumida pelo fogo, Dido também parte com parcela de seu povo para
fugir da tirania de Pigmalião, rei de Tiro e seu irmão. Em outras palavras, Dido
rompe com a fides devotada a Siqueu, abandona sua missão (o que constitui a
hamartia, isto é, o grave erro)578 em prol da consumação de um amor; Eneias, a
pedido de Zeus, segue sua viagem e rompe com a hospitalidade oferecida por
Cartago para consumar sua missão.579
Talvez um bom caminho para se pensar a fides seja retomando o
conteúdo de uma carta, atribuída a Ovídio, na qual são narradas as últimas palavras
de Dido antes do suicídio. Na carta, são vários os argumentos retóricos utilizados
pela personagem para deter Eneias em Cartago: como nos mostra Márcia Regina de
Faria da Silva, os versos são fortes e demonstram a desilusão de Dido: “Contudo
estás decidido a ir e abandonar a infeliz Dido, / E os mesmos ventos levarão as
velas e a fidelidade? / Estás decidido, Eneias, a soltar os navios com a aliança, / A
perseguir os reinos da Itália, que ignora onde estejam?”. O primeiro argumento,
portanto, fundamenta-se no rompimento da palavra do herói, do pacto entre as
partes envolvidas. Outro comentário, igualmente forte, tem por tema o paradeiro dos
penates, imagens de divindades adoradas geralmente em âmbito privado, que
Eneias salvara de Tróia: “A onda submergirá os deuses arrebatados dos
incêndios?”.580
No desfecho da epopeia, o herói troiano enfrenta Teucro em campo de
batalha. Após vencer o duelo, o protagonista poderia poupar seu adversário, que,
desarmado, pedia clemência. Para efetivar um antigo acordo de gratidão firmado
com Evandro, no entanto, o herói assassina seu oponente. Evandro havia
hospedado Eneias e concedido um batalhão de soldados a ele, dentre os quais se
578 Sobre este conceito, ver: SILVA, Márcia Regina de Faria. O trágico nas heróides de Ovídio. Tese (doutorado em letras clássicas). Rio de Janeiro: UFRJ, 2008, pp. 69-88. 579 Recomendamos a leitura de: TEIXEIRA, Cláudia Amparo Afonso. Épica e tragédia no episódio da Dido virgiliana. In: Ágora. Estudos Clássicos em Debate 8, 2006, pp. 41-57. 580 SILVA, Márcia Regina de Faria. As heróides e o trágico. In: BOTELHO, José Mário (org.). Estudos reunidos: linguagem, literatura e estilística. Rio de Janeiro: Botelho editora, 2006, pp. 41-50. Disponível
214
destacava seu único filho, Palante, morto em combate pela destra de Teucro. O
troiano, atendendo aos rogos de um pai desconsolado que precisou enterrar o
próprio filho, não poupou seu oponente, sobretudo ao visualizar o cinturão de
Palante que Teucro vestia. Eneias, neste momento, “arde em fúrias, e a ira o faz
terrível”.581 Trata-se de um episódio enigmático, sujeito às mais variadas
indagações.
Eneias foi “injusto”? Porque ele não se “apiedou” do adversário
desarmado? Estas e outras perguntas desfilam, em sua própria ambição de
solucionar os enigmas desta passagem, pressupostos anacrônicos. O termo latino
pietate, utilizado para caracterizar Eneias, não pode ser equiparado à piedade em
sua conotação cristã. A pietas romana consistia na obediência irrestrita aos deuses e
aos superiores hierárquicos. O adjetivo pius, proveniente de pietas, é muito
recorrente na Eneida: trata-se de um epíteto que “indica o estrito cumprimento dos
deveres para com os deuses, a família e o Estado, cumprindo a vontade de Júpiter,
em consonância com o destino”.582 Aristóteles afirma que a piedade consiste numa
certa pena causada pela aparição de um mal destruidor e aflitivo que afeta quem
não merece ser afetado.583 O que é reforçado, aqui, é a ideia de empatia (ou
simpatia), que reforça o sentimento de reciprocidade na medida em que o
observador apiedado calcula que o mal que aflige o outro pode recair sobre si e
sobre seus pares.
Assim, podemos reformular as questões levantadas no parágrafo anterior:
quais são as implicações contidas num desrespeito deliberado frente às
asseverações dos deuses? O que se diria de uma quebra do pacto entre amigos, e,
portanto, entre iguais?584 Acatar as vontades de Dido e poupar a vida de Teucro
581 VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, livro décimo segundo, p. 410. 582 VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Apresentação. In: VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. XII. 583 Ver: ARISTÓTELES. Retórica. Prefácio e introdução de Manuel Alexandre Júnior. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, pp. 184-186. 584 Como nos lembra Trajano Vieira através de uma alusão aos escritos de Émile Benveniste, a relação entre anfitrião e hóspede era selada pela sýmbolon, “signo de reconhecimento, anel rompido de que os parceiros conservavam as metades correspondentes. O pacto efetivado sob o nome de philótes faz dos contratantes phíloi: a partir de então se comprometem com a reciprocidade de favores que constitui a hospitalidade”. Trajano Vieira demonstra a centralidade da hospitalidade e da reciprocidade remetendo-se, ainda, à relação entre Glauco e Diomedes, Aquiles e Agamêmnon, Heitor e Ájax. Ver: VIEIRA, Trajano. “Introdução”. In: CAMPOS, Haroldo de. Ilíada de Homero, vol. 1. São Paulo: Arx, 2003, pp. 16-20. Hesíodo afirma na sua obra Trabalhos e dias: “quem faz mal a um suplicante ou a um hóspede, ou sobe ao leito de seu irmão para desfrutar em segredo das
215
implicaria nestes dois atos, que sugerem transgressão em duas direções: em
relação à fronteira estabelecida entre homens e deuses e no rompimento da fides,
que reforça um pacto de gratidão e reciprocidade. Quanto à ira que move Eneias a
eliminar seu oponente, devemos recordar, com Aristóteles, que existe uma relação
possível entre a ira e a coragem: para o filósofo, a ira “é o que há de mais arrojado
para fazer alguém atirar-se na frente do perigo”. No entanto, os corajosos “agem por
causa da glória, a ira apenas colabora com eles”. Esta coragem “nascida da ira
parece basear-se inteiramente numa natureza instintiva. Quando se lhe acrescenta a
decisão e o fim em vista, então, pode valer como verdadeira coragem”.585
De acordo com Márcia Regina de Faria da Silva, o comportamento de
Enéias revela três valores romanos fundamentais: a pietas, a uirtus e a humanitas.
Movido pela uirtus, o herói pondera seu agir, não empreende uma busca
desenfreada pela areté (glória) guerreira e prioriza o bem estar do grupo com
valentia e retidão. A pietas, por sua vez, reforça um senso de reciprocidade,
sobretudo de dever em relação aos deuses.586 Predestinado, Enéias foi incumbindo
de liderar uma empresa que repercutiria na fundação de Roma. Ao recusar o amor
de Dido, o herói reafirma a sua missão. Quando clama por vingança, a rainha de
Cartago é atendida: os comentadores observam que o “vingador” reclamado pela
personagem “é o prenúncio de Aníbal” e, portanto, de uma das Guerras Púnicas.
Paulo Sérgio de Vasconcellos acredita que não apenas Aníbal, mas também o
guerreiro Turno busca efetivar a vingança clamada por Dido em seu embate final
contra Enéias, mas sem sucesso.587
Há inúmeras passagens bíblicas que levantam juízos sobre a
hospitalidade. Lê-se, por exemplo, no livro dos hebreus: “Não vos esqueçais da
hospitalidade, pela qual alguns, sem o saberem, hospedaram anjos” (Hebreus 13, 2).
Em Levítico há uma recomendação semelhante: “Se um estrangeiro vier habitar
convosco na vossa terra, não o oprimireis, mas esteja entre vós como um
compatriota, e tu o amarás como a ti mesmo” (Levítico 19, 33-34). Em uma
passagem de Gênesis (18, 1-15), Deus aparece a Abraão num dia de muito calor intimidades de sua esposa, age de forma desprezível”. HESÍODO. Teogonia; Trabalhos e dias. Tradução de Sueli Maria de Regino. São Paulo: Martin Claret, 2010, p. 77. 585 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro III, VIII, pp. 73-74. 586 SILVA, Márcia Regina de Faria. Dido e Enéias e o mito da fundação de Roma. Disponível em: http://www.filologia.org.br/revista/39/04.htm. Acesso em: agosto/2011. 587 VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Apresentação. In: VIRGÍLIO. Eneida de Virgílio. Tradução de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. XIII.
216
através da figura de três homens. Abraão rapidamente prostra-se diante deles,
dizendo-lhes: meus senhores, “se encontrai graça diante de vossos olhos, não
passeis avante sem vos deterdes em casa de vosso servo. Vou buscar um pouco de
água para vos lavar os pés”. Nota-se que o primeiro procedimento seguido
assemelha-se àquele adotado para com Ulisses, quando é acolhido em sua própria
casa. Abraão continua: “Descansai um pouco sob esta árvore. Eu vos trarei um
pouco de pão, e assim restaurareis as vossas forças para prosseguirdes o vosso
caminho; porque é para isso que passaste perto de vosso servo”. O procedimento de
oferecer alimento antes da conversação também se faz presente na Odisseia, no
episódio em que Ulisses é acolhido na corte do rei Alcínoo. Por fim, os três homens
aceitam o convite de seu servo.
Abraão pediu a Sara, sua esposa, que cozesse alguns pães. Em seguida,
deu ao seu servo um novilho para ser abatido. Por fim, pegou a manteiga e o leite,
servindo os peregrinos, que comeram sob a árvore. Quando todos estavam
saciados, um deles disse ao anfitrião: “Voltarei à tua casa dentro de um ano, a esta
época; e Sara, tua mulher, terá um filho”. Convém mencionar que Abraão e Sara já
eram velhos. Esta, ouvindo por detrás da tenda, sorri em segredo, imaginando se
aquilo seria possível. O Senhor, então, diz ao anfitrião: “Por que se riu Sara,
dizendo: ‘Será verdade que eu teria um filho, velha como sou?’ Será isso porventura
uma coisa muito difícil pro Senhor? Em um ano, a esta época, voltarei à tua casa e
Sara terá um filho”. Deus concede ao casal um dom, pois encontrou em seu servo
uma fides inabalável e um acolhimento atencioso.
Outra passagem (Gênesis 19, 1-29) apresenta as circunstâncias a partir
das quais Sodoma é destruída. Lot, antes da destruição, acolhe em sua casa dois
estrangeiros e oferece-lhes abrigo. A princípio, eles se recusam, mas Lot insiste e os
persuade. No entanto, a população de Sodoma se reúne para expulsar os
forasteiros, mas o anfitrião protege seus hóspedes: “Suplico-lhes, meus irmãos, não
cometeis este crime. Ouvi: tenho duas filhas que são ainda virgens, eu vo-las trarei,
e fazei delas o que quiserdes. Mas não façais nada a estes homens, porque se
acolheram à sombra do meu teto” (Gênesis 19, 7-8). A população não lhe dá ouvidos
e avança sobre ele, mas os dois estrangeiros salvam-lhe a vida. Ambos eram anjos,
enviados para destruir a cidade e aniquilar a população que nela vivia. Antes, no
entanto, eles pedem a Lot que reunisse sua família e amigos o quanto antes. Todos
eles seriam poupados graças à postura assumida pela personagem.
217
Uma passagem de Lucas (7, 36-50) trata de uma “pecadora perdoada”
que, descobrindo que Jesus encontrava-se na casa de um fariseu, vai até lá com um
vaso de alabastro cheio de perfume. Quando chega, ela chora na presença do
Senhor, derrama lágrimas em seus pés e enxuga-os com os cabelos, beijando-os e
ungindo-os com perfume. O fariseu, de nome Simão, pensa: se aquele homem fosse
de fato um profeta, saberia que a mulher prostrada à sua frente era uma pecadora.
Jesus, então, conta-lhe sobre um credor que perdoou a dívida de dois homens: um
deles devia-lhe cinquenta denários e o outro quinhentos denários. Jesus perguntou-
lhe qual dos devedores amará mais o credor, ao que Simão responde: “aquele a
quem ele mais perdoou”. O Senhor concorda e, voltando-se para a mulher, diz: “Vês
esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para lavar os pés; mas esta
com as suas lágrimas regou-me os pés e enxugou-os com seus cabelos”. Mais uma
vez este ritual se faz presente, como digno da piedade do Senhor, que continua:
“Não me deste o ósculo: mas esta, desde que entrou, não cessou de beijar-me os
pés. Por isso te digo: seus numerosos pecados lhe foram perdoados, porque ela tem
demonstrado muito amor. Mas ao que pouco se perdoa, pouco ama”.
Afirmamos que a noção de pietas presente nas epopeias de Homero e,
sobretudo, na Eneida de Virgílio, não é similar à piedade cristã. Esta talvez seja a
oportunidade adequada para discorrer um pouco mais sobre ela, utilizando as
reflexões de Tomás de Aquino, para quem a piedade deve existir, em primeiro lugar,
em relação a Deus. Esta, diferentemente de todas as outras, deve ser
inquebrantável. No mais, deve existir piedade em relação aos consanguíneos ou
familiares, aos concidadãos e aos amigos da pátria. Neste caso, a piedade associa-
se a uma situação de dever para com o outro. É a posição de devedor que fortifica o
pacto entre as partes envolvidas, pois quem deve precisa pagar. O homem piedoso,
em primeiro lugar, tem uma obrigação a cumprir: prestar serviço às pessoas para as
quais deve. Em segundo lugar, ele precisa honrar seus acordos “dentro das devidas
medidas”, jamais colocando em segundo lugar a piedade em relação a Deus. Há,
portanto, uma diferença entre a piedade e o respeito: a primeira é devida ao Senhor
e às pessoas próximas. O respeito é devido às pessoas mais distantes, para as
quais não devemos muitas obrigações.588
588 Sugerimos a leitura de: OLIVEIRA, Terezinha. A piedade e o respeito em Tomás de Aquino: virtudes para a vida citadina do século XIII. In: Notandum. São Paulo / Porto, ano XIII, nº 24, 2010, pp. 79-98.
218
Podemos perceber na obra de Dante Alighieri um eco desta intolerância
frente à falta de hospitalidade. Dentre as quatro zonas do Cocito, rio congelado que
cruza o nono círculo infernal, situa-se a Tolomea, que confina os traidores de
hóspedes. O apelido que recebe remete-nos a duas fontes: a primeira referente ao
faraó Ptolomeu que, parar agradar Júlio César, envia-lhe a cabeça decapitada de
Pompeu, seu hóspede. Há, por outro lado, a personagem bíblica de Ptolomeu,
governador de Jericó que matou Macabeu, seu cunhado, e os filhos deste, durante
um jantar em sua casa. Independentemente da versão adotada, o propósito de
Dante mostra-se claro. Interessante perceber que, diferente de todas as outras
almas danadas, a do traidor de comensais é lançada ao Inferno no momento mesmo
do delito. No entanto, seu corpo continua a viver, possuído por um demônio.
Dante encontra-se com Alberigo, da família Manfredi, um dos chefes dos
Guelfos em Florença. Ele mandou matar um irmão e um sobrinho que tinha
convidado para jantar. A punição que recebe é dura, a ponto de fazê-lo implorar a
Dante e a Virgílio o seguinte: “um de vós dois o viso me desvele,/ que eu desafogue
a dor que o peito emprenha/ um pouco, antes que o pranto se enregele”.589 Mais
adiante, o poeta avista Branca d’Oria, componente de uma família ilustre de Gênova,
cujo corpo ainda estava no mundo em 1300, ano em que Dante teria feito sua
viagem pelos três planos que compõem a Comédia. Ele fez massacrar o cunhado,
senhor de Logodero, em 1275, o que justifica a punição que lhe é imputada. A
punição sofrida pelos traidores de hóspedes mostra-se dolorosa: o “próprio pranto ali
chorar não deixa”,590 pois as lágrimas logo congelavam. Enterrados no lago
congelado até a cabeça, não podiam retirar a crosta de gelo que se formava sobre
seus olhos. Dante usa uma similitude que “faz ver” o estado das almas: “o começo
das lágrimas ensopa/ e assim como viseiras de cristal/ já enche sob os cílios toda a
copa”.591 Dante não atende aos rogos de Alberigo, mencionado no parágrafo
anterior: “Não lhos abri, reversos;/ e cortesia foi ser-lhe vilão”.592
A tópica da hospitalidade é recorrente nos escritos portugueses, inclusive
nas relações de naufrágio. Após o incidente ocorrido com o galeão São João, em
1552, o capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e os sobreviventes chegaram à praia
589 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Editora Landmark, 2005, Inferno, XXXIII, v. 110-112, p. 229. 590 Idem, ibidem, v. 94, p. 297. 591 Idem, ibidem, v. 97-99, p. 297. 592 Idem, ibidem, v. 149-150, p. 301.
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da Terra do Natal, na África. Depois de alguns meses caminhando a esmo, os
portugueses encontraram um velho cafre, senhor de duas aldeias. Ele pediu a
Sepúlveda e a seus homens “que não passassem dali, que estivessem em sua
companhia, e que ele os manteria o melhor que pudesse”.593 Conta-nos o narrador:
Assim que este rei cafre apertou muito com Manuel de Sousa e sua gente que estivessem com ele, dizendo-lhe que tinha guerra com outro rei por onde eles haviam de passar, e queria sua ajuda; e que se passassem avante que soubessem certo que haviam de ser roubados deste rei, que era mais poderoso que ele; de maneira que, pelo proveito e ajuda que esperava desta companhia, e também pela notícia que já tinha de portugueses por Lourenço Marques e Antônio Caldeira, que ali estiveram, trabalhava quanto podia por que dali não passassem; e estes dous homens lhe puseram nome Garcia de Sá, por ser velho e ter muito o parecer com ele e ser bom homem que não dá dúvida senão que em todas as nações há maus, e bons; e por ser tal fazia agasalhos, e honrava aos portugueses, e trabalhou quanto pôde que não passassem avante, dizendo-lhes que haviam de ser roubados daquele rei com que ele tinha guerra. E em se determinar se detiveram ali seis dias. Mas como parece que estava determinado acabar Manuel de Sousa nesta jornada coma maior parte de sua companhia, não quiseram seguir o conselho deste reizinho, que os desenganava.594
O velho cafre acolheu, alimentou e honrou os portugueses como era
devido. No entanto, vendo o rei que “o capitão determinava de se partir dali, lhe
pediu que antes que se partisse o quisesse ajudar com alguns homens de sua
companhia contra um rei que atrás lhe ficara”.595 Após o pedido de ajuda, Sepúlveda
e os portugueses sob seu comando não puderam recusar, pois o cafre ofereceu-lhe
mantimentos e hospedagem. É possível falar de um “pacto”, de uma conduta
recíproca em retribuição à hospitalidade prestada?
Após o episódio acima relatado, o protagonista encontra outros cafres
que, diferentemente dos primeiros, simulam cordialidade. Ao se encontrarem, os
cafres perguntam aos portugueses o que eles buscavam e oferecem mantimentos e
comida, contanto que os nautas os acompanhassem até onde se encontrava seu rei,
não muito distante:
Dali ao lugar onde estava o rei havia uma légua, e como chegaram lhes mandou dizer o cafre que não entrassem no lugar, porque é cousa que eles muito escondem, mas que se fossem pôr ao pé de umas árvores que lhes
593 BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico-Marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 14. 594 Idem, pp. 14-15. 595 Idem, p. 15.
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mostraram, e que ali lhes mandaria dar de comer. Manuel de Sousa o fez assim, como homem que estava em terra alheia.596
É notável que, à maneira de Abraão, os cafres convidam os portugueses
para descansar sob a sombra de uma árvore. Os portugueses ficaram cinco dias sob
o cuidado deles, até que Sepúlveda pede a um deles uma casa para alojar sua
mulher e filhos. Seu pedido é atendido, mas os cafres afirmam que os mantimentos
locais se esgotariam caso ficassem ali todos os seus homens. Como possibilidade,
um dos cafres disse que os portugueses deveriam se separar e seguir com ele para
outras aldeias, onde poderiam encontrar novos mantimentos. Esta foi a primeira
artimanha: dividir os inimigos. Em seguida, o cafre pediu que entregassem as armas
de fogo, prometendo devolver assim que um navio português viesse buscá-los.
“Como Manuel de Sousa já então andava muito doente e fora de seu perfeito juízo,
não respondeu, como fizera estando em seu entendimento; respondeu que ele
falaria com os seus”.597 A segunda artimanha foi lançada: “o parecer de Manuel de
Sousa e dos que com ele consentiram não era de pessoas que estavam em si,
porque se bem olharem, enquanto tiveram suas armas consigo nunca os negros
chegaram a eles”.598 Assim, “mandou o capitão que pusessem as armas, em que
depois de Deus estava sua salvação, e contra a vontade de alguns e muito mais
contra a de d. Leonor, as entregaram”.599 Tão logo as armas foram entregues, os
cafres começaram a roubar as posses portuguesas, deixando claras suas
verdadeiras intenções.
É possível perceber vultos desta simulação também nas epopeias
portuguesas. Quando o deus olímpico Mercúrio aparece, em sonho, para Vasco da
Gama, a pedido de Júpiter, ele lhe adverte:
Não tens aqui senão aparelhado O hospício que o cru Diomedes dava, Fazendo ser manjar acostumado De cavalos a gente que hospedava; As aras de Busíres infamado, Onde os hóspedes tristes imolava, Terás certas aqui, se muito esperas. Foge das gentes pérfidas e feras, Vai-te ao longo da costa discorrendo,
596 Idem, p. 18. 597 Idem, ibidem. 598 Idem, p. 19. 599 Idem, ibidem.
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E outra terra acharás de mais verdade, Lá quase junto donde o Sol, ardendo, Iguala o dia e noite em quantidade; Ali tua frota alegre recebendo Um Rei, com muitas obras de amizade, Gasalhado seguro te daria E, para a índia, certa e sábia guia”.600
Aludindo a Diomedes, antigo rei da Trácia, e Busíres, rei egípcio
reconhecido por sacrificar estrangeiros em suas terras, Mercúrio alerta Gama sobre
as perversas intenções do rei de Mombaça. Todavia, poderiam encontrar boa
acolhida em terras muito próximas, afeitas à boa hospitalidade. Mais uma vez a
hospitalidade é utilizada como critério de diferenciação entre a constância dos justos
e a inconstância dos injustos. No decorrer da empresa de Vasco da Gama, Baco
administra sucessivos enganos recorrendo a diversos subterfúgios. Em um deles, o
deus aproveita da inconstância e indisposição dos mouros para movê-los contra os
portugueses:
Porém disto que o Mouro aqui notou E de tudo o que viu, com olho atento, Um ódio certo na alma lhe ficou, Uma vontade má de pensamento. Nas mostras e no gesto o não mostrou Mas, com risonho e ledo fingimento, Tratá-los brandamente determina, Até que mostrar possa o que imagina.601
Os mouros escondem, no íntimo, um ódio em relação às ações, crenças e
costumes dos portugueses. Contudo, eles simulam simpatia e cordialidade, fator que
certamente leva o leitor discreto a condená-los. Através de conselhos vis e
enganosos, Baco procura convencer os mouros sobre a infâmia dos navegantes.
Como bons pupilos, os mouros utilizam-se também do engano para ocultar o que
sentiam, que, no momento, não poderia ser revelado. Ardiloso, o deus ainda elabora
um segundo engano, caso o primeiro falhasse. Disfarçado, ele aconselha o regedor
dos mouros:
E também seu que tem determinado De vir por água a terra, muito cedo, O Capitão, dos seus acompanhado,
600 Os Lusíadas, 2005, canto II, estrofes 62-63, p. 65. 601 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas / edição antológica, comentada e comparada com Ilíada, Odisséia e Eneida por Hennio Morgan Birchal. São Paulo: Landy Editora, 2005, canto I, estrofe 69, p. 102.
222
Que da tensão danada nasce o medo. Tu deves de ir também cós teus armado Esperá-lo em cilada, oculto e quedo, Porque, saindo a gente descuidada, Cairão facilmente na cilada. E, se ainda não ficarem deste jeito Destruídos ou mortos totalmente, Eu tenho imaginada no conceito Outra manha e ardil que te contente: Manda-lhe dar piloto que de jeito Seja astuto no engano, e tão prudente, Que os leve aonde sejam destruídos, Desbaratados, mortos ou perdidos.602
Baco requisita um piloto que, no jeito, seja “astuto no engano” e
“prudente”. Ser “no jeito” significa parecer ser uma coisa que não se é. Em outra
estrofe, o deus reforça seu plano afirmando que o piloto deve ser “sagaz”, “astuto”,
“sábio em todo dano”.603 De fato, Baco previu bem: a emboscada para captura dos
portugueses fracassou. Tal como Polifemo, os mouros mostraram-se indiferentes à
hospitalidade. Em razão do fracasso, como que num pedido de desculpas, eles
enviaram o piloto “falso” e “instruído nos enganos”,604 que tentou levar Gama e os
seus homens para Quiloa, para uma armadilha. Antes de desembarcarem, Vênus
interveio, desviando a nau portuguesa: foi a partir desse desvio que chegaram a
Mombaça, território no qual Baco tramaria outra cilada.
Para convencer os portugueses de que aquela ilha era habitada por
cristãos, o deus Baco toma a forma de um, para enganá-los:
Mas aquele que sempre a mocidade Tem no rosto perpétua, e foi nascido De duas mães, que urdia a falsidade Por ver o navegante destruído, Estava numa casa da cidade, Com rosto humano e hábito fingido, Mostrando-se Cristão, e fabricava Um altar suntuoso que adorava. Ali tinha em retrato afigurada Do alto e Santo Espírito a pintura, A cândida Pombinha, debuxada Sobre a única Fênix, Virgem pura. A companhia santa está pintada Dos Doze, tão turvados na figura, Como os que, só das línguas que caíram
602 Os Lusíadas, canto I, estrofes 80- 1, p. 40. 603 Idem, canto I, estrofe 83, p. 41. 604 Idem, canto I, estrofe 97, p. 44.
223
De fogo, várias línguas referiram.605
O artifício de antropomorfização não é atributo exclusivo de deuses
pagãos, podendo ser constatado também em entidades angelicais, inclusive em
poesias épicas contemporâneas à obra de Camões. Para convocar Godefredo e
instigá-lo à guerra, por exemplo, Deus toma como emissário o arcanjo Gabriel e
envia ao herói orientações. Para ser visto pelo destinatário da mensagem, o arcanjo
toma a forma de um homem:
Como fosse invisível, disfarçou-se, Tomou forma visível, de ar cercada; Fingiu figura humana; mas ornou-se Co’a majestade aos anjos facultada; Fez-se não bem mancebo inda na idade, E a áurea como cercou de claridade.606
Gabriel é o anjo da Anunciação: nas páginas bíblicas, ele é escalado para
levar inúmeros desígnios divinos aos mortais. É, por exemplo, aquele que revela à
Virgem Maria sobre o nascimento do filho de Deus, explicando-lhe sua missão e
instruindo-lhe quanto à intervenção do Espírito Santo.607 Seria imprudente julgar que
esta escolha do emissário tenha sido feita ao acaso. Não obstante, Camões também
se vale de emissários, mas, quando o faz, invoca o deus Mercúrio, mensageiro de
Zeus. É esta personagem que, no canto II d’Os Lusíadas, aparece no sonho de
Gama e o persuade a seguir rumo a Melinde, terra onde os portugueses seriam
muito bem acolhidos.608
Afora esta correlação, é preciso considerar que o ardil de Baco, bem
como a sua finalidade, em muito se diferenciava dos propósitos de Ulisses, apesar
de recorrerem a uma ação mais ou menos compatível. O engano é mal quisto e
anunciado com repulsa na épica de Camões, pois está sendo manejado pelas mãos
astutas e imprudentes de Baco. A astúcia à qual nos referimos se assemelha àquela
postulada por Tomás de Aquino, que entende como sendo própria dela o
empreendimento por “caminhos inautênticos, tortuosos e simulados”, com a 605 Idem, canto II, estrofes 10-11, p. 51. 606 TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução de José Ramos Coelho. Organização, introdução e noras de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, canto I, estrofe 13, p. 116. 607 Lc. 1, 26-38. 608 Mercúrio, emissário de Zeus, também orienta Ulisses em seu caminho de volta à Ítaca, como no momento em que cede ao herói um antídoto contra os feitiços da deusa Circe, ou quando adverte a ninfa Calipso sobre a vontade de Zeus de ver Ulisses livre de seus amores para, assim, efetivar seu retorno.
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finalidade de obter algum fim, seja ele bom ou mau. A astúcia, como retratada no
poema, vê-se destituída de qualquer prudência ou temperança; muito pelo contrário,
a ânsia de Baco pela perduração de sua fama e a ira que nutre contra os
portugueses tornam os seus gestos e ações inteiramente vaidosos609 e egoístas. O
esquecimento lhe impõe verdadeiro terror:
Está do fado determinado Que tamanhas vitórias, tão famosas, Hajam os Portugueses alcançado Das Indianas gentes belicosas. E eu só, filho do Padre sublimado, Com tantas qualidades generosas, Hei de sofrer que o Fado favoreça Outrem, por quem meu nome se escureça?610
Baco, deus pagão e representante dos mouros, engana os portugueses
se prostrando frente a um altar cristão, ou seja, a personificação do paganismo
simula o seu oposto para dar vazão aos fingimentos arquitetados. Por outro lado, o
deus afirma ser filho do “Padre sublimado”, mas ainda assim é aquele que
deliberadamente o desrespeita, quanto à resolução em favor dos nautas. Se no
primeiro momento, Baco simboliza o mais ávido dos enganos, no segundo ele
demonstra a cegueira causada pela vaidade e pelo consequente desdém às
hierarquias. Além de não ouvir os retos conselhos do pai, Júpiter, ele se ocupa em
dar falsos conselhos aos mouros, movendo-os contra os heróis lusitanos.
É justamente o ânimo irado que impossibilita o deus de “aproximar futuro
e passado”, ou seja, de prever os acontecimentos vindouros. Desta maneira, o perfil
de Baco se assemelha ao gênio de Agamêmnon que, colérico, consente com a
ausência de Aquiles na batalha contra Tróia e, em outro momento, recusa a um
velho sacerdote troiano a devolução de sua filha. No primeiro caso, os gregos
correram o risco de perder a guerra; no segundo, sendo o troiano um grande devoto
de Apolo, esta deidade enviou uma grande chuva de flechas e abateu um bom
contingente de gregos, o que quase ocasionou o retorno destes à pátria. De acordo
com Marcel Dètienne e Jean-Pierre Vernant, o mesmo ocorre na assembleia troiana
que deveria definir os rumos da guerra: enquanto Polidamas, o prudente, dirigia aos
609 Os dois homens enviados para sondar a ilha são facilmente enganados. “Os dois Cristãos, não vendo que enganados / Os tinha o falso e santo fingimento”. Falso, porque fruto de um engano arquitetado por Baco, e santo porque a prostração diante de Cristo era digna e verdadeira. Ver: idem, canto II, estrofe 13, p. 52. 610 Os Lusíadas, 2005, canto I, estrofe 74, p. 103.
225
partícipes sábios conselhos sobre precauções e estratégias, Heitor atiça o ânimo
dos presentes, chamando-os para travar logo a batalha fora dos muros de Troia. O
herói se deixa domar pela raiva e pela ingenuidade da juventude.611 A vaidade,
portanto, converte-se em um eficaz catalisador de imprudências.
Gama e os tripulantes se livraram da cilada graças a uma nova
intervenção da deusa Vênus que, juntamente às Nereidas, desviaram a nau, o que
causou um grande rebuliço entre os portugueses, que não estavam entendendo a
voraz mudança de direção. Os mouros, observando toda esta movimentação,
acreditam que o engano que arquitetavam havia sido descoberto e, amedrontados,
saltavam da embarcação como “rãs”. O piloto, que deixou o simulacro de lado e
mostrou o seu “eu” verdadeiro, também fugiu junto aos seus. Notando esta
movimentação repentina, Gama percebe a trama que haviam tecido e agradece à
intervenção “divina”. Neste momento, fica claro que a proteção de Vênus equivale,
alegoricamente, à proteção celeste. Gama delibera:
Oh! Caso grande, estranho e não cuidado! Oh! Milagre claríssimo e evidente! Oh! Descoberto engano inopinado! Oh! Pérfida, inimiga e falsa gente! Quem poderá do mal aparelhado Livrar-se sem perigo, sabiamente, Se lá de cima a Guarda Soberana Não acudir à fraca força humana?612
Em outro momento, quando os portugueses já se encontravam nas Índias,
Baco aparece disfarçado de Maomé no sonho de um sacerdote, advertindo-o sobre
a má conduta dos cristãos que ali faziam residência temporária:
(...) “Guardai-vos, gente minha, Do mal que se aparelha pelo immigo Que pelas águas úmidas caminha, Antes que esteis mais perto do perigo”.613
Tendo em vista a descrença do sacerdote, que não deu importância ao
sonho, Baco insistiu:
611 DETIENNE, Marcel. VERNANT, Jean-Pierre. Métis – As astúcias da inteligência. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Odysseus Editora, 2008, p. 24. 612 Idem, canto II, estrofe 30, p. 56. 613 Idem, canto VIII, estrofe 48, p. 236.
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Eu por ti, rudo, velo, e tu adormeces? Pois saberás que aqueles que chegados De novo são, serão mui grande dano Da Lei que eu dei ao néscio povo humano.614
Primeiramente, Baco inflama a má vontade dos mouros; em seguida
disfarça-se de cristão e adora o “Deus verdadeiro”, o que corrobora a
inverossimilhança da sua própria existência; por fim, ele toma a forma de Maomé e
indispõe um sacerdote que, a princípio, nada tinha contra os navegantes. A
simulação, portanto, é um lugar comum na conduta de Baco. Os mouros, em
consonância com as vontades do deus do vinho, se deixam manipular:
Diversos pareceres e contrários Ali se dão, segundo o que entendiam; Astutas traições, enganos vários, Perfídias, inventavam e teciam; Mas, deixando conselhos temerários, Destruição da gente pretendiam, Por manhas mais sutis e ardis milhares, Com peitas adquirindo os regedores.615
Vários termos, nesta estrofe, definem a astúcia dos mouros: traição,
engano, perfídia, manha, sutileza, ardil. O sonho do maometano foi suficientemente
persuasivo para indispor todos que dele tomaram conhecimento contra os
portugueses. O Catual, frente aos pareces desfavoráveis, também se indispôs e
teceu uma traição para impedir o retorno dos nautas. Gama pede por uma escolta
que pudesse transportá-lo até a nau. A reação do Catual, frente ao pedido, leva o
herói a desconfiar de seus propósitos:
Pouco obedece o Catual corrupto A tais palavras; antes, revolvendo Na fantasia algum sutil e astuto Engano, diabólico e estupendo, Ou como banhar possa o ferro bruto No sangue aborrecido, estava vendo, Ou como as naus em fogo lhe abrasasse, Por que nenhuma à pátria mais tornasse.616
614 Idem, canto VIII, estrofe 49, p. 236. 615 Idem, canto VIII, estrofe 52, p. 237. 616 Idem, canto VIII, estrofe 83, p. 244.
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Mais uma vez o aedo se ocupa em definir a conduta dos mouros:
corrupção, sutileza, astúcia, engano “diabólico” e estupendo. Gama desconfia de
uma cilada:
Nestas palavras o discreto Gama Enxerga bem que as naus deseja perto O Catual, por que com ferro e flama Lhas assalte, por ódio descoberto. Em vários pensamentos se derrama; Fantasiando está remédio certo Que disse a quanto mal se lhe ordenava. Tudo temia; tudo, enfim, cuidava.617
O que nos mouros é corrupção, em Gama aparece como discrição. Se o
Catual se entrega a maquinar estratagemas vis, trata-se de um engano diabólico; no
caso de Gama, é “remédio certo”. Não há uma disposição que, por si só, seja má ou
boa, pois depende de como é arregimentada e por quem está sendo conduzida. A
imprudência e indisposição do Catual garantem, no corpo da narrativa, o seu
fracasso. A boa vontade e os princípios retos anunciados por Gama, que tentava
preservar o bem comum mesmo em terras estrangeiras, fez dele um exemplo:
Insiste o Malabar em tê-lo preso, Se não manda chegar à terra a armada. Ele, constante e de ira nobre aceso, Os ameaços seus não teme nada; Que antes quer sobre si tomar o peso De quanto mal a vil malícia ousada Lhe andar armando, que pôr ventura A frota de seu Rei, que tem segura.618
No caso de um herói prudente, até mesmo a ira alcança um estatuto
“nobre”.619 Gama se sacrifica para garantir a segurança de seus homens, a “frota de
seu Rei”, mesmo sabendo que, dentre os navegantes, era aquele que se situava em
posição mais avantajada na hierarquia social. O indivíduo pode ser astuto ou
617 Idem, canto VIII, estrofe 86, p. 245. 618 Idem, canto VIII, estrofe 90, p. 246. 619 Para Aristóteles, a cólera/ira não se relaciona necessariamente à conduta malévola. Para este autor, o homem “que se irrita justificadamente nas situações em que se deve irritar ou com as pessoas com as quais se deve irritar, e ainda da maneira como deve ser, quando deve ser e durante o tempo em que deve ser, é geralmente louvado”. Aristóteles conclui que este homem “quer permanecer imperturbável e não quer ser levado pela emoção, e apenas o sentido orientador lhe poderá prescrever as situações em que deve irritar-se e durante quanto tempo”. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro IV, V, p. 95.
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prudente. Um bom chefe, por exemplo, apresenta um perfil de homem prudente,
como alerta Camões:
Tal há de ser quem quer, co dom de Marte, Imitar os ilustres e igualá-los: Voar co pensamento a toda parte, Advinhar perigos e evitá-los; Com militar engenho e sutil arte Entender os imigos e enganá-los; Crer tudo, enfim; que nunca louvarei O Capitão que diga: “Não cuidei”.620
O dom de Marte, ou seja, o engenho militar é um dos pré-requisitos na
composição de um bom chefe. Não obstante, é próprio de um homem prudente
premeditar perigos e afastá-los, antes de recorrer às estratégias bélicas. O engano
decorre da premeditação da malícia alheia, ou seja, é para evitar um conflito de
proporções maiores que um bom general compreende o inimigo e se prepara para
contê-lo. No caso da inevitabilidade do conflito, o homem prudente deve saber
utilizar o bom juízo também em campo. Quando Gama discorre sobre a Batalha do
Salado, a astúcia prudente portuguesa é pormenorizada e medida com uma
referência bíblica:
Qual o membrudo e bárbaro Gigante, Do Rei Saul, com causa, tão temido, Vendo o Pastor inerme estar diante, Só de pedras e esforço apercebido, Com palavras soberbas, o arrogante Despreza o fraco moço mal vestido, Que, rodeando a funda, o desengana Quanto mais pode a Fé que a força humana:621
O poema nos remete ao famoso episódio no qual Davi derrota o gigante
Golias que, vaidoso, conta com a vitória antecipadamente. Esta fábula, no contexto
d’Os Lusíadas, foi invocada para simbolizar a presunção dos mouros que, contando
com um maior contingente de guerreiros, desprezava os cristãos que lhe faziam
frente. Os mouros não contavam com o apoio da Deidade cristã, ou seja, com a “fé”
que, em muito, supera a natureza do que é “mundano”. A astúcia, quando
relacionada a um perfil prudente e discreto, em nada afeta a moral dos heróis, que
agiam de acordo com as circunstâncias, mas sem perder de vista a ética cristã e a
620 Os Lusíadas, 2005, canto VIII, estrofe 89, p. 216. 621 Os Lusíadas, 2008, canto III, estrofe 111, p. 107.
229
finalidade nobre que os movia. A derrota frente à soberba é um lugar comum
recorrente nas tragédias. É o caso, por exemplo, da soberba dos titãs quando
enfrentaram os Olímpios. Como Prometeu recorda,
dei os mais sábios conselhos aos Titãs, sem conseguir, porém, persuadi-los. Desprezando a astúcia, julgaram, com o orgulho da sua força, que lhes seria fácil tornar-se os senhores pela violência (...) não era recorrendo à força nem à violência mas à astúcia que os vencedores alcançariam o império. Foi o que eu disse, mas nem sequer se dignaram olhar-me.622
Por esta razão, Prometeu abandona os seus pares para se aliar a Zeus,
que ouviu e aproveitou-se da habilidade e astúcia do titã, pois ainda não ocupava o
trono e precisava de aliados competentes. O próprio Camões conta-nos o resultado:
Cometeram soberbos os Gigantes, Com guerra vã, o Olimpo claro e puro; Tentou Perito e Téseu, de ignorantes, O Reino de Plutão, horrendo e escuro. Se houve feitos no mundo tão possantes, Não menos é trabalho ilustre e duro, Quanto foi cometer Inferno e Céu, Que outrem cometa a fúria de Nereu.623
Camões amplifica os feitos lusitanos aludindo a dois episódios
mitológicos: a empreitada dos gigantes contra os deuses olímpicos e a tentativa de
rapto da personagem Prosérpina, que é sequestrada por Plutão (ou Hades) e,
posteriormente, se casa com ele. Esta última empresa foi promovida por Perito, rei
de Lapitas, e pelo herói Teseu, responsável pela vitória contra o Minotauro. Ambos
vão até o submundo para cumprir esta missão: Perito acaba morto e Teseu é
capturado, mas, posteriormente, é resgatado por Hércules. O aedo utiliza estes dois
episódios para engrandecer a empresa portuguesa liderada por Vasco da Gama.
Voltando à narrativa de Prometeu, os titãs, assim como Golias, são
representados como arrogantes porque confiavam na eficácia da brutalidade e da
força física e desprezavam os meios estratégicos e argutos. Dessa forma, Détienne
e Vernant asseveram:
Explícito em Ésquilo, esse tema do dólos, ao mesmo tempo, astúcia, armadilha e liame mágico, opondo-se à simples força e conferindo o êxito nas lutas pela soberania, encontra-se em todas as narrativas míticas dos
622 ÉSQUILO. Prometeu Agrilhoado. In: Teatro completo. Lisboa: Estampa, 1975, p. 114. 623 Os Lusíadas, 2008, canto II, estrofe 112, p. 78.
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combates que Zeus deve sustentar para erguer-se e manter-se no topo do poder.624
É desta forma que os portugueses, mesmo em menor quantidade,
venceram e garantiram sua soberania. Tal como Zeus, que precisava manter-se no
topo das deidades, também os portugueses deveriam primar pela manutenção do
Império cristão. Já os mouros, tal como Golias e os titãs, movidos pela vaidade e
pela confiança na força física e nos números, foram surpreendidos pela prudência
dos oponentes.
Os valores são adequados às inclinações de quem os viabiliza: se, para
descrever a conduta dos mouros, fala-se de “astuto engano”, “engano diabólico”,
“perfídias”, “manhas”, no caso dos heróis portugueses, trata-se de “discrição”, “sutil
arte” ou de “adivinhar perigos”. Todos os termos referem-se a modos de agir: no
primeiro caso, de uma astúcia desprovida de prudência, pois movida com maus
intentos; no segundo, de prudência cristã. A prudência confere ao herói a
capacidade de saber agir com bom juízo, já que eles priorizam as ordens superiores
e a manutenção do bem comum. Os portugueses detêm um “militar engenho”, como
Marte, e os atributos necessários para “enganar” os adversários corruptos, ou seja, a
capacidade de materializar o “desengano” à maneira de Davi. Necessário lembrar,
com o Cortesão de Castiglione, que o bom príncipe, para ser justo, deve eleger
“magistrados sábios e homens exemplares, cuja prudência seja verdadeira
prudência acompanhada de bondade, caso contrário não é prudência, mas
astúcia”.625 O caso do cortesão ideal segue de perto a distinção feita por Aristóteles
e, mais tarde, por Santo Tomás de Aquino: a prudência como atributo voltado para o
bem comum, e a astúcia como artifício a priorizar as vontades privadas.
Juízos sobre a hospitalidade, como se pode ver, podem ser encontrados
em fontes de diferentes proveniências e, no caso português, ajudam a definir um
éthos prudente e a compreender a natureza dos mouros e cafres. As interferências
de Baco, portanto, com seus enganos e astúcias, muitas vezes representam as
inclinações vis dos mouros. É como se o deus pagão personificasse e
potencializasse a natureza corrompida, repondo atitudes e crenças que
caracterizavam o tipo mouro. Este procedimento poético não dista totalmente da 624 DETIENNE, Marcel. VERNANT, Jean-Pierre. Métis – As astúcias da inteligência. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Odysseus Editora, 2008, p. 61. 625 CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão. Tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pp. 296-297.
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iniciativa de Henrique Dias quando, em seu relato de naufrágio, discorreu sobre a
natureza dos marinheiros em geral:
É condição já mui velha de marinheiro contradizer sempre o bem e aprazer-lhe o mal, por sua natural e má inclinação, e não consentir nunca, nem admitir, conselho nem coisa dita sobre seu ofício, ainda que saiba muito certo, e tenha por averiguado, perder-se a nau com quantos nela vão, se o contrário fizerem.626
A poesia apresenta alegoricamente o que a matéria histórica informa, mas
ambas participam de uma retórica prudencial, definindo ou representando tipos
dignos de encômios ou vitupérios. A ampliação do império (e, portanto, do corpo
místico português) e a divulgação da fé cristã dependiam do conhecimento prévio
desta natureza humana, para só então definir um caminho no sentido de contê-la,
direcioná-la, redefini-la.
O velho do Restelo e a crítica à cobiça
Muitos leitores e estudiosos se deixaram inquietar pelos dizeres desta
personagem camoniana. Faria e Sousa, um dos primeiros comentadores da epopeia
lusíada, afirmou que o velho do Restelo representava o reino de Portugal.627 O
filólogo alemão Wilhelm Storck o equiparou ao coro das antigas tragédias gregas.
Teófilo Braga encontrou nas asseverações deste sábio um teor de protesto político
contra as iniciativas da monarquia portuguesa.628 Joaquim Nabuco toma-o como
descendente dos antigos heróis, sendo ele o “vulto de uma idade vencida”, e/ou
representante do povo.629 Afrânio Peixoto associa sua fala ao “juízo da multidão”,
interpretando-o como personificação do “outro” Portugal, nortenho, agrícola,
próspero, conservador e terrestre.630 Hernâni Cidade considera esta figura um
sintoma da “esquizofrenia” de Camões, dividido como estava entre a condenação e
a exaltação da empresa ultramarina.631 Esta posição de Cidade foi amplificada por
Sylmara Beletti e Frederico Barbosa, que sugerem o “fim orgânico dos Lusíadas”
626 HTM, p. 223. 627 Apud. AGUIAR E SILVA, Vítor. A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos. Lisboa: Livros Cotovia, 2008, pp. 117-118. 628 BRAGA, Teófilo. Camões. A obra lírica e épica. Porto: Livraria Chardron, 1911. 629 NABUCO, Joaquim. Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artístico, 1872, PP. 96-101. 630 PEIXOTO, Afrânio. Ensaios Camonianos. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1947, p. 205. 631 CIDADE, Hernâni. Luís de Camões: o épico. Amadora/Portugal: Bertrand, 1975, p. 147.
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justamente pela existência de um “Camões ideológico” e de um “Camões contra-
ideológico”.632 Fernando Alves Pereira refere também ao “conflito de ideias” pelo
qual estaria passando Camões, em uma época em que tudo “parecia contraditório”,
sendo a fala do velho do Restelo o desabafo de um povo explorado, deixado à parte
em sua pátria.633
J. S. da Silva Dias não toma o sábio como um porta-voz de Camões, mas
o associa à “expressão do pessimismo histórico, ético e antropológico que alastrou
em Portugal, desde o terceiro quartel do século XVI, sobre a gesta nacional dos
descobrimentos e sobre o império ultramarino, tanto em África como no Oriente”.634
Esta forma de pensar seria corroborada, por exemplo, por Beatriz Fiquer, que
igualmente associa as admoestações do velho à situação decadente de Portugal.635
Massaud Moisés aprecia seu discurso como texto medieval, heterodoxo, contrário ao
mercantilismo, um “contraponto dialético do arcabouço renascentista do poema”.636
José de Pina Martins estabelece nexos entre os dizeres do velho do Restelo e de Sá
de Miranda, o que o leva a classifica-lo como uma espécie de “anti-herói”. Analogias
entre escritos de Antonio de Guevara e o episódio camoniano foram observadas por
Vítor Aguiar e Silva, para quem a personagem camoniana acabaria por efetuar a
“dilaceração do monolinguismo épico”, decorrente, quem sabe, da “ambivalência
indecidível com que Camões aprecia, valora e julga a empresa dos
descobrimentos”.637
Os pareceres da fortuna crítica, como se pode ver, tomam a fala do velho
do Restelo ora como contraponto à glorificação das navegações portuguesa,
espécie de “anticlímax da epopeia”,638 para utilizar uma expressão de Alfredo Bosi;
ora como expressão de um “outro” Portugal, medieval, campestre, antigo; ora como
desdobramento de um pessimismo histórico, com indícios da decadência
632 BELETTI, Sylmara. BARBOSA, Frederico. Inês de Castro e o velho do restelo. São Paulo: LANDY, 2001, p. 61. 633 PEREIRA, Fernando Alves. Uma leitura dos excursos n’Os Lusíadas. Dissertação de Mestrado. Natal: Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2005. 634 Apud. AGUIAR E SILVA, Vítor. A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos. Lisboa: Livros Cotovia, 2008, p. 122. 635 FIQUER, Beatriz. A decadência portuguesa n’Os Lusíadas e a recepção contemporânea do épico camoniano. São Paulo: Editora Fiuza, 2012. 636 MOISÉS, Massaud. “A Fala do Velho do Restelo”: Heterodoxia? In: Homenagem a Alexandrino Severino. Austin/Texas: Host Publications, 1993. 637 AGUIAR E SILVA, Vítor. A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos. Lisboa: Livros Cotovia, 2008, p. 128. 638 BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 37-45.
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portuguesa. Muitas análises apreendem o século XVI como um momento
“contraditório” e “decadente” da história portuguesa, no qual um poeta agudo como
Camões só poderia manifestar-se com “pessimismo” e “ambiguidade”. Não é por
acaso que o episódio continua a despertar o interesse dos estudiosos, afinal, foi
vítima de polêmicas desde a primeira metade do século XVI. No entanto, muitas
análises acabam associando a fala da personagem às intenções do poeta, como
António Sérgio, que supõe uma simpatia do poeta pelo velho do Restelo.639 José
Régio, além de propor um Camões esquizofrênico, cogita uma solidariedade do
poeta para com este episódio.640 Esta hipótese também agrada a António José
Saraiva, que acredita tratar-se do próprio poeta manifestando-se pela boca de sua
personagem, demonstrando reprovação pela matéria histórica de que se ocupa.641
Hernâni Cidade chega a associar o tom de desalento do poeta à experiência não
apenas do poeta, mas também de outros contemporâneos seus, como aqueles que
escreveram as histórias trágico-marítimas.642
As maneiras como o episódio camoniano é lido coincidem, muitas vezes,
com a forma como são tratadas as narrativas de naufrágio. Também nesse caso,
supõe-se a existência de informes mais “realistas”, espécie de “lado obscuro” da
epopeia. Fomes, naufrágios, pestes e outros elementos desta natureza acabam
sendo associados a uma situação de “decadência”, que supostamente já teria sido
indicada na epopeia lusíada. Parece-nos que estas análises não são absurdas ao
propor analogias entre as experiências trágicas das navegações e a polêmica fala
do velho do Restelo: o que nos inquieta são os elementos utilizados para propô-las.
Será mesmo que o velho do Restelo e as narrativas de naufrágio propõem o
estilhaçar da dimensão épica dos descobrimentos, tratando-se de uma “indisfarçável
metonímia da decadência”?
A personagem de Camões situa-se, historicamente, no ano da partida de
Vasco da Gama. Entre este momento e a edição da epopeia lusíada há um intervalo
de mais de 70 anos. O futuro que o velho do Restelo “profetiza” corresponde a
episódios do passado, que o poeta e o leitor já conheciam. A personagem é uma
invenção camoniana que reúne em si a experiência do poeta, e não propriamente de 639 SÉRGIO, António. Obras completas. Ensaios IV. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1972. 640 Ver: AGUIAR E SILVA, Vítor. A lira dourada e a tuba canora: novos ensaios camonianos. Lisboa: Livros Cotovia, 2008, pp. 120-121. 641 SARAIVA, António José. Luís de Camões. Lisboa: Europa-América, 1959, p. 147. 642 CIDADE, Hernâni. Luís de Camões II: o épico. 2ª ed. Lisboa: Revista da Faculdade de Letras, 1953, p. 125.
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alguém que já contava com idade avançada no crepúsculo do século XV. Quando
Camões confere voz ao sábio, o desfecho das navegações já era sabido. Sendo
assim, devemos partir do pressuposto de que o leitor, ao deparar-se com este
episódio, já conhecia os resultados dos feitos portugueses que o poeta toma por
matéria. Logo, é preciso investigar a autoridade que a figura do velho confere aos
informes que o poeta lhe atribui.
É comum tomar o velho do Restelo como um tipo “medieval”, “agrícola”,
“nortenho”, “pessimista”, “contraditório”, “disfórico” e, portanto, contrário ao tipo
“industrioso”, “aventureiro”, “sulista”, “marítimo”, “otimista”, “eufórico”. Antes de
qualquer coisa, como saliente o próprio Camões, devemos concebê-lo como tipo
“velho” e “experiente” para, só então, compreender algumas das implicações de
seus dizeres.
A valoração da experiência aparece em diferentes episódios da Ilíada.
Durante a homenagem fúnebre tributada a Pátroclo, os aqueus se preparavam para
uma corrida. As palavras abaixo foram proferidas por Nestor e direcionadas ao seu
filho, que se preparava para a competição:
Ainda que moço, meu filho, aprendeste de Zeus e Posido, Que te são muito afeiçoados, as regras da equestre corrida. Não necessito, por isso, falar-te com muitas minúcias, Que em torno à meta voltear te é bem fácil. Contudo, são lerdos Teus dois cavalos, razão por que temo qualquer desventura. Em recompensa, se os outros aurigas dispõem de parelha Mais desenvolta, a eles todos excedes em férteis recursos. Deves, portanto, meu caro, valer-te de todos os meios Que te ditar o intelecto; a perder não me venhas o prêmio. Na derrubada das árvores, mais vale o jeito que a força; É a habilidade, somente, que em mar tempestuoso permite Ao timoneiro seu frágil batel conduzir com firmeza. Com arte, assim, vence o auriga prudente os demais contendores.643
O astuto Antíloco, que aprendeu as artes equestres com os deuses,
superava todos os seus oponentes no quesito habilidade. Para dizê-lo, o poeta
evoca um símile, equiparando sua perícia à de um timoneiro prudente que conduz
seu frágil batel por um mar tempestuoso. Contudo, seus cavalos eram inferiores, o
que poderia prejudicá-lo e legar a vitória a outro que, menos habilidoso, contava com
corcéis mais ágeis. Na corrida, Antíloco utiliza-se de malícia astuta, e aproveita-se
do kairos (momento oportuno) para vencer o carro de Menelau, que seguia na 643 HOMERO. Ilíada (em versos). Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, canto XXIII, v. 306-318, p. 506.
235
dianteira. Devido às suas manobras desleais, Antíloco é censurado por Menelau,
detentor da “experiência do velho” e, por isso, um herói que “pode explorar de
antemão as vias múltiplas do futuro, pesar os prós e os contra, decidir com
conhecimento de causa”, previsão que faltou ao filho de Nestor, indicando “a falta de
reflexão da juventude” e a impulsividade que lhe priva do reto agir.644 Para enganar
Menelau, a “astúcia prudente de Antíloco interpreta a loucura. O jovem, calculando
seu golpe e conduzindo reto seus cavalos sobre a linha escolhida, simula a
irreflexão e a impotência, fingindo não ouvir Menelau gritando-lhe para tomar
cuidado”.645 Menelau desvia-se do caminho, pois acreditava que a manobra de
Antíloco se devia à falta de experiência, mas o jovem estava simulando, sem se
preocupar com os resultados de sua ação, mas voltando-se inteiramente para o
imediato e para a possibilidade da vitória seguida de glória.
Aristóteles ocupou-se da tópica das idades em sua Retórica. Aqueles que
atingem a fase adulta, diz ele, “não mostrarão nem confiança excessiva oriunda da
temeridade, nem temores exagerados, mas manter-se-ão num justo meio
relativamente a estes dois exemplos”.646 Alia-se, a um só tempo, o belo, que atrai o
jovem, e o útil, ambicionado pelo velho. No caso dos velhos, o filósofo orienta: “como
viveram muitos anos, e sofreram muitos desenganos, e cometeram muitas faltas, e
porque, via de regra, os negócios humanos são malsucedidos, em tudo avançam
com cautela e revelam menos força do que deveriam”.647 O acúmulo de experiência
priva-os do ímpeto da juventude, mas alimenta seu juízo e temperança, de forma a
torná-los bons conselheiros.
Em meio à multidão que assistia à partida das naus na praia de Restelo,
um velho se ergue, meneando a cabeça em claro sinal de desaprovação, e adverte
aos presentes em alto e bom som:
Ó glória de mandar, ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C’uma aura popular, que honra se chama. Dura inquietação da alma e da vida,
644 DETIENNE, Marcel. VERNANT, Jean-Pierre. Métis – As astúcias da inteligência. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Odysseus Editora, 2008, pp. 22-23. 645 Idem, p. 30. 646 ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Edições de Ouro, 1980, capítulo XIV, p. 156. 647 Idem, capítulo XIII, p. 155.
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Fonte de desamparo e adultérios, Sagaz consumidora conhecida De fazendas, de reinos e de impérios! Chamam-te ilustre, chamam-te subida, Sendo dina de infames vitupérios; Chamam-te Fama e Glória soberana, Nomes com que se o povo néscio engana.648
A fama, neste caso, significa glória movida pela vaidade, desejo pela
autorrealização. Esta motivação, afirma a personagem, é digna dos mais infames
vitupérios. O “povo néscio”, que muito facilmente se deixa enganar, concebe esta
cobiça como algo realmente “ilustre”. O velho, no entanto, assumindo o papel de
homem discreto, não se deixa levar pelas tentações da glória infame, julgando tal
tendência como desajuizada, como uma avaria à empresa no ultramar. Saraiva
acredita tratar-se de um desprezo pelo vulgo decorrente da formação humanística do
poeta.649 No entanto, da forma como aparece no poema, estas palavras parecem
sugerir a imprescindibilidade do desengano, pois homens sem letras e/ou de
experiência reduzida tendem a apreender as coisas do mundo pela aparência.
Em outro momento, o velho do Restelo coloca em evidência a dilatação
do Império e, novamente, o propósito dos nautas:
Deixas criar às portas o inimigo Por ires buscar outro de tão longe Por quem se despovoe o Reino antigo, Se enfraqueça e se vá deitando a longe! Buscas o incerto e incógnito perigo Por que a fama te exalte e te lisonje Chamando-te senhor, com larga cópia, Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!650
A incerteza do trajeto e das futuras consequências da viagem nos remete
à novidade da empresa que estava por iniciar. A ambição por “novos reinos”, diz o
sábio, levaria ao abandono de Portugal e desamparo da população. Em outra
estrofe, ele amaldiçoa aquele que inventou a primeira nau, pois esta criação
estimulou o anseio por descobertas e, em consequência, por fama, comum àqueles
que se alimentam da cobiça. A estes, a personagem deseja a inglória e a perda do
nome, que é duplamente trágico: o nome se perde com o corpo, que perece nos
648 Os Lusíadas, 2005, canto IV, estrofes 95-96, p. 145. 649 SARAIVA, António José. Luís de Camões. Lisboa: Europa-América, 1959, p. 124. 650 Os Lusíadas, 2005, canto IV, estrofe 101, p. 148.
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confins do mar, e a fama se esvai em seguida, em decorrência do fracasso da
empresa. Para estes, o que a empresa lhes renderia?
Que promessas de reinos e de minas De ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? Que histórias? Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?651
De acordo com Alexei Bueno, estas duras palavras com entonação
profética poderiam muito bem decorrer da ansiedade causada pelos horrores de um
naufrágio, ou pelos perigos que assolavam a tripulação durante os árduos
momentos da viagem.652 Ou seja, tomando a estrofe acima como referência, nada
há de restar para aqueles que têm a fortuna como obstáculo. Não haverá consolo,
riquezas, mercês, histórias, pois os propósitos, quando movidos pelo ímpeto
particular, são desde a sua gestação perdidos. Não entendemos, como quer Hernâni
Cidade, a existência de um Camões favorável e outro contrário à empresa no
ultramar. As orientações de conduta que o poema propõe, antes de qualquer coisa,
tendem a demonstrar um caminho acertado e moralmente correto, e outros que,
apesar de recorrentes, são imorais e enganosos. Para isso, o poeta
engenhosamente adota um procedimento retórico apologético: anuncia uma postura
favorável e outra que lhe contradiz. Ao aedo, portanto, caberia divulgar e alinhar as
posturas possíveis, utilizando a desfavorável para legitimar e amplificar as
propriedades daquela julgada favorável. Por outras palavras, como que numa
balança, deveriam ser pesados os prós e os contra da empresa ultramarina: na
equação final, predomina a postura mais acertada e ajuizada. Isto mantém certa
coerência com a seguinte afirmativa de Pécora:
O poema não apenas louva o feito acabado, como se viu, mas corrige moral e juridicamente o imperfeito e enganado, às suas próprias custas e do desejo reto que o move. Neste ponto, em que o gênero epidítico confunde-se com o judiciário, o louvor se faz, antes de mais nada, por negativa e exclusão, com a grave incumbência de distinguir o falso herói do verdadeiro, e banir aquele do seu canto.653
651 Idem, canto IV, estrofe 97, p. 145. 652 BUENO, Alexei. Introdução. In: BRITO, Bernardo Gomes de. História trágico-marítima. Rio de Janeiro: Lacerda Editores / Contraponto Editora, 1998, p. X. 653 PECORA, Alcir. Máquina de Gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefocauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 153.
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Não há, assim, a omissão de posturas contrárias às que o poeta canta,
mas sim a refutação dialética dos argumentos contrários à empresa ultramarina, o
que confere maior importância à postura que se quer defender. Eleva-se o mérito da
ação ajuizada e, por inversão, desacredita-se o seu inverso em prol de uma didática
que ensina como não agir. Supor, portanto, o “fim orgânico” do poema significa
negar a unidade épica e seu engenho retórico-poético. Em momento posterior,
Camões continua sua censura à cobiça:
E ponde na cobiça um freio duro, E na ambição também, que indignamente Tomais mil vezes, e no torpe e escuro Vício da tirania infame e urgente; Porque essas honras vãs, esse ouro puro, Verdadeiro valor não dão à gente. Milhor é merecê-los sem os ter, Que possuí-los sem os merecer.654
Anuncia-se o falso herói e, ao mesmo tempo, subtende-se a necessidade
do herói verdadeiro. É do primeiro que trata o velho de Restelo e o movimento que
Camões delimita para o seu poema tende a valorizar Gama como herói prudente: ele
anuncia, a princípio, o alter vaidoso no ato da partida para, no decorrer da trama
épica, demonstrar que Vasco da Gama e seus homens correspondiam justamente
ao oposto. Postula-se o caminho tortuoso para, a partir dele, demarcar a justa ação.
O aedo define seus protagonistas como sendo o oposto do que preconiza, com
censuras severas, o velho sábio:
Quão doce é o louvor e a justa glória Dos próprios feitos, quando são soados! Qualquer Nobre trabalha que em memória Vença ou iguale os grandes já passados. As invejas da ilustre e alheia história Fazem mil vezes feitos sublimados. Quem valerosas obras exercita, Louvor alheio muito o esperta e incita.655
Quanto à empresa movida por “justa glória”, o velho de Restelo nada tem
a censurar. Este louvor “doce”, resultado de trabalhos suados, é que ancora a
matéria poética. No caso, os artifícios retóricos utilizados não pretendem corroborar
a “organicidade” do poema, mas sim, contando com a discrição do auditório,
654 Os Lusíadas, 2008, canto IX, estrofe 93, p. 276. 655 Idem, canto V, estrofe 92, p. 169.
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desconstruir uma postura “vulgar” e, sobre ela, erigir uma justa e memorável. Se não
existe, por um lado, contradição e dubiedade quanto à postura assumida pelo poeta,
por outro, há a necessidade de julgar a melhor conduta de forma prudente, evitando-
se o seu oposto.
Como recorda Afrânio Peixoto, a figura de um velho é conveniente nesta
ocasião: a experiência, no caso, é requisito de prudência. A comparação que
Peixoto faz entre esta sábia personagem e o coro de musas da tragédia grega é
pertinente: afinal, compete ao coro, dentre outras coisas, alertar o(s) protagonista(s)
e os leitores sobre os riscos ocasionados pela desmedida, passível de finais
trágicos. A figura do velho, à maneira, por exemplo, de Nestor, conselheiro dos
gregos na empresa contra Troia, recobra para si o discernimento e a experiência de
alguém que viveu o suficiente para formar juízos sobre a atitude de um homem e
sobre as “coisas do mundo”. Para utilizar, por fim, o exemplo que inaugura este
tópico, o juízo provindo da experiência pode ser associado à Menelau que, frente às
ousadias do oponente Antíloco, soube impor seu bom juízo e censurar a dissimulada
desconsideração do jovem. Desconsideração que Tomás de Aquino avalia como
sendo imprudente, pois denota “defeito no reto juízo”.656
A experiência é categoria fundamental para se entender o teor daquilo
que diz o velho do Restelo. Como nos adverte Pierre Aubenque, a experiência, em
Aristóteles, “supõe a soma do particular e está, pois, na rota do universal”. Em
seguida, ele afirma:
A experiência não é repetição indefinida do particular, mas já se introduz no elemento da permanência; é esse saber antes vivido do que aprendido, profundo porque não deduzido, e que reconhecemos naqueles dos quais dizemos que “têm experiência”.657
Neste caso, a experiência é retratada não apenas como requisito para a
prudência, mas como parte dela. Já pensando na leitura que São Tomás de Aquino
faz da prudência, o papel central do homem que detém esta virtude é “aplicar os
princípios universais às conclusões particulares do âmbito do agir”.658 Aquino não
656 TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 82. 657 AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, p. 99. 658 TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 11.
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restringe o conceito de prudência à experiência, o que seria reduzir um termo ao
outro. Muito pelo contrário, a prudência que ele chama de “verdadeira” ou “perfeita”
depende também do ensino e de outros elementos que ele divide em dois setores
mais gerais: a dimensão cognoscitiva, referente à memória, razão, inteligência,
docilidade e sagacidade, e a dimensão de comando, relativa à previdência,
circunspeção e prevenção.659
Vociferando, o velho de Restelo termina sua arenga:
Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, Nas ondas vela pôs em seco lenho! Digno da eterna pena do Profundo, Se é justa a justa Lei que sigo e tenho! Trouxe o filho de Jápeto do Céu O fogo que ajuntou ao peito humano, Fogo que o mundo em armas acendeu Em mortes, em desonras (grande engano!). Nenhum cometimento alto e nefando Por fogo, ferro, água, calma e frio, Deixa intentado a humana geração. Mísera sorte! Estranha condição!660
Estes trechos foram retirados das últimas três estrofes do canto IV e nos
levam a recordar outro lugar comum associado ao caráter do velho. Aristóteles
afirma que o acúmulo de experiência leva o homem a desenvolver certos aspectos
excessivos em seu caráter: se tornam, por exemplo, desconfiados e suspeitosos,
pois sofreram inúmeros desenganos durante a vida. De acordo com o filósofo, eles
“vivem de recordações mais que de esperanças, porque o que lhes resta de vida é
pouca coisa em comparação do muito que viveram”.661 O fato de amaldiçoar aquele
que criou a primeira nau, destinando-lhe o inferno, a desilusão frente à humanidade,
que se utilizou do fogo cedido por Prometeu para provocar mortes e desonras, e a
tentação a que se submete a “humana geração” faz com que o velho, adornado de
uma vasta experiência, se atenha mais ao “útil”, deixando de lado a esperança e se
mostrando pouco propenso à espera.662 Como ele se pauta mais nas recordações,
significa que nenhum exemplo despertou-lhe esperança. Sua insatisfação, portanto,
659 Idem, pp. 20-30. 660 Os Lusíadas, 2008, canto IV, estrofes 102-104, p. 144. 661 Ver: ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Edições de Ouro, 1980, capítulo XIII, pp. 154-155. 662 Idem, ibidem.
241
antecede a jornada de Vasco da Gama. A possível conotação “pessimista” do velho
de Restelo pode soar como uma prova a ser vencida, uma vez que o artifício
apologético tende a conferir feições à postura vil para que ela possa, em seguida,
ser refutada com argumentos que apelam para as ações nobres dos protagonistas.
Este aspecto pode ser apreendido, também, nos escritos de Horácio
quando, em sua arte poética, estabelece o éthos das idades: o velho, para ele, age
geralmente com temor e frieza e apresenta um caráter descontente, tratando-se de
um homem “inerte e ávido do futuro”, e “louvador dos tempos passados”. Por esta
razão, Horácio afirma que ele “castiga e censura os que são mais novos”.663 Mais
uma vez, esta interpretação sugere que a inclinação do velho de Restelo se dê mais
pela idade e por esta desconfiança perante as gerações que lhe sucedem, do que
necessariamente por “prever” aspectos negativos referentes à empresa de Vasco da
Gama. Longino, seguindo os passos de Horácio, enfatiza e generaliza o
“pessimismo” dos homens em relação ao seu presente, dizendo que é comum falar
mal do seu tempo.664
Para utilizar um exemplo mais ou menos contemporâneo à obra
camoniana, o éthos da velhice é retomando também por Baldassare Castiglione.
Seguindo os passos de Aristóteles e de Horácio, ele afirma:
Não sem maravilha, várias vezes considerei onde surge um erro, que se acredita ser próprio dos velhos, pois neles se encontra universalmente: é ele o de que quase todos louvam os tempos passados e criticam o presente, vituperando nossas ações, maneiras e tudo aquilo que não faziam em sua juventude.665
Castiglione, assim como Aristóteles e Horácio, não deixa de salientar os
ganhos acumulados com o passar do tempo, como prudência, juízo, moderação etc.
Isto não impede, contudo, que os velhos se tornem críticos e pouco afeitos aos
jovens, por entender que “todo bom costume e toda boa maneira de viver, toda
virtude, tudo enfim, vai sempre de mal a pior”.666
663 HORÁCIO. Arte poética. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 57. 664 LONGINO. Do sublime. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 113. 665 CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão. Tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 83. 666 Idem, ibidem.
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A reprimenda efetuada na praia de Restelo, portanto, extrapola a empresa
de Vasco da Gama, tratando-se de um alerta ao leitor ambicioso que se deixa mover
pela cobiça. O velho, prudente e experimentado, olha para o presente com
pessimismo e sem esperanças, o que deixa o seu olhar turvo perante as
possibilidades de glória vindoura. O que falta a ele, no caso, é o conhecimento da
empresa de Vasco da Gama, que, àquela altura, estava por iniciar.
O velho do Restelo é um retentor de memórias, que ele revela como se
fossem profecias. O lugar do qual fala esta sábia personagem de fato coloca os
dados que expõe num futuro próximo, que para o leitor são acontecimentos
passados e bem conhecidos. A longa vivência deste experimentado súdito
português lhe confere autoridade para falar com juízo e “prever”, sem nenhuma
implicação heterodoxa, fatores que confirmariam as suas proposições. Embora
crítico, sua fala amplifica as conquistas portuguesas que se iniciariam ali, com a
partida de Vasco da Gama. Suas profecias e imprecações, portanto, não se mostram
incapazes de deter o fluxo dos acontecimentos. Conjuga-se, portanto, os atributos
comumente associados ao lugar destinado ao “velho”, como a experiência e o
“pessimismo” em relação ao presente, e uma postura instrutiva, pedagógica, que
orienta ao apontar para os erros a serem evitados. É como se as advertências, que
presumimos serem direcionadas aos nautas portugueses, ultrapassassem este limite
e, como profecias, fossem direcionadas ao futuro, aos leitores, aos pósteros que,
ciente de todas aquelas memórias narradas pela personagem camoniana, evitariam
recair em erro semelhante. A unidade da obra não apenas se mantém como também
atende ao decoro externo, adequando-se à recepção.
É verossímil que o velho, na situação de retentor de memórias, signifique
a personificação da memória compartilhada não necessariamente no momento da
partida de Vasco da Gama, mas dos leitores d’Os Lusíadas. Estas memórias,
coletivas e anônimas, forjadas através do engenho poético, encontram no velho do
Restelo subsídio e autoridade. De individualidade caduca e “pessimista”, esta
personagem passa a simbolizar as aflições, as dores, o sofrimento, mas também os
anseios, as perspectivas, os sonhos e, sobretudo, os juízos que assinalam uma
conduta ética ao condenar a cobiça, a ambição e as paixões em geral. A trajetória
de Vasco da Gama nos leva a entender o seu silêncio frente às admoestações do
velho: não é o silêncio de quem ignora o que foi dito, tampouco de quem não
apreende a pertinência daquelas palavras. Trata-se do silêncio de quem não se
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identifica com o perfil pintado pela personagem. Um silêncio reflexivo que poderia
denotar humildade, atenção e aprendizado. As palavras do velho de Restelo, que
supomos serem direcionadas aos nautas portugueses, ultrapassam as naus
lusitanas, trafegam pelos mares da poesia épica camoniana para, finalmente,
ancorar os juízos do leitor.
A cobiça e (a limitação d)os remédios humanos:
Segue abaixo uma das odes atribuídas a Horácio, traduzida por Ariovaldo
Augusto Peterlini:
Que a Deusa poderosa e senhora de Chipre, que de Helena os irmãos, rutilantes estrelas, e o pai dos ventos, tendo a todos prisioneiros, mas não o Iápix (noroeste) favorável, a bom porto te conduzam, ó nau, que me deves Vergílio, que de ti confiei; suplico o restituas são e salvo aos confins dos litorais da Ática e me preserves a metade de minha alma. Tinha carvalho e três de bronze duras lâminas em volta ao peito o que, primeiro, ao mar bravio ousado confiou uma frágil jangada; o que não vacilou ante o vento Africano (sudoeste) num vórtice veloz de encontro aos Aquilões (nordeste), nem feias Híades temeu, nem fero Noto, senhor maior que o qual não tem o Adriático, quer queira encapelar, quer serenar as ondas... De que aproximação da morte não tremeu quem, sem lágrimas, viu esses monstros nadantes, quem viu, primeiro, o mar nas fúrias da borrasca e as fragas enfrentou de nome Acroceráunias. Inutilmente um Deus sensato separou, com o oceano divisor, as terras, se, contudo, ímpios batéis os mares cruzam proibidos... Audaz em tudo ousar, a raça humana vai precípite rompendo as leis, em sacrilégios. Atrevido e falaz foi o filho de Jápeto, quando em nefasto ardil trouxe aos povos o fogo. Com o fogo roubado à etérea morada, sobre a terra tombou a desgraça da fome e estranha multidão de doenças sem nome... E o outrora moroso implacável da morte, tão distante até ali, amiudou seu passo. Foi com ímpias asas ao homem não dadas que Dédalo o vazio do espaço esquadrinhou. Hércules, num trabalho, o Aqueronte rompeu. Nada para os mortais existe de difícil. Pedimos com loucura o próprio imenso céu, nem deixamos jamais, por nosso sacrilégio, que Júpiter descanse a ira de seus raios.
244
O poeta, no caso, pede a Vênus, aos irmãos Cástor e Pólux (constelação
protetora dos navegantes) e a Éolo que guiem a nau de Virgílio. Esta ode é
entendida como exemplar do gênero propemtikon\n, discurso de boa viagem
recorrentemente praticado por poetas “helenísticos”. Este poema foi alvo de
polêmicas, pois não há consenso quanto ao teor da ode (se sério ou irônico) ou à
motivação do poeta (elogiar a audácia humana ou condená-la). A ode certamente
mobiliza a tópica da ousadia humana ao indicar feitos que desafiam os desígnios
“superiores”. Há quem a conceba como alegoria, através da qual o aedo estaria
elogiando as habilidades poéticas de Virgílio, que teria navegado pelos mares da
epopeia.667 Em outra ode, Horácio utiliza a tópica da aurea mediocritas, que diz:
“Feliz aquele que, longe dos negócios,/ como a antiga raça de mortais,/ faz trabalhar
seus bois nos campos paternos,/ livre de toda usura,/ e não o acorda, qual a um
soldado, a cruel trombeta,/ nem teme o mar bravio, / e evita o fórum e os soberbos
limiares / dos poderosos”.668
Passando ao lado das polêmicas relativas a estas odes, é possível notar
que Camões as emulou no canto IV de sua epopeia, justamente no episódio de
velho do Restelo. Por outras palavras, Camões imitou um gênero comumente
utilizado em discursos de boa viagem num momento decisivo do poema: a partida
das naus rumo à descoberta das Índias. Se o poeta lusitano leu metaforicamente a
ode, compreendendo-a como elogio a Virgílio, talvez as imprecações do velho do
Restelo, além de orientar os leitores quanto às condutas virtuosas, amplificaria a
própria empresa poética de Camões, que estaria singrando os mares da epopeia à
maneira do poeta romano.
Henrique Dias, em seu relato de naufrágio da nau São Paulo, de certa
forma mobiliza estes tópicos retóricos ao discorrer sobre os perigos do mar e o
conforto de quem permanece em terra:
Pelo que a experiência nos ensina que quem o pode escusar vive em mais tranquilidade de espírito de tanta confusão, e antes, com menos na terra que atravessar o mar por coisas tão transitórias, e de pouca dura; e na terra
667 Ver: HASEGAWA, Alexandre Pinheiro. O Epodo X de Horácio e a recusa do gênero épico. In: Cadernos de Literatura em Tradução, n. 5, pp. 77-103. 668 Apud. FONSECA, Carlos Alberto Louro. Horácio em A vida de Soares de Passos. In: Humanitas: Instituto de Letras da Universidade de Coimbra, 1967, p. 80. Sobre a ode I, 3, ver: FREITAS, Leandro César de Albuquerque. Ecos bucólicos: relações entre as Bucólicas de Virgílio e a primeira parte da Marília de Dirceu de Gonzaga. Dissertação de mestrado. João Pessoa: Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, 2008, p. 25; CARUSO, Pellegrino. Problemi testuali nel libro primo dei Carmina di Orazio. Dottorato. Universitá Degli Studi di Salerno, 2010.
245
viver como bom cristão, cumprindo a Lei de Deus dentro no grêmio da Santa Madre Igreja de Roma e multiplicando os talentos que o Senhor a cada um de nós entregou, porque dando-lhe boa conta, mereçamos ouvir dele no porto de salvação aquela suave voz: “Vem, bom servo e fiel, porque em pouco foste fiel, sobre grandes cousas te porei; entra em o prazer e contentamento de teu Senhor, que é a Glória”, a qual ele por sua bondade nos queira dar.669
Este desfecho da narrativa remete ao seu princípio, quando o narrador
afirma: “Acontece muitas vezes a voz do povo ser juízo do Senhor e falar pela boca
dele o que há-de vir”.670 Se podemos associar o “juízo do Senhor” à voz emprestada
ao velho do Restelo, dificilmente se poderia crer que suas asseverações fossem
contrárias ao projeto de ampliação do império e divulgação da fé cristã. Antes de
retomar a Parábola dos Talentos e referir à tranquilidade de quem pode ficar no
reino e multiplica-los, Henrique Dias havia citado o salmo 106, que discorre sobre a
experiência dos homens no mar e a reconhece como obra do Senhor. Com duas
passagens bíblicas, portanto, o narrador alude à felicidade de quem permanece em
terra e multiplica seus talentos e à prudência e temor necessários para fazer cessar
as tempestades. O vociferar do velho do Restelo, tipo detentor de vasta experiência,
não parece contradizer a empresa ultramarina, mas ponderar sobre suas fortunas e
fadigas. Mais fácil seria não se colocar à prova, mas, como assevera Henrique Dias,
nem todos podem ser dar ao luxo de evita-la.
Horácio toma por corajoso o primeiro que encarou o mar bravio. O velho
do Restelo condena-o pela mesma coragem, já que oferece condições para a
promoção da cobiça e ambição humanas. Ambos mencionam as experiências de
Prometeu, Hércules e Dédalo para amplificar as implicações da empresa
navegadora e condenar os excessos, a hybris. Trata-se, neste caso, de uma
amplificação da arrogância e da promoção de uma política do desengano.
O poeta Jerônimo Corte-Real nos faz entender o quão odioso lhe parece
o pecado da cobiça:
Muito pode a cobiça, mas se imprime Nos fracos corações baixos vulgares, Não há torre, nem muro onde não suba: Não há prisão tão forte, que não rompa No que se mostra mais cerrado entra, O que parece mais seguro escala, Por demais é guardar, nem ter vigia
669 HTM, p. 259. 670 Idem, p. 193.
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No que por qualquer preço fica fácil.671
Tal como o velho do Restelo, o aedo, neste caso, associa o poder
destrutivo da cobiça ao vulgo (“fracos corações baixos vulgares”). Os relatos de
naufrágio também aludem à prática da cobiça, reproduzida ao longo das
navegações, sobretudo quando relacionada aos então chamados “homens do mar”.
No relato de naufrágio da nau São Bento, deparamo-nos com a seguinte narrativa:
Esta noite, porque fazia luar, foram três marinheiros correr a praia com esperança da tormenta passada, e acharam na boca do rio um tubarão lançado à costa, o qual repartiram entre si, e cada dous dedos de posta nos venderam por quinze e vinte cruzados; e a falta doutros mantimentos fazia tanta sobejidão que compradores que depois do corpo ser levado a este preço não faltava quem desse pela metade da cabeça vinte mil réis; de modo que bem se pudera comprar nesta terra muito arrezoada quinta com o que aquele peixe rendeu.672
Para além da avareza e do interesse no lucro, há, em outra passagem,
desta vez localizada no relato de naufrágio da nau São Paulo, uma alusão que
ressalta a natureza vil desses homens:
E por certo cousa muito miserável e de contar a diversidade das condições humanas; e muito mais para chorar suas cobiças e misérias, porque, indo a nau caindo sobre o ilhéu, em que apenas havia tocado, já a gente do mar andava escalando arcas e arrombando câmeras, e fazendo fardos e trouxas, como se estiveram em terra habitada e de muitos amigos, comarcãos e vizinhos de sua pátria e natureza, e tivessem mui seguros e certos, caminhos e direitas estradas por onde caminhassem, e embarcações boas em que navegassem.673
A descrição continua:
Desta maneira andavam, uns roubando e destruindo tudo, assim os que estavam na nau como outros que estavam em terra, abrindo barris, arcas e caixões, que o mar já de si deitava; mas quem se espantará ou haverá por novidade achar-se isto em gente do mar, tão inumana, se os conhecer, e lhes souber das más inclinações, e quão pouca lei tem com Deus, nem caridade com o próximo?674
671 CORTE-REAL, Jerônimo. Naufrágio e lastimoso sucesso da perdição de Manoel de Sousa Sepúlveda, e Dona Lianor de Sá sua mulher e filhos, vindos da Índia para este Reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de boa Esperança, na terra do Natal. E a peregrinação que tiveram rodeando terras de Cafres mais de 300 léguas até sua morte. Lisboa: Typografia Rollandiana, 1783, p. 16. 672 HTM, p. 63. 673 Idem, p. 233. 674 Idem, ibidem.
247
A crítica, no caso, não foi direcionada à obtenção de riquezas
simplesmente, mas à maneira vil de se obtê-las: “foram deitando todas as riquezas e
louçainhas, de que a nau ia riquíssima, ganhando tudo com tanto suor de uns, e com
tanto encargo de outros”.675 Note-se, portanto, o momento de desengano:
como homens pasmados, parecendo um sonho, verem assim uma nau, em que havia pouco iam navegando, tão carregada de riquezas e louçainhas que quase não tinham estimação, comida das ondas, submergida debaixo das águas, entesourando nas concavidades do mar tantas coisas, assim do que nela iam, como dos que ficavam na Índia, adquiridas pelos meios que Deus sabe.676
Riquezas, tratadas com tanta estimação, acabavam se tornando
instrumentos de perdição:
e não foi também aqui pequeno o lugar que a infinidade de perdidas fazendas ocupava, porque tudo quanto podíamos estender os olhos de uma e outra parte daquela praia estava cheio de muitas odoríferas drogas e outra infinita diversidade de fazendas e cousas preciosas, jazendo muitas delas ao redor de seus donos, a quem não somente não puderam valer na presente necessidade, mas ainda a alguns, de quem eram sobejamente amadas na vida, com seu peso foram causa da morte; e verdadeiramente que era uma confusa ordem com que a desventura tinha tudo aquilo ordenado, e que bastava a memória daquele passo para não ser a pobreza havida por tamanho mal que por lhe fugir deixemos a Deus e o próximo, pátria, pais, irmãos, amigos, mulheres e filhos, e troquemos tantos gostos e quietações pelos sobejos que cá ficam. Enquanto vivemos nos fazem atravessar mares, fogos, guerras e todos os outros perigos e trabalhos, que nos tanto custam; mas por não contrariar de todo as justas escusas que por si podem alegar os atormentados das necessidades, cortarei o fio ao católico estilo, porque me ia e levava a memória e medo do que ali foi representado, recolhendo-me a meu propósito, que é escrever somente a verdade do que toca aos acontecimentos desta história.677
Após o naufrágio, já durante a peregrinação, a cobiça dos “nativos”
passava, igualmente, a trazer problemas aos portugueses, então desamparados de
quase todas as suas posses:
E como o propósito com que este rei ali nos desejava, não fosse todo fundado em virtude, mas parte em interesse, como peste geralmente criada nas mais das pessoas (por rústicas que sejam), e este fosse haver de nós algum ouro ou joias dele, não porque lhe sejam necessárias para seus usos, mas por saberem que os portugueses do navio que ali foram os anos passados compraram estas cousas aos que roubaram a Manuel de Sousa Sepúlveda a troco de contas, que eles têm por tão precioso tesouro como nós a pedraria ou seu semelhante, como discreto e sagaz que era quis haver isto à mão com o menos escândalo nosso que ser pudesse.678
675 Idem, p. 345. 676 Idem, pp. 349-350. 677 Idem, p. 39. 678 Idem, p. 81.
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Em outro momento, a pobreza é tomada como um dos incentivos à
viagem, justificativa para o enfrentamento de mares bravios:
Assim, não nos contentando com o que nos é dado e concedido de Deus, nos obriga nossa cobiça, omnium malorum radix, deixar nossa amada pátria e lares próprios, tão desejados, só por fugirmos à pobreza, que não pode ser maior que a deste estado, em que sofremos e passamos o fogo e frio de ambas as zonas, tão memoradas dos antigos, a que eles nunca cometeram nem viram, e menos experimentaram suas quenturas e frialdades.679
O narrador retoma a autoridade de Ovídio, dizendo “que cresce o amor e
cobiça do dinheiro, tanto quanto ele mais cresce”, e que por isso as riquezas
“enganam e atraem para si os ânimos mortais”.680 As consequências, na maioria das
vezes, são dramáticas, como no episódio que segue:
rostos cobertos de tristes lágrimas e de uma amarelidão e trespassamento da manifesta dor e sobejo receio que a chegada da morte causava, ouvindo-se também de quando em quando, algumas palavras lastimosas, sinal certo da lembrança que ainda naquele derradeiro ponto não faltava dos órfãos e pequenos filhos, das amadas e pobres mulheres, dos velhos e saudosos pais que cá deixavam.681
O desengano, no caso, faz enxergar uma vida que a cobiça não deixou
ver. As lágrimas manifestaram-se como resultado da purgação e da penitência, num
reconhecimento derradeiro da condição de pecador.
Reta razão aplicada ao agir
Em trabalho sobre a prudência nos escritos de Aristóteles, Pierre
Aubenque afirma que a existência do homem prudente (phronimos) precede a
determinação da essência/natureza da prudência (phrônesis), isto é, o phronimos
não é apenas o intérprete da reta regra, mas o portador vivo da norma e, portanto, a
personificação da regra. Esta deve ser entendida como critério definidor da justa
medida que, por sinal, é discernível somente aos olhos do homem dotado de
phrônesis. O homem prudente é o único capaz de fornecer um julgamento reto e, por
esse motivo, consegue deliberar bem tendo em vista uma ação circunstancial e
679 Idem, p. 221. 680 Idem, ibidem. 681 Idem, p. 33.
249
contingente.682 Por outras palavras, não há prudência sem, antes, haver um modelo
de conduta a ser seguido. No entanto, não se deve perder de vista algumas
categorias caras às analises de Aristóteles: o homem prudente pode priorizar os
bens relativos ao âmbito particular ou pode agir em prol dos homens em geral, em
observância à dimensão do bem comum. A vida feliz, finalidade última que tangencia
a ética aristotélica, envolve justamente a superação das finalidades particulares e a
priorização dos bens humanos. Por esta razão, Aristóteles faz do homem o centro de
sua ética sem divinizá-lo, como nos lembra Aubenque. A prudência, então, seria “o
substituto propriamente humano de uma Providência que falha”.683
Desta forma, a phrônesis é entendida como uma disposição prática
responsável pelo reconhecimento das virtudes morais. A prioridade, no caso, é a
adoção de meios oportunos capazes de incidir na consumação de fins almejados.
Felipe Charbel afirma que a escolha (proairesis) é central na definição do agir
prudente em Aristóteles, pois é através dela que se recorre aos meios adequados
para se atingir o fim proposto.684 Assim, não basta “saber o que é justo e nobilitante.
É preciso, acima de tudo, saber escolher o justo, transformá-lo em ação e conduta”,
o que é possível através da “ponderação de cada acidente, de cada lance fortuito a
que os homens estão sujeitos”.685 O phronimos deve se orientar de acordo com a
reta razão, de forma que a prudência se configura como faculdade intelectual
atrelada à parte calculadora da alma racional. O desejo de ser bom e de ocasionar o
bem principia a resolução acertada e o cálculo racional a ser aplicado perante a
contingência das coisas humanas. É de vital importância, portanto, a consideração
das ocasiões e das oportunidades (kairos).686
682 A deliberação, no caso, “consiste em procurar os meios para realizar um fim previamente posto”, tratando-se de uma “condição sem a qual a ação humana não pode ser boa ação, ou seja, virtuosa”. A deliberação diz respeito aos meios, e não aos fins, e prioriza o útil, e não o bem. Em outras palavras, ela pode ser mobilizada na efetuação de ações vis. No caso, o phronimos deve aliar à deliberação uma finalidade virtuosa. Sobre o assunto, ver: AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, pp. 173-192. 683 Idem, p. 155. 684 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Tese de doutoramento. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, p. 58. Sobre o conceito de proairesis, ver: AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, pp. 193-229. 685 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Tese de doutoramento. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, p. 60. 686 A noção de kairos, entendida como tempo oportuno ou ocasião favorável, indica “o bem segundo o tempo, ou ainda, o tempo enquanto nós o consideramos bom”. Ver: AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, pp. 193-229.
250
A phrônesis é um dos atributos que caracteriza, também, o sábio estoico.
Guy Hamelin questiona a possibilidade de aproximação entre a prudência aristotélica
e a sabedoria estoica, desenvolvendo sua argumentação a partir de alguns
paralelos. A princípio, o autor percebe que a phrônesis constitui uma habilidade para
os estoicos. Aristóteles, ao contrário, distingue habilidade e prudência. Outro
argumento que sustenta a hipótese de Hamelin é o de que, para os estoicos, não há
uma distinção categórica entre sophia e phrônesis, como aquela elaborada por
Aristóteles. Assim, o conhecimento do sábio torna-se infalível, enquanto o prudente
aristotélico não consegue se livrar inteiramente do contingente, do fortuito.687
Pierre Aubenque julga haver uma grande distância entre a noção de
phrônesis aristotélica e a phrônesis estoica, aproximando-se da tese de Hamelin. O
autor lembra que não há na definição estoica a divisão entre a parte “científica” e a
parte “opinativa” ou “deliberativa” (à qual estaria ligada a prudência) da alma
racional, tampouco a distinção entre um bem absoluto, objeto da sabedoria (sophia),
e um bem para o homem, objeto da prudência (phrônesis). Não há, portanto, a
atribuição à prudência de “um campo distinto do da sabedoria, que era para
Aristóteles o contingente”.688
Tratando-se dos estoicos, isso não surpreende: a prudência aristotélica, substituto humano de uma sabedoria demasiado superior para nosso mundo, estava ligada à distinção do necessário e do contingente, do mundo divino e do mundo sublunar. No universo estoico, animado em todas as suas partes por um mesmo logos, não havia lugar para duas virtudes intelectuais, mas para uma única, que coincidisse com o Logos universal.689
Zenão (334 a.C.-262 a.C.), considerado o fundador do estoicismo, afirma
que a phrônesis “coloca ordem nas paixões e dá uma justa medida aos prazeres”.
Desta forma, “quando a phrônesis dá a cada um o que lhe é devido, ela é justiça, e
quando nos indica o que é preciso evitar, é temperança; quando nos ajuda a
suportar a adversidade, é coragem”.690 Para Zenão, “há diferentes virtudes, as quais
são inseparáveis através da prudência; no entanto, na medida em que ele as define,
acaba por igualá-las à prudência”. Assim,
687 Ver: HAMELIN, Guy. “O sábio estóico que possui o discernimento aristotélico?”. In: Revista Archai (Revista de Estudos sobre a origem do pensamento ocidental). Universidade de Brasília, 2010. 688 AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, p. 294. 689 Idem, pp. 295-296. 690 Idem, p. 194.
251
quem tem qualquer uma das virtudes, na medida em que todas elas são atualizações da prudência em determinado tipo de contexto, tem todas; justamente, ter prudência é ter as virtudes morais a serem aplicadas nos diferentes contextos em que o agente se encontra.691
O estoico Crisipo (278-206 a.C.), na esteira de Zenão, assegura que as
virtudes da coragem, da justiça, da prudência e da temperança são inteiramente
distintas, mas implicadas entre si: ou possuímos todas as virtudes, ou não
possuímos nenhuma delas.692 O homem prudente, desta forma, contém em si todas
as outras virtudes. Areté (virtude) e eudaimonia (felicidade) são indissociáveis no
sábio estoico: o homem virtuoso é necessariamente feliz. Para ser virtuoso e,
portanto, feliz, ele deve manter sua natureza em sintonia com a Natureza universal,
que rege todas as coisas. Em suma, a “reta razão aplicada ao agir” torna o homem
feliz na medida em que sua conduta atualiza o Logos universal.
De acordo com Markus Silva, a phrônesis em Epicuro (341 a.C.-270 a.C.)
não deixa de ser uma “sabedoria prática”, aproximando-se da concepção aristotélica.
No entanto, Epicuro distancia-se de Aristóteles “por atribuir à phrônesis a primazia
sobre outros saberes, definindo a filosofia como um ‘exercício’ e definindo a filosofia
em seu sentido mais alto como phrônesis, ou sabedoria no agir”.693 Nestes termos, a
prudência concede ao homem a possibilidade de refletir acerca do que é natural e
necessário saber, tanto do ponto de vista prático quanto teórico. É da phrônesis que
provém todas as outras virtudes, pois não é possível viver de modo justo e
prazeroso sem os seus auxílios. A prudência, portanto, é o “exercício prático da
sabedoria”, a “sabedoria no agir”, um “requisito básico para o exercício da filosofia,
mas não é por isso mais importante ou mais precioso que a filosofia”.694
Para Silva, há no mínimo três categorias que devem ser revistas para se
entender com clareza a abrangência da prudência em Epicuro: o logismós, a
ataraxía e a autárkeia. O logismós é uma “operação do pensamento”, um “cálculo ou
raciocínio que engendra uma medida, ou ainda uma capacidade de medir, ponderar,
dimensionar”.695 Phrônesis e logismós são “elementos depuradores dos desejos e
691 Ver: SPINELLI, Priscilla Tesch. A Prudência na Ética Nicomaquéia de Aristóteles. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005, pp. 171-173. 692 Idem, p. 173. 693 SILVA, Markus Figueira. Epicuro: sabedoria e jardim. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Natal, RN: UFRN, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2003, p. 74. 694 Idem, p. 75. 695 Idem, p. 74.
252
moduladores da conduta”.696 A ataraxía designa o equilíbrio, a tranquilidade da alma,
a imperturbabilidade. Trata-se de um estado de alma livre dos valores não naturais e
desnecessários. Nesta direção, a ataraxía é “a máxima expressão da phrônesis,
enquanto sabedoria de agir a partir de si mesmo”.697 Por fim, a autárkeia é o
fundamento do éthos do sophós, e implica na “independência”, na autossuficiência.
É necessária uma ação pautada na phrônesis e no logismós para que ela se ajuste à
autárkeia. Estes três conceitos “definem a possibilidade de ponderação, de se
estabelecer uma medida para o agir e, através do exercício da autárkeia, o sophós
define por si mesmo o bastante para a realização dos seus desejos naturais e
necessários”.698
José Américo Pessanha afirma que, para compreender a ética epicurista,
faz-se necessário diferenciar o “verdadeiro prazer”, que é estável, dos prazeres que
resultam “em pesares ou partem de carências, movendo-se entre insatisfações”.699
O primeiro é um “prazer em repouso” (voluptas in stabilitate) e o segundo um “prazer
em movimento” (voluptas in motu).700 O prazer verdadeiro, meta dos epicuristas, não
consiste em satisfazer uma necessidade, mas sim eliminá-la, preceito que permite a
efetivação da ataraxía. Uma persona prudente deveria atender somente aos desejos
naturais e necessários, atingindo a ausência de dor (indolentia) e evitando a
impulsividade instintiva. Nestes termos, o sábio epicurista é “um asceta que utiliza a
compreensão racional do mundo e da vida para racionar os próprios desejos”.701
Para Epicuro, a “direção da vida moral é exercida pela razão, pelo
raciocínio e não pelos prazeres”. A phrônesis, no caso, “é aquela que governa os
prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que não podem
ser praticados”.702 Isto indica uma forte influência da doutrina socrática, que “reduzia
todas as virtudes à prudência, e esta à ciência ou sabedoria”.703 Epicuro afirma:
696 Idem, p. 76. 697 Idem, p. 81. 698 Idem, p. 86. 699 PESSANHA, José Américo Motta. As delícias do jardim. In: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 104. 700 Idem, pp. 104-105. 701 Idem, p. 106. 702 FERREIRA, Anderson D’Arc. “A raiz etimológica da virtude da prudência em Santo Tomás de Aquino”. In: Dissertatio – Revista de Filosofia. Universidade Federal de Pelotas (UFPel), número 01, 2000, p. 155. 703 Idem, p. 154.
253
O princípio e o maior bem é a prudência, da qual nascem todas as outras virtudes; ela nos ensina que não é possível viver agradavelmente sem sabedoria, beleza, e justiça, nem possuir sabedoria, beleza e justiça sem doçura. As virtudes encontram-se por sua natureza ligadas à vida feliz, e a vida feliz é inseparável delas.704
A ética epicurista valoriza o tempo, o acúmulo de experiência, o passado,
a memória e, consequentemente, a velhice. O bem passado “é jamais perdido: a
memória se incumbe de mantê-lo vivo e fazê-lo, com toda força, outra vez
presente”.705 O desvio no tempo, “na direção do passado (memória) ou do futuro
(esperança), permite a alegria em meio à adversidade”.706 O sábio, portanto, deve
exercer pleno domínio sobre imagens, sensações e desejos, pleiteando condições
de vida adequadas e cogitando a possibilidade de buscar, através da memória e/ou
da previsão, elementos que orientam a reta razão sempre em conformidade com a
natureza. A prudência é a virtude por excelência, o “bem supremo” a partir do qual
as outras virtudes se originam.707 Neste aspecto em particular, estoicos e epicuristas
entram em acordo.
Em vários de seus escritos, Cícero tece um conjunto de críticas a Epicuro,
acusando-o de ser responsável por uma doutrina na qual “o prazer sempre merece
ser buscado por si mesmo, pelo fato mesmo de ser prazer”.708 O autor afirma que
Epicuro, “que de filósofo só tinha a máscara”, apresenta um julgamento que não
difere “do instinto dos animais”. Cícero finaliza: “nada de nobre, grandioso e divino
está ao alcance de quem rebaixa de tal modo os seus pensamentos a um assunto
tão vil e desprezível”.709 Nas obras A virtude e a felicidade e Da amizade, Cícero
demonstra simpatia pela filosofia estoica ao considerar, por exemplo, que a paixão é
um “desregramento da nossa razão”710 e que a vida feliz é o “quinhão de uma alma
tranquila, na qual não irrompe nenhum desses movimentos impetuosos que
704 EPICURO. Antologia de textos de Epicuro. In: Os Pensadores, vol. V, tradução e notas de Agostinho da Silva. São Paulo, 1973, p. 27. 705 PESSANHA, José Américo Motta. As delícias do jardim. In: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 109. 706 Idem, pp. 109-110. 707 Ver: EPICURO. Máximas Principais. Tradução, introdução e notas de João Quartim de Moraes. São Paulo: Edições Loyola, 2010, pp. 21-23. 708 CÍCERO, Marco Túlio. A virtude e a felicidade. Tradução de Carlos Ancêde Nougué. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 87. 709 CÍCERO, Marco Túlio. Da amizade. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 44. 710 CÍCERO, Marco Túlio. A virtude e a felicidade. Tradução de Carlos Ancêde Nougué. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 43.
254
desordenam a razão”.711 A virtude, que deveria levar o homem a seguir a razão e a
ordem da natureza, divide-se em quatro partes na filosofia ciceroniana: prudência,
justiça, constância e temperança. A primeira, que mais nos interessa neste trabalho,
é definida como “o conhecimento daquilo que é bom, daquilo que é mau e daquilo
que não é nem bom e nem mau”.712
Para Cícero, o “homem eloquente deve cultivar uma gama de virtudes
morais sem as quais sua oratória é vazia; em contrapartida, suas qualidades morais
não têm utilidade para a cidade se não forem acompanhadas de eloquência”.713 A
retórica, para ele, não deve ser pensada à revelia da filosofia, pois um sábio apenas
é capaz de instruir, mover e deleitar se unir ratio e oratio. Interessante notar que a
melhor forma de vida, para Cícero, é a vida pública. Para a doutrina epicurista, ao
contrário, o homem deve voltar-se para interior, evitando sempre que possível
participar dos assuntos políticos ligados à cidade. Não há felicidade na política,
ensina Epicuro. Alcançar o bem, neste caso, é um empreendimento exclusivamente
ético, pois implica na priorização da serenidade espiritual, impossível de ser
conquistada diante dos tormentos da pólis.714 Sabe-se que os escritos de Cícero
foram muito importantes entre os humanistas, sobretudo por estimular o
aperfeiçoamento ético, filosófico e político através do par sabedoria/eloquência.715
Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), por sua vez, afirma que a seita de Epicuro “tem
má reputação, é difamada, mas sem razão”.716 Ela é comumente criticada por eleger
o prazer como requisito para a felicidade. No entanto, como vimos anteriormente, o
“prazer” do qual fala Epicuro é específico. Sêneca afirma que “os preceitos de
Epicuro são veneráveis e retos”, pois o “prazer é reduzido a proporções mínimas e
exíguas”.717 Muitos, no entanto, buscam em seus escritos “patrocínio e pretexto para
suas paixões carnais”.718
711 Idem, p. 18. 712 YATES, Frances Amelia. A arte da memória. Tradução de Flavia Bancher. Campinas, SP: Editoria da Unicamp, 2007, p. 39. 713 ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 126. 714 Ver: PESSANHA, José Américo Motta. As delícias do jardim. In: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 93. 715 Ver: ADVERSE, Helton. Maquiavel: política e retórica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, pp. 130-143. 716 SÊNECA, Lúcio Aneu. Da vida feliz. Tradução de João Carlos Cabral Mendonça. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 34. 717 Idem, p. 33. 718 Idem, p. 32.
255
Na sequência, Sêneca aconselha o leitor: “que sua confiança não seja
desprovida de prudência, nem sua prudência destituída de firmeza”.719 A felicidade,
para Sêneca, pertence àquele que possui juízo reto e, em decorrência disso, “confia
à razão todas as situações da sua vida”.720 Nossa guia deve ser a natureza: “a razão
a observa e consulta”. A virtude, em consonância com a natureza e com a razão,
“aguça os ouvidos”, pesa os prazeres antes de admiti-los e “não dá valor aos que
aprovou; é verdade que os admite, porém se alegra não em usar deles, mas em
moderá-los”.721 Apesar de simpatizar com alguns escritos de Epicuro, Sêneca
reafirma constantemente sua afinidade com o estoicismo. Na esteira de Cícero, ele
destaca a importância da participação do homem na vida pública. De acordo com
Norberto Luiz Guarinello, esta dimensão política muitas vezes é negligenciada pela
historiografia, que costuma focalizar o caráter individualizante do estoicismo romano
sem matizar que parte significativa da elite política romana recorria à ética dos
estoicos para unificar, no universo das relações humanas, a vida privada e a
existência pública. Foi Sêneca, afinal, que atribuiu a Nero a imagem do rei-filósofo,
que “ocupa entre os homens, como coletividade, a posição que a razão ocupa no
homem como indivíduo”.722
Convém retomar, após esta breve digressão com Sêneca, uma passagem
do livro Da amizade na qual Cícero elogia Quinto Múcio Cévola. O autor afirma:
quando Cévola “argumentava prudentemente ou emitia sentenças breves e
eloquentes, eu memorizava com cuidado suas palavras e tratava de tornar-me mais
douto graças à sua prudência”.723 Esta passagem, que integra o preâmbulo da obra,
destaca a centralidade da prudência, ressalta a importância das sentenças
provenientes de homens experimentados e valoriza a memória. Para Cícero, a
prudência se divide em três partes: memória, inteligência e providência. Ela se
encontra associada necessariamente à deliberação e à eloquência. Felipe Charbel
afirma que, para Cícero, o aprendizado da prudência, que depende sobremaneira da
eloquencia e do conhecimento prático, “se dá pela observação atenta e respeitosa
719 Idem, p. 21. 720 Idem, p. 16. 721 Idem, p. 26. 722 GUARINELLO, Norberto Luiz. Nero, o estoicismo e a historiografia romana. In: Boletim do CPA. Campinas, n° 1, 1996. Site: http://antiguidadeonline.org/index.php/antiguidade/article/view/50/49. Acesso: setembro/2011. 723 CÍCERO, Marco Túlio. Da amizade. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 4.
256
dos grandes homens do presente e leitura sobre os grandes homens do passado”.724
Logo, esta virtude designa uma disposição intelectual “capaz de articular o
entendimento do passado, a visão do presente e a antevisão do futuro, de modo a
possibilitar a urdidura de juízos honestos, desejáveis por si mesmos e em acordo
com a virtude e suas partes”.725
Tomás de Aquino também busca entender o conceito de prudência. Em
2005, Jean Lauand editou um tomo da Suma Teológica no qual o teólogo, em
diálogo com Aristóteles, discorre sobre o conceito em questão. Ele define esta
virtude como recta ratio agibilium (reta razão aplicada ao agir), uma forma de razão
prática que leva o homem a priorizar o bem comum em detrimento de suas vontades
particulares.726 Esta premissa afina-se aos dizeres de Aristóteles quando, em sua
Ética a Nicômaco, afirma que a sensatez é a capacidade de agir com prudência
(phrônesis) e temperança (sofrosyne), o que implica levar em consideração o bem
estar geral.727 A valorização do bem comum, conceito que integra a matriz das
reflexões de Aquino sobre a prudência, implica o abandono das vaidades, dos laços
profanos e iníquos, e a total devoção ao corpo místico da Igreja que, em tese,
deveria ser regido organicamente, de modo a unir todos os seus
agregados/subordinados em torno de protocolos inteiramente cristãos. Tal como o
corpo humano, que deve manter seus membros em harmonia para não haver
prejuízos no seu funcionamento, também a Igreja deveria unir os fiéis e expurgar ou
expulsar os contrários. Pode parecer contraditório, mas o livre-arbítrio, neste caso,
deve servir à subordinação voluntária do sujeito à conformidade do bem estar
humano.
Neste sentido, é preciso que a aproximação entre Aristóteles e Aquino
não obscureça algumas reservas a serem feitas, pois o primeiro escreve sobre um
modelo de ação voltado para a relativa suficiência do homem. A prudência em
Aristóteles seria uma virtude intelectual que possibilitaria a orientação das ações
humanas tendo em vista o seu teor incerto e, na maioria das vezes, imprevisível.
Tomás de Aquino, por sua vez, afirma que a prudência é parte de um modelo de 724 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Tese de doutoramento. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, p. 63. 725 Idem, p. 62. 726 Ver: TOMÁS DE AQUINO, Santo. A prudência: a virtude da decisão certa. Tradução, introdução e notas de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 156-171. 727 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, livro VI, V, pp. 132-134.
257
conduta inteiramente afinado à vontade da Providência. Este modelo reproduz os
desígnios divinos ainda que pautado nas limitações humanas, tratando-se, portanto,
de um atributo que se situa entre a virtude intelectual e a virtude moral. Embora
ambos concordem com a definição da prudência como “reta razão aplicada ao agir”,
é preciso quebrar com a noção anacrônica segundo a qual Tomás de Aquino
adequa-se inteiramente à doutrina aristotélica. Caso contrário, ele haveria de negar
a própria doutrina cristã, à qual se agarrou com tanto fervor.728
Em sua tese de doutoramento, Felipe Charbel Teixeira questiona o
conceito de prudência em Maquiavel (1469-1527) e em Guicciardini (1483-1540),
afirmando que, na acepção de ambos os florentinos, esta virtude remonta a uma
“reta razão”, ainda que sob novas vestes. No caso, a prudência traduz-se em uma
maneira de lidar com o contingencial, com o incerto. Daí a metáfora que Teixeira faz
alusão no título de sua tese: “timoneiros”, tópica que remonta à arte da navegação.
Um bom navegante deveria ter bom juízo e ser capaz de examinar as
transformações e sutilezas das coisas humanas e antever os acidentes. Convém
lembrar, com Hansen, que Platão e os estoicos gregos “sistematizaram a alegoria do
piloto que conduz o navio a um porto seguro através do mar tempestuoso, para
significar o bom governante que conduz a cidade com segurança através das
dificuldades políticas”.729
A tomar pelos escritos de Maquiavel e Guicciardini, Teixeira destaca a
possibilidade de conjugação entre o cálculo preciso e a boa administração das
práticas letradas, que delineiam retoricamente categorias comuns e necessárias à
preservação de um padrão de prudência. Em outras palavras, ser prudente implica
poder estimar, conforme as circunstâncias e ocasiões, as possibilidades de agir com
precisão e sucesso, sem esquecer ou desvalorizar as práticas letradas e os
argumentos de outrora. Trata-se não mais da phrônesis aristotélica, tampouco da
prudentia tomista, mas de um novo padrão de retidão: “uma prudenzia distanciada
728 É necessário dizer que o aristotelismo, em seu início, se mostrou incompatível com a noção da verdade revelada, ou do Deus-criador, próprias do cristianismo. Tomás de Aquino não segue à risca as premissas aristotélicas, mas promove uma releitura das mesmas, o que serve para se pensar os escritos posteriores. É provável que boa parte da doutrina de Santo Tomás de Aquino tenha vínculos, também, com o pensamento platônico, o que nos leva a rever o anacronismo que atribui a Agostinho uma veia platônica, e a Tomás de Aquino uma postura puramente aristotélica. Sugerimos a leitura de: KOYRÉ, Alexandre. “Aristotelismo e Platonismo na Filosofia da Idade Média”. In: Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 22-45. 729 HANSEN, João Adolfo. A máquina do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). Poetas que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 181.
258
do quadro das virtudes cardeais e dos imperativos éticos que a atrelavam à justiça e
às demais virtudes morais”.730
Este atributo passa a ser concebido, então, como “disposição calculativa
retoricamente vinculada ao decoro letrado dos gêneros discursivos e à produção de
efeitos persuasivos”.731 Para Teixeira, portanto, a prudência em ambos os autores
que estuda não deixa, em absoluto, de ser uma recta ratio. O que se modifica,
assevera, é o que se concebe como “reta razão”, uma vez que Maquiavel e
Guicciardini se distanciam da filosofia segundo a qual esta retidão associa-se a um
imperativo ético de justiça.732 Desta forma, ambos se aproximam da filosofia
aristotélica ao conceber a prudência como uma disposição prática, distanciando-se,
por outro lado, de Cícero, que considera a interdependência entre prudência e
justiça. Aproximam-se de Cícero, no entanto, ao atribuírem à prudência um caráter
de predição associada, sobretudo, aos assuntos políticos. Há, neste aspecto, uma
releitura das três dimensões da prudência ciceroniana: memória – releitura do
passado – inteligência – compreensão do presente – e previsão – antecipação das
ocorrências vindouras.
Ao menos no caso de Maquiavel, podemos afirmar que o homem
prudente recorre necessariamente a modelos dignos de imitação e, neste sentido,
talvez haja outra possibilidade de proximidade com Aristóteles que, por sua vez,
julga a necessidade de existir o phronimos para, então, se prescrever e delimitar um
padrão de phronêsis. Além de se certificar da inconstância da natureza humana,
Maquiavel assegura que o passado se repete insistentemente no futuro, com
algumas variações relativas à contingência dos assuntos humanos. Por esta razão, a
imitação dos bons exemplos possibilitaria o cálculo mais ou menos certeiro e a
previsão de ocorrências futuras. Apesar de não chegar a ser um antídoto preciso
contra a fortuna, a prudência é, ao menos, um paliativo que confere ao homem certa
segurança, tornando-o menos vulnerável aos caprichos do acaso. Assim, Maquiavel
adverte que o homem que não possui virtù pode aparentar tê-la, bastando repetir os
730 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, p. 17. 731 Idem, ibidem. 732 Idem, p. 82.
259
passos de um arqueiro prudente que, ajustando a mira do arco, pode vencer os
vários obstáculos dispostos entre o ponto de disparo e o alvo.733
Guicciardini não entendia a “imitação” superficial dos antigos como uma
solução e, por isso, não apreendia a virtù como algo estável, muito pelo contrário:
ele via a corrupção e a decadência como dados inevitáveis, ainda que passíveis de
atenuação. Esta atenuação era devida especialmente à intervenção de homens
prudentes, dotados de rapidez e de meios adequados para antecipar as ações e
resoluções dos principais agentes políticos.734 Para este autor, o homem prudente
deve ser perspicaz, unindo a “prudência natural” que lhe é comum à experiência,
sem desconsiderar o papel da “educação retórica”. Tal homem é reconhecido pela
sua flexibilidade e pela capacidade de adaptação perante as “coisas do mundo”,
sejam elas acidentais – atreladas à fortuna – ou substanciais – e, portanto,
imutáveis. Não é o caso de Guicciardini desvalorizar os escritos antigos, mas de
considerá-los tal como Maquiavel, valendo-se de um juízo reto que não abdique as
circunstâncias históricas do presente.
Uma das diferenças fundamentais entre a prudentia tomista e a prudenzia
em Maquiavel é, portanto, a forma de se conceber a verdade: em Aquino, a verdade
é inflexível, natural, porque associado à sinderesis; em Maquiavel, a verità effetualle
é provisória e retórica. Esta última nos remete aos bons efeitos retóricos a serem
causados em um auditório de homens prudentes.735 Este detalhe, dentre outros,
demonstra a pertinência da associação entre prudência e retórica, que se ampara,
sobretudo, no domínio do provável. Sobre a sinderesis, por outro lado, Baltasar
Gracián (1601-1658), em seu tratado sobre a prudência, afirma que se trata “do
trono da razão, da base da prudência”, uma “inclinação conatural a tudo o que mais
se conforma à razão”. É, por fim, uma “dádiva do céu”, o que pressupõe o caráter
inflexível e natural que lhe é comum.736
733 A metáfora do arqueiro pode ser encontrada em: MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe: comentários de Napoleão Bonaparte. São Paulo: Hemus, 1996, capítulo VI, p. 66. 734 Ver: TEIXEIRA, Felipe Charbel. “O melhor governo possível: Francesco Guicciardini e o método prudencial de análise da política”. In: Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 50, n. 2, 2007, pp. 325-349. Disponível em: http://redalyc.uaemex.mx/pdf/218/21850204.pdf. Acesso em: abril/2011. 735 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008, pp. 84-90. 736 GRACIÁN, Baltasar. A Arte da Prudência. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 1998, aforismo 96, p. 60.
260
Michel Senellart afirma que há uma questão contextual que distancia o
conceito maquiavélico de prudência da categoria anteriormente utilizada por Tomás
de Aquino. Antes da invasão francesa de 1494, que arrancou a Itália de seu relativo
isolamento, os florentinos acreditavam na possibilidade de controlar os
acontecimentos através da razão. Um sucesso, no caso, para se tornar duradouro,
deveria ser alcançado através de um caminho de moderação, definido através do
cálculo racional. A virtus, neste caso, permitia dispor favoravelmente a fortuna. A
partir da invasão e das ocorrências posteriores a ela, a força se tornou um fator
decisivo, e os florentinos vivenciaram “a passagem súbita de um mundo ordenado,
regido pela Providência, a um mundo de violência, atravessado por forças aleatórias
e ameaçadoras”.737
Senellart fala de uma tripla transformação, em Maquiavel, das relações
entre virtus e fortuna: a princípio, uma “relação agonística”, e não mais estática: “não
basta mais ser homem de bem, virtuosus, para merecer os favores da fortuna”. É
preciso “combatê-la, por um esforço de cada instante”.738 A segunda transformação
determina a “passagem do conceito ético-político de virtus ao de virtù, carregado de
conotações guerreiras”. Esta passagem “atesta que a realidade não é mais
percebida como o espaço harmonioso onde se manifestam as perfeições singulares,
mas como o palco de uma batalha permanente”.739 A virtù “não designa mais uma
forma superior de qualificação ética, mas a atitude criativa, própria do homem de
Estado, contrária à passividade dos súditos”.740 Enfim, a terceira e última
transformação: “sendo a conservação do stato o fim da virtù, não implica mais o
emprego de qualidades constantes, mas uma extrema mobilidade de espírito”.741
Logo, não “há norma universal da virtù, porque seu domínio é aquele, instável, em
perpétua mutação, das coisas submetidas ao movimento do tempo”.742 O conceito
de prudência, em Maquiavel, parece acompanhar estas mudanças operadas em seu
pensamento, na medida em que ela precisa se adequar à virtù principesca.
As ações de Vasco da Gama muitas vezes reforçam a hierarquia política
e, portanto, as ambições de seu rei. Mas seria lícito dizer que o éthos de Gama é
737 SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 239. 738 Idem, p. 240. 739 Idem, ibidem. 740 Idem, ibidem. 741 Idem, ibidem. 742 Idem, p. 241.
261
absolutamente pautado na virtude da prudência? Se seguirmos os passos de Hélio
Alves, a resposta a esta questão seria negativa. Para ele, há um desajuste entre o
retrato do protagonista pintado n’Os Lusíadas e as descrições do mesmo presentes
nas crônicas históricas, que consideram Gama um homem prudente e sábio. No
caso da epopeia, estariam ausentes os qualificativos necessários para a
configuração de um heroi que, pelo contrário, chega mesmo a reproduzir certas
ações viciosas. Dentre as imprudências que Hélio Alves encontra espalhadas pelo
poema, destaca-se a falta de tato diplomático do capitão, descuidado a ponto de
maldizer os turcos (com quem os povos de Moçambique mantinham relações
amigáveis) e contradizer a crença do xeque. Assim, o ódio dos mouros seria devido
não ao Cristianismo, mas à maneira como o capitão-mor se manifestou frente a eles.
O poeta, portanto, teria desconstruído o caráter e a conduta do heroi, esvaziados da
prudência que cronistas como Fernão Lopes de Castanheda e João de Barros lhe
quiseram atribuir. A ingenuidade de Gama se faz presente em outros momentos,
como no episódio em que aceitou, sem hesitar, o piloto enviado pelo xeque de
Moçambique. Parecia faltar a Gama, no caso, a capacidade preventiva. Muitas de
suas faltas, no entanto, acabaram sendo compensadas pela intervenção dos deuses
mitológicos, como Vênus e sua equipe. Embora o poeta lhe atribua qualidades, as
ações do protagonista, segundo Alves, não corresponderiam às virtudes que
Camões valorizava. Seria o caso do episódio em que o capitão engana o Samorim,
ao dizer que as pretensões do rei português seria travar amizade e acordos
comerciais. Tratar-se-ia, portanto, de falsas promessas, como fica claro ao longo do
poema. É como se o capitão não pudesse emular as virtudes que o poeta tanto
valorizava.743
Para alegar a falta de prudência demonstrada no modo como Vasco da
Gama conduziu suas ações, Hélio Alves disse que mesmo uma conduta condenável
pode reforçar um éthos prudente, pela inversão. Por outras palavras, com a
denúncia de um falso herói, poder-se-ia reforçar o padrão ético encomiado pelo
aedo. A prudência que faltou a Gama, a Sepúlveda, a muitos dos navegantes que
experienciaram um naufrágio, não deixaria de reforçar uma determinada retórica
prudencial.
743 Ver: ALVES, Hélio J. S. Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001, pp. 449-511.
262
Se há desajuste entre os dizeres e a conduta de Gama, de fato falta-lhe
prudência em algumas passagens, tendo em vista que este conceito insinua a
aplicação da reta razão ao agir. Mas falar de um “falso herói” seria, contudo,
exagero. Se os deuses mitológicos intervêm para sanar as falhas do protagonista,
isto decorre do papel nuclear exercido por Deus, que utiliza Gama como seu arauto.
Camões precisou incorporar o sentido providencial da história não apenas para
justificar o uso do maquinário mitológico, mas também para retratar os limites do
homem português. A experiência singular da empresa ultramarina não pressupõe a
“restauração” do cosmos, prioridade esta dos heróis antigos. O campo de
experiências, no caso da viagem de Vasco da Gama, não daria conta das ações por
ela inauguradas. Não se trata, portanto, de restaurar uma ordem perdida, mas de
trilhar um caminho novo contando com o amparo divino.
A conduta de Gama não é impecável, mas sua subserviência à vontade
providencial, refletida na virtude da caridade, assegura seu amparo e o posterior
sucesso da empresa. Isto porque ele é um dentre os vários instrumentos que Deus
mobiliza para obrar em Seu nome. Mas isto não quer dizer que a prudência não seja
requerida, sobretudo em se tratando das viagens ultramarinas.
Os relatos de naufrágio também indicam alguns caminhos prudentes que
poderiam impedir incidentes marítimos. De acordo com Manuel Severim de Faria, o
que mais causava naufrágios era o tamanho da nau e o concerto mal feito com uso
inadequado da querena. Na época de D. Manuel, diz ele, as naus não
ultrapassavam 400 toneladas. No reinado de D. João, as naus atingiram 800, 900
toneladas, tudo para atender ao comércio. Poupar em não colocar outros vasos
(navios ou galés) e transportar mais pimenta, que pareciam duas vantagens, acabou
se mostrando desvantagens: a quantidade muito grande de pessoas (700, 800
homens) acentuava a disseminação de doenças, ocasionando um grande número
de baixas. Em segundo lugar, o grande número de pessoas estimulava a
sobrecarga, entulhando caixas e outros bens diversos. Faria fala particularmente dos
anos de 1591 e 1592, em que partiram 22 embarcações do reino, e apenas duas
voltaram, isto porque estas eram mais frágeis e vieram com pouco carregamento. De
acordo com o autor, houve um crescente endividamento no reinado de D. João, e D.
Sebastião busca remediar a situação, imprimindo um regimento em 1570, que
limitava a tonelagem das naus em 450. No reinado de D. Felippe que, talvez por
ironia, foi chamado de o prudente, mais uma vez as naus são ampliadas. Como os
263
custos eram exorbitantes em termos de manutenção, resolveram utilizar a querena
italiana, que não era conveniente às naus da Carreira da Índia. De três naus que
partiam, afirma Faria, raramente chegavam duas, havendo um agravamento dos
naufrágios. O superficial concerto das naus, com a querena italiana, é outro fator
agravante. Ele menciona o caso da relação de naufrágio da nau S. Alberto, atribuída
a João Batista Lavanha, e afirma que as naus pequenas são mais ágeis,
recepcionam melhor os ventos, se mostram mais eficazes em situações de peleja,
pedem menos fundo, ao contrário das naus maiores, e não se conforma com a
cobiça dos marinheiros portugueses, que excedem a carga e não se atentam para a
disposição dela.744
De acordo com João Batista Lavanha, as tormentas do cabo da Boa
Esperança não causaram o naufrágio da nau Santo Alberto, mas sim a querena (ou
carena, parte do navio que fica abaixo do nível da água) e a sobrecarga, resultado
da “cobiça dos contratadores e navegantes”:
Os contratadores, porque como seja de muito menos gasto dar querena a uma nau que tirá-la a monte, folgam muito com a invenção italiana, a qual posto que serve para aquele mar de levante a cujas tormentas e tempestades podem parar galés e onde cada oito dias se toma porto, neste nosso oceano é o seu uso uma das causas da perdição das naus, porque além de se apodrecerem as madeiras (posto que sejam colhidas em sua sazão) com a contínua estância no mar, e desencadernarem-se com as voltas da querena e grande peso de tamanhas carracas, calafetando-as por este modo recebem mal a estopa, por estarem úmidas e pouco enxutas; e quando depois, navegando, são abaladas de grandes marés e combatidas de rijos ventos, despedem-na, e abertas dão entrada à água, que as soçobra. E assim tem mostrado a experiência que quando esta danosa invenção se não usava fazia uma nau dez ou doze viagens à Índia, e agora com ela não faz duas.745
Os artífices podem, também, ser negligentes na construção e no reparo
das naus:
Acrescentam este dano os oficiais que as fazem ou consertam de empreitada (que em toda a fábrica é prejudicial), os quais, por apoupar em o tempo (já que não podem as matérias), não acabam cousa alguma como convém e se requer em obra de tanta importância, e assim deixam tudo imperfeito; e descobrindo na nau velha eivas e faltas que se remendaram bem sem perda sua, dissimulam com elas e enfeitam o dano de maneira
744 Ver: FARIA, Manuel Severim de. Notícias de Portugal. Lisboa: Officina Craesbeeckiana, 1655, pp. 241-246. 745 HTM, pp. 379-380.
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que pareça bem consertado, e debaixo dele fica a perdição escondida e certa.746
A negligência em relação à madeira é outro fator que poderia provocar a
perdição das naus portuguesas:
Cortam-se também as madeiras fora de seu tempo e sazão, a qual é na Lua minguante de janeiro, pelo que são pesadas, verdes e dessazonadas, como tais torcem, encolhem e fendem, e desencaixam-se do seu lugar, com que, despedindo a pregadora e estopa, abrem, e com a umidade da água de fora e grande quentura da pimenta e drogas de dentro, logo se apodrecem e corrompem na primeira viagem; e assim basta uma só tábua colhida sem vez para causar a perdição de uma nau. Tal devia ser a madeira desta, pois a sua quilha (base e fundamento de todas as naus) era tão podre que depois que a fúria dos mares arrancou o seu fundo donde estava e deu com ele à costa (com algumas peças de artilharia que nele ficaram) com uma cana de bengala a desfez Nuno Velho Pereira em pequenos pedaços.747
Os navegantes não são menos culpados, diz Lavanha,
importando-lhes mais, pois aventuram as vidas na nau, a qual carregam sem a necessária distribuição das mercadorias, arrumando as leves na parte inferior e as pesadas na superior, devendo ser ao contrário. E por enriquecerem brevemente, de tal maneira a sobrecarregam que passam a devida proporção da carga da nau, a qual excedida, é forçado que fique incapaz de governo, e que precedendo qualquer das cousas apontadas abra e se vá a pique ao fundo. E é esta tão forçosa que sem ela quase não bastam as outras a perderem uma nau, e esta sem elas sim, mostrando a experiência que algumas naus velhas, remendadas e consertadas com querena, vêm da Índia, porque não trazem nem a carga com que podem, e as novas com a sobrecarga se perdem.748
Em suma, a cobiça pode causar a perdição da nau: por intermédio dos
contratadores, que para poupar gastos recorrem à querena italiana, inapropriada à
navegação portuguesa, por intermédio dos artífices, que, na construção e conserto
das naus, cortam a madeira em tempo inapropriado ou remendam superficialmente
as rachaduras, e por intermédio dos próprios navegantes, que sobrecarregam a nau
e/ou distribuem a carga de maneira indevida.
João Batista Lavanha escreve alguns textos sobre arquitetura naval, na
tentativa de orientar os arquitetos através de uma arte criada a partir da “grosseira
prática dos fabricantes de navios”, enumerando e discorrendo sobre preceitos que
pudessem orientar a construção das naus. Vários conhecimentos são requisitados:
746 Idem, p. 380. 747 Idem, ibidem. 748 Idem, ibidem.
265
sabedoria, prudência, habilidade e competência discursiva. Além disso, é preciso
entender de astronomia, para que o corte da madeira respeite às influências do céu,
aritmética, para calcular os gastos e utilizar os recursos necessários, geometria, para
a projeção e a construção das partes da nau, mecânica, para a criação de máquinas
e aparelhos necessários à navegação. Há, pelo menos, quatro etapas da construção
de uma nau: inicialmente, o navio toma forma na imaginação. Esta forma é
aperfeiçoada pelo entendimento e transposta para a planta, através da qual se
emenda as falhas da imaginação. Não basta saber as medidas, é preciso também
construir um modelo, que possa servir de exemplo para as construções. De acordo
com Lavanha, engana-se aquele que acredita poder construir uma nau somente
através das medidas.
As melhores madeiras, afirma Lavanha, provém da teca e do angelim,
naturais da costa do Malabar. Em Portugal, deve-se priorizar o azinho e o sobro.
Convém que a madeira seja rija, para resistir ao ímpeto do mar, enxuta, para não
apodrecer, de sumo amargo e resinento, para evitar o busano (molusco que ataca a
madeira não apenas das naus, mas também dos cais e embarcadouros), e brandas,
para não estalarem depois de lavradas. Além disso, é preciso observar os sinais da
natureza: as folhas e frutos muito comunicam sobre o interior das árvores, sua
natureza. Por isso convém as árvores de casca áspera, folhas crespas e fruto duro,
pois oferecem uma madeira densa e forte. Melhor as árvores que crescem devagar,
pois são mais fortes. O corte no momento certo: depois que dão fruto, e a
observância da lua, deve cortar nas minguantes da lua dos dois meses mais
chegados ao princípio do inverno, dezembro e janeiro. Isto porque acreditava-se que
a lua tenha a umidade por qualidade, e que sua maior proximidade com a terra
acarretava o levantamento de vapores úmidos, umedecendo e amolecendo os
corpos a ela sujeitos.749
Melchior Estácio do Amaral também discorre sobre os cuidados que se
deve ter em relação à madeira:
A felicidade desta carreira, mediante Deus, está em as naus não serem feitas de madeira verde, senão muito seca e colhida na lua velha de janeiro, no último da minguante e na minguante de dia, porque é verdadeira sezão de ser cortada (como as uvas vindimadas em setembro); tem então a madeira madurez, tem menos humor, é leve, seca mais depressa, dura
749 Ver: MICELI, Paulo. O ponto onde estamos: viagens e viajantes na história da expansão e da conquista (Portugal, século XV e XVI). 4ª ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008, pp. 59-65.
266
mais, e não revê nem empena; e não só as naus de tal madeira serão mais leves e mais duráveis, mas mais fortes e estanques, porque a pregadura nesta madeira colhida de vez, é fixa, e fixo o calafeto. Consiste em serem as naus varadas a monte, para que se enxuguem e não se consertem úmidas; e bom é o conserto não ser de empreitada, nem cortando, porque tudo se fará à provisão que nisto desarma, e não convém. E as naus a que não for necessário conserto é muito importante, em descarregando, serem mui bem lavadas por dentro e muito bem esgotadas, passado o lastro acima para isso, porque o lodo e as águas chocas que trazem lhes apodrecem as quilhas e picas.750
Amaral ainda menciona a impertinência da querena italiana,
que se dá a estas naus, não por melhor fim, mas por poupar parte do custo que fazem pondo-se a monte, como importa a estas nossas carracas; e às naus de Levante baste embora a querena no mar, porque a sua carga é de vidros e espelhos e o seu mar diferente do oceano, e em que cada três dias podem tomar porto; basta que é mar de gales, aonde bastam umas naus vazias como torres; e as nossas naus da Índia atravessam o mar oceano de pólo a pólo, e passam o cabo de Boa Esperança, não carregadas de vidro, senão sobrecarregadas de grandes máquinas de caixões e fardos e drogas pesadíssimos, e contendem com a fúria dos quatro elementos, e caminham cinco e seis mil léguas, com todo o sucesso do tempo; e a querena para elas é tão danosa, como se tem visto pela multidão das naus que, depois que ela se usa, se perderam na forma que logo se verá, não por desastres, como algumas das já nomeadas, mas por cobiça e pouco tento, e por se cuidar que é provisão a querena, e provisão dar-se o conserto das naus de empreitada, e que se poupa na bolsa dos contratadores. Em esta forma perde-se o Reino assim pela surda, porque a querena desencaderna toda uma nau, e é forçado calafetá-la molhada, e mal vista pela quilha e partes importantes, e a empreitada conserta-se como quer e não como deve; e a nau, para ser bem consertada, há-de ser pondo-se a monte e secando-se primeiro muito bem, porque não cuspa o calafetado, começando-se a ver pela quilha, o que não se pode fazer de querena; e em tais adereços se há-de proibir toda a empreitada e advertir com grande tento que se lhe não mete pau nem tábua, senão muito seca, enxuta e colhida de vez, qual é a lua velha de janeiro.751
Quando trata da sobrecarga, Amaral menciona várias naus (S. Lourenço,
Reis Magos, Salvador, S. Tomé, S. Francisco dos Anjos, S. Luís, Santo Alberto,
Nazaré, S. Cristóvão, S. Paulo, Nossa Senhora do Rosário) que naufragaram entre
os anos de 1585 e 1595.752 Foram 38 naus perdidas num espaço de 20 anos (1582-
1602). Algumas por desastres, outras devido à cobiça decorrente da sobrecarga.
Apontam-se duas grandes causas: partida tardia de Lisboa, causa da arribada, e
partida sobrecarregada da Índia, causa de perdição (ambas são remediáveis, alerta
Amaral).753
750 HTM, pp. 542-543. 751 Idem, p. 540. 752 Idem, pp. 540-541. 753 Idem, p. 542.
267
Além disso, é preciso preocupar-se com a data de partida, tanto de
Lisboa, quanto da Índia:
O verdadeiro partir de Lisboa há-de ser antes que o Sol passe a Equinocial [preferencialmente, em março]; bem de experiência há disso; e porque isto se não previne a tempo, arribam tantas naus, como arribaram no ano de 1601, que de nove que partiram arribaram cinco; e também se arriscam a muito as naus que não partem da Índia dentro em dezembro, para passarem o cabo de Boa Esperança no verão daquele pólo em que então está o Sol.754
No caso da História Trágico-Marítima, menciona-se a partida tardia dos
galeões São João, que parte de Cochim em fevereiro de 1552, e São Bento, que
desamarra da barra de Cochim em fevereiro de 1554, e das naus Águia e Garça,
que partem de Cochim em janeiro de 1559. Embora não seja a causa fundamental
dos incidentes ocorridos com as naus Santa Maria da Barca, São Tomé e Santo
Alberto, todas elas não conseguiram partir de Cochim no mês de dezembro, por isso
não conseguiram dobrar o cabo de Boa Esperança.
A enumeração das negligências cometidas ao longo da travessia marítima
e as censuras proferidas pelo velho na praia de Restelo coadunam-se, ao que
parece, num projeto prudencial e providencial, pois valorizam a reta razão (na
mesma medida em que censuram a sua falta) enquanto caminho conveniente na
concretização da “política do céu”. Sacrificar-se, tombar em campo de batalha por
uma causa nobre, hospedar o próximo, valorizar o bem comum em detrimento das
vontades particulares, navegar com prudência pelos mares bravios, temer a Deus,
crer em Sua divina misericórdia: estas são algumas das ações associadas ao éthos
prudente e caridoso sobre as quais poetas e narradores discorreram, como forma de
deixar entrever não somente a miserável condição em que o homem poderia
encontrar-se, mas também a possibilidade de se compreender as venturas e
desventuras da expansão portuguesa nos quadros de uma história salvífica da qual
os portugueses seriam coautores.
754 Idem, ibidem.
268
Considerações finais
Comprimida entre o céu e o mar, a nau muitas vezes seguia embalada
pelas ondas bravias, incentivando a grita dos navegantes. Seu corpo volumoso era
largo na proa para cortar o Oceano e estreito na popa para não perder velocidade. O
casco ovoide parecia trincar a cada pancada: a água entrava por baixo,
atravessando as feridas abertas, por cima, com a chuva que as nuvens
precipitavam, e pelas laterais, quando as ondas testavam a corpulência do navio.
Muitos dos mareantes, que sequer usufruíram das riquezas há pouco acumuladas,
retornaram à condição de miseráveis. O mar, embrulhado pela seda portuguesa e
sedento de cobiça, tomava para si as fazendas reais. Como verdadeiro glutão, ele
devorava vorazmente o velame, as escassas provisões, os corpos sôfregos da gente
do mar. Mesmo com as mercadorias alijadas, a nau seguia demasiado pesada,
vergando sobre o próprio peso: embora desnutridos, os homens carregavam consigo
seus pecados. O vozerio que clamava por misericórdia divina não ganhava altura,
pois a culpa tornou-se um contrapeso. Os relâmpagos cegavam os pobres
mareantes, mas a morte permanecia no campo de visão de todos. O encontro entre
um baixio e o flanco da nave, a inexperiência do piloto, a fortuna imprevisível, o
descumprimento do regimento, a imperícia dos artífices, o ataque corsário, a
qualidade da madeira, o atraso da viagem: são inúmeras as situações que poderiam
causar um naufrágio, mas todas elas derivavam do arbítrio humano.
No “espelho do céu” às vezes era possível contemplar, também, as
feições da prudência e da caridade. A experiência do piloto, a coragem do capitão, a
diligência dos homens, a penitência dos pecadores, a misericórdia divina: são
inúmeras as possibilidades de reverter o quadro que o parágrafo anterior pintou de
forma dramática. O homem pode ser pequeno frente às intempéries, mas não
impotente. O uso e corte da madeira adequada, a presença de uma guarnição, o
respeito ao regimento, o acatamento à hierarquia, a disposição apropriada das
fazendas, a viagem sem atraso, o conhecimento das monções, enfim, o agir movido
pela reta razão poderia revigorar a saúde da nau conferindo-lhe força para chegar a
seu destino. A intervenção benevolente das deidades mitológicas, neste caso, não
deve ser pensada como critério que invalida o heroísmo, mas como potência que o
sustenta, pois pressupõe a manifestação providencial. Sendo assim, parece
dificultoso falar de “pessimismo”, de “trauma”, de “crise” ou de “decadência”, pois as
269
condutas encenadas nestas práticas letradas, sejam elas merecedoras de encômios
ou vitupérios, voltam-se para a promoção de uma retórica prudencial destinada à
orientação dos leitores/ouvintes.
Se por vezes falta prudência aos protagonistas, ela parece integrar o
éthos do poeta/narrador de forma incontestável. Se o narrador, por um lado, ajuíza
sobre a matéria da qual se ocupa e instrui/deleita a partir dela, o poeta, por outro,
“resolve” o feito na medida em que tira dele seu predicado e o apresenta de forma
verossímil. Não seria de todo imprudente supor que a trama envolvendo as
personagens auxilia na promoção da prudência deste poeta/narrador, que reúne em
si qualificativos definidores de um bom súdito. No caso, é possível distinguir um
sentido edificante na experiência “trágica”, que pressupõe perda e ganho, medo e
esperança, perdição e salvação. Todos estes pares, quando encenados histórica
e/ou poeticamente, proporcionam o desengano, o que insinua um desfecho positivo.
Desta forma, a relação entre a virtude ético-política da prudência e a
virtude teologal da caridade parece ser uma chave de compreensão da inventio dos
súditos portugueses nas práticas letradas aqui estudadas, pois supõe,
simultaneamente, a “política do céu” e a “política das obras”, isto é, a presença de
Deus na história e a existência de homens capazes de obrar conforme Sua vontade.
Este é o argumento que esta tese buscou retratar. Resta ao leitor perdoar a rudeza
do traçado com benevolência, preencher as lacunas com discrição e corrigir as
imprecisões com prudência.
270
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