26
1 A ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS NO ESPÍRITO SANTO, NA DÉCADA DE 1950 Dulcinéa Campos 1 [email protected] Cláudia Maria Mendes Gontijo 2 [email protected] Resumo: Propõe apresentar resultados de uma pesquisa de Mestrado em Educação, concluída em 2008, no campo da história da alfabetização, cuja finalidade foi investigar os sentidos da alfabetização na história da educação, no Estado do Espírito Santo, na década de 1950. Foi escolhida essa década para o desenvolvimento do estudo, tendo em vista compreender as mudanças, as continuidades e as contradições nas políticas e propostas de alfabetização no Espírito Santo decorrentes da promulgação da Lei Orgânica do Ensino Primário em 1946. Recorre aos pressupostos bakhtinianos da linguagem, dialogando com os dados e analisando, nesse processo, os sentidos atribuídos à alfabetização, pelas diversas vozes dos sujeitos envolvidos que, a partir de diferentes lugares e realidades concretos, produziram essa história. Com base na análise das fontes/textos encontradas (textos oficiais, normatizações, artigos divulgados na imprensa local, cadernos de professores, textos orais elaborados por professoras alfabetizadoras que atuaram nas salas de aula, etc.), conclui que as políticas e as propostas de alfabetização foram fortemente marcadas por pelo menos dois ideários/tendências pedagógicos/as. A divulgação pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) do Plano (1949), como parte do processo 1 Doutoranda em Educação, do Programa de Pós-Graduação/UFES, integrante do Núcleo de Pesquisa de Alfabetização, Leitura e Escrita (NEPALES)/UFES) e pedagoga da Educação Básica da rede municipal de ensino de Vitória/ES. 2 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas; pós- doutorado na Universidade da Califórnia, Berkeley, CA, Estados Unidos, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); integrante da linha de pesquisa Educação e Linguagens do Programa de Pós-Graduação em Educação/UFES.

 · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

1

A ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS NO ESPÍRITO SANTO, NA DÉCADA DE 1950

Dulcinéa Campos1

[email protected]

Cláudia Maria Mendes Gontijo2

[email protected]

Resumo:

Propõe apresentar resultados de uma pesquisa de Mestrado em Educação, concluída em 2008, no campo da história da alfabetização, cuja finalidade foi investigar os sentidos da alfabetização na história da educação, no Estado do Espírito Santo, na década de 1950. Foi escolhida essa década para o desenvolvimento do estudo, tendo em vista compreender as mudanças, as continuidades e as contradições nas políticas e propostas de alfabetização no Espírito Santo decorrentes da promulgação da Lei Orgânica do Ensino Primário em 1946. Recorre aos pressupostos bakhtinianos da linguagem, dialogando com os dados e analisando, nesse processo, os sentidos atribuídos à alfabetização, pelas diversas vozes dos sujeitos envolvidos que, a partir de diferentes lugares e realidades concretos, produziram essa história. Com base na análise das fontes/textos encontradas (textos oficiais, normatizações, artigos divulgados na imprensa local, cadernos de professores, textos orais elaborados por professoras alfabetizadoras que atuaram nas salas de aula, etc.), conclui que as políticas e as propostas de alfabetização foram fortemente marcadas por pelo menos dois ideários/tendências pedagógicos/as. A divulgação pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) do Plano (1949), como parte do processo nacionalização do ensino primário, influenciou as leis, os programas de ensino e as propostas de alfabetização no Espírito Santo. O Plano (1949) do INEP está ancorado no ideário da Escola Nova e, dessa maneira, apresenta a indicação de um método específico de alfabetização: Método Global. Rafael Grisi, professor e defensor das ideias escolanovistas e do Método Global, como secretário de Educação no período 1951-1955, empreendeu a reforma administrativa e educacional no Espírito Santo, visando à construção das bases necessárias para a implementação desse ideário e do Método Global de alfabetização. No final da década de 1950, tendo em vista, dentre outros fatores, a tessitura de ações, em prol da inclusão de mais um programa de ensino, houve a implementação do Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar (PABAEE), ancorado no ideário tecnicista. Pode-se afirmar que o Espírito Santo buscou conduzir a sua política de alfabetização, expondo desde a constituição de uma cultura educacional sob os auspícios da Escola Nova, passando pela política de racionalização do trabalho dos professores, até o processo de tecnicização do ensino. As políticas e propostas não implicaram mudanças substantivas nas práticas de alfabetização.

1Doutoranda em Educação, do Programa de Pós-Graduação/UFES, integrante do Núcleo de Pesquisa de Alfabetização, Leitura e Escrita (NEPALES)/UFES) e pedagoga da Educação Básica da rede municipal de ensino de Vitória/ES.2 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas; pós-doutorado na Universidade da Califórnia, Berkeley, CA, Estados Unidos, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); integrante da linha de pesquisa Educação e Linguagens do Programa de Pós-Graduação em Educação/UFES.

Page 2:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

2

Palavras-chave: Alfabetização. Política. História.

Introdução

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa de Mestrado em Educação, concluída em 2008, cuja finalidade foi analisar os sentidos da alfabetização na história da educação do Estado do Espírito Santo, na década de 1950. A definição da década escolhida para o desenvolvimento do estudo pode ser explicada pela busca de compreensão das mudanças, continuidades e contradições nas políticas e nas propostas de alfabetização no Espírito Santo decorrentes da promulgação da Lei Orgânica do Ensino Primário em 1946. Para a análise das fontes/textos (normatizações, artigos divulgados na imprensa local, cadernos de professores, textos orais produzidos por professoras alfabetizadoras que atuaram nas salas de aula, etc.) encontrados, recorremos aos pressupostos bakhtinianos da linguagem, à medida que procuramos compreender as produções discursivas em relação com o contexto sociopolítico e econômico que as produziu e com o qual dialogam.

Sendo assim, neste artigo, consideramos necessário, em primeiro lugar, evidenciar os esforços do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais e do Ministério de Educação e Saúde (MES) em promover a nacionalização do ensino primário por meio da implementação do plano (1949), intitulado Programa de Leitura e Linguagem no Curso Primário, que tinha por objetivo influenciar as leis, os programas de ensino e as propostas de alfabetização nos Estados brasileiros. Em seguida, discorreremos sobre o movimento político-administrativo empreendido por Rafael Grisi, que esteve à frente da Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo de 1951-1955. A base da reforma elaborada por Rafael Grisi, nesse período, teve como pressupostos as ideias escolanovistas com a defesa do Método Global de alfabetização. Finalmente, apresentaremos a (des)continuidade da política educacional de alfabetização, com implementação do Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar, já no final da década em estudo.

O ensino primário no contexto das políticas públicas nacionais

Conforme mencionado, neste tópico, analisaremos o Programa de Leitura e Linguagem no Curso Primário (1949), proposto pelo Ministério de Educação e Saúde (MES) e pelo Instituto Nacional de Educação e Pesquisa (INEP), cuja intenção era, dentre outras, contribuir com o processo de nacionalização do ensino primário. Buscamos, em nossas análises, compreender as concepções de linguagem e de alfabetização que subsidiaram as bases gerais dessa proposta, porque acreditamos que foram essas concepções que deram sustentação à reforma implementada por Rafael Grisi no Espírito Santo. Assim, na organização das bases gerais do programa, o ensino primário é considerado como serviço de caráter nacional e, por isso, precisava oferecer oportunidades educativas iguais a todas as crianças brasileiras, sem distinção de raça, credo, nascimento e região, e prepará-las para a vida em sociedade. A partir do pressuposto do caráter nacional do ensino primário, o texto afirma a necessidade de a escola primária dispor “[...] de um plano de trabalho que não só [assinalasse] o fim a alcançar como também [fornecesse] ao professor os meios de consegui-lo” (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1949, p. 8). Além disso, o plano, de

Page 3:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

3

acordo com o escrito na apresentação desse documento, deveria servir de critério tanto para a promoção do aluno quanto para o julgamento do trabalho do professor ou até de toda a escola. Assim, de acordo com o registrado no documento,

À luz desses princípios fundamentais, o INEP elaborou as bases gerais para os programas, organizando-as de modo a abranger um mínimo essencial pelo qual convém ser orientada a ação educativa, prevista pela administração, propiciando, porém, a cada professor um campo de ação bem vasto, dentro das necessidades do meio (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1949, p. 9).

Dessa forma, podemos notar que a construção de bases gerais ou comuns para a escola primária era importante peça no projeto de construção da educação nacional. Considerando que a educação primária era responsabilidade dos Estados e, portanto, o abandono desse nível de ensino pelo Governo Federal, podemos concluir sobre a necessidade do programa. Porém, é importante salientar que a democratização da escola primária era motivo de preocupação, especialmente por parte da elite conservadora, e, desse modo, a proposição de um programa para a escola primária ajudaria a minimizar, por meio do controle do que seria ensinado (conteúdo) e de como seria ensinado (método), as possíveis consequências negativas provocadas pela escolarização/alfabetização da população brasileira.

Na Introdução, o programa explicita a concepção de linguagem que norteia as Sugestões Para o Programa de Leitura e Linguagem do Curso Primário. Ela (a linguagem) é vista como uma condição de “[...] expressão por excelência e instrumento básico de intercomunicação social, é usada pelas crianças desde os seus primeiros anos de vida, constituindo-se elemento valioso na aquisição de novas experiências e conhecimentos” (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1949, p. 13). Dessa forma, a linguagem é considerada importante e imprescindível na comunicação entre as pessoas e, também, uma forma de expressão. O documento concluiu ainda que a linguagem da criança é:

Tôsca e rudimentar a princípio, vai aos poucos sendo aperfeiçoada pela escola, através das técnicas especializadas de leitura e da escrita, da ampliação do vocabulário infantil, da sistematização de conhecimentos de ortografia e gramática e do cultivo da capacidade de ler independentemente, possibilitando a criança o aproveitamento de toda a riqueza cultural acumulada pela experiência dos que a antecederam (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1949, p.12).

Conforme expresso no programa, a linguagem é uma capacidade inerente ao ser humano, mas carece de aperfeiçoamento que se efetiva por meio de técnicas especializadas de leitura e de escrita. Nesse sentido, podemos inferir que a língua/linguagem utilizada pelos sujeitos em seu cotidiano não é suficiente para que eles se expressem com clareza ou se comuniquem apropriadamente. Para que possam se expressar bem e se comunicar adequadamente, os sujeitos precisam aprender as normas que regulam a língua, ou seja, as formas gramaticais. Essa maneira de conceber a linguagem está apoiada, conforme assinala Bakhtin (1992), em duas orientações do pensamento linguístico – objetivismo abstrato e subjetivismo idealista. A primeira reduz a linguagem a um sistema abstrato de formas e, por isso, é necessário aprender as formas gramaticais. A segunda a considera como uma produção monológica, isolada da realidade social dos falantes, ou seja, como meio de expressão.

Page 4:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

4

Bakhtin (1992) formulou, já na década de 1920, críticas importantes a essas orientações do pensamento linguístico que, no Brasil, servem de base para a construção de propostas de ensino/educação nacional. Quanto à ideia de buscar uma identidade normativa das formas linguísticas, Bakhtin se posiciona no sentido de que o falante se serve da língua para atender às suas necessidades imediatas dentro de uma situação social concreta de interação. Para esse autor, não é a norma que conforma o uso da língua, mas são as novas significações que essas formas adquirem no contexto social. Assim, o que importa ao locutor não é uma forma estável e recorrente, mas o signo com a sua característica variável e flexível. Contudo, essas críticas não interessam a um projeto de educação nacional que percebe a normatização da língua como veículo essencial de disseminação de ideologia.

Quanto ao subjetivismo idealista, Bakhtin assinala que essa corrente considera o fenômeno linguístico como um ato significativo de criação individual, ou seja, o psiquismo individual constitui a fonte da língua. Nesse sentido, “[...] a lógica da língua não é absolutamente a da repetição de formas identificadas a uma norma, mas sim uma renovação constante, a individualização das formas em enunciações estilisticamente únicas e não reiteráveis” (BAKHTIN, 1992, p. 82). Bakhtin (1992) não concorda com essa afirmativa, pois, para ele, o ato da fala não é uma criação somente individual e subjetiva. Segundo o autor, a linguagem se constitui nas relações sociais. A interação verbal é a forma real e importante de realização da língua, pois

Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar [...]. Os sujeitos não ‘adquirem a língua materna’, é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência (BAKHTIN, 1992, p. 108).

Assim, podemos inferir que o documento do MES/INEP concebe a linguagem, ao mesmo tempo, como expressão do pensamento e como instrumento de comunicação. Como apontamos, para expressar e comunicar bem, é necessário que as crianças aprendam, na escola, gramática e ortografia, e sejam submetidas a técnicas especializadas de leitura e escrita que proporcionem a ampliação do vocabulário aprendido no cotidiano.

O programa aponta, na introdução, para a linguagem oral e escrita, objetivos gerais e específicos para o ensino da matéria, “[...] mínimo de habilidades, hábitos, atitudes e ideais a serem adquiridos, como também sugestões de atividades para o seu desempenho” (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1949, p. 13). Estas últimas, para facilitar a aplicação pelo professor, foram divididas em Linguagem Oral, Literatura Infantil, Leitura, Escrita, Composição, Gramática e Ortografia. Coerentes com esses componentes curriculares, o plano estabeleceu como objetivos gerais:

Propiciar o desenvolvimento da linguagem oral do aluno, levando-o a expressar-se com facilidade, naturalidade, clareza e correção; dotar o aluno da capacidade de ler com compreensão e rapidez; dotar o aluno com capacidade de escrever com legibilidade, correção, simplicidade e clareza; cultivar o gosto pela boa literatura infantil e pelas obras de literatura nacional e estrangeira, acessíveis à criança; formar hábitos de leitura independente, para recreação e estudo; despertar o amor e o interesse pelo idioma e pelos autores nacionais, desenvolvendo o sentimento de pátria e o de brasilidade (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1949, p. 14).

Page 5:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

5

Assim, os objetivos estão ligados ao trabalho com a linguagem oral, leitura, escrita e literatura nacional e estrangeira. A leitura de textos literários de autores nacionais visa à formação de sentimento de “pária e o de brasilidade”, o que nos leva a pensar na necessidade de escolha de livros apropriados ao alcance desse objetivo. Com relação aos objetivos, para a 1ª série do ensino primário, objeto de nosso interesse, destacamos:

Desenvolver nas crianças a capacidade de expressão oral; incentivar o interesse dos alunos pelas histórias e poesias adequadas ao seu nível de desenvolvimento; dotar os alunos das técnicas fundamentais da leitura e da escrita; formar nas crianças a atitude de procurar sempre compreender o sentido do que lêem e copiam; despertar nos educandos a preocupação de escrever corretamente (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1949, p.16).

De acordo com os objetivos específicos descritos, a criança, em fase inicial de alfabetização, deverá não só ter acesso à técnica da leitura e da escrita, como também ser capaz de desenvolver capacidades relacionadas com a linguagem oral, com o gosto pela leitura de textos apropriados ao seu nível de aprendizado. Essas habilidades intelectuais, nas perspectivas linguísticas e psicológicas, concebem a alfabetização como

[...] um conjunto multifacetado de habilidades instrumentais que envolvem processos cognitivos os quais operam na produção e compreensão de textos. Considera-se também este processamento cognitivo como subjacente ao conhecimento lingüístico necessário para descontextualizar desempenhos orais e apresentar uma prosa coerente, escrita ou falada. Contudo, as teorias lingüísticas e psicológicas sozinhas não conseguem explicar as condições sociais e ambientais essenciais para o aprendizado destas habilidades (GUMPERZ, 1991, p. 13).

Ao estabelecer os parâmetros mínimos a serem alcançados pelas crianças ao final do 1º ano do curso elementar, o programa confirma o que foi colocado por Gumperez (1991). As crianças deveriam aprender um conjunto de habilidades, assim discriminadas no programa:

Empregar em sua linguagem oral, vocabulário relativamente adequado e correto, com boa articulação das palavras; têm interesse pelos livros de literatura infantil apropriados ao seu desenvolvimento, sendo capaz de reproduzir algumas histórias e poesias; lê oralmente, com boa direção, historietas cujo sentido pode interpretar; sabe executar ordens simples pela interpretação de pequenas frases lidas silenciosamente; escreve com boa posição, relativo domínio de movimentos, letra compreensível, boa apresentação do trabalho e grafia correta, frases e palavras de seu vocabulário, cujas dificuldades foram estudadas; divide as palavras formadas por sílabas simples; compõem por escrito pequenas sentenças sobre assunto de sua experiência; conhece nomes de pessoas, árvores, animais, objetos, etc., sendo capaz de atribuir-lhes algumas ações e qualidades; sabe empregar corretamente maiúsculas, minúsculas, ponto final e de interrogação (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1949, p. 15-16).

Page 6:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

6

A partir dos objetivos expostos e dos parâmetros mínimos a serem alcançados ao final da 1a série, podemos concluir que, apesar de enfatizar o trabalho com a linguagem oral, a leitura incentivada é a de textos apropriados aos níveis de desenvolvimento da criança. Há ênfase no estudo dos nomes, ou seja, de palavras que podem ser concretizadas e de suas qualidades, o que possibilita a formação de frases simples. Como programa sequenciado de ensino oficial, ele se cercou de todos os cuidados no sentido de racionalmente tutelar o professor em sua prática de sala de aula, por apresentar amplas sugestões de atividades de alfabetização e orientações metodológicas passo a passo para todas as dimensões descritas. Nesse sentido, iniciou a parte relacionada com as Sugestões de atividades e orientações metodológicas, salientando a importância de o professor habituar a criança ao trabalho escolar. Ele propõe, para esse momento inicial de adaptação, denominado período preparatório, aliado ao desenvolvimento de outras atividades do currículo, a organização de atividades de linguagem oral e com a literatura infantil.

Apesar de não haver uma opção explícita por um método específico de alfabetização, existem indicativos a favor do método de marcha analítica, identificado como Método Global, no qual o aprendizado da leitura e da escrita se processa pela diferenciação ou análise. No trecho que se segue, o programa aponta a importância do período preparatório e mostra a sua preferência pelos processos analíticos.

Nos processos analíticos/sintéticos (ou globais, de contos, de sentenciação, e palavração) a fase de preparação é menos longa do que nos processos sintéticos (fônico, fonético, de silabação) porque o material inicial das aulas ocorre naturalmente e é possível, bem depressa, fazer uso deles no quadro negro ou em cartazes. Nos processos fônicos ou de silabação essa fase é de um valor extraordinário para que o aluno não perca o sentido da leitura, quando iniciada a aprendizagem (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE,1949, p. 24).

De acordo com as orientações preconizadas no programa, é importante que o professor siga rigorosamente as orientações dadas em relação às atividades para que a criança perceba que a linguagem/textos é formada de sentenças e, assim, observe que estas se compõem de palavras, e as palavras se desdobram em sílabas. Dessa maneira, mesmo dizendo ser um parâmetro didático-pedagógico para o professor, a organização indicada para o ensino das unidades da língua evidencia a preferência pelo processo global de ensino da leitura e da escrita.

Quanto ao livro de leitura, que pode ser a cartilha ou o pré-livro, o programa recomenda que deve retratar o vocabulário e os interesses infantis, devendo ser introduzido assim que o professor perceba que esse material pode ser um elemento representativo [Não entendi. Penso que não é isso que do documento diz] no aprendizado dos alunos, ou seja, o professor deveria entregá-lo aos alunos, assim que estes entendessem o processo de aprendizado da leitura e da escrita. [voltar ao programa para confirmar o que está escrito] Contudo, nas aulas em que forem usados tais livros, a participação dos alunos deve ser ativa, como exemplo:

[...] o aluno lê a sentença ou a palavra e vai escrevê-la no quadro negro; o professor escreve a sentença lida com a falta de um elemento e o aluno vai completá-la; o aluno passa um traço em volta de determinada palavra; o aluno pede que um colega risque uma sentença, palavra ou sílaba; o aluno interpreta por ação, desenho,

Page 7:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

7

modelagem, o sentido do que leu, etc. (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, 1949, p. 26).

Nessa perspectiva, é privilegiado o ensino de sentenças e palavras, o que confirma a preferência pelo método analítico.

Para finalizar esta parte, é importante sintetizar as nossas ideias. Conforme apontamentos, o Programa de Leitura e Linguagem no Curso Primário é orientado por duas concepções de linguagem: como meio de expressão e como meio de comunicação. Nessa perspectiva, há ênfase ao ensino de aspectos normativos da linguagem. Essa ênfase pode ser explicada no interior de uma política nacional de educação. Porém, tendo em vista os princípios pedagógicos da Escola Nova, preconizados por Lourenço Filho (2002), o ensino desses aspectos não deve ocorrer de forma abstrata e, por isso, o método de ensino analítico é o mais apropriado, pois permite a contextualização/concretização das frases, palavras e sílabas estudadas.

O Poder Público Estadual e a construção da política de alfabetização

Por força de um regime político em curso, o Espírito Santo contou com vários interventores federais durante o período ditatorial de Vargas. A primeira eleição para governador e para deputados, conforme prevista no art. 11 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1946, ocorreu em 19 de janeiro de 1947, tendo como primeiro governador eleito, pelo voto popular, Carlos Fernando Monteiro Lindemberg, cuja gestão durou de 1947 a 1951. Esse Governo se dedicou ao equilíbrio financeiro do Tesouro Estadual, abalado no período do Estado Novo, e também à readaptação de toda a administração aos novos ditames constitucionais. Assim, na mensagem do Governo (1947), encaminhada à Assembleia Legislativa, o governador Carlos Fernando Monteiro Lindemberg fez menção às ações do secretário de Educação e Saúde, Dr. Eurico Aguiar Salles. Esse secretário atuou no Governo de seu antecessor, o interventor Santos Neves (1943 a 1945). Segundo o governador, esse secretário “[...] encomendou estudos sobre o quadro educacional e as alternativas para os problemas da área ao professor Rafael Grisi” (COSTA, 1998, p. 121).

De acordo com a mensagem do Governo do Estado (1947, p. 25), Rafael Grisi foi um “[...] experimentado técnico de ensino e professor” e havia apresentado um bem elaborado relatório com farta documentação, mostrando o quadro atual da educação no Estado. Conforme escrito na mensagem, esse relatório fornecia elementos básicos para uma projetada reforma, a qual não foi efetivada nesse Governo. Além disso, registrou um quadro de decadência do organismo educacional do Estado e apresentou, como causas para essa situação, o êxodo dos professores normalistas, o crescente número de docentes leigos, a falta de estímulo para o trabalho, a falta de curso de aperfeiçoamento, a carência de acompanhamento pedagógico, o baixo padrão de vencimentos e a inexistência de uma carreira para o magistério. Contudo esse estudo só veio servir à política educacional do governo seguinte, no qual teve assento, na pasta da Educação, o próprio realizador da pesquisa diagnóstica, Rafael Grisi.

Nessa perspectiva, assim que termina o mandato desse Governo, assume em seu lugar Jones Santos Neves (1951). Segundo Coutinho (1993, p. 94), a década de 1950 foi especialmente auspiciosa para o ensino em nosso Estado, visto que, “[...] durante a administração de Jones Santos Neves (1951-55), a educação mereceu destaque especial nos planos fixados para o desenvolvimento educacional”. De acordo com essa autora, o ensino primário foi reestruturado como uma das providências adotadas para melhorar a qualidade do ensino e ampliar o sistema educacional.

Page 8:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

8

Em meio a esse clima de prospectivas mudanças, assume a pasta da Educação, no dia 28 de junho de 1951, no Governo do Sr. Jones dos Santos Neves, o reconhecido “técnico do Ensino Primário”, professor Rafael Grisi. Conforme comentado, esse professor realizou, para o mesmo Governo, por ocasião da sua interventoria no Estado, um estudo técnico sobre a situação do ensino primário no Espírito Santo. Assim, nesse Governo, ele implementou medidas administrativas, a fim de mudar o que a sua pesquisa havia apontado como falhas na política do ensino primário e que precisariam ser corrigidas.

Grisi inaugurou uma nova ordem político-administrativa no ensino primário do Espírito Santo. Em meio a muitos elogios, numa sessão realizada no dia 21 de novembro de 1951, na Assembleia Legislativa, conforme registrou o jornal A Gazeta, de 15 de dezembro de 1951, sob o título Novos destinos para o ensino no Espírito Santo, com um único voto desfavorável, foi aprovada a Lei nº 549 que, no dia 7 de dezembro de 1951, foi sancionada pelo governador do Estado. Essa lei, conforme declarou o artigo do jornal A Gazeta, representava para os deputados a moralização do ensino primário no Espírito Santo. Dessa forma, como afirma Coutinho (1993, p. 94), continha os direcionamentos para que fosse efetivada uma reforma geral do ensino primário:

Batizada pelo nome de ‘Lei Áurea do Ensino’ capixaba, fixava critérios para a classificação dos estabelecimentos escolares em categorias e entrâncias, segundo seu porte e localização, reorganizava a carreira do magistério, instituindo os concursos de remoção e ingresso, e assegurando gratificações proporcionais ao trabalho e às dificuldades do meio em que esse trabalho se realizava.

Essa lei teve uma conotação de liberdade, cujo propósito era tirar, ao máximo possível, a ingerência da política de apadrinhamento que havia se infiltrado no magistério. Isso significa que antes, para o professor se locomover de sua cadeira, ele precisava recorrer a favores políticos, o que se constituía, de certa forma, uma moeda eleitoreira.

Em seu art. 1º, classifica os estabelecimentos de ensino primário em cinco entrâncias: os de 1ª entrância seriam aqueles estabelecimentos localizados nos municípios da Capital e os da sede dos distritos com população acima de 1.000 habitantes; os de 2ª entrância seriam aqueles localizados nas sedes municipais e distritais servidas por estradas de ferro, ou os que se encontrassem em um raio de dois quilômetros da estrada de ferro; os de 3ª entrância seriam os estabelecimentos localizados à distância máxima de cinco quilômetros das sedes dos municípios e que não tinham os itens acima citados; os de 4ª entrância, localizados nas sedes dos distritos e nos núcleos de população superior a 1.000 habitantes; e, por último, os de 5ª entrância, os estabelecimentos que não se encaixavam nas categorias apresentadas.

Essa lei, conhecida como Lei Áurea, criou também um mecanismo de controle de rendimento e frequência para o Concurso de Remoção. Ela instituiu e democratizou o Concurso de Remoção para todos os professores. Indistintamente de suas classificações, professores do ensino primário, ou primários, regentes de ensino primário, ou professores de concurso, todos, igualmente, se tornaram portadores desse direito, visto que, antes, pela falta de normatização, os professores ficavam a mercê das benesses dos políticos para se locomoverem. Porém, essa mesma lei que criou esse direito, estabeleceu também parâmetros que vinculavam a pontuação, para as suas classificações nos concursos de remoção, ao objetivo maior dessa lei, que era o aumento de alunos frequentando a escola e com rendimento satisfatório.

Page 9:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

9

Essa lei também não ficou indiferente ao crescimento funcional desses profissionais do magistério, o que aponta a preocupação com a melhoria da qualidade da oferta do ensino primário em nosso Estado. Ela incluiu, como um dos requisitos de classificação dos professores, a comprovação de seus méritos. Assim diz o art. 20:

Como comprovantes dos méritos dos candidatos para efeito de classificação no concurso de que trata o art. 17, serão apreciados os seguintes títulos e elementos: a) notas obtidas pelo candidato nas diversas disciplinas do curso normal ou média final de conclusão do mesmo; b) diplomas e certificados de outros cursos oficiais ou reconhecidos; c) publicações sobre assuntos pedagógicos; d) atividade didática anterior; e) número de dias de comparecimentos não remunerados como substituto permanente, atestado pela autoridade competente; f) contribuição docente à Campanha de Educação de Adultos (LEI nº 549, 7-12-1951, art. 20).

Como processo de medida de valorização do magistério, os professores receberiam reconhecimento pelo seu trabalho com uma gratificação pelo exercício da função, ou seja, essa gratificação era destinada a professores ou diretores, enquanto estes se encontrassem em efetivo exercício como regentes de escola ou classe própria. Era assegurado o pagamento de uma gratificação mensal de magistério, na conformidade da tabela elaborada que apresentava discriminadamente os valores para cada função: regente de classe ou escola singular, regente de escola ou classe e delegado de ensino, diretor de escolas reunidas sem o encargo de regência de classe, diretor de escolas reunidas com o encargo de regência de classe, diretor de escolas reunidas com regência de classe e função de delegado de ensino, diretor de escolas reunidas e delegado de ensino, diretor de grupo escolar e para cada categoria e entrância.

Dessa forma, com as escolas e o magistério organizados, a base estava lançada para uma efetivação do ensino com qualidade por meio da implementação de um ideário pedagógico coerente com os princípios escolanovistas. Nessa base estava incluído um método único de alfabetização a ser implantado, via Secretaria de Educação, a todas as escolas primárias. Isso nos foi relatado por uma professora alfabetizadora que vivenciou esse momento histórico:

Eu não tinha muita experiência não, mas era capaz de perceber alguns problemas na aprendizagem pelo Método Global. Ah! era época da Gestalt, imperando gestaltismo, é Psicologia e, portanto, todos admitiam que a aprendizagem da forma maior da palavra era mais importante que o texto, era mais importante do que começar pelas letras. Bom! Em... 50, eu fui para o Grupo Escolar Naydes Brandão dirigir a escola e foi nessa década de 50 que o Governo brasileiro trouxe de São Paulo o Rafael Grisi, que era um especialista e que funcionava... tinha feito reforma em São Paulo e, realmente, fez aqui uma reforma muito interessante. Ele dividiu o Estado em entrâncias, os professores ganhavam mais quando iam para o interior, fez a primeira lei que organizou o magistério no Estado. Então, ele era realmente um sujeito muito competente. Foi a primeira lei do magistério, eu não me lembro que lei era, não. Era uma organizadora do trato com recursos humanos na área da educação. Mas Grisi cometeu um grande pecado, no meu entender ele, o Governo estadual, exatamente na área de alfabetização. Ele preparou uma cartilha da noite para o dia chamada Cartilha do Bitui e o Governo espírito-santense editou essa cartilha que foi preparada pelo Grisi e pela

Page 10:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

10

mulher dele e o Governo do Estado editou essa cartilha e mandou para toda escola do Estado para ser adotada na alfabetização. Bom, eu estava dirigindo a escola, reuni meu grupo de professores alfabetizadores e fomos fazer uma análise da cartilha e, como fruto dessa análise, nós preparamos um documento de quatorze páginas datilografadas naquele tempo. Porque a cartilha tinha sido produzida tão às pressas, que a família do ‘L’ não tinha sido tratada na cartilha! e algumas palavras, que eu não me lembro quais [risos], mas algumas palavras tivemos que ir pro dicionário para saber o significado delas, porque ninguém sabia e muito menos as crianças poderiam saber [risos]. Então nós fizemos esse documento e a encarregada da Divisão de Orientação e Pesquisa Pedagógica dedicada à época era a professora Maria Madalena Pizza. E eu disse a ela: ‘Dona Madalena, eu queria saber se, a partir de agora, a Secretaria de Educação vai responder pelos resultados de alfabetização na escola ou se vai ser a escola que vai continuar respondendo?’ Ela disse assim: ‘Por que?’. Eu respondi: ‘Porque, se for a escola, vou dizer à senhora que não podemos adotar a cartilha que foi mandada para lá; agora, se for a Secretaria de Educação, nós adotamos e a senhora responde depois’. Aí ela disse assim: ‘Mas por que isso?’ ‘Porque ela está cheia de erros’. Está aqui o resultado da nossa análise e a senhora verifica. ‘Então você deixa isso comigo e você volta daqui a três dias’.Eu disso: ‘Tudo bem!’. Daí a três dias, eu voltei e ela me disse: ‘O secretário falou que você pode não usar a cartilha, se não quiser’ Então eu disse: ‘Ela pode ficar lá até para uma leitura intermediária que os professores queiram fazer com os alunos coisa e tal, mas adotar para ensinar nós não adotamos’. Bom! Eu disse para ela: ‘Até mesmo porque a gente está querendo superar esse problema da alfabetização e não há de ser com essa droga que a gente vai conseguir isso!’. Para minha surpresa [risos], ele, depois, reviu essa cartilha, não falou nada sobre isso, mas fez todas as alterações que a escola havia enviado para ele. A cartilha continuou a ser adotada, o Governo gastou um horror! (ROCHA, 2007, informação verbal).

Há elementos importantes no depoimento oral de Rocha (2007). O primeiro está relacionado com o método de ensino (global) e as bases psicológicas desse método. O segundo diz respeito à reforma implementada por Rafael Grisi. O terceiro se associa à necessidade de munir os professores de material pedagógico (cartilha) adequado ao modelo de alfabetização defendido pelo secretário. Como aponta Falcão (2010), a esposa de Rafael Grisi, Aracy Hildebrand, é autora de a Cartilha de Bitu (Figura 1), que teve a sua primeira edição em 1954. Conforme evidencia o relato oral de Rocha (2007), após o envio para as escolas estaduais da cartilha, os professores da instituição que dirigia encontraram vários problemas no material que, segundo ela, foi feito às pressas. Depois das revisões sugeridas pelos profissionais, ela continuou a ser adotada no Espírito Santo. Vale observar que a cartilha foi adotada, porque o secretário era o principal interessado. Além disso, de acordo com o relato da professora, a adoção da cartilha rendeu ao secretário e à sua esposa ganhos financeiros importantes, pois, segundo ela, o Estado gastou muito com a compra do material.

Page 11:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

11

Figura 1 – Cartilha do BituFonte:http://www.google.combrl=http.ufrgs.br/faced/extensão/memoria/cartilhas_imagens/cartilha_de_Bitu

De acordo com Grisi (1951), a escola deve oferecer aos alfabetizandos condições adequadas ao ensino e aprendizado da leitura, o que se configura em materiais escritos que sejam atraentes às crianças, racionais, com vocabulários simples, criteriosamente escolhidos e sistematizados, capazes de construir condições que a “Psicologia demonstrou serem necessárias e suficientes da atividade perceptiva e, por conseqüência, aptas a tornar o aprendizado da leitura não somente possível, mas inelutável e econômico. E isso é a Cartilha” (p. 49). Grisi acreditava, também, que era necessário adotar medidas para proibir, em nome do interesse da educação, o uso de cartilhas que, à luz dessa teoria, fossem consideradas mal construídas, visto que a elas cabe a grande responsabilidade pelo “[...] imenso desperdício de tempo escolar que significa a presença de aulas de leitura nas classes de 2ª, 3ª, e 4ª anos primários [...]” (p. 49). Nesse sentido, Grisi era favorável a que o Governo adotasse uma medida de impor às escolas um modelo de alfabetização coerente com os princípios da Psicologia da Gestalt, por meio de uma cartilha. No Espírito Santo, as suas ideias foram postas em prática a partir da adoção de uma cartilha elaborada por sua esposa e que, certamente, na opinião de Grisi, seguia os princípios defendidos por ele.

Grisi (1951), em suas formulações teóricas sobre os métodos de leitura e as cartilhas, adota a concepção de aprendizagem advinda da Gestalt, teoria da estrutura ou da configuração. Mostra que, nessa concepção, o “[...] aprendizado não é o resultado da simples instalação de novas ligações entre neurôneos sensoriais e motores, efetuadas no torvelinho mecânico das agitações casuais, casualmente idôneas, prazerosas e repetidas” (p.32), ao contrário disso, a aprendizagem surge com a percepção ou, mais precisamente, com o discernimento de uma situação. Para Grisi (1951, p. 45), esse método:

[...] consiste em construir as condições necessárias e suficientes para que a percepção e o aprendizado se operem com a máxima eficiência e economia e sob as quatro modalidades – gradação, diferenciação, assimilação e redefinição, - preferimos chamar, com o termo que a Pedagogia já consagrou, ‘Método Global’.

Page 12:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

12

Dessa forma, na visão desse autor e em acordo com o previsto no Programa de Leitura e Linguagem no Curso Primário, o Método Global é ideal para o ensino da leitura, visto que ele cria condições necessárias e suficientes no processo de estruturação percepcional, reunindo os aspectos da gradação, diferenciação, assimilação e redefinição. Assim, torna-se possível a formação de hábitos e atitudes adequados de realizar esse ensino com alto nível, com economia de tempo, além de proporcionar o domínio de leitura inteligível e rápida. Isso é demonstrado na primeira lição (Figura 2) da Cartilha de Bitu. Após apresentar a lição em forma de um pequeno texto apropriado ao nível de desenvolvimento do aprendiz, retiram-se desse contexto palavras para serem estudadas e decompostas em sílabas. A intenção é ensinar a família silábica formada pela consoante [m] e as vogais. Analisando esse exemplo, observamos que o texto é deixado totalmente à parte pelo professor, o qual se dedica a trabalhar com as sílabas, ou seja, com as partes mínimas da língua. Observamos, portanto, que o “Método Global”, apesar de estar inserido no Método Analítico, surge como uma forma de demarcar ideologicamente uma nova fase para a alfabetização na década de 1950. Ele não inova em relação a outros métodos já adotados, mas aparece revestido de uma outra nomenclatura e supostas bases teóricas inovadoras.

Figura 2 – Primeira lição da Cartilha do BituFonte:http://www.google.combrl=http.ufrgs.br/faced/extensão/memoria/cartilhas_imagens/cartilha_de_Bitu

Apesar disso, reconhecemos que a gestão de Rafael Grisi à frente da Secretaria da Educação foi marcada por realizações, no sentido de revitalizar o sistema educacional e, em especial, o ensino primário e, consequentemente, a alfabetização. No entanto, a reforma sofreu ruptura por força da recorrente descontinuidade político-administrativa. Antes, porém, de discutirmos essa questão, é importante destacar, com referência à alfabetização, que a proposta de Rafael Grisi não destoava do que foi indicado no Programa de Leitura e Linguagem no Curso Primário.

A marca da descontinuidade político-administrativa

No Governo de Francisco Lacerda de Aguiar, que se iniciou em 1º de fevereiro de 1955, assumiu, nessa mesma data, a pasta da Educação, o advogado Dr. Manoel

Page 13:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

13

Moreira Camargo. É importante esclarecer que esse secretário assinalou sua posição política dizendo: “[...] sempre fui oposicionista ao Governo passado” (GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, 1955, p. 46). Como opositor ao antigo Governo, ele teceu severas críticas às ações do Governo anterior, manifestando, assim, uma posição contrária à política dispensada ao ensino primário e, em especial, à alfabetização.

Uma das formas de manifestação efetiva de oposição ao antigo Governo foi a modificação do art. 24, da Lei nº 549, de 7 de dezembro de 1951. Nesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios: 150 comparecimentos anuais à atividade docente na mesma escola ou classe; frequência média não inferior a 28, 26, 24, 22 e 20 alunos, segundo se trate de classe ou escola de 1ª, 2ª, 3ª, 4ª ou 5ª entrância, respectivamente; rendimento escolar anual correspondente, em média a 20, 18, 16, 14 ou 12 alunos aprovados, conforme se trata, respectivamente, de classe ou escola de 1ª, 2ª, 3ª, 4ª ou 5ª entrância.

De acordo com a alteração desse artigo da lei, houve um afrouxamento no nível de exigências, ou seja, o período exigido para efetivação dos professores leigos encurtou, passando de cinco para dois anos; os dias de frequência que seriam de 150 dias anuais passaram para 150 dias bianuais; as efetivações não estavam mais condicionadas ao requisito da frequência nem ao rendimento dos alunos. Ao final da década de 1950, a implantação do PABBAE no Espírito Santo produz, em termos político-administrativos, o rompimento com o ideário que sustentava as políticas nacionais e estaduais de alfabetização, porque esse programa é orientado pelo ideário tecnicista. Segundo Cambi (1999), a adoção desse ideário representa uma “renovação radical e capilar da pedagogia”, atenta sobretudo às questões de instrução que se configuram por uma preocupação muito forte com os recursos técnicos desenvolvidos pela ciência e aplicáveis ao domínio educacional.

Contudo, no que diz respeito à alfabetização, não ocorreram mudanças fundamentais com relação a esses aspectos. Como proposto pelo programa do MES/INEP e por Rafael Grisi no Espírito Santo, o método e os materiais didáticos são fundamentais para alcançar uma alfabetização de qualidade. Nesse momento, final da década de 1950 e início de 1960, com o Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar (PABAEE), iniciou-se mais um movimento de hegemonia em torno de um outro método de alfabetização, tendo em suas bases o tecnicismo, ancorado na orientação behaviorista. Esse programa foi adotado no Brasil, juntamente com a chegada de Juscelino Kubistcheck à Presidência da República, em 1956, e surgiu de um acordo assinado entre o Brasil e os Estado Unidos, visando à configuração de um programa de assistência ao ensino primário.

Conforme Paiva e Paixão (2002), esse acordo tem em sua orientação a perspectiva de que o ensino primário é fundamental para o desenvolvimento mais geral e que esse nível de ensino no Brasil revelava problemas, como o analfabetismo, falta de vagas para todos os alunos, baixo orçamento, educação dos professores deficitária e a centralização do sistema de ensino. Diante de tais problemas e, para o seu enfrentamento, o programa propõe, como objetivos, formar docentes para atuar nas escolas normais no Brasil, além de elaborar, publicar e comprar material didático para as escolas primárias e normal. De acordo ainda com essas autoras, o PABAEE tratava-se, basicamente, de um programa que visava à qualificação do professor primário e isso estava em conformidade com as prioridades do INEP e também com demandas formuladas pelos intelectuais do campo pedagógico que se ocupavam das questões relativas aos problemas do ensino primário. Nessa direção, dois eixos orientariam aquela assistência: o treinamento de professores de escolas normais e a produção de materiais didáticos

Page 14:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

14

para apoio ao ensino em escolas primárias e normais de todo o País. Como estratégia, seria montado um centro piloto, em Belo Horizonte. Segundo Paiva e Paixão (2002), dentre os 864 bolsistas de todo o Brasil que participaram do curso, entre 1959 e 1964, 49 eram do Espírito Santo e, muitos, ao retornarem a seus Estados, assumiram postos de direção, difundindo as orientações do PABAEE.

Considerações finais

À guisa de conclusão, inferimos que as mudanças que se processaram no desenvolvimento do ensino primário no Espírito Santo, a contar de 1950, foram marcadas por continuidades e descontinuidades nos âmbitos das políticas públicas, e as reformas efetuadas objetivavam a uma adequação do sistema educativo, coerente com o modelo do desenvolvimento adotado no País, sob a crença de que desenvolvimento econômico e escolarização são duas coisas interdependentes, e a alfabetização é um elemento impulsionador desse desenvolvimento. Por isso, as reformas adotavam um modelo de educação de base tecnocrática e meritocrática de funcionamento do ensino.

Diante do estudo realizado, podemos afirmar que o Espírito Santo buscou conduzir a sua política de alfabetização a partir de um modelo de educação nacional orientado pela linguística contemporânea e por princípios da Escola Nova sustentados pela psicologia da gestalt. Porém, independentemente dessas orientações, esteve presente continuamente a crença de que os métodos eram essenciais. Contudo, a proposição de “novos” métodos não implicaram mudanças substantivas na alfabetização porque as suas práticas acabavam culminando na codificação e decodificação da alfabetização. Quanto a essa concepção mecânica de alfabetização, Gontijo (2006) se opõe a ela dizendo que o conceito de alfabetização, na prática educativa escolar, deve abarcar diferentes dimensões que, por sua vez, devem ser tomadas como eixos norteadores do trabalho na sala de aula. Dessa forma, a autora, concebe a alfabetização como uma “[...] prática social em que se desenvolve a formação da consciência crítica, as capacidades de produção de textos orais e escritos, de leitura e de compreensão das relações entre sons e letras” (p.13) e pondera sobre a necessidade de se levar em conta essas dimensões ao ensinar as crianças a ler e a escrever para que esse processo não seja reduzido à codificação de sons e decodificação de letras. Dessa forma, apesar de o Método Global de Alfabetização tratar de algumas dimensões, como o ensino do código escrito dentro do contexto da frase, ele privilegia a decodificação e a codificação e, assim, não avança no sentido de “[...] pensá-la como processo de produção de sentidos que se constrói na relação escritor-texto-leitor com todas as implicações de cada uma dessas vozes no processo” (GONTIJO, 2006, p.13). Diante disso, essa mesma autora assevera que “[...] precisamos levar as crianças a indagar os textos, compará-los com suas vivências, prever o sentido, a partir da observação de pistas grafofônicas e visuais (imagens) que compõem um determinado texto escrito” (p.13).

Em outros termos, mesmo que o Método Global propusesse a iniciar o processo de alfabetização de forma diferente dos métodos de marcha sintética, ou seja, do todo para as partes, ele se ancora na única dimensão mecânica da alfabetização – codificação e decodificação, pois o “ todo” que se configura num pequeno texto era logo abandonado, servindo apenas como um pretexto para a sistematização da escrita. Pelo estudo realizado em torno da história da alfabetização no Espírito Santo, somos autorizados a dizer que as inovações serviram apenas para promover a venda de materiais didáticos e de métodos que resolveriam os problemas da alfabetização.

Page 15:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

15

Referências

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Leitura e linguagem no curso primário: sugestões para a organização e desenvolvimento de programas. [S.l.]: INEP, n. 42, 1949. BRASIL. Decreto-lei nº. 859, de 2 de janeiro de 1946. Lei Orgânica do Ensino Primário. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Braília, 4 jan. 1946. Disponível em: ‘http://www.soleis.adv.br’. Acesso em: 7 de maio de 2007.CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Editora UNESP, 1999. COSTA, Gilda de Araújo. O direito à educação na Assembléia Constituinte do Espírito Santo de 1947. 1998. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 1998. n. 2.COUTINHO, Maria José. Uma história da educação no Espírito Santo. Vitória: DEC/UFES, 1993.ESPÍRITO SANTO (Estado). Lei nº. 549, 12 de dezembro de 1951. Vitória, 2007. Disponível em <www.leisestaduias.gov.br>. Acesso em: 2 maio 2007.ESPÍRITO SANTO. Governador (1951-1954: Neves). Mensagem enviada à Assembléia Legislativa [por] Jones dos Santos Neves, governador do Estado do Espírito Santo. Vitória: Imprensa Oficial, 1955.ESPÍRITO SANTO. Governador (1947-1950: Lindemberg). Mensagem enviada à Assembléia Legislativa [por] Carlos Fernando Monteiro Lindemberg, governador do Estado do Espírito Santo. Vitória: Imprensa Oficial, 1947.FALCÃO, Elis Beatriz. História do ensino e da leitura no Espírito Santo (1946-1960). 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal do espírito Santo, Vitória, 2010.FILHO, Loreunço. Introdução ao estudo da escola nova. 14. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. Alfabetização na prática educativa escolar. Revista do Professor, Belo Horizonte, n. 14, p. 7-16, out. 2006.GRISI, Rafael. O ensino da leitura: o método e a cartilha. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, n. 43, v. 16, jul./set. 1951. Disponível em <http://www.inep.gov.br>. Acesso em: 10 de junho de 2007.GUMPERZ, Jenny Cook (Org). A construção social da alfabetização. Tradução Dayse Batista. Porto Alegre: Artes Médicas,1991. HILDEBRAND, Aracy. Cartilha de Bitu. 6. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955. PAIVA, Edil Vasconcelos; PAIXÃO, Lea Pinheiro. PABAEE (1956-1964): a americanização do ensino elementar no Brasil? Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2002.ROCHA, Ana Bernardes da Silveira. Práticas de alfabetização. 2007. Entrevista concedida a Dulcinéa Campos, Vitória. 2007.

Page 16:  · Web viewNesse artigo, está disposto, originalmente, que, para o professor docente de emergência se efetivar ao fim de cinco anos, ele precisa atender aos seguintes critérios:

i Termo revisto e corrigido, posteriormente à escrita da dissertação.