21
EDITORIAL Nesta edição do Periódico apresentamos apenas dois artigos, mas como poderão perceber, o artigo sobre os Vínculos Afetivos é extenso, porém, devido à sua importância optamos transcrevê-lo na íntegra. Segue a transcrição da observação de Jos Choenmaker sobre o texto. – Recebi esse artigo de Artur Zajonc – cientista norte-americano, ex-presidente da Soc. Antroposófica dos EUA, palestrante convidado para a conferência da ASD (Association for Social Development) no Canadá em maio, sobre a vinculação entre amor e aprendizagem e a necessidade de que as escolas preparem para amar e não só conhecer. Comecei a ler e me pareceu muito interessante e estou repassando para vcs. Jos O segundo artigo nos remete à coragem de olhar para os nossos alunos e oferecer-lhes aquilo que necessitam, o que nos pedem. Com esses dois artigos esperamos poder contribuir para que cada professor encontre coragem e força para a sua nobre tarefa. Desejamos a todos boas férias e uma feliz participação do II Congresso Brasil de Pedagogia Waldorf em Ribeirão Preto. A Coordenação do Periódico VÍNCULOS COGNITIVOS-AFETIVOS NO ENSINO E NA APRENDIZAGEM A Relação entre Amor e Conhecimento (1) Arthur Zajonc, Professor de Física, Amherst College Diretor do Programa Acadêmico, Centro para a Mente Contemplativa na Sociedade Email: [email protected] Quando o poeta alemão Goethe declarou, “Em toda parte nós só aprendemos de quem amamos”, ele estava se referindo diretamente à profunda ligação entre cognição e afeição. Nós somos especialmente abertos e receptivos àquele que amamos. Estamos mais propensos a lembrar as palavras de um querido mentor e ponderar sobre elas muito tempo depois. Os ensinamentos calam mais fundo no ser humano quando levados por uma profunda afeição; eles podem nos modificar e até mesmo nos ensinar a ver o mundo de forma diferente. Eu me sinto cada vez mais convencido da importância da ligação entre cognição e afeição ou, para ser mais claro, a relação crucial entre amor e conhecimento. Em primeiro lugar, uma observação pessoal: como cientista, qualquer tentativa de relacionar o conhecimento ao amor parece uma enorme quebra de etiqueta; isso não se faz, especialmente em um local público como este. Mas eu cheguei à conclusão de que o medo que eu senti ao levantar esta questão baseava-se em formas e forças institucionais particulares que, em última análise, trabalhavam contra nossos interesses humanos fundamentais. Assim sendo, convido-os a deixar de lado suas suspeitas e indecisões e explorar comigo a possível relação entre conhecimento e amor especialmente quando se encontram na investigação contemplativa. Se eu perguntasse: O que deve estar no centro do nosso ensino e da aprendizagem de nossos alunos, qual seria sua resposta? Das muitas tarefas que

 · Web viewEsses dois reconhecimentos constituíram a base para a nossa “oferta de ensino” na escrita e na aritmética. Por oferta nesse sentido compreende-se que nós temos

  • Upload
    trandan

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

EDITORIAL

Nesta edição do Periódico apresentamos apenas dois artigos, mas como poderão perceber, o artigo sobre os Vínculos Afetivos é extenso, porém, devido à sua importância optamos transcrevê-lo na íntegra. Segue a transcrição da observação de Jos Choenmaker sobre o texto. – Recebi esse artigo de Artur Zajonc – cientista norte-americano, ex-presidente da Soc. Antroposófica dos EUA, palestrante convidado para a conferência da ASD (Association for Social Development) no Canadá em maio, sobre a vinculação entre amor e aprendizagem e a necessidade de que as escolas preparem para amar e não só conhecer. Comecei a ler e me pareceu muito interessante e estou repassando para vcs. Jos

O segundo artigo nos remete à coragem de olhar para os nossos alunos e oferecer-lhes aquilo que necessitam, o que nos pedem.

Com esses dois artigos esperamos poder contribuir para que cada professor encontre coragem e força para a sua nobre tarefa. Desejamos a todos boas férias e uma feliz participação do II Congresso Brasil de Pedagogia Waldorf em Ribeirão Preto.

A Coordenação do PeriódicoVÍNCULOS COGNITIVOS-AFETIVOS NO ENSINO E NA APRENDIZAGEM

A Relação entre Amor e Conhecimento(1)

Arthur Zajonc, Professor de Física, Amherst College Diretor do Programa Acadêmico,

Centro para a Mente Contemplativa na Sociedade Email: [email protected]

Quando o poeta alemão Goethe declarou, “Em toda parte nós só aprendemos de quem amamos”, ele estava se referindo diretamente à profunda ligação entre cognição e afeição. Nós somos especialmente abertos e receptivos àquele que amamos. Estamos mais propensos a lembrar as palavras de um querido mentor e ponderar sobre elas muito tempo depois. Os ensinamentos calam mais fundo no ser humano quando levados por uma profunda afeição; eles podem nos modificar e até mesmo nos ensinar a ver o mundo de forma diferente. Eu me sinto cada vez mais convencido da importância da ligação entre cognição e afeição ou, para ser mais claro, a relação crucial entre amor e conhecimento.

Em primeiro lugar, uma observação pessoal: como cientista, qualquer tentativa de relacionar o conhecimento ao amor parece uma enorme quebra de etiqueta; isso não se faz, especialmente em um local público como este. Mas eu cheguei à conclusão de que o medo que eu senti ao levantar esta questão baseava-se em formas e forças institucionais particulares que, em última análise, trabalhavam contra nossos interesses humanos fundamentais. Assim sendo, convido-os a deixar de lado suas suspeitas e indecisões e explorar comigo a possível relação entre conhecimento e amor especialmente quando se encontram na investigação contemplativa.

Se eu perguntasse: O que deve estar no centro do nosso ensino e da aprendizagem de nossos alunos, qual seria sua resposta? Das muitas tarefas que nós assumimos, como educadores, qual é, em sua opinião, a tarefa mais importante de todas? Qual é a maior esperança que temos para os jovens a quem ensinamos? Nas cartas que escreveu para o jovem poeta Franz Kappus, Rainer Maria Rilke (1954) respondeu inequivocadamente:

Levar o amor a sério, sustentá-lo e aprender a amar como uma tarefa, isto é o que as pessoas [jovens] precisam... Pois o amor de um ser humano por outro talvez seja a mais difícil de todas as nossas tarefas, a prova suprema e derradeira, o trabalho para o qual todos os outros não são senão uma preparação. Por este motivo, os jovens, que são principiantes em todas as coisas, não podem conhecer o amor ainda, eles têm que aprendê-lo. Com todo o seu ser, com todas as suas forças, reunidas em torno de seu coração solitário e tímido que palpita alvoroçadamente, eles devem aprender a amar. (p. 41)

Preciso dizer? Os currículos oferecidos por nossas instituições de ensino superior têm negligenciado muito esta tarefa central, ainda que profundamente difícil, de aprender a amar, que é também a tarefa de aprender a viver em verdadeira paz e harmonia com os outros e com a natureza.

Temos muita prática em educar a mente para o raciocínio, o texto e o discurso críticos, e também para a análise científica e quantitativa. Mas isto é suficiente? Em um mundo importunado por conflitos internos bem como externos, não seria de igual senão maior importância equilibrar a lapidação de nossos intelectos com o cultivo sistemático de

nossos corações? As questões de justiça social, meio ambiente e o ensino da paz não demandam todas uma atenção maior e um lugar mais central em nossas universidades e faculdades? Certamente que sim ...

Embora isto seja sem dúvida verdade, a minha apresentação não irá abordar a questão de equilibrar a realização intelectual com as boas ações. O que eu gostaria de sugerir mais propriamente é que conhecer a si próprio fica parcial e distorcido se não desenvolvermos e praticarmos uma epistemologia do amor ao invés de uma epistemologia da separação. O lema de Harvard é Veritas ou Verdade. Nesta visão, conhecer é o projeto central do ensino superior. Eu mantenho, contudo, que a verdade em si – veritas em si – nos ilude se trouxermos para o mundo e para o outro somente uma epistemologia da separação. Nossa epistemologia convencional nos entrega uma imitação perigosa no lugar da verdade, uma que pode passar pela verdade, mas que de fato é parcial e pobre.

Em uma palestra na Berea College, Parker Palmer (1993) salientou que “toda forma de conhecer se torna uma forma de viver... toda epistemologia se torna uma ética” (para. 4). Ele argumentou que a epistemologia atual tem semeado uma associada ética da violência. A ciência com certeza tem trazido progressos enormes, mas nós não podemos nos afastar do fato central de que a ênfase atual na objetificação nos predispõe para uma forma instrumental e manipulativa de ser no mundo. Conforme Parker sugeriu em Berea, a nossa forma de conhecer se desenvolve, de fato, em uma forma de viver. As implicações desta posição são grandes. Embora eu não esteja clamando enfaticamente por um retrocesso da ciência, eu estou clamando por re-situar a ciência dentro de uma visão mais ampla do que realmente é conhecer e viver. Essa reimaginação do conhecer trará conseqüências profundas para o ensino, conseqüências que dão um lugar proeminente para as pedagogias contemplativas. Na verdade, eu espero convencê-los de que a prática contemplativa pode se tornar uma investigação contemplativa, que é a prática de uma epistemologia do amor. Esta investigação contemplativa não só rende insight (veritas), mas também transforma o conhecedor através de sua participação íntima (pode-se dizer afetuosa) no objeto da atenção contemplativa de alguém. O ensino contemplativo é um ensino transformativo. Embora a pesquisa fundamental de Jack Mezirow (2000) sobre ensino transformativo estivesse interessada na reflexão crítica e não na contemplação, eu acho que o trabalho dele e de outros teóricos como Robert Kegan (1982, 1994) oferecem uma linhagem acadêmica altamente adequada para se entender as pedagogias contemplativas.

No restante do meu tempo, eu proponho primeiro delinear os contornos de uma epistemologia da intimidade e participação, isto é, uma epistemologia do amor, que estende a investigação científica e erudita para caminhos que não precisam ser vistos como problemáticos para o ensino acadêmico ou para as nossas disciplinas de pesquisa. Eu gostaria então de descrever alguns dos principais elementos de um curso que eu leciono com o historiador da arte, Joel Upton, na Amherst College. Com o título de “Eros and Insight” (Eros e o Insight), o curso é uma tentativa de incorporar algo desta forma de conhecer e de assumir o desafio que Rilke nos apresenta: o desafio de aprender a amar.

Uma Epistemologia do Amor

Ironicamente, eu acredito que nós precisamos, em primeiro lugar, reconhecer e aceitar como parte de nossa realidade existencial a separação ou a solidão que vivenciamos. Nós realmente nos sentimos desligados um do outro e também do mundo natural à nossa volta. O filósofo espiritual Rudolf Steiner (1995) achava que Einsamkeit ou solidão era a “principal característica de nosso tempo” (p. 94). Seu contemporâneo Rilke (1954) colocou de forma mais vigorosa:

Falando novamente em solidão, torna-se sempre cada vez mais evidente que ela não é basicamente algo que se possa tomar ou deixar. Nós somos solitários. Podemos nos iludir e agir como se não fosse assim. Nada mais. Mas é muito melhor entendermos que somos assim e até começarmos a assumi-lo. (p. 50)

Eu vejo a posição científica como um sintoma desse mal-estar psicológico e espiritual mais generalizado. Solidão é o lado do espelho ou o correlativo inevitável de um desenvolvimento cada vez mais forte de si mesmo e da identidade pessoal. À medida que os indivíduos se separam dos grupos étnicos, e as mulheres gradativamente se tornam autênticos indivíduos, assim também a força e o conforto do coletivo diminuem. A nossa procura pela identidade individual tem um lado negativo em paralelo: nós nos desidentificamos com outras pessoas, grupos, e com a natureza.

Embora muito tenha sido ganho através desse processo de individuação – realizações que não devemos perder – se esse processo continuar indefinidamente, nós logicamente chegaremos a uma sociedade de mônadas egoístas. Estou convencido de que a força compensatória para essa fragmentação não é o interesse próprio mútuo ou a ação econômica racional que maximiza a utilidade (como diriam os economistas); ao invés disso, eu acredito que relacionamentos empáticos genuínos podem ser e são estabelecidos entre duas pessoas ou mais. Cada vez mais esses vínculos não são entre tribos ou grupos étnicos e religiosos; eles se estabelecem entre indivíduos. Relacionamentos humanos saudáveis não acontecem automaticamente; cada um de nós deve cultivá-los intencionalmente. Nada neste mundo é de graça.

A mesma lógica é válida para o nosso relacionamento com o meio ambiente. Nós não crescemos mais na fazenda, tendo intimidade com o jeito do tempo, das plantas e dos animais. A nossa relação com a natureza deve, da

mesma forma, ser intencional. A prática da contemplação é uma parte importante dessa postura intencional, uma parte que pode levar a relacionamentos empáticos sustentados.

 Mudando intencionalmente do isolamento para o vínculo empático, estamos preparados para uma forma contemplativa de conhecer, uma forma cujo relacionamento com o amor irá, acredito, se tornar cada vez mais óbvio. Quais são as características ou estágios da investigação contemplativa?

Respeito. Ao nos aproximarmos do objeto de nossa atenção contemplativa, nós o fazemos com respeito e contenção. A respeito do relacionamento com a pessoa amada, Rilke (1975) sustentava que “uma união entre duas pessoas é uma impossibilidade” (p. 28). Ao invés de uma fusão fácil com a pessoa amada, Rilke (1954) insistia que “o amor consiste nisto, que duas solidões se protegem, são limítrofes e se saúdam” (p. 45). Da mesma forma, sinto que o primeiro estágio da investigação contemplativa é respeitar a integridade do outro, cuidando de sua natureza e de sua solidão, seja o outro um poema, um romance, um fenômeno da natureza ou a pessoa sentada à nossa frente. Precisamos permitir que o outro fale a sua verdade sem nossa projeção ou correção.

Suavidade. A investigação contemplativa é suave ou delicada. Em suas próprias investigações científicas, Goethe (1988a) procurava praticar o que ele chamava de “empirismo delicado (zarte Empirie)” (p. 307). Se desejamos nos aproximar do objeto de nossa atenção sem distorcê-lo, devemos então ser suaves. Em contraste, o empirismo de Francis Bacon falava em extrair os segredos da natureza sob condições extremas, submetendo-a à tortura.

Intimidade. A ciência convencional se distancia da natureza e, para usar os termos de Erwin Schrödinger (1967), objetifica a natureza. De forma ideal, a ciência se desliga dos fenômenos em benefício da objetividade. Em contraste, a investigação contemplativa se aproxima do fenômeno, delicada e respeitosamente, mas ainda assim procura uma intimidade com aquilo a que se dedica. Pode-se ainda manter um close-up de clareza e julgamento equilibrado, se lembrarmos de exercer a contenção e a suavidade.

Vulnerabilidade. A fim de conhecer, devemos nos abrir para o outro. A fim de avançarmos juntos e sermos influenciados, devemos estar suficientemente confiantes para sermos vulneráveis, suficientemente seguros para submeter-nos ao curso das coisas. Uma arrogância dominadora não terá lugar. Devemos aprender a ficarmos confortáveis com o não conhecer, com a ambigüidade e com a incerteza. O novo e o desconhecido somente podem surgir daquilo que parece ser fraqueza e ignorância.

Participação. A intimidade suave e vulnerável leva à participação do investigador contemplativo no fenômeno que se revela diante dele. As características externas nos convidam a ir mais fundo. Nós nos movemos e sentimos com o fenômeno natural, texto, pintura ou pessoa diante de nós; vivendo fora de nós mesmos e para dentro do outro. Respeitosa e delicadamente, nós nos juntamos ao outro em meditação, enquanto mantemos total consciência e clareza da mente. Em outras palavras, a investigação contemplativa está experiencialmente centralizada no outro, não em nós mesmos. Nossas preocupações, medos e desejos habituais trabalham contra a autêntica participação.

Transformação. As últimas duas características, participação e vulnerabilidade, levam a uma moldagem de nós mesmos no outro. O que estava fora de nós agora é internalizado. Interiormente nós assumimos a forma, a dinâmica e o significado do objeto contemplativo. Em uma palavra, somos transformados pela experiência contemplativa de acordo com o objeto da contemplação.

Bildung. A educação como formação. O indivíduo se desenvolve ou, poderíamos dizer, é esculpido através da prática contemplativa. No alemão, educação é tanto Erziehung quanto Bildung. A última deriva da raiz que significa “formar”. A linhagem da educação como formação remonta pelo menos à época dos Gregos. Em seu livro “O Que é a Filosofia Antiga?”, o filósofo francês Pierre Hadot (2002) escreve sobre o filósofo antigo: “o objetivo era desenvolver um habitus, ou uma nova capacidade para julgar ou criticar, e transformar – isto é, mudar o modo das pessoas de viver e ver o mundo” (p. 274). Simplício perguntava: “Que lugar o filósofo deve ocupar na cidade? O lugar de um escultor de homens” (p. xiii). Ou como coloca Merleau-Ponty (1962): nós precisamos reaprender a ver o mundo. Em um ensaio sobre ciência, Goethe (1988b) declarava que “todo objeto bem contemplado cria um órgão de percepção em nós” (p. 39). O importante trabalho de Parker Palmer também está centralizado na educação como formação.

Insight. O resultado final do envolvimento contemplativo aqui descrito é a formação de órgãos, que leva ao insight oriundo de uma participação íntima no curso das coisas. Na epistemologia budista isto era denominado “percepção direta”; entre os Gregos era chamado de epistéme, e contrastava com o raciocínio dedutível ou

dianoia. Este tipo de conhecimento é vivenciado como uma espécie de visão, observação ou apreensão direta, e não como um raciocínio intelectual para um resultado (Sloan, 1993; Sternberg & Davidson, 1995).

Por uma questão de tempo, eu preciso deixar de lado a importante questão da confirmação do insight por vários meios: experimental, consistência lógica ou outros métodos. Na filosofia da ciência isto é denominado algumas vezes de a diferença entre o contexto da descoberta e o contexto da prova.

Finalmente, a investigação contemplativa não é uma análise imparcial e nem um ascetismo desencarnado. Através de todos os seus estágios move-se uma excitação clara, cheia de vida, um Eros tranqüilo que estimula nosso interesse e nos mantém atentos e envolvidos.

Para nos ajudar a entender as características da investigação contemplativa, eu gostaria de usar duas citações, uma de Goethe (1988a) e uma segunda de Emerson. Goethe escreveu, “Existe um empirismo delicado que faz de si mesmo absolutamente idêntico ao objeto, tornando-se assim verdadeira teoria. Mas essa valorização dos nossos poderes mentais pertence a uma idade altamente evoluída” (p. 307). Nesta passagem Goethe destaca diversas características da aprendizagem contemplativa. Primeiro, é uma aprendizagem experiencial. O que Goethe chama de um “empirismo delicado” é também profundamente participativo, faz “de si mesmo absolutamente idêntico ao objeto” (p. 307). Teoria (da raiz grega que significa “contemplar”) não é entendida aqui como raciocínio, como lógica dedutiva, mas conforme eu já mencionei, como uma forma elevada de ver, o que Goethe em outro lugar chama de “aperçu”(2). Nós conhecemos em virtude da conexão, e não desconexão, porque somos idênticos ao objeto de nossa atenção. Goethe reconhece amplamente que essa consciência não-dual está muito distante de onde começamos, mas a preocupação do ensino é precisamente com a valorização de nossas forças mentais nesta direção, com a jornada da cegueira para a visão.

A segunda citação vem do ensaio de Emerson (1926), “O Poeta”, onde ele escreve, “Este insight, que se expressa através do que se chama Imaginação, é uma forma muito elevada de ver, que não se alcança com o estudo, mas com o intelecto estando onde vê e sendo o que vê, ao compartilhar o caminho ou circuito das coisas através das formas, e assim tornando-as translúcidas para os outros. O caminho das coisas é silencioso. Elas poderiam suportar a companhia de alguém que fala? Não suportariam um espião; somente aceitarão um amante ou um poeta, pois são eles que transcendem a sua própria natureza. A condição para o poeta dar nomes às coisas é ele submeter-se à aura divina que irradia através das forma, e acompanhá-la.” (pp. 278-279)

No universo de Emerson, o poeta é um amante capaz de “submeter-se” àquilo que irradia através das formas da natureza. Ele possui o que eu chamo de capacidade para a vulnerabilidade, que leva ao insight como uma forma elevada de ver chamada Imaginação. Desta forma o poeta se distingue do espião, e conseqüentemente a natureza permite que o poeta dê voz à sua natureza: dando nome às coisas.

Os insights contemplativos fazem parte da ciência na mesma medida que as artes. A repentina descoberta dos quatérnios (que estão um passo além dos números imaginários e complexos) pelo matemático irlandês William Rowan Hamilton, enquanto atravessava a Ponte Brougham em Dublin, foi fruto de uma longa e contemplativa incerteza (3). O insight atravessou-lhe como uma corrente elétrica, para usar a sua própria metáfora. Foi um momento eletrizante que fez com que ele se virasse rapidamente e gravasse as identidades matemáticas chaves na grade da ponte. O mesmo aconteceu com o jovem Werner Heisenberg em relação à descoberta da relação de incerteza quântica em 1927 enquanto estava doente na Dinamarca. Seu envolvimento apaixonado com o tema da complementaridade se intensificou enquanto visitava seu pai espiritual Niels Bohr, mas finalmente culminou quando Bohr estava de férias esquiando e Heisenberg estava só e febril. O “contexto da descoberta” é um contexto contemplativo cheio de paixão e incerteza sustentada. As condições necessárias para o insight intuitivo são bem diferentes da sua comprovação posterior que é imparcial e lógica. O “contexto da prova” realmente demanda uma avaliação cuidadosa dos insights contra os dados dos experimentos e a lógica da matemática. Mas os novos insights da ciência entram como fruto da gestação contemplativa e não da análise dedutiva. Como Emerson nos lembra (conforme citado em Obuchowski Jr., 1969), “Tudo se torna poesia quando olhamos de dentro... porque poesia é ciência, é o sopro do mesmo espírito pelo qual a natureza vive. E nunca nenhuma ciência se originou a não ser por uma percepção poética” (p. 47).

Eros e o Insight

Por duas vezes o historiador da arte Joel Upton e eu demos um curso na Amherst College que tenta explorar as relações entre amor, conhecimento e contemplação. O curso é secular com pouca referência às técnicas de meditação que são tiradas da tradição religiosa. A classe é composta de 30 estudantes do primeiro ano de origens raciais e econômicas surpreendentemente diversas(4). A experiência nos ensinou a começar o curso pelo pólo do conhecimento. As discussões sobre o amor requerem confiança e sofisticação e ambos levam tempo para se produzir em uma classe. Nós adotamos um ritmo lento e mais reflexivo para o curso. As leituras eram curtas e poderosas; nós pedíamos aos alunos que passassem um tempo com elas e apreciassem a sua força. Os trabalhos eram muito curtos (uma página, exceto pelo trabalho final que era mais longo) e solicitávamos aos alunos que entregassem três rascunhos. Direta e indiretamente, pedimos que eles vivenciassem todos os materiais da aula: as leituras, as palestras, nossas diversas

conversas, as meditações e as suas redações. Passo a passo, e um a um, pedimos que eles se tornassem cada vez mais vulneráveis ao conteúdo do curso e que participassem de forma integral. Paralelamente ao material do curso, também envolvemos os alunos em uma série de exercícios contemplativos. Gostaria de usar o restante do meu tempo com estes exercícios.

Devo dizer que os alunos compreenderam rapidamente que “Eros e o Insight” não era como qualquer outro curso em Amherst. Muitos deles nos contaram que haviam desistido da educação, tornando-se cínicos a respeito dela na escola secundária. Eles aprenderam a executar o que lhes fosse solicitado, mesmo que não fosse possível relacioná-lo à suas vidas, às suas questões mais profundas e aos seus desejos mais intensos. Empregos importantes com salários altos eram as recompensas materiais para um ótimo desempenho, e Amherst era somente um meio para alcançar esse fim. Colocada a barreira em qualquer lugar, eles a saltariam, não por um interesse sincero, mas porque eram espertos e bem treinados. Levou-se um tempo para convencê-los, para despertar novamente neles a aspiração básica que todos têm, que não é primordialmente a educação como um instrumento para aquisição de riqueza. Pelo contrário, é a transformação, o desenvolvimento, é tornar-se tudo o que eles podem ser. Em meus 25 anos de magistério, “Eros e o Insight” foi a experiência de ensino mais gratificante que já tive. Sinto-me especialmente agradecido aos alunos que confiaram em nós para guiá-los para um território novo e experiências novas.

A Primeira Aula

Dissemos aos alunos, “Este é o primeiro dia de uma nova vida. Vocês entraram na Amherst College; não estão mais em casa; o que vocês farão com esta vida preciosa que começa hoje?” A seguir, entregamos passagens de “Walden” (1966) de Henry David Thoreau e de “A Gravidade e a Graça” (1987) de Simone Weil.

“Eu fui à floresta porque queria viver deliberadamente, confrontar apenas os fatos essenciais da vida, e ver se eu poderia aprender o que ela tinha a ensinar, para não descobrir, no dia da minha morte, que eu não havia vivido” (Thoreau, 1966, p. 61). Aqui um tema inicial do curso é introduzido. O que significa ir para a floresta? Thoreau procurava um lugar afastado para viver atenta e deliberadamente. Nós faremos da mesma forma, separaremos alguns momentos para sermos atentos e agirmos deliberadamente, a fim de que possamos aprender também a discernir os fatos essenciais da vida. Na correria do dia-a-dia nós também muitas vezes os ignoramos. Como parte da aula, faremos uma pausa de vez em quando para ficar em silêncio, refletir, e desta forma paciente e tranqüila nós iremos aprender.

Na descrição que Thoreau (1966) faz da manhã encontramos um segundo tema essencial do curso: tornar-se desperto.

“Milhões estão suficientemente despertos para o trabalho físico; mas apenas um em um milhão está suficientemente desperto para o esforço intelectual efetivo e apenas um em uma centena de milhões para a vida poética ou divina. Estar desperto é estar vivo. Não encontrei ainda um homem que estivesse totalmente desperto. Como eu poderia tê-lo encarado?” (pp. 60-61)

Os estudantes foram aceitos em Amherst porque provaram que poderiam lidar com o esforço intelectual, e o que mais restou? Ao final da aula, muitos desejavam despertar para uma vida poética ou divina e assim sentirem-se verdadeiramente vivos.

Simone Weil (1987) escreve sobre o ubíquo poder da gravidade, que está em todo lugar e ordena todas as coisas – exceto a graça. A graça sozinha desafia o alcance da gravidade, mas requer condições especiais para aparecer. Weil diz, “A graça preenche espaços vazios, mas só pode entrar onde houver um vazio para recebê-la” (p. 55). Simone Weil evoca a importância poderosa do silêncio, do vácuo, da abertura, do Vazio. A meditação nos ajuda a entrar no espaço do silêncio e a estimular a abertura na qual a graça pode aparecer.

Muito naturalmente nossa conversa com os estudantes moveu-se para uma série final de slides que mostravam um jardim Zen e um lago com pequenas ondas: o haiku de Basho (1967) e o primeiro exercício de meditação dos alunos, de cinco minutos de silêncio, encerraram a aula.

Breaking the silence (Quebrando o silêncio)

Of an ancient pond (De uma antiga lagoa)

A frog jumped into the water — (Uma rã pulou na água)

A deep resonance. (Uma ressonância profunda)

Os alunos deveriam continuar sozinhos o exercício com o silêncio. Nós pedimos um trabalho de uma página de pura descrição sobre os estágios e a experiência do silêncio da meditação. Sem vôos de imaginação, sem nenhuma análise científica ou filosófica sofisticada – somente uma prosa simples, atenta, deliberada e descritiva.

Atenção Sustentada

O segundo exercício é sobre atenção sustentada e o cultivo da chamada “pós-imagem”. Qualquer objeto sensorial serve, mas vamos pegar o som de um sino. A meditação tem três fases que nós executamos e uma quarta que é a graça.

Soe o sino três vezes. Ouça com atenção a sua forma e o timbre.

Mesmo depois que o som do sino desaparece no silêncio externo, nós ficamos com a memória dele. Interiormente podemos fazer com que o sino soe novamente. Faça isto. Ouça a sua reverberação interna repetidamente.

A terceira fase é a do silêncio. Deixe que a memória do som do sino desapareça, liberando todo o som e abrindo amplamente a atenção. O estado de espírito apropriado para esta fase é caracterizado maravilhosamente em Tao Te Ching de Lao-tsu (1988): 

The Master doesn’t seek fulfillment. (A Mestra não procura realização)

Not seeking, not expecting (Não procura, não espera)

She is present, and can welcome (Ela está presente e pode all things. (p. 15) saudar todas as coisas.)

A quarta fase não é executada por nós, mas pode apresentar-se no espaço silencioso que foi assim preparado e sustentado. Na descrição de Buddhaghosa (1975) das chamadas dez kasinas ou objetos visuais (terra, água, ar, fogo, quatro cores...), ela é denominada de fase da “pós-imagem”. Durante esta fase o aspecto interior do som do sino, ou de outras experiências sensoriais utilizadas da mesma forma, surge no silêncio ou vazio. 

Mantendo a Abertura

A verdadeira atenção concentrada é, por definição, cega a tudo que está fora do campo imediato da atenção. A investigação contemplativa muda da atenção sustentada e focada para uma atenção aberta. Quando liberamos o som do sino, nós já estamos nos aproximando deste estágio de prática. Porém, ele pode se tornar a principal característica do exercício, utilizando-se o relacionamento como o foco de atenção. Qualquer comparação irá servir, mas uma que nós utilizamos é o mais simples exercício de escala de valores, comum ao treinamento artístico. Dando aos estudantes papel, pincel e tintas acrílicas preta e branca, pedimos a eles que façam uma seqüência graduada de quadrados cinzas que passam uniformemente de branco para preto.

Nós usamos este e outros exercícios de comparação para cultivar um senso de relação e o discernimento interior da diferença, que nós vemos como a primeira característica do conhecimento contemplativo. Move-se de simples estados de consciência para a percepção direta de diferenças e semelhanças. Este é um momento vital. Se pretendermos vincular a contemplação ao conhecimento, a veritas, então precisamos articular uma compreensão da prática contemplativa que passa dos benefícios psicológicos e salutares da meditação (que são grandes) para suas dimensões cognitivas.

Sustentando a Contradição

O quarto estágio da investigação contemplativa provou ser especialmente desafiador para os nossos brilhantes alunos de Amherst. Sempre que um problema lhes é apresentado, eles querem resolvê-lo. Se encontram uma contradição, eles a solucionam. Muitas vezes a realidade oferece resistência a esta abordagem, e por bons motivos. Eu dei uma aula sobre a dualidade onda-partícula em Física e Joel falou sobre a tensão artística produzida por elementos antagônicos nas grandes obras de arte. Nós os mandamos para o museu de arte em pares para olhar determinados retratos que tinham o estranho hábito de olhar para trás. Colocamos um estudante em um lado da galeria e outro no lado oposto. A pintura olhava para cada um; olhava simultaneamente em duas direções. Impossível. O cardeal do século XV Nicolau de Cusa (1960), que recomendava este exercício aos seus monges, chamava este e outros fenômenos semelhantes de coincidência de opostos. Pense nisto, mantenha a contradição e, ao invés de resolvê-la, sustente-a, pratique a sustentação da contradição!

Mas o significado profundo de cultivar uma consciência que possa sustentar a contradição só foi avaliado quando se tornou claro para nossos alunos durante uma de nossas conversas informais à noite. Vários deles, de raças e etnias diferentes, começaram a falar sobre a complexidade irreconciliável de suas próprias vidas que tinha lhes trazido grande incerteza e sofrimento pessoal durante anos. Fossem eles chineses ou americanos, como o lar haitiano que tinham acabado de deixar (tão cheio de vida, com o idioma crioulo e uma profunda religiosidade) relacionava-se com a vida da mente primitiva e com a turbulenta vida universitária que eles estavam levando aqui em Amherst? Eles estavam traindo a própria linhagem? Eles precisavam escolher entre suas identidades contraditórias? Como poderiam? A própria vida exigia que eles sustentassem uma grande contradição. Como o escritor franco-libanês Amin Maalouf (2003) colocou, é exatamente através das complexidades irreconciliáveis de nossas vidas que surge a nossa identidade. Quando negamos essa complexidade, nós, como sociedade, rapidamente nos decompomos em facções étnicas e religiosas competindo pelo domínio.

Desenvolvendo a auto-estima

Somente quando atingimos este momento decisivo, estávamos prontos, nós e os alunos, para falar de amor explicitamente, porque a arquitetura e a vida do amor são animadas por contradições impossíveis. Desejamos ser um só com a pessoa amada sem prejudicá-la ou alterá-la de maneira alguma. Nós estudamos os trovadores e suas canções que falam repetidamente da natureza contraditória do amor como mostram estas linhas de Arnaut Daniel (s.d.) do século treze:

I never held but it holds me (Eu nunca a tive mas ela me tem)

all the time in its bail Love (todo o tempo sob sua fiança, Amor)

and makes me glad in anger, (e me faz alegre na ira, tolo na fool in wisdom sabedoria)

as one that never can (como alguém que nunca pode fight back, revidar)

because a man that loves (porque um homem que amawell, cannot defend himself. profundamente, não pode se defender.)

O amor é, ao mesmo tempo, alegria e dor, uma “doce tristeza”. O amor pode começar por nós quando aceitamos e até mesmo nos encantamos com os elementos contraditórios de que somos compostos. Sou um cientista, um poeta ou um filósofo? A resposta é sim para tudo. As estruturas de nossas instituições de educação superior escondem essa complexidade. Na melhor das hipóteses elas lutam para apreendê-la através de conversas interdisciplinares entre representantes de diferentes disciplinas. Freqüentemente essas conversas terminam como negociações entre nações ou grupos étnicos nas Nações Unidas. É necessário mais, muito mais, se quisermos integrar estes elementos diversos sem dissolvê-los, e começa com a potencialização das contradições em nós mesmos. Isto só pode acontecer se amarmos as contradições e assim amar a nós mesmos.

Desenvolvendo o Amor de Outros

A meditação budista do amor-bondade, muito conhecida, permite à pessoa ampliar gradualmente o seu círculo de atenção baseada na compaixão e no afeto. Começando por nós mesmos, continuamos então com alguém próximo (um amigo, um parente, o cônjuge). Desejamos-lhes paz, alegria, bem-estar. Continuamos a ampliar o círculo de nossa atenção afetuosa mais anda incluindo aqueles que não conhecemos bem, desejando-lhes também paz, alegria e bem-estar. E, finalmente, escolhemos alguém que seja preocupante e difícil em nossa vida. Até para ele, desejamos paz, alegria e bem-estar.

Agora estamos lendo “O Simpósio” de Platão, um grande diálogo sobre o amor. O amor, conforme Diotima ensinou a Sócrates, não é apenas praticado em relação a outras pessoas, mas também em relação à beleza na natureza e em relação às grandes instituições que incorporam nossos ideais mais elevados. Em última análise, nós amamos as formas ideais que estão refletidas em todos os lugares através do belo nas criações da natureza e do ser humano. A “escada do amor”, contudo, nos leva não somente para cima, para o mundo das formas puras, mas também desce para o mundano. As páginas finais do diálogo em que o bêbado Alcebíades descreve seu amor por Sócrates, e ousa falar sobre a vida nobre de Sócrates, são testemunhos de uma vida vivida com amor pelos alunos e pelos conterrâneos atenienses, e também pelos ideais eternos de verdade, beleza e bondade, um amor que foi recompensado com um copo de cicuta.

O Amor da Ação

Neste ponto, uma figura importante em nosso curso é a beguina Marguerite Porete que viveu e morreu por volta de 1310. Em seu livro “Espelho das Almas Simples”, Porete (1993) utilizou a nova linguagem do “fin amor” (amor cortês), conforme cantada pelos trovadores na Antiga Provença, para descrever seu “amor de loing”, seu “amor de longe”. No caso dela, o amor distante não era por uma companhia terrena, mas por Deus. Através da intensidade de seu amor pelo amado, ela compreendeu que a verdadeira ação moral não era guiada pelas regras do que ela chamava de “igreja dos pequenos”, mas pela grande igreja do amor. No lugar das Virtudes teológicas, das quais se declarava livre, ela defendia a ação guiada somente pelo amor, citando Santo Agostinho (2004): “Ame, ame e faça o que quiser”. O amor tornou-se para ela uma força que lhe outorgava conhecimento moral ou insight. A sua defesa do amor como o verdadeiro guia da ação fez com que ela entrasse em conflito com certos bispos da Igreja Católica da França. Como resultado, ela foi detida, aprisionada e julgada diante da Inquisição em Paris. Ela recusou-se a renunciar ao seu amor e às suas opiniões, e foi então condenada a morrer na fogueira pela “Heresia do Espírito Livre”. Todos choraram durante a execução ao verem com que nobreza tranqüila ela foi ao encontro da morte.

Os estudantes ficam profundamente emocionados com a vida corajosa, embora trágica, de Porete. Pedimos a eles que meditem sobre as palavras de Agostinho, “Ame, ame e faça o que quiser” que se encontram no coração da vida de Porete, e que escrevam sobre como Eros e o insight são aqui elevados a uma forma de conhecimento contemplativo no mundo da ética. Afinal de contas, Marguerite Porete conhecia algo com tanta certeza que pôde enfrentar, silenciosa e confiantemente, os maiores eruditos da Inquisição de Paris sem vacilar. O amor afetuoso havia lhe concedido um insight ou “aperçu” pelo qual ela estava disposta a morrer. Agir de outra maneira seria trair não apenas o que ela conhecia, mas também o seu amado.

Reimagine sua Educação

A tarefa final para nossos alunos foi a de reimaginar a educação que eles recebem na Amherst College considerando Eros e o insight. Eles haviam estudado Kepler e Rembrandt; tinham lido Oliver Sacks, Niels Bohr, Bárbara McClintock, Albert Einstein e Werner Heisenberg. Tinham lido os trovadores, Merton, Rilke, T.S. Eliot e Platão sobre o amor. Além disso, tinham meditado sobre o silêncio, a atenção, a abertura, a contradição, a auto-estima, o amor de outros e o amor da ação. Perguntamos, “como deve ser a educação – a sua educação – levando em consideração tudo isto?” Este era o trabalho final deles: redefina a educação que você tem na Amherst considerando Eros e o insight, considerando a relação entre amor e conhecimento.

Upton e eu terminamos “Eros e o Insight” com uma imagem que nos foi sugerida por dois estudantes em nossa fala inicial do curso. Na sua forma mais simples, a metáfora visual é um portal ou entrada composta de duas colunas com um lintel que se estende no espaço entre elas. As duas colunas são uma metáfora visual para as duas partes do curso: Eros e o insight. Como nossos alunos reconheceram incisivamente, Eros pode ser rapidamente rebaixado para luxúria, mas o insight também pode ser reduzido para apenas um raciocínio instrumental. Mas Eros também pode ser valorizado para se tornar o lintel do amor, o que parece implicar que a valorização do insight também se torna amor, um conhecer que também é amar, uma epistemologia do amor.

Desta forma, como se confirma, a tarefa que Rilke nos colocou primeiro, aprender a amar, é também a tarefa de conhecer no seu sentido mais amplo. Karl Jaspers (1974) cita Nicolau de Cusa com relação à forma mais elevada do conhecimento humano, dizendo: “o conhecimento aqui é idêntico ao amor e o amor idêntico ao conhecimento” (p. 51). Uma epistemologia do amor não é um vôo da razão para o sentimento. A academia não tem nada a temer da investigação contemplativa; na verdade, essa investigação já é, de certa forma, parte de um currículo oculto que educa para a descoberta, a criatividade e a consciência social.

Como verdadeiros educadores, acredito que estamos todos envolvidos em um importante projeto, um projeto com uma longa tradição. O projeto da filosofia antiga era viver uma vida correta, personificar a virtude e não apenas legislá-la, gerar a criatividade e as habilidades para o insight, não apenas memorizar fórmulas e obras de arte. Como coloca Hadot (2002), a educação dos antigos era “um curso de treinamento que os tornaria ao mesmo tempo contemplativos e homens de ação uma vez que conhecimento e virtude implicam um ao outro” (p.90).

No trabalho final para “Eros e o Insight”, Ryan (não é seu nome verdadeiro) confessou que agora estava inseguro em relação ao que dizer a seus pais sobre planos de carreira. A mãe era formada em física nuclear e o pai era um neurocirurgião. Eles esperavam que o filho ganhasse um salário de seis dígitos imediatamente após a formatura e, antes do curso, Ryan tinha a mesma opinião. No trabalho final, ele escreveu, “Como vou contar a eles que agora a única coisa que eu quero ser na vida é uma pessoa que ama?” Devido aos talentos formidáveis que tem, estou confiante de que Ryan terá sucesso externamente, mas espero que ele se lembre de viver deliberadamente, de cultivar o silêncio, a atenção e a consciência relacional, e até de sustentar as contradições. Desta forma, ele ficará vulnerável e participará dos mistérios que estão em todos os lugares à sua volta. De espião ele passará a ser uma pessoa que ama, uma pessoa que a natureza aceitará. No processo, ele irá se reformar, modelando os órgãos para o conhecimento, para uma elevada forma de ver que pode se constituir na verdadeira teoria. Ele poderá viver de acordo com a ética associada a esta epistemologia. Contudo, uma vez que neste nível mais elevado, que é o nível da profunda

contemplação, conhecer e amar são um só (unidos?), suas ações serão virtuosas e suas palavras, verdadeiras. De certa forma, ele terá realizado a maior e mais difícil tarefa de todas, aquela para a qual tudo o mais é apenas uma preparação; ele terá aprendido a amar...

Arthur Zajonc é professor de Física na Amherst College onde vem lecionando desde 1978. Ele recebeu seus títulos de B.S. e Ph.D. em Física pela Universidade de Michigan e tem atuado como professor convidado e cientista pesquisador na Ecole Normale Superieure em Paris, no Instituto Max Planck para Óptica Quântica e nas universidades de Rochester e Hannover. Tem atuado também como professor Fulbright na Universidade de Innsbruck na Áustria. Em 1997 trabalhou como coordenador científico para o diálogo “Mente e Vida” com o Dalai Lama, publicado como “The New Physics and Cosmology: Dialogues with the Dalai Lama” (Oxford 2004). Ele organizou novamente o diálogo de 2002 com o Dalai Lama, “A Natureza da Matéria, a Natureza da Vida”, e atuou como moderador no MIT para o diálogo “Investigando a Mente” em 2003 (www.mindandlife.org). Ele dirige o Programa Acadêmico do Centro para a Mente Contemplativa na Sociedade.

NOTAS:

(1) O Dr. Zajonc apresentou este trabalho como a palestra de abertura da conferência “Scholarship of Teaching and Learning: The Cognitive-Affective Connection” (A Sabedoria do Ensino e da Aprendizagem: o Vínculo Cognitivo-Afetivo) realizada em 24 de março de 2006 na Oxford College of Emory University. Este trabalho apareceu, com algumas revisões, na edição de Setembro de 2006 do Teachers College Record como:

  Zajonc, A. (2006). Love and knowledge: Recovering the heart of learning through contemplation (Amor e conhecimento: Recuperando o coração da aprendizagem através da contemplação). Teachers College Record, 108(9), 1742-1759. Retirado em 28 de setembro de 2006 de http://www.tcrecord.org. Número de identificação: 12678.

A permissão para a reimpressão deste documento foi concedia pelo autor e pelos editores do Teachers College Record.

(2) Goethe em uma carta para Soret de 30 de dezembro de 1823, citado por Rike Wankmüller, Goethes Schriften, Hamburger Ausgabe, Munich: Verlag C.H. Beck. vol. 13, p. 616. “Na ciência, contudo, o tratamento é nulo, e toda eficácia está no aperçu”.

(3) “Toda manhã no começo do mês acima citado [outubro], quando eu descia para o café, seu (então) irmãozinho William Edwin, e você mesmo, costumavam me perguntar, “E então, papai, você consegue multiplicar ternas?” A isso eu sempre me via obrigado a responder, com um triste balanço de cabeça, “Não, eu apenas posso somá-las e subtraí-las”. Mas no dia 16 do mesmo mês – que calhou de ser uma segunda-feira e dia de reunião do Conselho da Real Academia Irlandesa – eu ia andando para participar e presidir, e sua mãe andava comigo ao longo do Royal Canal, para onde ela talvez tivesse nos levado; e embora ela falasse comigo ocasionalmente, uma corrente subjacente de pensamento passava pela minha mente, que finalmente teve um resultado cuja importância senti imediatamente se não for demais dizer. Parecia que um circuito elétrico se fechava; e uma centelha se lançou, mensageira (como previ imediatamente) de muitos anos vindouros de pensamento e trabalho definitivamente direcionados – por minha conta se poupado, e em todo caso por parte de outros, se me permitissem ainda viver o suficiente para comunicar a descoberta claramente. Nem pude resistir ao impulso – não filosófico como pôde ter sido – de gravar com um canivete numa pedra da ponte de Brougham, quando a cruzamos, a fórmula fundamental com os símbolos i, j, k; a saber, i2 = j2 = k2 = ijk = -1 que contém a Solução do Problema.”Carta de Hamilton: http://www.maths.tcd.ie/pub/HistMath/People/Hamilton/Letters/BroomeBridge.html

(4) Para maiores detalhes sobre o curso, veja o artigo “Eros and Insight” na Amherst Magazine e nos links de rede associados, www.amherst.edu/magazine/issues/04spring/. Vide também meu artigo na Liberal Education, “Spirituality in Higher Education: Overcoming the Divide” (Espiritualidade no Ensino Superior: Superando a Barreira) (Inverno, 2003), pp. 50-58.

 

REFERÊNCIAS

Agostinho de Hipo (2004). Santo Agostinho nas homilias sobre o evangelho de João, homilias sobre a primeira epístola de João e solilóquios. Whitefish, MT: Kessinger Publishing. (Trabalho original escrito em 416 A.D.)

Basho, M. (1967). The narrow road to the deep north and other travel sketches (A estreita estrada para o longínquo norte e outros esboços de viagem). (N. Yuasa, Trans.). Londres: Penguin. (Trabalho original publicado em 1686).

Buddhaghosa. (1975). Path of purity (O caminho da pureza). Sendo uma tradução de Visuddhimagga de Buddhaghosa (P.M. Tin, Trans.). Londres: Pali Text Society. (Trabalho original escrito em 350 A.D.)

Daniel, a. (s.d.). I never held but it holds me (Eu nunca a tive, mas ela me tem). Em “Obras Completas”. Retirado em 28 de setembro de 2006 de http://www.cam.org/~malcova/troubadours/arnaut_daniel/arnaut_daniel_02.php

Emerson, R. W. (1926). Emerson’s essays (Ensaios de Emerson). NY: Thomas Y. Crowell. (Trabalho original publicado em 1844)

Goethe, J. W. (1988a). Scientific studies (Estudos científicos) (Douglas Miller, Ed. and Trans.). New York: Suhrkamp. (Trabalho original publicado em 1810)

Goethe, J. W. (1988b). Scientific studies (Estudos científicos) (D. Miller, Ed. and Trans.). New York: Suhrkamp. (Trabalho original publicado em 1823)

Hadot, P. (2002). What is ancient philosophy? (O que é a filosofia antiga?) (M. Chase, Trans.). Cambridge, Mass.: Harvard University Press. (Trabalho original publicado em 1995)

Jaspers, K. (1974). Anselm and Nicholas of Cusa (Anselmo e Nicolau de Cusa) (H. Arendt, Ed. and R. Manheim, Trans.). New York: Harcourt Brace Jovanivich. (Trabalho original publicado em 1957) 

Kegan, R. (1982). The evolving self (A evolução do eu). Cambridge, Mass: Harvard University Press.

Kegan, R. (1994). In over our heads (Demais para a cabeça). Cambridge, Mass: Harvard University Press.

 Lao-tsu, (1988). Tao te ching (S. Mitchell, Trans.). New York: Harper Collins. (Trabalho original escrito por volta de 500 A.C.)

Maalouf, A. (2003). In the name of identity: Violence and the need to belong (Em nome da identidade: Violência e a necessidade de fazer parte). Londres: Penguin.

Merleau-Ponty, M. (1962). Phenomenology of perception (Fenomenologia da percepção) (C. Smith, Trans.). London: Routledge. Preface. (Trabalho original publicado em 1945)

Mezirow, J. (2000). Learning as transformation (Aprendizagem como transformação). San Francisco: Jossey-Bass.

Montessori, M. (1972). Education and peace (Educação e Paz) (H. R. Lane, Trans.). Chicago: Regnery.

Nicolau de Cusa. (1960). The vision of God (A visão de Deus) (E. G. Salter, Trans.). New York: Frederick Ungar. (Trabalho original publicado em 1453)

Obuchowski, P. A., Jr., (1969). The relationship of Emerson’s interest in science to his thought (A relação entre o interesse de Emerson em ciência e o seu pensamento) (Dissertação de doutorado, Universidade de Michigan, 1969). Dissertation Abstracts International, 30 (09), 3915.

Palmer, P. (1993) The Violence of our knowledge: Toward a spirituality of higher education (A violência de nosso conhecimento: rumo a uma espiritualidade do ensino superior). Retirado em 29 de setembro de 2006 de http://www.21learn.org/arch/articles/palmer_spirituality.html

(Vide também P. Palmer (1983), To know as we are known. (Conhecer como somos conhecidos). Capítulos 1 e 2. San Francisco: Harper.)

Porete, M. (1993). The mirror of simple souls (O Espelho das Almas Simples) (E. L. Babinsky, Trans.). New York: Paulist Press. (Trabalho original escrito em 1290)

Rilke, R. M. (1954). Letters to a young poet (Cartas a um jovem poeta) (M. D. Herder Norton, Trans.). (Edição revisada.). New York: W. W. Norton. (Trabalho original escrito em 1904)

Rilke, R. M. (1975). Rilke on love and other difficulties (Rilke sobre amor e outras dificuldades) (J. J. L. Mood, Trans.). New York: W. W. Norton. (Trabalho original publicado em 1904-1925)

Schrödinger, E. (1967). Mind and matter (Mente e material). Cambridge: Cambridge University Press. (Trabalho original publicado em 1956)

Sloan, D. (1993). Insight-imagination (Insight-imaginação). Westport, CT: Greenwood Press.

Steiner, R. (1995). Die verbindung zwischen lebenden und toten. ( A relação entre os vivos e os mortos)(A. Zajonc, Trans.). GA 168. Dornach, Switz: Rudolf-Steiner-Verlag. (Originalmente uma palestra de 1916)  

Sternberg, R. J., & Davidson, J. E. (1995). The nature of insight (A natureza do insight). Cambridge, MA: MIT Press.

Thoreau, H. D. (1966). Walden and civil disobedience (Walden e a desobediência civil). New York: W. W. Norton. (Trabalho original publicado em 1854)

Weil, S. (1987). Gravity and grace (A gravidade e a graça) (A. Wills, Trans.). New York: Ark. (Trabalho original publicado em 1947)

O OLHAR À ALTURA DOS OLHOS

Novas Formas de Ensino nos Primeiros Anos Escolares

Thomas Jachmann

Ao passar por um supermercado, sem intenção de comprar algo e observando-se a si próprio atenciosamente, como você se sente atraído ou incomodado, como você se sente induzido à compra e cede a velhos hábitos de compra, então você será o seu próprio observador anímico ao fazer a sua compra.

Eu mesmo fiz um passeio de observação própria, observando os meus sentimentos e impulsos de vontade. Inicialmente fiquei assustado. Quão indefeso e aberto eu me encontrava nesses âmbitos normalmente tão costumeiros, de repente eu estava exposto, pois todo o direcionamento de metas estava excluído e por esta razão, assim por dizer, eu me encontrava numa situação de receptividade livre em minha volta. Inicialmente fiquei estonteado, em seguida comecei lentamente a me aproximar com os meus sentimentos das impressões. Nesse passeio, inicialmente, pude perceber conscientemente pelo que normalmente passamos dormindo e sonhando ao fazer compras, pelo fato de estarmos tão preocupados com as mesmas.

Com os nossos sentimentos e impulsos volitivos não apenas tateamos e passamos por este ato de consumo, esses sentimentos e impulsos de ação inconsciente nos dão constantemente informações sobre a situação em questão. Quando na fila do caixa sinto a necessidade de abertura e movimento, então isso me dá informação sobre a situação do caixa e quando a impressão da música de fundo me deixa zonzo, isso também é uma manifestação de algo.

Eu posso aprender a observar meus sentimentos e minhas manifestações da vontade, como experiência, posso fazer exercícios na natureza ou em um cantinho silencioso e constantemente me perguntar: Como, através disso, manifesta-se o meu em torno? Como me fala o mundo através dos meus sentimentos e do estímulo da minha vontade? Dessa forma os meus sentimentos, com o tempo, tornam-se um órgão de tato, que me transmite informações. E desenvolvo um conhecimento a partir do sentir, como o chama Georg Kühlewind.

Ao mesmo tempo eu também aprendo, quando sem pretender algo determinado entrego-me a uma situação, a paulatinamente transformar a minha vontade.

Vocês conhecem esse processo da transformação da própria vontade, por exemplo, ao exercitar o dedilhar no piano. Inicialmente ainda colocam conscientemente cada dedo na tecla e o exercício acontece somente com grande esforço de vontade. Vem, porém, o momento quando os dedos começam a correr sozinhos, vocês esquecem os seus movimentos de dedos e ouvem a música. Então vocês farão a observação surpreendente de que a música dirige os seus dedos, e não são vocês que por meio do movimento de seus dedos realizam a música.

Sua vontade se transformou: a vontade intencional - “mas eu quero tocar corretamente e é assim” - transformou-se numa vontade receptora, uma vontade que esqueceu a si própria e as suas intenções. Vocês agora se entregam à música e perderam a consciência dos movimentos dos dedos. Mesmo assim estão presentes com forte intenção da vontade. Anteriormente vocês haviam cunhado fortemente a sua vontade com a sua representação. Agora vocês estão com a sua consciência na música. Os seus dedos, sem perceber, começam a se orientar, sem perceber, pelo ritmo e pela melodia da música, isto é, vocês ainda tocam a partir do impulso da vontade. Mas agora a vontade não permite mais tanto ser dirigida pela representação - “assim e assim eu quero movimentar os meus dedos”, porém, como por si só segue a intenção da música.

O caminho interior para uma compreensão séria, intuitiva do aluno tem como premissa a transformação do sentimento e da vontade. Agora apontarei, a partir de alguns exemplos, a movimentação interior da alma que transforma um sentir emocional em um sentir reconhecedor e uma vontade emocional em uma vontade receptiva. Sentir reconhecedor e vontade receptiva passam a constituir as bases para a compreensão intuitiva.

Novas formas de ensino

Agora gostaria de lhes apresentar o meu caminho de como, bem concretamente, dirijo o meu olhar para a criança e a partir da sua compreensão intuitiva inicial obtive os meus métodos de ensino e pontos de vista.

Quando nós quisermos nos dirigir ao aluno à altura dos olhos, isto é, como parceiros sob total aceitação de sua pessoa, então não o fazemos apenas com atenção consciente, porém, permitimos que ele atue sobre nós, abrindo-nos em sentimentos e alma. Nós o encontramos sem julgamento, nós tentamos não modificar a impressão que ele nos traz, com julgamentos a respeito dele. Tentamos deixar o seu ser atuar sobre nós em sentimento, alcançar uma impressão sensível dele. Podemos perscrutar essa impressão sensível, em horas mais tranqüilas, e fazê-la aclarar-se para nós. Continuamos a trabalhar em retrair as nossas intenções volitivas, a ponto de estarmos prontos a nos envolvermos na vontade dele e com um “tatear cordial” perceber as intenções volitivas “desconhecidas”.

Na minha última classe eu tinha em média 40 a 42 alunos. No primeiro e segundo ano, a partir do antigo hábito ainda começava a manhã escolar diária com a exortação à toda a classe de levantar-se, em seguida falávamos em conjunto o poema da manhã e depois o canto em conjunto, movimentação, recitar e tocar flauta, essa parte da aula era encerrada com os versos de boletins.

Comparando com uma classe de tamanho semelhante, vinte anos antes, fiz a penosa experiência de que as coisas não mais eram possíveis assim como eu ainda vivenciara com alegria na classe anterior a parte rítmica. Quase um terço das crianças não gostava mais de cantar, não mais queria falar poemas, não encontrava alegria nas brincadeiras de movimento e, para essas crianças ficar em pé de manhã para falar o poema da manhã era um empreendimento indesejável. Fiz as minhas observações e comecei, portanto, passo a passo a mudar meus pensamentos. Depois do primeiro susto e início de uma indignação a respeito do comportamento das crianças surgiu uma crescente compaixão.

Por exemplo, comecei a ter compaixão de um menino que talvez quisesse participar, mas era demasiadamente atrapalhado para poder ficar em pé em silêncio. Um outro passava cada manhã um grande estresse com outras crianças no ônibus e continuava mal humorado e chateado. Ainda outras estavam tão cansadas e com tanto sono que ainda não se encontravam na situação de participar da aula. Muitas crianças haviam acabado de brigar e não lhes era possível estar de prontidão para cantar ou recitar. Rapidamente se evidenciou para mim: que no início da aula, por motivos diversos, as crianças ainda estavam longe da disposição anímica e abertura, que, por sua vez, são necessárias para, de alguma forma, tornar-se ativo artisticamente. A representação mantida por longo tempo: que começando a manhã com exercícios artísticos, movimentos e o poema da manhã, eu harmonizo a alma e abro a sua disposição anímica para o resto da aula, demonstrou-se como uma ilusão. Eu realmente pude fazer a leitura nestes alunos que eles, apesar de estarem na classe, ainda não estavam dispostos interiormente para conversar, falar poemas, fazer música ou cantar.

Portanto comecei a remodelar o início da aula, parte por parte. Em sua forma final, depois de alguns anos, numa classe de 16 alunos do primeiro e segundo ano, por hora, apresenta o seguinte aspecto: um grupo de alunos encontra-se comigo às sete da manhã, portanto antes das aulas, no estábulo cuidando das vacas e tirando o seu leite. Por volta das 8 horas encontrava-me com as outras crianças no prédio da escola e então todos os alunos tinham tempo até as 9h15, sob responsabilidade individual, de executar diferentes atividades. Esse tempo eles próprios estruturavam, eles podiam aceitar as diferentes ofertas dos dois professores, efetuar atividades próprias ou de dispender o tempo com brincadeiras com os colegas. Nós professores ajudávamos, aconselhávamos ou simplesmente observávamos gentilmente. Geralmente apenas observávamos gentilmente. Eles estavam ocupados e satisfeitos.

Nós dois professores com obrigações e incumbências iguais denominamos por esta razão este tempo de “fase de aquecimento social”. Somente depois desse importante tempo conjunto de introdução é que a maioria dos alunos interiormente estava pronta e aberta para os jogos de movimento e as atividades artísticas em conjunto que se seguiam. De fato podia-se perceber o momento, durante a “fase de aquecimento social”, a partir do qual o grupo havia-se encontrado, acalmado e estava aberto, portanto, disposto para a atividade artística que se seguia.

Aqueles alunos, eram apenas dois ou três, que ainda apresentavam dificuldades de se dedicar a certas partes da aula que se seguia, podiam por determinação própria se abstrair dos acontecimentos em aula e depois de algum tempo por impulso próprio participar novamente. Realmente nenhum aluno se ausentava por um tempo mais longo, porém, todos voltavam sozinhos para a aula depois de algum tempo.

Mas também o decurso das aulas da manhã em geral havia mudado muito. Não havia aulas de matéria, apenas tempo de trabalho onde eram oferecidas atividades alternadamente em épocas mais prolongadas, atividades práticas, escrever e calcular, música e movimento. Através disso, com o tempo surgiram novas experiências e novos conhecimentos:

1. Tendo eu confiança na participação voluntária do aluno, oferecendo-lhe o ensino e convidando-o a para aula, jamais obrigando, então não surge a vontade de cabular aula: crianças querem aprender, não querem ser excluídas do grupo do ensino em conjunto. Deixando as portas abertas no mais verdadeiro sentido, assim que os alunos espontaneamente possam entrar e sair, possam participar e permanecer fora, então os alunos vêm por si próprios e, se algum não vier, é porque tem um motivo relevante.

2. Também alunos do primeiro e do segundo ano querem, incondicionalmente poder participar da estruturação e da determinação da escolha das atividades e da maneira de sua execução. Quanto mais eu permito a participação deles, tanto maior energia de trabalho e interesse de trabalho serão disponibilizados.

Esses dois reconhecimentos constituíram a base para a nossa “oferta de ensino” na escrita e na aritmética. Por oferta nesse sentido compreende-se que nós temos oferecido o ensino, temos convidado para a aula e ninguém foi obrigado ou castigado quando ele não participou. Durante todo o ensino estavam sempre disponíveis na sala de aula outras possibilidades de ativação. Também em outras salas encontravam-se, conforme combinado, outras atividades disponíveis.

Nas aulas de escrita, ao lado do curso básico para a introdução na escrita, como tínhamos alunos do primeiro, segundo e alguns do terceiro ano, havia a possibilidade, também, para os primeiranistas, depois de terem participado durante algum tempo do curso introdutório, de participar de três diferentes ofertas de atividades de escrita. Era possível também trazer alguns textos para cópias.

Tomando um exemplo realmente elucidativo quero mostrar que experiências interessantes nós pudemos fazer. Um aluno do primeiro ano muito rapidamente aprendeu as letras maiúsculas. Na segunda época de escrita ele, já no primeiro dia, experimentou fazer as letras maiúsculas e minúsculas. Depois desse primeiro dia ele não participou mais diretamente da época da escrita de cinco semanas. Ele se ativava no canto dos brinquedos e, aparentemente, não se interessava mais pela atividade da escrita. Muitas semanas depois, na próxima época de escrita ele, no entanto, escrevia sem erros desde o início, participando atentamente do grupo de maiúsculo e minúsculo como se sempre já escrevesse assim.

Nisso eu aprendi que, deixando o caminho livre para os processos da aprendizagem da escrita e não os prensando na “bata espanhola”, eles seguem por trilhas inimagináveis, mesmo em momentos que aparentemente nada aprendem.

A aprendizagem social - profilaxia para “mobbing”

Um caso de mobbing especialmente difícil, que se manteve durante anos, de uma aluna na minha classe que agora tem 14 anos me mostrou claramente quão importante é criar espaços livres, já a partir do primeiro dia de aula, que possibilitem a aprendizagem social desde o início. Na minha última classe eu recebi uma menina no primeiro ano que muito rapidamente ameaçava cair numa situação semelhante àquela em que se encontra a aluna atualmente de 14 anos. As duas alunas não podem suportar bem, por exemplo, a proximidade e a condensação que surgem forçosamente numa comunidade maior. A aluna do primeiro ano, porém aprendeu, combinando comigo, por conta própria, já nas primeiras semanas do primeiro ano escolar, a deixar a classe por curto tempo, sempre quando a proximidade dos outros alunos se tornava demais para ela ou por outros motivos, que ela necessitasse de uma “pausa para respirar”. Nessas pausas ela normalmente sentava fora, no pátio, sobre uma grande pedra que era visível por mim através da janela da classe. Mesmo na sala de aula havia um cantinho para ela no qual ela podia se retirar. Dessa forma ela pôde paulatinamente demolir a sua postura tímida-agressiva em relação aos colegas e, no decorrer de dois anos, encontrou seu caminho na comunidade da classe. Numa tal posição de exceção esconde-se, porém, constantemente o perigo de se tornar o “bode expiatório” do grupo da classe e com isso tornar-se vítima de mobbing. Ao lado de criar esses espaços livres sociais foram necessárias conversas intensas com os pais dessa minha classe do primeiro ano, nas quais foi necessário, constantemente, tentar tornar claro que nós adultos com o nosso comportamento social precisamos ser modelos para as crianças. Para que a aprendizagem social possa acontecer de forma eficaz toda a comunidade escolar precisa transformar-se num campo social caloroso, como o exige conseqüentemente o psicólogo infantil Henning Köhler.(1)

Eu assumi a minha atual classe do 8./9. ano em maio deste ano. Um pequeno grupo destes aproximadamente 20 alunos constitui há três anos uma comunidade de classe. Os demais alunos vieram de outras escolas nos últimos anos. Uma verdadeira comunidade de classe ainda não pôde acontecer até eu assumir essa classe. A aluna de 14 anos agora nos últimos dois anos, tornou-se, nos olhos dos alunos o absoluto, “bode expiatório” e o “malhadeiro” da classe. Nas primeiras semanas, em que eu me encontrava na escola, não passava um dia em que não a encontrasse chorando 2 a 3 vezes por dia em algum canto, em que ela se retraía depois de uma discussão. A situação há tempo já havia se tornado insuportável para a menina. Na sua escola anterior ela já havia se encontrado numa situação semelhante e agora o mesmo destino a alcançou de novo. Durante as aulas, totalmente rejeitada pelos outros, sentava bem sozinha na última fileira de bancos.

Quando nós nos sentamos pela primeira vez em círculo e a aula foi ministrada em círculo, isto se tornou para a classe numa vivência social marcante. Pela primeira vez, desde início do seu período escolar puderam olhar-se nos olhos durante a aula. Muitos ficaram amedrontados devido à proximidade, e a menina, vamos chamá-la de Mônica, nos primeiros dias não foi capaz de suportar essa proximidade. Depois de muitas semanas para se acostumar, esse círculo paulatinamente tornou-se a base para uma conversa em conjunto (colóquio). A aula em forma de conversa podia ser realizada. No círculo eu sempre tive que sentar perto de Mônica, e protegê-la de ataques. Em seu outro lado os alunos deixavam um grande vão.

Depois de algumas semanas de aula eu passei a dar aos alunos três quartos de hora à sua livre disposição como fase de aquecimento na sala de aula, onde eu havia colocado sofás e tapetes para ser aconchegante. Ao lado do círculo

de cadeiras havia agora, na sala de aula muito espaçosa, um canto para todos os alunos se sentarem. Outros cantos para grupos menores estavam igualmente à disposição. Havia livros e jogos de todos os tipos.

Nesse tempo livre, inicialmente, os alunos começaram a organizar-se assim como eu havia vivenciado nos 1os e 2os anos da turma anterior. Constituíam-se grupos maiores e menores que se entretinham com algum jogo. Os arranca-rabos geralmente tão almejados acabaram totalmente e surgiu um clima harmonioso de ocupação geral. Mônica depois de algumas semanas foi recebida num grupo de quatro meninas e perdeu grande parte de sua agressividade frente à classe, que surgira do medo. Eu coloquei mais duas aulas de jogos a disposição da classe. Duas aulas de exercício tiveram que ser sacrificadas. Durante todo esse tempo eu era partícipe, orientando participando da conversa.

Como próximo passo organizamos uma turnê de bicicleta em volta do lago de Constança e uma vivência de acampamento de 4 dias na natureza livre. Nós construímos as nossas próprias barracas, cozinhávamos em conjunto sobre o fogo, tínhamos vivências em conjunto, fazíamos jogos em conjunto e também tínhamos muito tempo para a formação de comunidade social. Um celeiro próximo, que estava inteiramente à nossa disposição, tornou-se o lugar para organizar os jogos. Mais três outros acampamentos estão previstos para este ano. Segue ainda uma turnê de três semanas de velejar no Mar Mediterrâneo, uma peça de teatro e uma viagem de música num furgão de construção consertado por nós mesmos que será puxado por um trator. Pretendemos financiar parte dos custeios da nossa viagem de duas semanas através de música de rua (entretenimento) durante o percurso.

Concluindo eu posso dizer que se colocou à disposição dessa classe, finalmente, todos aqueles espaços sociais que esses alunos teriam necessitado a partir do primeiro ano para que, no processo comunitário livre, pudessem desenvolver capacidades sociais.

Para Mônica a participação nesses espaços e vivências livres significa um verdadeiro desafio. Ela, sempre de novo, precisa confrontar-se com a comunidade apesar de seus medos e péssimas vivências. Mas no meio tempo ela colecionou também uma porção de boas e muito boas vivências. A classe aprende, cada vez melhor, a lidar com as especificidades de Mônica. Mas ambos, Mônica e classe precisam para isso de tempo e de oportunidades para realizar a formação de comunidade por eles mesmos.

Em todos os processos sociais eu sou o conselheiro imparcial. Minha tarefa é constituir e manter a confiança absoluta para ambos os lados nessa situação.

Não busco desenvolver aprendizagem autônoma e por si mesmo como sendo o mais alto princípio do ensino. A escola Waldorf quer ser uma escola de métodos, e ler o seu método a partir das necessidades concretas de cada um como ser humano individual.

Por esta razão Rudolf Steiner aconselha aos professores: “Quando vocês tiverem um conhecimento bem desenvolvido do ser em desenvolvimento, permeado de vontade e de índole, então vocês também farão um bom ensino e uma boa educação”. Paralelamente ao esforço para as crianças aprenderem por conta própria, existe para mim o esforço para conseguir uma capacidade de percepção intuitiva da situação específica do ser de cada criança, é isso que está em primeira linha. Suas necessidades determinam a minha pedagogia.

O autor: Thomas Jachmann, ano 1951, formação superior em biologia, história e filosofia na universidade de Colônia, durante o estudo a partir de 1974, professor substituto de matéria e professor de classe na escola Christian Morgenstern em Wuppertal e Essen. Formação para professor de classe em curso noturno em Herne. A partir de 1980 professor de classe. A partir de 1981 também professor de ensino de religião Cristã Livre.

NOTA

(1) Henning Köhler, em Andreas Neider; Aprender – Stuttgart 2004.