0 Conceito de Idade Média - Le Goff - Parte III

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  • JACQUES L GOFF

    PARAUM NOVO CONCEITO

    DE IDADE MDIATempo, Trabalho e Cultura no Ocidente

    1980Editorial Estampa

    Lisboa

  • mCULTURA ERUDITAE CULTURA POPULAR

    ' / i

  • CULTURA CLERICAL E TRADIES FOLCLRICASNA CIVILIZAO MEROVNGIA

    Todos os historiadores do cristianismo medieval conhecem o fen-meno da presso das representaes populares sobre a religio doseruditos. As suas primeiras manifestaes remontavam, verosimilmeate, amuito tempo atrs. Ser admissvel pr o problema da decadnciada civilizao intelectual antiga sem perguntarmos a ns prprios se essacultura, nascida nas sociedades muito especficas de algumas cidade-zinhas helnicas, adoptada em seguida e adaptada pela oligarquia romana,no estaria, antecipadamente, condenada a estranhas deformaes, a partirdo momento em que, embora ainda limitada a uma elite, mas a umaelite doravante espalhada pelo vasto mundo, ela ficou, de boa ou mvontade, em contacto com as multides impregnadas de todas as outrastradies mentais? (Marc Bloch, Annales d'Histoire sociale, 1939, p. 186).

    O desejo de relacionar os grupos ou os meios sociais com os nveisde cultura no momento da passagem da Antigidade para a Idade Mdia.no Ocidente, no novo. Sem voltar muito atrs, devemos lembrar oclebre artigo de Ferdinand Lot Em que altura se deixou de falarlatim? C1) citado tambm, mais tarde, por Dag Norberg ('). Sin-to-me incapaz de seguir estes dois autores eruditos no campo filotgicoem que se colocaram. Mas, se verdade que admiro muito as observaespertinentes que enchem os seus artigos, se lhes estou reconhecido porhaverem baseado o seu estudo lingstico na anlise mais ampla dascondies sociais, creio que o essencial, para o nosso debate, no est a.

    Sem dvida que a utensilagem lingstica faz parte, a nvel funda-mental, da utnsilagem mental e intelectual e encontra-se pois includano contexto social, que marca profundamente a segunda. Mas, do ponto de

    O Cfr. Bibliografia, n.' 25.O Cfr. Bibliografia, n. 33.

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  • vista central da comunicao cultural, pelo menos cm relao aos s-culos V e VI, Dag Norberg parece-me ter razo contra Ferdinand Lot: Doponto de vista social nfio havia na poca duas lnguas, mas sim diversasformas da mesma lngua, de acordo com os diferentes meios da socie-dade. O

    A nvel lingstico, pois, o povo e a aristocracia entendem-se comesta importante reserva: onde falarem latim. Ora se o clero fala, por todoo lado, o latim, os laicos continuam, muitas vezes, a falar as lnguasbrbaras quer se trate das lnguas vulgares de populaes que hmuito entraram na rea poltica e cultural romana ou das lnguasdos Brbaros propriamente ditos, imigrantes ou invasores recentementeinstalados nos limites do Imprio Romano. No primeiro caso, tratava-sesobretudo de camponeses que haviam conservado as suas lnguas tra-dicionais copta, siraco, trcio, celta, berbere , como lembrouA. R M. Jones num notvel estudo ('). Para nos limitarmos ao Ocidente,a persistncia das linguagens clticas atestada por diversas fontes, nomea-damente por S. Jernimo (') e por Sulpcio Severo (*) No que respeitaaos recm-vindos, a permanncia da utilizao dos diakctos germnicosencontra-se em toda a sociedade. H nitidamente uma certa romanizaodos Brbaros, embora seja muito limitada (T).

    Assistimos assim afirmao de dois fenmenos essenciais: a emer-gncia da massa camponesa como grupo de presso cultural (') e a indi-ferenciao cultural crescente com algumas excepcdes individuais ou

    O Loc. c//., p. 350.O The social bactground of the struggle between paganisra and

    christianity em Momigliano (Cfr. Bibliographie, n.* 47).O Comm. in Ep. Gol. IL(') Dialogi, L, 27.O Os condes, os salones enviados em misso junto dos funcionrios

    romanos, conheciam necessariamente algumas frases latinas, aquilo quecom certeza sabe qualquer oficial ou ate qualquer soldado, num pas

    ' ocupado (P. PJch, Bibliographie, n." 37, p. 101). verdade que alguns- aristocratas, brbaros se romanizaram bastante rapidamente. Mas bem

    evidente que s pode tratar-se de uma minoria, tendo a massa dos Br-, baros conservado os seus costumes prprios (ibid., p. 102).

    C) Trata-se de um fenmeno diferente daquele que se produziu nosincios da cultura romana. Ali, o fundo rural impregnou para sempreuma cultura que se urbanizava e dilatava continuamente (cfr. por exemploW. E. Heitland, Agrcola, Cambridge, 1921; e as notas de J. Marouzeausobre o latim como lngua de camponeses, em Lexique de terminologielinguistiqite, 2* ed., 1943). Aqui, o campons, evacuado e mantido afas-tado do universo cultural (cfr. J. L Goff, Ls paysans et l monderural dans Ia littrature du haut Moyen Age (V-VT sicle), em Agrcol-lura e mondo rurale in Occidente neWato medoevo. Settmane di studio

    _- dei Centro italiano di studi sulTalto medioevo. XIII. Espoleto. 1965 [19661.pp. 723-741) faz pesar sobre esta cultura uma ameaa que obriga os clrigosa promoverem um movimento inverso, de cima para baixo, lanado doleste.

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    locais de todas as camadas sociais laicas face ao clero que monopolizatodas as formas evoludas, e nomeadamente escritas, de cultura. O pesoda ma^ camponesa c o\ monoplio clerical so as duas formas essenciaisque agem sobre as relaes entre os meios sociais e os nveis de culturana Alta Idade Mdia. O melhor terreno para estudar estas relaes nome parece ser o da lngua mas sim mais amplo e mais profundooda utensilagem intelectual e mental.

    Par melhor se compreender o papel dos suportes sociais da culturana Alta Idade Mdia, devemos recordar a evoluo das infra-estruturasque, no sculo IV, leva bruscamente o cristianismo ao primeiro planoda cena histrica. A. H. M. Jones (') mostroa que a difuso do cristia-nismo no mundo romano do sculo IV no era um facto meramentepoltico ou espiritual conseqncia da converso de Constantino e dozelo missionrio dos cristos, a partir de ento mantidos pelos poderes p-blicos. Em princpios do scuo IV, o cristianismo estava sobretudo difun-dido nas classes urbanas mdias e inferiores, enquanto quase no atingia asmassas camponesas e a aristocracia. Ora a contraco econmica e odesenvolvimento da burocracia conduzem promoo destas tniddle andlower urban classes, onde o cristianismo era j forte. Essa promooleva expanso crist. Mas quando o triunfo do cristianismo se tornaevidente, as classes que o guiaram esto em franco recuo. O cristia-nismo escapa ao desmoronar das superstruturas frgeis do Baixo Imprio,separando-se das classes1 que lhe garantiram o xito e que a evo-luo histrica fez desaparecer. A transformao social da aristocracia,depois das massas camponesas, implanta o cristianismo, mas custade muitas distorses, particularmente sensveis no domnio da cultura.Entre um clero cada vez mais colonizado por uma aristocracia formadapela paidela greco-romana O e um laicado de predomnio rural, queo recuo do paganismo oficial torna mais vulnervel s presses deuma cultura primiva renascente, a religio crist, introduzida porcategorias sociais urbanas moribundas, conseguir definir-se numa culturacomum, atravs de um jogo subtil de aculturaes internas? (u)

    (*) Loc. cit., n.8 6.(") Cfr. a obra clssica de H. L Marrou, Bibliografia, n.* 30;

    e para os fundamentos gregos da cultura greco-romana; W. aeger, faideia,The Ideais of Great culture, I-IU, Oxford, 1936-1945.

    (") Sobre a problemtica da aculturao, o relatrio de referncia ode A. Dupront, De 1'acculturation, em Comit internatoru dericienceshistoriques, XII" Congrs intemational ds sciences historiques (Viena,1965). Partes da obra: I. Grandes temas (1965), pp. 7-36. Traduzido paraitaliano com adies em: L'acculturazione. Per un nuovo rapporto traricerca sorica e scienze umane (Turim, 1966). Os problemas de acultu-rao interna nascidos da coexistncia de nveis e de conjuntos culturaisdistintos dentro de uma mesma rea tnica constituem um domnio parti-cular e particularmente importante da aculturao.

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  • - I As caractersticas fundamentais da histria da cultura ocidental,desde o sculo V ao sculo VIU, podem definir-se assim:

    a) A laminagem das class*'5 mdias encontra-se no domnio da culturaonde o fosso se alarga entre a massa inculta e uma elite cultivada;

    b) Mas a clivagem cultural no coincide com a estratificao social,porque a cultura intelectual se torna o monoplio da Igreja. Mesmoque haia~~grandes diferenas de grau de cultura entre os clrigos, anatureza da sua cultura a mesma e a linha essencial de separao a que separa os clrigos dos laicos;

    c) A cultura eclesistica, quaisquer que sejam as respostas individuaisou colectivas dos clrigos ao problema da atitude a adoptar para com ocontedo da cultura profana paga, utiliza a utensilagem intelectualdesenvolvida, do sculo IH ao sculo V, por autores didcticos que siste-matizam, a nvel simplificado e medocre, a herana metodolgica e cien-tifica da cultura greco-romana ("). Desta utensilagem intelectual, oessencial , provavelmente, o quadro das artes liberais e MarcianoCapella, o autor mais importante (De nuptiis Philologiae ei Mercur,primeira metade do sculo V) ("-). Seria importante possuir um perfeitoconhecimento global desta primeira camada de fundadores da IdadeMdia, por vezes ainda pagos, como o caso de Macrbio (");

    d) Os chefes eclesisticos recebem tanto mais facilmente esta for-mao intelectual quanto, sobretudo no sculo V e no sculo VI a grandemaioria pertence s aristocracias indgeno-romanas. Mas os prelados br-baros, os bispos e os abades de origem brbara que fizeram carreira, adop-tam muito bem este tipo de cultura, porquanto a sua aquisio , precisa-mente, um dos melhores meios de assimilao e de ascenso sociais. Otipo hagiogrfico do santo bispo comporta, em geral, uma origem ilustree, quase sempre antes ou depois da converso, a formao das artesliberais (o que aconteceu com Paulino de Milo na Vita A mbrosii, em 422;com Constando de Lyon na Vita Germani, por volta de 470-480, ecom outros);

    e) A despeito da tendncia para a regionalizao, esta. culturaeclesistica tem, mais ou menos por todo o lado, a mesma estrutura e .omesmo nvel (cfr. dois exemplos, entre os mais opostos: Isidoro de Sevilhae a cultura visigtica no princpio do sculo VII, a cultura monstica

    (") Por exemplo, o essencial dos conhecimentos etnogrficos que acultura greco-latina legar ao Ocidente medieval vir das Colletanearerum memorabilium, medocre compilao de Solinus, no sculo III(edL Mommsen, 2.* ed., Berlim, 1895).(") Cfr. W. H. Stahl, To a better understanding of MartianusCapella, em Specidum, XL, 1965.C*) Foi a Macrbio que os clrigos da Idade Mdia tardiamenteforam buscar, por exemplo, a tipologia dos sonhos to importante numacivilizao em que o universo onrico tem um lugar to vasto: cfr. L. Deu*bner, De Incubaione, Giessen, 1899.

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    irlandesa de Yns Pyr na poca de Eltud, na primeira metade dosculo VI, segundo a Vita Samsonis) (");

    /) Perante esta cultura eclesistica, a cultura laica manifesta umaregresso muito mais acentuada, iniciada desde o sculo II, reforada peladesorganizao material e mental que se tornou catastrfica com asinvases e a fuso dos elementos brbaros com as sociedades indgeno--romanas. Esta regresso cultural manifestou-se, sobretudo, com ressur-gncias de tcnicas, de mentalidades, de crenas tradicionais. O quea .cultura eclesistica encontrou na sua frente foi, mais que uma culturapaga do mesmo nvel e do mesmo tipo de organizao, depressa vencida, adespeito das ltimas convulses do princpio do sculo V, uma culturaprimitiva de cariz mais guerreiro nos Brbaros (em especial na camadasuperior: cfr. o mobilirio funerrio) C1*), de caracter sobretudo camponsno conjunto das camadas inferiores ruralzadas.

    II Pondo, pois, de lado o testemunho dos documentos arqueolgicos,podemos tentar definir as relaes entre estes dois nveis de culturaatravs das relaes entre cultura clerical e folclore.

    O facto deste esboo se fundar em documentos pertencentes cultura eclesistica escrita (em especial vidas de santos e obras pastorais,tais como os Sermes de Cesrio d1 Artes, o De correctione rusicorumde Martinho de Braga, os Dialogi de Gregrio, o Grande, os textos dossnodos e conclios e os penitenciais irlandeses), arrisca-se a falsear, se noa objectivdade, pelo menos as perspectivas. Mas no se procura, aqui,estudar a resistncia da cultura folclrica e as diversas formas que elapode tomar (resistncia passiva, contaminao da cultura eclesistica,ligao com movimentos polticos, sociais e religiosos, revoltas campo-nesas, arianismo (*), prisciUanismo (**), pelagianismo (***), etc.)- Conten-

    (") A Vita Samsonis foi submetida rgida crtica do seu editorR. Fawtier (Paris, 1912). Mas, mesmo que as adies e os acrescenta-mentos posteriores tenham sido importantes no texto que nos chegou,os historiadores do monaquismo irlands tendem a considerar a culturaliberal dos abades irlandeses (Santo Iltud ou S. Cadoc pertencemao mesmo grupo de Samson) como uma realidade e no como uma ficocarolingia (cfr. P. Rich, op, cit., p. 357); e O. Loyer, Bibliografia, n.* 26,PP- 49-51).

    (M) Se bem que a arqueologia nos revele uma cultura guerreira(cfr. E. Salin, Bibliografia, n.' 45), a aristocracia militar da Alta IdadeMdia permanece afastada da cultura escrita espera do impulso da pocacarolngia e pr-carolngia (cfr. n. 25, p. 216), onde mergulha de restona cultura clerical, antes de irromper na poca romnica com as canesde gesta (cfr. J. P. Bodmer, Bibliografia, n.9 6).

    () Doutrina de Arius, que negava a unidade e a consubstancialidade dastrs pessoas da Santssima Trindade e, portanto, da divindade de Jesus Cristo. O ria'nsmo foi condenado pelo Concilio de Niceia (325) e pelo de Constantinopla (381). (N. da T.)

    ("*) Prisciliano concebia o ascetismo como autentica forma da vida cristi.Prisciliano, heresiarca espanhol, falecido em 385. (N. da T.)

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  • temo-nos com tentar definir a atitude da cultura eclesistica perante acultura folclrica C1).

    H, sem dvida, um certo acolhimento deste folclore na culturaderical:

    a) favorecido por certas estruturas mentais comuns s duasculturas, em especial a confuso entre o terrestre e o sobrenatural, omaterial e o espiritual (por exemplo, atitude perante os milagres, o cultodas relquias, uso das filacteras (*), etc.);

    b) Tornou-se obrigatrio, pela tctica e pela prtica evangelizadoras;a evangelizao reclama um esforo de adaptao cultural do clero: lngua

    (**) Heresia criada por Pelgio, que negava a eficcia da Graa e do pecadooriginal. (N. 4a T.)

    (") Por cultura folclrica entendo sobretudo a camada profunda dacultura (ou da civilizao) tradicional (no sentido de A, Varagnac, Biblio-grafia, n.1 48) subjacente em toda a sociedade histrica e, parece-me,aflorando ou prestes a aflorar na desorganizao'que reinou entre a Anti-gidade e a Idade Mdia. O que torna a identificao e a anlise destacamada cultural particularmente delicadas, ela ser recheada de contribui-es histricas discordantes pela idade e pela natureza. Aqui, s podemostentar distinguir o extracto profundo da camada de cultura superiorgreco-romana que a marcou com o seu cunho. So, se se quiser, os doispaganismos da poca: o das crenas tradicionais de muito longa duraoe o da religio oficial greco-romana, mais evolutiva. Os autores cristosda Baixa Antigidade e da Alta Idade Mdia distinguem-nos mal e pare-cem, de resto (uma anlise, por exemplo, do De correctione naticorum deMartinho de Braga, Bibliografia, n. 13 e 27, e do texto ap. C W. Barlow,Martin de Braga, Opera omnia, 1950), o demonstra, mais preocupadosem combater o paganismo oficial do que as velhas supersties, que maldistinguem. Em certa medida, a sua atitude favorece a emergncia destascrenas ancestrais mais ou menos purgadas da sua roupagem romana eno ainda cristianizadas. Mesmo um santo Agostinho, contudo aindaatento em distinguir a urbanitas da rusticiias nos aspectos sociais dasmentalidades, das crenas e dos comportamentos (cfr. por exemplo a suaatitude discriminatria perante as prticas funerrias no De cura prmortuis gerenda, PL-CSEL 41 Biblioteca augustiniana, 2; e mais geral-mente o De catechizandis Rudibus PL, XL, Biblioteca augustiniana,1,1) nem sempre consegue a distino. Assim, a clebre passagem do Dedvitate Dei, XV, 23, acerca dos Silvanos et Faunos quos vulgo incubesvocant, acto de nascimento dos demnios ncubos da Idade Mdia, comomuito bem analisou Ernest Jones no seu ensaio pioneiro obre a psicanlisedas obsesses colectivas medievais, cm On the Nighlmare (2.* ed., Londres,1949), p. 83.

    Na prtica, considero como elementos folclricos os temas da lite-ratura merovngia que nos levam a um motivo de Stith Thompson, Motif--Index of Folk-literature (6 vol., Copenhaga, 1955-1958).

    Sobre a historicidade do folclore, temos o artigo luminoso de alcancegeral apesar do ttulo, de G. Cocchiara, Paganitas. Sopra vivenze Folklo-riche dei Pagancsimo scilano, Atti dei 1.' congresso internazionate distudi sulla Sicilia antica. Studi pubbcati da'Istituto di storia anticadeirUniversit di Palermo (X-XI, 1964-1965, pp. 401-416).(*) Pergaminho contendo uma passagem da Bblia e que os Judeus usamcomo talism. (A1, da T.)

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    (sermo rsticas), recurso s formas orais (sermes, cantos) e a certos tiposde, cerimnias (cultura litrgca, procisses: o caso das ladainhas (**) edas procisses institudas por Gregrio, o Grande ("X satisfao daspeties da clientela (milagres a pedido).

    A cultura eclesistica deve, muitas vezes, inserir-se nos quadros dacultura folclrica: localizao das igrejas e dos oratrios, funes pagastransmitidas aos santos, etc.

    Porm, a iniciativa a recusa desta cultura folclrica jpela culturaeclesistica:a) Por destruioAs inmeras destruies

    fde templos e de dolos tiveram por simetria,na literatura, a prescrio dos temas propriamente folclricos, cuja recolha,mesmo na literatura hagiogrfica a pror privilegiada neste aspecto, fraca. A recolha ainda mais escassa, se eliminarmos os temas folclricostirados da Bblia (neste aspecto seria importante distinguir a tradiodo Antigo Testamento, rica em motivos folclricos, e a tradio do NovoTestamento, onde estes temas so raros). Por outro lado, devemos distin-guir cuidadosamente, nos relatos hagiogrficos, as diferentes camadascronolgicas de elementos folclricos devidos as sucessivas correces.

    (**) Sabe-se que as Ladainhas datam dos sculos V e VI. Foraminstitudas, segundo a tradio, por S. Mamert, bispo de Viena (falecidoem 474), num contexto de calamidades e rapidamente se estenderam atoda a Cristandade, conforme testemunha Santo Avit (fal. em 518),Homlia de Rogationibus {f L, LIX, 289-294). No certo que tenhamsido o substituto directo das mbarvalia antigas: ver o artigo Rogationsem Dictonnare d'archologie chrienne et de liturgie (XTV-2, 1948, coL2459-2461, H. Leclercq). Pelo contrrio, certo que acolheram elementosfolclricos. Mas difcil saber se estes elementos deram imediatamente,desde a poca que analisamos, o seu colorido liturgia das Ladainhas, ouse no foram nelas introduzidas ou, pelo menos, desenvolvidas mais tarde.Os nossos testemunhos que, por exemplo, dizem respeito aos drages dasprocisses s datam dos sculos XII e XIII para os textos tericos (osliturgistas Jean Beleth e Guillaume Durant) e dos sculos XIV e XV paraas menes individuais concretas. Estudei o problema dos drages proces-sionais desde a poca merovngia num ensaio, Culture clricale etfolklore au Moyen Age: sant Mareei de Paris et l dragon, MlangesBarbagallo u, 51-90 e aqui infra pp. 221-260. Sobre as caractersticasfolclricas das Ladainhas, temos as belas pginas de A. van Gennep, como ttulo significativo: Ftes liturgiques folfcloriscs, em Manuel ae Fo~kiore franais contemporain (1/4-2, 1949, pp. 1637 e ss.).

    (") A sua origem urbana, a sua natureza propriamente litrgica,como o demonstra o alvar de instituio dirigido pelo papa aos Romanos,aps ser elevado ao pontificado por altura da epidemia de peste negra de590 alvar que Gregrio de Tours inseriu na Historia Francorum poisum dicono de Tours, ento em Roma, para a adquirir relquias, lhahavia entregado (HF, X, 1). Mas a sua insero no calendrio litrgicocomo liturgias majores ao lado das liturgias minores das ladainhasexp-las tambm, sem dvida, a uma degradao popular.

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  • Certos autores (por exemplo, P. Saintyves, Margem da Lenda Dourada,ou H. Gnther, Psicologia da Lenda) no fizeram uma suficiente distinoentre tais extractos e tiveram por isso tendncia para fazer recuar, at Alta Idade Mdia, elementos folclricos introduzidos na poca carolngia e,sobretudo, na altura da grande vaga folclrica dos sculos XII e XIIIque vem rebentar na Lenda Dourada de Jacques de Voragine.

    ti) Por obliteraoA sobreposio dos temas, das prticas, dos monumentos e das perso-

    nagens crists a antecessores pagaos no uma sucesso, mas umaabolio. A cultura clerical encobre, oculta, elimina a cultura folclrica.

    c) Por desnaturao provavelmente o mais importante processo de luta contra a

    cultura folclrica: os temas folclricos mudam radicalmente de signifi-cado nos seus substitutos cristos (exemplo do drago na Vita Marceltide Fortunato ("*); exemplo dos fantasmas na Vita Germani de Constandode Lyon, em comparao com o modelo greco-romano de Plnio o Mooc o tema folclrico dos mortos sem sepultura) (") e at de natureza (porexemplo os santos no passam de taumaturgos auxiliares s Deus faz osmilagres) (*")-

    C*) O drago folclrico smbolo das foras naturais ambivalentesque podem reverter a nosso favor ou em nosso prejuzo (E. Salin,op. cif.. IV, pp. 207-208) continua a existir durante toda a IdadeMdia, ao lado do drago cristo identificado com o diabo e reduzido aoseu mau significado. Na poca (fim do sculo VI) em que Fortunatoescreve a Vita Marcelli (cfr. Bruno Krusch, MGH, Scriptores Rerum Me-rovingiarum, IV-2, 49-54), o tema do santo vencedor do drago fica a meiocaminho destas duas concepes, na linha de interpretao antiga que,atribuindo aos heris a vitria sobre o drago, hesitava entre a domesti-cao e a morte do monstro. Sobre os aspectos folclricos deste tema,cfr. Stith Thompson, op. cit. Motif A 531: Culture hero (demigod)overcomes monsten. Tentei apresentar este problema no artigo citadona nota 8, p. 208. L'ambiyalence ds animaux revs foi sublinhada porJean Gyory, Cahiers de Cvlsation mdivale (1964, p. 200). Para umainterpretao psicanaltica deste ambivalncia, cfr. E. Jones, On thenightmare, p. 85.C1) Constando de Lyon. Vie de saint German d'Auxerre, ed. R. Bo-rius (Paris, 1965, pp. 138-143): Plnio o Moco, Lettres, VH, 27.(**) H que distinguir. A tese de P. Saintyves, que se exprime nottulo sugestivo do seu livro, marcado com a indicao modernista:Ls Saints successeurs ds dieux (Bibliografia, n.* 43), aparecido em 1907, falsa, na medida em que os antepassados afastados e eventuais dos santosso no os deuses, mas os semideuses, os heris, e em que a Igreja quis fa-zer dos santos, no os sucessores, mas os substitutos dos heris e situ-losnum outro sistema de valores. Em contrapartida, a tese de G. Cocchiara,loc. cit., afirma o triunfo da Igreja nesta matria, mas no tem em contao facto de a grande maioria dos cristos, na Idade Mdia, e mais tarde,terem tido para com os santos o mesmo comportamento que os seusantepassados tiveram para com os heris, com os semideuses e at comos deuses. Em especial, contrariamente ao que pensa G. Cocchiara, a

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    O fosso cultural reside, aqui, sobretudo, na oposio entre o caracterfundamentalmente ambguo, equvoco, da cultura folclrica (crena nasforcas simultaneamente boas e ms e utilizao de uma utensilagemcultural com dois gumes) e o racionalismo da cultura eclesistica,herdeira da cultura aristocrtica greco-romana ("): a separao do beme do mal, do verdadeiro e do falso, da magia negra e da magia branca,sendo o maniquesmo propriamente dito evitado apenas pela omnipotnciade Deus.

    Temos pois de considerar duas culturas diversamente eficazes nveisdiferentes. A barragem que a cultura clerical ope cultura folcl-rica provm, no somente de uma hostilidade consciente e deliberada,mas tambm da incompreenso. O fosso que separa a elite eclesistica,cuja formao intelectual, origem social, implantao geogrfica (qua-dro urbano, isolamento monstico) a tornam permevel cultura fol-clrica, da massa rural, , sobretudo um fosso de ignorncia (cfr. a incom-preenso admirada de Constando de Lyon perante o milagre dos galosmudos realizado por S. Germano a pedido de camponeses) (").

    atitude, to freqente nas colectivdades medievais, de maltratar um santo(ou uma esttua) culpado de no haver atendido as oraes dos seusfiis, ressalta bem de uma mentalidade primitiva persistente, e node qualquer mudana afectiva da piedade. O que fica que a distinoentre o papel de Deus e o papel dos santos puros intermedirios nosmilagres oferece psicologia individual e colectiva uma vlvula de escapeque salvaguarda, em certa medida, a devoo para com Deus.

    (") Trata-se sem dvida de simplificar o papel intelectual e mentaldo cristianismo, ao insistir nos progressos da racionalizao que trouxe aestes domnios. No meio termo da histria das mentalidades colectivas cieparece mais provir de uma reaco mstica, oriental, perante um certoracionalismo greco-romano a que de resto no poderamos reduzir asensibilidade crtica: muitos aspectos da sensibilidade helenistica serviramde base ao judeo-cristianismo, e os cristos da Idade Mdia percebiam amacerta continuidade ao atrair Virglio e Sneca para o cristianismo. Aconteceque, no domnio das estruturas mentais e intelectuais, o cristianismoparece-me ter marcado sobretudo uma nova etapa do pensamento racional,conforme P. Duhem o havia defendido no campo da cincia, onde, se-gundo ele, o cristianismo permitira ao pensamento cientfico progressosdecisivos ao dessacralizar a natureza. Neste aspecto, a oposio folclricaao cristianismo (mais fundamental, parece-me, que os amlgamas e assimbioses) representa a resistncia do irracional, ou melhor, de um outrosistema mental, uma outra lgica, a lgica do pensamento selvagem.

    (**) Constando de Lyon, Vie de saint Germain d'Auxerre, ed. cit.,pp. 142-143. Germano, albergado pelos aldees, cede s suas splicas eresttui a voz aos galos que se haviam tornado mudos, dando-lhes a comertrigo bento. O bigrafo mostra no compreender a importncia e osignificado deste magre, que evita mencionar. Ita virtus diuina etiamin rebus minimus mxima praeeminebat. Estas rs minimae, de que falammuitas vezes os hagigrafos da Alta Idade Mdia, so precisamente milagresde tipo folclrico entrados pela porta do cavalo na literatura clerical.No caso aqui citado h uma combinao de diversos temas folclricosenglobados neste milagre de feiticeiro de aldeia que pe em marcha aordem mgica da natureza. Cfr. Stith Thompson, Motif-Index op. cit..

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  • _ Assistimos assim, no Ocidente da Alta Idade Mdia, mais a umbloqueamento da cultura inferior pela cultura superior, a uma estrati-ficaao relativamente estaaque dos nveis de cultura, do que a uma hierar-quizao, dotada de rgos de transmisso, que garantam influncias unila-terais ou bilaterais, entre os nveis culturais. Porm, esta estratificacbcultural, se verdade que culmina na formao de uma cultura aristocr-tica clerical O, no se confunde por isso com a estratificaco social. Apartir da poca carolngia, a reaco folclrica ser a aco de todas ascamadas laicas. Irromper *a cultura ocidental a partir do sculo XI,paralelamente aos grandes movimentos herticos (*).

    A 2426: Nafwe and meaning of animal cries (nomeadamente A 2426.2.18:origin and meaning of cock's cry); A 2489: Animal perodic habifs (nomea-damente A 2489.1: Why cock wakes man in morning; A 2489.1.1: Whycock crows to greet sunrise); D 1793: Magtc results from eating or drin-king; D 2146: Magic control of day and night; J. 2272.1: Chanticleerbelieves'that his crowing makes lhe sun rise.

    (") Esta cultura aristocrtica clerical desenvolveu-se na poca caro-lngia, numa penhora recproca da Igreja sobre os valores laicos e daaristocracia laica sobre os valores religiosos. Se, no nosso tempo, nossculos V-VI, a aristocracia coloniza socialmente a Igreja, ela s o fazabandonando a sua cultura laica, no como utcnsilagem tcnica, mascomo sistema de valores. Entre outros, significativo o exemplo deCesro d'Arles (Vita Caesar, I, 8-9, ed- G. Morin, S. Caesar opera omnia,t. II, 1937). Cesro, enfraquecido pelas suas prticas ascticas em Lrins, mandado para Aries para uma famlia aristocrtica que o confia aquidam Pomerius nomine, scientia rhetor, Afer genere, quem ibi singu-larem et clarum g.-zmmaticae artis doctrina reddebaf... u saecularisscientiae disciplins monasterialis in eo simplicitas poliretur. Pomrio, autordo De yita contemplativa, com grande voga na Idade Mdia, , de resto,um cristo sem nada de racionalista. Mas, uma vez adquirida a tcnicaintelectual, Cesro desvia-se desta cincia profana, como lhe sugere umsonho em que v um drago devorar-lhe o ombro pousado em cima dolivro sobre que adormecera. No outro extremo do perodo que analisamos(sculo VII-VIII), vemos o ideal aristocrtico (no nos metemos agora emdiscusses sobre a existncia de uma nobreza desta poca) invadir aliteratura hagiogrfica a ponto de lhe impor um tipo aristocrtico desanto; F. Graus, Bibliografia, n.f 22; e F. Prinz, Bibliografia, n.* 36,nomeadamente as pp. 489, 501-507: Die Selbstheigung ds frankischenA deis in der Hagiographie, 8. Heiligenvita-Adel-Eigenkloster, 9. Ein neueshagiographisches LeitbUd; e os trabalhos citados ibid, pp. 493-494, n." 126e 127, aos quais devemos juntar K. BosI, Der Adelsheilige, Idealtypusund Wirklichkeit, Gesellschaft und Kultur im Merowingerzeite. Bayernds 7. und 8 Jh. em Speculum historiale, Geschichte im Spiegel vonGedichtsschreibung und Gedichtsdeutung (ed. Q. Bauer, 1965, pp. 167-187).

    (**) A exemplo de Erich Khler, interpreto o renascimento da lite-ratura profana- dos sculos XI e XII como o produto do desejo dapequena e mdia aristocracia dos mllites de criar para si uma culturarelativamente independente da cultura clercal, a que se tinham bemacomodado os proceres laicos carolngios (cfr. E. E. Khler, Trobadorlyrkund hfischer Roman, Berlim, 1962. ld,, Observatons historiques etsociologques sur Ia poesie ds troubadours, Cahiers de civilisation

    216

    SELECO BIBUOGRAFCA

    6.

    1. J.-F. ALONSO, La cura pastoral en Ia Espana romanovisigoda, Roma1955.-

    2. E. Auerbach, Lteratursprache und Publikum in der Lat*mischeSpatantike und im Mittela/ter, Berna, 1958.3. H. G. Becfc, The pastoral Core of Souls in Souh-East France duringthe Sixth Century, Roma, 1950.

    C. A. BernouIIi, Die Heilingen der Merowinger, Tbingen, 1900.H. Beumann, Gregor von Tours und der sermo rusticus. SpiegtGeschichte. Festgabe Max Braubach, Mnster io>^ J.-P. Bodmer, Der *>"

  • 16. F.-R. Curtius, La Liltrature europenne et l Moyen Age latin, trad.franc.. Paris, 1956.

    17. H. Delehaye, Ls Legendes hagiographiques, Bruxelas, 1905.18. /

  • CULTURA ECLESISTICA E CULTURA FOLCLRICANA IDADE MDIA: S. MARCELO DE PARIS

    E O DRAGO (*)

    S. Marcelo, bispo de Paris no sculo v, depois de haver forcado o des-tino, parece ter cado de novo na obscurdade, onde a sua humilde origemo deveria ter mantido. Numa altura em que, com efeito, o cpiscopado daAlta Idade Mdia era essencialmente recrutado na aristocracia, a ponto deo nascimento ilustre figurar entre os lugares-comuns hagiogrficos queos autores das Vitae repetiam, sem grande risco de engano, mesmo queestivessem mal esclarecidos sobre a genealogia dos seus heris Marcelode Paris uma excepco (*). Assim, quando Venncio Fortunato (*). a pe-dido de S. Germano, bispo de Paris, e ainda em vida deste, portanto antesde 28 de Maio de 576, escreve a biografia do seu antecessor O, Marcelo,falecido provavelmente em 436, e quando, entre as raras informaestodas orais que recolhe, encontra a meno da mediocridade da sua

    (*) Par* as ilustraes a que se faz referenda durante o texto, consultar oartigo original.

    C) Sobre as origens aristocrticas de santos na hagiografa rnero-vngia, consultar as excelentes notas de F. Graus, Volk, Herrtcher unaHeiliger im Reich der Merowingcr. Praga, 1965, pp. 362 e sgts. Sobreo meio monstico cfr. K Prinz, Frhes Monchtum im Fronkenreich,Munique-Viena, 1965, pp. 46 e sgts.: Lerinum ais "Flichtlingskloster"der nordgallschen Aristokratie.

    O Sobre Fortunato cfr. W. Wattenbach-W. Levson, DeutxMandsGeschitsquellen im Mittclalter. Vorzei und Karolinger. I, Weimar, 1952,pp. 96 e sgts.

    O La Viia S. Marcelli de Fortunato foi editada por Bruno Kruschnos M. G. H.. Script. Rer. Afcr., W/2, 1885a, pp. 49-54. Reproduzimos,em apndice, o X e ltimo captulo da V tia, segundo esta edio. SobreS. Marcelo de Paris cfr. Acta Sanctorum, Nov., I, 1887, pp. 259-267(G. van Hoof), onde se encontra o texto da Vifa de Fortunato, repro-duo de Migne, PL, LXXXVIII, pp. 541-550; e Vis ds Sants et dsBienheureux selon 1'ordre du calendrier avec Vhistorique ds fies pelosRR. PP. Bndictins de Paris, 1. XI, Novembro, Paris, 1954, pp. 45-49.Estes dois artigos nada contm acerca do drago processional.

    221

  • origem,' Fortunato tem de reconstituir a carreira do santo, por artesmilagrosas. Cada etapa da carreira eclesistica de Marcelo segue ummilagre e a sucesso destes 6 tambm qualitativa: cada um superior aoque o procedeu. Texto precioso, pois, para nos introduzir numa psicologiado milagre na poca mcrovngia. O primeiro milagre que eleva Marceloao subdiaconato (Viia, V) um milagre da vida quotidiana e do ascetismo:desafiado, por um ferreiro, a dizer quanto pesa um pedao de ferro embrasa, Marcelo, toma-o nas mos e calcula com exactido o seu peso.O segundo milagre (V i t, VI) que reveste j um aspecto cristolgico e quelembra um dos primeiros milagres de Cristo antes do apostolado decisivodos seus ltimos anos, o milagre da bodas de Cana, produz-se quandoMarcelo, trazendo gua do Sena para o seu bispo lavar as mos, esta setransforma em vinho, vinho que aumenta de volume a ponto de permitir aobispo dar a comunho a toda a gente presente; o seu autor torna-sedicono. O terceiro milagre, que apenas marca um progresso qualitativo(miraculum secundam ordine non honore, Vita, VII), envolve Marcelonuma funo sacerdotal. A gua que, nas suas funes litrgicas, ofereceuma vez mais ao bispo comea a embalsamar o ar como se se tratasse dosanto crisma, o que faz de Marcelo presbtero. O bispo, pondo sem dvidam vontade em reconhecer os milagres de Marcelo, s depois de ser eleprprio o beneficirio do milagre seguinte deixa a sua hostilidade ou assuas reticncias. Emudecendo, recupera a palavra pela virtude tauma-trgica do seu presbtero que, por fim considerado digno de suceder-lhe apesar do seu obscuro nascimento (Vita, VIII). Nomeado bispo, Marcelocumpre os altos feitos que a poca exige aos seus chefes eclesisticos, tor-nados, em quase todos os domnios, protectores das suas ovelhas: procedea uma dupla libertao milagrosa, fsica, ao fazer cau as cadeias de umprisioneiro, e espiritual, ao libertar do pecado esse mesmo prisioneiro que tambm, e sobretudo, um possesso (Vita, IX).

    Temos, finalmente, o coroamento da carreira terrestre e espiritual,social e religiosa, eclesistica e taumatrgica de S. Marcelo (Vita, X):Venhamos a este milagre (mistrio) triunfante que, embora sendo o ltimono tempo, o primeiro pelo valor. Um monstro serpente-drago que nos arredores de Paris semeia o terror entre as populaes caado pelo bispo que, na presena do seu povo, num dramtico'confronto, o submete ao seu poder de essncia sobrenatural e o f azdesaparecer.

    Ultimo grande feito cuja recordao, diz-nos o hagigrafo, perdurana memria colectiva. Na sua recolha de milagres, Gregrio de Tours,com efeito, em finais do sculo VI, um pouco aps o relato de Fortunatoe cerca de sculo e meio aps a morte de Marcelo, conta este milagrede um santo a quem, alias, no prestava qualquer ateno (*).

    f

    Parecia pois abrir-se ao culto de S. Marcelo um belo futuro. Noentanto, desde o incio, este culto restringiu-se a uma rea local. Naverdade, este culto esbarrava com a venerao por outros Marcelos, entreeles o santo-papa Marcelo (possivelmente martirizado em 309, no tempode Maxncio (*)) c S. Marcelo de Chalon, cujo culto vinha fazer concor-rncia ao seu, na prpria regio de Paris (*).

    Como santo parisiense, S. Marcelo pareceu triunfar. Ainda que ahistria do seu culto fora mesmo do tradicional drago, objecto desteestudo esteja cheia de obscuridades de lendas, sabemos que o teatrodo seu ltimo milagre foi o local da sua sepultura e de uma igrejasuburbana que lhe dedicaram e que ficou na tradio como a primeiraigreja de Paris c deu o nome a um dos bairros mais activos eco-nmica e politicamente da histria de Paris que existe ainda boje:o burgo ou bairro de Saint-Marcel (*). Tendo as suas relquias sido levadaspara Notre-Dame de Paris (f), em data difcil de determinar, entre osculo X e o sculo XII, talvez relacionado o facto com uma epidemiade erisipela gangrenosa, elas desempenharam, da em diante, umpapel importante na devoo parisiense. A par das relquias deSanta Genoveva umas e outras andaram sempre juntas foram,ai A Revoluo, as mais populares protectoras de Paris e as insignesrelquias para as quais S. Lus construiu a Sainte-Chapelle pareciamincapazes de as suplantar na piedade dos Parisienses {*). Tornado, com

    O Gloria Confetsorum, c. 87 (MGH, Scripf., Rer. Mer., 1/2, p. 804).

    222

    () Imperador romano, vencido por Constantino (306 a 312). (ff. da T.)C) Sobre S. Marcelo de Chalon-sur-Sane e o seu culto na regio

    de Paris (este culto teria sido favorecido no sculo VI pelo rei Gootrau;S. Marcelo de Chalon , no sculo IX, o patrono da maior parquiado domnio de Saint-Dens) cfr. M. Roblin, L Terroir de Paris auxpoques gallo-romaine et franqiie, Paris, 1951, p. 165.

    (*) Duas teses da Escola das Cartas foram dedicadas ao bairro Satnt--Marcel de Paris. J. Ruinaut, Essai historique sur ls origines et 1'organi-saion de l'glise de Saint-Marcel de Paris (sculo V, 1597), 1910 (Ppsi-tions ds thses... de Fcole ds Charles 1910, pp. 179-184) e, sobre oprprio bairro, M. L. Concasty, L bourg Saint-Marcel Paris, ds originesau XVI' sicle, 1937 (ibid., 1937, p. 26 e ss.). Sobre a igreja e o cemi-trio de Saint-Marcel, cfr. Ls glises suburbaines de Paris du IV" auX' sicle, por M. Vieard-Troekouroff, D. Fossard, E. Chatel, C Lamy--Lassalle, em Paris et e~de-france. Memrias publicadas pela Federaodas Sociedades Histricas e Arqueolgicas de Paris e da Ue-de-France,t. XI, 1960, pp. 122-134-136 e sgts.

    O Sobre a histria do culto de S. Marcelo de Paris, cfr. P. Per-drizet, L Calendrier parisien Ia fin du Moyen Age d'aprs l breviaireet ls livres d'hewes. Paris, 1933, s. v. Mareei.

    (*) Quando, em 1248, S. Lus pediu a todas as relquias de Parisque viessem acolher entrada da cidade a coroa de espinhos que vinhade Saint-Denis onde esperara a consagrao da Sainte-Chapelle, as relquiasde S. Marcelo e de Santa Genoveva no chegaram. Cfr. Don MicfaelFliben, Histoire de Ia ville de Paris, revista, aumentada e publicada porDom G. A. Lobineau, Paris, 1725, t. L, L p. 295. Sobre S. Lus e as

    223

  • S. Dinis e Santa Genoveva, patrono de Paris, S. Marcelo foi gratificado,desde a Idade Mdia, com uma casa lendria, naturalmente situada nailha da CitO). Tambm o Ano de Tillemont(*) pde, no sculo XVII,admirar esta vitria histrica de S. Marcelo de Paris: Nem o longoespao de tempo escreveu nem a celebridade dos seus sucessoresconseguiram impedir que o respeito que esta Igreja (a de Paris) tem por eleno ultrapasse o que tem por todos os outros e que no seja consideradocomo o seu protector e o seu primeiro patrono depois de S. Dinis (").

    Contudo, no tardaria o retorno de S. Marcelo obscuridade quasecompleta. A partir do sculo XVIII e sobretudo aps a Revoluo, o seuculto foi vtima da depurao progressiva da devoo que, no meio pari-siense, se verificou por um enfraquecimento da piedade local; S. Marceloacaba por ser eclipsado sculos passados, por S. Diois e, em especial,por Santa Genoveva. O seu drago, conforme veremos, foi uma dasprimeiras vtimas da desgraa do santo que, a partir do sculo XIX,raramente citado entre os drages hagiogrficos e folclricos com osquais o santo partilhou por tanto tempo o seu destino!

    Porque tentar ento ressuscit-lo neste ensaio cientfico? Porque oseu caso, vulgar ao primeiro olhar lanado ao texto de Fortunato e sua sobrevivncia medieval, mostra-se, a um exame mais atento, com-plexo, instrutivo e talvez exemplar.

    Os dois aspectos sob os quais o drago de S. Marcelo aparece nahistria medieval nada tm de muito original primeira vsta. Nosculo VI, sob forma literria, no texto de Fortunato, parece no passarde um desses drages, smbolos do diabo e do paganismo, que servemde atributo a muitos santos e, especialmente, a santos-bispos evangeli-zadores. A partir de certa data, pouco verosimilmente anterior aosculo XII, e situada entre o sculo XII e o sculo XV, parece ento noser mais que um desses drages de procisso que a liturgia das Ladainhaspasseia um pouco por toda a parte.

    No entanto, no deixa talvez de ter interesse fazer, a seu respeito,algumas investigaes e formular, a propsito, algumas perguntas suscep-tveis de esclarecerem a histria da devoo, da cultura e da sensibilidadeno Ocidente medieval c, mais precisamente, num dos grandes centros decivilizao: Paris.

    O drago merovngio de S. Marcelo ser apenas o smbolo diablico.'

    relquias.

  • nftft nos interessa), ao tema do santo draconctono. No nos ocupa-remos dele mas reteremos para l das duas anedotas diferentes aidentidade serpente-dragao.

    Do mesmo modo, no entraremos no estudo pormenorizado dasantigidades parisienses sobre as quais este texto pode lanar algumaluz, por vezes bem fraca. As tradies de cultura suburbana, desepultura, exira-muros, de resto documentadas pela arqueologia e pelostextos, esto fora do nosso propsito. Mas os lodaais do baixo vale doBivre, que so o teatro geogrfico deste combate, e mais ainda a caracte-rstica local da aventura fornecer-nos-o matria para reflexo sobre ainterpretao deste relato.

    Poderamos tambm estudar a composio da histria e a hbilencenao deste episdio que, atravs do terreno, do pblico e dosgestos, faz deste combate um pedao de bravura onde se deleitaram umautor formado em Ravena e alguns leitores ainda saudosos dos jogosde circo e dos triunfos antigos, substituindo-lhes de boa vontade os de umteatro cristo. Apenas conservaremos, deste combate de gladiadorescristos, o tipo de relao que se define entre o santo e o monstro.

    Enfim, no faremos mais que notar a comparao que Fortunato fazdo episdio romano do drago dominado pelo papa Silvestre C1) e oepisdio parisiense aqui contado. Um historiador do sentimento nacionalpoderia talvez encontrar aqui uma das mais antigas expresses medievaisde um patriotismo cristo gauls. Este paralelo s nos interessa na medidaem que nos mostra tratar-se de um autor consciente (em certa medida)do aspecto tpico e no apenas particular da histria que relata.

    Antes de analisarmos o episdio do ponto de vista que nos interessao que significa o drago neste texto?, afastemos rapidamente umahiptese que tornaria intil este estudo: a historicidade do episdio aquicontado. Se existiu de facto o drago do qual S. Marcelo libertou osParisienses, estas pginas no tm objectivo. Por drago entendemosns uma serpente, um animal real mas assaz extraordinrio, nomeadamentepelas suas dimenses, para que se tenha podido transformar, na imaginaodos indgenas e da posteridade, num monstro que s algum dotado depoderes sobrenaturais poderia submeter milagrosamente.

    Esta hiptese, como se sabe, foi formulada pelo conjunto de casos damesma espcie e o drago de S. Marcelo recebeu, mesmo em Paris, pelomenos da parte do clero, uma interpretao concreta nesse sentido. Naverdade, havia, suspenso das volutas da igreja de Saint-Marcel, no bairroparisiense do mesmo nome, em vsperas da Revoluo, um animal eropa-

    C1) Sobre este episdio, cfr. W. Levison, Konstantinische Schen-kung una Silvester-Legende (Sudi e Testi 38). Roma, 1924, pp. 155-247;retomado em Aus rheinischer und frnkischer Frhzeit, Dsseldorf, 1948,pp. 390-465 e a G. de Tervarent, Ls Enigmes de iart du Moyen Age,2. srie, Arte flamenga, Paris, 1941, VIa. L pape au dragon, pp. 49-50.

    226

    lhado serpente, crocodilo ou lagarto gigante levado para ali por umviajante originrio da parquia (") e evidentemente destinado a dar aencarnao realista, cientfica, do drago de S. Marcelo. Recordemos queo clero do Antigo Regime favoreceu esta interpretao cientista, que osmitlogos e os folcloristas racionalistas dos sculos XIX e XX deviamretomar, e aplicando nomeadamente essa explicao do drago de S. Mar-celo, entre outros, Eusbe Salverte cujo estudo primitivamente inti-

    ' tulado Lendas da Idade Mdia serpentes monstruosas (IS), corri-gido sob O titulo Drages e .serpentes monstruosas que figuram emgrande nmero de relatos fabulosos ou histricos ('*), foi includo nasua obra sob o ttulo novo de Cincias Ocultas ou Ensaios sobre a Magia,os Prodgios e os Milagres, cuja.terceira edio, em 1S56, teve uma intro-duo de mile Littr, nome que s por si indica o esprito positivista (").Louis Dumont, entre outros ("), fez justia a esta teoria cientista, pseudo-cientfica, a que chama naturalista e que s se aplica, quando muito, a umnmero restrito de factos lendrios ('*). Os animais monstruosos, especial-mente os drages, so fenmenos lendrios reais. A sua explicao cient-fica no pode ser dada no mbito de um cientismo casual. So factoscivilizacionais que a histria no pode tentar explicar, a no ser peloauxlio da histria das religies, d ctnografia, do folclore. Provm elasdo mental colectivo (**), o que no quer dizer pelo contrrio, at que

    (**) Sobre o aparecimento destes animais exticos nas igrejas cfr.P. Perdrizet, op. dt., s. v. Mareei e E. Mle, L'Art religieux du XIV si-cle... cit. pp. 325-326. (Que eu saiba, nenhum documento permite afirmarque as igrejas da Idade Mdia eram autnticos museus de histria natu-ral este fenmeno parece-me posterior). E. Mle cita. J. Berger deXivrey, Traditions tratologiques, 1836, p. 484. Mas o grifo, suspenso davoluta da Sainte-Chapelle, no se encontra em Barthelemy o Ingls, nemna traduo feita por Jean de Corbichon para Carlos V. uma adendaao manuscrito transcrito por Berger de Xivrey, elaborado em 1512.

    (IS) Lettre adresse A/. Alexandre Lenoir au sujei de son Mmoiresur l dragon de Metz appel Graouilli, extrado do Magasin encyclo-pdique, v. I, 1812.

    ("J Em Revue encyclopdiaue, cadernos 88 e 89, t. XXX, 1826.(") Paris, 1829, Paris, 1842, antecedido pelo discurso de Franois

    Arago sobre o tmulo de Eusbe Salverte, de 30 de Outubro de 1839:Paris, 1856, com uma introduo de mile Littr.

    {") L. Dumont, La Tarasque. Essai de descrtption d'un faii locald'un point de vue ethnographique, Paris, 1951, pp. 213 e sgts.

    O talvez o caso do crocodilo de Nmes, que teria sido levado doEgipto pelos legioorios romanos. Mas esta explicao dada por L. J. B. F-raud, Superstitions et survivances tudies-u point de vue de leur origineet de leurs transformations, Paris, 1896, fica sujeita a cauo; porqueo autor um racionalista da linha de Salverte.

    (") Sobre a psicologia das profundezas cfr. as propostas dede explorao de A. Dupront, Problmes et mthodes d'une histoire deIa psychologe colective, Annaes, E. S. C.. 1961. Sobre a historicidadedo folclore, cfr. G. Cocchiara, Paganistas. Sopraviyenze folklorichedei paganesimo siciliano, Atti dei 1.* congresso internazionale di

    227

  • se situem fora do tempo e fora da histria. Porm, o nvel da sua reali-dade o das profundezas do psiquismo e o ritmo da sua evoluo crono-lgica no o da tradicional historia dos acontecimentos.

    O primeiro reparo que o texto de Fortunato sugere a ausnciaquase completa de toda a interpretao simblica por parte do autor. A im-portncia da vitria do santo sobre o drago de natureza material, psico-lgica, social, no religiosa. Tratava-se de reconfortar o povo aterrorizado(perterriti homines, hinc con/oratus populus). O bispo saurctonoaparece aqui no seu papel terrestre de chefe de uma comunidade urbanac no nas suas funes espirituais de pastor. o defensor nacional(propugnaculum patriae). o vencedor do inimigo pblico (inimicus publi-cas). O caracter religioso s aqui evocado para exprimir um temaquerido da hagiografia crist, desde finais do sculo IV: na desorgani-zao das instituies pblicas, o vir sanctus dissimula a sua carncia como uso das armas espirituais, privadas e no pblicas, mas postas dispo-sio da comunidade civil, servindo as arma prvata para proteger oseives, aparecendo o ceptro episcopal como arma de fora, graas transmutao material gerada pelo poder milagroso do santo No ceptrodo qual se mostrou leve a fora do poder taumatrgico e pelos frgeisdedos de Marcelo, dedos slidos como cadeias cuius moees digittfuerunt catenae serpeniis,

    Assim, em funo cvica e no religiosa qpe nos apresentadoMarcelo triunfando do drago. Quanto a este, a sua natureza to impre-cisa como a do episcopus Marcelo nos surge bem definida. Chamandoao drago trs vezes bestia, o que evoca o combate do bestiarius,do gladiador, uma vez belua que se refere enormidade e aocaracter selvagem, excepcional, do monstro, quatro vezes serpens, uma vezcoluber, que o equivalente potico de serpente, somente trs vezesdraco. Em contrapartida, certas particularidades fsicas do monstro sopostas em destaque: a corpulncia (serpens immanssimus, ingentem be-luam, vasta mole) e as trs partes do seu corpo: as curvas sinuosas (sinuo-sis anfrutibus) entre as duas extremidades nitidamente individualizadas: acabea e a cauda-, primeiro erguidas e ameaadoras, depois baixadase vencidas (cauda flagellante, capite suplici, blandiene cauda). O narradorinsiste mesmo num ponto determinado do corpo do monstro, a nuca,porque neste stio que se torna possvel a milagrosa domesticao: osanto dominador, aps ter batido com o ceptro, por trs vezes, na cabeado animal, domina-o, passando-lhe a estola em volta da nuca {missa ncervtce serpeniis orario). Pormenorjts decisivos, pois definem o simbo-lismo do animal, a herldica do seu corpo e so, ao mesmo tempo, um

    studi sulla Sicia antica, Studi pubblicati dalTIstituto di Storia AntkadcirUniversit di Palermo, X-XI, 1964-1965, pp, 401-416.

    225

    rito e um cerimonial de domesticao. Voltaremos a abordar esteassunto C1). r

    Aparece neste reljto uma frase que nos obriga a procurar, apesarde tudo, para l do situbolsmo prprio do animal e da sua domesticao,um significado oculto, "de fado diverso do que nos foi descrito: assim,ao teatro espiritual, aps olhos do povo espectador, s ele combateu o drago. O espectculo que nos foi oferecido , simplesmente, arepetio de um oufro_ espectculo mais verdadeiro. Deixemos o teatromaterial para nos transportarmos ao teatro espiritual.

    Entre a morte de S. Marcelo c a redaco da soa Vita por Fortunato,abandonando provisoriamente o problema de saber se, de meados dosculo V a finais do sculo Vi, e da tenda oral at biografia literria,no h mudana de interpretaoque podem representar ento esteteatro e este combate?

    Saindo a obra de Venncio Fortunato de um gnero literrio bemdefinido na sua poca a hagiografia (") , devemos primeiramente pro-curar o significado do combate contra o drago na literatura crist c,mais precisamente, na hagiografia de finais do sculo VI. Tentaremosdepois ver de que forma este lugar-comum hagiogrfico pode aplicar-sea uma histria que Fortunato teria recolhido no seu inqurito parisiense.

    Sendo a Bblia a grande fonte de toda a literatura crist, procuremosnela primeiro drages pu serpentes susceptveis de aparecerem tambmcomo drages C')- No Antigo Testamento, so muitas as serpentes-dragoes.Destacam-se trs delas: a serpente-tentadora da Gnese (III) C*), Bebe-moth (*) e Leviatan (**),. tratada com mais dureza por Isaas (XXVII, 1),que os identifica como serpentes, o que no havia acontecido com o Uvrode Job (XL-XLI), onde"no lhes dado nenhum nome de animal O- Nos

    (") A mportncia-destes pormenores fsicos foi particularmente evi-denciada por L. Dumont-op. cit. (no rito, pp. 51-

  • Salmos (M), agitam-se drages menos individualizados. Em resumo: se osEvangelhos ignoram o drago, o Apocalipse d-lhe um impulso decisivo.Msse texto, que ir oferecer imaginao medieval o mais extraordinrioarsenal de smbolos ("), o drago recebe, com efeito, a interpretaoque se mpor cristandade medieval. Este drago a serpente da Gnese,6 o velho inimigo do homem, o Diabo, Santans: O grande drago,a antiga serpente, a que se chama Diabo ou Santans (XIII, 9). Este dra-go ser o drago eclesistico. Relegados para o escuro os outros dragesde que o Apocalipse no negava a existncia, torna-se o grande drago,o drago por excelncia,, chefe de todos os outros a encarnaode todo o mal do mundo, Satans.

    A interpretao apocalptica do drago tomar-se-ia, em finais dosculo VI, a interpretao habitual dos autores cristos? C*) Iriterrogue-

    Paris, 1955, p. 167); 2) A cauda (Bhmoth: stringit caudam suam quasicedrum, Job, XL, 12); 3) O pescoo (e mais geralmente a cabea emLviathan: n colo ejus morabitur fortitudq, Job, XLI, 13). Sobre osdrages, e especialmente o drago de Daniel, nos Apcrifos bblicos,cfr. F. Graus, op. cit., p, 231, n. 204 e R. Merkelbach, op. ci., col. 247. Por exemplo, Ps. LXXIII, 13; Ps. XC 13; Ps. CXLVIII. 7.

    (") Apocal., XII, 3. Sobre comentrios medievais do Apocalipseconsultar-se- o inestimvel repertrio de F. Stegmller, Repertoriumbibcum medii aevi. M. R. Sanfaon, professor da Universidade Lavaide Quebeque, e G. Vezin preparam trabalhos sobre a iconografia doApocalipse. Os drages do Apocalipse foram utilizados para fins ml-tiplos: morais, estticos, polticos.(^) H pouco que tirar no artigo dedicado ao drago (H. Leclercq)do Dictionnaire d'Archologie chrtienne et de Liturgie, IV/2, 1921,coL 1537-1540, tributrio de trabalhos antigos, de resto meritrios no seutempo e que permitem seguir o avano historiogrfico do problema.Segundo Dom Jrme Lauret, por exemplo em Sylva allegorarumtotius sacrae Scripfurae, Veneza, 1575, para os pais da Igreja, o drago6 uma espcie de serpente de grande dimenso, que vive na gua, pest-lencial e horrvel; os drages significam habitualmente Satans e os seuscomparsas; Lcifer chamado grande drago. Com Marangoni, Dellecose gentilesche e profane trasporate ad uso e ad ornamento dete chiese.Roma, 1744, estabeleceu-se a ligao entre drages pagos e dragescristos por um lado, os textos e os documentos arqueolgicos e documen-tos iconogrficos por outro. O mtodo da histria das religies e da antro-pologia nascentes encontram-se em A. Longprier. Sobre os dragesda Antigidade, a sua verdadeira forma, e sobre os animais fabulosos daslendas, em Comptes rendus de Ia T session du Congrs internationald'anthropologie et d'archolog'te prhistorique, 1867, pp. 285-286 e emM. Meyer, Ueber die Werwandtschaft hednischer und christlichen Dra-chentodter, in Verhandlungen der XL Versammlung deutscher Philologie,Leipzig, 1890, pp, 336 e sgts. Este artigo tem tambm o mrito de chamara ateno para o texto de Gregrio o Grande (Dialogi, Ti, c. XXV):De monacho qui, ingrato eo de monasterio discendens, draconern contrase in itinere invenit que mostra o uso antigo do drago na simblicadisciplinar beneditina e na utilizao poltica do simbolismo do dragona poca carolngia, a partir de um texto da Via de santo Eucher (M.GH,Script. Rer. Afer., VII, p. 51), no mbito da campanha eclesistica de

    mos duas autoridades: Santo Agostinho e, cerca de meo sculo depoisde Fortunato, Isidoro de Sevilha, o primeiro enciclopedista da IdadeMdia. De facto, permitir-nos-emos estender este rpido inqurito atBede (*), o ltimo fundador da Idade Mdia, segundo opinio deK. Raod, pois os clrigos permaneceram, at meados do sculo VIU,no mesmo mundo cultural. Santo Agostinho d pouca ateno ao drago.S quando a palavra aparece na Bblia, que Santo Agostinho se senteobrigado, como exegeta, a explicar-lhe o sentido. E sobretudo no seuComentrio dos Samos (Enarraio in Psalmus) que ele defronta o drago.No ignora a identificao drago-satans e ela fornece-lhe a explicaodo Sairo XV, 13, Vencers o drago e o leo* e no Salmo CUI, 27, Odrago que imaginaste para o enganar. Agostinho v, neste drago, onosso velho inimigo (w). Porm sente-se mais embaraado para inter-pretar os drages do "Salmo CXLVIII. Aqui, na verdade, o Salmista,exortando toda a criao a louvar o Senhor, convida os drages a junta-rem-se ao coro destes louvores.

    Louvai o Senhor, drages da terra C*)e vs todos, voragens (Salmo CXLVm, 7).

    Agostinho, consciente da contradio que haveria em mandar quelouvassem a Deus criaturas cuja natureza malfica e rebelde pordemais conhecida, sai-se dela explicando que o Salmista apenas cita aquios drages como os maiores seres vivos terrestres criados por Deus(majora non sunt super terram) e que so os homens, cheios de admiraopelas proezas de Deus, capazes de criar seres to considerveis em tama-nho, quem associa os drages ao hino que o mundo, como existncianica, dirige ao Senhor ("). Aqui, apresenta-se pois o drago sob umaspecto essencialmente realista, cientfico: o maior animal.

    Sem dvida que os comentadores do Apocalipse da Alta Idade Mdiaforam naturalmente levados a identificar o drago com o diabo. Encon-tramos, por exemplo, em Cassiodoro ("), Primsio, bispo de Adrumete,

    descrdito contra Carlos Martel, espolador das igrejas: em 858, Lus oGermnico recebe, dos bispos das provncias de Reims e de Rouen,o aviso de que o seu trisav Carlos Martel certamente um condenadoporque santo Eucher d'Orlees o viu um dia no meio do inferno e umdrago se escapava do seu tmulo tema cujo parentesco com o dragoda Via S. Marcelli surpreendente (segundo A. de Bastard, Rapportsur une crosse du XII" sicle, em Bulletin du Comit de Ia langue. de1'histoire et ds arfs de Ia France, 1860, t. IV, pp, 450 e 683, n. 206).(*) Bede o Venerando, monge e historiador ingls de saber enciclopdico (672ou 673). W J T.)

    (*) Santo Agostinho, Enarraio in Ps. CHI, 27, PL, 36-37, 1381-1383.(*) Trata-se aqui do drago terrestre.O Santo Agostinho, Enarratio in Ps. Cffl, 9, PL, 36/37, 1943.(*) Cassiodoro, Complexiones in Apocalypsim, PL, 70, 1411; c Expo-

    siiones in Psalterum, ibid., 531 (comentrio do Ps. LXXfll, 13).

    230 231

  • falecido em 586("), e em Bede, a dupla identificao do diabo com aserpente da Gnese, por um lado, e, por outro, com o drago do Apo-calipse (**)

    No entanto, em Isidoro de Sevilha, o drago essencialmente tratadode maneira cientfica, no simblica. o maior de todos os animais:o drago a maior de todas as serpentes e de todos os animais daterra ("). Dois porraenores importantes definem-lhe os hbitos: um ani-mal simultaneamente subterrneo e areo, .que gosta de deixar as cavernasonde se aoita para voar pelos ares; a forca que possui no lhe residena goela nem nos dentes, mas na cauda (*"). A propsito do drago,preocupam Isidoro dois problemas cientficos: o primeiro reside naquiloque distingue o drago dos outros animais semelhantes e, em primeirolugar, da serpente. A resposta parece clara. Isidoro, utilizando sobretudoVirglio, estabelece a diferena entre anguis, serpens e draco: anguls vivena gua, a serpente na terra e o drago no ar (w). Mas Isidoro esbarraento com o segundo problema: o do habitai do drago. Ele no pode, comefeito, ignorar a multiplicidade de elementos onde habita e se move o dra-go e, em particular, as suas ligaes com a gua, que no aparece emnenhumas das duas definies dadas atrs. ento levado assim adistinguir um tipo * especial de drago: o drago marinho, draco mari-nus (w).

    Em contrapartida, com Isidoro, o drago escapa ao snbolismomoral e religioso. Numa passagem das Sententiae (III, V, 28, PL, 83, 665),Isidoro enumera as formas animais que o diabo toma, consoante encarnatal ou tal vcio ou pecado mortal: animal, sem preciso, quando sefaz luxria (luxuria). serpente (serpens) quando se transfoima em cupidezou malcia (cupiditas ac nocendi malitia), ave (avis) quando tem orgulho(superbia runa) nunca drago. Contudo, Isidoro, sbio completo, noignora outros aspectos pouco teis do drago, pensamos ns, para elucida-o do texto de Fortunato, mas muito preciosos para o conjunto do dos-'sier que tentamos reunir e apresentar. Isidoro conhece trs outros drages:o drago-tutelar que vigia as mas de ouro do pomar das ilhas Hespt

    (") Primsio, Commeniarium in Apocalypsim, PL. LXVin, 873-875*3(M) Bede, Hexaemeron, PL, 91, 53; Commentari in Pentateuchum.j

    ibid., 210-211; Explanatio Apocalypsis. ibid.. 93, 166-167. l (ai(") Isidoro, Etymologiae, XII, IV, 4, PL, LXXXH, 442.

    ; lVi(") Qui saepe a speluncis abstractus fertur in aerem, concitaturquepropter eum aer... Vim autem non in dentbns, sed in hbet, et verbere,potius quam rictu nocet (ibid.).

    (w) Isidoro, Differentiae, I, 9 (PL, LXXXIH 16): in mari angues,in terra serpentes, in templo dracones. Isidoro reproduz de facto o.comentrio de Srvius de Virgflio, Eneida, 2, 204.

    C1) Isidoro, Etymologiae, XH, IV, 42, PL, LXXXII, 455. .-.U

    232

    ('*) (*); o drago-estandarte que figura nas insgnias militares e deque Isidoro, lembrando o uso que deles faziam Gregos e Romanos, remontaas suas origens vitrja de Apoio sobre a serpente Pito C1*) (**); odrago-anular que, mordendo a cauda, representa o ano, o tempo circular,o tempo redondo, o tempo do eterno retorno e cuja inveno Isidoroatribui s velhas civilizaes e, explicitamente, egpcia (").

    Isidoro conhecia, enfim, o combate de um bispo contra um dra-go. O caso que cita o de Donato, bispo de Epro, no tempo dosimperadores Arcdio e Honrio, que teria morto um enorme drago,cujo hlito empestava o ar e cujo cadver teria sido com dificuldadepuxado por oito juntas de bois at fogueira onde foi queimado C41)-Isidoro no d qualquer interpretao simblica deste alto feito.

    muito difcil elaborar uma lista cronolgica dos combates de san-tos e, mas especialmente, de bispos contra os drages. Os trabalhosexistentes so, a um tempo, imprecisos e sujeitos a garantia ("), O histo-

    (") In quarum bortis fingunt fabulae draconem perviglem ureamala servantem (Etym.. XIV, VI, IO, PL, LXXXII, 14).

    (') Ilhas fabulosas (Canrias?) do Atlntico onde as filhas de Atlas possuamum pomar que dava magas de ouro, guardadas por um drago de 100 cabeas. (W. da T.)

    O*) Draconum signa ab Apolline morte Pythonis serpentis inchoatasunt Dehinc a Graecis et Romanis in bello gestari coeperunt (Etym.,XVin, III, 3, PL, LXXXU, 643).

    (**) Serpente monstruosa, morta por Apoio no monte Parnaso. Apoio, emrecordao do feito, fundou os Jogos Pfticos, celebrados de 4 em 4 anos. (ff. da T.)

    (") Annus quasi annulus... Sic enim et apud ^Cgypts indicabaturante inventas ltteras, picto dracone caudam suam mordente, quia in serecurrit (Etym., V, XXXVI, 2, PL, LXXXH, 222). Sobre o dragoenrolado na arte das estepes e na arte merovngia, cfr. E. Salin, LaCivilisation mrovingienne d'aprs ls spultures. ls textes et l labora-toire, IV, Paris, 1959, pp. 241-244, onde o autor, na peugada de J. Grimm,d a este tema a interpretao pouco verosmi], e em todo o caso desviada,do drago guardador-de-tesouros. Cfr. M. Eliade, L Myhe de l'EernelRetour: Archtypes et rptition, Paris, 1949.

    (") Per idem tempus Donatus, Epiri episcopus, virtutibus insignisest habtus. Qui draconem ingenem, expuens in ore ejus, peremit, quemocto juga boum ad locum incendu vix trahere potuerunt, ne aeremputredo ejus corrumperet. (Chroniscon, 107, PL. LXXX1H, 1051). En-contra-se tambm aqui, num contexto diferente, mas mais explicitamentediablico, um drago na Vita de S. Cesrio d*Aries (ed. G. Morin, Mare-dsous, 1942, t, H, pp. 299-300); quando Cesrio, depois de ter deixadoo mosteiro de Lrins, por razes de sade, se entrega em Aries cinciaprofana, adormece uma noite sobre um livro e v um drago que lhedevora o brao.

    CO Cfr. os trabalhos citados no Dictionrure d'Archologi,.. cft.,'e mencionados na n. 28. lamentvel que a obra de C G. Loomis, WhteMagic. An Introduction 1o ihe Folklore of Christian Legend, Cambridge,Mass., 1948, seja dificilmente utilizvel pela sua confuso e principal-mente pela falta de distines cronolgicas, p P. Delehaye, cujos trabalhossobre a hagiografa permanecem fundamentais apesar da sua problemtica

    233

  • riador de factos de civilizao tradicional dificilmente abre caminho entreos positivistas que desprezam tais fenmenos ou lhes aplicam mtodos ina-dequados e os historiadores que esquecem a cronologia, entre o desprezoe a ingenuidade, a erudio mop e a curiosidade perturbadora. A histriadas mentalidades, das sensibilidades e das crenas move-se em tempos lon-gos, embora submetidos a uma diacronia, cujos ritmos so especiais. Limi-temo-nos, neste esboo, a alguns pontos importantes de referncia.

    A vitria do santo (e, repetimos, sobretudo do santo-bispo) sobre odrago remonta s fontes''da tradio hagiogrfica crist. Com efeito,encontramo-la na primeira hagiografia que, na Via de Santo Ambrsto,escrita por Paulno de Milo, depois na biografia de S. Martinho, da auto-ria de Sulpcio Severo, servir de modelo a todo o gnero, como a vidade Santo Antnio, escrita por Santo Atanso ("). A encontramos ainterpretao diablica do drago. Mas, seja porque a atmosfera eremticada Historia monachorum de Atansio tenha desconcertado a cristandadeocidental, seja porque o desaparecimento do conhecimento do grego naIgreja latina tenha limitado, pelo menos por algum tempo, a influncia daVita de Antnio, este episdio, entre outros, no parece ter tido, no Oci-dente, grande xito nem drecta influncia no S. Cesrio e o drago. Onico episdio do santo saurctono que parece ter tido grande repercussona Alta Idade Mdia foi o do drago do papa S. Silvestre, que Fortunatoprecisamente evoca e que d lugar a uma comparao com vantagem paraS. Marcelo.Este episdio da lenda de Silvestre atraiu infelizmente a atenodos historiadores, sobretudo ligados ao papel e ao momento histricosde Silvestre ("). Papa no tempo da converso de Constantino, orientou,por tal facto, os historiadores para a interpretao poltica do seu ponti-ficado. Neste contexto, o combate contra o drago tornava-se natural-mente o smbolo da vitria contra o paganismo. No entanto, uma outra

    '-' interpretao mais romana que ecumnica e que mesmo em Romaparece ter tido, na Idade Mdia ("), mais interesse que a interpretaocatlica coloca este milagre num novo contexto. Nesta perspectiva,o drago de Silvestre assemelha-se a uma serpente gigantesca que deu

    por vezes ultrapassada, no abordou sistematicamente este tema. SegundoF. Graus, op. ei/., p. 231, n. 203, um estudo de conjunto do tema dodrago e do combate contra o drago foi recentemente elaborado porV. Schirmunski (cfr. Vergleichende Epenforschung I Deutsche Ak. derWiss, zu Berlin. Verbff. ds Instituis fr Deutsche Volkskunde,vol. XXIV, Berlim, 1961, pp. 23 e sgts., que no pude consultar).(") PG, XXVI, 849. Sobre a influncia da Vie de St. Antoine porAtansio sobre a hagiografia ocidental da Alta Idade Mdia, cfr. S. Caval-lin, Literarhisorische und extkritische Studen zur Vita S. Caesar Are-latensis, Lund, 1934.(") o caso do estudo de W. Levison, citado no n. 13.

    O Cfr, A. Graf, Roma netta memria e nelVimaginazione dei mdioevo, Turim, 1923, pp. 177 e 442.

    234

    costa durante uma inundao do Tibre e que evocaria, de facto, opapel do bispo-papa na luta contra as calamidades naturais em Roma (").Este episdio insere-se pois .numa tradio romana, a dos prodgiosligados s calamidades naturais (") e prefigura um episdio da carreirade Gregrio, o Grande: o episdio do monstro encalhado na margemdo Tibre, numa inundao em 590, no preciso momento em que, segundoo testemunho de Gregrio de Tours, Gregrio, que j se fizera notar noseu papel social, nomeadamente no domnio dos abastecimentos, se tornabispo de Roma e inaugura o seu pontificado,' protegendo a populaoromana das calamidades naturais (inundao e peste) e suas conse-qncias C*). ;

    Portanto, em finais do sculo XI, no se fixou o simbolismo cristodo drago nem do combate do santo-bispo contra um drago. Ele tendea identificar, no sentido da exegese do Apocalipse, o drago-serpentecom o diabo, e dar, vitria do santo, o sentido do triunfo sobre omal, quer dizer, nesta fase da cristianizaco do Ocidente, toma o sentidode um episdio decisivo na vitria do cristianismo sobre o paganismonuma regio e, mais especialmente, numa civttas. Porm, ele deixa aindatransparecer outras tradies, nas quais diferente o significado dodrago. Estas tradies so as que o prprio cristianismo herdou. Elas soem geral j marcadas por evolues, contaminaes, toda uma histriaque torna difcil a sua anlise. Todavia vemos que Isidoro de Sevilhaj o fizera podemos tambm tentar distinguir nelas diversas contri-buies culturais: a herana greco-romana. a herana germano-asitica,a herana indgena.

    Os elementos que extramos desta imensa e complexa herana so,bem entendido, o resultado de uma seleco, de uma escolha. Espe-ramos, no entanto, no falsear o significado das tradies apontadas.

    Na tradio greco-romana ('"), parecem-nos essenciais trs aspectosligados ao drago c ao herico combate contra ele. O primeiro aparece

    O Cfr. Ch. Cahier, Caractristiques ds saints dons Vart populaire,1867, p. 316 e G. de Tervarent, op. c/f l, n. 13, p. 50. curioso queSilvestre e Marcelo foram ambos de resto gratificados com o mesmomilagre, semelhante ao milagre do combate contra o drago: ambos teriamdominado um touro furioso tresmalhado (cfr. para Silvestre, La Legendedore e para Marcelo, J. . Dulaure, Histoire physique, civile et moralede Paris, 1837, I, pp. 200 e sgts.). Mera coincidncia, recordao comumde luta contra o culto de Mithra, simbolismo mais vasto ligado ao sim-bolismo arcaico do touro?

    (4I) CfiyR. M. Grant, Miracle and natural Law in graeco-roman andearly christian thought, Amesterdo, 1952 e R. Bloch, Ls prodiges dons{'Anliquit classique. Paris, 1963.

    (") Gregrio de Tours, Historia Francorum, X, I.

  • atravs dos ritos, das crenas e das lendas ligadas fecundao. Sabemosa importncia que tal prtica tomou na poca helenstica, prtica deque o Asclpeon (*) de Epidauro foi o grande centro, e se prolongoupelo mundo romano sobretudo na parte oriental ("). Este desejo, numagrvida sagrada, uma viso ou um sonho portadores da resposta que al-gum sofredor ou inquieto ps ao deus, no era mais que o prolongamentoda tradio de relaes sexuais sobrenaturais entre uma mulher e um deus,que geravam um heri. A aparncia tradicional do deus fecundador era ade uma serp?nte-drago. Alexandre o mais clebre filho destas npcassagradas. Mas Suetnio (**) lembra que Apoio, com a forma de drago, sedeitou com tia e praticou no seu templo a fecundao e assim gerouAugusto ("). Em volta de Asclpo, revestindo a forma de drago, eda tradio de Hipcrates se desenvolveu, em Cos (1J), a lenda do drago.O que aqui nos importa a ligao do drago com o mundo nocturnoe onrico, a mistura de desejo e de temor, de esperana e de medo,em que mergulham as suas aparies e os seus actos. A psicanlise deviainteressar-se por tais problemas. A eles voltaremos (**).

    O segundo aspecto o do significado de libertao de uma situaodo mito grcco-romano do deus ou do heri saurctono. Mesmo que ainstalao de Apoio em Delfos, aps a vitria sobre a serpente Pto, trans-

    (") Cf r. L. Deubner, De incubatione, Giessen, 1899.M. Hamilton,tncubation for the cure of Disease in pagan temples and chrstian churchestLondres, 1906. P. Saintyvcs, En marge de Ia Legende dore. Songes, mira-cies et survvances, Paris, 1930, pp. 27-33.(") Historiador latino (cerca de 75 a cerca de 160), autor de biografias dosDoze Csares, recolha de anedotas histricas, que revelam grande investigao depormenores e abundncia de informaes.

    C1) Suetnio, Divi Augusti Vita.,94.C1) K. Herquet, Der Kcrn der rhodischen Drachensage, in Wochen-

    blatt ds Johanniterordens Balley, Brandeburgo, X, 1869, pp. 151 e sgts. R. Herzog, Kos. Ergebnisse der deutschen Ausgrabungen und Forschun-gen. I. Asklepieion, Berlim, 1952.(**) Quanto s interpretaes psicanalticas da incubao cfr. a tra-dio ortodoxa freudiana, E. Jones, On the Nightmare, 1949, pp. 92-97(e sobre as incubi medievais: ibid., passim); por um discpulo de JungC A. Meier, Antike Inkubation und modeme Psychotherapie (Studienaus dem C G. Jung-Institut, I), Zurique, 1949. Sobre a interpretaopsicanaltica e antropolgica do simbolismo do drago e dos matadores Ados drages, no me foi possvel consultar os trabalhos de G. Rheim, '*Dragons and Dragon Killers, em Ethnographia, Budapeste, 22, 1911,Dratfien und Drachenkmpfer, Berlim, 1912; The Dragon and theHer, em American Imago. I, 1940. Na obra Psychoanalysis and Aniro-pology, Nova Iorque, 1950, G. Rheim, que define, segundo Freude Jones, o smbolo como sendo the outward representative of a latentrcpressed content (definio cuja utilizao poderia renovar o estudodo simbolismo medieval) tratou do simbolismo sexual da serpente naAntigidade (pp. 18-23) e sugeriu o do drago (cfr. a frase de um primitivo,australiano: your penis is ke a muruntu drago, ibid., p. 119).

    236

    vase o quadro local O, e mesmo que o combate de Perseu contra o dragoque retm Andrmeda prisioneira no esteja directamente ligado fundao de Micenas, o mito de Cadmo (*), por exemplo, serve paraesclarecer o alcance da vitria sobre um drago. Ela permito e significao estabelecimento de uma comunidade em determinado local. Ela um rito de fundao urbana ou de valorizao de uma terra. O drago, aqui, o smbolo de foras naturais que precisam ser dominadas. Se amorte necessria, no o s porque com ela se afasta um obstculo,mas porque ela fecundante. Cadmo semeia, no territrio da futuracidade de Tebas, os dentes do drago imolado.

    Para l da herana greco-romana, projecta-se a contribuio dasculturas orientais que vieram irrig-la. Ora, na Babilnia, na sia Menor,no Egipto, podemos seguir a evoluo do simbolismo do drago. G. ElliotSmith traou-a t") num estudo 'fundamental. O drago, na rea culturalistico-egpcia, era primitivamente a personificao das foras da gua,i uma tempo fertilizante e destruidora. O elemento principal nos poderesJos drages era o domnio da gua: benevolentes, davam as chuvas cas fecundantes inundaes fluviais; hostis, desencadeavam dilvios e inun-daes devastadoras. De incio, arrebatou-o o papel positivo dos drages,criaturas benvolas, personificaes e smbolos de deuses da fecundidadee de heris ou reis civilizadores; assim acontecia com o drago queencarnava Tiamat, uma das formas da Deusa-Me, e o drago marinholigado ao nascimento de Afrodite, ela prpria uma das formas da Deusa--Me. Mais tarde o drago desclassifica-se e acaba por tornar-se o smbo'odo mal. No Egipto, identifica-se com Set, o inimigo de Osris e deHrus, o assassino de Osris e a vtima do filho de Osris, Hrus. Destamaneira, a racionalizao egpcia precede a racionalizao crist. Deresto, no Egipto, podemos observar, por um lado, a passagem de Hrusa Cristo e, por outro, de Set a Satans. Mas o que nos interessa aqui,apesar do parentesco com a serpente, que o animal ctoniano (**) porexcelncia, o drago, aparece fundamentalmente ligado s foras dasguas.

    *-_

    (") Cfr. J. Fontenrose, Python. A sludy of Detphic Myth and itsorigins, 1959.- -(*) Dos dentes do drago sacrificado por Cadmos nasceram, segundo a lenda,

    homens armados que se mataram uns aos outros, ficando apenas cinco, que foramos nobres de Tebas, na Bccia. (tf. da T.)

    (") G. Elliot Smith, The Evolution of the dragon, Manchester, 199.M. Eliade, que muito insistiu na ligao das serpentes e dos drages comas guas, dos drages como emblemas da gua (Trait... c/Y., pp. 179--182), no cita este trabalho.

    (**) Nome dado a diversas divindades infernais. (N. da T.)

    237

  • O Extremo Oriente 6 outra grande ptria do simbolismo do drago.Parece ter atingido directamente o Ocidente cristo muito mais tarde, nosculo Xm na opinio de Jurgts Baltrusaitis (") Na China, c drago pa-rece, sobretudo, ligado ao mundo uraniano, ao mito solar, tem asas. Mas,ao longo das estradas das estepes, este drago celeste confunde-se, maisou. menos, com a serpente ctoniana e com o drago, ctoniano tambm,guardio de tesouros e aparentado com o grifo grifo que as transfor-maes do sincretismo simblico animalstico dotaro igualmente deasas C')- O importante que estes drages do Extremo Oriente, cami-nhando ao longo das estradas das estepes, chegam ao Ocidente na pocamerovngia. douard Salin, desenvolvendo uma idia de Forrer ("), escla-receu, atravs de uma anlise das formas estticas da arte merovngia,esta culminncia ocidental do drago asitico e sublinhou as duas carac-tersticas principais do seu simbolismo a polivalncia e a ambigidade:as formas do drago roerovngio so muito diversas e o seu simbolismono o menos; traduz, na verdade, e com toda a verosimilhanca, crenasigualmente diversas, ao mesmo tempo que reproduz divindades muitodiferentes (**)- E mais: quase sempre de caracter solar quando se apa-

    (") J. Baltrusaitis, L Moyen Age fantastique. Antiquits et exotismesdons /'ar/ gothique, Paris, 1955, cap. V. Asas de morcegos e Demnioschineses, pp. 151 ss.: mesma evoluo pode ser seguida quanto aodrago, uma das encarnaes do diabo. Na arte romnica, uma serpentesem asas nem patas ou um pssaro com cauda de lagarto. Na arte gtica,aparecem asas membranosas. Uma das suas primeiras figuraes, nestenovo aspecto, pode assinalar-s*. no Psauier de Edmond de Laci (m. 1258,Belvoir Castle) (p. 153). Se as asas de morcegos se desenvolvem comefeito no sculo XIII e se os modelos chineses puderam ter influncianesta evoluo, o drago romnico pode perfeitamente ter asas e patas,tal como o que se v na parede sul do baptistrio de S. Joo de Poitiers,datado, mais ou menos, do ano 1120 (P. Deschamps e M. Thibout, LaPeinture murale en France. L Hau Moyen Age et Vpoque romane.Paris, 1951, p. 94). Acerca dos drages chineses e asiticos, especialmentehindus, cfr. M. Eliade, Trait... pp, 180-182, e a bibliografia, pp. 186-187,a que podemos acrescentar, entre outros, H. C. du Bose, The Dragon,Image and Demon. Londres, 1886; J. C. Ferguson, Chinese Mythology,Boston, 1928; R. Benz, Der Orientalische Schlangendrache. 1930; F. S. Da--niels, Snake and Dragon Lore of Japan, em Folklore, 71, 1960, pp. 14>-g-164, Cfr. n. 133 infra. --*(**) Vemos, por exemplo, o tentador sob a forma de um grifo alado |por cima das portas de bronze da catedral de Hildesheim (1015). Cfr.',H. Leisinger, Bronzi Romanici. Porte di Chiese neWEuropa medioevale,'Milo, 1956, ill. 19. Acerca do simbolismo do grifo, cfr. K. Rathe, Der.^Richter auf dem Fabeltier, in Festschrift fr Julius von Schlosser. 1927&pp. 187-208 e F. Wild, Greips-Greif-Gryphon (Griffin). Eine sprach-kufur~%und stoffgeschichtliche_Studie, Viena, 1963. -.,>'](") Forrer, A props d'un bijou dragon maill trouv Meinau, em Cahiers d'archologie et d'histoire mrovingienne. cit., lp. 241. "^("*) E. Salin, La civilisation mrovingienne, cit., IV, p. 241.

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    rentam com o grifo, e de caracter ctoniano quando saram da serpente;ora benficas, ora malficas, as representaes do drago surgem, decidi-damente, como herana de crenas quase to velhas como o mundoe espalhadas atravs da Eursia, do Oriente at ao Ocidente! (")

    Neste complexo de simbolisraos e de crenas, tentaremos retirara parte que cabe s tradies indgenas, ao lado da herana greco-romanae do contributo asitico-rabe. Se considerarmos o inundo cltico noseu todo, vemos que em certas reas fervilham os drages C1) e que,por exemplo na Irlanda, os santos foram especialmente criados paralutarem contra eles (") Mas o universo gauls das crenas e dos smbolosno aparece rico de drages, embora tenha partilhado, certo, a serpentectoniana, atributo de deuses e de deusas ("), morta por Hrcules gauls,Smrtrios, o Provedor ("). f

    Mas, por detrs destas heranas, no ser, sobretudo, a serpente--drago quase universal em todas as crenas e mitos primitivos? O dragomerovngio no ser, principalmente, um monstro folclrico (6S), ressur-gido, nesse intervalo, das crenas onde se apaga a cultura paga, semque o sistema cultural cristo esteja implantado verdadeiramente? (*T) SeFortunato esboa, precisamente, a interpretao crist, eclesistica, dodrago de S. Marcelo, no teria este, na tradio recolhida porFortunato, um outro significado? No deveramos tentar descobrir estesignificado nas profundezas de um folclore renascente, embora carre-

    C1) Ibid., pp. 207-208.(**) Cfr. A. Lenoir, Mythologie celtque. Du Dragon de Metz

    appel GraouiUi..., em Mmoires de VAcadmie celtique, t. II, 1808,pp. 1-20; J. F. Cerquand, Taraois et Thor, em Revite celtique, t. VI,1883-1886, pp. 417-456; G. Henderson, Celtic Dragon Myth, Edimburgo,1911.

    (") Cfr. H. J. Falsett, Irsche Heige und Tiere in mittelalterlichenlateinischen Legenden, Bona, 1960; F. Graus, op. cit., p. 231, n. 203, dcomo exemplo de combate de um santo com um drago, na hagiografiairlandesa, episdios da Vita s. Abbani, c. 15, 16, 18, 24 (em C. Plum-mer, Vitae Sanctorum fiiberniae, I, Oxford, 1910, pp. 12, 13, 15, 18 ss.).

    C4) Cfr. A. J. Renach, Divinits gauloises au serpent, na Revuearchologique, 1911; P. M. Duval, Ls Dieux de Ia Caule, Paris, 1957,p. 51.

    C1) Cfr. P. M. Duval, L dieu Smertnos et ss avatars gallo--romains, em tudes celtiques, VI, 2, 1953-1954.

    (T) Sobre o drago ve p combate contra o drago, no folclore uni-

    versal, cfr, referncias abundantes de Stth Thompson, Motif-Index of Folk--Uterature, Copenhaga, 1955-1958, t.. I, pp. 348-355. Estes motivos apa-recem com a referncia B. 11; mas" encontraremos o drago e motivosprximos noutras referncias, tais como A. 531, D. 418. I. 2. (Trans-forma t ion: snake to dragon) H. 1174.

    (") Cfr. J. L Goff,' Culture clricale et traditions folkloriquesdans l civilisation mrovingienne, em Niveaux de cidture et groupestociaux, Cotquio organizado pela Escola Normal Superior, Paris, (1966),1968 e, aqui, (207-219).

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  • gado de elementos folclorizados das culturas anteriores e, sobretudo,actualizado por situaes histricas novas? No fundo da lenda recolhidapor Fortunato h a imagem de um taumaturgo que dominou forastemveis. Tais foras relacionam-se com a natureza. Mas o monstro emquesto oscila entre um animal ctoniano (serpente) e um animal decaracter aqutico, um drago a quem o santo ordena que desapareano deserto ou no mar. Certamente que no contexto geogrfico parisienseo mar vem de um modelo hagiogrfico copiado por Fortunato, semgrande esforo de adaptao. Mas este decalque no carecer, assimmesmo, de ser explicado pelo seu relativo acordo com um contextosemelhante contexto aqutico, do qual G. Elliot Smith mostrou ocaracter fundamental no simbosmo do drago?

    Se do cenrio passarmos aos heris, no aparece aqui o santo nopapel dos heris saurctonos, libertadores e civilizadores? Mostra-o (**)todo um vocabulrio de heri cvico, mais do que religioso. Quanto aodrago, se foi eliminado como um perigo, um objecto a recear, no significativo que tenha sido afastado, em vez de morto tendo sidoo monstro rapidamente afastado, no se encontrou mais vestgio dele?O combate, descrito por Fortunato, no um duelo de morte, umacena de domnio. Entre o bispo dominador e o monstro dominadoestabelecem-se, durante um breve instante, relaes que lembram aamizade dos eremitas e dos santos pelos animais ferozes desde o leode S. Jernimo ao lobo de S. Francisco ("") (este de cabea suplicane,ps-se a pedir perdo com a cauda acaricianie): um animal mais paraneutralizar do que para matar. Que podemos pois razoavelmente imaginarpor detrs desta cena, em que um heri domina foras naturais, semque a hagiografia queira ou possa fazer com isso, explicitamente, umepisdio simblico de evangelzao?

    Um episdio de civilizao material. O teatro topogrfico desta cena fcil de imaginar: o local onde, na Idade Mdia, se erguer o burgo, bairro que ter o nome de S. Marcelo, portanto o baixo vale doBivre, cujo caracter pantanoso se percebe ainda nos terrenos baixos do

    (*') Contudo, no podemos excluir que Fortunato tenha podido serinfluenciado pela assimilao que pode ter sido feita, segundo R. Mer-kelbach, Reallexicon..., cit., col. 240, entre o martrio e o combatecontra o drago. Para um dos aspectos teramos de fazer tentativas doshagigrafos da Alia Idade Mdia para conservarem a mitologia do marti-rolgio em benefcio dos santos que j no so mrtires. Esta interpreta-o, que tanto quanto sabemos no foi aventada por ningum, parece-noscomplicada e ousada.

    C") Cfr. G. Penco, II simbolismo anmalesco nella letteratura mo-nastica,.,em Studia monastica, 1964, pp. 7-38; e L'amicizia con gli ani-mali, em Vita monastica, 17, 1963, pp. 3-10. O drago, consideradocomo animal real, participava na mstica da criao, dentro da qualW. von den Steinen magnificamente situou a simblica animal; Altchris-tliche-mittelalterliche Tiersymbolik, em Symbolum, IV, 1964.

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    acua Jardim Botnico ("). O melhor conhecedor da topografia parisiensena Alta Idade Mdia, Michel Robtin, aps haver chamado a este focode crist/anizao parisiense o velho bairro cristo de Saint-Marcel C1)e haver vincado que a sua formao no foi claramente explicada,evoca a presena de pedreiros que poderiam ter favorecido a construode catacumbas como em Roma e a possvel utilizao das guas doBivre que, sculos mais tarde, atrairo tmureiros e curtidores de pelespara o bairro; e pensa, finamente, que Saint-Marcel muito smpes-

    .-mente uma estao de muda na estrada de Sens. normal ento prossegueque o cristianismo, vindo de Itlia por Lyon e Sens, setenha primeiro instalado em Saint-Marcel, o primeiro bairro de Lutce,para quem vem pela estrada da margem esquerda. O nosso texto noesclarece este nascer do bairro Sant-Marcei ? No temos, aqui, um mitode fundao seja cristo ou no1? A vitria de Marcelo sobre o dragono ser a domesticao do geriius Joci, o ordenamento de um stionatural entre os desertos da floresta (silva), refgio da serpentectoniana e dos lodaais da confluncia fluvial do Sena com o Bivre(mar), onde o drago aqutico convidado a desaparecer? (") No te-mos nos, aqui, o testemunho de uma dessas instituies da Alta Idade M-dia, a favor de um tmido arroteamento e de uma rudimentar drenagem,sob a gide de um bispo-empreiteiro econmico, ao mesmo tempo pastorespiritual e chefe poltico? (") igualmente a instituio de uma comu-nidade urbana da Alta Idade Mdia, a cuja constituio assistimos aqui,em redor de um corpo de fiis-cidados (eives), um local urbano esuburbano, na proximidade imediata de uma estrada com relativa impor-tncia ("X

    Este texto no o nico em que Fortunao relata um milagre peloqual um santo, limpando unia regio dos monstros que a infestam (dra-ges ou serpentes), a converte em algo a valorizar.

    C') M. L. Concasty demonstrou bem a importncia das inundaesda Bivre (op. cit. Positions... cit., 1937, p. 28).O M. Roblin, L terroir... cit, p. 114.(") Cfr. a Tarasca entre floresta e rio (a nemore in ilumine),L. Dumon, op. ctt., pp. 156-157.(") Sobre o papel econmico dos santos e dos bispe da Alta Idade

    Mdia, h muitos testemunhos na hagiografia. Um dos primeiros exemplos,no contexto significativo do vale do mdio Danbio no sculo V encon-tra-se na Vita S. Severni de Eugippius (MGH, auc. an., l, 1877, pp. MO).

    Teria havido, de resto, inteno de propaganda dinstica em Fortu- -~nato? Afirmaram-na, a propsito da vida de Santa Radegundes. Cfi.D. Laporte, L royaume de Paris, dans 1'oeuvre hagiographique deFortuna t; em tudes mrovingiennes, Paris, 1953, pp. 169 ss.

    C*) Sobre o drago lendrio e o estabelecimento de Cracvia, juntoda colina de Wawel, na margem do Vstula, cfr. art. Krafc em SlownikFolkoru Polskiego (Dctionnaire du Foklore Potonais), ed. J. Krzyza-nowski, Varsvia, 1965, pp. 185-186.

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  • Na vida de S. HflrioC'), Fortunato conta de que modo o santo,passando perto da ilha de Gallinaria, em frente de Albenga, na costada LJgria, alertado pelo libiaates da costa que o informam daimpossibilidade de se estabelecerem na ilha por causa de enormes ser-pentes que a infestam (ingentia serpentium volumina sine numero per-vagari). Tal como Marcelo, Hilrio parte com valentia para o combatecontra os monstros (vir dei sentiens sibi de bestiali pugna venire victo-riam). As serpentes fogem ao v-lo e o basto episcopal serve, destavez, de fronteira entre as duas partes em que divide a ilha: uma em que proibido entrarem as serpentes, a outra em que podem viver em liber-dade. Ainda aqui, pois, e mais claramente do que no caso de S. Marcelo,o monstro perigoso, smbolo da natureza hostil, contido, dominado,mas no aniquilado ("). De resto, tambm aqui, 6 dito as serpentes que,se no respeitarem a diviso decidida pelo santo, s lhes restar o mar,cuja presena 6 ali bem real.

    Tal como na vida de S. Marcelo, uma reflexo orienta, neste caso,a interpretao para o simbolismo diablico. Fortunato sublinha que osegundo Ado, Cristo, muito superior ao primeiro, pois que, em vezde obedecer serpente, tem servidores como o santo capazes dedominar as serpentes C1). Tambm aqui a aluso no bem explicitada.Pelo contrario, a concluso puramente material e faz, sem dvida, deHilrio um heri civilizador; aumentou o territrio dos homens, porqueno territrio do animo/ veio estabelecer-se o homem.

    Mesmo que se no aceite a nossa hiptese quanto ao simbolismo,c significado do combate de S. Marcelo com o drago, acontece que,em finais do sculo VI, na G alia, se os escritores eclesisticos tendema cristianizar as lendas de santos saurctonos, identificando a serpenteou o