30
EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA _____ VARA DA COMARCA DE CANOINHAS O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, por seus Promotores de Justiça ao final assinados, com fundamento nos arts. 127 e 129, III, da Constituição da República, bem como no art. 82, I, do Código de Defesa do Consumidor e no art. 5º da Lei nº 7.347/85, propõe AÇÃO CIVIL PÚBLICA, em defesa dos direitos e interesses dos consumidores, em face de: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DO CONTESTADO, CAMPUS CANOINHAS, pessoa jurídica de direito privado, domiciliada na rua Roberto Ehlke, 85, Canoinhas/SC, CEP 89.460-000. 1. Objeto da ação Esta ação civil pública tem por objetivo obter provimento jurisdicional que declare o dever da ré em prestar informações corretas, claras, precisas e ostensivas sobre o serviço educacional de graduação em Optometria que oferece, condenando-a a modificar seus instrumentos de 1

015.05 - ACP - Optometria

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 015.05 - ACP - Optometria

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA _____ VARA DA

COMARCA DE CANOINHAS

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA

CATARINA, por seus Promotores de Justiça ao final assinados, com

fundamento nos arts. 127 e 129, III, da Constituição da República,

bem como no art. 82, I, do Código de Defesa do Consumidor e no art.

5º da Lei nº 7.347/85, propõe AÇÃO CIVIL PÚBLICA, em defesa dos

direitos e interesses dos consumidores, em face de:

FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DO CONTESTADO,

CAMPUS CANOINHAS, pessoa jurídica de direito privado,

domiciliada na rua Roberto Ehlke, 85, Canoinhas/SC, CEP 89.460-000.

1. Objeto da ação

Esta ação civil pública tem por objetivo obter provimento

jurisdicional que declare o dever da ré em prestar informações

corretas, claras, precisas e ostensivas sobre o serviço educacional de

graduação em Optometria que oferece, condenando-a a modificar

seus instrumentos de veiculação de publicidade para se adequar a

este dever, além de indenizar os prejuízos patrimoniais e

extrapatrimoniais até o momento sofridos pelos alunos já

matriculados ou já formados.

1

Page 2: 015.05 - ACP - Optometria

Objetiva também obter provimento que determine à ré

que imediatamente se abstenha de permitir a realização de consultas

oftálmicas e/ou exames de acuidade visual (prescrição, indicação e

aconselhamento de uso de lentes de grau) pelos alunos e professores

não-médicos do curso de Optometria.

2. Síntese da lide

Em resumo, o campus de Canoinhas da Universidade do

Contestado (doravante apenas UnC) oferece semestralmente 50

vagas para o curso superior de graduação em Optometria, vinculando

a oferta do curso às expectativas do mercado ao referir-se

principalmente à possibilidade do futuro profissional em identificar

problemas refrativos e prescrever lentes compensadoras.

Como se verá adiante, em todo o material publicitário da

ré constam informações que levam o consumidor a crer que o

mercado de trabalho é “vasto e em expansão”, e que a graduação do

optometrista permite que atue prevenindo, detectando, protegendo e

compensando problemas de visão, sem contudo deixar claros os

limites da profissão.

Além disso, a requerida vem permitindo que seus alunos

de optometria prescrevam e receitem lentes de grau em suas

dependências, mantendo verdadeira clínica de optometria na cidade.

Todavia, como é clara a legislação aplicável e como assim

têm reiteradamente decidido os tribunais, a profissão de optometrista

é limitada pela profissão de médico oftalmologista, ou seja, o

optometrista não pode atuar na área reservada à medicina oftálmica.

Este dado é que o Ministério Público do Estado de Santa

Catarina entende deva ser correta, clara, precisa e ostensivamente

informado ao consumidor do serviço educacional, de modo a atender

ao disposto no art. 31 do Código de Defesa do Consumidor.

2

Page 3: 015.05 - ACP - Optometria

E por ter havido divulgação enganosa do curso durante

todos os anos de sua existência, entende o Ministério Público devam

ser ressarcidos os danos patrimoniais e extrapatrimoniais sofridos

pela coletividade que estava sujeita à publicidade e que ingressou no

curso desinformadamente.

Por outro lado, a legislação vigente proíbe ao

optometrista “indicar ou aconselhar o uso de lentes de grau, sob pena

de processo por exercício ilegal da medicina”, não sendo possível que

a ré admita, como vem admitindo, que seus alunos ou professores

exorbitem as funções de optometristas, clinicando como se médicos

oftalmologistas fossem, indicando ou aconselhando o uso de lentes

de grau.

3. Questão de fundo

Não é possível compreender a questão jurídica de fundo

sem antes ter clara a diferença técnica entre optometria e

oftalmologia. Brevemente apontar-se-ão as origens históricas da

optometria, para que se tenha clara a situação jurídica subjacente.

A Optometria é o estudo das técnicas e tecnologias úteis

na medição da acuidade visual e na confecção de lentes para

correção dos erros de refração. Trata com mais ênfase a medida do

erro de refração do olho, sem contudo apreciar questões de ordem

patológica. Assim, por exemplo, doenças do olho seriam tratadas por

oftalmologistas, ao passo que miopias meramente refrativas, ou seja,

miopias causadas unicamente por erro no potencial de refração do

olho, seriam tratadas por optometristas.

A Optometria nasceu no fim do século XIX, quando os

conhecimentos oftalmológicos caminhavam a passos curtos e os

problemas de refração visual acabavam sendo os únicos com reais

possibilidades de solução. Da mesma forma que os odontologistas da

época, na ignorância da real causa, resolviam os problemas bucais

3

Page 4: 015.05 - ACP - Optometria

com a simples extração do dente, os optometristas prescreviam

óculos ao menor sinal de falta de acuidade visual.

Separava-se radicalmente, até mesmo por

desconhecimento da patologia ocular, as ametropias, ou seja, os

distúrbios dos poderes de refração do olho (miopia, hipermetropia,

astigmatismo e presbiopia) de todas as outras doenças oculares.

Neste contexto nasceu a optometria, de “um equívoco

fundado na ignorância médico-oftalmológica da época: o de que os

problemas oftalmológicos se resumiam à necessidade de óculos e se

resolviam com a prescrição deles”1.

No entanto, como salienta Flávio Winkler, não há como,

no atual desenvolvimento tecnológico da ciência oftalmológica,

distinguir os problemas de refração visual (ametropias) das próprias

doenças oculares. “Há ametropias que são doenças (miopia maligna,

por exemplo), como há doenças, oculares e sistêmicas, que causam

ou agravam ametropias”.

Por exemplo, a miopia (dificuldade para enxergar de

longe) pode ser causada por inúmeras doenças, algumas até mesmo

bastante conhecidas do leigo em medicina, tal como a diabetes e a

catarata. Além delas, podem causar miopia, segundo o autor citado,

doenças como espasmo ciliar (funcional, medicamentoso, traumático,

tóxico), toxemia gravídica, intoxição medicamentosa (sulfas,

inibidores da anidrase carbônica, fenotiazidas, arsenicais), síndrome

de Horner, fibroplasia retrolental, homocistinúria, síndrome de

Marfan, de Marshali, de Kenny, de Schwartz, de Stickler, de Weili-

Marchesani, de Cornelia De Lange, de Ehlers-Danlos, do cromossoma

XXXXY, de Noonan, de Alport e miastenia grave.

Todavia, com a evolução das ciências médicas descobriu-

se que nem sempre a existência de uma dificuldade de refração

ocular (uma ametropia) requer o uso de lentes corretoras. Ao

1 WINKLER, Flávio. In http://www.apo-pr.com.br/proj2a.asp.

4

Page 5: 015.05 - ACP - Optometria

contrário, há situações em que a prescrição de óculos, mesmo

quando se diagnosticou uma ametropia, agrava o sintoma que

motivou o paciente a procurar recursos.

Ainda com Flávio Winkler: “É também sabido que,

freqüentemente, a queixa do paciente nada tem a ver com seu

quadro refratométrico, mas se fundamente na existência de doenças

oculares outras, em geral graves, que só o oftalmologista pode e sabe

diagnosticar e tratar.”

Por isso, completa o autor: “Diante dessa realidade

médica atual e da complexidade fisiopatológica do olho, fica claro que

falta ao optometrista o conhecimento indispensável para orientar o

paciente com segurança, sem comprometer ou agravar ou seus

problemas visuais. E, o que é pior, o exame ocular do optometrista,

rudimentar e incompleto por insuficiência de conhecimentos e de

meios semiológicos, vai, com certeza, passar ao largo de muitas

doenças oculares e sistêmicas que o oftalmologista fácil e

prontamente diagnostica”.

Por isso a prescrição, a indicação e o aconselhamento

sobre o uso óculos e de lentes de contato é, do ponto de vista

jurídico, ato exclusivamente médico.

Além desses fatores de ordem médica, estão a justificar a

proibição da prescrição de óculos e lentes pelos optometristas

questões mais intimamente afetas ao direito do consumidor. Como

prova a experiência de países que adotam a dicotomia

optometria/oftalmologia, permitir que o proprietário de uma ótica – o

maior interessado na venda de óculos – avalie por si só o grau de

acuidade visual e prescreva ou aconselhe o uso de lentes corretoras

gera o sério risco de incentivar o consumo inadequado deste delicado

produto.

De fato, não se pode deixar de levar em consideração

que, como vendedor de lentes, o optometrista fatalmente teria maior

5

Page 6: 015.05 - ACP - Optometria

propensão para prescrever lentes mesmo quando não forem

necessárias.

No Brasil dois decretos regulamentam o exercício da

oftalmologia e do comércio de lentes de grau. O primeiro é o Decreto

nº 20.931/32, que cita os optometristas em dois momentos; o

segundo, é o Decreto nº 24.492/34, que regulamenta o Decreto

anterior.

A leitura de ambos os decretos é suficientemente enfática

em determinar que a prescrição de lentes de grau é uma tarefa

exclusivamente médica. O art. 39 do Decreto n. 20.931/32, por

exemplo, diz que “é vedado às casas de ótica confeccionar e vender

lentes de grau sem prescrição médica [...]”2. O art. 41, por sua vez,

é claro em exigir que os óticos mantenham livros para arquivamento

das receitas médicas que executarem3.

O art. 38 do Decreto nº 20.931/32, por sua vez, menciona

que os optometristas não poderão ter consultórios para atendimento

de pacientes4.

Não bastasse isso, as óticas estão proibidas de ter em

suas dependências local apropriado para exames de vista, ou mesmo

equipamentos que se destinem a exames da acuidade visual ou

outros procedimentos que estejam afetos à atividade médica

oftalmológica e não sejam indispensáveis ao pleno funcionamento da

2 Art. 39. É vedado às casas de ótica confeccionar e vender lentes de grau sem prescrição médica, bem como instalar consultórios médicos nas dependências dos seus estabelecimentos3 Art. 41. As casas de ótica, ortopedia e os estabelecimentos eletro, rádio e fisioterápicos de qualquer natureza devem possuir um livro devidamente rubricado pela autoridade sanitária competente, destinado ao registro das prescrições médicas.4 Art. 38. É terminantemente proibido aos enfermeiros, massagistas, optometristas e ortopedistas, a instalação de consultórios para atender clientes, devendo o material aí encontrado ser apreendido e remetido para o depósito público, onde será vendido judicialmente a requerimento da Procuradoria dos Feitos da Saúde Pública a quem, a autoridade competente oficiará nesse sentido. O produto do leilão judicial será recolhido ao Tesouro, pelo mesmo processo que as multas sanitárias.

6

Page 7: 015.05 - ACP - Optometria

oficina e do mercado ótico5. Tal providência visa justamente a

proteger o consumidor, evitando que no afã do lucro o proprietário da

ótica receite lentes corretivas apenas para vender seu produto.

A legislação, como se vê, é clara em proibir

terminantemente ao profissional não médico a prescrição, o

aconselhamento e a indicação de lentes de grau para pacientes,

mormente – mas não somente – quando o profissional também for

proprietário de ótica.

Como os primeiros optômetras formados no Brasil

cursaram a Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, no Rio Grande do

Sul, a jurisprudência daquele Estado já enfrentou a matéria por

diversas vezes, e, a partir do exame dos Decretos mencionados,

culminou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por fixar a tese

de que “O profissional formado em optometria não pode prescrever,

indicar ou aconselhar a utilização de lentes de grau, pois se trata de

mister exclusivo aos médicos oftalmologistas, conforme determinado

pelos artigos 38 do Decreto nº 20.931/32 e 14 do Decreto nº

24.492/34”6.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina já se manifestou

sobre o tema algumas vezes. No primeiro caso, examinando a

legalidade de ato da vigilância sanitária que indeferira alvará de

instalação, a Primeira Câmara de Direito Público decidiu que a

5 Vejam-se os diversos dispositivos do Decreto: Art. 13: “é expressamente proibido ao proprietário, sócio, gerente, óptico prático e demais empregados do estabelecimento, escolher ou permitir escolher, indicar ou aconselhar o uso de lentes de grau, sob pena de processo por exercício ilegal da Medicina, além das outras penalidades previstas nas Lei”; Art. 14: “a venda de lentes de grau só poderá ser feita com a apresentação da fórmula óptica do médico”; Art. 16: “o estabelecimento comercial de vendas de lentes de grau não pode ter consultório em qualquer de seus compartimentos”; Art. 17: “é proibido câmara escura e aparelhos para exame ocular no recinto, bem como cartazes oferecendo exame gratuito”.6 TJRS, Agravo de Instrumento nº 70010901957, Rel. Desª. Iris Helena Medeiros Nogueira. No mesmo sentido: Agravo de Instrumento nº 70010942167, Rel. Des. Armínio José Abreu Lima da Rosa; AI nº 70008609463, rel. Desª. Helena Ruppenthal Cunha. Do mesmo tribunal, AI n.º 70008420986, rel. Paulo Antônio Kretzmann, MS 596066431, rel. Araken de Assis, AC n.º 598059293, rel. Araken de Assis, AI n.º 70001313766, rel. Luis Roberto Imperatore Assis Brasil, AC n.º 70004392049, rel. Guinther Spode.

7

Page 8: 015.05 - ACP - Optometria

atividade é exclusiva de médico oftalmologista. Aliás, nesta decisão,

cujo acórdão foi relatado pelo Des. Vanderlei Romer, decidiu-se haver

risco na suspensão do embargo da fiscalização sanitária, pois a

questão envolvia saúde pública7.

Noutro julgado, desta feita uma ação civil pública

proposta pelo Ministério Público, o Tribunal de Justiça decidiu que,

tomando também em consideração o perigo apresentado à saúde

pública, “entre os atos permitidos ao óptico prático pelo art. 9° do

Decreto n° 24.492/34, não se insere o de realizar exames

oftalmológicos, e, em razão do disto, receitar ao paciente a lente de

grau que entende cabível. É que o aviamento permitido a este

comerciante é aquele decorrente da apresentação, pelo consumidor,

de fórmula fornecida pelo médico oftalmologista devidamente

credenciado”8.

Também a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, em

parecer aprovado pelo Diretor-Presidente, decidiu que “nos termos

taxativos da legislação citada dessume-se que a receita de óculos e

de lentes de contato é ato médico, constituindo exercício ilegal da

medicina a sua prática por outros profissionais que não o médico

oftalmologista. [...] De outra parte, no Brasil, a optometria não

existe como profissão independente, constituindo parte

integrante e uma das especialidades mais importantes da

Oftalmologia, com extensa carga horária destinada ao aprendizado

teórico e prático nas residências oftalmológicas”9.

7 “AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGATIVA DE LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. ASSISTÊNCIA SIMPLES. PEDIDO INCABÍVEL EM WRIT OF MANDAMUS. REJEIÇÃO. MÉRITO. INDEFERIMENTO, PELO CHEFE DO SERVIÇO DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA E EPIDEMIOLÓGICA MUNICIPAL, DE CONSULTA PARA A OBTENÇÃO DE ALVARÁ DE LOCALIZAÇÃO DO ESTABELECIMENTO DA IMPETRANTE, EM QUE PRETENDIA EXERCER A PROFISSÃO DE TECNÓLOGA EM OPTOMETRIA. ATIVIDADE EXCLUSIVA DE MÉDICO OFTALMOLOGISTA. PRECEDENTES DESTE TRIBUNAL. AUSÊNCIA DE FUMUS BONI JURIS. CARACTERIZAÇÃO, ADEMAIS, DO PERICULUM IN MORA INVERSO, POSTO QUE A POSSIBILIDADE DE DANO RESULTANTE DO DEFERIMENTO DA MEDIDA É SUPERIOR AO DO PREJUÍZO QUE SE DESEJA EVITAR. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO” (Agravo de instrumento n. 2004.021035-3, de Joinville. Relator: Des. Vanderlei Romer)8 AC n. 46.963, de Biguaçu, rel. Des. Eládio Torret Rocha, j. 07.11.1995.9 Parecer n.º 1110/2000 - PROC/ANVS/MS, em anexo.

8

Page 9: 015.05 - ACP - Optometria

Em sentido contrário à tese adotada pelos dois tribunais,

invoca-se, por vezes, a Portaria nº 2.948, de 21 de outubro de 2003,

editada pelo Ministro da Educação e Cultura. A partir deste ato

passou-se a difundir que a profissão de optometrista estaria

finalmente reconhecida pelo MEC, embora tenha simplesmente

reconhecido o Curso Superior de Tecnologia em Optometria da Ulbra,

com a ressalva de que o fazia "exclusivamente para fins de emissão e

registro dos diplomas" dos alunos formados nos últimos cinco anos.

No entanto, tal entendimento – levantado principalmente

por leigos em Direito – precisa ser desde logo rechaçado, porque, em

primeiro lugar, não compreende que um ato administrativo de

Ministro de Estado da Educação e Cultura não pode reconhecer

legalmente uma determinada profissão. Falta-lhe competência.

Depois, olvida que a Portaria tão-somente reconheceu o curso de

optometria como um curso de nível superior, o que é

substancialmente diferente do reconhecimento de uma profissão.

Outro argumento por vezes invocado em sentido contrário

é o de que a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO faz expressa

referência à função de optometrista, sendo, portanto, reconhecida

juridicamente a função no Brasil.

Vale transcrever o texto da CBO, recentemente alterado

por uma Portaria do Ministério do Trabalho: “Técnicos em optometria

ou técnicos em ótica: Realizam exames optométricos; confeccionam

lentes; adaptam lentes de contato; montam óculos e aplicam

próteses oculares. Promovem educação em saúde visual; vendem

produtos e serviços ópticos e optométricos; gerenciam

estabelecimentos. Responsabilizam-se tecnicamente por laboratórios

ópticos, estabelecimentos ópticos básicos ou plenos e centros de

adaptação de lentes de contato. Podem emitir pareceres ópticos-

optométricos”.

9

Page 10: 015.05 - ACP - Optometria

Note-se que aqui que, além de não haver expressa

menção à possibilidade de o técnico em optometria prescrever,

indicar ou aconselhar o uso de lentes, qualquer interpretação que

adotasse este entendimento seria no mínimo ilegal, porque a Portaria

conflitaria com os Decretos citados, que têm força de lei ordinária por

haverem sido recepcionados pela Constituição.

O Poder Judiciário, analisando em sede coletiva a

legalidade deste ato modificador da Classificação Brasileira de

Ocupações decidiu, que a Portaria “contrasta com as leis em vigor,

porque o exercício de medicina é atividade permitida apenas para

pessoas que tenham obtido título de médico em instituições de

ensino superior, mediante aprovação de estudos, e que estejam

registradas no Conselho de Medicina do Estado onde estiver

clinicando”10.

Com base nestes entendimentos, inúmeros alvarás de

funcionamento de clínicas optométricas têm sido indeferidos, como

demonstram as decisões e os pareceres das secretarias de vigilância

sanitária acostados a esta peça inicial, impedindo juridicamente o

exercício da função tal qual propalada pela requerida.

4. Da publicidade enganosa – omissão de informação relevante

Mesmo diante de todo este cenário, a UnC-Canoinhas

define a Optometria como “uma atividade técnico-científica

responsável pelo exame primário da visão. O Optometrista é

capacitado a identificar e compensar os erros refrativos como a

miopia, a hipermetropia, o astigmatismo, entre outros; a

avaliar e tratar as anomalias não patológicas referentes à visão e

orientar para os cuidados preventivos” (folder promocional em anexo,

grifou-se).

Ainda segundo este documento, “no Brasil, as

perspectivas de trabalho aos optometristas são as melhores,

10 Ação Civil Pública nº 2005.34.00.007230-3, Poder Judiciário Federal, Seção Judiciária do Distrito Federal.

10

Page 11: 015.05 - ACP - Optometria

considerando-se a expansão da atividade no país, onde há apenas

dois cursos destinados à formação profissional. Um deles é o da UnC

de Canoinhas”.

Noutro folder, destaca a ré que o “O campo para o

optometrista é muito vasto e em expansão no mundo, permitindo

ao profissional especializar-se em lentes de contato, refração, visão

infantil e geriátrica, terapia de baixa visão, verificação e controle dos

meios adequados para a prevenção, detecção, proteção,

compensação e melhoria da visão” (grifou-se).

Como se vê, a requerida oferece o serviço educacional

sempre vinculando-o às expectativas de mercado, ou seja,

correlacionando o sucesso profissional daquele que se propuser a

cursar a faculdade com a “possibilidade” de tornar-se um quase

oftalmologista.

Entretanto, essas informações veiculadas são

parcialmente falsas sobre o mercado de trabalho do optometrista e

capazes de induzir o consumidor a erro sobre esse dado relevante do

serviço educacional.

De fato, embora não se possa afirmar peremptoriamente

que todo acadêmico de optometria deseje no futuro estabelecer-se

como optometrista e prescrever, aconselhar ou indicar o uso de

lentes corretoras, pois poderá simplesmente cursar a faculdade pelo

prazer do estudo, é preciso levar em conta que parcela considerável

dos alunos têm objetivos profissionais como foco principal. É,

ademais, notório que boa parte dos estudantes de optometria é

proprietário, filho de proprietário ou funcionário de óticas ou serviços

similares, sendo razoável presumir que não ingressam no curso

apenas para ampliar seus conhecimentos teóricos.

Sendo assim, incide diretamente o disposto no caput e no

§1º do art. 37 do Código de Defesa do Consumidor, que proíbe a

publicidade enganosa ou abusiva, considerando como tal “qualquer

11

Page 12: 015.05 - ACP - Optometria

modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário,

inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo

por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da

natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades,

origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços”.

Veja-se que, embora não se trate de lei ou ato normativo,

o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária, em seu

Anexo B, recomenda que a publicidade de educação, cursos e ensino

“não deverá afirmar ou induzir o consumidor a crer que a inscrição ou

matrícula no curso lhe proporcionará um emprego, a menos que o

anunciante assuma, no mesmo anúncio e com clareza, total

responsabilidade” e prometer “sucesso ou promoção garantida na

carreira profissional do aluno, a não ser que tais fatos sejam

comprováveis” (documento em anexo).

Ora, se, como leciona João Batista de Almeida, a

publicidade é considerada enganosa quando não atende aos

princípios da veracidade e da transparência11, é evidente que a

publicidade oferecida ao mercado de consumo pela requerida destoa

das diretrizes do Código de Defesa do Consumidor, devendo ser

prontamente coibida pelo Estado.

Portanto, entende o Ministério Público deva ser a

requerida compelida a, num prazo não superior a trinta dias, adequar

todo o seu material publicitário para fazer constar, de forma precisa,

clara e ostensiva, a informação de que o profissional de optometria

não pode prescrever, indicar ou aconselhar a utilização de lentes de

grau, pois se trata de mister exclusivo aos médicos oftalmologistas,

11 Pelo princípio da veracidade, “a publicidade deve ser escorreita e honesta, segundo os requisitos legais. Deve conter uma apresentação verdadeira do produto ou serviço oferecido. Visa a manter corretamente informado o consumidor, para assegurar-lhe a escolha livre e consciente”. Pelo princípio da transparência, “a publicidade deve fundamentar-se em dados fáticos, técnicos e científicos que comprovem a informação veiculada, para informação aos interessados e eventual demonstração da veracidade”. ALMEIDA, João Batista. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo : Saraiva, 2003. p. 87.

12

Page 13: 015.05 - ACP - Optometria

conforme determinado pelos artigos 38 do Decreto nº 20.931/32 e 14

do Decreto nº 24.492/34.

5. Da ilegalidade na realização de consultas pelos alunos e

professores do curso

Como comprovam os documentos em anexo, a UnC

mantém verdadeira clínica de optometria em seu campus. Os folders

juntados à inicial demonstram que a requerida chega a oferecer às

comunidades de Canoinhas e região os serviços de exame refrativo,

aconselhando o uso de lentes aos pacientes que, na visão dos

acadêmicos e dos professores, delas precisem, já havendo atendido

mais de 43 mil pessoas.

Além do material publicitário, provam a existência dessa

verdadeira clínica cópias de algumas “receitas” de óculos prescritas

pelos professores e alunos do curso de optometria da UnC, condutas,

aliás, que são objeto de Inquérito Policial pelo crime de exercício

ilegal da medicina.

Do que se viu até o momento, fica claro que se os

graduados em optometria não podem prescrever, aconselhar ou

indicar o uso de lentes corretoras, tampouco o podem os acadêmicos,

quer estejam sob a orientação de professores ou não, sob pena de

incidirem em crime de exercício ilegal da medicina.

Tanto os Decretos nº 20.931/32 e nº 24.492/34 quanto a

jurisprudência pacífica do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e do

Tribunal do Rio Grande do Sul abonam a tese. No mesmo sentido é o

Parecer nº 1.110/2000, da Procuradoria da Agência Nacional de

Vigilância Sanitária, em anexo12.

12 Do texto do Parecer mencionado extrai-se o seguinte trecho: “nos termos taxativos da legislação citada dessume-se que a receita de óculos e de lentes de contato é ato médico, constituindo exercício ilegal da medicina a sua prática por outros profissionais que não o médico oftalmologista. De outra parte, no Brasil, a optometria não existe como profissão independente, constituindo parte integrante e uma das especialidades mais importantes da Oftalmologia, com extensa carga horária destinada ao aprendizado teórico e prático nas residências oftalmológicas”.

13

Page 14: 015.05 - ACP - Optometria

Em sendo assim, a Fundação Universidade do Contestado,

por seu campus de Canoinhas, não pode permitir que em seu espaço

físico ou sob sua coordenação ou conivência, os acadêmicos

pratiquem atos privativos de médico, devendo ser determinado pelo

Judiciário que imediatamente encerrem o atendimento ao público, sob

pena de multa.

6. Responsabilidade por danos patrimoniais e extrapatrimoniais –

difusos e individuais homogêneos

O art. 20 do Código de Defesa do Consumidor disciplina

que “o fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que

os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim

como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações

constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o

consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: [...] II – a

restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada,

sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III – o abatimento

proporcional do preço”.

Por outro lado, os incisos IV e VI do art. 6º do Código de

Defesa do Consumidor erigem à categoria de direito básico do

consumidor a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, bem

como a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e

morais, inclusive sob o aspecto coletivo e difuso.

Por tudo que se viu até o momento, o serviço educacional

prestado pela requerida é díspar em relação às mensagens

publicitárias divulgadas, porque anuncia um curso de campo “muito

vasto e expansão no mundo, permitindo ao profissional

especializar-se em [...] detecção, proteção, compensação e

melhoria da visão”, fato que não demonstra a realidade.

Os consumidores lesados, portanto, substituídos nesta

Ação Civil Pública pelo Ministério Público, têm o direito de serem

reparados dos danos patrimoniais sofridos, ou seja, têm direito à

14

Page 15: 015.05 - ACP - Optometria

restituição das mensalidades pagas ou ao abatimento proporcional do

preço, nos termos dos arts. 91 e seguintes do Código de Defesa do

Consumidor. Para tanto, após a constituição do título executivo

judicial que condene genericamente13 a requerida à restituição ou ao

abatimento proporcional do preço, poderão as vítimas ou seus

sucessores, ou ainda o próprio Ministério Público, liquidar a sentença

e executá-la.

Mas, além do dano individual homogêneo acima tratado,

a publicidade enganosa gerou também responsabilidade civil a título

difuso, porquanto lesou número indeterminável de pessoas em

montante indivisível.

De fato, uma vez lançada a publicidade, é evidente que

quantidade indeterminável de interessados procurou mais

informações sobre o curso e dedicou parte de seu tempo a ilustrar-se

sobre a oferta, sendo razoável presumir que boa parte desta

população chegou a prestar o exame vestibular na confiança de que o

curso qualificaria profissionais para prescrição, indicação e

aconselhamento do uso de lentes de grau.

A conduta da requerida, de igual forma mas por outra

causa, gera o dever de indenizar, desta feita a título difuso. O dano

causado é extrapatrimonial, porque flagrantemente lesionada a

confiança14 do consumidor através da geração de uma expectativa

não confirmável objetivamente. Pôs-se em xeque, assim, a

13 Art. 95 do Código de Defesa do Consumidor: “Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados”.14 A confiança, ou boa-fé objetiva, é princípio da Política Nacional de Relações de Consumo, conforme prevê o art. 4º, III, in fine, do CDC. Para Luiz Antônio Rizzatto Nunes, “quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se no comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes” (NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo : Saraiva, 2000. p. 108).

15

Page 16: 015.05 - ACP - Optometria

credibilidade da relação jurídica existente entre os consumidores em

potencial e entre a requerida15.

E, assentando-se o dano extrapatrimonial difuso

justamente na agressão a bens e valores jurídicos que são inerentes a

toda a coletividade, de forma indivisível, não há como negar que

conduta como a da ré abala o patrimônio moral da coletividade, pois

é coletivo o sentimento de ofensa e desrespeito que o cidadão e sua

família acaba experimentando com a prática enganosa a que a

requerida o expôs.

Imagine-se o desconforto das centenas de estudantes

que, após pendurarem o diploma na parede de uma sala alugada no

centro da cidade, requerem alvará para instalação de seu consultório

optométrico e o têm indeferido sob o fundamento de que a profissão

não é reconhecida e de que a legislação vigente proíbe tal prática.

Até então, diretores, professores e todos os documentos da faculdade

faziam crer o contrário. A sensação de engodo, de fraude, de

verdadeiro estelionato é sem dúvida relevante, gerando o dever de

indenizar.

Ao dissertar sobre o dano moral coletivo, o professor

André de Carvalho Ramos assinalou com muita propriedade:

“Devemos considerar que tratamento aos chamados interesses

difusos e coletivos origina-se justamente da importância destes

interesses e da necessidade de uma efetiva tutela jurídica. Ora, tal

importância somente reforça a necessidade de aceitação do dano

moral coletivo, já que a dor psíquica que alicerçou a teoria do dano

moral individual acaba cedendo lugar, no caso de dano moral

coletivo, a um sentimento de desapreço e de perda de valores

essenciais que afetam negativamente toda uma coletividade.

Imagine-se o dano moral gerado pela propaganda enganosa ou

15 Veja-se que segundo o art. 29 do Código de Defesa do Consumidor, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas comerciais previstas nos arts. 30 e seguintes: oferta, publicidade, práticas abusivas, cobrança de dívidas e bancos de dados e cadastros de consumidores.

16

Page 17: 015.05 - ACP - Optometria

abusiva, O consumidor potencial sente-se lesionado e vê aumentar

seu sentimento de desconfiança na proteção legal do consumidor,

bem como seu sentimento de cidadania”16.

O valor da indenização a ser pleiteada, também por esses

motivos, deve levar em conta o desvalor da conduta, a extensão do

dano e o poder aquisitivo da requerida.

Não se pode conceber que numa sociedade democrática,

onde se espera e se luta pelo aperfeiçoamento dos mecanismos que

venham garantir ao cidadão o pleno exercício dos atributos da

cidadania, inclusive com a efetiva implementação da legislação

consumerista, onde estão esculpidas garantias básicas ao consumidor

como o respeito à vida, à saúde, à dignidade, à adequada informação

acerca do produto, tenha lugar condutas como a da ré, que,

ludibriando o consumidor, aufere lucros astronômicos cobrando

mensalidades exorbitantes de seus alunos.

É dentro desse mesmo contexto que não se pode

esconder a grande extensão do dano causado, pois além de agredir

interesses garantidos por lei ao consumidor, o procedimento

denunciado gerou sentimento de descrença e desprestígio da

sociedade com relação aos poderes constituídos e ao sistema de um

modo geral.

A jurisprudência tem reconhecido a possibilidade de

condenação do responsável por danos extrapatrimoniais coletivos:

DANO MORAL COLETIVO - POSSIBILIDADE - Uma vez

configurado que a ré violou direito transindividual de ordem

coletiva, infringindo normas de ordem pública que regem a

saúde, segurança, higiene e meio ambiente do trabalho e do

trabalhador, é devida a indenização por dano moral coletivo,

pois tal atitude da ré abala o sentimento de dignidade, falta de

16 Revista de Direito do Consumidor nº 25. Editora Revista dos Tribunais, p. 82.

17

Page 18: 015.05 - ACP - Optometria

apreço e consideração, tendo reflexos na coletividade e

causando grandes prejuízos à sociedade17.

Assim, presente o dano extrapatrimonial, consistente na

lesão da confiança depositada pelos consumidores no anúncio

publicitário, e presente o nexo de causalidade entre o dano e a

conduta da requerida, nasce o dever de repará-lo, cabendo

indenização pelos danos causados.

O Ministério Público, portanto, entende ser devida

indenização aos consumidores que, embora não identificáveis, foram

enganados pela publicidade da requerida.

Tal indenização, como é natural em sede de direitos

difusos, deverá reverter ao fundo de reconstituição de bens lesados

(art. 13 da Lei nº 7.347/85). Em Santa Catarina, o Fundo para

Reconstituição dos Bens Lesados foi criado pelo Decreto nº 1.047, de

10 de dezembro de 1987.

Por fim, saliente-se que, por se tratar de interesses

difusos, somente com a publicação da sentença em jornal de grande

circulação no Estado de Santa Catarina é que terão os consumidores

afetados verdadeiras condições de buscarem o ressarcimento

individual.

Deve-se, portanto, aplicar por analogia o art. 94 do

Código de Defesa do Consumidor18 para obrigar a requerida, em 17 TRT 8ª R. - RO 5309/2002 - 1ª T. - Rel. Juiz Luis José de Jesus Ribeiro - j. 17.12.2002.18 Apesar do veto ao art. 96 do CDC que contemplava a obrigação de publicação de eventual sentença condenatória, evidente que esta é providência que se impõe para efeito dar conhecimento aos consumidores acerca do conteúdo da sentença, de modo a viabilizar a liquidação e execução individual, sob pena de tornarem-se inócuos os fins da condenação. Para Ada Pelegrini Grinover: “Mas o que o art. 96 colocava obrigatoriamente, de maneira didática, ainda se sustenta, pela interpretação sistemática dos demais dispositivos do Código. O art. 100 fixa prazo de um ano, após o que, se não houver habilitações em número compatível com a gravidade do dano, proceder-se-á à liquidação e execução da sentença condenatória, para o recolhimento ao fundo da fluid recovery... Ora, é evidente que o juiz deverá proceder à intimação da sentença e esta, no caso em tela, só poderá dar-se por meio de editais, devendo ao juiz socorrer-se, por analogia, do disposto no art. 94. Além do mais, cabe ao juiz dar efetiva aplicação ao princípio da publicidade dos atos processuais (art. 5º, inc. LX e art. 94, IX, da CF, "sic"), utilizando as técnicas que mais se coadunam com as ações coletivas. E, se

18

Page 19: 015.05 - ACP - Optometria

sendo procedente o pedido formulado, a divulgar extrato da sentença

de forma tão eficaz quanto a que utilizou para divulgar sua

publicidade enganosa.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já se

posicionou nesse sentido: “Ação Civil Pública e coletiva. Proibição de

estabelecimento no Estado do Rio Grande do Sul e indenização pelos

prejuízos causados. Publicação da sentença e extensão aos

consumidores não identificados na ação. A divulgação da sentença de

procedência da ação civil pública e coletiva, por meio de edital, se faz

imprescindível para conhecimento das vítimas em geral, a fim de que,

em liquidação, provada a lesão, possam habilitar-se no processo a fim

de receber o valor da indenização devida”19.

6. Antecipação da tutela específica da obrigação de fazer e de não

fazer

Segundo dispõe o art. 84 do Código de Defesa do

Consumidor, “na ação que tenha por objeto o cumprimento da

obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica

da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado

prático equivalente ao do adimplemento”. Para tanto, “sendo

relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de

ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela

liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu”.

No caso dos autos, pretende-se, além das indenizações,

comando judicial que determine, desde já, o cumprimento de

assim não fizer, caberá ao autor coletivo zelar pela observância do princípio da ampla publicidade da sentença, providenciando inclusive a divulgação da notícia da condenação pelos meios de comunicação de massa, nos termos do art. 94, sob pena de a condenação tornar-se inócua” (Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2001).19 TJRS, Apelação Cível nº 599262870, rel. Henrique Osvaldo Poeta Roenick, j. 5.8.1999, 14ª Câmara Civil.

19

Page 20: 015.05 - ACP - Optometria

obrigação de fazer e de não fazer por parte da requerida. A primeira

consistente em alterar seu material publicitário para adequá-lo

ao Código de Defesa do Consumidor. A segunda para determinar que

a requerida não permita aos alunos e aos professores do Curso de

Optometria o exercício de atos privativos de médico nas

dependências da UnC ou, de qualquer modo, sob sua supervisão ou

controle.

O fundamento da demanda (fumus boni juris) é relevante,

como apontado, até porque há farta jurisprudência a respeito,

inclusive no Tribunal de Justiça de Santa Catarina. O periculum in

mora também é justificado, pois uma vez divulgados dados

equivocados a respeito da função do optometrista, pouco ou nada

mais se poderá fazer para impedir que os alunos/consumidores

observem prejuízo extrapatrimonial e patrimonial de grandes

proporções. Aliás, considerando a proximidade do vestibular para

ingresso nos próximos períodos, e considerando que o material

publicitário é “rodado” com bastante antecedência, a medida é

verdadeiramente urgente.

Saliente-se, ainda, que por se tratar de questão

diretamente afeta à saúde pública, o dano não é experimentado

apenas pelos consumidores do serviço educacional, mas

colateralmente pela população em geral, notadamente quando, como

no caso, a requerida permite que sejam atendidas pessoas carentes

na clínica que mantém junto ao Curso de Optometria.

Deve, portanto, ser imposta multa diária à ré, entendendo

o Ministério Público ser suficiente e compatível com a obrigação valor

não inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais) para cada uma das

obrigações (alteração da publicidade e prática de optometria pelos

alunos ou professores).

Em caso de desobediência, tendo em vista que a multa só

poderá ser cobrada depois do trânsito em julgado da sentença, deve

20

Page 21: 015.05 - ACP - Optometria

ser ainda determinada a busca e apreensão de todos os

equipamentos da “clínica de optometria” da requerida, mediante

requisição de força policial, se for o caso, conforme admite o §5º do

art. 84 do Código de Defesa do Consumidor.

7. Pedidos

Ante o exposto, requer o Ministério Público:

a) o recebimento e processamento da presente ação civil

pública;

b) a publicação de edital nos termos do art. 94 do Código

de Defesa do Consumidor;

c) a concessão de liminar, inaudita altera pars, para

determinar que requerida modifique em 30 dias todo material

publicitário que se referir ao Curso de Optometria, incluindo a página

na Internet, o manual do candidato ao vestibular e todos os demais

meios audiovisuais, para que faça constar a seguinte informação, na

mesma fonte e no mesmo tamanho da informação principal:

“O profissional formado em optometria não pode prescrever, indicar

ou aconselhar a utilização de lentes de grau, função exclusiva de

médicos oftalmologistas, conforme determinado pelos artigos 38 do

Decreto nº 20.931/32 e 14 do Decreto nº 24.492/34 (Decisão liminar

na ACP nº XXX, proposta pelo Ministério Público do Estado de Santa

Catarina, Comarca de Canoinhas)”;

d) a concessão de liminar, inaudita altera pars, para

determinar que a requerida, imediatamente, tome todas as

providências necessárias para não permitir que em seu espaço físico

ou sob sua coordenação ou conivência os acadêmicos pratiquem atos

privativos de médico ou prescrevam, indiquem e aconselhem a

utilização de lentes de grau;

e) a cominação de multa diária à requerida em caso de

descumprimento ou cumprimento insatisfatório da determinação

21

Page 22: 015.05 - ACP - Optometria

judicial dos itens “c” e “d”, fixada em R$ 10.000,00 para cada

determinação;

f) a determinação, em caso de descumprimento ou

cumprimento insatisfatório da determinação requerida no item “d”,

de busca e apreensão e remoção de todos os aparelhos e

equipamentos utilizados na medição da acuidade visual, e

notadamente dos seguintes equipamentos: cadeira optométrica,

lâmpada de fenda, tonômetro, ecobiômetro, ceratômetro,

paquímetro, refrator, retinoscópio, oftalmoscópio, auto-refrator,

topógrafo, caixa de prova e armação de prova, podendo, para tanto,

contar com o auxílio do Dr. Wagner Trautwein, médico oftalmologista

de Canoinhas, para identificação dos aparelhos;

g) a citação da requerida para, querendo, apresentar a

defesa que entender pertinente, na qual deverá trazer a relação

candidato por vaga em cada vestibular para ingresso no Curso

de Optometria já realizado;

h) a inversão do ônus da prova, por ocasião do ingresso

na fase probatória20, se houver, nos termos do art. 6º, VIII, do Código

de Defesa do Consumidor;

i) a condenação da requerida a fazer constar a seguinte

informação, na mesma fonte e no mesmo tamanho da

informação principal, em todo material publicitário que se referir ao

Curso de Optometria, inclusive na Internet, no manual do candidato

ao vestibular e em outros recursos audiovisuais: “O profissional

formado em optometria não pode prescrever, indicar ou aconselhar a

utilização de lentes de grau, função exclusiva de médicos

oftalmologistas, conforme determinado pelos artigos 38 do Decreto nº

20.931/32 e 14 do Decreto nº 24.492/34 (Sentença na ACP nº XXX,

20 Hugo Nigro Mazzilli entende que o momento adequado para a declaração da inversão do ônus da prova é o momento da produção da prova, e não o da sentença, como parte da doutrina tem apregoado, pois é ilógico que somente quando finda a instrução processual tenham as partes conhecimento da forma como devem conduzir a produção. MAZZILLI, Hugo de Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 17ª ed. São Paulo : Saraiva, 2004. p. 164.

22

Page 23: 015.05 - ACP - Optometria

proposta pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina,

Comarca de Canoinhas);

j) a condenação da requerida a não permitir que em seu

espaço físico ou sob sua coordenação ou conivência os acadêmicos

pratiquem atos privativos de médico e/ou exames de acuidade visual,

ou prescrevam, indiquem ou aconselhem a utilização de lentes de

grau;

l) a condenação da requerida à restituição dos valores

pagos ou ao abatimento do preço das mensalidades do curso, à

escolha do consumidor, aos consumidores que se sentirem lesados e

assim se habilitarem na execução da sentença;

m) a condenação da requerida ao pagamento quantia não

inferior a R$ 150.000,00 (cem mil reais) a título de danos

extrapatrimoniais difusos, acrescida de juros legais e correção

monetária desde a citação, valor este a ser revertido ao Fundo de

Recuperação de Bens Lesados;

n) a condenação da requerida a publicar em jornal de

grande circulação em todo Estado de Santa Catarina resumo da

sentença, às suas expensas;

o) a condenação da requerida em custas e despesas

processuais, excluídos os honorários advocatícios, por força do art.

44, I, da Lei nº 8.625/93.

Dá-se à causa o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil

reais).

Canoinhas, 13 de abril de 2005

José Renato Côrte Eduardo Sens dos Santos Promotor de Justiça Promotor de Justiça

Substituto

23