02 Menezes

Embed Size (px)

Citation preview

  • ORACULA 7.12 (2011) EDIO ESPECIAL

    ISSN: 1807-8222

    O ALM NO COTIDIANO

    REPENSANDO FRONTEIRAS ENTRE ANTROPOLOGIA E HISTRIA A PARTIR DO CULTO AOS SANTOS1

    RenatadeCastroMenezes*

    Resumo

    OobjetivodesteartigodemonstrarcomoacooperaoentreAntropologia

    eHistrianoestudodocultoaossantoscapazdecomplexificarainterpretao

    dessesfenmenose,consequentemente,ainterpretaodasrelaesentrealme

    cotidiano. Para tanto, o texto estruturase em trs partes: uma discusso inicial

    sobrea importnciadoestudodocultoaossantosparaascinciashumanas;em

    seguida, apresenta uma proposta de tratamento do tema a partir de uma

    abordageminterpretativista;eporfim,trazexemplosdearticulaoentrecasos

    etnogrficos e relatos historiogrficos, contribuindo para a construo de

    interpretaessobreasrelaesentresantosedevotos.

    Palavras-chave:Cultoaossantos;interdisciplinaridade;Antropologia;Histria.

    Abstract

    The aim of this paper is to demonstrate how cooperation between

    AnthropologyandHistoryinthestudyofthecultofsaintsisabletocomplexifythe

    interpretation of these phenomena and, consequently, the interpretation of

    1EstetextoumdosresultadosdapesquisaDevooeFormasdeSociabilidadenasFestasenoCotidiano, financiadacomrecursosdoeditalJovemCientistadoNossoEstado,daFundaodeAmparo Pesquisa Carlos Chagas Filho FAPERJ. So utilizados ainda dados das pesquisasanterioresPorumaantropologiadaDevoo:umaanlisedosprocessosdeconstruosocialdasa

    ntidade (20062010) e Adinmicado sagrado: umestudo sobre santuriosurbanos (20012004).*DoutoraemAntropologiaSocial,professoraadjuntadoDepartamentodeAntropologiadoMuseuNacional/UFRJ e pesquisadora colaboradora do Iser/Assessoria. Email:[email protected].

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial21

    relationshipsbetweendaily lifeandbeyond.Tothisend, thetext isstructuredin

    three parts: an initial discussion on the importance of studying the cult of the

    saints for theHumanSciences, thenpresentsaproposal foraddressing the issue

    from an interpretative approach and finally, provides examples of cases linking

    ethnographic and historiographical accounts, contributing to the construction of

    interpretationsoftherelationshipbetweensaintsanddevotees.

    Keywords:Cultofsaints;interdisciplinarity;Anthropology;History.

    Introduo

    Por que o culto aos santos catlicos, entendido como um conjunto de

    crenas e prticas devocionais que remontam aos primeiros sculos do

    cristianismo,podeserconsideradoumobjetodeestudosdointeressedasCincias

    Humanas e uma rea de pesquisa relevante numa discusso sobre o alm? O

    objetivo deste ensaio responder a essas perguntas, sob uma perspectiva

    metodolgica e epistemolgica, acionando experincias de pesquisa na rea de

    Antropologia.E,atravsdosargumentosapresentados,procurarsedemonstrar

    comoosestmulosmtuosentreestadisciplinaeaHistriapodemcontribuirpara

    aformulaodenovosproblemasenovasinterpretaessobreofenmenosocial

    dadevoo.

    O culto aos santos como um objeto relevante

    OhistoriadoringlsPeterBrown,emsuaobrafundamentalsobreotemado

    cultoaossantos, lembranosqueestesurgenaantiguidadecomofrutodacrena

    naexistnciadeumcanaldecomunicaoentreoCueaTerra,cujamanuteno

    se daria pelamediao de um ser humanomorto, o santo (ou a santa), ao qual

    seriam atribudas qualidades especiais no trato com o sagrado.2 Tratarseia,

    portanto, de ummortomuito especial, que aparece na literatura como capaz de

    articulartrsdimenses,semprepresentes,emboracomvariantesquantoaoseu

    grauesuaformadearticulao,deacordocomocontextohistrico,omodelode

    2DizoautoremseulivroTheCultoftheSaints,umclssicosobreotema:ThisbookisaboutthejoiningofHeavenandEarth,andtherole, inthisjoining,ofdeadhumansbeings.Itwilldealwiththe emergence, orchestration, and function in late antiquity of what is generally know as theChristian "cult of the saints". Cf. BROWN, Peter. The Cult of the Saints. Chicago: The ChicagoUniversityPress,1982,p.1.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial22

    santidade ou as caractersticas particulares do santo em questo. Essas so a

    dimensotaumatrgica,adimensomediadoraeadimensoexemplar.Umsanto

    capaz de provocar graas oumilagres. Ele ummediador ideal, pois por sua

    proximidadecomDeuseJesuscapazdeconseguircoisasparaaspessoas.Eele

    servecomoumexemploaserimitadoemborasejaumapossibilidadedeimitao

    umtantocomplicada,vistosermuitodifcil,praticamentepossveliguallo,jque

    um santo conjuga o humano ao sobrehumano. , portanto, numa articulao

    tensionadaesingularentreessastrsdimensesdetaumaturgo,demediadore

    deexem 3ploqueumsantoseconfigura.

    Vsecomo,apartirdessassimplesdefinies,osantopodeserassociadoa

    problemticassignificativasdopensamentoantropolgico.Aconstataodesuas

    capacidades extraordinrias nos leva a indagar que tipo de pessoa ele , ou

    melhor,formulandoemtermosmaisprximosaojargodadisciplina,aperguntar

    qualanoodepessoaenvolvidananoodesantidade4.Trataserealmentede

    umserhumano",ouhoutraclassificaomicaquecoloquesantosesantasem

    uma categoria distinta, a meio caminho entre homens e deuses? Se estamos

    falando de devoo a um morto, h semelhanas entre o culto aos santos

    desenvolvido em uma sociedade e seus ritos fnebres? Esse morto que se faz

    presente na vida de seus devotos est no mesmo plano de existncia habitado

    pelosdemaisouovisita,vindodeumplanoparaleloousuperior?

    Por outro lado, possvel perceber que a santidade uma identidade

    atribuda.5 Ser santo, ou tornarse santo, pode implicar em um investimento

    pessoal do postulante santidade numa espcie de "carreira", assumindo uma

    3 A definio da santidade como uma articulao tensionada dessas trs dimenses umaformulao minha, construda a partir da literatura sobre o tema, inspirada notadamente emelementos presentes nas definies de Andr Vauchez; Sophie BoeschGajano, e Yves Congar(VAUCHEZ, Andr. Santidade. In: Enciclopdia Einaudi. Vol. 12: Mythos/Logos; Sagrado; ProfanoLisboa/Porto: Casa daMoeda/ImprensaNacional, 1987, p. 287300; CONGAR, Yves. Saintet. In:BAUMBERGER, P. F. (dir.) Encyclopaedia Universalis. Vol. 20. Paris: Encyclopaedia UniversalisFrance, 1990, p. 497499; BOESCHGAJANO, Sophie. Saintet. In: LE GOFF, J., SCHMITT, JC.Dictionnaireraisonnde l'occidentmdival.Paris:Fayard,1999.p.10231038).Essasdimensesestariam,ameuver,presentes inclusivenadefiniocannicaatualdesantidade.EmboracomatendnciadoVaticanodereforaradimensoexemplardosanto,comprovaesdemilagresfazempartedoprocessodecanonizaoesoexpectativaslegtimasemseuculto.4Anoodepessoase tornaumproblemaantropolgicodesdeotextodeMarcelMausssobreotema.VerMAUSS,Marcel.Umacategoriadoespritohumano:anoodepessoa,adeeu.In:______.SociologiaeAntropologia.SoPaulo:Cosac&Naify,2003,p.367397.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial23

    conduta sacralizadora, que implique numa rgida moralidade, ou na superao

    e/ou perseverana diante de provaes incrveis, sobrehumanas, isto , um

    conjunto de atitudes que evidenciem um esforo de autoconstruo, de

    autocontrole.6Masseatentarmosparacomoasantidadeoperadefatonoscasos

    estudados,elasurgecomoumttulosocialmenteatribudo,poisumsantoouuma

    santa s o ser se algum o/a reconhecer enquanto tal, isto , se algum lhe

    atribuiressaqualidadeouseja,umttuloquenoeficazenquantopermanece

    nonveldaautodefinio.Portanto,precisoquehajaumacomunidademoralque

    reconheaosatributoseossinaisquemarcamemumapessoaasantidadefisica

    oubiograficamenteequecultueosantoenquantotal.Asantidadeenvolvetermos

    que se definem relacionalmente: no h santos sem devotos, nem devotos sem

    santos.deumarelaoqueestamosfalando,arelaodedevoo,emqueuma

    pessoa ao entregarse a um santo que seu protetor constrise como devoto

    enquantoquesimultaneamenteatribuiaseusujeitodelouvoracapacidadedeser

    portador ou "emanador" de santidade. Assim, estudar um santo implica em

    analisartambmacomunidade,ouascomunidades,deseusdevotos,aquelesque

    atribuemlegitimidadeeconsistnciaaseuttulo.

    Essasegundadimensoabreoutrafrentedetrabalho,ouseja,levantaoutro

    conjunto de questes. Quem cultua um santo e como o faz e quais grupos se

    formamousearticulamemtornodeumadevoo tratasedovisdadevoo

    enquantoumaformadesociabilidadequepodeaserexplorado,tantonarelao

    santodevoto,comonarelaoentreosdevotos,ouentreesteseossacerdotesque

    fazemamediaocomosagradoe,porvezes,controlamoacessoaoprpriosanto.

    Abrese ento um amplo espectro anlise, que pode ir da questo da

    reconstruo da identidade pessoal a partir de uma devoo at a questo do

    estudodasassociaesligadasaocultoaossantos,quesearticulaassimadiversas

    formaseprincpiosdeorganizaosocial.

    5 O que quero reforar que para alm de, no caso das canonizaes, estar em jogo um ttuloo ntosnooficiais,humaatrficialmenteatribudo,emtodososcasos,mesmonosdesa ibuiodesantidadeporpartedeumacomunidadededevotos.6Versobreotemaosseguintestrabalhos:MATRE,Jacques."L'OrphelinedelaBrsina".ThrsedeLisieux(18731897).Essaisdepsycanalysesciohistorique.Paris:Cerf,1996;KLANICZAY,Gbor.Legends as LifeStrategies for Aspirant Saints. In: _____. The Uses of Supernatural Power: theTransformationsofPopularReligion inMedieval andEarlyModernEurope.Princeton:PrincetonUniversityPress, 1990, p. 95110;BYNUM,CarolineWalker. Fast, Feast andFlesh:TheReligiousSignificanceofFoodtoMedievalWomen.In:Representations11(1985):125.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial24

    Outroconjuntodequestespodeserlevantadosepensarmoscomoeonde

    umsantocultuado.Elepodeserobjetodecultodomstico,nacasadosdevotos,

    ousercultuadoemtemplosaeleassociadosdealgumaforma.Maspodetambm

    sercultuadoemespaospblicosdurantedeterminadaspocasdoano,emfestas,

    procissesououtrasformasdecelebraocapazesde"sacralizar"periodicamente

    determinadosespaosquenocotidianoaparecemcomodesvinculadosdareligio.

    Tambmo tempoumadimensoque se liga aos santos: suas festasmarcamo

    calendrio e imprimem ritmo vida social das comunidades que os celebram.

    Podeseassimpensarnocultoaossantoscomoumdosoperadoresdaconstruo

    socialdas categorias "tempo"e "espao", cujaanlisepermitea compreensode

    processosdetemporalizaoeespacializao.

    As manifestaes pblicas desse culto so ainda oportunidades de

    abordagem da relao santodevoto por um pesquisador, pois se trata de uma

    chance de visualizla. Ladainhas, novenas, exvotos, santinhos, promessas,

    oraes,simpatiassoexpressesmateriaisdevnculoseemoesqueenvolvem

    santosedevotos,oquepermiteveressarelaoemoperao,emmovimento.Ea

    partirdapartevisveldasrelaespodesetentarrecuperaracomplexidadedesse

    fenmeno, visto que as suas dimenses internas e profundas dificilmente so

    verbali m a zadasouverbalizveis,tornandoseopacasparau observ dorexterno.

    Atravs de rituais como invocaes, cantos e oraes, o santo se faz

    presenteeageemfavordosquelhepedem.Entenderasconcepesacercadessa

    presena,dessaaoaformaemqueelased,oefeitoquecapazdeprovocar,

    as possibilidades de perceber suasmanifestaes bem como as interpretaes

    sobreosmecanismosdeseleoqueaorientampoisnoso todosospedidos

    que so atendidos aprofundar o conhecimento de moralidades, noes de

    justiaecosmologiasnativas,aindaquesvezesdemaneirafragmentada.Assim,

    no culto aos santos pode haver uma cosmologia, ou variantes cosmolgicas

    atualizandose permanentemente ao serem postas em operao atravs das

    relaes entre santos e devotos cosmologias que no so necessariamente

    coincidentescomadefendidapelaortodoxia religiosacatlica. Isto, tratasede

    uma aproximao religio como efetivamente vivida e pensada pelos agentes,

    longedosmodelosprescritospelasortodoxiasemuitasvezesalheiasfronteiras

    porelasestabelecidas.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial25

    Outroconjuntodequestessurgeemtornodolugardocorponadevoo

    o corpo do santo, onde se manifesta a santidade, atravs de dores, martrios,

    resistncia, capacidades de superao, de abstinncia alimentar, lquida e/ou

    sexual.Ocorpoquepermanece,exalaperfume,nosecorrompe,ousecorrompe

    de forma distinta da dos demais mortais. O corpo que vira relquia, fonte de

    proteo,restossagrados,invertendoatradioocidentaljudaicoromanadelidar,

    distncia e com cuidado, com os cadveres7 Mas tambm o corpo do devoto,

    instrumentodadevoo,ajoelhado,prostrado,quetocaebeijaaimagemdosanto,

    que"sente"suamanifestao.Assim,antropologiadasantidadeeantropologiado

    corpo se provocam mutuamente, ampliando nossa compreenso das formas

    sociais o e o rdesimbolizaonoc rpo emtornod co po.

    Todas as questes que discutimos at agora de um ponto de vista

    antropolgicopodemigualmente interessaraoshistoriadores,poisos fenmenos

    que citamos se desenvolvem numa amplahistriada santidade catlica, uma

    histria milenar que coloca em jogo outras histrias particulares, no

    necessariamentecoincidentes,eprincipalmente,nointercambiveis,vistonose

    referirem aos mesmos domnios. Fazem parte desse conjunto a histria do

    conceitodesanto, isto,dos tiposdepessoasasquais foi e temsidoatribudo

    esse qualificativo (mrtires, confessores, bispos, ascetas, santos das casas reais,

    religiososmendicantes,msticas femininas,etc.);ahistriadosmecanismosde

    atribuiodessettulo,quetambmumahistriadasinstnciasquedetiveram,

    ao longo dos sculos, a legitimidade de definir quem seria ou no santo (grosso

    modo, poderseia dizer que esse aspecto se relaciona a um processo de

    burocratizao,no sentidode construodemecanismos jurdicoprocessuaisde

    atribuiodottulooficialdesanto,edecentralizaonasmosdosumopontfice

    de algo que era inicialmente atribudo pelas comunidades crists locais a seus

    mortosclebres),eumahistriadasformasdecultoaessessantos,isto,uma

    histriadesuasdiversasmodalidadesedosdiferenteslugaresondeelesed,que

    marcada por um intenso debate na literatura entre "continuidade pag X

    novidade crist". Stephen Wilson e Jack Goody chamaram a ateno para uma

    quarta histria latente, quemuitas vezes deixada de lado, que ahistriada

    crtica ao culto dos santos, pois, como destaca Goody, esse culto nunca foi

    7BROWN,Peter.TheCultoftheSaints,p.45.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial26

    unnimedentrodaprpriaigreja,jquedesdesuasorigenshaveriacondenaes

    deidolatria.8Entoseriaprecisoconsiderartambmumahistriadecondenao

    docultoaossantosparalelahistriadoprprioculto.

    Assim, as especificidades das relaes que os devotos estabelecem com

    essas pessoas de cunhomuito especial que so os santos conformamobjetos de

    estudo significativos para o desenvolvimento das cincias humanas. O culto aos

    santos seria uma espcie de reservatrio de representaes, articulando

    concepes de tempo e espao sagrados, capazes de provocar transformaes

    radicaisnamorfologiasocialdassociedadesaelasrelacionadas,jquesanturios,

    festaseperegrinaesestabelecemligaesdiretasentreasesferasdareligio,da

    economiaedapoltica,alterandoo fluxodepessoasedebens, reconfigurandoa

    geografia,estabelecendocalendrios.Ouseja,ocultoaossantosseria,comodiria

    MarcelMauss,umfatosocialtotal:

    Nesses fenmenos sociais totais (...) exprimemse, de uma s vez, asmais diversas instituies: religiosas, jurdicas e morais estas sendopolticas e familiares ao mesmo tempo econmicas estas supondoformas particulares de produo e do consumo, ou melhor, dofornecimentoedadistribuiosemcontarosfenmenosestticosemque resultam esses fatos e os fenmenos morfolgicos que essas

    tinstituiesmanifes am.9

    Portanto, enquanto um fato social total, o tema deve interessar a

    pesquisadores das diversas reas das cincias humanas, como um fato scio

    cultural que mobilizou e mobiliza milhes de pessoas e de recursos e em cujo

    entorno se tecem prticas culturais, discursos simblicos, disputas politico

    religiosas e atividades econmicas. Tratase, portanto, de evidenciar sua

    importncia, em sua relao com a estrutura social e em sua relao com a

    estruturasimblicoculturaldedeterminadogrupoouperodo.

    Por um ra anlise inte pretativa e compreensiva do culto aos santos

    No entanto, a relevncia do tema nem sempre reconhecida pelos

    pesquisadores,quesvezeslhemanifestamcertomenosprezo,cujasrazespodem

    8WILSON,Stephen.E.SaintsandTheirCults:Studies inReligiousSociology,FolkloreandHistory.Cambridge/Londres/Nova York: Cambridge University Press, 1985; GOODY, Jack. Relics and theCognitive Contradiction of Mortal Remains and Immortal Longings. In:_____. Representations andContradictions.Oxford:Blackwell,1997,p.7597.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial27

    ser profundas. Comumente tratado sob as rubricas de religio popular, de

    cultura popular, ou mesmo de catolicismo popular, as quais muitas vezes

    podem camuflar uma postura condescendente, esses fenmenos foram tratados

    desde a Idade Moderna, com as marcas da Reforma e da ContraReforma (ou

    Reforma Catlica), como supersties e resqucios pagos, parte da

    ignorncia que o progresso da razo ou da verdadeira f viria esclarecer e,

    conseq .10uentemente,debelar

    Com o Iluminismo, alguns pesquisadores passam a buscar destacar das

    legendas em torno das vidas e obras das pessoas santificadas os ncleos de

    verdade,interpelandorigorosamenteadocumentaoexistenteatravsdacrtica

    histrica.Provadaforadesseprojetoestnacriao,nosculoXVII,daSociedade

    dos Bollandistas uma ramificao dos jesutas especialmente criada para

    recuperaodaverdadehistricaemtornodossantos.Noentanto,amodernidade,

    marcadapeloparadigmadasecularizao,noatribuamuitaatenoaossantos,

    pois poca a devoo a eles era percebida como um conjunto de crendices

    popularesemviasdeextinoque,antesdequalquercoisa,sinalizavaapresena

    de ranosmgicoreligiosos irracionaisaindanosuperados.Eraassimumtema

    queinteressavamaisprpriaIgreja(emesmoassim,comressalvas11)doques

    Cincias que se constituam, a no ser no caso do desvelamento de fraudes,

    charlatanismo ou delrios histricos que eram as justificativas acionadas para

    explicarracionalmenteaspretensascurasemilagresatribudosapseudosantos.

    Gradualmente,noentanto,ecomodesenvolvimentodeoutrasconcepes

    dedocumentopelaHistria,foisereconhecendoaimportnciadosregistrossobre

    ocultodossantoscomorepositriosdedistintasformashistricasdopensamento

    humano,embebidasemcosmovisesegradesclassificatriasqueforam,aolongo

    dossculos,setransformando.Aconcepodequeasimagens,ospersonagense

    osfeitosmilagrosospresentesnostextosenaiconografiasantoral,aparentemente

    9 o osMAUSS,Marcel. Ensaio sobre a ddiva. in: ______. Sociologia eAntropologia. S Paulo: C ac&Naify,2003,p.187.10 Lembremos que essas prticas, juntamente com a venda de indulgncias e outros rituaiscatlicos,forampontosdedestaquenacrticaluteranaexploraodaingenuidadedosfiispelaIgrejaRomana,ouseja,forampilaresdedemarcaodeformasdistintasdeseconcebereviverocristianismo.11SegundoGeorgesDaix,ascanonizaescaememdesusoapso iluminismo,voltandoaganharfora no sculo XX, no pontificado de Joo Paulo II, o papa que mais teria canonizado (DAIX,

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial28

    fantasiososousurreais, teriamumcartermticooualegricopermitiuqueuma

    historiografia do sculo XX, renovada (penso aqui nos esforos da cole des

    Annales,emsuasvriasgeraes,emais tarde,nosautoresvinculadosHistria

    Social e Histria Cultural, atribusse nova legitimidade ao tema do culto aos

    santos,enquantoum lcus estratgicodepercepodas ideaesqueoshomens

    fazem das sociedades em que vivem e das que desejam viver, por cristalizarem

    cosmologiaseutopiassingulares,bemcomopersonagensecenriosquerevelam

    concepes idealizadas dosmundos celeste e terrestre e de suas relaes. Essas

    concepes no apenas esto presentes no pensamento, mas orientam a ao,

    produz findoe eitosexternospalpveis.

    Nesse sentido, os historiadores Jacques Le Goff12 e JeanClaude Schmitt13

    atribuem Escola Francesa de Sociologia, com os trabalhos de mile Dukheim,

    Marcel Mauss, Henri Hubert e Robert Hertz, nos quais se gestou a idia de

    representaes coletivas, uma influnciadecisiva.Eumbomexemplode comoa

    nooderepresentaoassociarseiaaocultodossantosestarianaobrapioneira

    de Robert Hertz, que em 1913 estudou a devoo a So Besso em aldeias e

    parquiasdosAlpes.Emdeterminadomomentodeseutrabalho,Hertzdeparouse

    comduasversessobreavidadosanto,umadequeeleteriasidoumsoldadode

    uma legioromana,martirizadoporsua fcrist;aoutra,adequeele teriasido

    umbemsucedidopastordeovelhas,mortoporinvejadoscolegas.Hertzconstatou

    ocarterficcionaldeambasasverses,masissonoolevouadescartlascomo

    focodeanlise,pois,paraele,ointeressedoscientistassociaispelahagiografiano

    estarianaverdadequeelatrariasobreosanto:

    Asduasversesnoensinamnadasobreaverdadeiraidentidadedeseuheri comum, mas ambas jogam uma viva luz sobre os hbitos depensamento e sobre as tendncias morais dos grupos profundamentediversosondeelasseconstituram.14

    Parasustentaressaposio,emqueointeresseporumfatosocialestno

    significado que lhe atribudo por distintos grupos, seria preciso assumir uma

    perspectiva interpretativista, no sentido que o antroplogo Clifford Geertz,

    G dos santo boa: Terramar,eorges.Dicionrio sdo calendrio romano edosbeatosportugueses. Lis20

    :biografia.3ed.RiodeJaneiro:Reco00,p.23).

    12LEGOFF,Jacques.SoLus rd,2002,p.1930.13 SCHMITT, JeanClaude.Le corps, les rites, les rves, le temps.Essais d'anthropologiemdivale.Paris:Gallimard,2001,p.7.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial29

    influenciadopelasociologiacompreensivadeMaxWeber,15atribuiuaotermo.Em

    seu livroA InterpretaodasCulturas,degrande impactonos anos1970,Geertz

    defendeuumacinciadosocialvoltadaproduodeinterpretaes:

    Oconceitodeculturaqueeudefendo,ecujautilidadeosensaiosaseguirtentaro demonstrar, essencialmente semitico. Acreditando, comoMaxWeber,queohomemumanimalsuspensoemteiasdesignificaoque ele mesmo teceu, eu considero a cultura como essas teias, e suaanlise, consequentemente, no como uma cincia experimental embusca de leis, mas como uma cincia interpretativa em busca designificados.16

    Em outra obramais recente, dos anos 1980, omesmo autor acrescentou

    outroselementossuaposio:

    [Nosltimosanos]muitoscientistassociaisafastaramsedeumidealdeexplicao voltado a leis e exemplos para outro, voltado a casos e

    .interpretaes

    A explicao interpretativa (...) concentrase no significado queinstituies, aes, imagens, elocues, eventos, costumes (...) tmparaseusproprietrios.Poressarazo,seusresultadosnoso leis,comoosdeBoyle,nemforas,comoasdeVolta,nemmecanismoscomoosdeDarwin,massimconstruescomoasdeBurkckhardt,WeberouFreud:desvelamentos sistemticos do mundo conceitual em que vivem

    17

    condottieres,Calvinistasouparanicos.

    Amodalidadedessasconstruesvaria(...).Mastodaselasrepresentamtentativasdeformularcomoesteouaquelepovo,esteouaqueleperodo,estaouaquelapessoa,fazemsentidoparasimesmos,e,compreendendoisso,buscarexplicaesparaaordemsocial,paramudanashistricas,ouparaofuncionamentopsquicodeummodogeral.18

    14 eetFolklore.HERTZ,Robert. SaintBesse, tuded'uncultealpestre. In:_____.SociologieReligieusParis:PUF,1970,p.144.15WEBER,Max. Essais sur quelques categories de la sociologie comprhensive. In:Essais sur lathoriedelascience.Paris:Plon,1992,p.301364.16TheconceptofcultureIespouse,andwhoseutilitytheessaysbelowattempttodemonstrate,isessentiallyasemioticone.Believing,withMaxWeber,thatmanisananimalsuspendedinwebsofsignificance he himself has spun, I take culture to be those webs, and the analysis of it to betherefore not an experimental science in search of law but an interpretive one in search ofmeaning.GEERTZ,Cliford.TheInterpretationofCultures.2ed.NewYork:BasicBooks,2000,p.5,traduominha.HediesbrasileirasdaobrapelaEditoraLTD,masatraduoapresentamuitostruncamentos,daaopopelacitaodooriginaleminglsepelatraduoprpria.17Manysocialscientistshaveturnedawayfromalawsandinstancesidealofexplanationtowardacases and interpretations one (). GEERTZ, Clifford. Local Knowledge. New York: Basic Books,1983,p.19.Atraduominha,apesardeexistirediobrasileirapelaEditoraVozes.18 Interpretive explanation () trains its attention on what institutions, actions, images,utterances, events, customs, () all the usual objects of socialscientific interest, mean to thosewhose institutions, actions, customs, and so on they are. As a result, it issues not in laws likeBoyle's,orforceslikeVolta's,ormechanismslikeDarwin's,butinconstructionslikeBurckhardt's,Weber's, or Freud's: systematic unpackings of the conceptual world in whichcondottiere,Calvinists, or paranoids live. The manner of these constructions itself varies () But they allrepresent attempts to formulate how this people or that, this periodor that, this person or thatmakes sense to itself and,understanding that,whatweunderstandabout social order, historical

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial30

    Tratase,assim,deumadefesadacompreensodosgruposhumanosem

    seusprpriostermosparaumaposteriorgeneralizao.Porm,issocolocaum

    grandedesafioaosquepesquisamgruposemsituaodealteridade,isto,em

    situao distinta da do prprio pesquisador, seja no tempo, seja no espao:

    como conseguir estabelecer parmetros para interpretar os contextos sociais

    analisadosapartirdascategoriasdeentendimentodaquelesqueosvivenciam,

    que muitas vezes podem nos parecer completamente opacas?19 Como

    recuperaraspeculiaridadesdeoutrosmodosdepensar,seestamosimersosem

    nossaprpriasociedade,embebidosdenossasprpriasconcepes, limitados

    por nossas categorias do entendimento? Para impulsionar o esforo

    compreensivo,,portanto,importantedesenvolverferramentasqueauxiliem

    "desnaturalizao das prprias formas de classificao do mundo social,

    levandoospesquisadoresaperceberoquantosuasvisesdemundoegrades

    de enquadramento da experincia so histricas, isto , atreladas a

    determinados contextos scioculturais. E, complementarmente, desenvolver

    instrumentos que ativem a percepo de outras lgicas sociais, capazes de

    orientaroutrasmodalidadesdepensamentoeao.

    Para sustentar esse argumento, sero apresentados a seguir alguns

    exemplos, retiradosdeexperinciasdepesquisa,de formaspelasquaisumolhar

    interpretativoecompreensivo,quearticuleAntropologiaeHistria,podeoferecer

    novaschavesdeleituradocultoaossantose,comodesdobramento,deconcepes

    sobreoalm.

    Experincias de pesquisa: as graas no cotidiano

    Pesquisasediscussesbibliogrficassobreocultoaossantos tmsido

    desenvolvidaspeloGrupodePesquisadeAntropologiadaDevoo,vinculado

    aoProgramadePsGraduaoemAntropologiaSocialdoMuseuNacional,da

    change, orpsychic functioning in general.GEERTZ, Clifford.LocalKnowledge, p. 22. A traduotambmminha,comojjustificado.19 Lembremosque tomar comopontodepartida a opacidade, ou a incompreenso, em tornodecertos textos ou contextos e tentar tornlos inteligveis um recurso metodolgico eepistemolgicoutilizadoporautoresdepeso,comoMikhailBakhtin,queofazparatratardaobrade Franois Rabelais, ou Robert Darnton, que o faz para tratar de prticas de trabalhadores daFrana do Ancien Rgimen. Ver BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e noRenascimento: o contexto de Franois Rabelais. So Paulo/Braslia: HUCITEC/Editora da

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial31

    UniversidadeFederaldoRiode Janeiro.20Emborasejaumgrupodepesquisa

    em antropologia, o recurso histria, ou melhor, historiografia,

    constantementeacionado,noporumapreocupaocomabuscadeorigensde

    determinadas prticas ou noes, isto , no com a inteno de reconstituir

    processos histricos. Para o grupo, tratase de um instrumento eficaz de

    contraste, que ativa nossa percepo para lgicas alternativas. A anlise

    historiogrfica nos traz as especificidades de certos contextos, em que as

    categoriasa,boucteriamimportncia,adquirindodeterminadossignificados

    relativos ao lxico de uma poca, numa espcie de testemunho das

    possibilidades de variao das sociedades humanas, de um "outro possvel

    sejaesteoutroummundo,umcontexto,umcomportamento,umestilodevida.

    A comparao21 de anlises historiogrficas com o material recolhido em

    nossos trabalhos etnogrficos, em outros contextos, produziria um efeito

    iluminador,tornandoosmaiscompreensveis.

    Seria importante dar concretude a essa formulaomais geral atravs de

    algunsexemplosconcretos.Inicialmente,tomodoistrechosdeentrevistasobtidas

    emum trabalho de campo realizado pormimno convento franciscano de Santo

    Antnio, no Largo da Carioca, centro da cidade do Rio de Janeiro, no primeiro

    semest 22rede2001.

    O primeiro depoimento de D. Rita, uma senhora de mais de 50 anos,

    moradora da Baixada Fluminense (Caxias), catlica praticante, que vai ao

    convento todas as semanas, s terasfeiras, dia consideradode SantoAntnio,

    masquevaitambmaoutrasigrejasdocentro,comoadoMosteirodeSoBento,

    ondehumarezade teroqueela considera interessante, e IgrejadeSantana,

    onde participa da adorao ao Santssimo Sacramento. Pedi a D. Rita que me

    contasseumagraaaelaconcedidaporSantoAntnio.

    Universidade de Braslia, 1993; DARNTON, Robert.OGrandemassacre de gatos. Rio de Janeiro:Graal,1986.20Tratasedeumgrupodepesquisascoordenadopormim,registradonoCNPqecertificadopelaU R a d o e dF J.Informaesm isdetalha assobreotrabalhod grupopodem serobtidasac ssan oolinkhttp://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0202703R0U4BLX.21 r a Lembremos que comparar um p ocedimento ntropolgico fundamental, que significaconfrontarumacoisacomoutraparalhedeterminardiferena,semelhanaourelao.22 Este campo vinculavase pesquisa A dinmica do sagrado: um estudo sobre santuriosurbanos, mencionada anteriormente, que foi desenvolvida no perodo de 2001 a 2004 paraobtenodemeudoutoramentoemAntropologiaSocial.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial32

    VoucontaragraadeSantoAntnioterfeitominhamevoltaraandar.Minhame,queerasuperativa,teveumatromboseeficouemcadeiraderodas, cama de hospital. Mas como era muito alegre, animada, sofriamuitopornoestarpodendoseadaptar,elanoconseguiaseacostumar.Euchoravasemparar,desesperadacomosofrimentodeminhame.Umdia,eudisse:"Me,vocvaivoltaraandar.Vocquer,vocvaivoltar.SeforavontadedeDeus,vaivoltar".Entovimaqui,comSantoAntnio,epedi.

    Passoualgumtempo,enodiadomeuaniversrio,amemechamoudemanhnoquartoeestavadep,andando.Provavelmente [estimulada]pelo fatodesermeuaniversrio, eelaaindano terpodidomedarosparabns.

    Depois, ela viveu bemmais cinco anos, quando voltou a piorar. Fui denovoaSantoAntnio.Comeceiaformularopedido,equandoolheiparaele, parei. Ele estava olhando paramim como se dissesse: "Mas o quevocestquerendo?Cincoanosnoforamosuficiente?Oquevocquermais?" E eu, entendendo meu egosmo, parei o pedido no meio. Meuegosmo em querer queminhame ficasse viva de qualquermaneira,

    conmesmosofrendo.Eme formei.23

    VemosqueD.Rita foiduasvezesaSantoAntnio,num intervalodecinco

    anos, para pedir que sua me voltasse a andar e essa "ida at o santo" para

    enunciar o pedido pode ser reveladora de sua importncia, atribuindo maior

    solenidadeaumatoquepoderiaserfeitoemcasa.Arazoprincipalalegadapara

    pediraosantoeraosofrimentodame"ativa",queestavaentrevadanumacama.

    Daprimeiravez,pediue foiatendida.Dasegunda,oolhardosantoa impediude

    concluiropedidoefezcomqueela"seconformasse":Ritacompreendeu,graasao

    santo, que aquilo que amovia no eramais a preocupao com ame,mas seu

    prprioegosmo,emquerlavivaepertodesiparasempre.Edetevesenomeio

    dopedido.

    O depoimento de D. Rita oferece uma srie de elementos para a reflexo

    acerca da relao santodevoto: o pedido feito no convento, diante do santo; a

    explicao semiracionalizada para a me ter voltado a andar (justificando no

    apenaspelaaodosanto,mastambmporemoesecaractersticaspessoaisda

    prpria senhora, que a teriam estimulado: ser "superativa", "alegre", "animada",

    "queriadarosparabnspormeuaniversrio"),opedidoquedeveseradequado,

    isto , que deve respeitar certa etiqueta. Tratei desses temas em outros

    trabalhos,24mas o que gostaria de destacar neste ameno ao fato deD. Rita

    23EntrevistacomD.Rita,6/3/2001.24 MENEZES, Renata de Castro. A dinmica do sagrado. Rituais, sociabilidade e santidade numconvento doRio de Janeiro. Rio de Janeiro: RelumeDumar, 2004;MENEZES, Renata de Castro.Saberpedir:aetiquetadopedidoaossantos.In:ReligioeSociedade24.1(2004):4664.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial33

    "olhar para Santo Antnio" e este "responder". Como interpretar este dado,

    recupe urandoalgicaq emoveuessedilogoeessatrocadeolhares?

    Deixemos esse ponto em suspenso enquanto outro exemplo acionado,

    tambm deste trabalho de campo. Uma manh, conversando com D. Isis, uma

    devota fervorosa de Santo Antnio, membro da Pia Unio, que vem todas as

    semanasaoconventodesde1969eajudanobardeSantaClara,ondecomidase

    bebidassovendidasaosvisitantes,peolhequemeconteumagraadosantoem

    suavida.Elamecontauma,entorecente:

    Fui tirar um sinal na Casa de Sade Santa Polnia. A enfermeiraperguntoumeupeso,pergunteiparaqu,elarespondeuqueeuiatomaranestesiageral.Aaenfermeirapercebeuquehaviatrocadoaspapeletas,eeuquasefuioperadadecncerquandonaverdadeeutinhaapenasum

    aquefoiisso?sinal,umfibromadepele.Oquevocach

    RenataUmagraadeSantoAntnio?

    sisUmmilagredosanto,claro,porqueantesdeoperareuhaviadito:"valeime,meugloriosoSantoAntnio.25

    Tratase,nosdizeresdeD.Isis,deummilagredeSantoAntnio,ummilagre

    pequenoediscretocomosiacontecerentreaquelesquesedizemdevotosdeum

    santo,maisainda comosdevotos fervorosos.PoisparaestesdevotosoSantose

    tornaumapresenaconstantenavida.

    Como entender essa proximidade, esse entrelace entre o alm e o aqui e

    agora,semcairnumaperspectivanormativade interpretao?Dopontodevista

    deumaconcepoduradecincia, relatoscomoosdeRitae Isisgeralmenteso

    classificados como manifestaes populares de devoo (isto , ingnuas ou

    simplrias) ou ainda como projees de fragilidades psicolgicas. Algo entre a

    gnornciai eapatologia.

    Noentanto,estoemjogoconcepesbastanterecorrentestantonaampla

    literatura que trata do culto aos santos, como nas pesquisas que temos

    desenvolvido. Em sua pesquisa de mestrado sobre a devoo a padre Librio

    (18841980) emMinasGerais, LilianGomes encontrou enlaces entre o alm e o

    cotidiano na fala de vrios interlocutores.26 Entrevistando Juliana, uma das

    025EntrevistacomIsis,29/5/2 01.

    26 GOMES, Lilian Alves. Entre famlias, lugares e objetos: uma etnografia da santidade de PadreLibrio. Rio de Janeiro: Programa de PsGraduao em Antropologia Social/Museu

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial34

    promotoras da devoo na cidade de Leandro Ferreira, perguntoulhe se ela ou

    seusfamiliaresteriampromessasapagaraopadre.DisseJuliana:

    Opessoalaqui temdisso.Eunotenho(...).Eutenhoassim,depediretal,depoiseuagradeo.Agentetemocostume,masnodigoquesejapromessa.Ns chegamosdohospital comele [oneto recmnascido]efomosdiretonacapelinhadoPe.Librio,aquiagentetemisso.Compraumcarro,vaidiretol,pegaagua[tidapormilagrosa]e joga.Quandovai viajar... por exemplo, eu fao excurso para praia, eu no saio comnibussemirlejogarguabentanele.Eupassoagarrafinhaecadaumtoma um pouco, o motorista e tal. E quando a gente chega tambmsempreagentevaiemandacelebrarumamissaemagradecimento.(...)A gente pede muito. Eu peo demais. (...) E depois a gente agradece.ConversamosmuitocomPe.Librio,elenossoamigoesabedoquea

    sgentepreci a.27

    Essa proximidade a Pe. Librio, a sensao de poder contar com a ajuda

    constanteeapresenacotidianadoamigo,jfalecidoeconsideradosanto,poderia

    seratribudaporalgunsaofatodesetratardeumsantopopular,nocanonizado

    (emboraemprocessodebeatificao).Noentanto,emsuapesquisadedoutorado

    sobreadevooaSantaRitadeCssianumaparquiadocentrodoRiodeJaneiro,

    Raquel Lima tem encontrado situaes semelhantes no relacionamento dos

    devotos com essa santa oficial. Interessada em analisar as interaes entre a

    santa e os devotos estabelecidas atravs dos gestos devocionais como toques e

    beijos feitos imagem da santa, Lima vem recuperando, em entrevistas, as

    explicaesqueaspessoasdoparaosmovimentosvariadosqueexecutam:toco

    nospsparahumildementeelameajudar,toconasmospoispelasmosquea

    gentetransmiteenergia,passoamonelaassim(adevotamostragesticulando)

    evoufazendocarinhoeconversandocomela.28Osdepoimentostmpermitido

    pesquisadora esboar a anlise de um sistema comunicativo entre santos e

    devotos:

    UmasenhoracontouquehanoshaviaprometidoSantaRitaqueseelaa ajudasse a se livrar domarido violento e de seu casamento cheiodeagresses, ela, devota, colocaria sua alianade ourono dedoda Santa.(...) Aps muitos anos tentando obter o divrcio, ela finalmenteconseguiu,eentregoudepresentesuaalianaSanta(...).PergunteiseelaachavaqueSantaRitagostariadereceberaquelepresente,eadevota

    gdisse que tem certeza que ela ostou, posto que lhe deu outra aliana, N ederal do Rio de Janeiro, 2011, Dacional/Universidade F issertao (Mestrado emAntropologiaSocial).27 as, lugares e objetos: uma etnografia GOMES, Lilian Alves. Entre famli da santidade de PadreLibrio,p.23.28 LIMA, Raquel dos Santos Sousa. Em torno da devoo Santa Rita: rituais e processos desimbolizao numa parquia do centro carioca. Rio de Janeiro: Programa de PsGraduao emAntropologiaSocial/MuseuNacional/UFRJ,2011(examedequalificao),p.8.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial35

    querendodizercomissooutrocasamento(...).Esserelatointeressanteno apenas para perceber a manifestao da santa retribuindo outromaridoparaadevota,mastambmparapensarmosemcomoodevotoconstriodilogocomasanta.29

    Dilogos,trocas,amizade,proteo,ajuda:comoproduzirumagradeparaa

    leitura desses fenmenos relacionais que permita lhes conferir inteligibilidade?

    Comoentendlos em suas lgicas prprias, e no como atos ilgicos, ou lgicas

    desegundacategoria?Poistratloscomoexticosoupitorescosimplicariaem

    assumir uma posio de autoridade diante deles e das pessoas que neles

    participam.

    Comojdito,orecursoantropolgicoclssicoparaissoacomparao,o

    mtodocomparativo,ocontrasteentrevrioscontextossociais,oquepermitiria,

    maisdoquebuscarumdenominadorcomum,mapearoespectrodesuavariao,a

    complexidadede suasmodalidades, a capacidadede criatividade ediferenciao

    treo 30en ssereshumanos,aplasticidadecaractersticadestaespcie,enfim.

    No caso dos santos, a comparao poderia ser feita entre diferentes

    personagens, ou entre o culto aomesmo santo em diferentes locais, cruzandoo

    inclusive a diferentes tradies nacionais que lhe imprime variaes culturais

    significativas.Poderseiamesmopensaremcomparaesinterreligiosas,poisa

    despeito de diferenas conceituais significativas (ou seja, que no podem ser

    desprezadas),anoodesantidadepodeserestendidaaocristianismo,aoisl,ao

    hindusmo,aojudasmo,aobudismo,etc.

    Porm, uma perspectiva que pode ser explorada a comparao com a

    relaocomoalmemoutroscontextoshistricos,emqueoutraslgicas,outras

    categorias,outrosprincpiosdeorganizaodomundosocialeoutrascosmologias

    estivessem em vigor. Da comparao entre um ontem e um hoje determinados

    criase um jogo de contrastes do qual podem surgir diferenas significativas, ou

    pontosdecontatoquepermitamanalogias.31

    29 LIMA, Raquel dos Santos Sousa. Em torno da devoo Santa Rita: rituais e processos desimbolizaonumaparquiadocentrocarioca,p.10.30Ouseja,precisopensarqueaAntropologianoseriaapenasumacinciaembuscadoquehdecomumentreossereshumanos (isto,deuniversais),mas tambmumacinciapreocupadaemreg o , istrar o alcance e as modalidades de sua varia (isto a plasticidade e a capacidade desingularizao).31 Clifford Geertz, em obra j citada, afirma que a teoria, seja cientfica ou outra, moveseprincipalmentepelaanalogia,umaformadecompreensoemqueomenosinteligvelsetornamais

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial36

    Obviamente,tratasedebuscaranalogias,vistoqueahistrianoserepete

    enosetratadeumarecomposiodemacroprocessoshistricos,vistoqueisso

    implicaria em outro investimento de pesquisa cuja amplitude e viabilidade

    certamente escapariam de nossas mos. Ou seja, tratase de postular prticas

    comparativasentrecontextostratadosdeperspectivashistricaseantropolgicas.

    Nocasodapresenacotidianadeumsantoquevaicomadevotasalade

    operaes,oudeumsantoqueolhadoaltar,deumsantoqueamigoecomoqual

    seconversaconstantemente,oudeumasantaqueacabacomocasamentoruime

    manda um novo e bom marido, talvez a noo de maravilhoso quotidiano,

    utilizadapor JacquesLeGoffpossanosajudar.32Tratasedeumadas formasde

    irrupo domaravilhoso que este autor localizou nos sculos XII e XIII, citando

    doisexemplos,quereproduzoaqui.

    Asmanifestaesdomaravilhosoparecemmuitasvezessemligaocom a realidade cotidiana, mas revelamse dentro dela (...). Secontinua a haver o movimento de admirao dos olhos que searregalam, a pupila dilatase cada vez menos e este maravilhoso,conservando embora o seu carter vivido de imprevisibilidade, nopareceparticularmenteextraordinrio.

    Interessante um exemplum de Cesrio de Heisterbach, no DialogusMiraculorum (incio do sculo XIII). Um jovem nobre, conversocisterciense,estaguardarcarneiros reunidosnumaeiradaabadiacisterciense a que pertence, quando v aparecer diante de si umprimo recentemente falecido. Com toda a tranqilidade, perguntalhe: Que fazes aqui? E o outro, em resposta: Morri, vim para lhedizer que estou no Purgatrio e preciso que rezeis por mim.Faremos o que necessrio O defunto afastase assim no prado edesaparecenohorizonte,comosefizessepartedapaisagemnatural.,sem que o mundo se mostre minimamente perturbado por essa

    io.apar

    NosOtiaImperialia,umtextoumpoucoanteriormasaindadoinciodo sculo XIII, entre as numerosssimas anotaes demirabilia, oautorGervsiodeTilburycontaquenascidadesdovaledoRdano(...)hseresmalficos,osdrages,queagridemascrianas,masnoso, salvo excees, os tradicionais papes. Introduzemse de noitenas casas, com as portas fechadas, tiram as crianas dos beros elevamnasparaaruaouparaaspraas,ondesoencontradasnodiaseguinte (...). Os vestgios da passagem dos drages so quase

    acessvelporserestabelecidaumarelaoanalgicacomalgojconhecido.Comoexemplos,citaasanalogiasdaluzcomumaonda,docrebrocomumcomputador,doespaocomumbalodegs.Oautorassinalaaindaquedesdeosanos1980ascinciashumanasvmsubstituindoasanalogiascom as quais operavam classicamente: de analogias com fenmenos da natureza, passando poranalogiascomomundodoartesanatoeda indstriadomecanismoedamquina agora teriachegadoahoradasanalogiascomomundodasperformancesculturais(doteatro,dapintura,dagr ura, da lei e dos jogos), ao invsdas analogias com Cf.

    alKnowledge,pp.78.amtica, da literat manipulaes fsicas.

    GEERTZ,Clifford.Loc32LEGOFF,Jacques.OmaravilhosoeoquotidianonoOcidenteMedieval.Lisboa:Edies70,1989.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial37

    imperceptveis, o maravilhoso perturba o menos possvel aregularidade cotidiana. e provavelmente exatamente este o dadomaisinquietantedomaravilhosomedieval,ouseja,ofatodeningumse interrogar sobre a sua presena, que no tem ligao com ocotidianoeest,noentanto,totalmenteinseridanele.33

    Portanto,segundoLeGoff,airrupodomaravilhosorealizase,entreos

    sculosXIIeXIII,semfrices,semsuturas.Oreconhecimentodomaravilhoso

    no quotidiano se d de forma natural.34 Mas o autor sustenta que tal

    naturalidadevigorouporumperodohistrico,eemumareadeterminada,o

    quepode serbem identificadoemoutranarrativa sobre a IdadeMdia, desta

    vez cinematogrfica o impactante filmede IngmarBergmanOStimoSelo,35

    cujapocadiegticaosculoXIV.Nessefilme,outrasituaosecoloca:umdos

    personagens,Jof,umacrobataque,comaesposaMia,fazpartedeumatrupede

    saltimbancos, tem vises. Numa delas, v a Virgem Maria em companhia do

    MeninoJesusecontaoocorridomulher.Mialhepedecuidadoediscrio,pois

    o anncio dessa viso poder condenlo como louco. Essa cena sinaliza uma

    ruptura com a noo de maravilhoso cotidiano: no sculo XIV, o rtulo da

    loucuracomeaaseraformadeenquadramentodovisionriodasapariesda

    Virgem 36.

    Como poderamos ento sumariar os ganhos do estabelecimento dessas

    analogias entreAntropologia eHistria quanto ao alme o cotidiano, aindaque

    reconhecendoasdiferenasentresantos,primosmortos,drageseossculosXII

    XIIIeXXI?

    33LEGOFF,Jacques.OmaravilhosoeoquotidianonoOcidenteMedieval,p.2526.34LEGOFF,Jacques.OmaravilhosoeoquotidianonoOcidenteMedieval,p.33.35Tratasedeumaproduosuecade1957,consideradaumclssicocinematogrfico,cujasinopseseria:Nosculo14,depoisdedezanosdelutanasCruzadas,ocavaleirosuecoAntoniusBlok(MaxvonSydow)voltaaseupaseoencontraassoladopelaPesteNegra.AMorte(BengtEkerot)surgediante do cavaleiro e quer levlo consigo. Este pede um adiantamento da pena, durante o qualjogarumapartidadexadrezcomaMorte.Ocavaleiro,acompanhadosemprepeloateuescudeiroJons(GunnarBjrnstrand),vsuavoltaamortepelafomeepelapeste,fiisqueseflagelamemrituais sinistros, bruxas queimadas pela Igreja. Somente quando conhece Jof (Nils Poppe) eMia(BibiAndersson),umingnuocasaldesaltimbancos,quesuasdvidasetormentossoaliviados.Extrado de http://www.cineclick.com.br/filmes/ficha/nomefilme/osetimoselo/id/4332,capturadoem26/10/2011.36Ver,apropsitodasApariesMarianas,ohistricoretraadoemSTEIL,Carlos;MARIZ,CecliaLoreto;REESINK,MsiaLins.Mariaentreosvivos.ReflexestericaseetnografiassobreapariesmarianasnoBrasil.PortoAlegre:UFRGS,2003,notadamenteasp.2536.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial38

    Consideraes finais

    Nesse esforo compreensivo, recuperamos um contexto histrico que

    apresenta situaes anlogas aos depoimentos atuais, em que aes de santos e

    outrasentidadesmaravilhosasesobrenaturaissefazempresentenocotidianode

    formanaturalediscreta,semgrandesestardalhaos.

    Assim, personagens que nos pareceriam irreais surgem de forma ativa,

    produzindoefeitos,mobilizandopessoas,canalizandoenergias.Oreconhecimento

    daproximidadedessespersonagens,cujaexistnciaestariaaprincpioassociada

    outraesferasejaestadamorte,dosobrenatural,da imaginaooudoalm

    permitenos indagar at que ponto as esferas so realmente outras. Ou seja,

    permitenosperguntardequeformanocotidianodecertossujeitoshistricos,em

    determinadoscontextosculturais,oalmeocotidianoso tematizados: soeles

    estanques, com separaes ntidas, ou so esferas permeveis, porosas, com

    passagensepontosdecontato?

    Por outro lado, as analogias com o passado permitemnos manter a

    complexidadedosdepoimentosrecolhidosnopresente,recuperandoosenquanto

    racionalidadesprpriasdareligioconcretamentevivida,nombitodasrelaes

    de devoo. Permitenos manter a ambivalncia dos santos, de que falou Peter

    Brownnadefinio aque retornamos vrias vezes ao longodeste texto. Figuras

    ambguas, estruturalmente ambivalentes, que se fazempresente l e c, que so

    pessoasmortas,mastambmimagensvivas,quesopresenaeao,noapenas

    noextr n iaordinrio,mas ocot diano.

    Recuperar falas como as deD.Rita, deD. Isis, de Juliana oudadevota de

    Santa Rita permitenos compreender melhor o que significa ser um devoto. A

    literaturadocultoaossantosgeralmentetemsefixadonastrocasentrepessoase

    santos tal como expressas em promessas e exvotos. Esse vis compreensvel,

    porque focaliza a parte mais visvel, publicamente manifesta das relaes de

    devoo.Masosdepoimentosquecitamospermitemperceberqueadevoono

    envolveapenastrocaseficazeseinteressadasentresantosedevotos,isto,nose

    refere apenas capacidade do devoto obter coisas atravs do santo, e

    necessidade do santo ser homenageado pelo devoto. Ela envolve tambm uma

    intensa comunicao que passa por olhares, gestos, palavras e envolve afetos,

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial39

    emoesevontades,numarelaovinculantequevaimuitoalmdapromessa,ou

    seja,deumatrocapontualeinteressada.

    Em um questionrio que apliquei na pesquisa de 2001,37 essas questes

    apareceram de forma pronunciada. Ao indagar aos entrevistados quem Santo

    Antnioparavoc?,muitosfalaramdarelaoquetinhamcomele,eressaltaram

    os sentimentospresentesnessa relao, tais comoa f, a confiana, aamizade,a

    constncia e o respeito. Nesse conjunto de respostas, que se referiam

    principalmente queles que se definiam como "devotos do santo", muitas

    dimensespodemseragregadas.

    Aminha f atribuo a SantoAntnio. Peoproteoquando voupara otrabalhoeagradeoquandovolto.Elemeuamigo,conversocomele38.

    TodasasperguntasqueeufaoparaSantoAntnio,elemeresponde.Eleumgrandeeverdadeiroamigo.39

    SantoAntnio umamigo, nahorado trabalho, eu estouangustiada evenhonaigrejaenoprecisofalarnada,solharparaaimagememedumconforto.40

    Meufielamigoeconselheiro.41

    Ele est aomeu lado, eu no o vejo comomorto, como santo, vejo elecomoamigo.42

    O santo, visto a partir de seus devotos, no apenas o taumaturgo, o

    exemplo e omediador, complexificando a definio que apresentamos no incio

    desteartigo.Ele issotudo,mastornasetambmoamigo,oconfidente,"aquele

    que me conhece melhor do que ningum", o que me aconselha, o que me

    entendesemquesejaprecisodizernada", oquemeconcedegraassemqueeu

    precise pedir. Agregase devoo sentimentos quedemonstramestar em jogo

    no apenas pedir, receber e retribuir ao santo, mas estabelecer vnculos que

    envolvemdimensesmaisprofundas.43

    37Oquestionriofoiaplicadoa250pessoasnosdias12e13dejunhode2001,porquatroalunosdegraduaodaPUCRio.Maioresdetalhessobreametodologiaeoformatodoquestionrio,bemco dinmicadosagrado,mosobreaidentidadedosalunos,estoemMENEZES,RenatadeCastro.Acaptulo1.38 Depoimentodemulher,46anos,moradoradeCopacabana,junhode2001.39Depoimentodemulher,38anos,moradoradeBonsucesso,junhode2001.40 001.Depoimentodemulher,30anos,moradoradoFlamengo,junhode241Depoimentodemulher,24anos,moradoradaIlhadoGovernador,junhode2001.42Depoimentodemulher,25anos,moradoradoIraj,junhode2001.43 Obviamente o subtexto aqui o do Ensaio sobre a Ddiva, deMarcelMauss e a aproximaodistintivaquepretendoproduziraquientredevooereciprocidade,sendoesseltimoconceito

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial40

    Recuperando a complexidade dos depoimentos dos devotos e tentando

    entrar em sua lgica, tornase possvel perceber as especificidades que eles

    atribuemrelaodedevoo.Hmuitasmaneirasdealgumserelacionarcom

    umsanto,desderealizandopedidoseventuaisparaatenderaumaemergncia,at

    mesmo fazendosimpatiasenovenaspara conseguiroque sequeralcanar.Mas

    algum que se defina como um devoto, ou seja, algum que se colocou sob o

    registro da devoo, no v as coisas assim. A relao de devoo tornase

    distintivaemrelaosdemais.Elaimplicanumvnculoduradouroepermanente

    deumapessoacomumsanto,vnculoquepodeseestenderpelavidaafora,emque

    mais que a retribuio, entram em cena o agradecimento e a entrega de si.44 A

    devoo, e principalmente a devoo fervorosa, se manifesta numa atitude de

    doao do devoto ao santo. Como retribuio pelas benesses que ele

    ocasiona/ocasionouemsuavida,odevotoseentregaaele,ouaobemdosoutros,

    poramoraele.

    Poroutrolado,quantomaisfervorosaumadevoo,oslimitesentrevidae

    graatendemaseconfundir.Umdevotofervorosoparecevivernumpermanente

    estado de graa, marcado por uma gratido constante por seu santo protetor.

    Comoosantosefazpresenteesuaintervenoacontecemesmosemserdemanda,

    a distino entre o que e o que no graa cada vez mais difcil de se

    estabelecer. A devoo tornase assim uma chave interpretativa para a prpria

    vida, em que os episdios ganham sentido ao serem classificados e encadeados

    numasucessodegraas,castigos,advertncias,milagres.

    Emsntese,atravsdeumasriedeestmulosmtuosentreAntropologiae

    Histria, conseguimos produzir uma interpretao do culto aos santos mais

    prxima s formulaes que deles fazem os prprios devotos, construindo uma

    visomaiscomplexaeplsticadasrelaesentrealmecotidiano.

    associado obra de Mauss. Cf. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. in: ______. Sociologia eAntropologia,p.183314.44Noteseque,segundonossosdadosdecampo,ovnculoentresantoedevotoenvolveafidelidade,masnoaexclusividade,poispossvelsecombinardevoesavriossantos.Quantodurao,este vnculo , parafraseando o poeta Vinicius deMoraes, vivido como "infinito enquanto dura".Tidocomoeternopelodevoto,h,noentanto,apossibilidadedeincorporaodenovasdevoesao panteo de cada pessoa, o que faz com que no curso da vida uma devoo principal possaassumiropapeldeumadevoosecundria,eviceversa,tornandovnculosmaisoumenosfortes,oumaisoumenosfracos,dependendodomomentovividopelodevotoParaalm,claro,doscasoscadavezmaisrecorrentesnoBrasilatualdedesfiliaoreligiosa.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial41

    Referncias biblio

    BAKHTIN,Mikhail.AculturapopularnaIdadeMdiaenoRenascimento:ocontextode Franois Rabelais. So Paulo/Braslia: HUCITEC/Editora da Universidade de

    grficas

    Braslia,1993.

    BOESCHGAJANO, Sophie. Saintet. In: LE GOFF, J., SCHMITT, JC. Dictionnaireidentmdival.Parisraisonndel'occ :Fayard,1999,p.10231038.

    BROWN,Peter.TheCultoftheSaints.Chicago:TheChicagoUniversityPress,1982.

    BYNUM,CarolineWalker.Fast,FeastandFlesh:theReligiousSignificanceofFood.toMedievalWomen.In:Representations11(1985):125

    CONGAR, Yves. Saintet. In: BAUMBERGER, P. F. (dir.)EncyclopaediaUniversalis.. cyclopaediaUniversalisFrance,1990,p.497499.Vol.20 Paris:En

    DAIX, Georges. Dicionrio dos santos do calendrio romano e dos beatos:Terramar,2000.portugueses.Lisboa

    .Ograndemassacredegatos.DARNTON,Robert RiodeJaneiro:Graal,1986.

    TheInterpretatio asicBooks,2000.GEERTZ,Clifford. nofCultures.2ed.NewYork:B

    alKnowledge.NewYork:BasicBoGEERTZ,Clifford.Loc oks,1983.

    GOMES,LilianAlves.Entrefamlias,lugareseobjetos:umaetnografiadasantidadede Padre Librio. Rio de Janeiro: Programa de PsGraduao em AntropologiaSocial/MuseuNacional/UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro,2011.Dissertao(MestradoemAntropologiaSocial).

    GOODY, Jack. Relics and the Cognitive Contradiction of Mortal Remains andImmortalLongings.In:_____.RepresentationsandContradictions.Oxford:Blackwell,1997,p.7597.

    HERTZ,Robert.SaintBesse,tuded'uncultealpestre.In:_____.SociologieReligieuseetFolklore.Paris:PUF,1970,p.144.

    KLANICZAY, Gbor. Legends as LifeStrategies for Aspirant Saints. In: _____.TheUsesofSupernaturalPower: theTransformationsofPopularReligion inMedieval

    urope.Princeton:PrincetonUniversityPress,1990,ppandEarlyModernE .95110.

    LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa:Edies70,1989.

    a.3ed.RiodeJaneiro:Record,2002.LEGOFF,Jacques.SoLus:biografi

    LIMA, Raquel dos Santos Sousa. Em torno da devoo Santa Rita: rituais eprocessos de simbolizao numa parquia do centro carioca. Rio de Janeiro:ProgramadePsGraduaoemAntropologiaSocial/MuseuNacional/UFRJ,2011

    o).(examedequalifica

    MATRE, Jacques. L'Orpheline de la Brsina. Thrse de Lisieux (18731897).Essaisdepsycanalysesciohistorique.Paris:Cerf,1996.

  • Oracula7.12(2011)EdioEspecial42

    MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. In: ______. Sociologia e Antropologia. SoPaulo:Cosac&Naify,2003,p.183314.

    _____. Uma categoria do esprito humano: a noo de pessoa, a de eu. In:______.aulo:Cosac&Naify,2003,pSociologiaeAntropologia.SoP .367397.

    MENEZES, Renata de Castro. A dinmica do sagrado. Rituais, sociabilidade esantidadenumconventodoRiodeJaneiro.RiodeJaneiro:RelumeDumar,2004.

    MENEZES, Renata de Castro. Saber pedir: a etiqueta do pedido aos santos. In:1(2004):4664.ReligioeSociedade24.

    SCHMITT,JeanClaude.Lecorps,lesrites,lesrves,letemps.Essaisdanthropologiemdivale.Paris:Gallimard,2001.

    STEIL, Carlos; MARIZ, Ceclia Loreto; REESINK, Msia Lins (org.).Maria entre osvivos.Reflexes tericas e etnografias sobre apariesmarianas no Brasil. PortoAlegre:EditoradaUFRGS,2003.

    VAUCHEZ, Andr. Santidade. In: Enciclopdia Einaudi. Vol. 12: Mythos/Logos;Sagrado;Profano.Lisboa/Porto:CasadaMoeda/ImprensaNacional,1987,p.287300.

    WEBER, Max Essais sur quelques categories de la sociologie comprhensive.thoriedelascience.PaIn:______.Essaissurla ris:Plon,1992,p.301364.

    WILSON,Stephen.E.SaintsandTheirCults:StudiesinReligiousSociology,FolkloreandHistory.Cambridge:CambridgeUniversityPress,1985.