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1 A ANÁLISE COGNITIVA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: RUMO A UMA SOCIOLOGIA POLITICA DA AÇÃO PÚBLICA – PIERRE MULLER A análise das políticas públicas, que surgiu relativamente tarde na França, conheceu ao longo dos últimos vinte anos um desenvolvimento considerável: As teorias controversas se multiplicam, os trabalhos empíricos estão em abundancia, alimentados pelo entusiasmo de uma geração de jovens pesquisadores que avaliaram os novos questionamentos sobre o objeto politico que essa abordagem permite questionar. No entanto, paradoxalmente, esse desenvolvimento levantou uma inquietude entre os que mais contribuiram para introduzir na França esta nova maneira de pensar política: A analise política está ameaçada pelo seu próprio sucesso? É muito cedo para formular uma declaração tão pessimista. Em revanche, podemos pensar que uma reflexão sobre as contribuições da análise de políticas públicas de ciência política é útil nos dias de hoje. É preciso se perguntar quais conceitos e os métodos da policy analysis nos fez mudar o olhar (pensamento) sobre a política, e quais são os limites que essa “empreitada” enfrenta hoje para renovar a análise da política a partir do estudo de políticas. A tese que gostaríamos de defender é a seguinte: de um lado, a analise de politicas contribuiu para renovar, de forma espetacular, um número considerável de questionamentos fundamentais da ciência politica, a começar pelas a que concerne a natureza do poder político, pois é ela que conduziu a sociologiser (sociologizar) a análise do Estado. Contudo, de um lado, essa empreitada de renovação enfrenta, agora, uma série de obstáculos ligados à postura de pesquisa que foi adotada pela maior parte das análises que contribuiram para essa ruptura, e que esses obstáculos impedem de mensurar, verdadeiramente, as transformações da ação pública nos dias de hoje, principalmente porque são encontradas dificuldades para questionar uma das questões centrais da ciência política: Como “fabricar” a ordem em uma sociedade complexa?

03. Muller, Pierre - Traduzido Cecilia

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A ANÁLISE COGNITIVA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: RUMO A UMA SOCIOLOGIA POLITICA DA AÇÃO PÚBLICA – PIERRE MULLER

A análise das políticas públicas, que surgiu relativamente tarde na França, conheceu ao longo dos últimos vinte anos um desenvolvimento considerável: As teorias controversas se multiplicam, os trabalhos empíricos estão em abundancia, alimentados pelo entusiasmo de uma geração de jovens pesquisadores que avaliaram os novos questionamentos sobre o objeto politico que essa abordagem permite questionar. No entanto, paradoxalmente, esse desenvolvimento levantou uma inquietude entre os que mais contribuiram para introduzir na França esta nova maneira de pensar política: A analise política está ameaçada pelo seu próprio sucesso?

É muito cedo para formular uma declaração tão pessimista. Em revanche, podemos pensar que uma reflexão sobre as contribuições da análise de políticas públicas de ciência política é útil nos dias de hoje. É preciso se perguntar quais conceitos e os métodos da policy analysis nos fez mudar o olhar (pensamento) sobre a política, e quais são os limites que essa “empreitada” enfrenta hoje para renovar a análise da política a partir do estudo de políticas.

A tese que gostaríamos de defender é a seguinte: de um lado, a analise de politicas contribuiu para renovar, de forma espetacular, um número considerável de questionamentos fundamentais da ciência politica, a começar pelas a que concerne a natureza do poder político, pois é ela que conduziu a sociologiser (sociologizar) a análise do Estado. Contudo, de um lado, essa empreitada de renovação enfrenta, agora, uma série de obstáculos ligados à postura de pesquisa que foi adotada pela maior parte das análises que contribuiram para essa ruptura, e que esses obstáculos impedem de mensurar, verdadeiramente, as transformações da ação pública nos dias de hoje, principalmente porque são encontradas dificuldades para questionar uma das questões centrais da ciência política: Como “fabricar” a ordem em uma sociedade complexa?

É aqui que a abordagem cognitiva das politicas públicas pode acrescentar elementos de resposta, na medida onde ela tende reformular a questão da ação pública: a partir do momento em que o objeto de politicas públicas não é mais somente para “resolver problemas”, mas também para construir estruturas de interpretação do mundo, entao é possível questionar a relação entre política(s) e contrução de uma ordem social nos novos termos.

Para poder confirmar esta hipótese, nós gostaríamos de relembrar inicialmente como a análise de políticas públicas criou uma ruptura no estudo do Estado e como essa ruptura encontrou seus limites. Nós tentaremos mostrar em seguida que a análise cognitiva das politicas públicas permite superar esses obstáculos, pois ela leva a renovar essa difícil questão da relação entre os atores e as estruturas de significado. Assim, ela permite levar em conta melhor a dimensção do global na ação pública e como consequència o impacto da globalização sobre a transformação das formas de ação pública.

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A ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA SOCIOLOGIA DE AÇÃO PÚBLICA

O que melhor caracteriza a reversão feita pela análise das políticas públicas é o fato que ela compreende o Estado a partir de sua Ação, ou seja, a partir de seus outputs. O desenvolvimento, ainda insuficiente na França, de trabalhos sobre a avaliação de políticas públicas é bem fundamentado sobre essa postura de pesquisa. É por isso, como diz Jean Leca, que a análise de políticas públicas tem mostrado – sem dúvida – que as funções de governo são irredutíveis aos processos de representação politica e que não é possível “inferir” o conteúdo e as formas de atividades governamentais (como atividade específica) das características da “política eleitoral”.

É desta forma que vimos se multiplicarem os estudos que destacam a complexidade da relação de alternancia política e mudança do conteúdo das políticas públicas. Vários exemplos da “mudança de 1983” durante o governo de Pierre Mauroy modificaram profundamente o conteúdo das políticas econômicas francesas que eram contrárias aos projetos do “plan Juppé” de Miterrand, mostrando claramente que a definição das escolhas públicas não pode ser inferida das condições da luta eleitoral. 1 Todavia, isso não significa que não havia uma relação entre essas duas dimensões. Assim, em seu estudo sobre a origem da lei Lang sobre o preço único do livro, Yves Surel colocou em evidência o papel decisivo jogado pela alternância de 1981 na abertura de uma janela política levando a uma mudança radical do conteúdo da política. De forma geral, não existe dúvida que os trabalhos de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher contribuiram, de maneira decisiva, à profunda transformação das políticas econômicas e sociais nos EUA e UK no início da década de 80, e que a eleição de Chirac levou a uma sensível transformação das políticas de defesa da França com a profissionalização de seu exército.

Em geral, a contribuição da análise de políticas é o de poder mostrar que a esfera da representação política constitui apenas uma dimensão – importante – que permite compreender as decisões na matéria da política pública. Na realidade, como indicado no trabalho de Kingdon, a mudança da política deve ser vista como o produto de várias linhas paralelas que (isso é o que difere a ciência política da geometria...) que se juntam durante períodos específicos graça a ação dos atores mais ou menos identificados com os domínios em que o estudo se revelará de forma central. Essas sequências, que Kingdon chama de correntes, dizem respeito aos diferentes universos de sentido e da ação que se articula de forma mais ou menos complexa no processo de definição de um programa de ação pública: sequência política, marcada pelo papel dos partidos e dos atores do campo político no seu sentido estrito, sequência profissional, que coloca em cena os atores do domínio interessado, sequência administrativa, que diz respeito à atividade de preparação e implementação das decisões.

As políticas públicas constituem assim um nível de interpretação específica da atividade politica. Desta forma, a análise política tem contribuído, sobretudo na Europa, para romper com a concepção que considera o Estado, em várias formas, como uma “empresa de dominação” caracterizada inicialmente pela sua capacidade de impor uma ordem política global, em substituição a uma concepção centrada sobre a atitude do Estado para a “resolução de problemas”. Se junta aqui a distinção clássica desenvolvida por Fritz Scharpf entre a legitimação entre inputs e outputs.

1 Observação de Cecília: Mauroy foi primeiro ministro de Miterrand na década de 80. Estes se desentederam quanto à melhor forma para melhorar a situação econômica da França. Miterrand decide tirar o Franco Françes do Sistema Monetário Europeu o que acarretou na “mudança de 1983” quando um 3º governo foi criado na França, o de Pierre Mauroy. O plano Juppé foi uma plano elaborado por Alan Juppé que dava aos funcionários das empresas públicas francesas as mesmas condições sociais e trabalhista das outras empresas privadas na França. O plano não obteve sucesso devido a grande quantidade de greves e manifestações feitas pelos empregados dessas empresas

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Essa primeira ruptura é acompanhada de uma reconsideração ainda mais importante: ao enfatizar a observação de resultados da ação do Estado, o estudo das políticas públicas lança dúvidas sobre a racionalidade da ação pública. Isto tem contribuído a gerar uma má visão “hégélienne”, que é tão forte na Europa. De um Estado onisciente ou onipotente cuja racionalidade foi capaz de transceder a irracionalidade de interesses particulares. Uma quantidade de obras (livros, estudos, bibliografias) têm mostrado que os resultados da ação do Estado poderiam ser bem diferentes dos esperados, bem como a implementação de políticas públicas constituiria uma sequência irredutível à fase de decisão e suscetível a modificar o conteúdo da ação pública.

É sábido que os trabalhos de March, Simon, Cohen e outros iluminaram os limites da racionalidade dos sistemas de decisão ao sublinhar a importância das estruturas cognitivas dos sistemas de decisão e os limites da capacidade dos atores para mobilizar as informações pertinentes. Na realidade, “o momento” da decisão aparece como um processo incompreensível em que os atores de diferentes naturezas (políticas, funcionais...) participam em um tipo de decantação progressiva de escolhas (que nunca são dadas de início) unindo de forma pouco coerente as informações e dados completamente heterogêneos. A imagem convencional do “decisor” tendo na sua frente o conjunto de dados do “problema” é substituido pela a do funcionamento desordenado do conjunto de atores misturando informações fragmentadas, truncadas e de natureza imensurável. O questionamento gerado, sobre quando o trabalho não responde verdadeiramente as necessidade, é evidentemente sobre o saber como os processos de ação pública podem não obstante produzir uma ordem legítima nessas condições.

Finalmente, a análise das políticas públicas – que na realidade é a sociologia das organizações que alcançam a ruptura decisiva – propôe ao pesquisador uma caixa de ferramentas constituída de conceitos – atores, poder, estratégia, informação ... – que permitem abrir a caixa preta do Estado, perguntando não apenas sobre seus resultados, mas também pelo seu funcionamento. A Análise da política contribuiu para sociologizar nosso olhar sobre o Estado, na medida em que, no lugar de entender o Estado pelo alto e em blocos, ela nos permitirá observar por baixo e datalhadamente. É possível notar que a concepção de Estado por Max Weber nada mais é que a articulação desse movimento, pois o Estado, se domina transcende até mesmo a sociedade, se transforma em uma máquina em que podemos até desmontar as rodas.

O questionamento que se coloca nos dias de hoje é sobre os limites deste retorno de perspectiva. Tudo acontece como se as rupturas operadas pela análise das políticas públicas tendessem a impedir os pesquisadores que se reconhcem nessa disciplina a levar em consideração alguns dos objetos centrais da ciência política. Em outras palavras, o que já fez sucesso na análise de políticas públicas tende, nos dias de hoje, limitar as capacidades dessa aproximação a, apenas, explicar, uma série de transformações atuais da ação pública.

Um dos principais limites é, sem dúvida, a dificuldade que encontra a análise das políticas públicas para perceber uma questão central dentro das reflxões atuais sobre a política: como “será produzida” a ordem política em sociedades que são cada vez mais complexas, fragmentadas e abertas ao mundo exterior? A desconstrução dos grandes sistemas de explicação de ordem politica, a começar pelo paradigma marxista, no qual a análise das políticas públicas contribuiu, deixa aberta a questão de saber o que faz hoje “ficarem juntos” as diferentes componentes do que constitui, atualmente, uma sociedade política. Esta questão vai além dos limites genéticos da análise de políticas públicas.

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Esse limite se baseia fundamentalmente sobre uma questão de método. Que é na verdade, o que fez o sucesso da análise política, o que permitiu ultrapassar as abordagens tradicionais do Estado ao “abrir a caixa preta”, uma postura baseada no individualismo metodológico que coloca no centro da análise a observação do comportamento e das estratégias dos atores que compôe os sistemas de ação que são estudados. Essa abordagem indutiva baseada, fundamentalmente, sobre a ideia de que é a partir da observção dos atores e das estratégias que estes colocam em prática que será possível analisar a sociedade global, que só existe a partir do momento quando ela se atualiza nas estratégias dos atores concretos.

O problema dessa abordagem ao introduzir o ator na análise é que a situação global não pode ser reduzida à estratégia dos atores. Mais precisamente, a abordagem não lhe é permitida de se responsabilizar pelas complexidades entre “ator e sistema”. Ela não permite compreender como o ator é as vezes forçado pelo global, sendo ele um ator desse globo, o que significa que, no global, existe “qualquer coisa” a mais que transcende de alguma forma as estratégias dos atores individuais ou coletivos e não se reduzem à soma dos comportamentos individuais.

A questão que gostariamos de colocar é, então, sobre aquela de saber se é possível de prescrever as aquisições insubstituíveis de abordagem pelos atores, integrando o carater irredutível da dimensão global: Como pensar o fato que os atores agem, definem as estratégias, efetuam escolhas, mobilizam recursos, são “livres” – dentro do modelo da estrutura de ordem global na qual têm apenas uma possibilidade limitada de ação. Essa é a difícil pergunta que surge na análise cognitiva das políticas públicas.

O PAPEL DOS ATORES NA CONSTRUÇÃO DOS MODELOS DE INTERPRETAÇÃO DO MUNDO

A análise cognitiva das políticas públicas procura responder a uma dupla ambição: integrar a dimensão do global, que parece fundamental para compreender a lógica do trabalho na mudanças das políticas públicas, destacando o papel dos atores na construção dos quadros de interpretação do mundo e a implementação concreta da dialética global e “setorial”.

É neste momento que as pesquisas de Bruno Jobert constituem um ganho decisivo na compreensão da dialética entre o jogo de atores e a transformação das matrizes cognitivas. Em seus trabalhos sobre crescimento, o que é conhecido como “mudança neoliberal”, Jobert questiona de fato sobre os modelos “impostos” durante a década de 80 que são vistos como referenciais de partida. Jobert mostra que o processo de imposição/aceitação da mudança de referencial passa por um funcionamento diferenciado em diferentes instâncias, chamadas de “fóruns”. O autor diferencia inicialmente o fórum científico de economistas, que foi prejudicado, a partir da década de 70 com a dominação do paradigma keynesiano, que abriu assim a via para uma “conscientização” dos defeitos da ação pública. O fórum da comunicação pública constitui outra cena específica da “construção da realidade social” que irá modificar os termos da retórica política com o término da guerra fria, com o surgimento de novos interesses e novas reivindicações. O “consenso modernizador” alinhado com o paradigma keynesiano desaparece diante de uma nova retórica que exalta os “ganhos” da nova competição econômica e estigmatiza os blocos sociais (encontrados nos dias de hoje com o “blairismo” no Reino Unido). Por último, o fórum das comunidades de políticas públicas que refere à “conduta de debates e controvérsias nas diferentes redes de políticas públicas”. Este é o lugar onde são fabricadas as “receitas” que serão utilizadas nos programas concretos de ação pública. A variedade e especificidade

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dos atores que intervém nestes fóruns explicam a forte diferenciação do registro do novo referencial global segundo os domínios, os setores, ou segundo os países.

O ponto mais interessante nessa conceituação é de fato a constatação de que cada um desses fóruns funciona seguindo regras próprias, uma temporalidade única e colocam em cena atores diferentes. Cada ator irá então “trabalhar” a nova matriz cognitiva e normativa dentro de uma perspectiva específica, em função de diferentes exigências (ou urgências): o funcionamento do fórum de economistas é então marcado pela pesquisa de excelência acadêmica no paradigma dominante (mas também pelo jogo de inovação intelectual e de ruptura); os atores do fórum da comunicação política são animados pela vontade de participar na construção de alianças políticas partidárias que podem chegar ao poder; quanto as comunidades de políticas públicas, as receitas de sua “cozinha” são marcadas pela transação entre as dimensões do global e do setorial, entre o administrativo e o profissional, entre a técnica e a política.

Essa distinção entre vários fóruns mostra bem a importância e a complexidade do papel dos atores na construção das matrizes cognitivas, que se impõem por meio de um trabalho de construção retórica dentro de universos que são ao mesmo tempo distintos e articulados, sendo seu resultado nunca dado antecipadamente. Eve Fouilleux, no seu estudo sobre a reforma da política agrícola comum, prolonga de forma remarcável essa aproximação ao mostrar como a mudança de referencial da “PAC” (Política Agri. Comum) ocorre por uma série de ajustes progressivos entre os fóruns que participam na construção de um novo modelo de interpretação do mundo segundo as modalidades de funcionamento bem diferentes. Fouilleux trabalha a diferença do modelo desenvolvido por Jobert, com relação à política setorial, ela evidencia a importância dos fóruns profissionais como ponto de criação de novas ideias.

Esses trabalhos confirmam, de forma mais aprofundada, as observações que poderiam ser feitas sobre o setor de políticas aeronáuticas, pois foi mostrado como um processo de transformação global pode ser mediatista, e então construído, pela ação de agentes posicionados dentro dos espaços políticos, administrativos ou profissionais diferentes. Assim, não resta dúvida que, durante a década de 1970, houve a imposição de uma profunda transformação do transporte aéreo mundial: o crescimento espetacular da demanda trouxe a aparição de grandes aeronaves seguido da criação de novas empresas aéreas no continente asiático. Acima de tudo, a aeronáutica civil ganha sua autonomia em relação ao setor militar, como temos na simbólica história da Boeing ao deixar a construção de bombadiers para pode revolucionar o transporte aéreo, abrindo assim, a era da propulsão /reação e em seguida a do transporte em massa. Isso significa que no paradigma tecnológico dos engenheiros aeronáuticos, a construção de aviões de transporte civil é cada vez menos derivada da concepção dos aviões de combate e que deve ter um know-how específico de visão comercial.

Do ponto de vista da política aeronáutica, a construção aeronáutica civil deixa de ser um setor estratégico (no seu sentido militar). Assim, durante a década de 1970, a referência dominante do setor aeronáutico passa a se transformar, antecipando a subida acelerada do novo referencial global. Não há dúvida que essa nova regra do jogo deveria ser imposta, de uma forma ou de outra, aos responsáveis pelo setor aeronáutico na Europa, mesmo que através da transformação da demanda de clientes. Essa pressão, no entanto, ainda não era bem clara na época. Para os responsáveis nesse período, engenheiros que havia formado antes de 1939, o futuro da indústria de transporte público não era nada legível e, de toda forma, essa autonomia do setor civil contrariava toda a cultura civil e profissional do setor na época.

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O nascimento da Airbus e a mudança de referencial que ela leva no setor aeronáutico, é então fruto da ação de algumas pessoas, engenheiros aeronáuticos e responsáveis administrativos que foram capazes de perceber, identificar a nova força e de traduzir na linguagem dos grupos interessados. Esse trabalho sobre a retórica profissional também formou uma empresa destinada a convencer os responsáveis aeronáuticos que, doravante, os aviões civis deveriam ser criados em função da necessidade do mercado, uma proposição um tanto quanto absurda no meio militar, onde os aviões eram feitos/criados em função das tecnologias disponíveis. A construção simultânea do Concorde e do Airbus 300B, mostra de forma caricatural a passagem de um referencial a outro.

Esses atores realizaram um trabalho de mediação entre os diferentes universos. Assim, Roger Beteille e Felix Kracht, os dois principais responsáveis pela Airbus na época, conseguiram convencer os construtores a utilizarem o conhecimento dos engenheiros em uma estratégia comercial como os outros atores o fizeram no Ministério de Transportes, dentro dos gabinetes. É evidente que o programa da Airbus nunca teria existido (hipótese mais provável) se não fossem os atores responsáveis.

Essa questão do lugar dos atores no processo de construção de modelos de interpretação do mundo constitui sem dúvida o debate principal entre os diferentes autores que questionam sobre a dimensão cognitiva da ação pública. Assim, os trabalhos de Tierre Lascoumes parecem ao mesmo tempo próximos das opiniões do tema, mas com diferentes interpretações.

A questão que coloca Lascoumes, especialmente a partir de seus trabalhos sobre políticas de meio ambiente, é o de saber “como é possível construir uma ação coletiva num contexto de grande heterogeneidade” sabendo que “para serem governáveis, para darem lugar às escolhas políticas, é necessário que as questões sejam reformuladas em problemas de ação pública”. Ao se basear nos trabalhos de Michel Callon, em particular sobre a noção de “tradução” como “atividade de produção com a vinculação de autores autônomos e transação de perspectiva heterogêneas” Lascoumes propõe o conceito de “transcodagem” que designa “ o conjunto das atividades de regrupamento e transferência de informação em um código diferente: transcodar é em parte agregar informações e práticas, é também os construir e apresentar como uma totalidade, é, enfim, os transferir para outros registros sob lógica diferente para assegurar a difusão interna e externa.

Estamos próximos das questões mais importantes da análise cognitiva das políticas públicas. No entanto, os trabalhos de Pierre Lascoumes divergem dos apresentados aqui em vários pontos que levam a se perguntar sobre a noção de referencial. A primeira divergência diz respeito ao peso das concepções passadas aqui, segundo Lascoumes, que leva a considerar que as atividades de tradução constituem sobretudo atividades de reorganização de categorias de pensamentos existentes, a noção de “mudança de referencial” lhe parece muito radical. A segunda divergência está ligada à pespectiva de Callon, na medida que, na linha de trabalho sobre a tradução, Lascoumes considera que o processo de produção de sentido se faz, primeiramente, com a interação entre os atores heterogêneos, a tradução sendo, nessa perspectiva, “um processo antes de ser resultado” e a noção de referencial se revelando como muito “substancialista”.

É provável que as diferenças entre nossas abordagens são em parte ligadas a natureza dos terrenos estudados (meio ambiente, agricultura e aeronáutica). É certo que as teses que tentamos apresentar aqui foram elaboradas a partir do estudo de dois setores relativamente identificáveis e com atores com ambição de falar em nome do grupo profissional e então de integrar a dimensão do global em suas argumentações. O meio ambiente certamente não apresentam as mesmas características: as fronteiras das políticas públicas estão cada vez mais difusas, os campos de conhecimentos mais incertos

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e os atores nem sempre constituem em profissões capazes de construir discursos sobre o mundo. As operações de mediação estão cada vez mais difíceis de serem identificadas e analisadas.

Resta apenas que a noção de transcodagem parece não poder explicar completamente essas situações onde um novo modelo de interpretações do mundo é imposto aos atores, como pode ser visto no campo da segurança alimentar ou nas pressões impostas aos administradores hoje. Bem sobre essas pressões temos o produto das lutas de grupos interessados em defender seu “jardim”, mas é também evidente que a eficácia dessas lutas está ligada ao fato que elas se desenvolvem em um novo contexto de interpretação do mundo onde a proteção ambiental, em coerência com o referencial do mercado, ocupa um lugar cada vez mais importante: a relação entre o “setor” do meio ambiente e o global mudou.

O mesmo tipo de dificuldade é visto no caso das políticas sociais. É assim que Bruno Parlier se questiona sobre o caráter “setorial” dessas políticas. Enquanto que a maior parte dos trabalhos que usam a política social se limitam a um setor particular de proteção social, Parlier cria a hipótese que, para compreender as evoluções recentes nesse domínio na França, é também necessário olhar as evoluções do conjunto do sistema de proteção social considerando suas dimensões transversais (direitos e garantias).

Baseando os direitos à proteção social sobre o grupo profissional, institucionalizando assim as identidades profissionais e implementando uma intervenção social cada vez mais setorizada, o sistema francês de proteção social contribuiu para reproduzir e reforçar a sociedade setorial. Mais que um setor particular de política pública, o sistema de proteção social poderia ter sido criado, segundo Palier, como um meta-setor que assegura a integração e legitimação da sociedade setorial no seu conjunto durante os anos de 1945-1975, ou seja, durante o período da hegemonia do referencial modernizador.

Os trabalhos destacam, corretamente, que os processos por meio que o global é “construído” não resultam de nenhuma maneira sobre um tipo de edifício perfeitamente coerente no sentido de que cada setor e cada grupo social deveria achar um lugar determinado com antecedência. Eles recordam também que os processos de articulação entre o global e o “setorial” não são de forma alguma a preservação das elites políticas, administrativas ou financeiras, mesmo se suas partes são evidentemente importantes.

Resta apenas analisar os procedimentos de negociação, das estratégias dos atores ou os processos de tradução não serão suficientes para reportar os mecanismos que as sociedades modernas “colocam em ordem” para pensar como uma totalidade. Temos a obrigação de constatar que a cada vez mais, é através da produção de políticas públicas que a função de ordem é exercida: é ao “produzir” as políticas públicas que as sociedade passam a pensas nelas mesmas nas suas ações.

DO GLOBAL A GLOBALIZAÇÃO

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Juntamos aqui a idéia desenvolvida, nas diferentes perspectivas, por Habermas, Luhmann ou, na França por Yves Barel, na qual as sociedades modernas seriam marcadas por suas características de auto-referências: o desenvolvimento de políticas públicas é então o sinal da necessidade delas tomarem conta da sua historicidade. Nessa perspectiva, a política não é mais definida apenas pela monopolização de violência legítima, mas também, e a cada vez mais, como o lugar onde são definidos os modelos de interpretação do mundo.

A ironia da história é que no momento quando as sociedades se vêem assim forçadas a reconhecer e assumir essa ação necessária sobre elas mesmas, é realizada uma transformação que tende a enfraquecer as capacidades do Estado-Nação para constituir o lugar do global, na medida onde o espaço de produção dos novos modelos globais de interpretação do mundo se situa agora bem mais além do controle dos Estados. É preciso, ainda, fazer algumas observações sobre as precauções metodológicas.

Não há dúvida, como mostrado na maioria dos trabalhos atuais sobre a globalização, que o processo que chamamos hoje de mundialização não começou com as mudanças que afetaram a economia internacional nos anos 70. É possível mostrar facilmente que as sociedades capitalistas conheceram períodos de abertura intensa que permitiram identificar os períodos de mundialização (fim do século XIX, por exemplo) seguidos de períodos de fechamento econômico (a partir de 1920). Do ponto de vista que nos interessa aqui, isso significa que os processos de construção do referencial global nunca foram realmente limitados pelas fronteiras do Estado-Nação. Assim, o período identificado como sendo quando, na França, prevalecia uma forma de referencial de equilíbrio, correspondia bem a um sistema internacional dominado por um certo número de normas econômicas liberais comuns ao conjunto do mundo industrial capitalista.

É possível considerar, nesta época, que o Estado-Nação permanece no lugar do global pois é no nível das sociedades nacionais que são feitas, a cada vez e de maneira específica, as transações entre uma visão global do mundo e os diferentes sub-universos de sentido correspondente aos diversos setores e domínios de políticas públicas. Tudo acontece como, dentro de um contexto internacional dado, cada sociedade construísse uma matriz própria em que os atores nacionais articulam os diferentes setores.

É neste sentido que o processo de trabalho hoje difere das formas passadas de mundialização. Doravante, o lugar do global, ou seja, o lugar onde são efetuadas as transações entre as diferenças políticas públicas tende cada vez mais a se situar além do Estado e por conseqüência, além das sociedades nacionais. É por isso que o conceito de globalização não é apenas um anglicismo, mas designa também, a maneira mais exata da noção de mundialização, processo pelo qual a produção de modelos globais de interpretação do mundo tende a sair (escapar) para o Estado Nacional.

Isso significa que na perspectiva da análise cognitiva das políticas públicas, o processo de globalização corresponde a uma forma de dissociação entre, de um lado, as funções de construção dos modelos gerais de interpretação do mundo e, de outro, as funções de construção do compromisso social dentro dos sistemas de políticas modernas. Enquanto que, até esse momento o Estado-Nação era o lugar onde se combinava, de certa forma, essas duas funções que participam na construção de uma ordem política legítima, o processo de globalização tende a os dissociar de forma cada vez mais limpa.

De um lado, os atores que participam na construção das matrizes cognitivas globais estão de referindo cada vez menos a um status de Estado: as redes de empresas, instituições internacionais como

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o FMI e Banco Mundial, redes científicas e outros. Os fóruns de produção de idéias globais se transformaram em transnacionais. A explosão das redes de informática, mesmo sendo difíceis de mensurar as conseqüências políticas, acentua essa evolução. De um outro lado, os Estados são forçados a assumir e traduzir, dentro de um espaço territorial cada vez mais contestado, as conseqüências do referencial de mercado e de assegurar, bem ou mal, a reprodução dos compromissos políticos e sociais.

Na realidade, o processo de dissociação funciona em todos os níveis da regulação política. É sobre este angulo que temos que compreender os debates atuais sobre a noção de governança e, de forma mais geral, os trabalhos que enfatizam sobre as novas formas de coordenação política. Na perspectiva da análise cognitiva de políticas públicas, podemos assim criar a hipótese que estes novos modos de governança correspondem a uma situação naquela em que a produção dos modelos de interpretação do mundo tende a escapar para os atores governamentais, que são eleitos ou responsáveis administrativos.

Não é o caso de fingir que os atores governamentais foram beneficiados com o monopólio de produção. Porém, o governo foi o fórum principal, o lugar onde as idéias foram constituídas no ponto de referência para o futuro da sociedade. Os governantes devem, então, se adaptarem aos modelos produzidos por outros e gerenciarem as conseqüências da mudança sobre a reprodução de ordem política: O “global” se situa, agora, além do Estado-Nação. Essa evolução não corresponde a um “desaparecimento do Estado”, mas a uma profunda transformação das condições de exercício de regulação política. Se podemos falar de “governança mundial”, no sentido em que veríamos sendo construídas as premissas de ultrapassagem do Estado-Nação sendo forma de “governança global” que vemos sendo implantadas nos dias de hoje, por meio dessa transformação das condições de elaboração dos modelos globais de interpretação do mundo.

Nesse contexto, a União Européia ocupa um lugar específico, mas caracterizado pelo novo contexto. Esse aparelho político-administrativo, que não é um Estado (e muito menos um Estado-Nação) produz, no entanto, políticas públicas em diversas áreas, o que significa que seu nível opera, cada vez mais, a articulação entre o global e o setorial. Neste sentido, a governança européia, como processo de produção de matrizes cognitivas que “impõem” aos Estados constituírem uma versão particular dessa “governança global”, um lugar de tradução – de transcodagem – do novo referencial global.

Ao mesmo tempo, porém, a UE, e o que constitui seu caráter ambíguo, é potencialmente um lugar onde se poderia construir um sistema de representação democrática sujeita a participar na construção de uma ordem política não global, mas que excederia o modelo de Estado-Nação, e que seria sujeita a rearticular, pelo menos parcialmente, a função de produção dos referenciais e a função de construção do compromisso social.